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CAPÍTULO 19
–Vejo que vou ter de fazer tudo sozinho durante o próximo meio ano, pelo menos – resmungou Kendale, estalando preguiçosamente a chibata contra as pernas esticadas.
– Nem tanto tempo – disse Southwaite.
Serviu mais brandy a Yates, mas nem sequer ofereceu a Kendale. Este tinha uma viagem de longas horas pela frente e nunca bebia quando estava em missão.
– Não mais do que cinco meses, diria eu – calculou Yates.
– Está a provocá-lo deliberadamente, Kendale. Perdoe-lhe a animação exagerada. Estamos-lhe ambos gratos por fazer a viagem até à costa, tal como pedido nesta carta.
– Não gostaria que tivessem de abandonar as vossas mulheres tão cedo. Diabos, quem sabe que calamidades não aconteceriam se vos fossem negados os prazeres do casamento
durante três ou quatro dias.
Kendale raramente empregava um tom sarcástico nos seus comentários. Como consequência, muitas vezes parecia estar a falar a sério. Grande parte delas, Yates gostava
de fingir que assim era.
– Entre todos os perigos encontra-se a loucura – principiou Yates. – Li um artigo científico sobre isso. Um noivo que é afastado demasiado cedo da noiva pode enlouquecer
por falta de consumação.
Kendale franziu o sobrolho.
– Isso não faz sentido. Se um homem pode enlouquecer por falta de consumação, os padres católicos, os velhos professores, os exércitos em guerra, toda a marinha
e metade dos maridos casados há mais de três anos seriam tolinhos.
– Assim seria de esperar, mas parece que os noivos são especiais. O artigo explicava que a falta de consumação que se segue à presunção tomada livremente do gozo
da dita é passível de conduzir à loucura. Quantas vezes já viu um homem que, rejeitado pela amante, enlouquece? Faz ameaças, chora, embebeda-se dias a fio, durante
os quais escreve má poesia e pondera apertar o gasganete a alguém. – Yates bebeu um gole do brandy e continuou: – Espero que não julgasse ser tudo efeito de um coração
partido, Kendale, em vez de algo tão vulgar como a previsão da frustração sexual.
Os olhos de Kendale estreitaram-se. Yates manteve a pose séria e inocente.
– Ele está a aproveitar-se do seu bom senso, Kendale. Novamente – declarou Southwaite. – Nem o Ambury nem eu temos qualquer desculpa para lhe dizer que se desloque
à costa por nossa vez, a não ser o nosso desejo de... bom... nos entregarmos ao nosso desejo.
– Parece-me a mim que ambos já o fazem há tempo suficiente para desejar uma pausa. Não me corrija, Ambury. Se você fosse outro homem qualquer e ela outra mulher
qualquer, talvez fosse possível acreditar na vossa suposta inocência. Ambos sabiam que tal não seria possível, portanto não me culpem pelos pressupostos que faço.
– Então, aceite como desculpa a minha obrigação de cumprir um dever maior, para não partir a pensar que me furto à responsabilidade que o leva.
– Ah, não é o prazer que o prende aqui, mas a necessidade de um herdeiro. Que conveniente para si, que este dever maior tenha como condição deitar-se com a sua mulher.
– Referia-me à necessidade de me deslocar a Elmswood. Há lá algum trabalho que preciso de fazer e que foi atrasado pelos acontecimentos recentes. Necessito também
de apresentar a minha mulher aos vizinhos de lá.
Seria igualmente a lua de mel que poderia oferecer a Cassandra. Entre a saúde do pai e os perigos da guerra, não sairiam em viagens demoradas, nem sequer em Inglaterra.
– Encerrarei esta conversa como a comecei, assinalando que tudo recairá sobre mim nos meses vindouros.
Levantou-se a abotoou a casaca.
– Enquanto estiver no Kent, certificar-me-ei de que nenhum de nós é chamado, a não ser que os vigias tenham boas razões. A carta que recebeu parecia dominada pelo
terror, Southwaite. Considerando o estado de alerta do país, tal seria de esperar, mas não desejo passar tanto tempo em cima do cavalo para nada. O meu traseiro
não deve pagar a má avaliação efetuada pelos nossos vigias.
– Faça como julgar melhor, claro – declarou Southwaite.
Era desnecessário dizê-lo, pois Kendale fazia sempre o que julgava ser melhor, mesmo que todos os outros considerassem preferível agir de outra forma.
– Espero que ele consiga acalmá-los – comentou Southwaite depois de Kendale partir.
Agarrou algumas cartas que estavam amontoadas na secretária.
– Alguns dos vigias veem navios fantasmas, de tanto perscrutarem a escuridão. Passo dias a escrever respostas, fazendo notar que os ansiosos relatórios que enviam,
na verdade, não incluem nada que seja digno de nota.
– Considerando os acontecimentos recentes, a rede que montámos é desadequada. Está na altura de o governo fazer algo oficial, e permanente.
– Julgo que não demorará. Lembra-se daquela série de torres que propusemos no ano passado? Pontos de defesa costeiros, constituídos pelo gabinete de guerra, para
a vigilância ser sistemática e a costa sudeste estar mais segura?
– Pensei que esse plano tivesse caído no esquecimento.
– Foi ressuscitado no início do verão. O gabinete de guerra tem estado a trabalhar numa lista de localizações. Parece que vão começar brevemente.
– É bom saber.
– Já lho teria dito mais cedo, mas tem estado ocupado a conquistar Lady Cassandra e a deixar-se enredar.
– Não gozei nenhuma vitória, como lhe disse.
– Permita-me acreditar que sim. A ideia de ter sido obrigado a casar-se com uma mulher que nem sequer seduziu é demasiado desanimadora.
– A constatação de que ela foi redimida e de que está apta a ser amiga da sua mulher deve ser suficientemente animadora. Quanto a tudo o resto que possa mitigar
o seu contentamento, o Kendale compreendeu a situação a ponto de fazer o casamento em sua casa e se apresentar como testemunha. Se ele consegue reconciliar-se com
este casamento, o Southwaite também deveria ser capaz de o fazer.
Southwaite sentou-se na cadeira que Kendale desocupara e esticou as pernas à semelhança deste.
– Entrou nesta casa, esta tarde, com ar de quem está inebriado por novos prazeres, portanto, neste momento, parece que este casamento se lhe adequa bastante bem,
e isso é tudo o que importa.
– Ao dizer «neste momento», está a sugerir que tal poderá deixar de ser o caso quando a experiência deixar de ser nova e inebriante.
– Julgo que é verdade na maior parte dos casamentos.
Não no dele, claro. A confiança de que o seu casamento nunca cessaria de o inebriar não necessitava de ser expressa. Contemplou o brandy por um segundo, mas logo
olhou de novo para Yates.
– Falou com ela acerca do Lakewood?
– Não há nada a dizer.
– Não há? O julgamento iminente do Penthurst pôs-me a pensar com alguma frequência naquele duelo, ultimamente. Pergunto-me se presumi demasiadas coisas. Pergunto-me
se o Lakewood tencionara que assim fosse.
Yates não gostava de pensar naquele dia desagradável, nevoento, em que Southwaite o informara e a Kendale de que Lakewood havia morrido.
– Como padrinho dele, com certeza terá percebido o mesmo que as outras pessoas.
– Ele disse que o Penthurst tinha insultado uma senhora. O amor da vida dele, declarou. Tal como você, presumi que se referia a Cassandra Vernham, mas agora... –
Encolheu os ombros. – Foi uma loucura desafiar o Penthurst. Se ele tivesse acabado por matar um duque...
– Provavelmente não tencionava matá-lo. Nos dias de hoje, a maior parte dos duelos não termina dessa forma.
– Oh, digo-lhe que tencionava fazê-lo. Ficou bem claro quando nos encontrámos todos. O Lakewood exigiu o derradeiro acerto de contas. Mesmo assim, o Penthurst apontou
alto, tenho a certeza agora, pois revivo-o com frequência na minha mente, mas o Lakewood moveu-se na pior altura para disparar.
Abanou a cabeça com tristeza.
– Que raio de coisa. Imagino que nos cheguem mais respostas com brevidade, quando o Penthurst se apresentar diante dos lordes. Provavelmente serei chamado para dar
testemunho. Daí os meus esforços mais recentes para perceber exatamente o que vi e o que foi dito pelo Lakewood.
– Talvez esteja a pensar demasiado no assunto. Foi o que foi.
– Tem mais certeza do que eu acerca do que se terá passado, Ambury. Esperaria que não fosse indiferente à ambiguidade, agora que está casado com Cassandra Vernham.
– Decidi que não pode recair sobre ela, a culpa do jogo de morte de dois homens.
– É melhor homem do que eu, se consegue deixar as coisas assim.
Yates não sabia se o seria. Abordara o tópico mentalmente algumas vezes, as mais recentes das quais na noite anterior, quando, saciado do cheiro e da suavidade dela,
debatera se não seria melhor esclarecer o assunto de Lakewood. O velho amigo tornara-se uma espécie de fantasma, um espírito que lhe invadia o pensamento, carregado
de ambiguidades como quem arrasta uma corrente. Dissera a Cassandra que não falariam no assunto, mas perguntava-se se o fantasma algum dia encontraria descanso se
não o fizessem.
Agora que ele está morto, só eu sei o que aconteceu realmente. Fora aquilo que ela dissera. Imaginar ao que ela se referiria tornara-se ainda mais um elo daquela
corrente. De tamanho considerável.
– Saio da cidade dentro de dois dias – anunciou, levantando-se para sair. – Não estava a mentir quando falei em negócios a tratar no sul.
– A sua noiva deve ficar satisfeita por sair da cidade durante alguns dias.
– A notícia do nosso casamento deu outro vigor às salas de visitas, ultimamente, e temos uma longa fila de senhoras que aguardam a sua vez de satisfazer a curiosidade,
portanto é verdade que lhe apetece bastante esta pequena viagem.
– Pensava mais em termos de escapar à sua mãe.
– Isso está a correr melhor do que esperava, mas ela poderá ficar satisfeita com a possibilidade de férias nesse aspeto também.
Quando regressava a casa, pensou na sorte que o assistira quanto a essa relação em particular. Não houvera discussões nem estranheza na primeira vez que Cassandra
se reunira com a mãe dele, nem desde então. Também não havia muita proximidade, evidentemente.
A primeira semana de casamento tinha corrido bem. Ainda era recente, mas a familiaridade confortável que se instalava era bom indicador dos anos que se seguiriam.
Devia estar mais satisfeito do que estava.
Culpou-se pelas irritações que por vezes o incomodavam. Quase sempre o assaltavam quando esbarrava com as vedações erigidas pelas suas próprias palavras, como quando
lhe dissera que não falariam do seu passado em geral, nem de Lakewood em particular.
Presumira que deixar tudo no passado seria o melhor para o futuro. Poderia ter-se enganado.
Cassandra percebia que alguma coisa preocupava Ambury. A forma como fez amor foi mais distante do que o normal. Que tenha falado pouco a seguir não a surpreendeu.
Mas surpreendeu-a pressentir nele uma perturbação interior.
Contava que ele se fosse embora para se dedicar ao que quer que fosse que lhe ocupava os pensamentos. Não o fez. Em vez disso, deixou-se ficar deitado ao seu lado,
minguando as velas na escuridão crescente do quarto. Tinha o braço direito pousado em cima dela e a mão sobre a sua coxa num gesto curioso de possessividade, e deixava
o cérebro ir para onde tivesse de ir. Ela tentou dormir, para não estar demasiado cansada durante a viagem, quando saíssem para a propriedade rural de Highburton,
de manhã.
– Qual era o nome dele?
Os olhos dela abriram-se de surpresa. Não julgara que aquela atividade toda se devesse a ela.
– Não vou dizer-lho. Disse que não falaríamos no assunto e já o fez duas vezes.
– Mudei de ideias.
– Volte a mudar.
– Não gosto de pensar que poderei encontrar-me com ele e que ele saiba que teve o seu amor e eu não saiba que ele foi a pessoa que o fez.
– Não vai encontrar-se com ele. Ele não nasceu nos seus círculos. Não pertence ao tipo de regimento que se movimente neles.
– Ainda assim, quero saber o nome.
Ela sentou-se e tapou-se com o lençol. Ele pouco mais era do que um conjunto de formas escuras na noite, mas ela via-o com clareza na sua mente. Via o rosto belo
e a linha firme da boca que nenhum dos sorrisos frequentes vinha agora suavizar. Via os músculos vigorosos do corpo nu que, agora, o casamento lhe dava o direito
de admirar.
– Não acredito que fique mais feliz por saber o nome dele, ou qualquer outra informação. Eu sei os nomes de algumas das suas antigas amantes, e esse conhecimento
não me traz nenhum reconforto. Preferia ignorá-los.
– Isso é diferente. Porque agora você é minha.
Credo, os homens tinham uma cabeça tão estranha. Pior, conseguiam ser tão irritantes quando diziam coisas e não ouviam as implicações das suas palavras. É minha.
Via-o apenas numa única direção, como a maior parte dos homens fazia. Ele tinha a posse dela, mas ela não tinha a posse dele. É diferente. Na cabeça dele, era diferente,
e todo o universo masculino concordava.
– Sim, sou sua. Não pode ficar satisfeito por isso? Não é que se importe realmente com a pessoa que ele era ou com o que eu sentia por ele. Duvido que se melindre
sequer com o facto de não ter sido o primeiro. A verdade é que gosta de ter uma mulher que é uma amante e não uma rapariga virginal. Agrada-lhe que a minha audácia
e experiência abram portas para um prazer mais sofisticado. Foi por isso que me quis.
Ele olhou para ela na escuridão, sentou-se e pegou no robe.
– Talvez conheça a minha mente melhor do que eu, Cassandra. Vê, com certeza, os benefícios que este casamento me trouxe com mais clareza do que eu. Vou fazer aquilo
que sugere e aproveitar a minha boa sorte das formas que recomenda.
CAPÍTULO 20
Cassandra adorou o quarto de Elmswood Manor. Uma profusão de janelas dava entrada à bonita luz setentrional que, filtrada pelas árvores, assumia um matiz fresco
e prateado. Como consequência, era sempre madrugada naquele quarto tranquilo e sereno.
Os seus aposentos eram maiores do que os de Londres. E também eram só dela. Não conseguiu encontrar nenhuma porta ou passagem de ligação aos aposentos de Ambury.
Provavelmente, só o conde e a condessa usufruiriam de tal comodidade.
Aquilo não o impediu de a encontrar. Ele entrou enquanto a criada que lhe fora atribuída lhe desfazia a mala. Não se anunciou nem disse uma palavra. Limitou-se a
ficar parado à entrada do quarto de vestir até a criada reparar nele e se escusar.
Pensando que os privilégios a que se outorgam os maridos podem ser inconvenientes por vezes, Cassandra meteu ela própria as mãos à obra. Ambury ficou a observar,
com o ombro encostado à parede e os braços cruzados.
– Vamos jantar em Trotwood Park com os Witherspoons. São uma família proeminente, aristocrática, e importante no condado – disse. – Amanhã de manhã, damos um passeio
a cavalo, para que os criados e rendeiros possam vê-la.
– Então, devo pendurar isto imediatamente.
Tirou o vestido de montar e sacudiu-o com um floreado. Ele não percebeu a indicação de que seria importante para a boa apresentação dela deixar que a criada retomasse
os seus deveres.
– No dia seguinte, terei de me ausentar durante alguns dias. Necessito de ir ao sul visitar um terreno.
– Faz parte das suas obrigações para com o seu pai e a propriedade?
– Uma das mais inconvenientes.
– Farei uso do tempo para conhecer as pessoas de cá. É provável que me saia melhor sozinha, pois todos parecem reverenciá-lo. – Olhou para a porta, pela qual a criada
desaparecera. – Ou então, talvez, receá-lo, se forem criaturas jovens e bonitas.
– Nunca importunei uma criada, e não espero pensar sequer em fazê-lo no futuro.
– Muito bem.
– Não me atribua maior comedimento do que mereço. Nunca pensarei fazê-lo porque agora tenho uma mulher às minhas ordens. Portanto, na realidade, o «muito bem» é
seu.
– Às suas ordens? Espero que não planeie berrar por toda a casa para me chamar sempre que estiver com o cio. Vai enviar-me o seu criado de quarto ou um lacaio?
– O mais provável é entrar-lhe pela porta.
Como fizera ainda agora. A tarefa de desfazer as malas distraíra-a da tonalidade da presença dele. Interessado. Inquieto e um pouco perigoso. Ambury, predador, originava
uma perturbação subtil mas inegável na atmosfera de um espaço. Excitante. Assaltava-a agora e ela sentiu o frémito da resposta. Durante a última semana, o seu corpo
despojara-se de quaisquer inibições e o desejo era saudado da mesma forma.
Ele ficou a observar Cassandra dispor alguns objetos de cuidado pessoal no toucador. Depois ela entrou no quarto.
– É o quarto mais amoroso em que tive o prazer de ficar. A roupa branca, a tinta clara, os remates em renda e as almofadas fofas fazem-me pensar num quadro de Boucher.
– Só falta a mulher bela e nua, deitada de bruços em cima da cama.
Sentou-se numa poltrona de um azul claríssimo e esticou os braços. Agarrou nela, fê-la rodar e desapertou-lhe as fitas do vestido.
– Terá de fazer as vezes.
– É um convite?
– É uma ordem, Cassandra. Os homens não convidam as amantes.
Devolvia-lhe as palavras que ela empregara na noite anterior. A atitude dele desafiava-a a desempenhar o papel audaz que ela lhe revelara ser o desejo dele.
Não, não era um desafio, decidiu quando se voltou e viu como ele esperava e observava. Era uma ordem, tal como ele dissera. Tampouco tinha a certeza de que aquilo
seria um jogo.
Ela não devia gostar das subtilezas que o afetavam, mas o seu corpo gostava. Baixar o vestido excitava-a. O olhar tenaz e ardente de Ambury deu vida a centenas de
minúsculos redemoinhos quando ela fez deslizar a chemise pelos ombros. Depressa estava à frente dele, apenas de meias.
Ele pareceu-lhe demasiado composto. Demasiado dominador, tal como pretendia. Decidida a equilibrar um pouco o jogo, aproximou-se da cadeira dele, colocou o joelho
entre as pernas dele e debruçou-se para o beijar. Fê-lo com mais agressividade do que o normal e sentiu os efeitos na virilidade crescente que o joelho comprimia.
Interrompeu o beijo e esperou que a boca dele lhe tocasse o corpo. Em vez disso, ele deu-lhe um beijo rápido no rosto.
– Vá para a cama, Cassandra.
Um pouco desiludida, caminhou até à cama. Era uma cama grande, para a qual teve de subir. Atirou-se para cima dela. Ficou de barriga para baixo e apoiou-se nos braços
para o ver.
Ambury levantou-se e despiu-se. Não demorou muito. Fê-la recordar aquele dia na costa, em que ele se despira para entrar no mar. As cortinas do quarto não estavam
corridas, por conseguinte a luz límpida revelava a sua força esguia da mesma forma que o sol fizera naquele dia. Já se tinham visto nus com bastante frequência,
mas era a primeira vez desde aquele dia que o via nu à luz do dia.
Ele apoiou um joelho ao lado dela e beijou-a entre os ombros. Um outro beijo mais abaixo. Mais um no fundo das costas. Depois sentiu-o atrás de si, erguendo-lhe
as ancas.
– Ajoelhe-se.
Um tremor profundo desceu-a por dentro, reunindo-se na sua vulva. Ajoelhou-se e ele ergueu-lhe um pouco mais as nádegas. A posição e a vulnerabilidade que sentia
originavam um misto desconcertante de expectativa e de medo. Os seios roçavam os lençóis, excitando-a ainda mais.
Ele tocou-a e imediatamente um ardor obsessivo tomou conta dela. Não era um toque destinado a agradar. Não a provocava nem acariciava. Afagava-a com convicção, preparando-a
para ele. Assim que ficou pronta, ele entrou com tanta profundidade que ela ficou sem fôlego.
Possuiu-a. Retirou o prazer que desejou do corpo dela, usando-o a seu bel-prazer. Ela também retirou o dela, um prazer selvagem desprovido de artifício ou ternura.
Ele devorou-a, e ela adorou ser devorada. Atingiu o clímax primeiro, antes de as impiedosas estocadas finais lhe oferecerem a ele a consumação. Ele soltou-a, então,
e ambos caíram na cama, com os membros nus emaranhados.
Daquela vez, ela não desfrutou da saciedade. Ficou deitada de lado, com o braço dele, forte, atrás de si, e alerta à diferença do que acabara de acontecer.
Fora espantoso, de certa forma, mas ela não teria gostado que tivesse sido assim da primeira vez com ele, nem que fosse sempre. Não podia ignorar que tinha havido
muito poucos preliminares e ainda menos intimidade. Nem beijos ou carícias. Nenhuma atenção deliberada aos seios e ao corpo dela. De vez em quando, seria excitante.
Todas as noites, porém, não previa gostar da fria indiferença que todo o ato implicava.
Esperou por mais algum sinal que indicasse como seria dali para a frente. Podia ser qualquer coisa, até um beijo no ombro. Seguramente que, com as amantes, ele não
se limitava a garantir que atingissem o clímax.
Ele mexeu-se e ela sentiu a reação da cama à sua saída. Fechou os olhos e ouviu os sons de roupa a ser vestida. Então, os passos dele cruzaram o quarto.
Ela pensou que ele tinha saído e abriu os olhos. Em vez disso, deparou com ele ao seu lado, a olhar para baixo. Ele esticou o braço e deslizou-lhe uma mão pelo rosto
numa carícia que afastou algumas madeixas desalinhadas de cabelo.
– Vou mandar preparar-lhe um banho.
Depois saiu.
Ela sentou-se entre os lençóis húmidos e os cheiros eróticos da cama. Um banho e uma carícia. Pelo menos era alguma coisa.
Yates deteve o cavalo no cimo de um pequeno planalto. Observou a paisagem à sua volta. Era, sobretudo, plana e o mar próximo adentrara-se, criando, ao fundo, uma
linha costeira irregular e mutável. Áreas de pântano alternavam com terras aráveis que cingiam qualquer elevação presente.
Teve de se rir de si próprio quando analisou a paisagem tão pouco promissora. Devia ter dado ouvidos ao pai e deixado o assunto em paz. Não admirava que a contestação
nunca tivesse sido investigada. Se o resto da propriedade fosse assim, só tinha vindo perder tempo. Mais valia ter ficado em Elmswood com Cassandra.
Visto que já viajara tanto, fez o resto do caminho. Meia hora depois, aproximou-se de um rebanho pastoreado por dois cães e um homem. Yates saudou o sujeito, que
o inspecionou seriamente antes de lhe retribuir o cumprimento. As roupas indicavam que o homem não seria pastor, mas sim rendeiro. Trazia vestido um casaco que,
embora velho, lhe dava um aspeto fidalgo.
Yates saltou do cavalo e apresentou-se. Mr. Harper, que reparara claramente nos casacos e na sela de Yates, alegrou-se quando percebeu que o visitante era aristocrata.
– Vêm tratar de pôr algumas defesas, finalmente? – perguntou. – Não sei o que é preciso para o Parlamento e os serviços atuarem. Pelas luzes nos pântanos, à noite,
é fácil ver que alguém anda a tramar alguma. Estiveram alguns homens aqui em junho, para ver como as coisas iam, e eu disse-lhes isso. Agora com os irlandeses, que
só falta entregarem a costa oeste ao inimigo, estou a pensar mandar a minha mulher para a família que vive a norte, por proteção.
Yates perscrutou a costa. Não era muito longe ir dali a Southampton, por isso duvidava de que houvesse algum perigo. Era evidente, contudo, que Mr. Harper se sentia
vulnerável. O terreno podia não ser acolhedor para os desembarques dos franceses, pequenos ou grandes, mas também significava isolamento para os poucos que ali viviam.
– Não falo pelo exército nem pela marinha – replicou Yates. – Mas transmitirei aos responsáveis aquilo que vejo aqui.
Mr. Harper decidiu que se tratava de um convite para lhe mostrar tudo quanto havia. Apontou para os sítios onde alegadamente vira luzes e levou-o até a uma zona
especialmente pantanosa para indicar um barco abandonado. Pareceu a Yates que este se encontrava meio apodrecido, e pareceu-lhe que já lá estaria há alguns anos.
Deixou Harper falar, pois o homem tinha muito a dizer. Só uma hora mais tarde, quando regressavam ao sítio onde os cães guardavam as ovelhas, é que abordou a verdadeira
razão da sua visita.
– É rendeiro, Mr. Harper? Ou esta terra é sua?
– Espero, se algum dia tiver terra, que seja melhor do que esta, senhor.
– E de quem é ela, então?
– Bom, isso não é evidente.
– Tem de pagar as suas rendas a alguém.
Mr. Harper riu-se.
– O dinheiro sai-me da carteira, isso é certo. Se e como vai parar a outra depois, já não sei.
– Certamente que vai parar à carteira da pessoa a quem deu a sua assinatura.
– Pois assim seria esperado. Estava a contar com isso. Mas a minha família assinou com uma pessoa e depois a terra foi vendida a outra.
Caminharam lentamente até ao rebanho. A massa de ovelhas arrastou-se como se fosse um animal grande e disforme, servido por inúmeras patas.
– Com quem é que assinou?
– Com um feitor. O meu pai disse-me que a propriedade pertencia a Highburton quando ficámos com ela. Isso foi... oh... faz uns bons trinta anos que ele me disse
isso, e a minha família estava cá há pelo menos outros tantos. Mas a certa altura começou a vir outro feitor buscar as rendas, quando eu era rapaz. Quando eu passei
a tomar conta, disse-lhe que precisávamos de alguns melhoramentos e que perguntasse sobre isso a Highburton. Foi aí que soube que já não era ele.
Parecia a Yates que Mr. Harper devia ter uns quarenta e tal anos. O seu tempo de rapaz tinha passado há muito. Fosse qual fosse a disputa que envolvesse a propriedade,
acontecera bem lá atrás.
– Qual é o nome do feitor que vem buscar as rendas, agora?
Mr. Harper olhou para ele com ceticismo.
– Vai querer falar com ele? Se pensa em comprá-la, saiba que não serve para nada a não ser ovelhas e, mesmo para isso, mal. Por isso não vale a pensa pensar em mais
rendas.
– Ninguém está à procura de aumentar as rendas. Tenho a certeza de que, quem quer que seja o proprietário destas terras, está grato pela sua longa permanência e
nenhum proprietário futuro desejará vê-la terminada. Pergunto em nome de um familiar que mostrou interesse. Vejo que não serve para muito, mas prometi investigar
o assunto.
– Bom, se as rendas ficarem iguais, não me faz muita diferença quem tem interesse. O homem com que tratava, há anos que deixou de vir. Agora não vem ninguém. Mando
as rendas para a cidade, para o Banco de Inglaterra.
Parecia que a propriedade fazia parte de um fideicomisso. Se assim fosse, seria difícil saber muito mais acerca dela.
Agradeceu a Mr. Harper e montou no cavalo para dar uma volta pelo resto da propriedade e ver se era tão pouco promissora como aquela secção.
Cassandra acomodou-se no divã da biblioteca e encavalitou o livro na barriga. Embora gostasse da companhia de Ambury, aqueles dois dias sozinha tinha sido muito
agradáveis. Eram as primeiras horas que passava a sós desde que fora para casa da mãe, e sentira falta de estar sozinha com os seus pensamentos e sem despesas de
conversa.
O ar agradavelmente fresco entrava por uma janela próxima. Os cheiros outonais e o friozinho do outono anunciavam que o calor do verão estaria vários meses sem regressar.
Perguntou-se se Ambury se comprazera com a desculpa para se ausentar durante alguns dias. Estava tão pouco habituado a ter uma companhia constante como ela. Era
verdade que a estadia ali lhes tinha proporcionado uma série de explorações sensuais, e homem nenhum se importava com aquilo.
Ao dizer-lhe que ele gostava de ter uma mulher que podia tratar como amante, dera-lhe permissão para fazer exatamente isso, ou assim parecia. O resultado fora espantoso.
Algumas das ordens que dera haviam-na chocado, embora ela nunca se tivesse permitido transparecê-lo. Havia gestos de afeto, também. E, porém, a intimidade essencial
das primeiras noites perdera-se, ainda que o prazer fosse mais do que satisfatório em todas elas.
Ele não se importava com as horas que passava na cama nessa altura. Também parecia apreciar os jantares para os quais os vizinhos do campo os convidavam, e as longas
cavalgadas de inspeção à propriedade. Contudo, uma proximidade tão grande nem sequer era normal entre marido e mulher, e ela suspeitava de que ele ansiava regressar
à cidade, com os seus clubes e atividades mais variados.
O dia límpido chamava-a e ela preteriu o livro em favor de um passeio pelo jardim. O percurso conduziu-a à galeria. Era um espaço alto, largo e bastante sombrio.
Quadros escuros revestiam as paredes, poucos dos quais de grande interesse. Muitos não eram sequer decifráveis. Decidiu pedir a Emma instruções de como os limpar.
No entanto, naquele dia a luz permitia maior visibilidade do que de outras vezes, e ela parou para admirar uma paisagem que lhe atraíra a atenção antes. Reparava
agora que incluía umas figurinhas minúsculas num ponto intermédio da cena. Duas delas transportavam algo, talvez um corpo amortalhado. A paisagem vasta e luxuriante
anulava qualquer funeral retratado.
Estavam vários retratos pendurados por cima da paisagem, dispostos em fila vertical até ao ornamento da cornija. O olhar de Cassandra subiu pela composição até ao
quadro da mulher que a encimava. Os olhos desta chamaram-lhe a atenção, assim como a boca e a linha do queixo. A semelhança com Ambury era notável. Os objetos de
adorno comunicavam que seria uma antiga condessa, e pelas roupas que trazia, talvez fosse a sua tetra...
Os pensamentos esfumaram-se. O olhar dela estacou na peruca empoada da senhora e nos brincos que pendiam por detrás dos exagerados caracóis.
Semicerrou os olhos para olhar bem para eles. O verniz antigo obscurecia-os grandemente, mas, a não ser que os seus olhos a enganassem, parecia-lhe que, por baixo
da camada amarela, safiras pendiam de engastes onde se viam cravados grandes diamantes.
Sentiu uma desilusão aguda no coração.
Ambury andava a investigar a tia dela, mas não era para um qualquer indivíduo. Julgava que os brincos haviam sido roubados à sua própria família.
A mente de Cassandra revirava-se em pensamentos do que significaria aquilo e se a promessa que ele fizera de proteger a tia Sophie fora honesta. Andando de um lado
para o outro debaixo do olhar daquela antecessora, rogou pragas a si própria pela imprudência que cometera.
Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer, desde que não comprometa a minha honra. Servir-lhe-ia de muito se ele concluísse que a tia Sophie
era uma ladra.
Murmurou mais impropérios para si própria, por não ser capaz de perceber o que ele tramava e por não entender o peso que ele dava àquela promessa. Precisava de falar
com Sophie e pedir-lhe a verdade com muita clareza, para ser capaz de encontrar uma forma de lhe oferecer proteção.
Enquanto ponderava e planificava, um criado entrou na galeria. Transportava uma salva onde se via uma carta. Reconhecia a caligrafia da tia a dois metros de distância
e apressou-se a pegar nela. Disse ao criado que aguardasse porque tencionava escrever uma resposta rápida. Enquanto ele se retirava, ela quebrou o selo.
«Perigo! Drama! Um novo salvamento! É por esta razão que lhe escrevo, querida Cassandra», assim se iniciava a carta de Sophie. Alarmada, Cassandra devorou o resto.
«O seu aborrecido irmão voltou aqui para me tirar de casa. Felizmente, os criados do Highburton negaram-lhe a entrada. Graças a Deus que conseguiu que o Angus viesse
substituir o Sean». Cassandra não sabia de nada. Se um escocês viera substituir o outro, fora por mera coincidência. «Não há nada como um escocês robusto para pôr
um covarde como o Gerald a correr. Que desilusão que ele me saiu!»
«Ameaçou-me de alguma coisa com a lei e um advogado e uma convocatória iminente para o tribunal da Chancelaria. O Angus mandou chamar o Southwaite imediatamente.
Como desenlace, fui mudada para a casa da Emma, mas o Southwaite não pode ignorar uma convocatória do tribunal se esta chegar, e é só uma questão de tempo até o
Gerald descobrir que estou aqui. Seja como for, tenho a certeza de que estou protegida até a Cassandra regressar à cidade e decidirmos então o que fazer.»
«Não tem de se preocupar, querida. Agora está tudo bem.»
Não tinha de se preocupar? O irmão comportava-se como um louco. Já devia ter ficado a saber que ela e Cassandra estavam longe das suas garras. Aquela perseguição
à tia Sophie devia ter terminado, agora que ele já não tinha qualquer poder de coação.
Em vez disso, tentara raptá-la novamente. Como punição por Ambury lhe ter levado a melhor? Em retaliação por este lhe arruinar os planos? Talvez não fosse nada mais
do que a expressão do seu despeito e da sua raiva. Quem saberia quanto tempo mais continuaria com aquela atuação?
Assaltou-a todo o tipo de potenciais desenvolvimentos. Era possível que na semana seguinte, quando regressasse, descobrisse que Sophie tinha desaparecido e que Gerald
se intitulara seu guardião.
Não se atrevia a correr aquele risco.
Atravessou a galeria com passos decididos e disse ao criado que chamasse o mordomo.
Londres estava adormecida à hora que Yates parou o cavalo, após uma viagem extenuante praticamente sem descansar. Amarrou o animal à frente da casa da família e
entrou. Arrancou aos seus sonhos o criado que atendia à entrada ao tocar-lhe no ombro. Envergonhado, o homem levantou-se de um salto e foi imediatamente tratar do
cavalo.
Yates subiu as escadas até aos seus aposentos. Lá dentro, tirou o casaco e a camisa e lavou-se com a água que um criado lhe trouxe. Higgins fora deixado em Elmswood
e vinha de carruagem, por isso tratou de si próprio.
Assim que soube que Cassandra tinha saído de Elmswood Manor apressadamente, ele próprio fizera o mesmo, embora não fosse evidente se tal seria necessário. Apenas
conseguira saber pelo mordomo que chegara da cidade uma carta que reclamara a presença dela lá. A explicação da senhora, um bilhete dizendo que a carta viera da
parte da tia, pouco fizera para clarificar o assunto.
Ele contara encontrar a casa adormecida, por isso surpreendeu-o deparar com um fio de luz por baixo da porta de Cassandra, quando avistou o corredor. Imaginara que
aguardaria pela manhã para inquirir por que razão a sua noiva tinha desaparecido, deixando somente uma frase como explicação. Aquela luz suscitou-lhe preocupações
que se sobrepuseram à irritação que transportou com ele durante as três horas que passou montado no cavalo.
Talvez a tia tivesse sofrido algum acidente ou se encontrasse doente. Talvez houvesse alguma situação trágica. Não gostava de pensar em Cassandra sentada sozinha
no quarto se tal fosse verdade.
Empurrou a porta e viu-a sentada à secretária, concentrada naquilo que escrevia. A luz da lâmpada dourava-lhe o perfil. Os olhos pareciam muito escuros, as pestanas
muito espessas, e os caracóis que lhe caíam em cascata pelas costas haviam-se furtado à disciplina imposta por uma qualquer escova.
Pegou numa cadeira pequena pelas costas, colocou-a ao lado da secretária de frente para ela e sentou-se. Ela pousou a caneta no suporte e enfiou a carta debaixo
do mata-borrão.
– Só contava consigo daqui a alguns dias – declarou ela. – Instruí o mordomo para lhe dizer que devia concluir tudo o que tinha necessidade de fazer no Essex e que
eu me orientaria aqui sozinha.
– Ele é demasiado discreto, e sensato, para transmitir uma mensagem como essa. Temeria que não me parecesse bem, a minha mulher dar-me autorização para fazer isto
e aquilo, e provavelmente recearia que eu pudesse culpar o mensageiro se mo transmitisse dessa forma.
As pestanas de Cassandra desceram-lhe sobre os olhos, deixando-o sem saber se o que ela escondia era humor, arrependimento ou rebeldia.
– As minhas desculpas. Saí tão à pressa que não pensei na forma mais adequada de o fazer.
– Não havia forma adequada de o fazer.
A frieza dominou o tom de voz de Cassandra ao responder:
– Ai não havia? Mesmo se uma emergência altera todos os planos?
Vasculhou nalguns papéis que estavam ao canto da secretária, tirou um e deu-lho.
Ele leu a dramática saudação de Sophie, depois o resto.
– Parece que o Southwaite tomou o assunto em mãos. Até a sua tia escreve que não é necessário preocupar-se.
– Também escreve que o Gerald ameaçou levar o assunto aos tribunais. O Southwaite não poderia desobedecer a nenhuma ordem que a convocasse, e não tem qualquer posição
para a defender. Recaía sobre mim a incumbência de procurar outro sítio onde ela ficar, rapidamente, no qual estivesse em segurança e o Gerald nunca pensasse em
procurá-la.
Ele bateu com a carta na madeira da secretária enquanto decidia se enveredava pela discussão necessária naquele momento ou mais tarde. Ela fitou-o, nada intimidada.
– Onde a colocou?
– Julgo que será melhor não o saber.
– Cassandra, é minha mulher. Sou responsável pelas suas ações. Preciso de saber o que fez, independentemente de isso lhe parecer bem ou não.
– Não se recusará aos tribunais, tal como o Southwaite. Pode impedir a entrada ao Gerald, mas não desobedecerá a uma convocatória.
– E a Cassandra, desobedeceria?
– Se necessário, sim.
– Não posso permiti-lo.
O olhar que lhe dirigiu comunicava o que a sensatez a impedia de dizer. Não importa o que pensa permitir.
– Sempre soube que é bastante ousada, Cassandra, e que não tem inclinação para obedecer a regras que não aceita. Suponho que não possa ficar surpreendido por se
recusar a ser uma mulher obediente.
– Sou bastante obediente, Ambury. No entanto, visto que me casei consigo para a proteger, não pode ficar surpreendido que eu lhe desobedeça para o fazer.
A discussão continuava a aguardar, qual tempestade no horizonte. Tornava o ambiente hostil e a conversa afiada. O olhar que ela lhe dirigiu desafiou-o a desalinhar
as nuvens negras, como se lhe aprouvesse uma boa tempestade.
Pela primeira vez, ele perguntou-se se, por tudo o que lhe era mais caro, se condenara a partilhar a vida com uma estranha. Não era pelo facto de ela ter desertado
tão depressa da lua de mel sem pensar por uma vez nos sentimentos dele. Nem sequer porque a lealdade que dedicava à tia prevalecia sobre a lealdade que lhe dedicava
a ele. E não era por ela ter comparado o casamento dos dois à relação entre amante e protetor, e o ter desafiado a fazer o mesmo.
A verdadeira razão estava na forma como ela o olhava.
Ela não confiava nele.
– Amanhã explico-lhe o que espero e o que não espero ver no seu comportamento no futuro. Por agora, vamos para a cama.
Ela olhou-lhe o peito nu e a pergunta transpareceu no olhar.
– Desejo-lhe boa noite, Cassandra – disse, levantando-se e afastando-se. – Passei demasiado tempo em cima de um cavalo e não tenho disposição de dar qualquer tipo
de lição à minha mulher hoje à noite.
Caminhou a passos largos até ao quarto. Lá dentro, não estava acesa nenhuma lâmpada e não teve vontade de ir buscar a do quarto de vestir. Sem tirar mais nenhuma
roupa, caiu em cima da cama e, quando o rosto tocou a colcha, já estava meio a dormir.
A mão sentiu um alto. Fechou-a para o agarrar. Suave e irregular, o invólucro era permeável ao tilintar do seu conteúdo.
Curioso, levantou-se e transportou a sua descoberta para o quarto de vestir. Assim que a lâmpada o iluminou, soube o que era.
Abriu o cordão da bolsa de veludo e deixou cair o conteúdo na palma da mão. Safiras e diamantes cintilaram. Um papel dobrado caiu ao chão. Pegou nele.
Pedi-os ao Prebles hoje à tarde. Os trinta dias terminaram. Visto que as nossas circunstâncias se alteraram, dou-lhos sem qualquer custo para si. Devolva-os ao cofre
da família, Ambury. Como futura condessa, acabarão por ser novamente meus, espero.
Pousou as joias e a mensagem que mostrava claramente que Cassandra já conhecia a razão pela qual ele insistira tanto em saber como é que os brincos tinham ficado
na posse da tia. Não admira que mostrasse tanta frieza e reserva em relação a ele, ainda há pouco. Claro que agora não confiava nele, se é que alguma vez confiara.
CAPÍTULO 21
Cassandra levantou-se cedo, colocando um fim misericordioso a uma noite muito inquieta. A conversa com Ambury repetira-se na sua mente durante o tempo todo que estivera
deitada, e esperava que vestir-se exorcizasse as memórias desconfortáveis.
Nunca o vira verdadeiramente irritado anteriormente, mas adivinhara em como não seria do tipo de homem de se pôr aos berros. Em vez disso, o estado de espírito que
o ocupava extravasava dele com uma intensidade silenciosa. O seu rosto tinha a capacidade de mostrar grande dureza quando ele não o amenizava com sorrisos e o humor
sagaz. Na noite anterior, quando ele se sentara na cadeira que atirara para perto da escrivaninha, parecera-lhe uma escultura de gelo.
Aquela raiva profunda não fazia qualquer sentido. Ele sabia para onde ela fora, e porquê. É verdade, o plano fora passarem duas semanas juntos no Essex e habituarem-se
um ao outro como casal que eram. No entanto, a união dos dois não fora de amor e a partida dela dificilmente interrompera um idílio romântico há muito aguardado.
Saiu de casa vestida para o dia e dirigiu-se a passos largos para Oxford Street. Por muito que desfiasse argumentos, o óbvio desagrado com que ele a confrontara
deixara-a inquieta e um pouco triste. A reação dele fazia ainda menos sentido do que o seu comportamento. Dos dois, era ela quem tinha direito de estar irritada,
não ele. Não lhe via razão para tanta sobranceria. Não poderia, por nada, alegar que ela o havia magoado.
Sentiu um alerta quando a palavra lhe ocorreu. Pressentira-a nele, assim como alguma consternação. Tentou rejeitar aquela ideia como sendo ainda menos lógica do
que todas as outras. Não tinha a capacidade de magoar Ambury, disso tinha a certeza. Contudo, não conseguia deixar de sentir que a conversa da noite anterior revelara
uma brecha entre os dois que não constava das que conheciam quando proferiram os votos em casa de Kendale.
Uma melancolia voltou a avolumar-se dentro dela. A tristeza incluía uma sensação de perda, talvez pela familiaridade fácil que ela e Ambury partilhavam. Prosseguiu
o caminho, esperando que o peso que lhe dominava o humor aligeirasse com o passar do dia.
Uma hora depois, saiu de uma carruagem alugada em frente à Fairbourne’s. O edifício tinha um aspeto frio e quedo. Confiava que Emma recebera a carta que ela tinha
enviado no dia anterior e que tratara das coisas que lhe pedira. Quando deparou com a porta da frente destrancada, soube que sim.
Outras provas de que tudo se encontrava em ordem alinhavam-se na grande parede da galeria. Viam-se alguns quadros, incluindo a estranha pintura de cariz primitivo
que tanto apaixonara Emma quando chegara para avaliação.
Emma saiu do escritório, fresca e adorável num vestido verde- -claro que combinava com o cabelo castanho igualmente claro. Deu um beijo a Cassandra, recuou um passo
e cruzou os braços.
– O que anda a tramar? O Southwaite não ficou satisfeito por ter feito desaparecer a sua tia quando ele não estava em casa. Deu-me indicações para descobrir para
onde a levou.
– Seria melhor ele não saber, o que significa que a Emma também não saberá.
– A preocupação dele é a segurança dela. Espero que saiba disso, Cassandra. Não quer que o seu irmão volte a levá-la.
– O seu marido faz parte do governo e jurou preservar o primado da lei. Por favor não insista para que lhe dê o paradeiro dela, Emma. Sabe que tenho razão em guardar
segredo.
– Até do Ambury?
– Sim.
Especialmente de Ambury.
– Vai enfrentar o mundo inteiro, sozinha? E agora, a vinda de Herr Werner. Vai dizer-me porque me fez convidá-lo para ver estes quadros?
Herr Werner era o emissário particular do conde Alexis von Kardstadt, membro da família real da Baviera, que trouxera a coleção de arte do seu amo para Londres na
primavera anterior. Os quadros do conde tinham sido a principal atração do leilão da Fairbourne’s, no qual Cassandra vendera também as suas joias.
Herr Werner sabia como é que a tia Sophie acumulara as suas joias, porque o conde fora um dos amantes que a presenteara com algumas. Cassandra esperava convencê-lo
a explicar o que sabia a Ambury, para debelar qualquer suspeita de que a tia Sophie pudesse tê-las roubado.
– Presumo que ele cá esteja não só para vender, mas também para comprar. Com os fundos daquele leilão a pesar-lhe na bolsa, ocorreu-me que a sua leiloeira poderia
ser um bom sítio para ele começar a aliviar a sua carga.
– Que bondade sua pensar no melhor interesse da Fairbourne’s. Sei que há mais alguma coisa por trás, mas permito-lhe que guarde reserva sobre esse assunto também,
se insistir.
Cassandra pegou nas mãos de Emma.
– Sente-se magoada por eu não me abrir consigo? Deveria contar-lhe tudo e deixá-la a si a braços com a tarefa de decidir o que contar ao seu marido se ele lhe pedir
informação? Não quero ser fonte de descontentamento dele em relação a si.
Emma sorriu com pesar a apertou as mãos da amiga.
– Tornou-se complexo, não foi? Gerir a nossa amizade, agora que estamos casadas. Não estou magoada, mas preocupo-me consigo.
Cassandra procurou tranquilizá-la, mas sons vindos da rua distraíram-nas. A vistosa carruagem que Herr Werner se acostumara a usar em Londres parara à frente do
edifício.
Herr Werner tinha um aspeto muito diferente daquele que apresentara no início do verão. Um corte de cabelo elegante dava-lhe aos caracóis louros um aspeto desalinhado.
As roupas tinham perdido o toque militar da sua primeira visita. Quando se aproximou de Emma, mostrou toda a deferência com que tratara o marido, mas um brilho de
familiaridade notou-se no olhar, talvez devido ao facto de a ter conhecido quando ela era apenas a filha de um leiloeiro.
– Condessa – cumprimentou, beijando-lhe a mão. – Foi gentil da sua parte pensar no meu amo, com relação às raridades que a sua família descobriu. Estou ansioso por
as ver.
– Não ficará desiludido. Lembra-se de Lady Cassandra Vernham, tenho a certeza. Ela também veio examinar os quadros.
– Claro. Minha senhora – cumprimentou, beijando a mão de Cassandra. – Agora, sinto-me duplamente grato pelo convite. Fico tão satisfeito por me encontrar em Londres
nesta altura. Tem sido raro nos últimos meses. A hospitalidade de incontáveis cavalheiros têm-me permitido viajar pelo vosso fascinante país.
– Vamos apreciar arte juntos, Herr Werner, e conversar sobre as suas viagens – convidou Cassandra.
Aceitou, então, o acordo dele e o seu braço. Espreitou Emma por cima do ombro, quando começaram a andar e abanou a cabeça quando esta fez menção de os seguir.
Pararam em frente ao pequeno quadro, primitivo e peculiar, de que Emma gostara. Herr Werner parecia tão desconcertado como Emma quanto ao seu valor. Cassandra repetiu
o que ouvira Emma dizer sobre a sua antiguidade.
– Tem aproveitado para caçar nos condados que visita? – perguntou, quando retomaram a marcha.
– Como é que adivinhou? Pelo bronzeado do rosto, não? Nem um bom chapéu consegue poupar-nos ao sol de horas. É com alívio que lhe digo que me familiarizei muito
bem com os mosquetes. Como representante do conde, não queria parecer desastrado.
Representante do conde, agora, já não um seu criado. Herr Werner procedera a uma elevação de estatuto durante os meses passados em Inglaterra, o que explicava a
hospitalidade generosa por parte dos outros cavalheiros.
Cassandra inclinou-se para examinar o quadro holandês que retratava o interior de uma casa.
– A mulher deste quadro faz-me lembrar a minha tia.
Ele observou-o também.
– Espero que Lady Sophie esteja bem.
– Está tão bem como quando a viu, em março. Foi a última pessoa que ela recebeu, porém, e praticamente a única no espaço de um ano. A sua amizade deve ser excecional.
– A honra não foi minha, mas sim do conde, como também a amizade.
– Ele deve ter ficado satisfeito por saber que recuperou o rubi. Era uma peça magnífica. Tive pena de a perder.
Notou um decréscimo de provavelmente vinte por cento no leilão depois de Sophie a fazer devolver o colar de rubi e pérolas a Herr Werner.
– Foi mais alívio do que alegria, julgo eu. É uma joia de família importante, com uma longa história, que faz parte do tesouro da família.
– Ele devia estar completamente apaixonado, para lha oferecer – comentou ela com uma gargalhada. – Ouvi dizer que a minha tia tinha esse efeito nos homens. Foi sensato
da parte dela reconhecer que o arrependimento não tinha a ver com a paixão, mas sim com uma generosidade irrefreada. Uma mulher diferente podia tê-lo mandado embora
de mãos vazias.
O olhar de Herr Werner continuava no quadro holandês.
– O conde é muito generoso, e não tem arrependimentos, isso é verdade. Mas não é imprudente no que diz respeito a mulheres e nunca lhe faltaria a moderação ao ponto
de oferecer uma joia de família a uma amante passageira.
Passou ao quadro seguinte. Cassandra permaneceu no mesmo lugar, tentando vencer a amarga desilusão. Herr Werner acabava de lhe dizer que o colar não fora nenhum
presente amoroso. E as outras joias todas?
Fora cega em não o ver, há tantos anos. Herr Werner tinha razão: condes não ofereciam de presente joias de família às suas amantes. Compravam outras joias se quisessem
coroá-las.
Ver joias de família a ornar o corpo de uma amante... Ela pensara que as anotações tinham sido feitas para a tia Sophie se assegurar de que aquilo não acontecia.
Agora, ao que tudo indicava, as notas tinham como único objetivo garantir, desde logo, que este aristocrata ou aquele príncipe não soubessem quem subtraíra os tesouros.
Não. Ela não pensaria tais coisas acerca da tia Sophie. Era injusto e indigno fazê-lo.
Herr Werner voltou para junto dela.
– Talvez devesse ter sido mais discreto. Presumi que sabia, uma vez que cedeu tão facilmente o colar. Tem de compreender... Não posso deixar que alguém diga que
o conde exige a devolução de presentes que deu de livre vontade. Coloca em causa a sua honra.
– Está a sugerir que não foram dados de livre vontade? Duvido que ela lhe tenha encostado uma pistola à cabeça para que lhe fossem oferecidos de presente.
– Agora ficou perturbada, e irritada. Lamento. Digamos que houve um equívoco que resultou na aquisição das joias por parte da sua tia. Foi assim que o conde expôs
o assunto na carta que lhe escreveu, e ela aceitou a visão dele assim que leu as suas palavras.
Um equívoco? Que tipo de equívoco poderia ser? O conde era um canalha que se arrependera do presente dado depois de arrefecido o caso amoroso, nada mais. A única
alternativa era impensável.
Não obstante, surgiu-lhe uma memória. Recente, de uma tia Sophie grisalha e discreta a esgueirar-se para dentro da biblioteca de Ambury enquanto o criado deste era
distraído por outra pessoa.
Depois, acorreram outras, da sua viagem com Sophie, de ser o centro das atenções em salões, em que deslumbrava aristocratas como Sophie costumava fazer, enquanto
esta desaparecia. Não acreditava que a tia se pusesse a vasculhar estojos de joias nos quartos de vestir. Era errado pensar sequer uma coisa daquelas. E, contudo...
Herr Werner ofereceu-lhe novamente o braço. Quando ela o aceitou, hesitante, deu-lhe palmadinhas na mão.
– Vamos ver o resto dos quadros enquanto se acalma, cara senhora.
– Foi uma perda de tempo, tal como na convocatória anterior – comunicou Kendale. – Luzes no mar, disseram-me. Se havia algumas, eram das nossas próprias forças navais.
O mar está cheio delas, embora não seja evidente o que fariam se uma frota francesa carregasse contra elas.
Relatava o acontecido enquanto observava, com Yates e Southwaite, um jovem cavalo castrado ser arrebatado no Tattersall’s. Homens de todas as proveniências enchiam
o pátio, muitos dos quais se concentravam junto da bancada onde o leiloeiro incitava às licitações.
Southwaite fora vender, e talvez comprar. Yates fora fazer companhia a Southwaite até um dos seus garanhões ser posto à venda. Presumia que Kendale se tivesse juntado
a eles para alguém o ouvir queixar-se.
– Eles não saberiam o que fazer – comentou Southwaite. – Você sim. É por essa razão que é sensato ser o Kendale a atender as convocatórias quando elas nos chegam.
– Não me insulte elogiando-me como a um rapazinho. Qualquer um de nós saberia o que fazer. Sou eu sempre quem vai porque vocês se aproveitam de mim. Que diabo! Da
próxima vez será um de vós, não eu.
– Não é que passemos o tempo todo em festa – interpelou Yates. – O casamento não é só prazer. Logo verá. Vai saber a que me refiro.
– Não será para breve, depois de um testemunho como esse. Que diabo, Ambury. Só disse os votos há quinze dias e de repente parece um homem casado há quarenta anos.
– Só é assim porque, enquanto você tinha o traseiro em cima da sela, eu tive o meu quase o dia inteiro espalmado na cadeira de um advogado. Como os deveres maritais
me ocupam, não me sinto inclinado a simpatizar com um homem que não tem obrigações nessa área.
Voltou a prestar atenção aos homens que circulavam à volta deles, procurando avistar um em particular.
– Ele não está com grande disposição, Southwaite, e não me parece que a razão seja a tal cadeira do advogado. Sabe o que se passa?
– Consigo adivinhar. Já descobriu o paradeiro da tia de Cassandra, Ambury?
– Nem sequer cheguei a tentar. Conto saber tudo de que preciso mais logo.
– Conta? Eu contava ficar a saber de tudo ontem e, contudo, aqui estou, ignorante ainda.
– A tia perdeu-se? – perguntou Kendale. – Se se perdeu, não devem ficar aqui. Diga-me o que sabe, e eu ajudo-o a encontrá-la.
Yates lançou um olhar demolidor a Southwaite, por ter mencionado o assunto.
– Não se perdeu dessa forma. Foi-me garantido que está num sítio muito seguro.
– Um sítio que só uma pessoa sabe qual é – acrescentou Southwaite. – Se a minha mulher soubesse, tenho a certeza de que me informaria, como eu lhe ordenei. Uma vez
que não...
– Ah! – fez Kendale, eliminando em grande medida qualquer vestígio de humor da sua expressão, mas os olhos traíram-no. – Então é por essa razão que o casamento não
está a ser divertido, Ambury. Teve um desentendimento com a sua mulher enquanto eu estive fora. Não pode estar assim tão surpreendido por ela ser desobediente, se
possui um espírito tão invulnerável às restrições comezinhas.
Uma tempestade há dois dias latente, manifestou-se violentamente dentro de Ambury.
– Tenha muito cuidado com o que diz, Kendale. Está muito perto de a insultar, e eu não esperarei que seja explícito para o desafiar.
O sorriso ténue de Kendale desapareceu. Os olhos ganharam frieza.
– Já são dois homens prontos a matar por ela, o que é demasiado. Desobediente ou não, já lançou mão dos seus encantos. Uma vez que está completamente enfeitiçado,
desejo-lhe apenas felicidade na companhia da senhora.
Com isto, deu meia-volta e foi-se embora.
Yates fez menção de ir atrás dele, para lhe dar a tareia que precisava de dar a alguém para não rebentar, mas uma mão no braço deteve-o.
– É inegável que está de péssimo humor – disse Southwaite. – Mas não se deixe perder a razão. O que tinha na cabeça, a falar de duelos por uma coisa tão pequena?
– Ele insinuou...
– Nada de impróprio. Não gosta do facto de ela se recusar a dizer-lhe o que deseja saber, mas faz sentido quando ele diz que não deve surpreender-se por ela revelar
a mesma independência que sempre mostrou.
O facto de Cassandra não lhe ter revelado o paradeiro da tia ainda era o menos. Ressentia-se perdidamente pelo facto de ela ter decidido que ele não era de confiança,
e Ambury detestava que a descoberta da questão dos brincos lhe desse alguma razão.
Se aquilo fosse o princípio e o fim da história, o tempo e a lógica poderiam sanar tudo. No entanto, não lhe parecia que fosse assim.
Mesmo que naquele dia tivesse passado horas a registar as promessas que lhe fizera, espumava de raiva ao pensar na atitude que ela tivera na noite anterior, na saída
precipitada de Elmswood, no grau em que ela desejava preservar a sua independência de todas as formas possíveis. Era como se ela tivesse examinado a aliança deles,
pegado numa caneta e desenhado uma caixa à volta dele, e outra à volta dela, com uma única linha comunicante denominada «prazer». Não gostava daquilo. Ela era a
mulher dele, que raio!
Sacudiu a mão de Southwaite.
– Com licença. Tenho estado à procura de alguém e vou à sala dos subscritores para ver se essa pessoa lá está.
Só os membros do Jockey Club tinham acesso à sala dos subscritores do Tattersall’s, que servia de posto avançado daquele em Londres. Yates entrou pela porta do pátio.
O criado que estava de plantão saudou-o.
Não havia mesas nem cadeiras confortáveis. Ali, ninguém jogava às cartas nem havia nenhuma biblioteca a incentivar explorações intelectuais. Ao centro, uma mesa
fornecia utensílios de escrita e papel para registar apostas, mas, tirando isso, as paredes com painéis e o teto alto com a sua claraboia quadrada encerravam pouca
mobília. Os homens dirigiam-se ali principalmente para jogar, e as probabilidades que se definiam naquela sala ditavam aquelas que se jogavam por toda a Inglaterra
nas corridas maiores.
Yates ganhara e perdera a sua quota-parte de apostas no passado, mas não se encontrava ali para jogar novamente. Olhou os homens que conversavam e faziam tempo até
que o cavalo que cobiçavam saísse para o pátio. Avistou aquele que procurava quando um grupo de vultos a um canto se deslocou, revelando-o ao centro.
Yates aproximou-se e juntou-se ao grupo de aduladores. Um a um, os outros notaram a sua presença e afastaram-se, olhando por cima do ombro com ar desconfiado. Rapidamente
Yates se viu a sós com a sua presa.
– Parece que o mundo inteiro sabe que raramente nos falamos, agora, e receia que a conversa possa acabar mal – disse Penthurst.
– A proximidade do seu julgamento provavelmente pô-los a esperar o pior. Ou a esperar que aconteça. A cidade tem andado aborrecida, e dava-lhes jeito algum teatro
– declarou Yates.
– Veio desejar-me um bom julgamento? Ou dizer que espera que aconteça o impossível e eu acabe pendurado de uma corda?
Penthurst não acabaria enforcado. Nos tempos presentes, isso não acontecia a duques, muito menos por causa de um duelo. Ele diria que fora uma questão de honra,
os lordes concordariam e tudo estaria terminado.
– Não tencionava falar de todo disso, mas de uma outra coisa.
– Claro.
O tom de voz dele implicava que a recusa em falar daquele duelo era uma falta de carácter, previsível, aliás.
Yates combateu a vontade de falar sobre o assunto, longamente e a viva voz. Passara mais de seis meses a imaginar-se a enviar Penthurst para o diabo, por não ter
encontrado uma forma de recusar o duelo, ou de o terminar de forma diferente. Se começasse, não iria parar, e logo naquele dia. Os homens que os observavam teriam
o seu drama, pela certa.
– Por acaso sabe se os planos para erguer torres na costa estão a avançar? – perguntou, então.
Penthurst era amigo íntimo de Pitt e, embora recusasse qualquer ministério, parecia saber de quase tudo antes de qualquer outra pessoa.
– Não serão verdadeiramente torres, mas as fortificações servirão o mesmo propósito – respondeu Penthurst. – Há quem pense que é insensato e um desperdício de dinheiro.
Ganhou vida própria, porém, desde aquela história na Irlanda.
– Já se sabe onde irão construí-las?
– Está a ser decidido, julgo.
– Por quem?
Penthurst sorriu aquele sorriso que, gostando-se dele, até era tranquilizador, mas decididamente irritante, se não.
– O Highburton tem alguma localização em particular que gostasse de recomendar? Se sim, terá de se pôr na fila com todos os outros proprietários que acalentam a
possibilidade de arrendar ao governo a preços inflacionados e de comer do mesmo tacho.
– O dinheiro não me interessa. Gostaria de ter uma propriedade na lista por outras razões. Seria retirada mais tarde. Não chegaria a ser arrendada.
Penthurst fitou-o com dois olhos ponderados, escuros e fundos.
– Está a tramar alguma. Visto que é você, sei que não se trata da primeira coisa que me ocorre, que é fraude. Uma das suas investigações?
– Pode chamar-lhe assim.
– Em nome de quem?
– Do meu pai.
Os olhos escuros de Penthurst limitaram-se a continuar a olhar, profundamente.
– Como é que ele está?
– Melhor. Por enquanto.
Penthurst assentiu com a cabeça. Caminhou até ao centro da sala, em direção à mesa. O mar de corpos afastou-se para desenhar um corredor para ele, como se a sua
mera proximidade provocasse deferência nos outros. Ou desejo de largueza.
Pegou numa caneta.
– Presumo que tenha a localização da propriedade.
Yates pegou na caneta e anotou a informação.
– Há um rendeiro na localização mais provável, mas tem a certeza de que chegam franceses todas as noites, por isso não se oporá.
Penthurst pegou no papel e leu-o.
– Que peculiar. Posso poupar-nos tempo aos dois. Tenho a certeza de que esta propriedade já se encontra na lista. Não como posse de Highburton, porém. Parte de um
fideicomisso, se bem me lembro. O peculiar é a razão pela qual reparei nela.
– Sabe quem é que diligenciou para que fosse incluída?
– Não. Não me subornaram a mim.
– Consegue descobrir?
Matava-o pedir-lho. A pergunta parecia não querer fazer-se.
Penthurst deixou-a pairar no ar durante um bom bocado. Por fim, encolheu os ombros.
– Possivelmente, vou ver. – Dobrou o papel. – Ainda não o felicitei pelo seu casamento, Ambury. É uma mulher muito bela. Sempre julguei que os boatos a respeito
dela eram iniciados por senhoras pouco dotadas e muito ciumentas.
De repente, voltavam a aproximar-se perigosamente de todo o drama.
– Se pensa isso, porque é que...?
– Porque é que, o quê?
– O Southwaite disse que o Lakewood o desafiou porque o ouviu insultar uma mulher.
– Foi uma mulher que esteve na origem de tudo, essa parte é verdadeira. Mas ele não me desafiou por causa de nenhum insulto que eu tenha proferido.
Então era pior. As possibilidades deixaram-no ainda mais mal-humorado. Recordou-se de quando entrara na casa de Mrs. Burton e vira Penthurst ao lado de Cassandra.
Pare de pensar como um louco, ou então vai acabar por se portar como um idiota.
– Como cavalheiro, compreende que não posso dizer quem é, claro. Nem a si. Nem aos lordes – declarou Penthurst. – Suponho que, se mo pedirem, e a minha recusa em
explicar não for aceite, vá acabar pendurado por uma corda.
– Se assim for, prometo não dançar na sua sepultura.
Penthurst deixou sair toda a irritação.
– É compreensível que a sua lealdade pertencesse a ele e não a mim. Há muitos anos que eram amigos. No entanto, ele não era inteiramente o homem que você julgava,
Ambury.
– Tenho a certeza de que os lordes acreditarão nisso, se o senhor o diz. Atendendo às circunstâncias, sou o último homem que se tem de preocupar em convencer. Agora,
tenho de ir. Agradeço-lhe desde já a sua ajuda com a propriedade, se puder. Como pagamento, dou-lhe um conselho.
– E qual é?
– Corte o cabelo. Dá-lhe um ar antiquado. O que era sinal de independência de gosto há um ano, daqui a seis meses parecerá simplesmente excêntrico.
– Tenho andado a pensar nisso, embora a minha amante vá amuar.
– Então talvez também esteja na altura de fazer alguma alteração nesse departamento.
CAPÍTULO 22
Depois de sair da Fairbourne’s, Cassandra deu um longo passeio por Hyde Park para aclarar as ideias. Sentia-se desgostosa com o desenrolar da conversa com Herr Werner.
Teria sido melhor ter deixado o assunto em paz.
Só lhe faltara dizer que Sophie tinha roubado o colar ao conde. Além disso, Ambury sempre acreditara que ela roubara os brincos a Highburton, e agora as provas apontavam
todas para isso.
A devolução dos brincos dificilmente resolveria o assunto. O que iria Ambury fazer? Alguma coisa honrada, o que poderia ser muito mau para a tia Sophie. Era possível
que ela estivesse mais segura no lar do Dr. Wakely.
Podia pegar na tia e fugir, mas para onde? Já não era livre e independente. Aonde quer que fosse, Ambury tinha todo o direito de a seguir. Tampouco, admitia, desejava
fugir. Fizera votos, e a honra, a sua honra, pedia-lhe que tentasse cumpri-los.
Começou a perguntar-se se não seria melhor simplesmente deixar a tia no sítio onde atualmente residia. O resfolegar de um cavalo ao lado do seu ombro arrancou-a
aos pensamentos. Virou a cabeça e reconheceu imediatamente o animal, e o seu companheiro que puxavam a carruagem. O cocheiro freou os cavalos.
Um lacaio saltou da parte de trás do veículo. Ela não esperou por ele e aproximou-se, decidida, da porta. Aquele apressou-se a abrir-lha e a descer os degraus. A
seguir, ajudou-a a subir.
Ambury estava no interior. Mudou de lugar para lhe deixar o do sentido da marcha. Ela instalou-se com vagar, preparando-se para uma viagem desconfortável.
– Há alguma razão para não ter saído numa das carruagens da família? – perguntou ele.
– Talvez tenha saído simplesmente para dar uma volta pelo quarteirão e tenha mudado de ideias, tendo sido mais fácil entrar numa carruagem de aluguer.
– Pensei que talvez não quisesse que nenhum criado conhecesse o seu destino.
– Também. Visto que me encontrou quando quis, parece que falhei. Disse-lhes para me seguirem?
– Não tive de o fazer. Por cuidado com a sua segurança, o mordomo enviou dois homens para precaver o seu passeio. Um regressou com a informação de que tinha vindo
para aqui. Passear sozinha é uma das coisas que deve deixar de fazer, se criou esse hábito. A cidade é demasiado perigosa.
Cassandra não gostou da ideia de deixar de poder deslocar-se sem levar um criado atrás dela, mas, claro, era assim que seria a partir de agora. Emma já tivera de
se acostumar. Um dia, contudo, ela e Emma teriam de encontrar uma forma de desfrutar de um dia sem as respetivas escoltas, só para elas, como costumavam fazer.
Os portões do parque desfilaram na janela, depois as casas de Mayfair.
– Onde vamos?
– Não muito longe. Há uma coisa que quero mostrar-lhe.
Parecia em tudo igual à noite anterior. Severo e distante. Não disse mais nada, porém. Nenhuma pergunta relativamente ao paradeiro da tia Sophie. Nenhum sermão sobre
o comportamento que esperava. Nenhuma palavra acerca dos brincos. O silêncio dele inquietava-a mais do que qualquer boa discussão.
Pararam em St. James’s Square. Cassandra viu através das árvores a casa de Emma, do outro lado. Ambury saiu da carruagem e ofereceu-lhe a mão.
Ela acedeu e olhou em redor, perplexa.
– O Prebles colocou um agente imobiliário à procura de casas para arrendar – principiou ele. – Esta parece ser a melhor das propostas apresentadas. O que lhe parece?
Ela contemplou a fachada por detrás da carruagem. Era de bom tamanho, muito à semelhança da de Southwaite.
– É muito bonita. Aprecio a localização próxima da Emma.
– Julguei que apreciasse. Assinei o arrendamento esta manhã.
Tinha a chave com ele. Ela entrou e deparou com quartos espaçosos de janelas compridas e boas proporções. A casa estava equipada com mobília agradável que seria
mais do que adequada.
Subiram as escadas.
– Quando é que nos mudamos?
– Suponho que possamos fazê-lo assim que o pessoal for contratado. Os criados de Highburton estiveram aqui hoje, a limpar e a fazer as camas.
Os aposentos da senhora da casa tinham sido decorados em cores creme e verde-claro. A cama ostentava cortinas estampadas, que, tal como o resto dos tecidos, tinham
um aspeto tão limpo que só podia ser obra dos criados.
Gostou especialmente do novo quarto de vestir. Não era de longe tão amplo como o que ocupava atualmente, mas aquela dimensão tornava-o mais privado. A janela tinha
um assento acolhedor, do qual se viam os jardins das traseiras.
Ela sentou-se e admirou a vista.
– Julgo que me será muito agradável viver aqui.
– Fico contente.
Ele aproximou-se e olhou para ela.
– Fica muito bonita à luz desta janela, Cassandra. Julgo que me será muito agradável vê-la sentada neste recanto da nossa casa.
O comentário elogioso surpreendeu-a. Ele parecia sincero, ainda que não se mostrasse muito afável. A forma como a olhava deixava-a afogueada e inquieta. Por um momento,
não lhe pareceu tão distante como se mostrara na carruagem. Alguma da familiaridade que com facilidade se forjara durante as primeiras noites visitou-os.
Deveriam estar a ter uma discussão, não um momento romântico.
Ele pôs a mão dentro do casaco e tirou alguma coisa. Pegou na mão dela e despejou o conteúdo de um saquinho de veludo. Os brincos.
Ah! Seria agora a discussão.
– Encontrei isto quando me fui deitar. E o seu bilhete. São o motivo da frieza da receção que me foi feita ontem à noite, parece-me.
– Em parte. A sua atitude convidava igualmente a alguma invernia.
– Era minha expectativa passar duas semanas a desfrutar da sua companhia. Fui lento a aceitar que a sua tia teria precedência sobre tudo o resto, incluindo o seu
marido.
Ali estava. A reprimenda que merecia uma boa discussão. Estaria magoado por ela não ter pensado nele primeiro? Ou tratar-se-ia apenas de orgulho e sentimento de
posse?
Na noite anterior, talvez tivesse perguntado e, ao fazê-lo, ter-lhe-ia mostrado a falta de lógica do ressentimento dele. A dedicação que tinha para com Sophie não
deveria surpreendê-lo. Afinal, fora ela que proporcionara o casamento dos dois.
Os acontecimentos do dia tinham-na deixado tão desanimada que escolheu não se pronunciar.
Ele indicou a mão dela.
– Como é que soube?
– Vi um retrato, com uma mulher que os usava – disse ela. – Foi assim que soube que pertencem à sua família. Assim como soube que tem investigado a minha tia com
aquelas perguntas todas sobre a história deles. Conhecia a sua proveniência final melhor do que eu.
– Não vou negá-lo. Devia ter-lhe explicado assim que casámos, mas os brincos e a investigação deixaram de ser prioritários durante algum tempo.
– Uma vez que já os recuperou, não é necessário que voltem a sê-lo.
– Não é assim tão simples.
O tom de voz dele pareceu-lhe mais tranquilizador do que autoritário. Ela teria preferido o último. Ele não ia deixar o assunto em paz.
– A minha tia comprou-os num penhorista.
– O meu pai acredita que foram roubados antes de o meu avô morrer. Julga que houve uma traição na família. Não diz de quem suspeita, mas julgo que suspeita de alguém.
Pegou-lhe novamente na mão e fechou-lhe os dedos sob as joias, para ela as agarrar.
– Ele quer saber. É importante para ele. Se não fosse, eu nunca teria investigado depois de os comprar no leilão.
Ela nunca levaria a melhor se se manifestasse contra o dever que ele sentia ter para com o pai.
– Um criado deve tê-los tirado e vendido ao penhorista.
Ele olhou pela janela que a enquadrava. Ela via que ele se debatia com alguma coisa.
– A sua tia tinha muitas joias, Cassandra.
– Os amantes dela...
– Uma quantidade enorme de joias.
Ela não conseguiu manter a postura de indignação durante mais tempo. O dia abalara a confiança que ela tinha em Sophie, e as forças abandonaram-na. Tudo se pusera
demasiado confuso. Desviou o olhar, derrotada e infeliz.
– Suplico-lhe que não conte ao meu irmão as suas suspeitas. Utilizá-las-ia da forma mais cruel.
Ele segurou-lhe no queixo e voltou a erguer-lhe o rosto.
– Eu disse que a protegeria independentemente do que acontecesse, desde que não comprometesse a minha honra.
Ela sentiu o coração partir-se. Proteger uma ladra provavelmente estaria fora de questão.
– Precisamos de saber se alguma das joias foram roubadas – avançou ele.
– E se tiverem sido?
Ele sentou-se ao seu lado ao abrigo da janela.
– Cassandra, se ela fez isto com outras joias, elas devem ser devolvidas aos donos. Não posso ter uma mulher a viver em minha casa com o conhecimento de que roubou
coisas que nunca restituiu.
– Não me parece que ela possa viver connosco, de qualquer maneira. O Gerald leva-a embora se assim for. Fá-lo-á para me punir, embora agora me encontre fora do alcance
dele. É evidente que não desistiu.
– Eu trato do seu irmão. Não se atreverá a tirar uma pessoa da minha casa. O Prebles está a preparar uma petição para o tribunal da Chancelaria que deve resolver
o assunto de uma vez por todas. O seu irmão não conseguirá ser guardião em meu lugar, portanto não deve preocupar-se mais com isso.
Ela inspirou profundamente para a ajudar a recompor-se, mas algumas lágrimas insistiram em turvar-lhe a visão. Apesar da raiva com que chegara na noite anterior,
apesar da receção fria que ela lhe fizera, ele passara o dia inteiro a diligenciar para cumprir a promessa feita.
– Fez isto, mesmo sabendo... isto é... mesmo suspeitando... que ela...
– Disse que o faria, não disse? Relativamente àquilo de que suspeito, preciso de saber o que temos em mãos, com a sua tia. Está na altura de me deixar falar com
ela.
– Nunca o impedi de falar com ela. Foi ela própria que o fez.
– Podia ter ajudado. Não o fez. Em lugar disso, atrasou e dificultou. Evitou saber a verdade, e eu permiti-o, por sentimento.
Permitira-o. Se pensava que havia sido roubada propriedade da família, ele poderia ter encontrado uma forma de falar com Sophie.
*
Yates aguardou, permitindo que os dedos hábeis de Cassandra lhe abrissem os botões da camisa. Estava à sua frente, nua, a fazer por ele o que ele tinha feito por
ela. Em redor dos dois, só o silêncio. Nem os sons da cidade penetravam naquele quarto virado para os jardins.
Não havia criados, nem mais alma nenhuma nas proximidades. Iria mudar muito em breve, mas naquele dia agradava-lhe o isolamento e a novidade do lugar.
Ela levantou para ele os olhos cheios de malícia enquanto lhe desapertava a roupa de baixo. O seu toque chegou deliberadamente além dos botões e do tecido.
– Estava a contar ter uma discussão terrível consigo hoje – disse. – Do tipo de discussão irreconciliável para um casal. Penso que talvez desejasse fazê-lo, mas
que escolheu outro caminho.
Fizera-o, e ao fazê-lo deixara coisas por dizer que provavelmente nem deviam ser ditas. Somente votos não eram o bastante para criar confiança, muito menos lealdade.
Ela empurrou-lhe a roupa para baixo e segurou-lhe o membro com firmeza na mão.
– Sinto-me grata, hoje, por esta casa e pelo pedido, e pela sua disposição para suspeitar em vez de julgar saber. Como é que as amantes mostram a sua gratidão?
Ele puxou-a para um abraço para sentir o corpo dela no seu. A pele dela pareceu-lhe fria, mas aqueceu assim que se encostou ao corpo dele.
– Um homem teria de ser um idiota para não gostar quando a mulher lhe diz para a tratar como a uma amante. Contudo, por mais que tente, não consigo pensar em si
dessa maneira.
– Porque me falta experiência e competência? É suposto ser você a retificar isso.
Um homem teria de ser um perfeito idiota para fazer outra coisa que não concordar que aquele era o plano, e passar à lição seguinte.
Não tinha de esperar trinta dias, para Cassandra desenterrar memórias. Podia ter dado informação sob sua honra a um magistrado, e Sophie ter-se-ia visto obrigada
a explicar-se o melhor que conseguisse.
– Foi gentil da sua parte – disse ela. – Não tinha percebido o seu tato. Foi por não querer ter de dizer aos seus pais que quem os traiu não foi um criado, mas sim
uma velha amiga? Ou apenas por consideração para com uma mulher idosa que já não representa uma ameaça para as joias de ninguém?
Ele fez um sorriso breve, vincando levemente as linhas da boca.
– Julgo que o fiz para me dar tempo para a seduzir. Também como desculpa para a ver.
Que coisa mais desarmante para se dizer. O coração dela permitiu-se a infantilidade de uma pequena cambalhota.
– Então era tudo parte de um esquema para me acrescentar à sua lista de conquistas? Estou chocada, Ambury. Então talvez seja de justiça que tudo se tenha desenrolado
assim tão mal.
– Parece-me que acabou por se render – replicou ele, beijando-lhe os lábios. – Portanto, não me parece que tenha acabado assim tão mal, pelo menos para mim.
Tocou-a profundamente que ele dissesse aquilo, especialmente num dia que se seguiu a uma noite tão má.
– Para ser sincera, também não se revelou assim tão mau para mim – sussurrou ela.
Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a de novo, longamente, despertando-a. Não foi apenas o corpo dela que respondeu, mas também as suas emoções mais profundas.
Sentiu-se muito cuidada naquele toque e naquele beijo.
Observou-a enquanto deslizava o polegar nos lábios dela.
– A casa é nossa. Os lençóis são novos. Estou com vontade de ver se nos recebem bem.
A ideia seduziu Cassandra por razões que não o prazer. Precisava do reconforto de receber o toque dele.
Pousou os brincos na almofada, aceitou a mão dele e seguiu-o até ao quarto.
– Porque é minha mulher, e descobri que isso torna tudo diferente.
– Que inconveniente para si.
– Pode crer que o é. Mas é uma evidência. Mesmo quando os atos são os mesmos, a experiência não o é.
– Por diferente, quer dizer menos escandalosa, imagino, e, portanto, menos excitante. Mais respeitável, e com limites para aquilo que se faz. Sinto-me lisonjeada,
Yates, mas imagino que se revele menos bom para si. Estava a tentar dispor-me a ser muito, muito ousada, como os homens esperam que as amantes sejam, mas não quero
que pense mal de mim.
Ele deslizou as mãos pela pele dela, pensando que o prazer mais comezinho seria excitação o bastante para aquele dia, como para qualquer outro, se lhe fosse dado
tocar aquela fogosa exuberância.
– Ousada de que forma?
Ela depositou-lhe uma linha de beijos no peito.
– Uma vez disseram-me que tinha uma boca escandalosa. Mais tarde fiquei a saber o que queriam dizer com aquilo. Fiquei chocada, mas talvez me tenha habituado à ideia.
Contudo, não é algo que as esposas façam.
A excitação dele duplicou imediatamente de intensidade. Agarrou-a pelas nádegas e puxou-a para si, encostando-lhe o membro ao ventre.
– Na verdade, dizem-me que algumas esposas sim – sussurrou ele entre beijos desafiadores.
– Verdadeiramente?
– Hum.
– Quem diria... Então não se importa?
– Não, não me parece.
– Posso fazer mal. Nunca... – Ela olhou-o nos olhos e parou de falar. O rosto desenhou um sorriso endiabrado. – Oh, não me parece que se importasse minimamente.
– Olhou para baixo. Com os dedos, fez uma pequena dança sobre o membro dele, concentrando-se depois na ponta. – Deixe-me ver se... – Debruçou-se e deu-lhe uma dentadinha.
Sensações intensas dispararam dentro dele como um relâmpago. Cerrou o maxilar com uma força tremenda.
– Provavelmente seria mais fácil se me ajoelhasse.
– Talvez.
Sim. Já.
Ela baixou-se. A posição deixou-o numa expectativa insuportável. Via-lhe as costas elegantes, a anca bem-feita e a erótica curva das nádegas.
A nuvem de cabelo escuro inclinou-se sobre ele. Um calor de veludo envolveu-o e ele perdeu todo o juízo.
– Acho que os novos prazeres me beneficiam tanto a mim como a si – murmurou Cassandra entre arquejos profundos. – Isto é delicioso.
Ele retirou-se devagar e entrou profundamente. O que ela fizera não requeria aquela união demorada e lenta depois de ele recuperar. Podia com a mesma facilidade
possuí-la rapidamente.
Decidiu que não era do seu melhor interesse explicar-lho.
Parou, enterrado naquela incomparável suavidade até ao limite. Inclinou-se e curvou a cabeça para lhe estimular os seios. O gemido dela foi música para os seus ouvidos.
Ela cingia-o em subtis contrações. Era tão bom estar dentro dela. Passou a língua pelos mamilos duros e escuros até ela gemer incessantemente.
Ela dobrou os joelhos e acomodou as ancas, para o tomar mais profundamente. Fez beicinho e mudou novamente de posição.
– Está impaciente – disse ele.
Viu alçarem-se-lhe as sobrancelhas.
– Ao contrário de si, esta tarde ainda não estive em êxtase.
– Sabe que estará sem demora. Nunca a deixei descontente.
Ele retirou-se e voltou entrar, saboreando cada instante de sensação.
– Não tem de ser sempre à bruta, Cassandra. Pode dar grande prazer saborear os matizes.
– Como quando nos obrigamos a degustar um bombom muito devagar?
– Ou a deixar um bom brandy repousar na boca.
– O brandy não me diz nada, mas gosto de bombons.
Ele sentiu relaxar a frustração que a inquietava. Ela queria-o profundo e próximo, mas já não de impaciência. Ele retomou o movimento e pequenos sinais de deleite
espalharam-se pela expressão dela.
Não subiram a correr à montanha. Em vez disso, subiram mão na mão, parando aqui e ali para admirar a paisagem. Quando a escalada se consumou, desta vez, não houve
trovão. Para ele foi um suave aguaceiro que lhe inundou a essência de uma chuva cálida de comoção.
Cassandra reparou que o lusco-fusco escurecia, mas não se mexeu. Continuou aninhada no abraço de Ambury, receosa de que uma simples respiração mais profunda arruinasse
o momento.
Atreveu-se, contudo, a espreitá-lo. Ele tinha os olhos fechados, mas não dormia. Os seus braços estavam demasiado alerta.
O prazer de que desfrutaram tê-lo-ia comovido a ele tal como a ela? Pensara que talvez pelo menos um pouco. Havia momentos em que tinha toda a certeza de que gozavam
de uma ligação e compreensão perfeitas, e que a intimidade que partilhavam era completa. Perguntava-se, porém, naquele momento, se seria possível para um homem conhecê-la
tal como uma mulher conhecia. Perguntava-se igualmente se ele teria planeado aquilo, para propósitos seus. Talvez ele procurasse conquistá-la usando de ternura.
Era uma perspetiva ignóbil, mas não podia desconsiderá-la. Os votos não haviam tido o condão de a tornar maleável e obediente, mas aquele tipo de elo teria, definitivamente,
esse poder. Ocorreu-lhe que seria aquela a razão pela qual Emma tinha o cuidado de aplacar o orgulho e o temperamento de Southwaite. Não por causa de dever, de medo,
ou de falta de vontade própria, mas porque permitira que ele se apoderasse do seu coração de forma que só podia desejar a felicidade dele.
Ambury ergueu-se num braço e olhou para ela.
– Perguntou-me quando a pedi em casamento se aceitaria que tivesse amantes depois de me dar um primeiro e um segundo herdeiros. Decidi que não.
Ela desejou que ele não se pusesse a emitir ordens, qual conquistador, tão cedo.
– Confiei que se mostrasse razoável.
– É uma resposta razoável. Não terá qualquer amante. Nunca.
– É demasiado cedo para decidir isso. Precisará de esperar até a novidade do casamento esfriar e eu passar à categoria de incómodo.
– A minha visão não vai mudar.
Ela devia explicar que aquilo não era pensar razoavelmente. No entanto, ele pareceu-lhe inflexível e, naquele momento, a ideia de outro amante não lhe era minimamente
apelativa. Melhor seria travar as batalhas que fossem importantes.
Deixaram-se absorver pela intimidade e pela paz que partilhavam. Talvez, se ele não queria partilhá-la, tivesse experimentado algo semelhante ao que ela experimentara
naquele dia. Com as limitações de um homem, claro.
– Cassandra, preciso que me traga a sua tia para eu poder falar com ela. Confia o suficiente em mim para o fazer?
A questão pairou na escuridão crescente. Pelo menos era uma pergunta, e não uma ordem.
Confiara nele quando a pedira em casamento. Não havia razão para não o fazer agora. A não ser os brincos. Não fora uma desilusão pequena, e tocava em tudo quanto
era importante para ela em questões de confiança.
Procurou decidir com a cabeça. O seu coração não tinha capacidade para ser tão implacável. Nele havia confiança, independentemente das conclusões a que os pensamentos
chegassem. Reconhecer o que lhe ia no coração trouxe-lhe paz e alívio, e um sorriso interior.
– Levo-o a visitá-la amanhã à tarde.
CAPÍTULO 23
A carta chegou com o pequeno-almoço na manhã seguinte. Destacava-se do resto do correio. Reconheceu imediatamente o envelope, depois o selo e a caligrafia. Passara-se
quase um ano desde a última carta que recebera de Penthurst.
Quebrou o lacre e abriu o papel. Continha apenas uma palavra. Teria ele imaginado que lhe seria dado ver alguma porção da sua surpresa pela forma como o nome havia
sido desenhado? Era impossível que Penthurst não tivesse considerado a descoberta muito interessante.
Yates considerava, sem qualquer dúvida. Interessante e desconcertante. Tanto que saiu da sala de pequeno-almoço, regressou aos aposentos e escorraçou Higgins. Pegou
no violino e entregou-lhe a sua confiança.
A música criou o seu mundo à parte, como sempre fazia. Preenchia-lhe a mente, certeira e organizada. Não pensava em grande coisa enquanto tocava, mas deixava-se
perder na pureza do som enquanto a composição fazia a sua magia.
Quando a peça terminou, pousou o instrumento. Continuava sem respostas, mas pelo menos sabia as perguntas. Tinha simplesmente de decidir se desejava formulá-las.
Depois tinha de decidir se devia formulá-las.
Percorreu o pequeno corredor e abriu a porta que comunicava com os aposentos de Cassandra. No quarto de vestir, a criada abanou a cabeça, indicando-lhe que ela ainda
não se levantara. Ele entrou no quarto e parou ao lado da cama. Era bela, ali deitada. O simples facto de olhar para ela trazia calma ao caos que o ameaçava.
As pestanas ergueram-se e ela olhou para ele.
– O que se passa?
– Nada. Pensei que estava a dormir.
Queria olhar para si. Não sei porquê.
– Acordei há pouco. Não me mexi, para escutar em segredo.
Ele precisou de um momento para perceber que se referia à música. Ela fez um gesto lânguido na direção da janela.
– Está aberta, e a sua também, por isso a música chega até aqui em boas condições.
Sentou-se e esfregou os olhos. Ficava adorável, sonolenta e desalinhada.
– É tão bonito. Porque não toca para as pessoas?
Não era às pessoas a que se referia. Era a ela. Ele resistiu à inclinação de encolher os ombros e dizer que não sabia.
– Talvez porque o meu pai não aprovava. Até gosta bastante de música, e admira os músicos. Não era uma reprovação moral, nem julgava a atividade indigna de mim ou
desadequada.
– Então o que o fazia reprová-la?
– Tinha outros planos para o meu tempo, especialmente quando eu saí da universidade. Tocar bem requer muita prática. Horas e horas.
– Então, a que é que ele queria que se dedicasse?
– Ao Parlamento. À Câmara dos Comuns, para começar a forjar as relações que me dariam poder quando o sucedesse. A herança do título só tem algum alcance. Eu não
tinha interesse, resisti e dediquei-me ao violino e a outras coisas.
E agora, quando precisava de saber o que quem estava no poder sabia, ia ter com homens como Penthurst, que não tinham dado largas aos impulsos juvenis da mesma forma.
– Vejo por que não deseja tocar para ele, claro. Mas para outros... Quando tocou na abertura da exposição da primavera de Emma, arrebatou toda a gente. Os homens
tinham lágrimas nos olhos. É um grande talento que tem, e que partilha com todos quando faz uma apresentação. Sabem que têm almas quando o ouvem a tocar.
Era extremamente elogioso o que ela lhe dizia. Também era revelador da verdadeira razão pela qual ele não tocava em público. Deixava-o desconfortável ver as pessoas
tão comovidas. Constrangia-o ver homens crescidos a chorar. Sentia-se desajustado quando as pessoas lhe diziam que lhes tocava a alma, pois a música que ele tocava
nunca lhe fizera nada daquilo.
Beijou-a, pelo elogio.
– Vou visitar o meu pai. Iremos visitar a sua tia dentro de algumas horas.
– Importa-se que eu ouça pelas janelas? – perguntou ela. – Não desejo... intrometer-me.
– Não me importo.
Ambury desceu aos aposentos do pai, admitindo que a ideia de tocar a alma de Cassandra era apelativa.
– Como é que ele está hoje? – perguntou Yates ao criado quando entrou na sala de estar.
– Cansado, senhor. A não ser isso, o normal. Ele está acordado, se deseja vê-lo.
Yates aproximou-se do cadeirão onde o pai estava sentado, de robe e lenço. Supôs que, quando chegasse o dia em que entrasse ali e lhe visse o pescoço desprotegido
e a barba por fazer, saberia que algo estaria pior.
O pai tinha os olhos fechados e parecia gozar de tranquilidade. Uma paz quase de beatitude. Talvez porque o criado tinha aberto a janela.
– Yates. Que bom vir visitar-me.
Yates sentou-se na cadeira que todas as visitas usavam. Olhou novamente para a janela.
– Pergunto-me se se sentirá suficientemente bem para falar da propriedade. Tenho alguma informação, e também algumas perguntas.
– Por vezes parece-me que não conseguiremos chegar a uma conclusão, mas pergunte o que tiver de perguntar.
– Descobri mais informação sobre os brincos. Aqueles pelos quais me perguntou tantas vezes, que estavam desaparecidos desde o último inventário. Como sabe, a minha
mulher esteve algum tempo em posse deles. Recebeu-os da parte da tia, Lady Sophie Vernham.
O pai ficou vermelho de raiva.
– Fico muito desiludido com ela, por se aproveitar de uma amizade dessa forma. A sua mãe perdoou muitas coisas à Sophie, e vai angustiá-la saber que a sua gentileza
foi paga com furtos.
– A alegada história das joias de Lady Sophie Vernham nunca foi roubo, claro. Sempre afirmou terem sido ofertas de amantes.
– Uma mentira perspicaz da parte dela, ocorre-me. Não diz o mesmo sobre estes brincos, tenho a certeza.
– Não, diz que os comprou a um penhorista.
O pai olhou para ele, surpreendido.
– A sério? É possível, suponho. Prefiro pensar que não se aproveitou desta casa e que os subtraiu. Pensar nisso causa-me tristeza.
Yates inclinou-se, procurando apoio nos joelhos para os cotovelos. Olhou diretamente para o pai.
– É possível que não as tenha roubado nem comprado? É possível que o avô lhas tenha dado?
O pai precisou de alguns instantes para assimilar as implicações. Procurou endireitar-se. O esforço e a raiva voltaram a tingir-lhe o rosto de vermelho.
– Não. Não é possível. O meu pai praticamente não a conhecia, não tinha casos de espécie alguma e não aprovava homens que os tivessem. Se começar com uma das suas
investigações de mau gosto sobre ele, vai terminar de mãos vazias, asseguro-lhe. Sim, sei dessa sua desastrosa ocupação. Proíbo-o de sujeitar esta família às ingerências
vulgares e aos rumores maldosos que promove.
Nunca, nos últimos meses, haviam estado tão perto de uma discussão. A indignação do conde parecia pronta para se expandir ainda mais.
– Esperava a resposta que deu. Não obstante, era uma possibilidade que devia investigar. Lembre-se de que foi o pai quem me encarregou de descobrir como é que as
joias desapareceram.
– Eu disse-lhe para encontrar o ladrão, não para fazer perguntas delirantes, e logo acerca do seu avô. Com o casamento que fez, quer pensar o melhor possível da
tia. Compreendo. Vamos aceitar a explicação do penhorista e não avançar mais. – Inspirou profundamente e pareceu expirar a sua agitação. Fechou os olhos. – Bom,
parece-me que é a atitude mais benevolente para todos.
– Quer descansar? As minhas outras perguntas podem esperar.
– Há mais?
– Bastantes mais.
Terá imaginado que os olhos que o espreitaram lhe pareceram sobretudo melancólicos, e não cansados?
– É melhor tratarmos disto agora, então. Nunca se sabe o dia de amanhã.
– Aquela propriedade antiga, na costa... A terra de propriedade contestável... Está na lista de localizações para as novas defesas do governo. As rendas serão significativas.
– O governo nunca arrendará uma propriedade em condições duvidosas. Não movimentou influências por causa disso, pois não? Se o fez, andou a perder tempo.
– Não o fiz. Foi outra pessoa. O Barrowmore.
O pai ficou muito quieto. Na verdade, todo o aposento.
– Que estranho – disse.
– É, não é? Só me resta pensar que o Barrowmore espera retirar algum lucro. Que provavelmente a família dele detém a outra escritura. Não acha?
O pai ficou algum tempo a olhar pela janela e só depois assentiu.
– É estranho que dois itens do nosso património tenham saído misteriosamente da nossa posse e ido parar às mãos da família da minha mulher. Logicamente só se pode
presumir que não se trata de uma coincidência. Peço-lhe como seu filho e seu herdeiro que me diga como é que isto aconteceu, pai.
O pai não lhe devolveu o olhar. Em vez disso, ficou de olhar parado, com uma expressão de desalento.
– Não sabia das joias – declarou finalmente. – Da propriedade sim. Ele deu-lha. O seu avô deu-a à Sophie. Como parte de um fideicomisso ou outra coisa qualquer,
para ela receber o rendimento até eu morrer, e depois a propriedade passar para ela e os herdeiros dela.
– Então sempre houve um caso.
– Não houve caso nenhum, estou a dizer-lhe.
– É a única explicação. Ele pode não o ter admitido perante si, e pode ter ido para a sepultura com a moral intacta, mas ofertar joias e propriedades a uma mulher
normalmente significa uma coisa. Que diabo! O nome Highburton é tão sagrado que deixa que eu acuse uma mulher de ser uma ladra para não admitir que o seu pai era
falível?
– Disse-lhe que não sabia das joias. Continuo sem saber se foram um presente.
Claro que tinham sido. O pai mostrava a mesma teimosia naquilo como em todas as antigas discussões. Recusava-se a aceitar o óbvio porque a visão tão rígida que tinha
da vida o obrigaria a condenar o próprio pai.
– Tampouco, apesar da sua certeza no contrário, houve algum caso entre eles.
Claro que tinha havido.
– Pergunte-lhe, se julga que a minha memória e o meu bom senso se sujeitam a uma cegueira de sentimento. Ela lhe dirá.
Planeava fazê-lo.
Já sabia o que precisava de saber. Levantou-se. O pai olhou para ele.
– Não esperava tanto rigor, Yates. Contava apenas cativar a sua atenção durante algum tempo, para não estar completamente ignorante quando tudo passasse para as
suas mãos.
– Agradou-me ser rigoroso, e aprender consigo os pormenores sobre os nosso bens.
– Provavelmente continuará a votar nos malditos whigs quando ficar com o título.
– Muito provavelmente. Não se culpe, porém. É uma perversão do meu carácter que se esforçou ao máximo por corrigir.
O pai riu baixinho e compôs o robe.
– A brisa arrefeceu. Vou fechar a janela – disse Yates, avançando para a fechar. – A minha música incomoda-o quando está a descansar? Percebi hoje que provavelmente
consegue ouvi-la se a janela está aberta. Os meus aposentos ficam por cima. Foi irrefletido da minha parte.
– Não me incomoda. É agradável, e frequentemente útil. Nunca percebi as baboseiras poéticas que se dizem sobre a música. Eu considero-a boa para pensar com clareza,
sem excesso emocional. Vai achar que não tenho coração, por dizer isto.
Yates voltou-se para ele.
– De todo. Se alguma vez desejar pensar claramente, diga-me, e eu toco para si.
O pai fez um gesto com a mão, dispensando a ideia.
– A sua mãe diz que não gosta de tocar para outras pessoas. Escuto o que me entrar pela janela, quando entrar.
Yates parou atrás do cadeirão ao sair. Pousou a mão no ombro do pai.
– É verdade que não gosto de tocar para um público, mas toco de boa vontade para si.
O pai esticou o braço, apertou-lhe a mão e depois deu-lhe uma palmadinha, como quem reconforta um filho.
– Que sítio é este? – perguntou Ambury.
Observou a porta azul e olhou para a esquerda e para a direita, para a mistura de pessoas comuns que passavam por eles. Não se tratava de nenhum bairro elegante
e Cassandra esperou que ele não a repreendesse por se ter deslocado lá no passado.
– É difícil de explicar – disse. – É uma casa, e também um refúgio, e também um lugar de negócios. Venha, eu mostro-lhe.
Ela levou-o até à porta e fez soar o batente. Vozes chegaram-lhe do interior por uma janela aberta. Ambury ouviu-as e alçou uma sobrancelha.
– Francês.
– Sim, na sua maioria.
Uma mulher idosa de grande volume abriu a porta. Sem uma palavra, deu meia-volta. Cassandra seguiu-a, com Ambury ao lado dela. Entraram na sala de jantar da casa,
que, contudo, não era usada para refeições.
Filas de mesas enchiam o espaço. Às mesas, estavam sentadas mulheres com folhas de papel e pires com cores à frente. Pincéis e trapos não tinham descanso.
Ambury curvou-se para examinar um dos papéis pousados numa mesa próxima.
– Estão a colorir gravuras para a tipografia.
Algumas das mulheres eram jovens e outras pareciam bastante idosas, mas a maior parte estava na meia-idade. Muitas usavam roupas que tinham passado de moda recentemente,
com corpetes justos e saias volumosas. Algumas até tinham perucas, embora o pó estivesse agora cediço e amarelo.
– São emigradas, claro – explicou Cassandra. – Mulheres de bom nascimento, sobretudo. Vêm para aqui e ganham alguns xelins, para dar o que fazer ao corpo e à mente.
Algumas vivem aqui, mas a maioria não.
– Pôs a sua tia aqui? Não se vê um homem em lado nenhum. Dificilmente é mais seguro do que em casa do Southwaite, ou na dos meus pais.
– O meu irmão nunca encontraria este lugar. Se encontrasse, nunca lhe seria permitida a entrada. Estas mulheres sabem como se proteger, a si próprias e às outras.
Ambury não parecia convencido. Observou as mesas e as cabeças inclinadas sobre elas.
Um burburinho enchia o espaço e, ocasionalmente, riso. As mulheres pareciam gostar do trabalho e da oportunidade de pôr em dia a conversa e a coscuvilhice.
Uma porta abriu-se do outro lado do compartimento e Marielle Lyon entrou, trazendo mais um saco de gravuras. Entregou-as a mulheres que já tinham acabado as últimas
e fez uma pausa, inclinando o rosto delicado para inspecionar algum do trabalho.
Cassandra foi vista por ela e acenou-lhe. Marielle pousou o saco e foi na direção deles. Também ela se vestia à moda antiga, e manchas de tinta enfeavam-lhe a renda
rasgada dos cotovelos. Mesmo assim, possuía uma elegância invejável, etérea.
– Apresento-lhe Marielle Lyon – disse Cassandra a Ambury. – É uma amiga da Emma.
– Já ouvi falar nela. É dela, a casa?
– Não sei se é dela. Mas vive aqui. É seguramente a rainha do espaço.
Marielle cumprimentou Cassandra com um beijo e avaliou Ambury quando Cassandra o apresentou.
– Está sozinho? – perguntou. – O outro não está consigo?
– Refere-se ao Kendale – explicou Cassandra. – Há uns meses, começou a persegui-la pela cidade. A Marielle reparou imediatamente. Não foi, Marielle?
– Apraz-me saber que o meu amigo teve o bom senso de admirar a sua beleza, embora não devesse ter andado a segui-la dessa maneira.
– Não era l’amour. Pensou que eu era espia.
A cadência do sotaque dela era encantadora.
Ambury chamou a si o seu charme também.
– E é?
– Uma vez que é seu amigo, deixo-o na ignorância. Diverte-me.
Voltou-se e esticou um dedo elegante.
– A sua tia está ali atrás, Cassandra. É muito ativa e gosta de conversar com a Madame Chardin. Coscuvilhices sobre velhos amigos.
Cassandra espreitou a tia Sophie. Tinha uma touca branca na cabeça e um avental sobre o vestido de padrão florido. A mulher ao seu lado disse algo e Sophie atirou
a cabeça para trás numa gargalhada.
Ambury seguiu Cassandra quando esta enveredou por entre as mesas.
A tia Sophie ergueu os olhos de surpresa quando a alcançaram. Disse alguma coisa à interlocutora em francês e sorriu.
– Chegam mesmo a tempo para uma história deliciosa sobre Mademoiselle O’Murphy e aquele quadro infame que Boucher pintou com ela. Madame diz que o rei insistiu que
todas as suas mulheres colocassem rouge nas nádegas e que isso explica a tonalidade rosada no centro do traseiro da senhora na figura. E eu que sempre presumi que
seria falta de gosto de Boucher.
– Maldição – murmurou Ambury. – Esquecemo-nos do rouge.
Cassandra pisou-lhe o pé, com força.
– Tia Sophie, gostávamos de falar consigo e explicar o que preparamos para sua proteção.
– Claro. A Marielle não se importará se procurarmos privacidade na cozinha, tenho a certeza.
Disse algo a Madame Chardin e levantou-se para indicar o trajeto de saída.
– Era uma irlandesa adorável, aquela O’Murphy. A Madame Chardin diz que sobreviveu a tudo. Era esperta, a fedelha.
A cozinha proporcionava alguma privacidade. Cassandra sentou-se com Sophie à mesa rústica. Ambury ficou de pé.
Cassandra explicou a petição que este fizera ao tribunal da Chancelaria, e os outros esforços que envidara em prol dela.
– O Ambury alugou uma casa – concluiu Cassandra. – Assim que nos mudemos, levamo-la para viver connosco. Até lá...
– Até lá, seria melhor se viesse para a casa da minha família – disse ele.
Cassandra mostrou-lhe um sobrolho franzido. Não fora nada daquilo que ela planeara.
– Preferia ficar aqui – declarou Sophie. – Estou em segurança, e não me sinto intrusa.
Ambury olhou-a muito diretamente.
– Ficar na casa dos meus pais seria desconfortável?
– De todo. Apenas prefiro ficar aqui.
Desceu o silêncio. Sophie e Ambury só tinham olhos um para o outro. E não eram os mais amáveis.
– Tia Sophie, acerca dos brincos de diamantes – principiou Cassandra, detestando a acusação que estava prestes a insinuar. – Disse que os comprou num penhorista,
mas a informação é muito vaga. Preciso que me diga exatamente de que forma é que entrou na posse deles.
Sophie abriu a boca para falar, mas Ambury voltou a interromper.
– Foram uma oferta, não foram? De um membro da minha família.
Confusa, Cassandra desviou o olhar do marido para a tia e depois de novo para o marido.
A tia Sophie examinou demoradamente Ambury, tirando-lhe as medidas de todas as formas.
– Sim, agora que mo recorda, foram uma oferta.
– Foram? – perguntou precipitadamente Cassandra. – De quem?
– Dizê-lo seria trair a confiança de alguém.
Ambury não pareceu surpreendido pela resposta. Cassandra mal conseguia conter o seu espanto.
– Não foi o único presente – voltou Ambury. – Julgo que houve uma propriedade também.
Sophie hesitou, mas rendeu-se com um suspiro.
– Houve. Está num fideicomisso e tenho rendimento das rendas. Depois há a minha casa...
– A sua casa?! – exclamou Cassandra. – Há anos que tem a casa. Há uma eternidade. Julguei que tivesse sido o meu pai quem lha comprou.
Sophie estendeu o braço e deu-lhe uma palmadinha no rosto.
– Fique calma, querida. O seu pai deu-me dinheiro. Escolhi usá-lo para viajar, depois de ter a casa e as rendas, juntamente com a parte da minha mãe, para garantir
o meu sustento.
Voltou-se para Ambury.
– Pelos vistos descobriu que a sua família foi generosa comigo. Não devia incomodar-se com histórias tão antigas. Como diz Cassandra, foi há uma eternidade.
– Agradeço a sua tolerância com as minhas perguntas, para não haver ambiguidades quanto à propriedade dos bens. Tal como diz, foi há uma eternidade, e não há razão
para não encerrar o assunto.
Cassandra estava em pulgas para encerrar o assunto de forma cabal. Parecia-lhe que podia rebentar, tantas eram as perguntas que a assolavam.
Ambury sentou-se finalmente. Sorriu para a tia Sophie. Subitamente, era todo encanto.
– Tenho razões para pensar que o Barrowmore tentará procurá-la mais uma vez. É sensato aceitar a casa dos Highburton como refúgio. Sei que a minha mãe gostará de
a receber.
– Sabe que mais? O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
Cassandra olhou de soslaio para Ambury. Pegou na mão da tia.
– O Gerald agora é o conde, tia Sophie. O pai não pode ajudá-la. Só o Ambury.
Sophie fitou Ambury.
– Não está a deixar-me grande escolha sobre onde viver agora, pois não?
– Não, se quer a minha proteção.
Sophie exalou um pequeno suspiro de ressentimento.
– Então devo obedecer, pois que me encontro necessitada da proteção de alguém depois destes anos todos. Vou arrumar as minhas coisas, o pouco que tenho, e confiar
na sua palavra em como Elinor não vai considerar-me um estorvo nem um fardo.
– Não vá fazer as malas já. Há mais uma coisa acerca da qual precisamos de falar ainda com privacidade – disse ele.
– Mais? Que mais há para tratar?
– Preciso de lhe perguntar sobre as suas outras joias.
– Quem? Porquê? – balbuciou Cassandra depois de a tia Sophie sair para arrumar as coisas dela.
– O meu avô – disse Ambury. – E a razão habitual.
– Não. – Esforçou-se por impedir um risinho de acompanhar o seu espanto. Não conseguiu, tendo sido saudada com um olhar muito highburtoniano. – Perdoe-me. É que
é... refrescante. Não acha? – Escapou mais um risinho. Quase se engasgou no esforço de o conter. – Não lhe dá alguma satisfação saber que, afinal, tem a quem sair?
Ele encolheu os ombros.
– Alguma, suponho.
Ela franziu os lábios e olhou-o com sobranceria.
– Muito bem, os condes de Highburton, baluartes da retidão moral e um exemplo para todos nós.
E com um grande sorriso, acrescentou:
– Meu Deus, que descoberta!
Uns olhos azuis bastante severos admoestaram-na.
– Não que eu vá contar a alguém – assegurou ela. – Consigo guardar segredos de família tão bem como qualquer pessoa. Este está a salvo comigo. – Esticou-se e deu-lhe
um beijo. – Assim como, tenho a certeza, as revelações da minha tia relativamente às joias estão seguras consigo, Ambury.
– Está a chantagear-me, Cassandra?
– Credo, não.
– Porque não aceito isso.
– Claro que não.
– As duas revelações não são iguais. E as joias, aquelas que ela admite ter pedido emprestadas, devem ser devolvidas.
– Concordo. Qualquer item emprestado deve regressar à proveniência.
Regressaram com vagar à entrada. Da sala de jantar chegava o burburinho em francês. Algures no piso de cima, a tia Sophie arrumava a mala.
– Apesar de ter brincado, fico um pouco triste por saber do seu avô – disse ela.
– Estranhamente, eu também. Muda as memórias que me ficaram dele. Não é mau, mas não deixa de ser uma mudança.
O toque de melancolia de Cassandra nada tinha a ver com memórias. Para ela, o avô de Ambury não passava de uma figura reputada.
A tia Sophie desceu as escadas. Seguia-a uma jovem, transportando uma mala que entregou a Ambury.
O rosto de Sophie não mostrava qualquer expressão. Os seus olhos tinham aquela expressão distante, ausente, que tanto preocupava Cassandra. A conversa sobre o passado
longínquo devia ter chamado a si os pensamentos enquanto esteve sozinha.
Ambury reparou. Ofereceu-lhe o braço e falou com brandura.
– Vamos, então, Sophie.
Ela pareceu confusa. Contudo, olhou para ele e acalmou-se.
– Tem a certeza de que ela não se importa?
– Tenho a certeza.
Sophie começou a andar.
– Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer.
CAPÍTULO 24
A mãe dele recebeu Sophie de braços abertos. A saudação afetuosa pareceu resgatar a mente de Sophie de onde quer que tivesse estado. As duas mulheres escorraçaram
Ambury e Cassandra e fecharam a porta da biblioteca para falarem em privado. Sobre o eterno passado, talvez.
Yates foi procurar Cassandra depois de consultar Prebles acerca da petição que fizera ao tribunal da Chancelaria. Foi encontrá-la no quarto dela, a olhar pela janela,
com um ar um pouco perdido, muito à semelhança de Sophie na carruagem. Embora quieta, pressentia-se o tumulto interior.
Ele abraçou-a por trás e beijou-lhe o ombro.
– O que a deixa tão pensativa?
Ela encolheu os ombros.
– Muitas coisas. Demasiadas revelações, talvez. Desde logo, não me agrada saber que a minha tia tirou algumas daquelas joias. Não me parece que tenha sido tudo equívocos,
como ela diz que foram.
– Julgo que é provável que sim.
Era o tipo de mentira que se diz a uma pessoa que não precisa de saber a verdade toda. Do tipo que se diz a uma pessoa de quem se gosta.
– Disse que saber do meu avô também a deixou triste. Porquê?
Um sorriso pesaroso curvou-lhe os lábios.
– Compreendi que me agradava a possibilidade de que se parecesse com os Highburton anteriores numa coisa. Pensei... – Voltou-se e deu-lhe um beijo. – Não é importante.
Ele sentou-se na cadeira azul e puxou-a para o colo.
– Pensou o quê?
Ela brincou com o lenço dele durante uns momentos.
– Pensei que, com toda a retidão que tem no sangue, havia uma boa possibilidade de não dividir o meu marido com eventuais amantes.
– Mas isso não é importante?
– Era apenas uma vaga suposição relacionada com o seu sangue. Seria seguramente mais justo se viesse a parecer-se mais com eles nesse aspeto. Disse-me que não posso
ter amantes.
– Por outras palavras, pensa que devemos ser iguais na virtude ou no adultério. Uma visão compreensível, suponho, mas radical.
– Imagino que seja improvável, agora que sabemos que a sua linhagem não lhe proporciona a inclinação para ser tão virtuoso.
Ele não fazia ideia se seria improvável ou não. Nem era claro se aquilo importava realmente a Cassandra. Esperava que sim, percebeu.
– Então, toda essa sua cogitação versava as minhas inclinações herdadas com respeito à virtude matrimonial?
– Estava a tentar organizar muitas coisas. Por exemplo, tanto quanto consigo compreender, o meu irmão tem sido muito cruel por muito pouco. A minha tia podia ter
rendimentos de uma propriedade, mas não era muito. Não o bastante para o que tentou fazer com ela.
– Planeava retirar muito mais rendimento dessa propriedade.
Falou-lhe das torres de defesa e das diligências de Gerald para colocar a terra na lista.
– Se conseguisse controlá-la, controlaria a terra e o dinheiro que dava. O fideicomissário não se teria oposto, desde que a sua tia estivesse a ser acompanhada.
– Muito mais?
– Centenas por ano, pelo menos.
– Não tem coração, se tentou aprisioná-la por dinheiro, mesmo sendo centenas de libras. E o comportamento dele para comigo... Tanta raiva e... ódio... Sim, ódio.
Anos de ódio, sem razão nenhuma para além da arrogância e do orgulho. Há algo de muito triste nisto. Seguramente que uma pessoa não se torna tão dura sem motivo
nenhum. – Secou os olhos. – Tenho saudades do rapaz que conheci em criança, Ambury. É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o lugar dele
quando eu não estava a ver.
Ele procurou o lenço de assoar e entregou-lho.
– Quando é que ele mudou?
– Quando herdou. Só compreendi em que medida quando...
Secou novamente os olhos.
– Quando, o quê?
– Não pergunte – disse ela com doçura.
– Quando aconteceu aquilo com o Lakewood?
– Disse-me que não devemos falar disto. Foi uma decisão sensata, compreendi.
– Nem tanto. Disse-me uma vez que ninguém sabe o que aconteceu, a não ser a Cassandra. Eu gostaria de saber, também.
Ela abanou a cabeça.
– Vai culpar-me por manchar a memória dele, tal como sempre me culpou por lhe manchar a reputação. Compreendi que posso suportar quase tudo, querido, mas não a sua
reprovação.
Ele não acreditava que ela desejasse proteger-se da reprovação dele. Ela queria preservá-lo de macular aquelas memórias. Sensibilizava-o que ela se recusasse a defender
o seu próprio comportamento para as preservar para ele.
Abraçou-a com força e ela pousou a cabeça no ombro dele.
– Continuo a querer saber. Diga-me.
Ela demorou tanto tempo a falar que ele julgou que não o faria. Depois suspirou novamente.
– Tal como lhe disse, não foi nenhum acidente, aquele dia. O barco, o facto de nos ausentarmos juntos, a situação comprometedora, foi tudo planeado.
Recordou que ela o alegara, depois do jantar, e da reação que tivera. Desta vez, reprimiu a irritação. Pressionara-a para que lhe contasse tudo e devia estar disposto
a escutá-lo.
– Não vi nada de mal no barquinho – retomou ela. – Nos bosques, ele pareceu incapaz de encontrar o caminho de volta. Eu indicava-lhe por onde seria e ele insistia
em fazer de outra forma. Era uma farsa mas, ao mesmo tempo, eu só me congratulava por não ter aceitado a mão de tamanho pateta. Só quando saímos dos bosques, finalmente,
e o meu irmão, a minha mãe e todas as pessoas presentes no piquenique nos encontraram, é que compreendi o custo da estupidez dele.
– Pedi para ouvir isto, mas não quero ouvi-la a insultá-lo – disse ele, contendo a raiva que a história despertava. Não sabia ainda se estava furioso com ela ou
por ela, o que só piorava tudo. – Ele não era um homem estúpido.
– Não, não era. Eu é que fui estúpida, por pensar que podia rejeitar o pedido de casamento dele e ficar por ali.
– Ele não faria o que acaba de dizer, Cassandra. Nunca montaria uma cilada a uma mulher de forma tão desonrosa. Percebeu mal.
Ela endireitou-se e olhou-o de frente.
– Não percebi. Nessa tarde, ele veio falar novamente comigo para me pedir a mão, para fazer a coisa certa. Não o recebi. Mas uma hora depois fui à procura do meu
irmão, para lhe dizer que aceitava. Estavam juntos no escritório dele e eu ouvi-os a rirem-se do assunto. O Lakewood brindava o meu irmão com todos os passos em
falso. O buraco que não deixava passar a água e que o fez ter de usar os ramos para pôr água no barco. O sol que não parava de surgir e ele a ter de ignorar as minhas
sugestões para o seguirmos para oeste. Foi uma grande risota para os dois. Decidi naquele momento que dava a minha vida para não ser obrigada a casar-me com um homem
que não queria.
– Bom, quase conseguiu, não foi? Ficar sem a sua vida.
As palavras saíram sem ele contar, expelidas pelo caos de reações que experimentava com a história. Ele não era inteiramente o homem que você julgava, dissera Penthurst.
Maldito Penthurst e maldito Lakewood.
Ela corou como se ele a tivesse esbofeteado.
– Deveria ter-me poupado, revelando toda a intriga? A verdade da desonra dele teria sido preferível a especulações? Ou julga que, mesmo sabendo o que sabia, deveria
ter aceitado a proposta dele? Meu Deus! Julga que sim, não julga? Acredita que apesar de tudo eu devia ter-me casado com ele, ter-nos redimido aos dois e ter aprendido
a esquecer quem ele era. – Ela empurrou-o e tentou saltar do colo dele. – Bom, não o fiz, e fico satisfeita ainda que você não fique.
Ele agarrou-lhe a cintura antes que ela escapasse. Segurou-a com firmeza, sentindo-a debater-se.
– Maldição! Claro que fico satisfeito por não se ter casado com ele. Se tivesse, ele ainda estaria vivo e você não estaria casada comigo. É terrível pensar assim,
e igualmente infernal saber que estou satisfeito por tudo ter acontecido como aconteceu. Como é que acha que isso me faz sentir? – Inspirou profundamente e procurou
controlar-se. – Era o meu amigo mais antigo, Cassandra.
Ela parou de se debater.
– Lamento, Ambury. Lamento que seja infernal para si, e lamento ter-lhe contado. Sabia que não era prudente. Não devia ter insistido.
– Precisava de ser dito. Estava cansado de não ter qualquer explicação desse dia.
Segurou-a contra si enquanto as emoções dos dois se acalmavam. Depois ficou a segurá-la simplesmente porque lhe apetecia. Tentou imaginar o que ela lhe descrevia
e encaixar naquilo o homem que ele conhecia. A adoração de Lakewood por Cassandra tinha-lhe parecido despropositada, era inegável. E ele possuía um lado calculista
que conseguia ser desagradável.
Até o reconhecimento daquelas verdades lhe causava alguma culpa.
– Porque julga que o fizeram? – perguntou ele, uma boa meia hora depois.
– Era dinheiro, para o Lakewood. Também ouvi isso. A falarem do dote. Para o meu irmão... Era nisso que estava a pensar quando me encontrou. Um homem comportar-se
desonrosamente para enriquecer faz algum sentido. Fazê-lo para casar uma irmã parece estranho, não parece?
Ele pô-la de pé e levantou-se.
– Vou debruçar-me sobre o assunto e ver se me ocorre uma resposta menos estranha. Agora temos de nos vestir para jantar, para recebermos devidamente a sua tia nesta
casa.
Uma hora depois entrou no quarto de vestir de Cassandra. O dramatismo do dia pareceu-lhe muito distante assim que viu como estava bela com o vestido de noite de
marfim que lhe torneava suavemente as curvas. Ofereceu-lhe o braço para a acompanhar ao piso de baixo.
– É herdeira da sua tia, não é? – perguntou ele nas escadas. – Talvez o Gerald desejasse controlá-la a si tal como a controlava a ela. Repare que exigiu que casasse
com um homem escolhido por ele. Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança. Combinaria o matrimónio
e o seu marido dividiria o rendimento.
– Imagino que sim. Só que, para meu desalento, isto leva-nos a fechar o círculo! Toda essa tribulação por algumas centenas de libras por ano! O Gerald precisa ainda
mais de uma ocupação do que eu pensei, se for verdade.
*
Depois do jantar, as senhoras deixaram Yates entregue ao seu porto. Uma vez que o pai estava demasiado doente para descer para jantar, bebeu sozinho e debruçou-se
sobre a descrição de Cassandra do que acontecera naquele dia há seis anos.
Mudava tudo, mas ainda não sabia bem como. Não gostava de pensar mal de Lakewood. Tinham convivido durante anos. Embora ninguém fosse perfeito, e Lakewood tivesse
as suas falhas e vícios, Cassandra descrevera um nível de mentira e de calculismo que a maior parte dos cavalheiros consideraria inaceitável e desonroso.
Uma coisa era comprometer uma mulher e ambos se casarem por pressão da sociedade. Outra coisa era iludir uma mulher para esta ficar comprometida e ser obrigada a
casar-se com alguém quando não o desejava. A distinção não era evidente e, talvez, dadas as circunstâncias do seu casamento, fosse em abono próprio.
Evidentemente que Lakewood já não podia falar em defesa própria das suas intenções e se tinha conspirado ou não com Barrowmore. Um bom amigo devia dar-lhe o benefício
da dúvida. Por mais que quisesse fazê-lo, não podia. Cassandra dissera a verdade, tinha a certeza. Não mentiria acerca de uma coisa daquelas.
Que choque não devia ter sido quando Cassandra recusara a sua proposta de fazer a coisa certa. Algumas centenas por ano poderiam ter sido uma recompensa pequena
para Barrowmore, mas Lakewood herdara uma propriedade empobrecida a par do título de barão, e algumas centenas por ano teriam feito uma grande diferença.
Ele não era inteiramente o homem que você julgava. Teria Penthurst descoberto o esquema e ameaçado expor Lakewood? Seria humilhante que a história fosse dada a saber
a todos. Conseguia imaginar Lakewood a arriscar a vida num duelo para evitar aquilo. Era mais condizente com ele do que desafiar alguém por causa de uma mulher.
Entristecido por aquela nova imagem de um velho amigo, pousou o copo e saiu para procurar Cassandra. A vivacidade dela escorraçaria aquela nostálgica melancolia.
A sala de visitas estava vazia. Um lacaio indicou que as senhoras já se haviam retirado.
A caminho dos seus aposentos, decidiu espreitar o pai. Entrou no quarto de vestir. Para sua surpresa, a mãe encontrava-se à porta do quarto e o perfil elegante e
majestoso revelava que espreitava por uma pequena abertura.
Não o ouviu a aproximar-se, de tão concentrada que estava naquilo que via no outro quarto. Ambury colocou-se atrás dela e espreitou por cima da sua cabeça.
O pai estava deitado na cama, reclinado sobre almofadas, e a camisa de noite branca refletia o brilho da vela. Ao lado da cama, numa cadeira bastante próxima, viu
a tia Sophie.
Estavam de mãos dadas. E enquanto ele e a mãe observavam, o pai ergueu a mão de Sophie e beijou-a na palma, tal como se faz a uma amante.
– Não vai contar-lhe o que sabe.
A mãe sussurrou a ordem assim que reparou nele. Fechou a porta que dava para o quarto e depois chamou-o com a mão. Fê-lo atravessar o quarto de vestir até à pequena
sala de visitas que a flanqueava.
Ambury precisou de alguns minutos para reorganizar os pensamentos. Não ajudava o facto de a mãe não parecer minimamente surpreendida com as implicações daquilo que
acabavam de ver.
– Presumi que fosse o avô – declarou por fim. – A Sophie é dez anos mais velha do que o pai.
– Continue a pensar que foi o seu avô se é mais fácil para si, embora não consiga imaginar que diferença possa fazer.
Fazia diferença por uma série de razões. Desde logo, porque o homem que se encontrava ali dentro em reunião com uma antiga amante havia massacrado vezes de mais
com lições de moralidade um filho com o qual parecia agora ter mais em comum do que aquilo que admitia.
Mas, desde logo, talvez fosse exatamente essa a razão para todas as discussões.
– Não se importa? – perguntou ele.
– Foi há muito tempo.
– Porque é que me parece que na altura também não se importou muito?
Ela suspirou, mas nada daquilo alterou em nada as costas direitas da mulher que estava sentada qual estátua na ponta de um banco.
– Se quer saber, dei a minha bênção, Yates. Fiquei satisfeita por ele ter encontrado alguém por algum tempo. Foi depois de o menino ter nascido e os médicos não
aconselhavam mais nenhuma gravidez. Bom, sabe o que isso significa. Ela era uma amiga querida na altura, e quando vi o interesse que ele tinha nela, eu... deixei
que ambos soubessem que não me importava de todo.
– Durou muito tempo?
– Pouco menos de um ano. O pai dele não foi tão compreensivo quando ficou a saber. Era de facto um verdadeiro Highburton, e obrigou o seu pai a terminar tudo.
– E deu-lhe a propriedade e valores para resgatar a honra da família. Não admira que o pai não quisesse que eu investigasse a propriedade, embora tenha a certeza
de que não sabia nada acerca das joias.
– Na altura desconhecia completamente e só ficou a saber da propriedade quando herdou o título. Ele nunca teria maculado o que tinham com coisas dessas, como se
ela fosse uma cortesã comum. Tinham verdadeiro afeto um pelo outro. E, julgo eu, verdadeira... paixão. Eu amo-o profundamente, mas... não podia negar-lhe o conhecimento
daquele tipo de amor, se ele queria.
Ele pôs-se a andar num passo impaciente, encaixando aquela descoberta final em tudo o resto. Rematava uma série de perguntas e explicava por que razão Sophie não
desejara ficar hospedada naquela casa.
Ele olhou para a mãe, que mantivera em tudo a atitude de condessa, mesmo quando o informava do caso amoroso que permitira e talvez até encorajara. Tem a certeza
de que Elinor não se importa?
– O Pai pensou que os brincos talvez tivessem sido roubados. Chegou a pensar que tivesse sido a Sophie a levá-los. Uma traição na família, disse. A veemência dele
quanto a isto faz mais sentido agora.
– E você estava determinado a descobrir a verdade para lhe dizer, não é assim? Que incómodo que acabaram por ser aqueles brincos. Contei-lhe finalmente a verdade
há uns dias, para ele não pensar que ela o tinha usado. Fui eu quem lhos deu, Yates, não foi o seu avô. Foram o meu... presente de despedida. Quando terminou, soube
que ela e eu não voltaríamos a ser amigas chegadas.
– Foi bom da sua parte continuar a recebê-la, e a ser sua amiga, mesmo quando começaram a chover as histórias sobre ela.
– Seja o que for que se diga mais de mim, espero que se saiba que não sou nenhuma hipócrita.
Não era uma hipócrita. Poderia bem ser o único elemento da família a quem o epíteto não serviria.
– Trouxe-a cá acima para o ver?
– Ela dificilmente encontraria o caminho sozinha.
Sacudiu a saia, alisando o tecido e juntou as mãos sobre o colo.
– Tampouco tem muito tempo. A mente dela começa a vaguear. Cassandra reparou seguramente. Dentro de alguns anos... quem sabe? Agora, está na altura de irmos. Ela
não demorará a ir-se embora.
Ele aproximou-se e beijou-a na testa.
– Diz-se que ele conquistou o troféu da temporada quando a mãe aceitou o pedido dele. Nem ele sabia a metade da história.
Deixou-a, sentada como se os corpetes ainda ditassem a sua postura, aguardando, enquanto o marido se demorava em recordações de uma grande paixão com a sua amiga.
Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer, dissera Sophie.
Podia apostar que sim.
CAPÍTULO 25
Cassandra levantou a perna para se sentar nas coxas de Ambury. Ele sobressaltou-se, acordando, e espreitou por cima do ombro.
– O que está a tramar?
– Estou apenas a admirá-lo do meu ângulo favorito – replicou, acariciando as nádegas firmes tão apelativas aos seus olhos.
– Só não me diga que Lady Lydia também me apanhou este ângulo. Prefiro pensar que protegeu os olhos virginais.
– Claro que sim. Imediatamente. Não viu nada.
Inclinou-se e depositou-lhe um beijo cuidadoso no alto das costas.
– Estava aborrecido quando chegou a casa. Não correu bem, no tribunal, hoje?
– Correu muito bem. Terminou. O Penthurst foi absolvido. Os pares aceitaram a sua presunção de que, como cavalheiro, não podia explicar cabalmente a razão do duelo
sem comprometer o bom nome dos inocentes. Ajudou o facto de não ter sido ele a convocá-lo, imagino.
– Não concorda com a decisão deles, diria.
– Fico satisfeito por ter terminado como terminou. Se fiquei descontente, foi porque a verdade do que aconteceu permanece um mistério. E porque os meus pressupostos
podem ter-me custado dois amigos em vez de um.
– Será que o Penthurst poria um fim ao mistério, se lhe perguntasse?
– Disse-me que não pode, por uma questão de honra. Um dia, contudo, talvez ele revele alguma coisa, se houver algo de que possa falar. Entretanto, debato se devo
contar ao Kendale e ao Southwaite o que me contou sobre o esquema montado com o seu irmão para a comprometer. O Southwaite, pelo menos, suspeito que não o receberá
com surpresa.
Ela encostou a cabeça aos ombros dele.
– Quer fazê-lo só por minha causa? Em meu favor? Poderá ser melhor deixar que o recordem sem essa história a manchar a honra dele.
Beijou-o novamente, um pouco mais abaixo.
– Já sabe que não teve nada a ver comigo, não sabe? É só isso que me importa... que deixe de se perguntar. O Penthurst é um conhecido, nada mais. Se tenho sentimentos
por ele, é apenas gratidão por me tratar com respeito e nunca me ter rejeitado, quando outros foram menos generosos.
O colchão mexeu-se para acomodar as costas de Ambury. Bem acordado, agora, fitou-a.
– Outros como eu, quer dizer. Ao tratá-la como uma mulher do mundo, insultei-a. Peço desculpa. Não tenho outra além do desejo, que pode afetar o discernimento de
um homem da pior forma.
– Não posso dizer que me importe, por ter sido ousado e tentado adicionar-me às suas conquistas. O resultado disso é que um dia serei a condessa de Highburton.
Ele puxou-a para um abraço.
– Perguntei-me muitas vezes o que poderia ter acontecido se Lakewood não a tivesse reclamado para ele tão depressa nessa temporada.
– Começou a desejar ter-me cortejado então? É muito querido.
– Não é de agora que o penso. Começou antes do casamento do Southwaite. Sempre a desejei.
Ela aceitou o beijo profundo que acompanhou a declaração. A excitação que sentia multiplicou-se numa resposta que lhe era tão fácil com ele. A diferença, daquela
vez, como das últimas vezes, era a forma como o seu peito se preenchia com camadas de emoção tão pungentes que facilmente choraria se não tivesse cuidado.
Pousou a cabeça no peito dele e arrastou os dedos sobre o relevo sólido e subtil dos seus músculos. As carícias dele, por seu lado, deixavam-na igualmente afogueada.
– Julgo que prefiro que tenha acontecido como aconteceu. Eu era tão parva como qualquer rapariga e na altura teria esperado mais do que ser desejada da forma que
refere.
– E agora não?
Sentiu a garganta a arder. Não esperava mais, mas desejava-o profundamente. O prazer era maravilhoso, e a intimidade intensa, mas queria acreditar que não era apenas
o coração dela que experimentava toda aquela alegria, dolorosa de tão intensa, durante o tempo que passavam juntos.
Ele girou e apoiou-se nos braços para ficarem de frente um para o outro.
– Não deve haver expectativas de mais, nem sequer de grande prazer, num casamento como o nosso. O dever e a lealdade são tudo o que se pode realmente esperar.
– Eu sei. É bom que me queira dessa forma, e eu a si. Não estou a queixar-me.
– Nem eu. Mas penso para mim próprio que, ao não esperar mais do que isso, o encontrei, acidentalmente.
Tudo o que havia à volta dela desapareceu, deixando-os apenas aos dois e a um nervoso de excitação que a assustava. Era como se se equilibrasse numa corda muito
fina, num dedo apenas. Uma mera respiração poderia atirá-la para a desilusão. E, no entanto, o que via nos olhos dele encorajava-a a acreditar que tal não aconteceria
se arriscasse dar um passo em frente.
– O meu prazer consigo não é apenas físico – declarou ele. – Vivo uma alegria rara, consigo. Não é só o orgulho que me faz querer tê-la comigo, e para mim. – Beijou-a
com doçura. – Deslumbrou-me, Cassandra, e roubou-me o coração.
Ela abraçou-lhe o pescoço e puxou-o para o beijar.
– Eu sabia que o amava, mas não me atrevia a esperar que partilhasse dos mesmos sentimentos.
Beijou-o uma vez e outra. Digladiaram-se em doce paixão, primeiro, depois feroz, como se tentassem consumir-se um ao outro. Ela sentiu-o entrar, duro e fundo, reclamando
a sua posse tal como ela gostava.
– É bom – murmurou ele. – Perfeito. Ainda melhor com amor.
Ela envolveu-lhe a anca com as pernas.
– Sim. Com amor é maravilhoso.
Cassandra sentiu Yates mexer-se na cama. Abriu os olhos e deparou com ele a contemplá-la.
– O que é?
– Venha comigo. Preciso de fazer uma coisa.
Vestiram os robes e ele conduziu-os para o quarto de vestir.
Apontou para uma cadeira próxima do guarda-roupa.
– Sente-se aqui.
Ela subiu para a cadeira, chamando as pernas e os pés para debaixo de si. Ele voltou-se, com o cabelo desgrenhado pelo amor e a seda crua do robe flutuando. Ocupava-se
com alguma coisa em cima de uma mesa.
Quando se virou para ela, tinha um violino numa mão e um arco na outra.
– Não se sinta insultada se parecer não reparar em si enquanto faço isto – disse. – Saberei que está aí. Não me perco tanto como poderá parecer.
Lisonjeava-a para além de qualquer medida que ele a convidasse para ouvir. Esperava que ele não julgasse que lhe devia aquele presente.
– Não quero importuná-lo, querido. Tem a certeza de que não o farei?
– Veremos se acontece, mas não estou em crer. Juro-lhe que quero fazer isto.
Ela não levantou mais objeções. Sentou-se o mais quieta que conseguiu e esperou não o importunar minimamente.
Nada há de comparável a ouvir um violino romper o silêncio da noite. O som preenchia o pequeno compartimento, parecendo emergir de todas as direções. As notas fluíam
limpas, claras, puras. Os sons do Céu deviam ser assim.
Ela contemplava os dedos fortes que se movimentavam sobre o instrumento como se tivessem vontade própria, ao passo que o arco libertava a música. A expressão dele
fascinava-a. Dura. Pensativa. As pálpebras semicerravam-se sobre olhos concentrados no interior, como se os sons entrassem em conversa com a mente.
A experiência comoveu-a. Deixou-a exultante. Desejou que nunca terminasse.
Quando terminou, ele pousou o instrumento de forma indiferente, como se nada de extraordinário acabasse de ocorrer.
– Obrigada, Yates. É o melhor dia de declarações de amor que poderia ter-me concedido. Foi maravilhoso.
Ele devolveu o violino ao estojo e foi ajudá-la a levantar-se. Com um braço à volta dela, conduziu-a de volta ao quarto.
– Foi bom, não foi?
– Eu não causei interferência?
– A consciência da sua presença foi maior do que a de outros no passado, mas não causou distração. Longe disso. Na verdade, parece que há mais alguma coisa que o
amor melhora.
O amor tornara a música melhor, mas não diferente. Yates reconheceu-o no dia seguinte, enquanto terminava de se vestir. Fora uma alegria ter Cassandra ali com ele.
Se outra pessoa tivesse ocupado aquele espaço de forma tão absoluta teria, indubitavelmente, achado aquilo um incómodo. Ela encaixara, contudo, tão perfeitamente
como se encaixava no seu corpo quando ele a abraçava. Da forma ideal, como em tantos aspetos.
Mesmo assim, a música trouxera-lhe a clareza de que precisava. Organizara-lhe os pensamentos que o haviam mantido acordado. Enquanto tocava, a sua mente circulara
pelas imagens e impressões do dia, dispondo e reorganizando.
Pessoas do passado e do presente visitaram-no. Lentamente, emergiram novas constatações. Que Sophie voltara a confundi-lo com o pai hoje, ao sair de casa de Marielle
Lyon, tal como acontecera quando ele se aproximara dela em casa do Dr. Wakely. Que diria a Cassandra que não teria amantes; não previa desejar alguma vez fazê-lo,
mas ela tinha direito que lhe fosse comunicado o compromisso. Que as revelações do dia tinham explicado tudo, e ao mesmo tempo não.
O último pensamento não parava de retornar, até outras memórias se ligarem a ele. Pequenas, sobretudo. Pequenas singularidades que mal notara na altura. Então, algo
que não era nada pequeno tornou-se um eco por trás de tudo o resto: a mágoa de Cassandra por o irmão a tratar a ela e à tia de forma tão cruel por tão pouco.
Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança.
É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o seu lugar quando eu não estava a ver.
O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
– Senhor!
Um sobressalto arrancou-o aos pensamentos. Higgins estava ao seu lado de casaco na mão. Voltou-se e vestiu-o.
– Não estarei em casa para jantar. Diga ao mordomo.
Antes de sair da casa, foi à procura da tia Sophie. Com sorte, estaria errado, mas não julgava que estivesse.
– Explique novamente porque é que estou a escrever esta carta – disse Southwaite enquanto a caneta deslizava sobre o papel.
Estava sentado a uma escrivaninha, no Brook’s.
– Porque é meu amigo.
– Não vai fazer nada de estúpido com o Barrowmore, pois não? Andar aos socos ou outro tipo de mau comportamento? Credo, não pensa desafiá-lo, espero.
– O Kendale vai comigo para me impedir, caso pareça ir por aí.
– Bem, é deveras tranquilizador – replicou Southwaite com secura. – Diga-me o que devo escrever. Não gosto disto, mas faço-o.
Yates espreitou por cima do ombro de Southwaite.
– Venha ter comigo a St. James’s Park esta tarde às quatro horas, para tratar de um assunto de grande importância relativamente ao património da sua família.
Southwaite mergulhou a caneta e escreveu: Por... favor... venha... ter... comigo... a...
– Acrescentou o «por favor».
– Estou a ser educado.
– O homem é um canalha. Não escolho ser educado.
– É o meu nome que assina a carta, não o seu, e eu escolho ser educado. – Continuou a escrever. – Ele não vai gostar deste ardil.
– Não me importo minimamente, desde que venha. Nunca acederá a encontrar-se comigo, isso é certo. Reparei recentemente que nunca passei um minuto na companhia do
homem sem ter outras pessoas por perto.
– Tem a ver com a sua mulher?
– Tem.
– Vai dizer-me do que se trata?
– Não.
Não a ele. Nem a ninguém, a não ser que chegasse um dia em que não tivesse escolha.
Southwaite assinou com um floreado, dobrou o papel e selou a carta. Entregou-a a um dos criados do clube para que a enviasse. A seguir acompanhou Yates até às poltronas.
– Já se acostumou ao estado de casado? – perguntou Southwaite quando se puseram confortáveis.
– Concluo que se ajusta a mim como nunca tinha esperado.
– Diz-se que à sua noiva também.
– As senhoras têm falado?
– Sim, tal como é seu hábito. A Emma está encantada por ter ficado com aquela casa, por isso imagino que não se cansarão de trocar segredos durante os próximos meses.
Em relação à sua noiva, a Emma confidenciou-me no outro dia ao jantar que a Cassandra tem expressado uma supremo contentamento e que pensa que você é um marido maravilhoso.
– Que lisonjeiro.
– Foi o que pensei. A minha irmã opinou então que a Cassandra provavelmente ficou impressionada porque o Yates é um homem muito duro, e os homens duros são preferíveis,
ao que a Emma se lançou numa preleção sobre a insuportabilidade de viver com um homem duro, a não ser que a Lydia tenha ouvido dizer o contrário.
– E você, o que disse?
– Nada. Pareço-lhe idiota? A Lydia rebateu que decidira que não se casaria, a não ser que estivesse segura de que o homem tinha o grau apropriado de dureza. Neste
ponto, a Emma parece ter-se perguntado se estariam a falar de outra coisa que não de comportamento. Corou até à raiz dos cabelos.
– De certeza que a Lydia repetia apenas algum disparate que ouviu, independentemente de qualquer duplo sentido.
– Sem dúvida. Não deixei de franzir o sobrolho à minha irmã, caso estivesse a usar «duro» de maneira obscena e deliberadamente desbocada para me irritar.
– É uma sortuda por o ter como irmão, Southwaite. Você é muito paciente.
– Eu sei. – Southwaite esticou as pernas e cruzou os pés. – Então, como é que conseguiu passar de homem obrigado a casar à ponta da espada a marido maravilhoso tão
depressa? Tive de seduzir e cortejar durante meses para ser maravilhoso.
– Simplesmente exerci o talento considerável que possuo para fazer uma mulher feliz.
– Então, ela não teve qualquer escolha, suponho.
Oh, tivera escolha. O charme não fazia caminho com Cassandra Vernham.
– A verdade é que estou deslumbrado por ela, Southwaite. Só penso em tê-la comigo e ela, graças a Deus, não se importa. Fiz a coisa certa e acabei por me apaixonar
pela minha mulher.
O sorriso provocador de Southwaite desapareceu.
– Estou perplexo. Contente por si, mas perplexo.
– Não era de esperar.
– Mais uma razão para me alegrar por si. E fico satisfeito por ter um amigo que está cativo também. Torna este estado mais suportável. Devo avisá-lo de que nem tudo
serão felicitações. Há homens que julgam que sucumbir é uma fraqueza, e que devem ter pena de nós.
Um daqueles homens entrou na sala. Viu-os e aproximou-se.
– Não lhe diga, ainda – advertiu Southwaite. – Assim que o Kendale souber que está apaixonado, nunca mais se cala.
Especialmente a mulher sendo aquela mulher.
– O que se passa? Porque é que me mandou chamar, Ambury? – perguntou Kendale, em jeito de saudação. – Estão os dois com ar de quem foram apanhados com a mão na massa.
Yates ofereceu-lhe uma cadeira empurrando-a na sua direção com o pé.
– Sente-se para jogarmos às cartas enquanto esperamos, Kendale.
– Esperamos por quê?
– Tenho um encontro esta tarde. Preciso que venha comigo para se certificar de que não mato o homem.
Barrowmore circulava por St. James’s Park, olhando em volta à procura de Southwaite. Yates já assumira posição num sítio onde ninguém poderia pôr-se à escuta sem
dar nas vistas, e que consistia precisamente na parte central da relva próxima ao canal. Kendale estava encostado a uma árvore a alguma distância, parecendo não
se ocupar com nada.
Barrowmore viu Yates e parou. De semblante carregado, tentou decidir o que fazer.
– Ele não vem – chamou Yates. – Estou aqui eu.
Barrowmore hesitou, mas depois aproximou-se.
– Se isto se deve à minha tia, deve saber que já enviei uma petição ao Lorde Chanceler para que averigue o assunto e o resolva rapidamente.
– Não é necessário.
– Tenciona abrir mão dela?
– Não é necessário, porque ela já revelou aquilo que você espera manter em segredo com o seu afastamento.
A afirmação fez sumir o sorriso pretensioso do rosto de Barrowmore. Este recuperou, mas precisou de bastante tempo, durante o qual pareceu tão assustado a Yates
que este chegou a sentir pena dele. Devia ser um inferno viver todos os dias com aquele tipo de medo.
Barrowmore tentou aparentar superioridade, mas só conseguiu arrogância.
– Ela não está boa da cabeça. Seja qual for o disparate que tenha dito, as palavras dela não podem ser levadas a sério.
– A cabeça dela não é o que costumava ser, mas na maior parte das vezes Sophie está tão lúcida quanto você. E a sua história não foi relatada em nenhum outro momento.
Embora o medo que tem não seja sem razão. Ela já tinha dito coisas, de passagem, que aludiam a este mistério. Suficientes para eu ter vontade de a interrogar.
– A minha tia tem muitas histórias. – Mantinha os maxilares cerrados e os lábios comprimidos. – Histórias infindáveis, sobre príncipes e duques e festas e escândalos.
Metade não é verdade, tenho a certeza, tal como esta.
– Esta foi sobre estar grávida ao mesmo tempo que a cunhada e sobre ficarem juntas no campo durante o tempo de gravidez. Num sítio discreto, pois Sophie não era
casada. Tenho a certeza de que a mãe de Cassandra se lembra da história toda também. Talvez eu lhe deva perguntar.
– Não se atreva a chegar perto dela.
– Também vai isolá-la, se, com a idade, ficar indiscreta? Deve estar a começar a preocupá-la.
A agitação de Barrowmore atingira níveis extremos. Yates não conseguia decidir se o homem ia dar-lhe um soco ou desabar em lágrimas.
– Fala-me em enigmas. Não tenho tempo para isto.
Começou a andar.
– Só uma delas teve uma criança que sobreviveu ao primeiro dia – disse Yates, alto o suficiente para Barrowmore ouvir. – A Sophie. A condessa ficou com a criança
como se fosse dela.
Barrowmore gelou. Olhou em redor com ar desesperado, para ver se alguém estava perto o suficiente para conseguir ouvi-los. Avançou novamente até estar a menos de
um passo de distância.
– Repita isso e eu mato-o, Ambury.
– Não me parece que vá repeti-lo, mas quero respostas. A minha curiosidade é o meu maior defeito. Quando é que soube a verdade, que era filho de Sophie, e não da
condessa? O meu palpite é: quando o seu pai estava a morrer. Os homens gostam de acertar contas nessas alturas.
Imaginou Barrowmore a ouvir a derradeira revelação e a ficar a saber que não era a pessoa que, a vida inteira, julgara ser. Choques como aquele podiam mudar o carácter
de um homem, especialmente se, subitamente, houvesse muito mais a perder além da suposta identidade. O comportamento de Barrowmore era repreensível mas pelo menos
agora fazia algum sentido.
– O que ele me disse foi que a minha irmã tinha demasiadas parecenças com a tia e que devia vigiá-la de perto para ela não trazer desonra à família. Ele tinha razão
nisso, e fico aliviado por ela agora ser problema seu.
Yates sentiu-se furioso ao ouvir o insulto a Cassandra. Manteve a calma com esforço.
– Também lhe disse que ela não era sua irmã. Não por causa de qualquer problema com a legitimidade dela, mas com a sua. A Sophie sabe que ele estava ao corrente
daquilo que tinham feito. Sabia que ele tinha intenção de lhe contar.
– Sou filho dele, maldição. Seu filho e herdeiro.
– Aos olhos da lei, sim. Ele não o repudiou. O título era seu. As terras também. Qualquer herança que designasse um descendente do mesmo sangue dele, em vez da sucessão
habitual, contudo, estava sujeita a contestação por parte da Cassandra. Ainda está.
– Está a ameaçar-me, Ambury? Então é disso que se trata. Casou-se com uma vadia em quem tropeçou e agora afinal quer dote.
Ambury quase se atirou a Gerald para o esganar. Pelo canto do olho, viu Kendale ficar rígido, em alerta, e dar um passo. Fez-lhe um gesto atrás das costas para não
se aproximar e conseguiu aplacar-se no meio da fúria que o urgia a dar uma boa tareia a Barrowmore.
– Devia exigir o maior dote que este país já viu, depois da forma como a tratou, seu canalha. Era isso que temia, que ela se casasse com um homem que viesse a saber
da verdade e perseguisse o que pudesse em nome dela. Mais valia estar casada com algum tipo que pudesse controlar.
– Se tentar alguma coisa, não lhe darei sossego. Vai ficar empancado na Chancelaria durante anos a fio. Ela não verá um penny.
– Provavelmente não, mas vê-lo-á a si humilhado e dado como bastardo para o mundo inteiro saber. Poderá valer mais do que dinheiro.
Enraivecido, quase a espumar, Barrowmore afastou-se novamente a passos largos, depois deu meia-volta e regressou. Desta vez, tinha os punhos cerrados.
– O que raio é que quer? Quanto?
– Nenhum dinheiro. Precisa apenas de retirar as petições relativas à sua mãe e não tecer senão louvores a Cassandra no futuro.
– Louvores?
– Louvores celestiais. De quão encantadora é. Do quanto a ama. E como lamenta o afastamento dos últimos anos. Deve escrever-lhe uma carta, para este efeito, para
começar. Não deixe de se prostrar diante dela e de lhe pedir perdão.
– Está louco? Não vou escrever ou dizer nada desse género.
– Então, eu irei expor a verdade do seu nascimento, e você irá desafiar-me, e eu acabarei por o matar. Esta alternativa tem o seu encanto, mas, em prol da minha
mulher e das outras pessoas envolvidas, abdicarei desse prazer.
Gerald continuava com ar de quem queria bater em alguma coisa. Ali perto, debaixo da árvore, Kendale mantinha-se em alerta.
– Maldição, se tudo o que quer é uma carta cheia de mentiras e o fardo de uma velha palerma, faça-se a sua vontade. Mas juro que, se algum dia contar alguma coisa
destas a alguém, se eu ouvir um rumor sequer, é um homem morto.
– Não tenho interesse em dizer a ninguém. Nem sequer à minha mulher.
Gerald cravou os olhos nele. Yates devolveu-lhe o olhar, à procura... não sabia de quê.
Gerald fez menção de partir.
– Sabem quem ele é? – perguntou Yates.
Tinha de saber.
– Quem? Ah, refere-se ao velhaco para quem ela levantou as saias. Não, graças a Deus! – O semblante dele carregou-se, pesado de desconfiança. – Que diabo, você sabe?
Yates olhou para o irmão que o destino lhe atribuíra. Gravou na memória a forma como a arrogância e a virtuosidade dos Highburton podiam ser distorcidas, para jamais
esquecer os seus perigos.
– A Sophie não disse e eu não perguntei. Não faço ideia de quem ele era. Absolutamente nenhuma.
CAPÍTULO 26
Cassandra aninhou-se na curva do braço de Yates, acomodando a cabeça no ombro. Pousou-lhe a palma da mão no peito. Se ficasse atenta, conseguia sentir o bater do
coração. Era um ténue eco de vibração que se dispersava pelo corpo.
O ar fresco do outono arrefecia o quarto, mas estavam confortáveis ali debaixo. As cortinas estampadas da cama protegiam-nos do frio maior da noite. Ela nunca fechava
as cortinas por completo, porém. A casa nova ainda a fascinava. Gostava de ser capaz de ver a luz prateada raiar a escuridão da madrugada, dali, onde dormia.
– Vai cedo para a Fairbourne’s, para ajudar a Emma? – perguntou Yates.
Ele ficava muitas vezes na cama dela até de manhã, como naquele momento. Parecia desfrutar da acalmia do acordar, nos braços um do outro, ouvindo iniciar-se o dia
na casa.
– Vou chegar uma hora antes do leilão. Ela não precisa verdadeiramente de mim, a não ser para a ajudar a não se preocupar. Vai matá-la, não poder fazer nada de útil.
O irmão hoje desempenhará o papel dele e o mundo deve presumir que ela é apenas uma cliente, tal como eu.
– A sua tia vai?
A pergunta aludia a um desenvolvimento interessante que tivera lugar desde que se haviam mudado para St. James’s Square. A tia Sophie saíra da sua reclusão. Começara
a visitar os pais de Yates. No dia anterior, acedera a receber Hortense, a tia de Southwaite.
– Julgo que um leilão a iria cansar. Nem me parece que ela goste deles. Nunca falou em joias adquiridas dessa forma.
A forma como as adquirira estava a ser retificada. Cartas discretas de Mr. Prebles seguiam o seu caminho para outras tantas localizações no Continente. Sophie cooperara
com o plano de restituição, na medida em que lhe fora possível. Não recordava verdadeiramente a proveniência de algumas daquelas joias.
Ele depositou-lhe um beijo na cabeça.
– Ela parece estar satisfeita aqui, com a companhia da Merriweather. A insistência para que a Signora Paolini fosse mantida no grupo de cozinheiros não é o desastre
que esperei, embora ache a comida da senhora um pouco estranha. Atenção, não disse «má».
Ela decidiu não mencionar que a interferência da tia Sophie podia explicar quaisquer peculiaridades.
Uma tosse discreta interrompeu a ociosa felicidade. Soou na porta uma batida delicada. Yates sentou-se e espreitou o quarto de vestir.
– O que é, Higgins?
– Uma carta, senhor. Um envio especial para a senhora. Quer esperar até ao pequeno-almoço?
Yates atirou os lençóis para trás e rumou ao quarto de vestir. Regressou com a carta.
– É de Anseln Abbey.
Entregou-a e voltou a subir para a cama.
Ela sentou-se e enrolou um casulo de roupas à sua volta.
– Espero que a minha mãe não esteja doente.
Abriu-a e deparou com uma comprida missiva da parte do irmão.
Era o último tipo de carta que esperaria receber dele. Cheia de rapapés, pedia-lhe perdão pelo comportamento passado e prometia regenerar-se. Desenhara longas linhas
sobre o quão estava errado e exprimiu a esperança de que ela encontrasse mais tempo para a mãe. Ofereceu-se para se organizar de forma a não estar presente em nenhuma
propriedade da família, se este fosse um requisito para a visita dela. Chegava até a admitir que ela possuía ótimas qualidades, e incluiu uma pequena lista.
Agradecia-lhe por tomar conta da querida tia Sophie.
Ela deixou cair a carta em cima da cama e ficou a olhar para as garatujas do irmão. O espanto inicial deu lugar a uma emoção mais profunda. Quase chorou. Era como
se o irmão tivesse regressado de onde quer que fosse onde se havia metido. Sentiu uma grande comoção e imaginou-se a desfrutar de tempo com Gerald a falar e a rir
como as outras mulheres faziam com os irmãos. Imaginou reuniões familiares às quais levava os seus filhos, e uma proximidade que preenchia os vazios que os últimos
anos tinham cavado na família.
Ficou quase inebriada de alegria.
Então, formou-se uma reação muito diferente.
Pegou na carta. Observou-a de perto. Não encontrou uma única correção. Era como se Gerald tivesse feito múltiplos rascunhos e continuasse a copiar até o último sair
perfeito, muito à semelhança do que faziam para a precetora quando eram pequenos.
Quanto mais vezes lia a carta, mais estranha esta lhe parecia. Não conseguia acreditar que Gerald a tivesse escrito. Nem num assomo de generosidade, Gerald teceria
aquela profusão de elogios. Gerald nunca admitiria ter cometido todos aqueles erros, a não ser que alguém estivesse ao seu lado com uma pistola encostada à cabeça
dele.
Voltou-se. Yates contemplava o dossel estampado. Parecia contar as figuras retratadas. Não mostrou qualquer interesse por aquela entrega especial. Nenhum. Nem sequer
perguntara se a mãe dela estava doente.
Cassandra dobrou a carta e pousou-a numa mesa próxima. Rodou e voltou a enfiar-se na cama, fitando o marido.
– Era do Gerald. Uma tentativa de reaproximação. Muito contrita.
– É bom, não é?
– Muito bom, embora não me pareça que, na verdade, ele deseje aproximar-se muito. Fico satisfeita, porque não desejo aproximar-me muito dele. Aconteceram demasiadas
coisas entre nós para voltarmos a acertar-nos. No entanto, agrada-me a perspetiva de ver a minha mãe mais vezes e mais à vontade.
– Depois de toda a mágoa, diria que a tentativa dele de se desculpar devia deixá-la feliz.
– Deixa-me muito feliz. Não viu como fiquei comovida? Quase chorei. – Fitou-o nos olhos e completou: – Foi inesperado, mas é uma surpresa maravilhosa, neste dia
esplêndido.
– Provavelmente significa que também não criará problemas com a sua tia. São boas notícias. O Prebles disse que o Gerald retirou a petição que fez à Chancelaria.
Isto explica porquê.
– É um grande alívio, ele ter-se esclarecido.
Aconteceriam outras coisas boas a partir dali, mesmo se ela e Gerald não voltassem a ser amigos. Ela podia visitar a casa da juventude sem ser desprezada. Podia
resgatar memórias perdidas, dos tempos idos e da família, de antes de o seu pai morrer.
Esticou os braços e beijou Yates, sentindo um alívio e uma gratidão profundos por tudo aquilo. Não sabia como é que ele o tinha conseguido. Quer o tivesse subornado,
ameaçado ou chamado à razão, convencera Gerald a escrever aquela carta. Sabia-o.
– Tem fome para o pequeno-almoço? – perguntou ela. – Estou a pensar que podíamos ficar mais um bocadinho na cama.
Beijou-lhe o peito uma, duas, três vezes, saboreando-lhe a pele. A mão dele procurou a cabeça dela, segurando-a com os lábios selados contra o seu calor.
– Tenho fome, mas não é de um pequeno-almoço. É de si. Como sempre. Da sua beleza, da sua paixão e do seu humor, mas, principalmente, do seu amor.
– Estará sempre aqui ao seu dispor, Yates. Banqueteemo-nos juntos.
– Um banquete sem fim.
Ele rodou e pôs-se sobre ela. Inclinou-se, então, para a beijar profundamente.
Ela saboreou aquele beijo, e todos os que se lhe seguiram. Abandonou-se ao coração e ao corpo dele. Desfrutou desmesuradamente do prazer, reconhecendo em cada toque a verdade que ambos conheciam e partilhavam: que o amor tornava tudo diferente, e melhor.CAPÍTULO 19
–Vejo que vou ter de fazer tudo sozinho durante o próximo meio ano, pelo menos – resmungou Kendale, estalando preguiçosamente a chibata contra as pernas esticadas.
– Nem tanto tempo – disse Southwaite.
Serviu mais brandy a Yates, mas nem sequer ofereceu a Kendale. Este tinha uma viagem de longas horas pela frente e nunca bebia quando estava em missão.
– Não mais do que cinco meses, diria eu – calculou Yates.
– Está a provocá-lo deliberadamente, Kendale. Perdoe-lhe a animação exagerada. Estamos-lhe ambos gratos por fazer a viagem até à costa, tal como pedido nesta carta.
– Não gostaria que tivessem de abandonar as vossas mulheres tão cedo. Diabos, quem sabe que calamidades não aconteceriam se vos fossem negados os prazeres do casamento
durante três ou quatro dias.
Kendale raramente empregava um tom sarcástico nos seus comentários. Como consequência, muitas vezes parecia estar a falar a sério. Grande parte delas, Yates gostava
de fingir que assim era.
– Entre todos os perigos encontra-se a loucura – principiou Yates. – Li um artigo científico sobre isso. Um noivo que é afastado demasiado cedo da noiva pode enlouquecer
por falta de consumação.
Kendale franziu o sobrolho.
– Isso não faz sentido. Se um homem pode enlouquecer por falta de consumação, os padres católicos, os velhos professores, os exércitos em guerra, toda a marinha
e metade dos maridos casados há mais de três anos seriam tolinhos.
– Assim seria de esperar, mas parece que os noivos são especiais. O artigo explicava que a falta de consumação que se segue à presunção tomada livremente do gozo
da dita é passível de conduzir à loucura. Quantas vezes já viu um homem que, rejeitado pela amante, enlouquece? Faz ameaças, chora, embebeda-se dias a fio, durante
os quais escreve má poesia e pondera apertar o gasganete a alguém. – Yates bebeu um gole do brandy e continuou: – Espero que não julgasse ser tudo efeito de um coração
partido, Kendale, em vez de algo tão vulgar como a previsão da frustração sexual.
Os olhos de Kendale estreitaram-se. Yates manteve a pose séria e inocente.
– Ele está a aproveitar-se do seu bom senso, Kendale. Novamente – declarou Southwaite. – Nem o Ambury nem eu temos qualquer desculpa para lhe dizer que se desloque
à costa por nossa vez, a não ser o nosso desejo de... bom... nos entregarmos ao nosso desejo.
– Parece-me a mim que ambos já o fazem há tempo suficiente para desejar uma pausa. Não me corrija, Ambury. Se você fosse outro homem qualquer e ela outra mulher
qualquer, talvez fosse possível acreditar na vossa suposta inocência. Ambos sabiam que tal não seria possível, portanto não me culpem pelos pressupostos que faço.
– Então, aceite como desculpa a minha obrigação de cumprir um dever maior, para não partir a pensar que me furto à responsabilidade que o leva.
– Ah, não é o prazer que o prende aqui, mas a necessidade de um herdeiro. Que conveniente para si, que este dever maior tenha como condição deitar-se com a sua mulher.
– Referia-me à necessidade de me deslocar a Elmswood. Há lá algum trabalho que preciso de fazer e que foi atrasado pelos acontecimentos recentes. Necessito também
de apresentar a minha mulher aos vizinhos de lá.
Seria igualmente a lua de mel que poderia oferecer a Cassandra. Entre a saúde do pai e os perigos da guerra, não sairiam em viagens demoradas, nem sequer em Inglaterra.
– Encerrarei esta conversa como a comecei, assinalando que tudo recairá sobre mim nos meses vindouros.
Levantou-se a abotoou a casaca.
– Enquanto estiver no Kent, certificar-me-ei de que nenhum de nós é chamado, a não ser que os vigias tenham boas razões. A carta que recebeu parecia dominada pelo
terror, Southwaite. Considerando o estado de alerta do país, tal seria de esperar, mas não desejo passar tanto tempo em cima do cavalo para nada. O meu traseiro
não deve pagar a má avaliação efetuada pelos nossos vigias.
– Faça como julgar melhor, claro – declarou Southwaite.
Era desnecessário dizê-lo, pois Kendale fazia sempre o que julgava ser melhor, mesmo que todos os outros considerassem preferível agir de outra forma.
– Espero que ele consiga acalmá-los – comentou Southwaite depois de Kendale partir.
Agarrou algumas cartas que estavam amontoadas na secretária.
– Alguns dos vigias veem navios fantasmas, de tanto perscrutarem a escuridão. Passo dias a escrever respostas, fazendo notar que os ansiosos relatórios que enviam,
na verdade, não incluem nada que seja digno de nota.
– Considerando os acontecimentos recentes, a rede que montámos é desadequada. Está na altura de o governo fazer algo oficial, e permanente.
– Julgo que não demorará. Lembra-se daquela série de torres que propusemos no ano passado? Pontos de defesa costeiros, constituídos pelo gabinete de guerra, para
a vigilância ser sistemática e a costa sudeste estar mais segura?
– Pensei que esse plano tivesse caído no esquecimento.
– Foi ressuscitado no início do verão. O gabinete de guerra tem estado a trabalhar numa lista de localizações. Parece que vão começar brevemente.
– É bom saber.
– Já lho teria dito mais cedo, mas tem estado ocupado a conquistar Lady Cassandra e a deixar-se enredar.
– Não gozei nenhuma vitória, como lhe disse.
– Permita-me acreditar que sim. A ideia de ter sido obrigado a casar-se com uma mulher que nem sequer seduziu é demasiado desanimadora.
– A constatação de que ela foi redimida e de que está apta a ser amiga da sua mulher deve ser suficientemente animadora. Quanto a tudo o resto que possa mitigar
o seu contentamento, o Kendale compreendeu a situação a ponto de fazer o casamento em sua casa e se apresentar como testemunha. Se ele consegue reconciliar-se com
este casamento, o Southwaite também deveria ser capaz de o fazer.
Southwaite sentou-se na cadeira que Kendale desocupara e esticou as pernas à semelhança deste.
– Entrou nesta casa, esta tarde, com ar de quem está inebriado por novos prazeres, portanto, neste momento, parece que este casamento se lhe adequa bastante bem,
e isso é tudo o que importa.
– Ao dizer «neste momento», está a sugerir que tal poderá deixar de ser o caso quando a experiência deixar de ser nova e inebriante.
– Julgo que é verdade na maior parte dos casamentos.
Não no dele, claro. A confiança de que o seu casamento nunca cessaria de o inebriar não necessitava de ser expressa. Contemplou o brandy por um segundo, mas logo
olhou de novo para Yates.
– Falou com ela acerca do Lakewood?
– Não há nada a dizer.
– Não há? O julgamento iminente do Penthurst pôs-me a pensar com alguma frequência naquele duelo, ultimamente. Pergunto-me se presumi demasiadas coisas. Pergunto-me
se o Lakewood tencionara que assim fosse.
Yates não gostava de pensar naquele dia desagradável, nevoento, em que Southwaite o informara e a Kendale de que Lakewood havia morrido.
– Como padrinho dele, com certeza terá percebido o mesmo que as outras pessoas.
– Ele disse que o Penthurst tinha insultado uma senhora. O amor da vida dele, declarou. Tal como você, presumi que se referia a Cassandra Vernham, mas agora... –
Encolheu os ombros. – Foi uma loucura desafiar o Penthurst. Se ele tivesse acabado por matar um duque...
– Provavelmente não tencionava matá-lo. Nos dias de hoje, a maior parte dos duelos não termina dessa forma.
– Oh, digo-lhe que tencionava fazê-lo. Ficou bem claro quando nos encontrámos todos. O Lakewood exigiu o derradeiro acerto de contas. Mesmo assim, o Penthurst apontou
alto, tenho a certeza agora, pois revivo-o com frequência na minha mente, mas o Lakewood moveu-se na pior altura para disparar.
Abanou a cabeça com tristeza.
– Que raio de coisa. Imagino que nos cheguem mais respostas com brevidade, quando o Penthurst se apresentar diante dos lordes. Provavelmente serei chamado para dar
testemunho. Daí os meus esforços mais recentes para perceber exatamente o que vi e o que foi dito pelo Lakewood.
– Talvez esteja a pensar demasiado no assunto. Foi o que foi.
– Tem mais certeza do que eu acerca do que se terá passado, Ambury. Esperaria que não fosse indiferente à ambiguidade, agora que está casado com Cassandra Vernham.
– Decidi que não pode recair sobre ela, a culpa do jogo de morte de dois homens.
– É melhor homem do que eu, se consegue deixar as coisas assim.
Yates não sabia se o seria. Abordara o tópico mentalmente algumas vezes, as mais recentes das quais na noite anterior, quando, saciado do cheiro e da suavidade dela,
debatera se não seria melhor esclarecer o assunto de Lakewood. O velho amigo tornara-se uma espécie de fantasma, um espírito que lhe invadia o pensamento, carregado
de ambiguidades como quem arrasta uma corrente. Dissera a Cassandra que não falariam no assunto, mas perguntava-se se o fantasma algum dia encontraria descanso se
não o fizessem.
Agora que ele está morto, só eu sei o que aconteceu realmente. Fora aquilo que ela dissera. Imaginar ao que ela se referiria tornara-se ainda mais um elo daquela
corrente. De tamanho considerável.
– Saio da cidade dentro de dois dias – anunciou, levantando-se para sair. – Não estava a mentir quando falei em negócios a tratar no sul.
– A sua noiva deve ficar satisfeita por sair da cidade durante alguns dias.
– A notícia do nosso casamento deu outro vigor às salas de visitas, ultimamente, e temos uma longa fila de senhoras que aguardam a sua vez de satisfazer a curiosidade,
portanto é verdade que lhe apetece bastante esta pequena viagem.
– Pensava mais em termos de escapar à sua mãe.
– Isso está a correr melhor do que esperava, mas ela poderá ficar satisfeita com a possibilidade de férias nesse aspeto também.
Quando regressava a casa, pensou na sorte que o assistira quanto a essa relação em particular. Não houvera discussões nem estranheza na primeira vez que Cassandra
se reunira com a mãe dele, nem desde então. Também não havia muita proximidade, evidentemente.
A primeira semana de casamento tinha corrido bem. Ainda era recente, mas a familiaridade confortável que se instalava era bom indicador dos anos que se seguiriam.
Devia estar mais satisfeito do que estava.
Culpou-se pelas irritações que por vezes o incomodavam. Quase sempre o assaltavam quando esbarrava com as vedações erigidas pelas suas próprias palavras, como quando
lhe dissera que não falariam do seu passado em geral, nem de Lakewood em particular.
Presumira que deixar tudo no passado seria o melhor para o futuro. Poderia ter-se enganado.
Cassandra percebia que alguma coisa preocupava Ambury. A forma como fez amor foi mais distante do que o normal. Que tenha falado pouco a seguir não a surpreendeu.
Mas surpreendeu-a pressentir nele uma perturbação interior.
Contava que ele se fosse embora para se dedicar ao que quer que fosse que lhe ocupava os pensamentos. Não o fez. Em vez disso, deixou-se ficar deitado ao seu lado,
minguando as velas na escuridão crescente do quarto. Tinha o braço direito pousado em cima dela e a mão sobre a sua coxa num gesto curioso de possessividade, e deixava
o cérebro ir para onde tivesse de ir. Ela tentou dormir, para não estar demasiado cansada durante a viagem, quando saíssem para a propriedade rural de Highburton,
de manhã.
– Qual era o nome dele?
Os olhos dela abriram-se de surpresa. Não julgara que aquela atividade toda se devesse a ela.
– Não vou dizer-lho. Disse que não falaríamos no assunto e já o fez duas vezes.
– Mudei de ideias.
– Volte a mudar.
– Não gosto de pensar que poderei encontrar-me com ele e que ele saiba que teve o seu amor e eu não saiba que ele foi a pessoa que o fez.
– Não vai encontrar-se com ele. Ele não nasceu nos seus círculos. Não pertence ao tipo de regimento que se movimente neles.
– Ainda assim, quero saber o nome.
Ela sentou-se e tapou-se com o lençol. Ele pouco mais era do que um conjunto de formas escuras na noite, mas ela via-o com clareza na sua mente. Via o rosto belo
e a linha firme da boca que nenhum dos sorrisos frequentes vinha agora suavizar. Via os músculos vigorosos do corpo nu que, agora, o casamento lhe dava o direito
de admirar.
– Não acredito que fique mais feliz por saber o nome dele, ou qualquer outra informação. Eu sei os nomes de algumas das suas antigas amantes, e esse conhecimento
não me traz nenhum reconforto. Preferia ignorá-los.
– Isso é diferente. Porque agora você é minha.
Credo, os homens tinham uma cabeça tão estranha. Pior, conseguiam ser tão irritantes quando diziam coisas e não ouviam as implicações das suas palavras. É minha.
Via-o apenas numa única direção, como a maior parte dos homens fazia. Ele tinha a posse dela, mas ela não tinha a posse dele. É diferente. Na cabeça dele, era diferente,
e todo o universo masculino concordava.
– Sim, sou sua. Não pode ficar satisfeito por isso? Não é que se importe realmente com a pessoa que ele era ou com o que eu sentia por ele. Duvido que se melindre
sequer com o facto de não ter sido o primeiro. A verdade é que gosta de ter uma mulher que é uma amante e não uma rapariga virginal. Agrada-lhe que a minha audácia
e experiência abram portas para um prazer mais sofisticado. Foi por isso que me quis.
Ele olhou para ela na escuridão, sentou-se e pegou no robe.
– Talvez conheça a minha mente melhor do que eu, Cassandra. Vê, com certeza, os benefícios que este casamento me trouxe com mais clareza do que eu. Vou fazer aquilo
que sugere e aproveitar a minha boa sorte das formas que recomenda.
CAPÍTULO 20
Cassandra adorou o quarto de Elmswood Manor. Uma profusão de janelas dava entrada à bonita luz setentrional que, filtrada pelas árvores, assumia um matiz fresco
e prateado. Como consequência, era sempre madrugada naquele quarto tranquilo e sereno.
Os seus aposentos eram maiores do que os de Londres. E também eram só dela. Não conseguiu encontrar nenhuma porta ou passagem de ligação aos aposentos de Ambury.
Provavelmente, só o conde e a condessa usufruiriam de tal comodidade.
Aquilo não o impediu de a encontrar. Ele entrou enquanto a criada que lhe fora atribuída lhe desfazia a mala. Não se anunciou nem disse uma palavra. Limitou-se a
ficar parado à entrada do quarto de vestir até a criada reparar nele e se escusar.
Pensando que os privilégios a que se outorgam os maridos podem ser inconvenientes por vezes, Cassandra meteu ela própria as mãos à obra. Ambury ficou a observar,
com o ombro encostado à parede e os braços cruzados.
– Vamos jantar em Trotwood Park com os Witherspoons. São uma família proeminente, aristocrática, e importante no condado – disse. – Amanhã de manhã, damos um passeio
a cavalo, para que os criados e rendeiros possam vê-la.
– Então, devo pendurar isto imediatamente.
Tirou o vestido de montar e sacudiu-o com um floreado. Ele não percebeu a indicação de que seria importante para a boa apresentação dela deixar que a criada retomasse
os seus deveres.
– No dia seguinte, terei de me ausentar durante alguns dias. Necessito de ir ao sul visitar um terreno.
– Faz parte das suas obrigações para com o seu pai e a propriedade?
– Uma das mais inconvenientes.
– Farei uso do tempo para conhecer as pessoas de cá. É provável que me saia melhor sozinha, pois todos parecem reverenciá-lo. – Olhou para a porta, pela qual a criada
desaparecera. – Ou então, talvez, receá-lo, se forem criaturas jovens e bonitas.
– Nunca importunei uma criada, e não espero pensar sequer em fazê-lo no futuro.
– Muito bem.
– Não me atribua maior comedimento do que mereço. Nunca pensarei fazê-lo porque agora tenho uma mulher às minhas ordens. Portanto, na realidade, o «muito bem» é
seu.
– Às suas ordens? Espero que não planeie berrar por toda a casa para me chamar sempre que estiver com o cio. Vai enviar-me o seu criado de quarto ou um lacaio?
– O mais provável é entrar-lhe pela porta.
Como fizera ainda agora. A tarefa de desfazer as malas distraíra-a da tonalidade da presença dele. Interessado. Inquieto e um pouco perigoso. Ambury, predador, originava
uma perturbação subtil mas inegável na atmosfera de um espaço. Excitante. Assaltava-a agora e ela sentiu o frémito da resposta. Durante a última semana, o seu corpo
despojara-se de quaisquer inibições e o desejo era saudado da mesma forma.
Ele ficou a observar Cassandra dispor alguns objetos de cuidado pessoal no toucador. Depois ela entrou no quarto.
– É o quarto mais amoroso em que tive o prazer de ficar. A roupa branca, a tinta clara, os remates em renda e as almofadas fofas fazem-me pensar num quadro de Boucher.
– Só falta a mulher bela e nua, deitada de bruços em cima da cama.
Sentou-se numa poltrona de um azul claríssimo e esticou os braços. Agarrou nela, fê-la rodar e desapertou-lhe as fitas do vestido.
– Terá de fazer as vezes.
– É um convite?
– É uma ordem, Cassandra. Os homens não convidam as amantes.
Devolvia-lhe as palavras que ela empregara na noite anterior. A atitude dele desafiava-a a desempenhar o papel audaz que ela lhe revelara ser o desejo dele.
Não, não era um desafio, decidiu quando se voltou e viu como ele esperava e observava. Era uma ordem, tal como ele dissera. Tampouco tinha a certeza de que aquilo
seria um jogo.
Ela não devia gostar das subtilezas que o afetavam, mas o seu corpo gostava. Baixar o vestido excitava-a. O olhar tenaz e ardente de Ambury deu vida a centenas de
minúsculos redemoinhos quando ela fez deslizar a chemise pelos ombros. Depressa estava à frente dele, apenas de meias.
Ele pareceu-lhe demasiado composto. Demasiado dominador, tal como pretendia. Decidida a equilibrar um pouco o jogo, aproximou-se da cadeira dele, colocou o joelho
entre as pernas dele e debruçou-se para o beijar. Fê-lo com mais agressividade do que o normal e sentiu os efeitos na virilidade crescente que o joelho comprimia.
Interrompeu o beijo e esperou que a boca dele lhe tocasse o corpo. Em vez disso, ele deu-lhe um beijo rápido no rosto.
– Vá para a cama, Cassandra.
Um pouco desiludida, caminhou até à cama. Era uma cama grande, para a qual teve de subir. Atirou-se para cima dela. Ficou de barriga para baixo e apoiou-se nos braços
para o ver.
Ambury levantou-se e despiu-se. Não demorou muito. Fê-la recordar aquele dia na costa, em que ele se despira para entrar no mar. As cortinas do quarto não estavam
corridas, por conseguinte a luz límpida revelava a sua força esguia da mesma forma que o sol fizera naquele dia. Já se tinham visto nus com bastante frequência,
mas era a primeira vez desde aquele dia que o via nu à luz do dia.
Ele apoiou um joelho ao lado dela e beijou-a entre os ombros. Um outro beijo mais abaixo. Mais um no fundo das costas. Depois sentiu-o atrás de si, erguendo-lhe
as ancas.
– Ajoelhe-se.
Um tremor profundo desceu-a por dentro, reunindo-se na sua vulva. Ajoelhou-se e ele ergueu-lhe um pouco mais as nádegas. A posição e a vulnerabilidade que sentia
originavam um misto desconcertante de expectativa e de medo. Os seios roçavam os lençóis, excitando-a ainda mais.
Ele tocou-a e imediatamente um ardor obsessivo tomou conta dela. Não era um toque destinado a agradar. Não a provocava nem acariciava. Afagava-a com convicção, preparando-a
para ele. Assim que ficou pronta, ele entrou com tanta profundidade que ela ficou sem fôlego.
Possuiu-a. Retirou o prazer que desejou do corpo dela, usando-o a seu bel-prazer. Ela também retirou o dela, um prazer selvagem desprovido de artifício ou ternura.
Ele devorou-a, e ela adorou ser devorada. Atingiu o clímax primeiro, antes de as impiedosas estocadas finais lhe oferecerem a ele a consumação. Ele soltou-a, então,
e ambos caíram na cama, com os membros nus emaranhados.
Daquela vez, ela não desfrutou da saciedade. Ficou deitada de lado, com o braço dele, forte, atrás de si, e alerta à diferença do que acabara de acontecer.
Fora espantoso, de certa forma, mas ela não teria gostado que tivesse sido assim da primeira vez com ele, nem que fosse sempre. Não podia ignorar que tinha havido
muito poucos preliminares e ainda menos intimidade. Nem beijos ou carícias. Nenhuma atenção deliberada aos seios e ao corpo dela. De vez em quando, seria excitante.
Todas as noites, porém, não previa gostar da fria indiferença que todo o ato implicava.
Esperou por mais algum sinal que indicasse como seria dali para a frente. Podia ser qualquer coisa, até um beijo no ombro. Seguramente que, com as amantes, ele não
se limitava a garantir que atingissem o clímax.
Ele mexeu-se e ela sentiu a reação da cama à sua saída. Fechou os olhos e ouviu os sons de roupa a ser vestida. Então, os passos dele cruzaram o quarto.
Ela pensou que ele tinha saído e abriu os olhos. Em vez disso, deparou com ele ao seu lado, a olhar para baixo. Ele esticou o braço e deslizou-lhe uma mão pelo rosto
numa carícia que afastou algumas madeixas desalinhadas de cabelo.
– Vou mandar preparar-lhe um banho.
Depois saiu.
Ela sentou-se entre os lençóis húmidos e os cheiros eróticos da cama. Um banho e uma carícia. Pelo menos era alguma coisa.
Yates deteve o cavalo no cimo de um pequeno planalto. Observou a paisagem à sua volta. Era, sobretudo, plana e o mar próximo adentrara-se, criando, ao fundo, uma
linha costeira irregular e mutável. Áreas de pântano alternavam com terras aráveis que cingiam qualquer elevação presente.
Teve de se rir de si próprio quando analisou a paisagem tão pouco promissora. Devia ter dado ouvidos ao pai e deixado o assunto em paz. Não admirava que a contestação
nunca tivesse sido investigada. Se o resto da propriedade fosse assim, só tinha vindo perder tempo. Mais valia ter ficado em Elmswood com Cassandra.
Visto que já viajara tanto, fez o resto do caminho. Meia hora depois, aproximou-se de um rebanho pastoreado por dois cães e um homem. Yates saudou o sujeito, que
o inspecionou seriamente antes de lhe retribuir o cumprimento. As roupas indicavam que o homem não seria pastor, mas sim rendeiro. Trazia vestido um casaco que,
embora velho, lhe dava um aspeto fidalgo.
Yates saltou do cavalo e apresentou-se. Mr. Harper, que reparara claramente nos casacos e na sela de Yates, alegrou-se quando percebeu que o visitante era aristocrata.
– Vêm tratar de pôr algumas defesas, finalmente? – perguntou. – Não sei o que é preciso para o Parlamento e os serviços atuarem. Pelas luzes nos pântanos, à noite,
é fácil ver que alguém anda a tramar alguma. Estiveram alguns homens aqui em junho, para ver como as coisas iam, e eu disse-lhes isso. Agora com os irlandeses, que
só falta entregarem a costa oeste ao inimigo, estou a pensar mandar a minha mulher para a família que vive a norte, por proteção.
Yates perscrutou a costa. Não era muito longe ir dali a Southampton, por isso duvidava de que houvesse algum perigo. Era evidente, contudo, que Mr. Harper se sentia
vulnerável. O terreno podia não ser acolhedor para os desembarques dos franceses, pequenos ou grandes, mas também significava isolamento para os poucos que ali viviam.
– Não falo pelo exército nem pela marinha – replicou Yates. – Mas transmitirei aos responsáveis aquilo que vejo aqui.
Mr. Harper decidiu que se tratava de um convite para lhe mostrar tudo quanto havia. Apontou para os sítios onde alegadamente vira luzes e levou-o até a uma zona
especialmente pantanosa para indicar um barco abandonado. Pareceu a Yates que este se encontrava meio apodrecido, e pareceu-lhe que já lá estaria há alguns anos.
Deixou Harper falar, pois o homem tinha muito a dizer. Só uma hora mais tarde, quando regressavam ao sítio onde os cães guardavam as ovelhas, é que abordou a verdadeira
razão da sua visita.
– É rendeiro, Mr. Harper? Ou esta terra é sua?
– Espero, se algum dia tiver terra, que seja melhor do que esta, senhor.
– E de quem é ela, então?
– Bom, isso não é evidente.
– Tem de pagar as suas rendas a alguém.
Mr. Harper riu-se.
– O dinheiro sai-me da carteira, isso é certo. Se e como vai parar a outra depois, já não sei.
– Certamente que vai parar à carteira da pessoa a quem deu a sua assinatura.
– Pois assim seria esperado. Estava a contar com isso. Mas a minha família assinou com uma pessoa e depois a terra foi vendida a outra.
Caminharam lentamente até ao rebanho. A massa de ovelhas arrastou-se como se fosse um animal grande e disforme, servido por inúmeras patas.
– Com quem é que assinou?
– Com um feitor. O meu pai disse-me que a propriedade pertencia a Highburton quando ficámos com ela. Isso foi... oh... faz uns bons trinta anos que ele me disse
isso, e a minha família estava cá há pelo menos outros tantos. Mas a certa altura começou a vir outro feitor buscar as rendas, quando eu era rapaz. Quando eu passei
a tomar conta, disse-lhe que precisávamos de alguns melhoramentos e que perguntasse sobre isso a Highburton. Foi aí que soube que já não era ele.
Parecia a Yates que Mr. Harper devia ter uns quarenta e tal anos. O seu tempo de rapaz tinha passado há muito. Fosse qual fosse a disputa que envolvesse a propriedade,
acontecera bem lá atrás.
– Qual é o nome do feitor que vem buscar as rendas, agora?
Mr. Harper olhou para ele com ceticismo.
– Vai querer falar com ele? Se pensa em comprá-la, saiba que não serve para nada a não ser ovelhas e, mesmo para isso, mal. Por isso não vale a pensa pensar em mais
rendas.
– Ninguém está à procura de aumentar as rendas. Tenho a certeza de que, quem quer que seja o proprietário destas terras, está grato pela sua longa permanência e
nenhum proprietário futuro desejará vê-la terminada. Pergunto em nome de um familiar que mostrou interesse. Vejo que não serve para muito, mas prometi investigar
o assunto.
– Bom, se as rendas ficarem iguais, não me faz muita diferença quem tem interesse. O homem com que tratava, há anos que deixou de vir. Agora não vem ninguém. Mando
as rendas para a cidade, para o Banco de Inglaterra.
Parecia que a propriedade fazia parte de um fideicomisso. Se assim fosse, seria difícil saber muito mais acerca dela.
Agradeceu a Mr. Harper e montou no cavalo para dar uma volta pelo resto da propriedade e ver se era tão pouco promissora como aquela secção.
Cassandra acomodou-se no divã da biblioteca e encavalitou o livro na barriga. Embora gostasse da companhia de Ambury, aqueles dois dias sozinha tinha sido muito
agradáveis. Eram as primeiras horas que passava a sós desde que fora para casa da mãe, e sentira falta de estar sozinha com os seus pensamentos e sem despesas de
conversa.
O ar agradavelmente fresco entrava por uma janela próxima. Os cheiros outonais e o friozinho do outono anunciavam que o calor do verão estaria vários meses sem regressar.
Perguntou-se se Ambury se comprazera com a desculpa para se ausentar durante alguns dias. Estava tão pouco habituado a ter uma companhia constante como ela. Era
verdade que a estadia ali lhes tinha proporcionado uma série de explorações sensuais, e homem nenhum se importava com aquilo.
Ao dizer-lhe que ele gostava de ter uma mulher que podia tratar como amante, dera-lhe permissão para fazer exatamente isso, ou assim parecia. O resultado fora espantoso.
Algumas das ordens que dera haviam-na chocado, embora ela nunca se tivesse permitido transparecê-lo. Havia gestos de afeto, também. E, porém, a intimidade essencial
das primeiras noites perdera-se, ainda que o prazer fosse mais do que satisfatório em todas elas.
Ele não se importava com as horas que passava na cama nessa altura. Também parecia apreciar os jantares para os quais os vizinhos do campo os convidavam, e as longas
cavalgadas de inspeção à propriedade. Contudo, uma proximidade tão grande nem sequer era normal entre marido e mulher, e ela suspeitava de que ele ansiava regressar
à cidade, com os seus clubes e atividades mais variados.
O dia límpido chamava-a e ela preteriu o livro em favor de um passeio pelo jardim. O percurso conduziu-a à galeria. Era um espaço alto, largo e bastante sombrio.
Quadros escuros revestiam as paredes, poucos dos quais de grande interesse. Muitos não eram sequer decifráveis. Decidiu pedir a Emma instruções de como os limpar.
No entanto, naquele dia a luz permitia maior visibilidade do que de outras vezes, e ela parou para admirar uma paisagem que lhe atraíra a atenção antes. Reparava
agora que incluía umas figurinhas minúsculas num ponto intermédio da cena. Duas delas transportavam algo, talvez um corpo amortalhado. A paisagem vasta e luxuriante
anulava qualquer funeral retratado.
Estavam vários retratos pendurados por cima da paisagem, dispostos em fila vertical até ao ornamento da cornija. O olhar de Cassandra subiu pela composição até ao
quadro da mulher que a encimava. Os olhos desta chamaram-lhe a atenção, assim como a boca e a linha do queixo. A semelhança com Ambury era notável. Os objetos de
adorno comunicavam que seria uma antiga condessa, e pelas roupas que trazia, talvez fosse a sua tetra...
Os pensamentos esfumaram-se. O olhar dela estacou na peruca empoada da senhora e nos brincos que pendiam por detrás dos exagerados caracóis.
Semicerrou os olhos para olhar bem para eles. O verniz antigo obscurecia-os grandemente, mas, a não ser que os seus olhos a enganassem, parecia-lhe que, por baixo
da camada amarela, safiras pendiam de engastes onde se viam cravados grandes diamantes.
Sentiu uma desilusão aguda no coração.
Ambury andava a investigar a tia dela, mas não era para um qualquer indivíduo. Julgava que os brincos haviam sido roubados à sua própria família.
A mente de Cassandra revirava-se em pensamentos do que significaria aquilo e se a promessa que ele fizera de proteger a tia Sophie fora honesta. Andando de um lado
para o outro debaixo do olhar daquela antecessora, rogou pragas a si própria pela imprudência que cometera.
Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer, desde que não comprometa a minha honra. Servir-lhe-ia de muito se ele concluísse que a tia Sophie
era uma ladra.
Murmurou mais impropérios para si própria, por não ser capaz de perceber o que ele tramava e por não entender o peso que ele dava àquela promessa. Precisava de falar
com Sophie e pedir-lhe a verdade com muita clareza, para ser capaz de encontrar uma forma de lhe oferecer proteção.
Enquanto ponderava e planificava, um criado entrou na galeria. Transportava uma salva onde se via uma carta. Reconhecia a caligrafia da tia a dois metros de distância
e apressou-se a pegar nela. Disse ao criado que aguardasse porque tencionava escrever uma resposta rápida. Enquanto ele se retirava, ela quebrou o selo.
«Perigo! Drama! Um novo salvamento! É por esta razão que lhe escrevo, querida Cassandra», assim se iniciava a carta de Sophie. Alarmada, Cassandra devorou o resto.
«O seu aborrecido irmão voltou aqui para me tirar de casa. Felizmente, os criados do Highburton negaram-lhe a entrada. Graças a Deus que conseguiu que o Angus viesse
substituir o Sean». Cassandra não sabia de nada. Se um escocês viera substituir o outro, fora por mera coincidência. «Não há nada como um escocês robusto para pôr
um covarde como o Gerald a correr. Que desilusão que ele me saiu!»
«Ameaçou-me de alguma coisa com a lei e um advogado e uma convocatória iminente para o tribunal da Chancelaria. O Angus mandou chamar o Southwaite imediatamente.
Como desenlace, fui mudada para a casa da Emma, mas o Southwaite não pode ignorar uma convocatória do tribunal se esta chegar, e é só uma questão de tempo até o
Gerald descobrir que estou aqui. Seja como for, tenho a certeza de que estou protegida até a Cassandra regressar à cidade e decidirmos então o que fazer.»
«Não tem de se preocupar, querida. Agora está tudo bem.»
Não tinha de se preocupar? O irmão comportava-se como um louco. Já devia ter ficado a saber que ela e Cassandra estavam longe das suas garras. Aquela perseguição
à tia Sophie devia ter terminado, agora que ele já não tinha qualquer poder de coação.
Em vez disso, tentara raptá-la novamente. Como punição por Ambury lhe ter levado a melhor? Em retaliação por este lhe arruinar os planos? Talvez não fosse nada mais
do que a expressão do seu despeito e da sua raiva. Quem saberia quanto tempo mais continuaria com aquela atuação?
Assaltou-a todo o tipo de potenciais desenvolvimentos. Era possível que na semana seguinte, quando regressasse, descobrisse que Sophie tinha desaparecido e que Gerald
se intitulara seu guardião.
Não se atrevia a correr aquele risco.
Atravessou a galeria com passos decididos e disse ao criado que chamasse o mordomo.
Londres estava adormecida à hora que Yates parou o cavalo, após uma viagem extenuante praticamente sem descansar. Amarrou o animal à frente da casa da família e
entrou. Arrancou aos seus sonhos o criado que atendia à entrada ao tocar-lhe no ombro. Envergonhado, o homem levantou-se de um salto e foi imediatamente tratar do
cavalo.
Yates subiu as escadas até aos seus aposentos. Lá dentro, tirou o casaco e a camisa e lavou-se com a água que um criado lhe trouxe. Higgins fora deixado em Elmswood
e vinha de carruagem, por isso tratou de si próprio.
Assim que soube que Cassandra tinha saído de Elmswood Manor apressadamente, ele próprio fizera o mesmo, embora não fosse evidente se tal seria necessário. Apenas
conseguira saber pelo mordomo que chegara da cidade uma carta que reclamara a presença dela lá. A explicação da senhora, um bilhete dizendo que a carta viera da
parte da tia, pouco fizera para clarificar o assunto.
Ele contara encontrar a casa adormecida, por isso surpreendeu-o deparar com um fio de luz por baixo da porta de Cassandra, quando avistou o corredor. Imaginara que
aguardaria pela manhã para inquirir por que razão a sua noiva tinha desaparecido, deixando somente uma frase como explicação. Aquela luz suscitou-lhe preocupações
que se sobrepuseram à irritação que transportou com ele durante as três horas que passou montado no cavalo.
Talvez a tia tivesse sofrido algum acidente ou se encontrasse doente. Talvez houvesse alguma situação trágica. Não gostava de pensar em Cassandra sentada sozinha
no quarto se tal fosse verdade.
Empurrou a porta e viu-a sentada à secretária, concentrada naquilo que escrevia. A luz da lâmpada dourava-lhe o perfil. Os olhos pareciam muito escuros, as pestanas
muito espessas, e os caracóis que lhe caíam em cascata pelas costas haviam-se furtado à disciplina imposta por uma qualquer escova.
Pegou numa cadeira pequena pelas costas, colocou-a ao lado da secretária de frente para ela e sentou-se. Ela pousou a caneta no suporte e enfiou a carta debaixo
do mata-borrão.
– Só contava consigo daqui a alguns dias – declarou ela. – Instruí o mordomo para lhe dizer que devia concluir tudo o que tinha necessidade de fazer no Essex e que
eu me orientaria aqui sozinha.
– Ele é demasiado discreto, e sensato, para transmitir uma mensagem como essa. Temeria que não me parecesse bem, a minha mulher dar-me autorização para fazer isto
e aquilo, e provavelmente recearia que eu pudesse culpar o mensageiro se mo transmitisse dessa forma.
As pestanas de Cassandra desceram-lhe sobre os olhos, deixando-o sem saber se o que ela escondia era humor, arrependimento ou rebeldia.
– As minhas desculpas. Saí tão à pressa que não pensei na forma mais adequada de o fazer.
– Não havia forma adequada de o fazer.
A frieza dominou o tom de voz de Cassandra ao responder:
– Ai não havia? Mesmo se uma emergência altera todos os planos?
Vasculhou nalguns papéis que estavam ao canto da secretária, tirou um e deu-lho.
Ele leu a dramática saudação de Sophie, depois o resto.
– Parece que o Southwaite tomou o assunto em mãos. Até a sua tia escreve que não é necessário preocupar-se.
– Também escreve que o Gerald ameaçou levar o assunto aos tribunais. O Southwaite não poderia desobedecer a nenhuma ordem que a convocasse, e não tem qualquer posição
para a defender. Recaía sobre mim a incumbência de procurar outro sítio onde ela ficar, rapidamente, no qual estivesse em segurança e o Gerald nunca pensasse em
procurá-la.
Ele bateu com a carta na madeira da secretária enquanto decidia se enveredava pela discussão necessária naquele momento ou mais tarde. Ela fitou-o, nada intimidada.
– Onde a colocou?
– Julgo que será melhor não o saber.
– Cassandra, é minha mulher. Sou responsável pelas suas ações. Preciso de saber o que fez, independentemente de isso lhe parecer bem ou não.
– Não se recusará aos tribunais, tal como o Southwaite. Pode impedir a entrada ao Gerald, mas não desobedecerá a uma convocatória.
– E a Cassandra, desobedeceria?
– Se necessário, sim.
– Não posso permiti-lo.
O olhar que lhe dirigiu comunicava o que a sensatez a impedia de dizer. Não importa o que pensa permitir.
– Sempre soube que é bastante ousada, Cassandra, e que não tem inclinação para obedecer a regras que não aceita. Suponho que não possa ficar surpreendido por se
recusar a ser uma mulher obediente.
– Sou bastante obediente, Ambury. No entanto, visto que me casei consigo para a proteger, não pode ficar surpreendido que eu lhe desobedeça para o fazer.
A discussão continuava a aguardar, qual tempestade no horizonte. Tornava o ambiente hostil e a conversa afiada. O olhar que ela lhe dirigiu desafiou-o a desalinhar
as nuvens negras, como se lhe aprouvesse uma boa tempestade.
Pela primeira vez, ele perguntou-se se, por tudo o que lhe era mais caro, se condenara a partilhar a vida com uma estranha. Não era pelo facto de ela ter desertado
tão depressa da lua de mel sem pensar por uma vez nos sentimentos dele. Nem sequer porque a lealdade que dedicava à tia prevalecia sobre a lealdade que lhe dedicava
a ele. E não era por ela ter comparado o casamento dos dois à relação entre amante e protetor, e o ter desafiado a fazer o mesmo.
A verdadeira razão estava na forma como ela o olhava.
Ela não confiava nele.
– Amanhã explico-lhe o que espero e o que não espero ver no seu comportamento no futuro. Por agora, vamos para a cama.
Ela olhou-lhe o peito nu e a pergunta transpareceu no olhar.
– Desejo-lhe boa noite, Cassandra – disse, levantando-se e afastando-se. – Passei demasiado tempo em cima de um cavalo e não tenho disposição de dar qualquer tipo
de lição à minha mulher hoje à noite.
Caminhou a passos largos até ao quarto. Lá dentro, não estava acesa nenhuma lâmpada e não teve vontade de ir buscar a do quarto de vestir. Sem tirar mais nenhuma
roupa, caiu em cima da cama e, quando o rosto tocou a colcha, já estava meio a dormir.
A mão sentiu um alto. Fechou-a para o agarrar. Suave e irregular, o invólucro era permeável ao tilintar do seu conteúdo.
Curioso, levantou-se e transportou a sua descoberta para o quarto de vestir. Assim que a lâmpada o iluminou, soube o que era.
Abriu o cordão da bolsa de veludo e deixou cair o conteúdo na palma da mão. Safiras e diamantes cintilaram. Um papel dobrado caiu ao chão. Pegou nele.
Pedi-os ao Prebles hoje à tarde. Os trinta dias terminaram. Visto que as nossas circunstâncias se alteraram, dou-lhos sem qualquer custo para si. Devolva-os ao cofre
da família, Ambury. Como futura condessa, acabarão por ser novamente meus, espero.
Pousou as joias e a mensagem que mostrava claramente que Cassandra já conhecia a razão pela qual ele insistira tanto em saber como é que os brincos tinham ficado
na posse da tia. Não admira que mostrasse tanta frieza e reserva em relação a ele, ainda há pouco. Claro que agora não confiava nele, se é que alguma vez confiara.
CAPÍTULO 21
Cassandra levantou-se cedo, colocando um fim misericordioso a uma noite muito inquieta. A conversa com Ambury repetira-se na sua mente durante o tempo todo que estivera
deitada, e esperava que vestir-se exorcizasse as memórias desconfortáveis.
Nunca o vira verdadeiramente irritado anteriormente, mas adivinhara em como não seria do tipo de homem de se pôr aos berros. Em vez disso, o estado de espírito que
o ocupava extravasava dele com uma intensidade silenciosa. O seu rosto tinha a capacidade de mostrar grande dureza quando ele não o amenizava com sorrisos e o humor
sagaz. Na noite anterior, quando ele se sentara na cadeira que atirara para perto da escrivaninha, parecera-lhe uma escultura de gelo.
Aquela raiva profunda não fazia qualquer sentido. Ele sabia para onde ela fora, e porquê. É verdade, o plano fora passarem duas semanas juntos no Essex e habituarem-se
um ao outro como casal que eram. No entanto, a união dos dois não fora de amor e a partida dela dificilmente interrompera um idílio romântico há muito aguardado.
Saiu de casa vestida para o dia e dirigiu-se a passos largos para Oxford Street. Por muito que desfiasse argumentos, o óbvio desagrado com que ele a confrontara
deixara-a inquieta e um pouco triste. A reação dele fazia ainda menos sentido do que o seu comportamento. Dos dois, era ela quem tinha direito de estar irritada,
não ele. Não lhe via razão para tanta sobranceria. Não poderia, por nada, alegar que ela o havia magoado.
Sentiu um alerta quando a palavra lhe ocorreu. Pressentira-a nele, assim como alguma consternação. Tentou rejeitar aquela ideia como sendo ainda menos lógica do
que todas as outras. Não tinha a capacidade de magoar Ambury, disso tinha a certeza. Contudo, não conseguia deixar de sentir que a conversa da noite anterior revelara
uma brecha entre os dois que não constava das que conheciam quando proferiram os votos em casa de Kendale.
Uma melancolia voltou a avolumar-se dentro dela. A tristeza incluía uma sensação de perda, talvez pela familiaridade fácil que ela e Ambury partilhavam. Prosseguiu
o caminho, esperando que o peso que lhe dominava o humor aligeirasse com o passar do dia.
Uma hora depois, saiu de uma carruagem alugada em frente à Fairbourne’s. O edifício tinha um aspeto frio e quedo. Confiava que Emma recebera a carta que ela tinha
enviado no dia anterior e que tratara das coisas que lhe pedira. Quando deparou com a porta da frente destrancada, soube que sim.
Outras provas de que tudo se encontrava em ordem alinhavam-se na grande parede da galeria. Viam-se alguns quadros, incluindo a estranha pintura de cariz primitivo
que tanto apaixonara Emma quando chegara para avaliação.
Emma saiu do escritório, fresca e adorável num vestido verde- -claro que combinava com o cabelo castanho igualmente claro. Deu um beijo a Cassandra, recuou um passo
e cruzou os braços.
– O que anda a tramar? O Southwaite não ficou satisfeito por ter feito desaparecer a sua tia quando ele não estava em casa. Deu-me indicações para descobrir para
onde a levou.
– Seria melhor ele não saber, o que significa que a Emma também não saberá.
– A preocupação dele é a segurança dela. Espero que saiba disso, Cassandra. Não quer que o seu irmão volte a levá-la.
– O seu marido faz parte do governo e jurou preservar o primado da lei. Por favor não insista para que lhe dê o paradeiro dela, Emma. Sabe que tenho razão em guardar
segredo.
– Até do Ambury?
– Sim.
Especialmente de Ambury.
– Vai enfrentar o mundo inteiro, sozinha? E agora, a vinda de Herr Werner. Vai dizer-me porque me fez convidá-lo para ver estes quadros?
Herr Werner era o emissário particular do conde Alexis von Kardstadt, membro da família real da Baviera, que trouxera a coleção de arte do seu amo para Londres na
primavera anterior. Os quadros do conde tinham sido a principal atração do leilão da Fairbourne’s, no qual Cassandra vendera também as suas joias.
Herr Werner sabia como é que a tia Sophie acumulara as suas joias, porque o conde fora um dos amantes que a presenteara com algumas. Cassandra esperava convencê-lo
a explicar o que sabia a Ambury, para debelar qualquer suspeita de que a tia Sophie pudesse tê-las roubado.
– Presumo que ele cá esteja não só para vender, mas também para comprar. Com os fundos daquele leilão a pesar-lhe na bolsa, ocorreu-me que a sua leiloeira poderia
ser um bom sítio para ele começar a aliviar a sua carga.
– Que bondade sua pensar no melhor interesse da Fairbourne’s. Sei que há mais alguma coisa por trás, mas permito-lhe que guarde reserva sobre esse assunto também,
se insistir.
Cassandra pegou nas mãos de Emma.
– Sente-se magoada por eu não me abrir consigo? Deveria contar-lhe tudo e deixá-la a si a braços com a tarefa de decidir o que contar ao seu marido se ele lhe pedir
informação? Não quero ser fonte de descontentamento dele em relação a si.
Emma sorriu com pesar a apertou as mãos da amiga.
– Tornou-se complexo, não foi? Gerir a nossa amizade, agora que estamos casadas. Não estou magoada, mas preocupo-me consigo.
Cassandra procurou tranquilizá-la, mas sons vindos da rua distraíram-nas. A vistosa carruagem que Herr Werner se acostumara a usar em Londres parara à frente do
edifício.
Herr Werner tinha um aspeto muito diferente daquele que apresentara no início do verão. Um corte de cabelo elegante dava-lhe aos caracóis louros um aspeto desalinhado.
As roupas tinham perdido o toque militar da sua primeira visita. Quando se aproximou de Emma, mostrou toda a deferência com que tratara o marido, mas um brilho de
familiaridade notou-se no olhar, talvez devido ao facto de a ter conhecido quando ela era apenas a filha de um leiloeiro.
– Condessa – cumprimentou, beijando-lhe a mão. – Foi gentil da sua parte pensar no meu amo, com relação às raridades que a sua família descobriu. Estou ansioso por
as ver.
– Não ficará desiludido. Lembra-se de Lady Cassandra Vernham, tenho a certeza. Ela também veio examinar os quadros.
– Claro. Minha senhora – cumprimentou, beijando a mão de Cassandra. – Agora, sinto-me duplamente grato pelo convite. Fico tão satisfeito por me encontrar em Londres
nesta altura. Tem sido raro nos últimos meses. A hospitalidade de incontáveis cavalheiros têm-me permitido viajar pelo vosso fascinante país.
– Vamos apreciar arte juntos, Herr Werner, e conversar sobre as suas viagens – convidou Cassandra.
Aceitou, então, o acordo dele e o seu braço. Espreitou Emma por cima do ombro, quando começaram a andar e abanou a cabeça quando esta fez menção de os seguir.
Pararam em frente ao pequeno quadro, primitivo e peculiar, de que Emma gostara. Herr Werner parecia tão desconcertado como Emma quanto ao seu valor. Cassandra repetiu
o que ouvira Emma dizer sobre a sua antiguidade.
– Tem aproveitado para caçar nos condados que visita? – perguntou, quando retomaram a marcha.
– Como é que adivinhou? Pelo bronzeado do rosto, não? Nem um bom chapéu consegue poupar-nos ao sol de horas. É com alívio que lhe digo que me familiarizei muito
bem com os mosquetes. Como representante do conde, não queria parecer desastrado.
Representante do conde, agora, já não um seu criado. Herr Werner procedera a uma elevação de estatuto durante os meses passados em Inglaterra, o que explicava a
hospitalidade generosa por parte dos outros cavalheiros.
Cassandra inclinou-se para examinar o quadro holandês que retratava o interior de uma casa.
– A mulher deste quadro faz-me lembrar a minha tia.
Ele observou-o também.
– Espero que Lady Sophie esteja bem.
– Está tão bem como quando a viu, em março. Foi a última pessoa que ela recebeu, porém, e praticamente a única no espaço de um ano. A sua amizade deve ser excecional.
– A honra não foi minha, mas sim do conde, como também a amizade.
– Ele deve ter ficado satisfeito por saber que recuperou o rubi. Era uma peça magnífica. Tive pena de a perder.
Notou um decréscimo de provavelmente vinte por cento no leilão depois de Sophie a fazer devolver o colar de rubi e pérolas a Herr Werner.
– Foi mais alívio do que alegria, julgo eu. É uma joia de família importante, com uma longa história, que faz parte do tesouro da família.
– Ele devia estar completamente apaixonado, para lha oferecer – comentou ela com uma gargalhada. – Ouvi dizer que a minha tia tinha esse efeito nos homens. Foi sensato
da parte dela reconhecer que o arrependimento não tinha a ver com a paixão, mas sim com uma generosidade irrefreada. Uma mulher diferente podia tê-lo mandado embora
de mãos vazias.
O olhar de Herr Werner continuava no quadro holandês.
– O conde é muito generoso, e não tem arrependimentos, isso é verdade. Mas não é imprudente no que diz respeito a mulheres e nunca lhe faltaria a moderação ao ponto
de oferecer uma joia de família a uma amante passageira.
Passou ao quadro seguinte. Cassandra permaneceu no mesmo lugar, tentando vencer a amarga desilusão. Herr Werner acabava de lhe dizer que o colar não fora nenhum
presente amoroso. E as outras joias todas?
Fora cega em não o ver, há tantos anos. Herr Werner tinha razão: condes não ofereciam de presente joias de família às suas amantes. Compravam outras joias se quisessem
coroá-las.
Ver joias de família a ornar o corpo de uma amante... Ela pensara que as anotações tinham sido feitas para a tia Sophie se assegurar de que aquilo não acontecia.
Agora, ao que tudo indicava, as notas tinham como único objetivo garantir, desde logo, que este aristocrata ou aquele príncipe não soubessem quem subtraíra os tesouros.
Não. Ela não pensaria tais coisas acerca da tia Sophie. Era injusto e indigno fazê-lo.
Herr Werner voltou para junto dela.
– Talvez devesse ter sido mais discreto. Presumi que sabia, uma vez que cedeu tão facilmente o colar. Tem de compreender... Não posso deixar que alguém diga que
o conde exige a devolução de presentes que deu de livre vontade. Coloca em causa a sua honra.
– Está a sugerir que não foram dados de livre vontade? Duvido que ela lhe tenha encostado uma pistola à cabeça para que lhe fossem oferecidos de presente.
– Agora ficou perturbada, e irritada. Lamento. Digamos que houve um equívoco que resultou na aquisição das joias por parte da sua tia. Foi assim que o conde expôs
o assunto na carta que lhe escreveu, e ela aceitou a visão dele assim que leu as suas palavras.
Um equívoco? Que tipo de equívoco poderia ser? O conde era um canalha que se arrependera do presente dado depois de arrefecido o caso amoroso, nada mais. A única
alternativa era impensável.
Não obstante, surgiu-lhe uma memória. Recente, de uma tia Sophie grisalha e discreta a esgueirar-se para dentro da biblioteca de Ambury enquanto o criado deste era
distraído por outra pessoa.
Depois, acorreram outras, da sua viagem com Sophie, de ser o centro das atenções em salões, em que deslumbrava aristocratas como Sophie costumava fazer, enquanto
esta desaparecia. Não acreditava que a tia se pusesse a vasculhar estojos de joias nos quartos de vestir. Era errado pensar sequer uma coisa daquelas. E, contudo...
Herr Werner ofereceu-lhe novamente o braço. Quando ela o aceitou, hesitante, deu-lhe palmadinhas na mão.
– Vamos ver o resto dos quadros enquanto se acalma, cara senhora.
– Foi uma perda de tempo, tal como na convocatória anterior – comunicou Kendale. – Luzes no mar, disseram-me. Se havia algumas, eram das nossas próprias forças navais.
O mar está cheio delas, embora não seja evidente o que fariam se uma frota francesa carregasse contra elas.
Relatava o acontecido enquanto observava, com Yates e Southwaite, um jovem cavalo castrado ser arrebatado no Tattersall’s. Homens de todas as proveniências enchiam
o pátio, muitos dos quais se concentravam junto da bancada onde o leiloeiro incitava às licitações.
Southwaite fora vender, e talvez comprar. Yates fora fazer companhia a Southwaite até um dos seus garanhões ser posto à venda. Presumia que Kendale se tivesse juntado
a eles para alguém o ouvir queixar-se.
– Eles não saberiam o que fazer – comentou Southwaite. – Você sim. É por essa razão que é sensato ser o Kendale a atender as convocatórias quando elas nos chegam.
– Não me insulte elogiando-me como a um rapazinho. Qualquer um de nós saberia o que fazer. Sou eu sempre quem vai porque vocês se aproveitam de mim. Que diabo! Da
próxima vez será um de vós, não eu.
– Não é que passemos o tempo todo em festa – interpelou Yates. – O casamento não é só prazer. Logo verá. Vai saber a que me refiro.
– Não será para breve, depois de um testemunho como esse. Que diabo, Ambury. Só disse os votos há quinze dias e de repente parece um homem casado há quarenta anos.
– Só é assim porque, enquanto você tinha o traseiro em cima da sela, eu tive o meu quase o dia inteiro espalmado na cadeira de um advogado. Como os deveres maritais
me ocupam, não me sinto inclinado a simpatizar com um homem que não tem obrigações nessa área.
Voltou a prestar atenção aos homens que circulavam à volta deles, procurando avistar um em particular.
– Ele não está com grande disposição, Southwaite, e não me parece que a razão seja a tal cadeira do advogado. Sabe o que se passa?
– Consigo adivinhar. Já descobriu o paradeiro da tia de Cassandra, Ambury?
– Nem sequer cheguei a tentar. Conto saber tudo de que preciso mais logo.
– Conta? Eu contava ficar a saber de tudo ontem e, contudo, aqui estou, ignorante ainda.
– A tia perdeu-se? – perguntou Kendale. – Se se perdeu, não devem ficar aqui. Diga-me o que sabe, e eu ajudo-o a encontrá-la.
Yates lançou um olhar demolidor a Southwaite, por ter mencionado o assunto.
– Não se perdeu dessa forma. Foi-me garantido que está num sítio muito seguro.
– Um sítio que só uma pessoa sabe qual é – acrescentou Southwaite. – Se a minha mulher soubesse, tenho a certeza de que me informaria, como eu lhe ordenei. Uma vez
que não...
– Ah! – fez Kendale, eliminando em grande medida qualquer vestígio de humor da sua expressão, mas os olhos traíram-no. – Então é por essa razão que o casamento não
está a ser divertido, Ambury. Teve um desentendimento com a sua mulher enquanto eu estive fora. Não pode estar assim tão surpreendido por ela ser desobediente, se
possui um espírito tão invulnerável às restrições comezinhas.
Uma tempestade há dois dias latente, manifestou-se violentamente dentro de Ambury.
– Tenha muito cuidado com o que diz, Kendale. Está muito perto de a insultar, e eu não esperarei que seja explícito para o desafiar.
O sorriso ténue de Kendale desapareceu. Os olhos ganharam frieza.
– Já são dois homens prontos a matar por ela, o que é demasiado. Desobediente ou não, já lançou mão dos seus encantos. Uma vez que está completamente enfeitiçado,
desejo-lhe apenas felicidade na companhia da senhora.
Com isto, deu meia-volta e foi-se embora.
Yates fez menção de ir atrás dele, para lhe dar a tareia que precisava de dar a alguém para não rebentar, mas uma mão no braço deteve-o.
– É inegável que está de péssimo humor – disse Southwaite. – Mas não se deixe perder a razão. O que tinha na cabeça, a falar de duelos por uma coisa tão pequena?
– Ele insinuou...
– Nada de impróprio. Não gosta do facto de ela se recusar a dizer-lhe o que deseja saber, mas faz sentido quando ele diz que não deve surpreender-se por ela revelar
a mesma independência que sempre mostrou.
O facto de Cassandra não lhe ter revelado o paradeiro da tia ainda era o menos. Ressentia-se perdidamente pelo facto de ela ter decidido que ele não era de confiança,
e Ambury detestava que a descoberta da questão dos brincos lhe desse alguma razão.
Se aquilo fosse o princípio e o fim da história, o tempo e a lógica poderiam sanar tudo. No entanto, não lhe parecia que fosse assim.
Mesmo que naquele dia tivesse passado horas a registar as promessas que lhe fizera, espumava de raiva ao pensar na atitude que ela tivera na noite anterior, na saída
precipitada de Elmswood, no grau em que ela desejava preservar a sua independência de todas as formas possíveis. Era como se ela tivesse examinado a aliança deles,
pegado numa caneta e desenhado uma caixa à volta dele, e outra à volta dela, com uma única linha comunicante denominada «prazer». Não gostava daquilo. Ela era a
mulher dele, que raio!
Sacudiu a mão de Southwaite.
– Com licença. Tenho estado à procura de alguém e vou à sala dos subscritores para ver se essa pessoa lá está.
Só os membros do Jockey Club tinham acesso à sala dos subscritores do Tattersall’s, que servia de posto avançado daquele em Londres. Yates entrou pela porta do pátio.
O criado que estava de plantão saudou-o.
Não havia mesas nem cadeiras confortáveis. Ali, ninguém jogava às cartas nem havia nenhuma biblioteca a incentivar explorações intelectuais. Ao centro, uma mesa
fornecia utensílios de escrita e papel para registar apostas, mas, tirando isso, as paredes com painéis e o teto alto com a sua claraboia quadrada encerravam pouca
mobília. Os homens dirigiam-se ali principalmente para jogar, e as probabilidades que se definiam naquela sala ditavam aquelas que se jogavam por toda a Inglaterra
nas corridas maiores.
Yates ganhara e perdera a sua quota-parte de apostas no passado, mas não se encontrava ali para jogar novamente. Olhou os homens que conversavam e faziam tempo até
que o cavalo que cobiçavam saísse para o pátio. Avistou aquele que procurava quando um grupo de vultos a um canto se deslocou, revelando-o ao centro.
Yates aproximou-se e juntou-se ao grupo de aduladores. Um a um, os outros notaram a sua presença e afastaram-se, olhando por cima do ombro com ar desconfiado. Rapidamente
Yates se viu a sós com a sua presa.
– Parece que o mundo inteiro sabe que raramente nos falamos, agora, e receia que a conversa possa acabar mal – disse Penthurst.
– A proximidade do seu julgamento provavelmente pô-los a esperar o pior. Ou a esperar que aconteça. A cidade tem andado aborrecida, e dava-lhes jeito algum teatro
– declarou Yates.
– Veio desejar-me um bom julgamento? Ou dizer que espera que aconteça o impossível e eu acabe pendurado de uma corda?
Penthurst não acabaria enforcado. Nos tempos presentes, isso não acontecia a duques, muito menos por causa de um duelo. Ele diria que fora uma questão de honra,
os lordes concordariam e tudo estaria terminado.
– Não tencionava falar de todo disso, mas de uma outra coisa.
– Claro.
O tom de voz dele implicava que a recusa em falar daquele duelo era uma falta de carácter, previsível, aliás.
Yates combateu a vontade de falar sobre o assunto, longamente e a viva voz. Passara mais de seis meses a imaginar-se a enviar Penthurst para o diabo, por não ter
encontrado uma forma de recusar o duelo, ou de o terminar de forma diferente. Se começasse, não iria parar, e logo naquele dia. Os homens que os observavam teriam
o seu drama, pela certa.
– Por acaso sabe se os planos para erguer torres na costa estão a avançar? – perguntou, então.
Penthurst era amigo íntimo de Pitt e, embora recusasse qualquer ministério, parecia saber de quase tudo antes de qualquer outra pessoa.
– Não serão verdadeiramente torres, mas as fortificações servirão o mesmo propósito – respondeu Penthurst. – Há quem pense que é insensato e um desperdício de dinheiro.
Ganhou vida própria, porém, desde aquela história na Irlanda.
– Já se sabe onde irão construí-las?
– Está a ser decidido, julgo.
– Por quem?
Penthurst sorriu aquele sorriso que, gostando-se dele, até era tranquilizador, mas decididamente irritante, se não.
– O Highburton tem alguma localização em particular que gostasse de recomendar? Se sim, terá de se pôr na fila com todos os outros proprietários que acalentam a
possibilidade de arrendar ao governo a preços inflacionados e de comer do mesmo tacho.
– O dinheiro não me interessa. Gostaria de ter uma propriedade na lista por outras razões. Seria retirada mais tarde. Não chegaria a ser arrendada.
Penthurst fitou-o com dois olhos ponderados, escuros e fundos.
– Está a tramar alguma. Visto que é você, sei que não se trata da primeira coisa que me ocorre, que é fraude. Uma das suas investigações?
– Pode chamar-lhe assim.
– Em nome de quem?
– Do meu pai.
Os olhos escuros de Penthurst limitaram-se a continuar a olhar, profundamente.
– Como é que ele está?
– Melhor. Por enquanto.
Penthurst assentiu com a cabeça. Caminhou até ao centro da sala, em direção à mesa. O mar de corpos afastou-se para desenhar um corredor para ele, como se a sua
mera proximidade provocasse deferência nos outros. Ou desejo de largueza.
Pegou numa caneta.
– Presumo que tenha a localização da propriedade.
Yates pegou na caneta e anotou a informação.
– Há um rendeiro na localização mais provável, mas tem a certeza de que chegam franceses todas as noites, por isso não se oporá.
Penthurst pegou no papel e leu-o.
– Que peculiar. Posso poupar-nos tempo aos dois. Tenho a certeza de que esta propriedade já se encontra na lista. Não como posse de Highburton, porém. Parte de um
fideicomisso, se bem me lembro. O peculiar é a razão pela qual reparei nela.
– Sabe quem é que diligenciou para que fosse incluída?
– Não. Não me subornaram a mim.
– Consegue descobrir?
Matava-o pedir-lho. A pergunta parecia não querer fazer-se.
Penthurst deixou-a pairar no ar durante um bom bocado. Por fim, encolheu os ombros.
– Possivelmente, vou ver. – Dobrou o papel. – Ainda não o felicitei pelo seu casamento, Ambury. É uma mulher muito bela. Sempre julguei que os boatos a respeito
dela eram iniciados por senhoras pouco dotadas e muito ciumentas.
De repente, voltavam a aproximar-se perigosamente de todo o drama.
– Se pensa isso, porque é que...?
– Porque é que, o quê?
– O Southwaite disse que o Lakewood o desafiou porque o ouviu insultar uma mulher.
– Foi uma mulher que esteve na origem de tudo, essa parte é verdadeira. Mas ele não me desafiou por causa de nenhum insulto que eu tenha proferido.
Então era pior. As possibilidades deixaram-no ainda mais mal-humorado. Recordou-se de quando entrara na casa de Mrs. Burton e vira Penthurst ao lado de Cassandra.
Pare de pensar como um louco, ou então vai acabar por se portar como um idiota.
– Como cavalheiro, compreende que não posso dizer quem é, claro. Nem a si. Nem aos lordes – declarou Penthurst. – Suponho que, se mo pedirem, e a minha recusa em
explicar não for aceite, vá acabar pendurado por uma corda.
– Se assim for, prometo não dançar na sua sepultura.
Penthurst deixou sair toda a irritação.
– É compreensível que a sua lealdade pertencesse a ele e não a mim. Há muitos anos que eram amigos. No entanto, ele não era inteiramente o homem que você julgava,
Ambury.
– Tenho a certeza de que os lordes acreditarão nisso, se o senhor o diz. Atendendo às circunstâncias, sou o último homem que se tem de preocupar em convencer. Agora,
tenho de ir. Agradeço-lhe desde já a sua ajuda com a propriedade, se puder. Como pagamento, dou-lhe um conselho.
– E qual é?
– Corte o cabelo. Dá-lhe um ar antiquado. O que era sinal de independência de gosto há um ano, daqui a seis meses parecerá simplesmente excêntrico.
– Tenho andado a pensar nisso, embora a minha amante vá amuar.
– Então talvez também esteja na altura de fazer alguma alteração nesse departamento.
CAPÍTULO 22
Depois de sair da Fairbourne’s, Cassandra deu um longo passeio por Hyde Park para aclarar as ideias. Sentia-se desgostosa com o desenrolar da conversa com Herr Werner.
Teria sido melhor ter deixado o assunto em paz.
Só lhe faltara dizer que Sophie tinha roubado o colar ao conde. Além disso, Ambury sempre acreditara que ela roubara os brincos a Highburton, e agora as provas apontavam
todas para isso.
A devolução dos brincos dificilmente resolveria o assunto. O que iria Ambury fazer? Alguma coisa honrada, o que poderia ser muito mau para a tia Sophie. Era possível
que ela estivesse mais segura no lar do Dr. Wakely.
Podia pegar na tia e fugir, mas para onde? Já não era livre e independente. Aonde quer que fosse, Ambury tinha todo o direito de a seguir. Tampouco, admitia, desejava
fugir. Fizera votos, e a honra, a sua honra, pedia-lhe que tentasse cumpri-los.
Começou a perguntar-se se não seria melhor simplesmente deixar a tia no sítio onde atualmente residia. O resfolegar de um cavalo ao lado do seu ombro arrancou-a
aos pensamentos. Virou a cabeça e reconheceu imediatamente o animal, e o seu companheiro que puxavam a carruagem. O cocheiro freou os cavalos.
Um lacaio saltou da parte de trás do veículo. Ela não esperou por ele e aproximou-se, decidida, da porta. Aquele apressou-se a abrir-lha e a descer os degraus. A
seguir, ajudou-a a subir.
Ambury estava no interior. Mudou de lugar para lhe deixar o do sentido da marcha. Ela instalou-se com vagar, preparando-se para uma viagem desconfortável.
– Há alguma razão para não ter saído numa das carruagens da família? – perguntou ele.
– Talvez tenha saído simplesmente para dar uma volta pelo quarteirão e tenha mudado de ideias, tendo sido mais fácil entrar numa carruagem de aluguer.
– Pensei que talvez não quisesse que nenhum criado conhecesse o seu destino.
– Também. Visto que me encontrou quando quis, parece que falhei. Disse-lhes para me seguirem?
– Não tive de o fazer. Por cuidado com a sua segurança, o mordomo enviou dois homens para precaver o seu passeio. Um regressou com a informação de que tinha vindo
para aqui. Passear sozinha é uma das coisas que deve deixar de fazer, se criou esse hábito. A cidade é demasiado perigosa.
Cassandra não gostou da ideia de deixar de poder deslocar-se sem levar um criado atrás dela, mas, claro, era assim que seria a partir de agora. Emma já tivera de
se acostumar. Um dia, contudo, ela e Emma teriam de encontrar uma forma de desfrutar de um dia sem as respetivas escoltas, só para elas, como costumavam fazer.
Os portões do parque desfilaram na janela, depois as casas de Mayfair.
– Onde vamos?
– Não muito longe. Há uma coisa que quero mostrar-lhe.
Parecia em tudo igual à noite anterior. Severo e distante. Não disse mais nada, porém. Nenhuma pergunta relativamente ao paradeiro da tia Sophie. Nenhum sermão sobre
o comportamento que esperava. Nenhuma palavra acerca dos brincos. O silêncio dele inquietava-a mais do que qualquer boa discussão.
Pararam em St. James’s Square. Cassandra viu através das árvores a casa de Emma, do outro lado. Ambury saiu da carruagem e ofereceu-lhe a mão.
Ela acedeu e olhou em redor, perplexa.
– O Prebles colocou um agente imobiliário à procura de casas para arrendar – principiou ele. – Esta parece ser a melhor das propostas apresentadas. O que lhe parece?
Ela contemplou a fachada por detrás da carruagem. Era de bom tamanho, muito à semelhança da de Southwaite.
– É muito bonita. Aprecio a localização próxima da Emma.
– Julguei que apreciasse. Assinei o arrendamento esta manhã.
Tinha a chave com ele. Ela entrou e deparou com quartos espaçosos de janelas compridas e boas proporções. A casa estava equipada com mobília agradável que seria
mais do que adequada.
Subiram as escadas.
– Quando é que nos mudamos?
– Suponho que possamos fazê-lo assim que o pessoal for contratado. Os criados de Highburton estiveram aqui hoje, a limpar e a fazer as camas.
Os aposentos da senhora da casa tinham sido decorados em cores creme e verde-claro. A cama ostentava cortinas estampadas, que, tal como o resto dos tecidos, tinham
um aspeto tão limpo que só podia ser obra dos criados.
Gostou especialmente do novo quarto de vestir. Não era de longe tão amplo como o que ocupava atualmente, mas aquela dimensão tornava-o mais privado. A janela tinha
um assento acolhedor, do qual se viam os jardins das traseiras.
Ela sentou-se e admirou a vista.
– Julgo que me será muito agradável viver aqui.
– Fico contente.
Ele aproximou-se e olhou para ela.
– Fica muito bonita à luz desta janela, Cassandra. Julgo que me será muito agradável vê-la sentada neste recanto da nossa casa.
O comentário elogioso surpreendeu-a. Ele parecia sincero, ainda que não se mostrasse muito afável. A forma como a olhava deixava-a afogueada e inquieta. Por um momento,
não lhe pareceu tão distante como se mostrara na carruagem. Alguma da familiaridade que com facilidade se forjara durante as primeiras noites visitou-os.
Deveriam estar a ter uma discussão, não um momento romântico.
Ele pôs a mão dentro do casaco e tirou alguma coisa. Pegou na mão dela e despejou o conteúdo de um saquinho de veludo. Os brincos.
Ah! Seria agora a discussão.
– Encontrei isto quando me fui deitar. E o seu bilhete. São o motivo da frieza da receção que me foi feita ontem à noite, parece-me.
– Em parte. A sua atitude convidava igualmente a alguma invernia.
– Era minha expectativa passar duas semanas a desfrutar da sua companhia. Fui lento a aceitar que a sua tia teria precedência sobre tudo o resto, incluindo o seu
marido.
Ali estava. A reprimenda que merecia uma boa discussão. Estaria magoado por ela não ter pensado nele primeiro? Ou tratar-se-ia apenas de orgulho e sentimento de
posse?
Na noite anterior, talvez tivesse perguntado e, ao fazê-lo, ter-lhe-ia mostrado a falta de lógica do ressentimento dele. A dedicação que tinha para com Sophie não
deveria surpreendê-lo. Afinal, fora ela que proporcionara o casamento dos dois.
Os acontecimentos do dia tinham-na deixado tão desanimada que escolheu não se pronunciar.
Ele indicou a mão dela.
– Como é que soube?
– Vi um retrato, com uma mulher que os usava – disse ela. – Foi assim que soube que pertencem à sua família. Assim como soube que tem investigado a minha tia com
aquelas perguntas todas sobre a história deles. Conhecia a sua proveniência final melhor do que eu.
– Não vou negá-lo. Devia ter-lhe explicado assim que casámos, mas os brincos e a investigação deixaram de ser prioritários durante algum tempo.
– Uma vez que já os recuperou, não é necessário que voltem a sê-lo.
– Não é assim tão simples.
O tom de voz dele pareceu-lhe mais tranquilizador do que autoritário. Ela teria preferido o último. Ele não ia deixar o assunto em paz.
– A minha tia comprou-os num penhorista.
– O meu pai acredita que foram roubados antes de o meu avô morrer. Julga que houve uma traição na família. Não diz de quem suspeita, mas julgo que suspeita de alguém.
Pegou-lhe novamente na mão e fechou-lhe os dedos sob as joias, para ela as agarrar.
– Ele quer saber. É importante para ele. Se não fosse, eu nunca teria investigado depois de os comprar no leilão.
Ela nunca levaria a melhor se se manifestasse contra o dever que ele sentia ter para com o pai.
– Um criado deve tê-los tirado e vendido ao penhorista.
Ele olhou pela janela que a enquadrava. Ela via que ele se debatia com alguma coisa.
– A sua tia tinha muitas joias, Cassandra.
– Os amantes dela...
– Uma quantidade enorme de joias.
Ela não conseguiu manter a postura de indignação durante mais tempo. O dia abalara a confiança que ela tinha em Sophie, e as forças abandonaram-na. Tudo se pusera
demasiado confuso. Desviou o olhar, derrotada e infeliz.
– Suplico-lhe que não conte ao meu irmão as suas suspeitas. Utilizá-las-ia da forma mais cruel.
Ele segurou-lhe no queixo e voltou a erguer-lhe o rosto.
– Eu disse que a protegeria independentemente do que acontecesse, desde que não comprometesse a minha honra.
Ela sentiu o coração partir-se. Proteger uma ladra provavelmente estaria fora de questão.
– Precisamos de saber se alguma das joias foram roubadas – avançou ele.
– E se tiverem sido?
Ele sentou-se ao seu lado ao abrigo da janela.
– Cassandra, se ela fez isto com outras joias, elas devem ser devolvidas aos donos. Não posso ter uma mulher a viver em minha casa com o conhecimento de que roubou
coisas que nunca restituiu.
– Não me parece que ela possa viver connosco, de qualquer maneira. O Gerald leva-a embora se assim for. Fá-lo-á para me punir, embora agora me encontre fora do alcance
dele. É evidente que não desistiu.
– Eu trato do seu irmão. Não se atreverá a tirar uma pessoa da minha casa. O Prebles está a preparar uma petição para o tribunal da Chancelaria que deve resolver
o assunto de uma vez por todas. O seu irmão não conseguirá ser guardião em meu lugar, portanto não deve preocupar-se mais com isso.
Ela inspirou profundamente para a ajudar a recompor-se, mas algumas lágrimas insistiram em turvar-lhe a visão. Apesar da raiva com que chegara na noite anterior,
apesar da receção fria que ela lhe fizera, ele passara o dia inteiro a diligenciar para cumprir a promessa feita.
– Fez isto, mesmo sabendo... isto é... mesmo suspeitando... que ela...
– Disse que o faria, não disse? Relativamente àquilo de que suspeito, preciso de saber o que temos em mãos, com a sua tia. Está na altura de me deixar falar com
ela.
– Nunca o impedi de falar com ela. Foi ela própria que o fez.
– Podia ter ajudado. Não o fez. Em lugar disso, atrasou e dificultou. Evitou saber a verdade, e eu permiti-o, por sentimento.
Permitira-o. Se pensava que havia sido roubada propriedade da família, ele poderia ter encontrado uma forma de falar com Sophie.
*
Yates aguardou, permitindo que os dedos hábeis de Cassandra lhe abrissem os botões da camisa. Estava à sua frente, nua, a fazer por ele o que ele tinha feito por
ela. Em redor dos dois, só o silêncio. Nem os sons da cidade penetravam naquele quarto virado para os jardins.
Não havia criados, nem mais alma nenhuma nas proximidades. Iria mudar muito em breve, mas naquele dia agradava-lhe o isolamento e a novidade do lugar.
Ela levantou para ele os olhos cheios de malícia enquanto lhe desapertava a roupa de baixo. O seu toque chegou deliberadamente além dos botões e do tecido.
– Estava a contar ter uma discussão terrível consigo hoje – disse. – Do tipo de discussão irreconciliável para um casal. Penso que talvez desejasse fazê-lo, mas
que escolheu outro caminho.
Fizera-o, e ao fazê-lo deixara coisas por dizer que provavelmente nem deviam ser ditas. Somente votos não eram o bastante para criar confiança, muito menos lealdade.
Ela empurrou-lhe a roupa para baixo e segurou-lhe o membro com firmeza na mão.
– Sinto-me grata, hoje, por esta casa e pelo pedido, e pela sua disposição para suspeitar em vez de julgar saber. Como é que as amantes mostram a sua gratidão?
Ele puxou-a para um abraço para sentir o corpo dela no seu. A pele dela pareceu-lhe fria, mas aqueceu assim que se encostou ao corpo dele.
– Um homem teria de ser um idiota para não gostar quando a mulher lhe diz para a tratar como a uma amante. Contudo, por mais que tente, não consigo pensar em si
dessa maneira.
– Porque me falta experiência e competência? É suposto ser você a retificar isso.
Um homem teria de ser um perfeito idiota para fazer outra coisa que não concordar que aquele era o plano, e passar à lição seguinte.
Não tinha de esperar trinta dias, para Cassandra desenterrar memórias. Podia ter dado informação sob sua honra a um magistrado, e Sophie ter-se-ia visto obrigada
a explicar-se o melhor que conseguisse.
– Foi gentil da sua parte – disse ela. – Não tinha percebido o seu tato. Foi por não querer ter de dizer aos seus pais que quem os traiu não foi um criado, mas sim
uma velha amiga? Ou apenas por consideração para com uma mulher idosa que já não representa uma ameaça para as joias de ninguém?
Ele fez um sorriso breve, vincando levemente as linhas da boca.
– Julgo que o fiz para me dar tempo para a seduzir. Também como desculpa para a ver.
Que coisa mais desarmante para se dizer. O coração dela permitiu-se a infantilidade de uma pequena cambalhota.
– Então era tudo parte de um esquema para me acrescentar à sua lista de conquistas? Estou chocada, Ambury. Então talvez seja de justiça que tudo se tenha desenrolado
assim tão mal.
– Parece-me que acabou por se render – replicou ele, beijando-lhe os lábios. – Portanto, não me parece que tenha acabado assim tão mal, pelo menos para mim.
Tocou-a profundamente que ele dissesse aquilo, especialmente num dia que se seguiu a uma noite tão má.
– Para ser sincera, também não se revelou assim tão mau para mim – sussurrou ela.
Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a de novo, longamente, despertando-a. Não foi apenas o corpo dela que respondeu, mas também as suas emoções mais profundas.
Sentiu-se muito cuidada naquele toque e naquele beijo.
Observou-a enquanto deslizava o polegar nos lábios dela.
– A casa é nossa. Os lençóis são novos. Estou com vontade de ver se nos recebem bem.
A ideia seduziu Cassandra por razões que não o prazer. Precisava do reconforto de receber o toque dele.
Pousou os brincos na almofada, aceitou a mão dele e seguiu-o até ao quarto.
– Porque é minha mulher, e descobri que isso torna tudo diferente.
– Que inconveniente para si.
– Pode crer que o é. Mas é uma evidência. Mesmo quando os atos são os mesmos, a experiência não o é.
– Por diferente, quer dizer menos escandalosa, imagino, e, portanto, menos excitante. Mais respeitável, e com limites para aquilo que se faz. Sinto-me lisonjeada,
Yates, mas imagino que se revele menos bom para si. Estava a tentar dispor-me a ser muito, muito ousada, como os homens esperam que as amantes sejam, mas não quero
que pense mal de mim.
Ele deslizou as mãos pela pele dela, pensando que o prazer mais comezinho seria excitação o bastante para aquele dia, como para qualquer outro, se lhe fosse dado
tocar aquela fogosa exuberância.
– Ousada de que forma?
Ela depositou-lhe uma linha de beijos no peito.
– Uma vez disseram-me que tinha uma boca escandalosa. Mais tarde fiquei a saber o que queriam dizer com aquilo. Fiquei chocada, mas talvez me tenha habituado à ideia.
Contudo, não é algo que as esposas façam.
A excitação dele duplicou imediatamente de intensidade. Agarrou-a pelas nádegas e puxou-a para si, encostando-lhe o membro ao ventre.
– Na verdade, dizem-me que algumas esposas sim – sussurrou ele entre beijos desafiadores.
– Verdadeiramente?
– Hum.
– Quem diria... Então não se importa?
– Não, não me parece.
– Posso fazer mal. Nunca... – Ela olhou-o nos olhos e parou de falar. O rosto desenhou um sorriso endiabrado. – Oh, não me parece que se importasse minimamente.
– Olhou para baixo. Com os dedos, fez uma pequena dança sobre o membro dele, concentrando-se depois na ponta. – Deixe-me ver se... – Debruçou-se e deu-lhe uma dentadinha.
Sensações intensas dispararam dentro dele como um relâmpago. Cerrou o maxilar com uma força tremenda.
– Provavelmente seria mais fácil se me ajoelhasse.
– Talvez.
Sim. Já.
Ela baixou-se. A posição deixou-o numa expectativa insuportável. Via-lhe as costas elegantes, a anca bem-feita e a erótica curva das nádegas.
A nuvem de cabelo escuro inclinou-se sobre ele. Um calor de veludo envolveu-o e ele perdeu todo o juízo.
– Acho que os novos prazeres me beneficiam tanto a mim como a si – murmurou Cassandra entre arquejos profundos. – Isto é delicioso.
Ele retirou-se devagar e entrou profundamente. O que ela fizera não requeria aquela união demorada e lenta depois de ele recuperar. Podia com a mesma facilidade
possuí-la rapidamente.
Decidiu que não era do seu melhor interesse explicar-lho.
Parou, enterrado naquela incomparável suavidade até ao limite. Inclinou-se e curvou a cabeça para lhe estimular os seios. O gemido dela foi música para os seus ouvidos.
Ela cingia-o em subtis contrações. Era tão bom estar dentro dela. Passou a língua pelos mamilos duros e escuros até ela gemer incessantemente.
Ela dobrou os joelhos e acomodou as ancas, para o tomar mais profundamente. Fez beicinho e mudou novamente de posição.
– Está impaciente – disse ele.
Viu alçarem-se-lhe as sobrancelhas.
– Ao contrário de si, esta tarde ainda não estive em êxtase.
– Sabe que estará sem demora. Nunca a deixei descontente.
Ele retirou-se e voltou entrar, saboreando cada instante de sensação.
– Não tem de ser sempre à bruta, Cassandra. Pode dar grande prazer saborear os matizes.
– Como quando nos obrigamos a degustar um bombom muito devagar?
– Ou a deixar um bom brandy repousar na boca.
– O brandy não me diz nada, mas gosto de bombons.
Ele sentiu relaxar a frustração que a inquietava. Ela queria-o profundo e próximo, mas já não de impaciência. Ele retomou o movimento e pequenos sinais de deleite
espalharam-se pela expressão dela.
Não subiram a correr à montanha. Em vez disso, subiram mão na mão, parando aqui e ali para admirar a paisagem. Quando a escalada se consumou, desta vez, não houve
trovão. Para ele foi um suave aguaceiro que lhe inundou a essência de uma chuva cálida de comoção.
Cassandra reparou que o lusco-fusco escurecia, mas não se mexeu. Continuou aninhada no abraço de Ambury, receosa de que uma simples respiração mais profunda arruinasse
o momento.
Atreveu-se, contudo, a espreitá-lo. Ele tinha os olhos fechados, mas não dormia. Os seus braços estavam demasiado alerta.
O prazer de que desfrutaram tê-lo-ia comovido a ele tal como a ela? Pensara que talvez pelo menos um pouco. Havia momentos em que tinha toda a certeza de que gozavam
de uma ligação e compreensão perfeitas, e que a intimidade que partilhavam era completa. Perguntava-se, porém, naquele momento, se seria possível para um homem conhecê-la
tal como uma mulher conhecia. Perguntava-se igualmente se ele teria planeado aquilo, para propósitos seus. Talvez ele procurasse conquistá-la usando de ternura.
Era uma perspetiva ignóbil, mas não podia desconsiderá-la. Os votos não haviam tido o condão de a tornar maleável e obediente, mas aquele tipo de elo teria, definitivamente,
esse poder. Ocorreu-lhe que seria aquela a razão pela qual Emma tinha o cuidado de aplacar o orgulho e o temperamento de Southwaite. Não por causa de dever, de medo,
ou de falta de vontade própria, mas porque permitira que ele se apoderasse do seu coração de forma que só podia desejar a felicidade dele.
Ambury ergueu-se num braço e olhou para ela.
– Perguntou-me quando a pedi em casamento se aceitaria que tivesse amantes depois de me dar um primeiro e um segundo herdeiros. Decidi que não.
Ela desejou que ele não se pusesse a emitir ordens, qual conquistador, tão cedo.
– Confiei que se mostrasse razoável.
– É uma resposta razoável. Não terá qualquer amante. Nunca.
– É demasiado cedo para decidir isso. Precisará de esperar até a novidade do casamento esfriar e eu passar à categoria de incómodo.
– A minha visão não vai mudar.
Ela devia explicar que aquilo não era pensar razoavelmente. No entanto, ele pareceu-lhe inflexível e, naquele momento, a ideia de outro amante não lhe era minimamente
apelativa. Melhor seria travar as batalhas que fossem importantes.
Deixaram-se absorver pela intimidade e pela paz que partilhavam. Talvez, se ele não queria partilhá-la, tivesse experimentado algo semelhante ao que ela experimentara
naquele dia. Com as limitações de um homem, claro.
– Cassandra, preciso que me traga a sua tia para eu poder falar com ela. Confia o suficiente em mim para o fazer?
A questão pairou na escuridão crescente. Pelo menos era uma pergunta, e não uma ordem.
Confiara nele quando a pedira em casamento. Não havia razão para não o fazer agora. A não ser os brincos. Não fora uma desilusão pequena, e tocava em tudo quanto
era importante para ela em questões de confiança.
Procurou decidir com a cabeça. O seu coração não tinha capacidade para ser tão implacável. Nele havia confiança, independentemente das conclusões a que os pensamentos
chegassem. Reconhecer o que lhe ia no coração trouxe-lhe paz e alívio, e um sorriso interior.
– Levo-o a visitá-la amanhã à tarde.
CAPÍTULO 23
A carta chegou com o pequeno-almoço na manhã seguinte. Destacava-se do resto do correio. Reconheceu imediatamente o envelope, depois o selo e a caligrafia. Passara-se
quase um ano desde a última carta que recebera de Penthurst.
Quebrou o lacre e abriu o papel. Continha apenas uma palavra. Teria ele imaginado que lhe seria dado ver alguma porção da sua surpresa pela forma como o nome havia
sido desenhado? Era impossível que Penthurst não tivesse considerado a descoberta muito interessante.
Yates considerava, sem qualquer dúvida. Interessante e desconcertante. Tanto que saiu da sala de pequeno-almoço, regressou aos aposentos e escorraçou Higgins. Pegou
no violino e entregou-lhe a sua confiança.
A música criou o seu mundo à parte, como sempre fazia. Preenchia-lhe a mente, certeira e organizada. Não pensava em grande coisa enquanto tocava, mas deixava-se
perder na pureza do som enquanto a composição fazia a sua magia.
Quando a peça terminou, pousou o instrumento. Continuava sem respostas, mas pelo menos sabia as perguntas. Tinha simplesmente de decidir se desejava formulá-las.
Depois tinha de decidir se devia formulá-las.
Percorreu o pequeno corredor e abriu a porta que comunicava com os aposentos de Cassandra. No quarto de vestir, a criada abanou a cabeça, indicando-lhe que ela ainda
não se levantara. Ele entrou no quarto e parou ao lado da cama. Era bela, ali deitada. O simples facto de olhar para ela trazia calma ao caos que o ameaçava.
As pestanas ergueram-se e ela olhou para ele.
– O que se passa?
– Nada. Pensei que estava a dormir.
Queria olhar para si. Não sei porquê.
– Acordei há pouco. Não me mexi, para escutar em segredo.
Ele precisou de um momento para perceber que se referia à música. Ela fez um gesto lânguido na direção da janela.
– Está aberta, e a sua também, por isso a música chega até aqui em boas condições.
Sentou-se e esfregou os olhos. Ficava adorável, sonolenta e desalinhada.
– É tão bonito. Porque não toca para as pessoas?
Não era às pessoas a que se referia. Era a ela. Ele resistiu à inclinação de encolher os ombros e dizer que não sabia.
– Talvez porque o meu pai não aprovava. Até gosta bastante de música, e admira os músicos. Não era uma reprovação moral, nem julgava a atividade indigna de mim ou
desadequada.
– Então o que o fazia reprová-la?
– Tinha outros planos para o meu tempo, especialmente quando eu saí da universidade. Tocar bem requer muita prática. Horas e horas.
– Então, a que é que ele queria que se dedicasse?
– Ao Parlamento. À Câmara dos Comuns, para começar a forjar as relações que me dariam poder quando o sucedesse. A herança do título só tem algum alcance. Eu não
tinha interesse, resisti e dediquei-me ao violino e a outras coisas.
E agora, quando precisava de saber o que quem estava no poder sabia, ia ter com homens como Penthurst, que não tinham dado largas aos impulsos juvenis da mesma forma.
– Vejo por que não deseja tocar para ele, claro. Mas para outros... Quando tocou na abertura da exposição da primavera de Emma, arrebatou toda a gente. Os homens
tinham lágrimas nos olhos. É um grande talento que tem, e que partilha com todos quando faz uma apresentação. Sabem que têm almas quando o ouvem a tocar.
Era extremamente elogioso o que ela lhe dizia. Também era revelador da verdadeira razão pela qual ele não tocava em público. Deixava-o desconfortável ver as pessoas
tão comovidas. Constrangia-o ver homens crescidos a chorar. Sentia-se desajustado quando as pessoas lhe diziam que lhes tocava a alma, pois a música que ele tocava
nunca lhe fizera nada daquilo.
Beijou-a, pelo elogio.
– Vou visitar o meu pai. Iremos visitar a sua tia dentro de algumas horas.
– Importa-se que eu ouça pelas janelas? – perguntou ela. – Não desejo... intrometer-me.
– Não me importo.
Ambury desceu aos aposentos do pai, admitindo que a ideia de tocar a alma de Cassandra era apelativa.
– Como é que ele está hoje? – perguntou Yates ao criado quando entrou na sala de estar.
– Cansado, senhor. A não ser isso, o normal. Ele está acordado, se deseja vê-lo.
Yates aproximou-se do cadeirão onde o pai estava sentado, de robe e lenço. Supôs que, quando chegasse o dia em que entrasse ali e lhe visse o pescoço desprotegido
e a barba por fazer, saberia que algo estaria pior.
O pai tinha os olhos fechados e parecia gozar de tranquilidade. Uma paz quase de beatitude. Talvez porque o criado tinha aberto a janela.
– Yates. Que bom vir visitar-me.
Yates sentou-se na cadeira que todas as visitas usavam. Olhou novamente para a janela.
– Pergunto-me se se sentirá suficientemente bem para falar da propriedade. Tenho alguma informação, e também algumas perguntas.
– Por vezes parece-me que não conseguiremos chegar a uma conclusão, mas pergunte o que tiver de perguntar.
– Descobri mais informação sobre os brincos. Aqueles pelos quais me perguntou tantas vezes, que estavam desaparecidos desde o último inventário. Como sabe, a minha
mulher esteve algum tempo em posse deles. Recebeu-os da parte da tia, Lady Sophie Vernham.
O pai ficou vermelho de raiva.
– Fico muito desiludido com ela, por se aproveitar de uma amizade dessa forma. A sua mãe perdoou muitas coisas à Sophie, e vai angustiá-la saber que a sua gentileza
foi paga com furtos.
– A alegada história das joias de Lady Sophie Vernham nunca foi roubo, claro. Sempre afirmou terem sido ofertas de amantes.
– Uma mentira perspicaz da parte dela, ocorre-me. Não diz o mesmo sobre estes brincos, tenho a certeza.
– Não, diz que os comprou a um penhorista.
O pai olhou para ele, surpreendido.
– A sério? É possível, suponho. Prefiro pensar que não se aproveitou desta casa e que os subtraiu. Pensar nisso causa-me tristeza.
Yates inclinou-se, procurando apoio nos joelhos para os cotovelos. Olhou diretamente para o pai.
– É possível que não as tenha roubado nem comprado? É possível que o avô lhas tenha dado?
O pai precisou de alguns instantes para assimilar as implicações. Procurou endireitar-se. O esforço e a raiva voltaram a tingir-lhe o rosto de vermelho.
– Não. Não é possível. O meu pai praticamente não a conhecia, não tinha casos de espécie alguma e não aprovava homens que os tivessem. Se começar com uma das suas
investigações de mau gosto sobre ele, vai terminar de mãos vazias, asseguro-lhe. Sim, sei dessa sua desastrosa ocupação. Proíbo-o de sujeitar esta família às ingerências
vulgares e aos rumores maldosos que promove.
Nunca, nos últimos meses, haviam estado tão perto de uma discussão. A indignação do conde parecia pronta para se expandir ainda mais.
– Esperava a resposta que deu. Não obstante, era uma possibilidade que devia investigar. Lembre-se de que foi o pai quem me encarregou de descobrir como é que as
joias desapareceram.
– Eu disse-lhe para encontrar o ladrão, não para fazer perguntas delirantes, e logo acerca do seu avô. Com o casamento que fez, quer pensar o melhor possível da
tia. Compreendo. Vamos aceitar a explicação do penhorista e não avançar mais. – Inspirou profundamente e pareceu expirar a sua agitação. Fechou os olhos. – Bom,
parece-me que é a atitude mais benevolente para todos.
– Quer descansar? As minhas outras perguntas podem esperar.
– Há mais?
– Bastantes mais.
Terá imaginado que os olhos que o espreitaram lhe pareceram sobretudo melancólicos, e não cansados?
– É melhor tratarmos disto agora, então. Nunca se sabe o dia de amanhã.
– Aquela propriedade antiga, na costa... A terra de propriedade contestável... Está na lista de localizações para as novas defesas do governo. As rendas serão significativas.
– O governo nunca arrendará uma propriedade em condições duvidosas. Não movimentou influências por causa disso, pois não? Se o fez, andou a perder tempo.
– Não o fiz. Foi outra pessoa. O Barrowmore.
O pai ficou muito quieto. Na verdade, todo o aposento.
– Que estranho – disse.
– É, não é? Só me resta pensar que o Barrowmore espera retirar algum lucro. Que provavelmente a família dele detém a outra escritura. Não acha?
O pai ficou algum tempo a olhar pela janela e só depois assentiu.
– É estranho que dois itens do nosso património tenham saído misteriosamente da nossa posse e ido parar às mãos da família da minha mulher. Logicamente só se pode
presumir que não se trata de uma coincidência. Peço-lhe como seu filho e seu herdeiro que me diga como é que isto aconteceu, pai.
O pai não lhe devolveu o olhar. Em vez disso, ficou de olhar parado, com uma expressão de desalento.
– Não sabia das joias – declarou finalmente. – Da propriedade sim. Ele deu-lha. O seu avô deu-a à Sophie. Como parte de um fideicomisso ou outra coisa qualquer,
para ela receber o rendimento até eu morrer, e depois a propriedade passar para ela e os herdeiros dela.
– Então sempre houve um caso.
– Não houve caso nenhum, estou a dizer-lhe.
– É a única explicação. Ele pode não o ter admitido perante si, e pode ter ido para a sepultura com a moral intacta, mas ofertar joias e propriedades a uma mulher
normalmente significa uma coisa. Que diabo! O nome Highburton é tão sagrado que deixa que eu acuse uma mulher de ser uma ladra para não admitir que o seu pai era
falível?
– Disse-lhe que não sabia das joias. Continuo sem saber se foram um presente.
Claro que tinham sido. O pai mostrava a mesma teimosia naquilo como em todas as antigas discussões. Recusava-se a aceitar o óbvio porque a visão tão rígida que tinha
da vida o obrigaria a condenar o próprio pai.
– Tampouco, apesar da sua certeza no contrário, houve algum caso entre eles.
Claro que tinha havido.
– Pergunte-lhe, se julga que a minha memória e o meu bom senso se sujeitam a uma cegueira de sentimento. Ela lhe dirá.
Planeava fazê-lo.
Já sabia o que precisava de saber. Levantou-se. O pai olhou para ele.
– Não esperava tanto rigor, Yates. Contava apenas cativar a sua atenção durante algum tempo, para não estar completamente ignorante quando tudo passasse para as
suas mãos.
– Agradou-me ser rigoroso, e aprender consigo os pormenores sobre os nosso bens.
– Provavelmente continuará a votar nos malditos whigs quando ficar com o título.
– Muito provavelmente. Não se culpe, porém. É uma perversão do meu carácter que se esforçou ao máximo por corrigir.
O pai riu baixinho e compôs o robe.
– A brisa arrefeceu. Vou fechar a janela – disse Yates, avançando para a fechar. – A minha música incomoda-o quando está a descansar? Percebi hoje que provavelmente
consegue ouvi-la se a janela está aberta. Os meus aposentos ficam por cima. Foi irrefletido da minha parte.
– Não me incomoda. É agradável, e frequentemente útil. Nunca percebi as baboseiras poéticas que se dizem sobre a música. Eu considero-a boa para pensar com clareza,
sem excesso emocional. Vai achar que não tenho coração, por dizer isto.
Yates voltou-se para ele.
– De todo. Se alguma vez desejar pensar claramente, diga-me, e eu toco para si.
O pai fez um gesto com a mão, dispensando a ideia.
– A sua mãe diz que não gosta de tocar para outras pessoas. Escuto o que me entrar pela janela, quando entrar.
Yates parou atrás do cadeirão ao sair. Pousou a mão no ombro do pai.
– É verdade que não gosto de tocar para um público, mas toco de boa vontade para si.
O pai esticou o braço, apertou-lhe a mão e depois deu-lhe uma palmadinha, como quem reconforta um filho.
– Que sítio é este? – perguntou Ambury.
Observou a porta azul e olhou para a esquerda e para a direita, para a mistura de pessoas comuns que passavam por eles. Não se tratava de nenhum bairro elegante
e Cassandra esperou que ele não a repreendesse por se ter deslocado lá no passado.
– É difícil de explicar – disse. – É uma casa, e também um refúgio, e também um lugar de negócios. Venha, eu mostro-lhe.
Ela levou-o até à porta e fez soar o batente. Vozes chegaram-lhe do interior por uma janela aberta. Ambury ouviu-as e alçou uma sobrancelha.
– Francês.
– Sim, na sua maioria.
Uma mulher idosa de grande volume abriu a porta. Sem uma palavra, deu meia-volta. Cassandra seguiu-a, com Ambury ao lado dela. Entraram na sala de jantar da casa,
que, contudo, não era usada para refeições.
Filas de mesas enchiam o espaço. Às mesas, estavam sentadas mulheres com folhas de papel e pires com cores à frente. Pincéis e trapos não tinham descanso.
Ambury curvou-se para examinar um dos papéis pousados numa mesa próxima.
– Estão a colorir gravuras para a tipografia.
Algumas das mulheres eram jovens e outras pareciam bastante idosas, mas a maior parte estava na meia-idade. Muitas usavam roupas que tinham passado de moda recentemente,
com corpetes justos e saias volumosas. Algumas até tinham perucas, embora o pó estivesse agora cediço e amarelo.
– São emigradas, claro – explicou Cassandra. – Mulheres de bom nascimento, sobretudo. Vêm para aqui e ganham alguns xelins, para dar o que fazer ao corpo e à mente.
Algumas vivem aqui, mas a maioria não.
– Pôs a sua tia aqui? Não se vê um homem em lado nenhum. Dificilmente é mais seguro do que em casa do Southwaite, ou na dos meus pais.
– O meu irmão nunca encontraria este lugar. Se encontrasse, nunca lhe seria permitida a entrada. Estas mulheres sabem como se proteger, a si próprias e às outras.
Ambury não parecia convencido. Observou as mesas e as cabeças inclinadas sobre elas.
Um burburinho enchia o espaço e, ocasionalmente, riso. As mulheres pareciam gostar do trabalho e da oportunidade de pôr em dia a conversa e a coscuvilhice.
Uma porta abriu-se do outro lado do compartimento e Marielle Lyon entrou, trazendo mais um saco de gravuras. Entregou-as a mulheres que já tinham acabado as últimas
e fez uma pausa, inclinando o rosto delicado para inspecionar algum do trabalho.
Cassandra foi vista por ela e acenou-lhe. Marielle pousou o saco e foi na direção deles. Também ela se vestia à moda antiga, e manchas de tinta enfeavam-lhe a renda
rasgada dos cotovelos. Mesmo assim, possuía uma elegância invejável, etérea.
– Apresento-lhe Marielle Lyon – disse Cassandra a Ambury. – É uma amiga da Emma.
– Já ouvi falar nela. É dela, a casa?
– Não sei se é dela. Mas vive aqui. É seguramente a rainha do espaço.
Marielle cumprimentou Cassandra com um beijo e avaliou Ambury quando Cassandra o apresentou.
– Está sozinho? – perguntou. – O outro não está consigo?
– Refere-se ao Kendale – explicou Cassandra. – Há uns meses, começou a persegui-la pela cidade. A Marielle reparou imediatamente. Não foi, Marielle?
– Apraz-me saber que o meu amigo teve o bom senso de admirar a sua beleza, embora não devesse ter andado a segui-la dessa maneira.
– Não era l’amour. Pensou que eu era espia.
A cadência do sotaque dela era encantadora.
Ambury chamou a si o seu charme também.
– E é?
– Uma vez que é seu amigo, deixo-o na ignorância. Diverte-me.
Voltou-se e esticou um dedo elegante.
– A sua tia está ali atrás, Cassandra. É muito ativa e gosta de conversar com a Madame Chardin. Coscuvilhices sobre velhos amigos.
Cassandra espreitou a tia Sophie. Tinha uma touca branca na cabeça e um avental sobre o vestido de padrão florido. A mulher ao seu lado disse algo e Sophie atirou
a cabeça para trás numa gargalhada.
Ambury seguiu Cassandra quando esta enveredou por entre as mesas.
A tia Sophie ergueu os olhos de surpresa quando a alcançaram. Disse alguma coisa à interlocutora em francês e sorriu.
– Chegam mesmo a tempo para uma história deliciosa sobre Mademoiselle O’Murphy e aquele quadro infame que Boucher pintou com ela. Madame diz que o rei insistiu que
todas as suas mulheres colocassem rouge nas nádegas e que isso explica a tonalidade rosada no centro do traseiro da senhora na figura. E eu que sempre presumi que
seria falta de gosto de Boucher.
– Maldição – murmurou Ambury. – Esquecemo-nos do rouge.
Cassandra pisou-lhe o pé, com força.
– Tia Sophie, gostávamos de falar consigo e explicar o que preparamos para sua proteção.
– Claro. A Marielle não se importará se procurarmos privacidade na cozinha, tenho a certeza.
Disse algo a Madame Chardin e levantou-se para indicar o trajeto de saída.
– Era uma irlandesa adorável, aquela O’Murphy. A Madame Chardin diz que sobreviveu a tudo. Era esperta, a fedelha.
A cozinha proporcionava alguma privacidade. Cassandra sentou-se com Sophie à mesa rústica. Ambury ficou de pé.
Cassandra explicou a petição que este fizera ao tribunal da Chancelaria, e os outros esforços que envidara em prol dela.
– O Ambury alugou uma casa – concluiu Cassandra. – Assim que nos mudemos, levamo-la para viver connosco. Até lá...
– Até lá, seria melhor se viesse para a casa da minha família – disse ele.
Cassandra mostrou-lhe um sobrolho franzido. Não fora nada daquilo que ela planeara.
– Preferia ficar aqui – declarou Sophie. – Estou em segurança, e não me sinto intrusa.
Ambury olhou-a muito diretamente.
– Ficar na casa dos meus pais seria desconfortável?
– De todo. Apenas prefiro ficar aqui.
Desceu o silêncio. Sophie e Ambury só tinham olhos um para o outro. E não eram os mais amáveis.
– Tia Sophie, acerca dos brincos de diamantes – principiou Cassandra, detestando a acusação que estava prestes a insinuar. – Disse que os comprou num penhorista,
mas a informação é muito vaga. Preciso que me diga exatamente de que forma é que entrou na posse deles.
Sophie abriu a boca para falar, mas Ambury voltou a interromper.
– Foram uma oferta, não foram? De um membro da minha família.
Confusa, Cassandra desviou o olhar do marido para a tia e depois de novo para o marido.
A tia Sophie examinou demoradamente Ambury, tirando-lhe as medidas de todas as formas.
– Sim, agora que mo recorda, foram uma oferta.
– Foram? – perguntou precipitadamente Cassandra. – De quem?
– Dizê-lo seria trair a confiança de alguém.
Ambury não pareceu surpreendido pela resposta. Cassandra mal conseguia conter o seu espanto.
– Não foi o único presente – voltou Ambury. – Julgo que houve uma propriedade também.
Sophie hesitou, mas rendeu-se com um suspiro.
– Houve. Está num fideicomisso e tenho rendimento das rendas. Depois há a minha casa...
– A sua casa?! – exclamou Cassandra. – Há anos que tem a casa. Há uma eternidade. Julguei que tivesse sido o meu pai quem lha comprou.
Sophie estendeu o braço e deu-lhe uma palmadinha no rosto.
– Fique calma, querida. O seu pai deu-me dinheiro. Escolhi usá-lo para viajar, depois de ter a casa e as rendas, juntamente com a parte da minha mãe, para garantir
o meu sustento.
Voltou-se para Ambury.
– Pelos vistos descobriu que a sua família foi generosa comigo. Não devia incomodar-se com histórias tão antigas. Como diz Cassandra, foi há uma eternidade.
– Agradeço a sua tolerância com as minhas perguntas, para não haver ambiguidades quanto à propriedade dos bens. Tal como diz, foi há uma eternidade, e não há razão
para não encerrar o assunto.
Cassandra estava em pulgas para encerrar o assunto de forma cabal. Parecia-lhe que podia rebentar, tantas eram as perguntas que a assolavam.
Ambury sentou-se finalmente. Sorriu para a tia Sophie. Subitamente, era todo encanto.
– Tenho razões para pensar que o Barrowmore tentará procurá-la mais uma vez. É sensato aceitar a casa dos Highburton como refúgio. Sei que a minha mãe gostará de
a receber.
– Sabe que mais? O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
Cassandra olhou de soslaio para Ambury. Pegou na mão da tia.
– O Gerald agora é o conde, tia Sophie. O pai não pode ajudá-la. Só o Ambury.
Sophie fitou Ambury.
– Não está a deixar-me grande escolha sobre onde viver agora, pois não?
– Não, se quer a minha proteção.
Sophie exalou um pequeno suspiro de ressentimento.
– Então devo obedecer, pois que me encontro necessitada da proteção de alguém depois destes anos todos. Vou arrumar as minhas coisas, o pouco que tenho, e confiar
na sua palavra em como Elinor não vai considerar-me um estorvo nem um fardo.
– Não vá fazer as malas já. Há mais uma coisa acerca da qual precisamos de falar ainda com privacidade – disse ele.
– Mais? Que mais há para tratar?
– Preciso de lhe perguntar sobre as suas outras joias.
– Quem? Porquê? – balbuciou Cassandra depois de a tia Sophie sair para arrumar as coisas dela.
– O meu avô – disse Ambury. – E a razão habitual.
– Não. – Esforçou-se por impedir um risinho de acompanhar o seu espanto. Não conseguiu, tendo sido saudada com um olhar muito highburtoniano. – Perdoe-me. É que
é... refrescante. Não acha? – Escapou mais um risinho. Quase se engasgou no esforço de o conter. – Não lhe dá alguma satisfação saber que, afinal, tem a quem sair?
Ele encolheu os ombros.
– Alguma, suponho.
Ela franziu os lábios e olhou-o com sobranceria.
– Muito bem, os condes de Highburton, baluartes da retidão moral e um exemplo para todos nós.
E com um grande sorriso, acrescentou:
– Meu Deus, que descoberta!
Uns olhos azuis bastante severos admoestaram-na.
– Não que eu vá contar a alguém – assegurou ela. – Consigo guardar segredos de família tão bem como qualquer pessoa. Este está a salvo comigo. – Esticou-se e deu-lhe
um beijo. – Assim como, tenho a certeza, as revelações da minha tia relativamente às joias estão seguras consigo, Ambury.
– Está a chantagear-me, Cassandra?
– Credo, não.
– Porque não aceito isso.
– Claro que não.
– As duas revelações não são iguais. E as joias, aquelas que ela admite ter pedido emprestadas, devem ser devolvidas.
– Concordo. Qualquer item emprestado deve regressar à proveniência.
Regressaram com vagar à entrada. Da sala de jantar chegava o burburinho em francês. Algures no piso de cima, a tia Sophie arrumava a mala.
– Apesar de ter brincado, fico um pouco triste por saber do seu avô – disse ela.
– Estranhamente, eu também. Muda as memórias que me ficaram dele. Não é mau, mas não deixa de ser uma mudança.
O toque de melancolia de Cassandra nada tinha a ver com memórias. Para ela, o avô de Ambury não passava de uma figura reputada.
A tia Sophie desceu as escadas. Seguia-a uma jovem, transportando uma mala que entregou a Ambury.
O rosto de Sophie não mostrava qualquer expressão. Os seus olhos tinham aquela expressão distante, ausente, que tanto preocupava Cassandra. A conversa sobre o passado
longínquo devia ter chamado a si os pensamentos enquanto esteve sozinha.
Ambury reparou. Ofereceu-lhe o braço e falou com brandura.
– Vamos, então, Sophie.
Ela pareceu confusa. Contudo, olhou para ele e acalmou-se.
– Tem a certeza de que ela não se importa?
– Tenho a certeza.
Sophie começou a andar.
– Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer.
CAPÍTULO 24
A mãe dele recebeu Sophie de braços abertos. A saudação afetuosa pareceu resgatar a mente de Sophie de onde quer que tivesse estado. As duas mulheres escorraçaram
Ambury e Cassandra e fecharam a porta da biblioteca para falarem em privado. Sobre o eterno passado, talvez.
Yates foi procurar Cassandra depois de consultar Prebles acerca da petição que fizera ao tribunal da Chancelaria. Foi encontrá-la no quarto dela, a olhar pela janela,
com um ar um pouco perdido, muito à semelhança de Sophie na carruagem. Embora quieta, pressentia-se o tumulto interior.
Ele abraçou-a por trás e beijou-lhe o ombro.
– O que a deixa tão pensativa?
Ela encolheu os ombros.
– Muitas coisas. Demasiadas revelações, talvez. Desde logo, não me agrada saber que a minha tia tirou algumas daquelas joias. Não me parece que tenha sido tudo equívocos,
como ela diz que foram.
– Julgo que é provável que sim.
Era o tipo de mentira que se diz a uma pessoa que não precisa de saber a verdade toda. Do tipo que se diz a uma pessoa de quem se gosta.
– Disse que saber do meu avô também a deixou triste. Porquê?
Um sorriso pesaroso curvou-lhe os lábios.
– Compreendi que me agradava a possibilidade de que se parecesse com os Highburton anteriores numa coisa. Pensei... – Voltou-se e deu-lhe um beijo. – Não é importante.
Ele sentou-se na cadeira azul e puxou-a para o colo.
– Pensou o quê?
Ela brincou com o lenço dele durante uns momentos.
– Pensei que, com toda a retidão que tem no sangue, havia uma boa possibilidade de não dividir o meu marido com eventuais amantes.
– Mas isso não é importante?
– Era apenas uma vaga suposição relacionada com o seu sangue. Seria seguramente mais justo se viesse a parecer-se mais com eles nesse aspeto. Disse-me que não posso
ter amantes.
– Por outras palavras, pensa que devemos ser iguais na virtude ou no adultério. Uma visão compreensível, suponho, mas radical.
– Imagino que seja improvável, agora que sabemos que a sua linhagem não lhe proporciona a inclinação para ser tão virtuoso.
Ele não fazia ideia se seria improvável ou não. Nem era claro se aquilo importava realmente a Cassandra. Esperava que sim, percebeu.
– Então, toda essa sua cogitação versava as minhas inclinações herdadas com respeito à virtude matrimonial?
– Estava a tentar organizar muitas coisas. Por exemplo, tanto quanto consigo compreender, o meu irmão tem sido muito cruel por muito pouco. A minha tia podia ter
rendimentos de uma propriedade, mas não era muito. Não o bastante para o que tentou fazer com ela.
– Planeava retirar muito mais rendimento dessa propriedade.
Falou-lhe das torres de defesa e das diligências de Gerald para colocar a terra na lista.
– Se conseguisse controlá-la, controlaria a terra e o dinheiro que dava. O fideicomissário não se teria oposto, desde que a sua tia estivesse a ser acompanhada.
– Muito mais?
– Centenas por ano, pelo menos.
– Não tem coração, se tentou aprisioná-la por dinheiro, mesmo sendo centenas de libras. E o comportamento dele para comigo... Tanta raiva e... ódio... Sim, ódio.
Anos de ódio, sem razão nenhuma para além da arrogância e do orgulho. Há algo de muito triste nisto. Seguramente que uma pessoa não se torna tão dura sem motivo
nenhum. – Secou os olhos. – Tenho saudades do rapaz que conheci em criança, Ambury. É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o lugar dele
quando eu não estava a ver.
Ele procurou o lenço de assoar e entregou-lho.
– Quando é que ele mudou?
– Quando herdou. Só compreendi em que medida quando...
Secou novamente os olhos.
– Quando, o quê?
– Não pergunte – disse ela com doçura.
– Quando aconteceu aquilo com o Lakewood?
– Disse-me que não devemos falar disto. Foi uma decisão sensata, compreendi.
– Nem tanto. Disse-me uma vez que ninguém sabe o que aconteceu, a não ser a Cassandra. Eu gostaria de saber, também.
Ela abanou a cabeça.
– Vai culpar-me por manchar a memória dele, tal como sempre me culpou por lhe manchar a reputação. Compreendi que posso suportar quase tudo, querido, mas não a sua
reprovação.
Ele não acreditava que ela desejasse proteger-se da reprovação dele. Ela queria preservá-lo de macular aquelas memórias. Sensibilizava-o que ela se recusasse a defender
o seu próprio comportamento para as preservar para ele.
Abraçou-a com força e ela pousou a cabeça no ombro dele.
– Continuo a querer saber. Diga-me.
Ela demorou tanto tempo a falar que ele julgou que não o faria. Depois suspirou novamente.
– Tal como lhe disse, não foi nenhum acidente, aquele dia. O barco, o facto de nos ausentarmos juntos, a situação comprometedora, foi tudo planeado.
Recordou que ela o alegara, depois do jantar, e da reação que tivera. Desta vez, reprimiu a irritação. Pressionara-a para que lhe contasse tudo e devia estar disposto
a escutá-lo.
– Não vi nada de mal no barquinho – retomou ela. – Nos bosques, ele pareceu incapaz de encontrar o caminho de volta. Eu indicava-lhe por onde seria e ele insistia
em fazer de outra forma. Era uma farsa mas, ao mesmo tempo, eu só me congratulava por não ter aceitado a mão de tamanho pateta. Só quando saímos dos bosques, finalmente,
e o meu irmão, a minha mãe e todas as pessoas presentes no piquenique nos encontraram, é que compreendi o custo da estupidez dele.
– Pedi para ouvir isto, mas não quero ouvi-la a insultá-lo – disse ele, contendo a raiva que a história despertava. Não sabia ainda se estava furioso com ela ou
por ela, o que só piorava tudo. – Ele não era um homem estúpido.
– Não, não era. Eu é que fui estúpida, por pensar que podia rejeitar o pedido de casamento dele e ficar por ali.
– Ele não faria o que acaba de dizer, Cassandra. Nunca montaria uma cilada a uma mulher de forma tão desonrosa. Percebeu mal.
Ela endireitou-se e olhou-o de frente.
– Não percebi. Nessa tarde, ele veio falar novamente comigo para me pedir a mão, para fazer a coisa certa. Não o recebi. Mas uma hora depois fui à procura do meu
irmão, para lhe dizer que aceitava. Estavam juntos no escritório dele e eu ouvi-os a rirem-se do assunto. O Lakewood brindava o meu irmão com todos os passos em
falso. O buraco que não deixava passar a água e que o fez ter de usar os ramos para pôr água no barco. O sol que não parava de surgir e ele a ter de ignorar as minhas
sugestões para o seguirmos para oeste. Foi uma grande risota para os dois. Decidi naquele momento que dava a minha vida para não ser obrigada a casar-me com um homem
que não queria.
– Bom, quase conseguiu, não foi? Ficar sem a sua vida.
As palavras saíram sem ele contar, expelidas pelo caos de reações que experimentava com a história. Ele não era inteiramente o homem que você julgava, dissera Penthurst.
Maldito Penthurst e maldito Lakewood.
Ela corou como se ele a tivesse esbofeteado.
– Deveria ter-me poupado, revelando toda a intriga? A verdade da desonra dele teria sido preferível a especulações? Ou julga que, mesmo sabendo o que sabia, deveria
ter aceitado a proposta dele? Meu Deus! Julga que sim, não julga? Acredita que apesar de tudo eu devia ter-me casado com ele, ter-nos redimido aos dois e ter aprendido
a esquecer quem ele era. – Ela empurrou-o e tentou saltar do colo dele. – Bom, não o fiz, e fico satisfeita ainda que você não fique.
Ele agarrou-lhe a cintura antes que ela escapasse. Segurou-a com firmeza, sentindo-a debater-se.
– Maldição! Claro que fico satisfeito por não se ter casado com ele. Se tivesse, ele ainda estaria vivo e você não estaria casada comigo. É terrível pensar assim,
e igualmente infernal saber que estou satisfeito por tudo ter acontecido como aconteceu. Como é que acha que isso me faz sentir? – Inspirou profundamente e procurou
controlar-se. – Era o meu amigo mais antigo, Cassandra.
Ela parou de se debater.
– Lamento, Ambury. Lamento que seja infernal para si, e lamento ter-lhe contado. Sabia que não era prudente. Não devia ter insistido.
– Precisava de ser dito. Estava cansado de não ter qualquer explicação desse dia.
Segurou-a contra si enquanto as emoções dos dois se acalmavam. Depois ficou a segurá-la simplesmente porque lhe apetecia. Tentou imaginar o que ela lhe descrevia
e encaixar naquilo o homem que ele conhecia. A adoração de Lakewood por Cassandra tinha-lhe parecido despropositada, era inegável. E ele possuía um lado calculista
que conseguia ser desagradável.
Até o reconhecimento daquelas verdades lhe causava alguma culpa.
– Porque julga que o fizeram? – perguntou ele, uma boa meia hora depois.
– Era dinheiro, para o Lakewood. Também ouvi isso. A falarem do dote. Para o meu irmão... Era nisso que estava a pensar quando me encontrou. Um homem comportar-se
desonrosamente para enriquecer faz algum sentido. Fazê-lo para casar uma irmã parece estranho, não parece?
Ele pô-la de pé e levantou-se.
– Vou debruçar-me sobre o assunto e ver se me ocorre uma resposta menos estranha. Agora temos de nos vestir para jantar, para recebermos devidamente a sua tia nesta
casa.
Uma hora depois entrou no quarto de vestir de Cassandra. O dramatismo do dia pareceu-lhe muito distante assim que viu como estava bela com o vestido de noite de
marfim que lhe torneava suavemente as curvas. Ofereceu-lhe o braço para a acompanhar ao piso de baixo.
– É herdeira da sua tia, não é? – perguntou ele nas escadas. – Talvez o Gerald desejasse controlá-la a si tal como a controlava a ela. Repare que exigiu que casasse
com um homem escolhido por ele. Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança. Combinaria o matrimónio
e o seu marido dividiria o rendimento.
– Imagino que sim. Só que, para meu desalento, isto leva-nos a fechar o círculo! Toda essa tribulação por algumas centenas de libras por ano! O Gerald precisa ainda
mais de uma ocupação do que eu pensei, se for verdade.
*
Depois do jantar, as senhoras deixaram Yates entregue ao seu porto. Uma vez que o pai estava demasiado doente para descer para jantar, bebeu sozinho e debruçou-se
sobre a descrição de Cassandra do que acontecera naquele dia há seis anos.
Mudava tudo, mas ainda não sabia bem como. Não gostava de pensar mal de Lakewood. Tinham convivido durante anos. Embora ninguém fosse perfeito, e Lakewood tivesse
as suas falhas e vícios, Cassandra descrevera um nível de mentira e de calculismo que a maior parte dos cavalheiros consideraria inaceitável e desonroso.
Uma coisa era comprometer uma mulher e ambos se casarem por pressão da sociedade. Outra coisa era iludir uma mulher para esta ficar comprometida e ser obrigada a
casar-se com alguém quando não o desejava. A distinção não era evidente e, talvez, dadas as circunstâncias do seu casamento, fosse em abono próprio.
Evidentemente que Lakewood já não podia falar em defesa própria das suas intenções e se tinha conspirado ou não com Barrowmore. Um bom amigo devia dar-lhe o benefício
da dúvida. Por mais que quisesse fazê-lo, não podia. Cassandra dissera a verdade, tinha a certeza. Não mentiria acerca de uma coisa daquelas.
Que choque não devia ter sido quando Cassandra recusara a sua proposta de fazer a coisa certa. Algumas centenas por ano poderiam ter sido uma recompensa pequena
para Barrowmore, mas Lakewood herdara uma propriedade empobrecida a par do título de barão, e algumas centenas por ano teriam feito uma grande diferença.
Ele não era inteiramente o homem que você julgava. Teria Penthurst descoberto o esquema e ameaçado expor Lakewood? Seria humilhante que a história fosse dada a saber
a todos. Conseguia imaginar Lakewood a arriscar a vida num duelo para evitar aquilo. Era mais condizente com ele do que desafiar alguém por causa de uma mulher.
Entristecido por aquela nova imagem de um velho amigo, pousou o copo e saiu para procurar Cassandra. A vivacidade dela escorraçaria aquela nostálgica melancolia.
A sala de visitas estava vazia. Um lacaio indicou que as senhoras já se haviam retirado.
A caminho dos seus aposentos, decidiu espreitar o pai. Entrou no quarto de vestir. Para sua surpresa, a mãe encontrava-se à porta do quarto e o perfil elegante e
majestoso revelava que espreitava por uma pequena abertura.
Não o ouviu a aproximar-se, de tão concentrada que estava naquilo que via no outro quarto. Ambury colocou-se atrás dela e espreitou por cima da sua cabeça.
O pai estava deitado na cama, reclinado sobre almofadas, e a camisa de noite branca refletia o brilho da vela. Ao lado da cama, numa cadeira bastante próxima, viu
a tia Sophie.
Estavam de mãos dadas. E enquanto ele e a mãe observavam, o pai ergueu a mão de Sophie e beijou-a na palma, tal como se faz a uma amante.
– Não vai contar-lhe o que sabe.
A mãe sussurrou a ordem assim que reparou nele. Fechou a porta que dava para o quarto e depois chamou-o com a mão. Fê-lo atravessar o quarto de vestir até à pequena
sala de visitas que a flanqueava.
Ambury precisou de alguns minutos para reorganizar os pensamentos. Não ajudava o facto de a mãe não parecer minimamente surpreendida com as implicações daquilo que
acabavam de ver.
– Presumi que fosse o avô – declarou por fim. – A Sophie é dez anos mais velha do que o pai.
– Continue a pensar que foi o seu avô se é mais fácil para si, embora não consiga imaginar que diferença possa fazer.
Fazia diferença por uma série de razões. Desde logo, porque o homem que se encontrava ali dentro em reunião com uma antiga amante havia massacrado vezes de mais
com lições de moralidade um filho com o qual parecia agora ter mais em comum do que aquilo que admitia.
Mas, desde logo, talvez fosse exatamente essa a razão para todas as discussões.
– Não se importa? – perguntou ele.
– Foi há muito tempo.
– Porque é que me parece que na altura também não se importou muito?
Ela suspirou, mas nada daquilo alterou em nada as costas direitas da mulher que estava sentada qual estátua na ponta de um banco.
– Se quer saber, dei a minha bênção, Yates. Fiquei satisfeita por ele ter encontrado alguém por algum tempo. Foi depois de o menino ter nascido e os médicos não
aconselhavam mais nenhuma gravidez. Bom, sabe o que isso significa. Ela era uma amiga querida na altura, e quando vi o interesse que ele tinha nela, eu... deixei
que ambos soubessem que não me importava de todo.
– Durou muito tempo?
– Pouco menos de um ano. O pai dele não foi tão compreensivo quando ficou a saber. Era de facto um verdadeiro Highburton, e obrigou o seu pai a terminar tudo.
– E deu-lhe a propriedade e valores para resgatar a honra da família. Não admira que o pai não quisesse que eu investigasse a propriedade, embora tenha a certeza
de que não sabia nada acerca das joias.
– Na altura desconhecia completamente e só ficou a saber da propriedade quando herdou o título. Ele nunca teria maculado o que tinham com coisas dessas, como se
ela fosse uma cortesã comum. Tinham verdadeiro afeto um pelo outro. E, julgo eu, verdadeira... paixão. Eu amo-o profundamente, mas... não podia negar-lhe o conhecimento
daquele tipo de amor, se ele queria.
Ele pôs-se a andar num passo impaciente, encaixando aquela descoberta final em tudo o resto. Rematava uma série de perguntas e explicava por que razão Sophie não
desejara ficar hospedada naquela casa.
Ele olhou para a mãe, que mantivera em tudo a atitude de condessa, mesmo quando o informava do caso amoroso que permitira e talvez até encorajara. Tem a certeza
de que Elinor não se importa?
– O Pai pensou que os brincos talvez tivessem sido roubados. Chegou a pensar que tivesse sido a Sophie a levá-los. Uma traição na família, disse. A veemência dele
quanto a isto faz mais sentido agora.
– E você estava determinado a descobrir a verdade para lhe dizer, não é assim? Que incómodo que acabaram por ser aqueles brincos. Contei-lhe finalmente a verdade
há uns dias, para ele não pensar que ela o tinha usado. Fui eu quem lhos deu, Yates, não foi o seu avô. Foram o meu... presente de despedida. Quando terminou, soube
que ela e eu não voltaríamos a ser amigas chegadas.
– Foi bom da sua parte continuar a recebê-la, e a ser sua amiga, mesmo quando começaram a chover as histórias sobre ela.
– Seja o que for que se diga mais de mim, espero que se saiba que não sou nenhuma hipócrita.
Não era uma hipócrita. Poderia bem ser o único elemento da família a quem o epíteto não serviria.
– Trouxe-a cá acima para o ver?
– Ela dificilmente encontraria o caminho sozinha.
Sacudiu a saia, alisando o tecido e juntou as mãos sobre o colo.
– Tampouco tem muito tempo. A mente dela começa a vaguear. Cassandra reparou seguramente. Dentro de alguns anos... quem sabe? Agora, está na altura de irmos. Ela
não demorará a ir-se embora.
Ele aproximou-se e beijou-a na testa.
– Diz-se que ele conquistou o troféu da temporada quando a mãe aceitou o pedido dele. Nem ele sabia a metade da história.
Deixou-a, sentada como se os corpetes ainda ditassem a sua postura, aguardando, enquanto o marido se demorava em recordações de uma grande paixão com a sua amiga.
Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer, dissera Sophie.
Podia apostar que sim.
CAPÍTULO 25
Cassandra levantou a perna para se sentar nas coxas de Ambury. Ele sobressaltou-se, acordando, e espreitou por cima do ombro.
– O que está a tramar?
– Estou apenas a admirá-lo do meu ângulo favorito – replicou, acariciando as nádegas firmes tão apelativas aos seus olhos.
– Só não me diga que Lady Lydia também me apanhou este ângulo. Prefiro pensar que protegeu os olhos virginais.
– Claro que sim. Imediatamente. Não viu nada.
Inclinou-se e depositou-lhe um beijo cuidadoso no alto das costas.
– Estava aborrecido quando chegou a casa. Não correu bem, no tribunal, hoje?
– Correu muito bem. Terminou. O Penthurst foi absolvido. Os pares aceitaram a sua presunção de que, como cavalheiro, não podia explicar cabalmente a razão do duelo
sem comprometer o bom nome dos inocentes. Ajudou o facto de não ter sido ele a convocá-lo, imagino.
– Não concorda com a decisão deles, diria.
– Fico satisfeito por ter terminado como terminou. Se fiquei descontente, foi porque a verdade do que aconteceu permanece um mistério. E porque os meus pressupostos
podem ter-me custado dois amigos em vez de um.
– Será que o Penthurst poria um fim ao mistério, se lhe perguntasse?
– Disse-me que não pode, por uma questão de honra. Um dia, contudo, talvez ele revele alguma coisa, se houver algo de que possa falar. Entretanto, debato se devo
contar ao Kendale e ao Southwaite o que me contou sobre o esquema montado com o seu irmão para a comprometer. O Southwaite, pelo menos, suspeito que não o receberá
com surpresa.
Ela encostou a cabeça aos ombros dele.
– Quer fazê-lo só por minha causa? Em meu favor? Poderá ser melhor deixar que o recordem sem essa história a manchar a honra dele.
Beijou-o novamente, um pouco mais abaixo.
– Já sabe que não teve nada a ver comigo, não sabe? É só isso que me importa... que deixe de se perguntar. O Penthurst é um conhecido, nada mais. Se tenho sentimentos
por ele, é apenas gratidão por me tratar com respeito e nunca me ter rejeitado, quando outros foram menos generosos.
O colchão mexeu-se para acomodar as costas de Ambury. Bem acordado, agora, fitou-a.
– Outros como eu, quer dizer. Ao tratá-la como uma mulher do mundo, insultei-a. Peço desculpa. Não tenho outra além do desejo, que pode afetar o discernimento de
um homem da pior forma.
– Não posso dizer que me importe, por ter sido ousado e tentado adicionar-me às suas conquistas. O resultado disso é que um dia serei a condessa de Highburton.
Ele puxou-a para um abraço.
– Perguntei-me muitas vezes o que poderia ter acontecido se Lakewood não a tivesse reclamado para ele tão depressa nessa temporada.
– Começou a desejar ter-me cortejado então? É muito querido.
– Não é de agora que o penso. Começou antes do casamento do Southwaite. Sempre a desejei.
Ela aceitou o beijo profundo que acompanhou a declaração. A excitação que sentia multiplicou-se numa resposta que lhe era tão fácil com ele. A diferença, daquela
vez, como das últimas vezes, era a forma como o seu peito se preenchia com camadas de emoção tão pungentes que facilmente choraria se não tivesse cuidado.
Pousou a cabeça no peito dele e arrastou os dedos sobre o relevo sólido e subtil dos seus músculos. As carícias dele, por seu lado, deixavam-na igualmente afogueada.
– Julgo que prefiro que tenha acontecido como aconteceu. Eu era tão parva como qualquer rapariga e na altura teria esperado mais do que ser desejada da forma que
refere.
– E agora não?
Sentiu a garganta a arder. Não esperava mais, mas desejava-o profundamente. O prazer era maravilhoso, e a intimidade intensa, mas queria acreditar que não era apenas
o coração dela que experimentava toda aquela alegria, dolorosa de tão intensa, durante o tempo que passavam juntos.
Ele girou e apoiou-se nos braços para ficarem de frente um para o outro.
– Não deve haver expectativas de mais, nem sequer de grande prazer, num casamento como o nosso. O dever e a lealdade são tudo o que se pode realmente esperar.
– Eu sei. É bom que me queira dessa forma, e eu a si. Não estou a queixar-me.
– Nem eu. Mas penso para mim próprio que, ao não esperar mais do que isso, o encontrei, acidentalmente.
Tudo o que havia à volta dela desapareceu, deixando-os apenas aos dois e a um nervoso de excitação que a assustava. Era como se se equilibrasse numa corda muito
fina, num dedo apenas. Uma mera respiração poderia atirá-la para a desilusão. E, no entanto, o que via nos olhos dele encorajava-a a acreditar que tal não aconteceria
se arriscasse dar um passo em frente.
– O meu prazer consigo não é apenas físico – declarou ele. – Vivo uma alegria rara, consigo. Não é só o orgulho que me faz querer tê-la comigo, e para mim. – Beijou-a
com doçura. – Deslumbrou-me, Cassandra, e roubou-me o coração.
Ela abraçou-lhe o pescoço e puxou-o para o beijar.
– Eu sabia que o amava, mas não me atrevia a esperar que partilhasse dos mesmos sentimentos.
Beijou-o uma vez e outra. Digladiaram-se em doce paixão, primeiro, depois feroz, como se tentassem consumir-se um ao outro. Ela sentiu-o entrar, duro e fundo, reclamando
a sua posse tal como ela gostava.
– É bom – murmurou ele. – Perfeito. Ainda melhor com amor.
Ela envolveu-lhe a anca com as pernas.
– Sim. Com amor é maravilhoso.
Cassandra sentiu Yates mexer-se na cama. Abriu os olhos e deparou com ele a contemplá-la.
– O que é?
– Venha comigo. Preciso de fazer uma coisa.
Vestiram os robes e ele conduziu-os para o quarto de vestir.
Apontou para uma cadeira próxima do guarda-roupa.
– Sente-se aqui.
Ela subiu para a cadeira, chamando as pernas e os pés para debaixo de si. Ele voltou-se, com o cabelo desgrenhado pelo amor e a seda crua do robe flutuando. Ocupava-se
com alguma coisa em cima de uma mesa.
Quando se virou para ela, tinha um violino numa mão e um arco na outra.
– Não se sinta insultada se parecer não reparar em si enquanto faço isto – disse. – Saberei que está aí. Não me perco tanto como poderá parecer.
Lisonjeava-a para além de qualquer medida que ele a convidasse para ouvir. Esperava que ele não julgasse que lhe devia aquele presente.
– Não quero importuná-lo, querido. Tem a certeza de que não o farei?
– Veremos se acontece, mas não estou em crer. Juro-lhe que quero fazer isto.
Ela não levantou mais objeções. Sentou-se o mais quieta que conseguiu e esperou não o importunar minimamente.
Nada há de comparável a ouvir um violino romper o silêncio da noite. O som preenchia o pequeno compartimento, parecendo emergir de todas as direções. As notas fluíam
limpas, claras, puras. Os sons do Céu deviam ser assim.
Ela contemplava os dedos fortes que se movimentavam sobre o instrumento como se tivessem vontade própria, ao passo que o arco libertava a música. A expressão dele
fascinava-a. Dura. Pensativa. As pálpebras semicerravam-se sobre olhos concentrados no interior, como se os sons entrassem em conversa com a mente.
A experiência comoveu-a. Deixou-a exultante. Desejou que nunca terminasse.
Quando terminou, ele pousou o instrumento de forma indiferente, como se nada de extraordinário acabasse de ocorrer.
– Obrigada, Yates. É o melhor dia de declarações de amor que poderia ter-me concedido. Foi maravilhoso.
Ele devolveu o violino ao estojo e foi ajudá-la a levantar-se. Com um braço à volta dela, conduziu-a de volta ao quarto.
– Foi bom, não foi?
– Eu não causei interferência?
– A consciência da sua presença foi maior do que a de outros no passado, mas não causou distração. Longe disso. Na verdade, parece que há mais alguma coisa que o
amor melhora.
O amor tornara a música melhor, mas não diferente. Yates reconheceu-o no dia seguinte, enquanto terminava de se vestir. Fora uma alegria ter Cassandra ali com ele.
Se outra pessoa tivesse ocupado aquele espaço de forma tão absoluta teria, indubitavelmente, achado aquilo um incómodo. Ela encaixara, contudo, tão perfeitamente
como se encaixava no seu corpo quando ele a abraçava. Da forma ideal, como em tantos aspetos.
Mesmo assim, a música trouxera-lhe a clareza de que precisava. Organizara-lhe os pensamentos que o haviam mantido acordado. Enquanto tocava, a sua mente circulara
pelas imagens e impressões do dia, dispondo e reorganizando.
Pessoas do passado e do presente visitaram-no. Lentamente, emergiram novas constatações. Que Sophie voltara a confundi-lo com o pai hoje, ao sair de casa de Marielle
Lyon, tal como acontecera quando ele se aproximara dela em casa do Dr. Wakely. Que diria a Cassandra que não teria amantes; não previa desejar alguma vez fazê-lo,
mas ela tinha direito que lhe fosse comunicado o compromisso. Que as revelações do dia tinham explicado tudo, e ao mesmo tempo não.
O último pensamento não parava de retornar, até outras memórias se ligarem a ele. Pequenas, sobretudo. Pequenas singularidades que mal notara na altura. Então, algo
que não era nada pequeno tornou-se um eco por trás de tudo o resto: a mágoa de Cassandra por o irmão a tratar a ela e à tia de forma tão cruel por tão pouco.
Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança.
É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o seu lugar quando eu não estava a ver.
O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
– Senhor!
Um sobressalto arrancou-o aos pensamentos. Higgins estava ao seu lado de casaco na mão. Voltou-se e vestiu-o.
– Não estarei em casa para jantar. Diga ao mordomo.
Antes de sair da casa, foi à procura da tia Sophie. Com sorte, estaria errado, mas não julgava que estivesse.
– Explique novamente porque é que estou a escrever esta carta – disse Southwaite enquanto a caneta deslizava sobre o papel.
Estava sentado a uma escrivaninha, no Brook’s.
– Porque é meu amigo.
– Não vai fazer nada de estúpido com o Barrowmore, pois não? Andar aos socos ou outro tipo de mau comportamento? Credo, não pensa desafiá-lo, espero.
– O Kendale vai comigo para me impedir, caso pareça ir por aí.
– Bem, é deveras tranquilizador – replicou Southwaite com secura. – Diga-me o que devo escrever. Não gosto disto, mas faço-o.
Yates espreitou por cima do ombro de Southwaite.
– Venha ter comigo a St. James’s Park esta tarde às quatro horas, para tratar de um assunto de grande importância relativamente ao património da sua família.
Southwaite mergulhou a caneta e escreveu: Por... favor... venha... ter... comigo... a...
– Acrescentou o «por favor».
– Estou a ser educado.
– O homem é um canalha. Não escolho ser educado.
– É o meu nome que assina a carta, não o seu, e eu escolho ser educado. – Continuou a escrever. – Ele não vai gostar deste ardil.
– Não me importo minimamente, desde que venha. Nunca acederá a encontrar-se comigo, isso é certo. Reparei recentemente que nunca passei um minuto na companhia do
homem sem ter outras pessoas por perto.
– Tem a ver com a sua mulher?
– Tem.
– Vai dizer-me do que se trata?
– Não.
Não a ele. Nem a ninguém, a não ser que chegasse um dia em que não tivesse escolha.
Southwaite assinou com um floreado, dobrou o papel e selou a carta. Entregou-a a um dos criados do clube para que a enviasse. A seguir acompanhou Yates até às poltronas.
– Já se acostumou ao estado de casado? – perguntou Southwaite quando se puseram confortáveis.
– Concluo que se ajusta a mim como nunca tinha esperado.
– Diz-se que à sua noiva também.
– As senhoras têm falado?
– Sim, tal como é seu hábito. A Emma está encantada por ter ficado com aquela casa, por isso imagino que não se cansarão de trocar segredos durante os próximos meses.
Em relação à sua noiva, a Emma confidenciou-me no outro dia ao jantar que a Cassandra tem expressado uma supremo contentamento e que pensa que você é um marido maravilhoso.
– Que lisonjeiro.
– Foi o que pensei. A minha irmã opinou então que a Cassandra provavelmente ficou impressionada porque o Yates é um homem muito duro, e os homens duros são preferíveis,
ao que a Emma se lançou numa preleção sobre a insuportabilidade de viver com um homem duro, a não ser que a Lydia tenha ouvido dizer o contrário.
– E você, o que disse?
– Nada. Pareço-lhe idiota? A Lydia rebateu que decidira que não se casaria, a não ser que estivesse segura de que o homem tinha o grau apropriado de dureza. Neste
ponto, a Emma parece ter-se perguntado se estariam a falar de outra coisa que não de comportamento. Corou até à raiz dos cabelos.
– De certeza que a Lydia repetia apenas algum disparate que ouviu, independentemente de qualquer duplo sentido.
– Sem dúvida. Não deixei de franzir o sobrolho à minha irmã, caso estivesse a usar «duro» de maneira obscena e deliberadamente desbocada para me irritar.
– É uma sortuda por o ter como irmão, Southwaite. Você é muito paciente.
– Eu sei. – Southwaite esticou as pernas e cruzou os pés. – Então, como é que conseguiu passar de homem obrigado a casar à ponta da espada a marido maravilhoso tão
depressa? Tive de seduzir e cortejar durante meses para ser maravilhoso.
– Simplesmente exerci o talento considerável que possuo para fazer uma mulher feliz.
– Então, ela não teve qualquer escolha, suponho.
Oh, tivera escolha. O charme não fazia caminho com Cassandra Vernham.
– A verdade é que estou deslumbrado por ela, Southwaite. Só penso em tê-la comigo e ela, graças a Deus, não se importa. Fiz a coisa certa e acabei por me apaixonar
pela minha mulher.
O sorriso provocador de Southwaite desapareceu.
– Estou perplexo. Contente por si, mas perplexo.
– Não era de esperar.
– Mais uma razão para me alegrar por si. E fico satisfeito por ter um amigo que está cativo também. Torna este estado mais suportável. Devo avisá-lo de que nem tudo
serão felicitações. Há homens que julgam que sucumbir é uma fraqueza, e que devem ter pena de nós.
Um daqueles homens entrou na sala. Viu-os e aproximou-se.
– Não lhe diga, ainda – advertiu Southwaite. – Assim que o Kendale souber que está apaixonado, nunca mais se cala.
Especialmente a mulher sendo aquela mulher.
– O que se passa? Porque é que me mandou chamar, Ambury? – perguntou Kendale, em jeito de saudação. – Estão os dois com ar de quem foram apanhados com a mão na massa.
Yates ofereceu-lhe uma cadeira empurrando-a na sua direção com o pé.
– Sente-se para jogarmos às cartas enquanto esperamos, Kendale.
– Esperamos por quê?
– Tenho um encontro esta tarde. Preciso que venha comigo para se certificar de que não mato o homem.
Barrowmore circulava por St. James’s Park, olhando em volta à procura de Southwaite. Yates já assumira posição num sítio onde ninguém poderia pôr-se à escuta sem
dar nas vistas, e que consistia precisamente na parte central da relva próxima ao canal. Kendale estava encostado a uma árvore a alguma distância, parecendo não
se ocupar com nada.
Barrowmore viu Yates e parou. De semblante carregado, tentou decidir o que fazer.
– Ele não vem – chamou Yates. – Estou aqui eu.
Barrowmore hesitou, mas depois aproximou-se.
– Se isto se deve à minha tia, deve saber que já enviei uma petição ao Lorde Chanceler para que averigue o assunto e o resolva rapidamente.
– Não é necessário.
– Tenciona abrir mão dela?
– Não é necessário, porque ela já revelou aquilo que você espera manter em segredo com o seu afastamento.
A afirmação fez sumir o sorriso pretensioso do rosto de Barrowmore. Este recuperou, mas precisou de bastante tempo, durante o qual pareceu tão assustado a Yates
que este chegou a sentir pena dele. Devia ser um inferno viver todos os dias com aquele tipo de medo.
Barrowmore tentou aparentar superioridade, mas só conseguiu arrogância.
– Ela não está boa da cabeça. Seja qual for o disparate que tenha dito, as palavras dela não podem ser levadas a sério.
– A cabeça dela não é o que costumava ser, mas na maior parte das vezes Sophie está tão lúcida quanto você. E a sua história não foi relatada em nenhum outro momento.
Embora o medo que tem não seja sem razão. Ela já tinha dito coisas, de passagem, que aludiam a este mistério. Suficientes para eu ter vontade de a interrogar.
– A minha tia tem muitas histórias. – Mantinha os maxilares cerrados e os lábios comprimidos. – Histórias infindáveis, sobre príncipes e duques e festas e escândalos.
Metade não é verdade, tenho a certeza, tal como esta.
– Esta foi sobre estar grávida ao mesmo tempo que a cunhada e sobre ficarem juntas no campo durante o tempo de gravidez. Num sítio discreto, pois Sophie não era
casada. Tenho a certeza de que a mãe de Cassandra se lembra da história toda também. Talvez eu lhe deva perguntar.
– Não se atreva a chegar perto dela.
– Também vai isolá-la, se, com a idade, ficar indiscreta? Deve estar a começar a preocupá-la.
A agitação de Barrowmore atingira níveis extremos. Yates não conseguia decidir se o homem ia dar-lhe um soco ou desabar em lágrimas.
– Fala-me em enigmas. Não tenho tempo para isto.
Começou a andar.
– Só uma delas teve uma criança que sobreviveu ao primeiro dia – disse Yates, alto o suficiente para Barrowmore ouvir. – A Sophie. A condessa ficou com a criança
como se fosse dela.
Barrowmore gelou. Olhou em redor com ar desesperado, para ver se alguém estava perto o suficiente para conseguir ouvi-los. Avançou novamente até estar a menos de
um passo de distância.
– Repita isso e eu mato-o, Ambury.
– Não me parece que vá repeti-lo, mas quero respostas. A minha curiosidade é o meu maior defeito. Quando é que soube a verdade, que era filho de Sophie, e não da
condessa? O meu palpite é: quando o seu pai estava a morrer. Os homens gostam de acertar contas nessas alturas.
Imaginou Barrowmore a ouvir a derradeira revelação e a ficar a saber que não era a pessoa que, a vida inteira, julgara ser. Choques como aquele podiam mudar o carácter
de um homem, especialmente se, subitamente, houvesse muito mais a perder além da suposta identidade. O comportamento de Barrowmore era repreensível mas pelo menos
agora fazia algum sentido.
– O que ele me disse foi que a minha irmã tinha demasiadas parecenças com a tia e que devia vigiá-la de perto para ela não trazer desonra à família. Ele tinha razão
nisso, e fico aliviado por ela agora ser problema seu.
Yates sentiu-se furioso ao ouvir o insulto a Cassandra. Manteve a calma com esforço.
– Também lhe disse que ela não era sua irmã. Não por causa de qualquer problema com a legitimidade dela, mas com a sua. A Sophie sabe que ele estava ao corrente
daquilo que tinham feito. Sabia que ele tinha intenção de lhe contar.
– Sou filho dele, maldição. Seu filho e herdeiro.
– Aos olhos da lei, sim. Ele não o repudiou. O título era seu. As terras também. Qualquer herança que designasse um descendente do mesmo sangue dele, em vez da sucessão
habitual, contudo, estava sujeita a contestação por parte da Cassandra. Ainda está.
– Está a ameaçar-me, Ambury? Então é disso que se trata. Casou-se com uma vadia em quem tropeçou e agora afinal quer dote.
Ambury quase se atirou a Gerald para o esganar. Pelo canto do olho, viu Kendale ficar rígido, em alerta, e dar um passo. Fez-lhe um gesto atrás das costas para não
se aproximar e conseguiu aplacar-se no meio da fúria que o urgia a dar uma boa tareia a Barrowmore.
– Devia exigir o maior dote que este país já viu, depois da forma como a tratou, seu canalha. Era isso que temia, que ela se casasse com um homem que viesse a saber
da verdade e perseguisse o que pudesse em nome dela. Mais valia estar casada com algum tipo que pudesse controlar.
– Se tentar alguma coisa, não lhe darei sossego. Vai ficar empancado na Chancelaria durante anos a fio. Ela não verá um penny.
– Provavelmente não, mas vê-lo-á a si humilhado e dado como bastardo para o mundo inteiro saber. Poderá valer mais do que dinheiro.
Enraivecido, quase a espumar, Barrowmore afastou-se novamente a passos largos, depois deu meia-volta e regressou. Desta vez, tinha os punhos cerrados.
– O que raio é que quer? Quanto?
– Nenhum dinheiro. Precisa apenas de retirar as petições relativas à sua mãe e não tecer senão louvores a Cassandra no futuro.
– Louvores?
– Louvores celestiais. De quão encantadora é. Do quanto a ama. E como lamenta o afastamento dos últimos anos. Deve escrever-lhe uma carta, para este efeito, para
começar. Não deixe de se prostrar diante dela e de lhe pedir perdão.
– Está louco? Não vou escrever ou dizer nada desse género.
– Então, eu irei expor a verdade do seu nascimento, e você irá desafiar-me, e eu acabarei por o matar. Esta alternativa tem o seu encanto, mas, em prol da minha
mulher e das outras pessoas envolvidas, abdicarei desse prazer.
Gerald continuava com ar de quem queria bater em alguma coisa. Ali perto, debaixo da árvore, Kendale mantinha-se em alerta.
– Maldição, se tudo o que quer é uma carta cheia de mentiras e o fardo de uma velha palerma, faça-se a sua vontade. Mas juro que, se algum dia contar alguma coisa
destas a alguém, se eu ouvir um rumor sequer, é um homem morto.
– Não tenho interesse em dizer a ninguém. Nem sequer à minha mulher.
Gerald cravou os olhos nele. Yates devolveu-lhe o olhar, à procura... não sabia de quê.
Gerald fez menção de partir.
– Sabem quem ele é? – perguntou Yates.
Tinha de saber.
– Quem? Ah, refere-se ao velhaco para quem ela levantou as saias. Não, graças a Deus! – O semblante dele carregou-se, pesado de desconfiança. – Que diabo, você sabe?
Yates olhou para o irmão que o destino lhe atribuíra. Gravou na memória a forma como a arrogância e a virtuosidade dos Highburton podiam ser distorcidas, para jamais
esquecer os seus perigos.
– A Sophie não disse e eu não perguntei. Não faço ideia de quem ele era. Absolutamente nenhuma.
CAPÍTULO 26
Cassandra aninhou-se na curva do braço de Yates, acomodando a cabeça no ombro. Pousou-lhe a palma da mão no peito. Se ficasse atenta, conseguia sentir o bater do
coração. Era um ténue eco de vibração que se dispersava pelo corpo.
O ar fresco do outono arrefecia o quarto, mas estavam confortáveis ali debaixo. As cortinas estampadas da cama protegiam-nos do frio maior da noite. Ela nunca fechava
as cortinas por completo, porém. A casa nova ainda a fascinava. Gostava de ser capaz de ver a luz prateada raiar a escuridão da madrugada, dali, onde dormia.
– Vai cedo para a Fairbourne’s, para ajudar a Emma? – perguntou Yates.
Ele ficava muitas vezes na cama dela até de manhã, como naquele momento. Parecia desfrutar da acalmia do acordar, nos braços um do outro, ouvindo iniciar-se o dia
na casa.
– Vou chegar uma hora antes do leilão. Ela não precisa verdadeiramente de mim, a não ser para a ajudar a não se preocupar. Vai matá-la, não poder fazer nada de útil.
O irmão hoje desempenhará o papel dele e o mundo deve presumir que ela é apenas uma cliente, tal como eu.
– A sua tia vai?
A pergunta aludia a um desenvolvimento interessante que tivera lugar desde que se haviam mudado para St. James’s Square. A tia Sophie saíra da sua reclusão. Começara
a visitar os pais de Yates. No dia anterior, acedera a receber Hortense, a tia de Southwaite.
– Julgo que um leilão a iria cansar. Nem me parece que ela goste deles. Nunca falou em joias adquiridas dessa forma.
A forma como as adquirira estava a ser retificada. Cartas discretas de Mr. Prebles seguiam o seu caminho para outras tantas localizações no Continente. Sophie cooperara
com o plano de restituição, na medida em que lhe fora possível. Não recordava verdadeiramente a proveniência de algumas daquelas joias.
Ele depositou-lhe um beijo na cabeça.
– Ela parece estar satisfeita aqui, com a companhia da Merriweather. A insistência para que a Signora Paolini fosse mantida no grupo de cozinheiros não é o desastre
que esperei, embora ache a comida da senhora um pouco estranha. Atenção, não disse «má».
Ela decidiu não mencionar que a interferência da tia Sophie podia explicar quaisquer peculiaridades.
Uma tosse discreta interrompeu a ociosa felicidade. Soou na porta uma batida delicada. Yates sentou-se e espreitou o quarto de vestir.
– O que é, Higgins?
– Uma carta, senhor. Um envio especial para a senhora. Quer esperar até ao pequeno-almoço?
Yates atirou os lençóis para trás e rumou ao quarto de vestir. Regressou com a carta.
– É de Anseln Abbey.
Entregou-a e voltou a subir para a cama.
Ela sentou-se e enrolou um casulo de roupas à sua volta.
– Espero que a minha mãe não esteja doente.
Abriu-a e deparou com uma comprida missiva da parte do irmão.
Era o último tipo de carta que esperaria receber dele. Cheia de rapapés, pedia-lhe perdão pelo comportamento passado e prometia regenerar-se. Desenhara longas linhas
sobre o quão estava errado e exprimiu a esperança de que ela encontrasse mais tempo para a mãe. Ofereceu-se para se organizar de forma a não estar presente em nenhuma
propriedade da família, se este fosse um requisito para a visita dela. Chegava até a admitir que ela possuía ótimas qualidades, e incluiu uma pequena lista.
Agradecia-lhe por tomar conta da querida tia Sophie.
Ela deixou cair a carta em cima da cama e ficou a olhar para as garatujas do irmão. O espanto inicial deu lugar a uma emoção mais profunda. Quase chorou. Era como
se o irmão tivesse regressado de onde quer que fosse onde se havia metido. Sentiu uma grande comoção e imaginou-se a desfrutar de tempo com Gerald a falar e a rir
como as outras mulheres faziam com os irmãos. Imaginou reuniões familiares às quais levava os seus filhos, e uma proximidade que preenchia os vazios que os últimos
anos tinham cavado na família.
Ficou quase inebriada de alegria.
Então, formou-se uma reação muito diferente.
Pegou na carta. Observou-a de perto. Não encontrou uma única correção. Era como se Gerald tivesse feito múltiplos rascunhos e continuasse a copiar até o último sair
perfeito, muito à semelhança do que faziam para a precetora quando eram pequenos.
Quanto mais vezes lia a carta, mais estranha esta lhe parecia. Não conseguia acreditar que Gerald a tivesse escrito. Nem num assomo de generosidade, Gerald teceria
aquela profusão de elogios. Gerald nunca admitiria ter cometido todos aqueles erros, a não ser que alguém estivesse ao seu lado com uma pistola encostada à cabeça
dele.
Voltou-se. Yates contemplava o dossel estampado. Parecia contar as figuras retratadas. Não mostrou qualquer interesse por aquela entrega especial. Nenhum. Nem sequer
perguntara se a mãe dela estava doente.
Cassandra dobrou a carta e pousou-a numa mesa próxima. Rodou e voltou a enfiar-se na cama, fitando o marido.
– Era do Gerald. Uma tentativa de reaproximação. Muito contrita.
– É bom, não é?
– Muito bom, embora não me pareça que, na verdade, ele deseje aproximar-se muito. Fico satisfeita, porque não desejo aproximar-me muito dele. Aconteceram demasiadas
coisas entre nós para voltarmos a acertar-nos. No entanto, agrada-me a perspetiva de ver a minha mãe mais vezes e mais à vontade.
– Depois de toda a mágoa, diria que a tentativa dele de se desculpar devia deixá-la feliz.
– Deixa-me muito feliz. Não viu como fiquei comovida? Quase chorei. – Fitou-o nos olhos e completou: – Foi inesperado, mas é uma surpresa maravilhosa, neste dia
esplêndido.
– Provavelmente significa que também não criará problemas com a sua tia. São boas notícias. O Prebles disse que o Gerald retirou a petição que fez à Chancelaria.
Isto explica porquê.
– É um grande alívio, ele ter-se esclarecido.
Aconteceriam outras coisas boas a partir dali, mesmo se ela e Gerald não voltassem a ser amigos. Ela podia visitar a casa da juventude sem ser desprezada. Podia
resgatar memórias perdidas, dos tempos idos e da família, de antes de o seu pai morrer.
Esticou os braços e beijou Yates, sentindo um alívio e uma gratidão profundos por tudo aquilo. Não sabia como é que ele o tinha conseguido. Quer o tivesse subornado,
ameaçado ou chamado à razão, convencera Gerald a escrever aquela carta. Sabia-o.
– Tem fome para o pequeno-almoço? – perguntou ela. – Estou a pensar que podíamos ficar mais um bocadinho na cama.
Beijou-lhe o peito uma, duas, três vezes, saboreando-lhe a pele. A mão dele procurou a cabeça dela, segurando-a com os lábios selados contra o seu calor.
– Tenho fome, mas não é de um pequeno-almoço. É de si. Como sempre. Da sua beleza, da sua paixão e do seu humor, mas, principalmente, do seu amor.
– Estará sempre aqui ao seu dispor, Yates. Banqueteemo-nos juntos.
– Um banquete sem fim.
Ele rodou e pôs-se sobre ela. Inclinou-se, então, para a beijar profundamente.
Ela saboreou aquele beijo, e todos os que se lhe seguiram. Abandonou-se ao coração e ao corpo dele. Desfrutou desmesuradamente do prazer, reconhecendo em cada toque a verdade que ambos conheciam e partilhavam: que o amor tornava tudo diferente, e melhor.CAPÍTULO 19
–Vejo que vou ter de fazer tudo sozinho durante o próximo meio ano, pelo menos – resmungou Kendale, estalando preguiçosamente a chibata contra as pernas esticadas.
– Nem tanto tempo – disse Southwaite.
Serviu mais brandy a Yates, mas nem sequer ofereceu a Kendale. Este tinha uma viagem de longas horas pela frente e nunca bebia quando estava em missão.
– Não mais do que cinco meses, diria eu – calculou Yates.
– Está a provocá-lo deliberadamente, Kendale. Perdoe-lhe a animação exagerada. Estamos-lhe ambos gratos por fazer a viagem até à costa, tal como pedido nesta carta.
– Não gostaria que tivessem de abandonar as vossas mulheres tão cedo. Diabos, quem sabe que calamidades não aconteceriam se vos fossem negados os prazeres do casamento
durante três ou quatro dias.
Kendale raramente empregava um tom sarcástico nos seus comentários. Como consequência, muitas vezes parecia estar a falar a sério. Grande parte delas, Yates gostava
de fingir que assim era.
– Entre todos os perigos encontra-se a loucura – principiou Yates. – Li um artigo científico sobre isso. Um noivo que é afastado demasiado cedo da noiva pode enlouquecer
por falta de consumação.
Kendale franziu o sobrolho.
– Isso não faz sentido. Se um homem pode enlouquecer por falta de consumação, os padres católicos, os velhos professores, os exércitos em guerra, toda a marinha
e metade dos maridos casados há mais de três anos seriam tolinhos.
– Assim seria de esperar, mas parece que os noivos são especiais. O artigo explicava que a falta de consumação que se segue à presunção tomada livremente do gozo
da dita é passível de conduzir à loucura. Quantas vezes já viu um homem que, rejeitado pela amante, enlouquece? Faz ameaças, chora, embebeda-se dias a fio, durante
os quais escreve má poesia e pondera apertar o gasganete a alguém. – Yates bebeu um gole do brandy e continuou: – Espero que não julgasse ser tudo efeito de um coração
partido, Kendale, em vez de algo tão vulgar como a previsão da frustração sexual.
Os olhos de Kendale estreitaram-se. Yates manteve a pose séria e inocente.
– Ele está a aproveitar-se do seu bom senso, Kendale. Novamente – declarou Southwaite. – Nem o Ambury nem eu temos qualquer desculpa para lhe dizer que se desloque
à costa por nossa vez, a não ser o nosso desejo de... bom... nos entregarmos ao nosso desejo.
– Parece-me a mim que ambos já o fazem há tempo suficiente para desejar uma pausa. Não me corrija, Ambury. Se você fosse outro homem qualquer e ela outra mulher
qualquer, talvez fosse possível acreditar na vossa suposta inocência. Ambos sabiam que tal não seria possível, portanto não me culpem pelos pressupostos que faço.
– Então, aceite como desculpa a minha obrigação de cumprir um dever maior, para não partir a pensar que me furto à responsabilidade que o leva.
– Ah, não é o prazer que o prende aqui, mas a necessidade de um herdeiro. Que conveniente para si, que este dever maior tenha como condição deitar-se com a sua mulher.
– Referia-me à necessidade de me deslocar a Elmswood. Há lá algum trabalho que preciso de fazer e que foi atrasado pelos acontecimentos recentes. Necessito também
de apresentar a minha mulher aos vizinhos de lá.
Seria igualmente a lua de mel que poderia oferecer a Cassandra. Entre a saúde do pai e os perigos da guerra, não sairiam em viagens demoradas, nem sequer em Inglaterra.
– Encerrarei esta conversa como a comecei, assinalando que tudo recairá sobre mim nos meses vindouros.
Levantou-se a abotoou a casaca.
– Enquanto estiver no Kent, certificar-me-ei de que nenhum de nós é chamado, a não ser que os vigias tenham boas razões. A carta que recebeu parecia dominada pelo
terror, Southwaite. Considerando o estado de alerta do país, tal seria de esperar, mas não desejo passar tanto tempo em cima do cavalo para nada. O meu traseiro
não deve pagar a má avaliação efetuada pelos nossos vigias.
– Faça como julgar melhor, claro – declarou Southwaite.
Era desnecessário dizê-lo, pois Kendale fazia sempre o que julgava ser melhor, mesmo que todos os outros considerassem preferível agir de outra forma.
– Espero que ele consiga acalmá-los – comentou Southwaite depois de Kendale partir.
Agarrou algumas cartas que estavam amontoadas na secretária.
– Alguns dos vigias veem navios fantasmas, de tanto perscrutarem a escuridão. Passo dias a escrever respostas, fazendo notar que os ansiosos relatórios que enviam,
na verdade, não incluem nada que seja digno de nota.
– Considerando os acontecimentos recentes, a rede que montámos é desadequada. Está na altura de o governo fazer algo oficial, e permanente.
– Julgo que não demorará. Lembra-se daquela série de torres que propusemos no ano passado? Pontos de defesa costeiros, constituídos pelo gabinete de guerra, para
a vigilância ser sistemática e a costa sudeste estar mais segura?
– Pensei que esse plano tivesse caído no esquecimento.
– Foi ressuscitado no início do verão. O gabinete de guerra tem estado a trabalhar numa lista de localizações. Parece que vão começar brevemente.
– É bom saber.
– Já lho teria dito mais cedo, mas tem estado ocupado a conquistar Lady Cassandra e a deixar-se enredar.
– Não gozei nenhuma vitória, como lhe disse.
– Permita-me acreditar que sim. A ideia de ter sido obrigado a casar-se com uma mulher que nem sequer seduziu é demasiado desanimadora.
– A constatação de que ela foi redimida e de que está apta a ser amiga da sua mulher deve ser suficientemente animadora. Quanto a tudo o resto que possa mitigar
o seu contentamento, o Kendale compreendeu a situação a ponto de fazer o casamento em sua casa e se apresentar como testemunha. Se ele consegue reconciliar-se com
este casamento, o Southwaite também deveria ser capaz de o fazer.
Southwaite sentou-se na cadeira que Kendale desocupara e esticou as pernas à semelhança deste.
– Entrou nesta casa, esta tarde, com ar de quem está inebriado por novos prazeres, portanto, neste momento, parece que este casamento se lhe adequa bastante bem,
e isso é tudo o que importa.
– Ao dizer «neste momento», está a sugerir que tal poderá deixar de ser o caso quando a experiência deixar de ser nova e inebriante.
– Julgo que é verdade na maior parte dos casamentos.
Não no dele, claro. A confiança de que o seu casamento nunca cessaria de o inebriar não necessitava de ser expressa. Contemplou o brandy por um segundo, mas logo
olhou de novo para Yates.
– Falou com ela acerca do Lakewood?
– Não há nada a dizer.
– Não há? O julgamento iminente do Penthurst pôs-me a pensar com alguma frequência naquele duelo, ultimamente. Pergunto-me se presumi demasiadas coisas. Pergunto-me
se o Lakewood tencionara que assim fosse.
Yates não gostava de pensar naquele dia desagradável, nevoento, em que Southwaite o informara e a Kendale de que Lakewood havia morrido.
– Como padrinho dele, com certeza terá percebido o mesmo que as outras pessoas.
– Ele disse que o Penthurst tinha insultado uma senhora. O amor da vida dele, declarou. Tal como você, presumi que se referia a Cassandra Vernham, mas agora... –
Encolheu os ombros. – Foi uma loucura desafiar o Penthurst. Se ele tivesse acabado por matar um duque...
– Provavelmente não tencionava matá-lo. Nos dias de hoje, a maior parte dos duelos não termina dessa forma.
– Oh, digo-lhe que tencionava fazê-lo. Ficou bem claro quando nos encontrámos todos. O Lakewood exigiu o derradeiro acerto de contas. Mesmo assim, o Penthurst apontou
alto, tenho a certeza agora, pois revivo-o com frequência na minha mente, mas o Lakewood moveu-se na pior altura para disparar.
Abanou a cabeça com tristeza.
– Que raio de coisa. Imagino que nos cheguem mais respostas com brevidade, quando o Penthurst se apresentar diante dos lordes. Provavelmente serei chamado para dar
testemunho. Daí os meus esforços mais recentes para perceber exatamente o que vi e o que foi dito pelo Lakewood.
– Talvez esteja a pensar demasiado no assunto. Foi o que foi.
– Tem mais certeza do que eu acerca do que se terá passado, Ambury. Esperaria que não fosse indiferente à ambiguidade, agora que está casado com Cassandra Vernham.
– Decidi que não pode recair sobre ela, a culpa do jogo de morte de dois homens.
– É melhor homem do que eu, se consegue deixar as coisas assim.
Yates não sabia se o seria. Abordara o tópico mentalmente algumas vezes, as mais recentes das quais na noite anterior, quando, saciado do cheiro e da suavidade dela,
debatera se não seria melhor esclarecer o assunto de Lakewood. O velho amigo tornara-se uma espécie de fantasma, um espírito que lhe invadia o pensamento, carregado
de ambiguidades como quem arrasta uma corrente. Dissera a Cassandra que não falariam no assunto, mas perguntava-se se o fantasma algum dia encontraria descanso se
não o fizessem.
Agora que ele está morto, só eu sei o que aconteceu realmente. Fora aquilo que ela dissera. Imaginar ao que ela se referiria tornara-se ainda mais um elo daquela
corrente. De tamanho considerável.
– Saio da cidade dentro de dois dias – anunciou, levantando-se para sair. – Não estava a mentir quando falei em negócios a tratar no sul.
– A sua noiva deve ficar satisfeita por sair da cidade durante alguns dias.
– A notícia do nosso casamento deu outro vigor às salas de visitas, ultimamente, e temos uma longa fila de senhoras que aguardam a sua vez de satisfazer a curiosidade,
portanto é verdade que lhe apetece bastante esta pequena viagem.
– Pensava mais em termos de escapar à sua mãe.
– Isso está a correr melhor do que esperava, mas ela poderá ficar satisfeita com a possibilidade de férias nesse aspeto também.
Quando regressava a casa, pensou na sorte que o assistira quanto a essa relação em particular. Não houvera discussões nem estranheza na primeira vez que Cassandra
se reunira com a mãe dele, nem desde então. Também não havia muita proximidade, evidentemente.
A primeira semana de casamento tinha corrido bem. Ainda era recente, mas a familiaridade confortável que se instalava era bom indicador dos anos que se seguiriam.
Devia estar mais satisfeito do que estava.
Culpou-se pelas irritações que por vezes o incomodavam. Quase sempre o assaltavam quando esbarrava com as vedações erigidas pelas suas próprias palavras, como quando
lhe dissera que não falariam do seu passado em geral, nem de Lakewood em particular.
Presumira que deixar tudo no passado seria o melhor para o futuro. Poderia ter-se enganado.
Cassandra percebia que alguma coisa preocupava Ambury. A forma como fez amor foi mais distante do que o normal. Que tenha falado pouco a seguir não a surpreendeu.
Mas surpreendeu-a pressentir nele uma perturbação interior.
Contava que ele se fosse embora para se dedicar ao que quer que fosse que lhe ocupava os pensamentos. Não o fez. Em vez disso, deixou-se ficar deitado ao seu lado,
minguando as velas na escuridão crescente do quarto. Tinha o braço direito pousado em cima dela e a mão sobre a sua coxa num gesto curioso de possessividade, e deixava
o cérebro ir para onde tivesse de ir. Ela tentou dormir, para não estar demasiado cansada durante a viagem, quando saíssem para a propriedade rural de Highburton,
de manhã.
– Qual era o nome dele?
Os olhos dela abriram-se de surpresa. Não julgara que aquela atividade toda se devesse a ela.
– Não vou dizer-lho. Disse que não falaríamos no assunto e já o fez duas vezes.
– Mudei de ideias.
– Volte a mudar.
– Não gosto de pensar que poderei encontrar-me com ele e que ele saiba que teve o seu amor e eu não saiba que ele foi a pessoa que o fez.
– Não vai encontrar-se com ele. Ele não nasceu nos seus círculos. Não pertence ao tipo de regimento que se movimente neles.
– Ainda assim, quero saber o nome.
Ela sentou-se e tapou-se com o lençol. Ele pouco mais era do que um conjunto de formas escuras na noite, mas ela via-o com clareza na sua mente. Via o rosto belo
e a linha firme da boca que nenhum dos sorrisos frequentes vinha agora suavizar. Via os músculos vigorosos do corpo nu que, agora, o casamento lhe dava o direito
de admirar.
– Não acredito que fique mais feliz por saber o nome dele, ou qualquer outra informação. Eu sei os nomes de algumas das suas antigas amantes, e esse conhecimento
não me traz nenhum reconforto. Preferia ignorá-los.
– Isso é diferente. Porque agora você é minha.
Credo, os homens tinham uma cabeça tão estranha. Pior, conseguiam ser tão irritantes quando diziam coisas e não ouviam as implicações das suas palavras. É minha.
Via-o apenas numa única direção, como a maior parte dos homens fazia. Ele tinha a posse dela, mas ela não tinha a posse dele. É diferente. Na cabeça dele, era diferente,
e todo o universo masculino concordava.
– Sim, sou sua. Não pode ficar satisfeito por isso? Não é que se importe realmente com a pessoa que ele era ou com o que eu sentia por ele. Duvido que se melindre
sequer com o facto de não ter sido o primeiro. A verdade é que gosta de ter uma mulher que é uma amante e não uma rapariga virginal. Agrada-lhe que a minha audácia
e experiência abram portas para um prazer mais sofisticado. Foi por isso que me quis.
Ele olhou para ela na escuridão, sentou-se e pegou no robe.
– Talvez conheça a minha mente melhor do que eu, Cassandra. Vê, com certeza, os benefícios que este casamento me trouxe com mais clareza do que eu. Vou fazer aquilo
que sugere e aproveitar a minha boa sorte das formas que recomenda.
CAPÍTULO 20
Cassandra adorou o quarto de Elmswood Manor. Uma profusão de janelas dava entrada à bonita luz setentrional que, filtrada pelas árvores, assumia um matiz fresco
e prateado. Como consequência, era sempre madrugada naquele quarto tranquilo e sereno.
Os seus aposentos eram maiores do que os de Londres. E também eram só dela. Não conseguiu encontrar nenhuma porta ou passagem de ligação aos aposentos de Ambury.
Provavelmente, só o conde e a condessa usufruiriam de tal comodidade.
Aquilo não o impediu de a encontrar. Ele entrou enquanto a criada que lhe fora atribuída lhe desfazia a mala. Não se anunciou nem disse uma palavra. Limitou-se a
ficar parado à entrada do quarto de vestir até a criada reparar nele e se escusar.
Pensando que os privilégios a que se outorgam os maridos podem ser inconvenientes por vezes, Cassandra meteu ela própria as mãos à obra. Ambury ficou a observar,
com o ombro encostado à parede e os braços cruzados.
– Vamos jantar em Trotwood Park com os Witherspoons. São uma família proeminente, aristocrática, e importante no condado – disse. – Amanhã de manhã, damos um passeio
a cavalo, para que os criados e rendeiros possam vê-la.
– Então, devo pendurar isto imediatamente.
Tirou o vestido de montar e sacudiu-o com um floreado. Ele não percebeu a indicação de que seria importante para a boa apresentação dela deixar que a criada retomasse
os seus deveres.
– No dia seguinte, terei de me ausentar durante alguns dias. Necessito de ir ao sul visitar um terreno.
– Faz parte das suas obrigações para com o seu pai e a propriedade?
– Uma das mais inconvenientes.
– Farei uso do tempo para conhecer as pessoas de cá. É provável que me saia melhor sozinha, pois todos parecem reverenciá-lo. – Olhou para a porta, pela qual a criada
desaparecera. – Ou então, talvez, receá-lo, se forem criaturas jovens e bonitas.
– Nunca importunei uma criada, e não espero pensar sequer em fazê-lo no futuro.
– Muito bem.
– Não me atribua maior comedimento do que mereço. Nunca pensarei fazê-lo porque agora tenho uma mulher às minhas ordens. Portanto, na realidade, o «muito bem» é
seu.
– Às suas ordens? Espero que não planeie berrar por toda a casa para me chamar sempre que estiver com o cio. Vai enviar-me o seu criado de quarto ou um lacaio?
– O mais provável é entrar-lhe pela porta.
Como fizera ainda agora. A tarefa de desfazer as malas distraíra-a da tonalidade da presença dele. Interessado. Inquieto e um pouco perigoso. Ambury, predador, originava
uma perturbação subtil mas inegável na atmosfera de um espaço. Excitante. Assaltava-a agora e ela sentiu o frémito da resposta. Durante a última semana, o seu corpo
despojara-se de quaisquer inibições e o desejo era saudado da mesma forma.
Ele ficou a observar Cassandra dispor alguns objetos de cuidado pessoal no toucador. Depois ela entrou no quarto.
– É o quarto mais amoroso em que tive o prazer de ficar. A roupa branca, a tinta clara, os remates em renda e as almofadas fofas fazem-me pensar num quadro de Boucher.
– Só falta a mulher bela e nua, deitada de bruços em cima da cama.
Sentou-se numa poltrona de um azul claríssimo e esticou os braços. Agarrou nela, fê-la rodar e desapertou-lhe as fitas do vestido.
– Terá de fazer as vezes.
– É um convite?
– É uma ordem, Cassandra. Os homens não convidam as amantes.
Devolvia-lhe as palavras que ela empregara na noite anterior. A atitude dele desafiava-a a desempenhar o papel audaz que ela lhe revelara ser o desejo dele.
Não, não era um desafio, decidiu quando se voltou e viu como ele esperava e observava. Era uma ordem, tal como ele dissera. Tampouco tinha a certeza de que aquilo
seria um jogo.
Ela não devia gostar das subtilezas que o afetavam, mas o seu corpo gostava. Baixar o vestido excitava-a. O olhar tenaz e ardente de Ambury deu vida a centenas de
minúsculos redemoinhos quando ela fez deslizar a chemise pelos ombros. Depressa estava à frente dele, apenas de meias.
Ele pareceu-lhe demasiado composto. Demasiado dominador, tal como pretendia. Decidida a equilibrar um pouco o jogo, aproximou-se da cadeira dele, colocou o joelho
entre as pernas dele e debruçou-se para o beijar. Fê-lo com mais agressividade do que o normal e sentiu os efeitos na virilidade crescente que o joelho comprimia.
Interrompeu o beijo e esperou que a boca dele lhe tocasse o corpo. Em vez disso, ele deu-lhe um beijo rápido no rosto.
– Vá para a cama, Cassandra.
Um pouco desiludida, caminhou até à cama. Era uma cama grande, para a qual teve de subir. Atirou-se para cima dela. Ficou de barriga para baixo e apoiou-se nos braços
para o ver.
Ambury levantou-se e despiu-se. Não demorou muito. Fê-la recordar aquele dia na costa, em que ele se despira para entrar no mar. As cortinas do quarto não estavam
corridas, por conseguinte a luz límpida revelava a sua força esguia da mesma forma que o sol fizera naquele dia. Já se tinham visto nus com bastante frequência,
mas era a primeira vez desde aquele dia que o via nu à luz do dia.
Ele apoiou um joelho ao lado dela e beijou-a entre os ombros. Um outro beijo mais abaixo. Mais um no fundo das costas. Depois sentiu-o atrás de si, erguendo-lhe
as ancas.
– Ajoelhe-se.
Um tremor profundo desceu-a por dentro, reunindo-se na sua vulva. Ajoelhou-se e ele ergueu-lhe um pouco mais as nádegas. A posição e a vulnerabilidade que sentia
originavam um misto desconcertante de expectativa e de medo. Os seios roçavam os lençóis, excitando-a ainda mais.
Ele tocou-a e imediatamente um ardor obsessivo tomou conta dela. Não era um toque destinado a agradar. Não a provocava nem acariciava. Afagava-a com convicção, preparando-a
para ele. Assim que ficou pronta, ele entrou com tanta profundidade que ela ficou sem fôlego.
Possuiu-a. Retirou o prazer que desejou do corpo dela, usando-o a seu bel-prazer. Ela também retirou o dela, um prazer selvagem desprovido de artifício ou ternura.
Ele devorou-a, e ela adorou ser devorada. Atingiu o clímax primeiro, antes de as impiedosas estocadas finais lhe oferecerem a ele a consumação. Ele soltou-a, então,
e ambos caíram na cama, com os membros nus emaranhados.
Daquela vez, ela não desfrutou da saciedade. Ficou deitada de lado, com o braço dele, forte, atrás de si, e alerta à diferença do que acabara de acontecer.
Fora espantoso, de certa forma, mas ela não teria gostado que tivesse sido assim da primeira vez com ele, nem que fosse sempre. Não podia ignorar que tinha havido
muito poucos preliminares e ainda menos intimidade. Nem beijos ou carícias. Nenhuma atenção deliberada aos seios e ao corpo dela. De vez em quando, seria excitante.
Todas as noites, porém, não previa gostar da fria indiferença que todo o ato implicava.
Esperou por mais algum sinal que indicasse como seria dali para a frente. Podia ser qualquer coisa, até um beijo no ombro. Seguramente que, com as amantes, ele não
se limitava a garantir que atingissem o clímax.
Ele mexeu-se e ela sentiu a reação da cama à sua saída. Fechou os olhos e ouviu os sons de roupa a ser vestida. Então, os passos dele cruzaram o quarto.
Ela pensou que ele tinha saído e abriu os olhos. Em vez disso, deparou com ele ao seu lado, a olhar para baixo. Ele esticou o braço e deslizou-lhe uma mão pelo rosto
numa carícia que afastou algumas madeixas desalinhadas de cabelo.
– Vou mandar preparar-lhe um banho.
Depois saiu.
Ela sentou-se entre os lençóis húmidos e os cheiros eróticos da cama. Um banho e uma carícia. Pelo menos era alguma coisa.
Yates deteve o cavalo no cimo de um pequeno planalto. Observou a paisagem à sua volta. Era, sobretudo, plana e o mar próximo adentrara-se, criando, ao fundo, uma
linha costeira irregular e mutável. Áreas de pântano alternavam com terras aráveis que cingiam qualquer elevação presente.
Teve de se rir de si próprio quando analisou a paisagem tão pouco promissora. Devia ter dado ouvidos ao pai e deixado o assunto em paz. Não admirava que a contestação
nunca tivesse sido investigada. Se o resto da propriedade fosse assim, só tinha vindo perder tempo. Mais valia ter ficado em Elmswood com Cassandra.
Visto que já viajara tanto, fez o resto do caminho. Meia hora depois, aproximou-se de um rebanho pastoreado por dois cães e um homem. Yates saudou o sujeito, que
o inspecionou seriamente antes de lhe retribuir o cumprimento. As roupas indicavam que o homem não seria pastor, mas sim rendeiro. Trazia vestido um casaco que,
embora velho, lhe dava um aspeto fidalgo.
Yates saltou do cavalo e apresentou-se. Mr. Harper, que reparara claramente nos casacos e na sela de Yates, alegrou-se quando percebeu que o visitante era aristocrata.
– Vêm tratar de pôr algumas defesas, finalmente? – perguntou. – Não sei o que é preciso para o Parlamento e os serviços atuarem. Pelas luzes nos pântanos, à noite,
é fácil ver que alguém anda a tramar alguma. Estiveram alguns homens aqui em junho, para ver como as coisas iam, e eu disse-lhes isso. Agora com os irlandeses, que
só falta entregarem a costa oeste ao inimigo, estou a pensar mandar a minha mulher para a família que vive a norte, por proteção.
Yates perscrutou a costa. Não era muito longe ir dali a Southampton, por isso duvidava de que houvesse algum perigo. Era evidente, contudo, que Mr. Harper se sentia
vulnerável. O terreno podia não ser acolhedor para os desembarques dos franceses, pequenos ou grandes, mas também significava isolamento para os poucos que ali viviam.
– Não falo pelo exército nem pela marinha – replicou Yates. – Mas transmitirei aos responsáveis aquilo que vejo aqui.
Mr. Harper decidiu que se tratava de um convite para lhe mostrar tudo quanto havia. Apontou para os sítios onde alegadamente vira luzes e levou-o até a uma zona
especialmente pantanosa para indicar um barco abandonado. Pareceu a Yates que este se encontrava meio apodrecido, e pareceu-lhe que já lá estaria há alguns anos.
Deixou Harper falar, pois o homem tinha muito a dizer. Só uma hora mais tarde, quando regressavam ao sítio onde os cães guardavam as ovelhas, é que abordou a verdadeira
razão da sua visita.
– É rendeiro, Mr. Harper? Ou esta terra é sua?
– Espero, se algum dia tiver terra, que seja melhor do que esta, senhor.
– E de quem é ela, então?
– Bom, isso não é evidente.
– Tem de pagar as suas rendas a alguém.
Mr. Harper riu-se.
– O dinheiro sai-me da carteira, isso é certo. Se e como vai parar a outra depois, já não sei.
– Certamente que vai parar à carteira da pessoa a quem deu a sua assinatura.
– Pois assim seria esperado. Estava a contar com isso. Mas a minha família assinou com uma pessoa e depois a terra foi vendida a outra.
Caminharam lentamente até ao rebanho. A massa de ovelhas arrastou-se como se fosse um animal grande e disforme, servido por inúmeras patas.
– Com quem é que assinou?
– Com um feitor. O meu pai disse-me que a propriedade pertencia a Highburton quando ficámos com ela. Isso foi... oh... faz uns bons trinta anos que ele me disse
isso, e a minha família estava cá há pelo menos outros tantos. Mas a certa altura começou a vir outro feitor buscar as rendas, quando eu era rapaz. Quando eu passei
a tomar conta, disse-lhe que precisávamos de alguns melhoramentos e que perguntasse sobre isso a Highburton. Foi aí que soube que já não era ele.
Parecia a Yates que Mr. Harper devia ter uns quarenta e tal anos. O seu tempo de rapaz tinha passado há muito. Fosse qual fosse a disputa que envolvesse a propriedade,
acontecera bem lá atrás.
– Qual é o nome do feitor que vem buscar as rendas, agora?
Mr. Harper olhou para ele com ceticismo.
– Vai querer falar com ele? Se pensa em comprá-la, saiba que não serve para nada a não ser ovelhas e, mesmo para isso, mal. Por isso não vale a pensa pensar em mais
rendas.
– Ninguém está à procura de aumentar as rendas. Tenho a certeza de que, quem quer que seja o proprietário destas terras, está grato pela sua longa permanência e
nenhum proprietário futuro desejará vê-la terminada. Pergunto em nome de um familiar que mostrou interesse. Vejo que não serve para muito, mas prometi investigar
o assunto.
– Bom, se as rendas ficarem iguais, não me faz muita diferença quem tem interesse. O homem com que tratava, há anos que deixou de vir. Agora não vem ninguém. Mando
as rendas para a cidade, para o Banco de Inglaterra.
Parecia que a propriedade fazia parte de um fideicomisso. Se assim fosse, seria difícil saber muito mais acerca dela.
Agradeceu a Mr. Harper e montou no cavalo para dar uma volta pelo resto da propriedade e ver se era tão pouco promissora como aquela secção.
Cassandra acomodou-se no divã da biblioteca e encavalitou o livro na barriga. Embora gostasse da companhia de Ambury, aqueles dois dias sozinha tinha sido muito
agradáveis. Eram as primeiras horas que passava a sós desde que fora para casa da mãe, e sentira falta de estar sozinha com os seus pensamentos e sem despesas de
conversa.
O ar agradavelmente fresco entrava por uma janela próxima. Os cheiros outonais e o friozinho do outono anunciavam que o calor do verão estaria vários meses sem regressar.
Perguntou-se se Ambury se comprazera com a desculpa para se ausentar durante alguns dias. Estava tão pouco habituado a ter uma companhia constante como ela. Era
verdade que a estadia ali lhes tinha proporcionado uma série de explorações sensuais, e homem nenhum se importava com aquilo.
Ao dizer-lhe que ele gostava de ter uma mulher que podia tratar como amante, dera-lhe permissão para fazer exatamente isso, ou assim parecia. O resultado fora espantoso.
Algumas das ordens que dera haviam-na chocado, embora ela nunca se tivesse permitido transparecê-lo. Havia gestos de afeto, também. E, porém, a intimidade essencial
das primeiras noites perdera-se, ainda que o prazer fosse mais do que satisfatório em todas elas.
Ele não se importava com as horas que passava na cama nessa altura. Também parecia apreciar os jantares para os quais os vizinhos do campo os convidavam, e as longas
cavalgadas de inspeção à propriedade. Contudo, uma proximidade tão grande nem sequer era normal entre marido e mulher, e ela suspeitava de que ele ansiava regressar
à cidade, com os seus clubes e atividades mais variados.
O dia límpido chamava-a e ela preteriu o livro em favor de um passeio pelo jardim. O percurso conduziu-a à galeria. Era um espaço alto, largo e bastante sombrio.
Quadros escuros revestiam as paredes, poucos dos quais de grande interesse. Muitos não eram sequer decifráveis. Decidiu pedir a Emma instruções de como os limpar.
No entanto, naquele dia a luz permitia maior visibilidade do que de outras vezes, e ela parou para admirar uma paisagem que lhe atraíra a atenção antes. Reparava
agora que incluía umas figurinhas minúsculas num ponto intermédio da cena. Duas delas transportavam algo, talvez um corpo amortalhado. A paisagem vasta e luxuriante
anulava qualquer funeral retratado.
Estavam vários retratos pendurados por cima da paisagem, dispostos em fila vertical até ao ornamento da cornija. O olhar de Cassandra subiu pela composição até ao
quadro da mulher que a encimava. Os olhos desta chamaram-lhe a atenção, assim como a boca e a linha do queixo. A semelhança com Ambury era notável. Os objetos de
adorno comunicavam que seria uma antiga condessa, e pelas roupas que trazia, talvez fosse a sua tetra...
Os pensamentos esfumaram-se. O olhar dela estacou na peruca empoada da senhora e nos brincos que pendiam por detrás dos exagerados caracóis.
Semicerrou os olhos para olhar bem para eles. O verniz antigo obscurecia-os grandemente, mas, a não ser que os seus olhos a enganassem, parecia-lhe que, por baixo
da camada amarela, safiras pendiam de engastes onde se viam cravados grandes diamantes.
Sentiu uma desilusão aguda no coração.
Ambury andava a investigar a tia dela, mas não era para um qualquer indivíduo. Julgava que os brincos haviam sido roubados à sua própria família.
A mente de Cassandra revirava-se em pensamentos do que significaria aquilo e se a promessa que ele fizera de proteger a tia Sophie fora honesta. Andando de um lado
para o outro debaixo do olhar daquela antecessora, rogou pragas a si própria pela imprudência que cometera.
Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer, desde que não comprometa a minha honra. Servir-lhe-ia de muito se ele concluísse que a tia Sophie
era uma ladra.
Murmurou mais impropérios para si própria, por não ser capaz de perceber o que ele tramava e por não entender o peso que ele dava àquela promessa. Precisava de falar
com Sophie e pedir-lhe a verdade com muita clareza, para ser capaz de encontrar uma forma de lhe oferecer proteção.
Enquanto ponderava e planificava, um criado entrou na galeria. Transportava uma salva onde se via uma carta. Reconhecia a caligrafia da tia a dois metros de distância
e apressou-se a pegar nela. Disse ao criado que aguardasse porque tencionava escrever uma resposta rápida. Enquanto ele se retirava, ela quebrou o selo.
«Perigo! Drama! Um novo salvamento! É por esta razão que lhe escrevo, querida Cassandra», assim se iniciava a carta de Sophie. Alarmada, Cassandra devorou o resto.
«O seu aborrecido irmão voltou aqui para me tirar de casa. Felizmente, os criados do Highburton negaram-lhe a entrada. Graças a Deus que conseguiu que o Angus viesse
substituir o Sean». Cassandra não sabia de nada. Se um escocês viera substituir o outro, fora por mera coincidência. «Não há nada como um escocês robusto para pôr
um covarde como o Gerald a correr. Que desilusão que ele me saiu!»
«Ameaçou-me de alguma coisa com a lei e um advogado e uma convocatória iminente para o tribunal da Chancelaria. O Angus mandou chamar o Southwaite imediatamente.
Como desenlace, fui mudada para a casa da Emma, mas o Southwaite não pode ignorar uma convocatória do tribunal se esta chegar, e é só uma questão de tempo até o
Gerald descobrir que estou aqui. Seja como for, tenho a certeza de que estou protegida até a Cassandra regressar à cidade e decidirmos então o que fazer.»
«Não tem de se preocupar, querida. Agora está tudo bem.»
Não tinha de se preocupar? O irmão comportava-se como um louco. Já devia ter ficado a saber que ela e Cassandra estavam longe das suas garras. Aquela perseguição
à tia Sophie devia ter terminado, agora que ele já não tinha qualquer poder de coação.
Em vez disso, tentara raptá-la novamente. Como punição por Ambury lhe ter levado a melhor? Em retaliação por este lhe arruinar os planos? Talvez não fosse nada mais
do que a expressão do seu despeito e da sua raiva. Quem saberia quanto tempo mais continuaria com aquela atuação?
Assaltou-a todo o tipo de potenciais desenvolvimentos. Era possível que na semana seguinte, quando regressasse, descobrisse que Sophie tinha desaparecido e que Gerald
se intitulara seu guardião.
Não se atrevia a correr aquele risco.
Atravessou a galeria com passos decididos e disse ao criado que chamasse o mordomo.
Londres estava adormecida à hora que Yates parou o cavalo, após uma viagem extenuante praticamente sem descansar. Amarrou o animal à frente da casa da família e
entrou. Arrancou aos seus sonhos o criado que atendia à entrada ao tocar-lhe no ombro. Envergonhado, o homem levantou-se de um salto e foi imediatamente tratar do
cavalo.
Yates subiu as escadas até aos seus aposentos. Lá dentro, tirou o casaco e a camisa e lavou-se com a água que um criado lhe trouxe. Higgins fora deixado em Elmswood
e vinha de carruagem, por isso tratou de si próprio.
Assim que soube que Cassandra tinha saído de Elmswood Manor apressadamente, ele próprio fizera o mesmo, embora não fosse evidente se tal seria necessário. Apenas
conseguira saber pelo mordomo que chegara da cidade uma carta que reclamara a presença dela lá. A explicação da senhora, um bilhete dizendo que a carta viera da
parte da tia, pouco fizera para clarificar o assunto.
Ele contara encontrar a casa adormecida, por isso surpreendeu-o deparar com um fio de luz por baixo da porta de Cassandra, quando avistou o corredor. Imaginara que
aguardaria pela manhã para inquirir por que razão a sua noiva tinha desaparecido, deixando somente uma frase como explicação. Aquela luz suscitou-lhe preocupações
que se sobrepuseram à irritação que transportou com ele durante as três horas que passou montado no cavalo.
Talvez a tia tivesse sofrido algum acidente ou se encontrasse doente. Talvez houvesse alguma situação trágica. Não gostava de pensar em Cassandra sentada sozinha
no quarto se tal fosse verdade.
Empurrou a porta e viu-a sentada à secretária, concentrada naquilo que escrevia. A luz da lâmpada dourava-lhe o perfil. Os olhos pareciam muito escuros, as pestanas
muito espessas, e os caracóis que lhe caíam em cascata pelas costas haviam-se furtado à disciplina imposta por uma qualquer escova.
Pegou numa cadeira pequena pelas costas, colocou-a ao lado da secretária de frente para ela e sentou-se. Ela pousou a caneta no suporte e enfiou a carta debaixo
do mata-borrão.
– Só contava consigo daqui a alguns dias – declarou ela. – Instruí o mordomo para lhe dizer que devia concluir tudo o que tinha necessidade de fazer no Essex e que
eu me orientaria aqui sozinha.
– Ele é demasiado discreto, e sensato, para transmitir uma mensagem como essa. Temeria que não me parecesse bem, a minha mulher dar-me autorização para fazer isto
e aquilo, e provavelmente recearia que eu pudesse culpar o mensageiro se mo transmitisse dessa forma.
As pestanas de Cassandra desceram-lhe sobre os olhos, deixando-o sem saber se o que ela escondia era humor, arrependimento ou rebeldia.
– As minhas desculpas. Saí tão à pressa que não pensei na forma mais adequada de o fazer.
– Não havia forma adequada de o fazer.
A frieza dominou o tom de voz de Cassandra ao responder:
– Ai não havia? Mesmo se uma emergência altera todos os planos?
Vasculhou nalguns papéis que estavam ao canto da secretária, tirou um e deu-lho.
Ele leu a dramática saudação de Sophie, depois o resto.
– Parece que o Southwaite tomou o assunto em mãos. Até a sua tia escreve que não é necessário preocupar-se.
– Também escreve que o Gerald ameaçou levar o assunto aos tribunais. O Southwaite não poderia desobedecer a nenhuma ordem que a convocasse, e não tem qualquer posição
para a defender. Recaía sobre mim a incumbência de procurar outro sítio onde ela ficar, rapidamente, no qual estivesse em segurança e o Gerald nunca pensasse em
procurá-la.
Ele bateu com a carta na madeira da secretária enquanto decidia se enveredava pela discussão necessária naquele momento ou mais tarde. Ela fitou-o, nada intimidada.
– Onde a colocou?
– Julgo que será melhor não o saber.
– Cassandra, é minha mulher. Sou responsável pelas suas ações. Preciso de saber o que fez, independentemente de isso lhe parecer bem ou não.
– Não se recusará aos tribunais, tal como o Southwaite. Pode impedir a entrada ao Gerald, mas não desobedecerá a uma convocatória.
– E a Cassandra, desobedeceria?
– Se necessário, sim.
– Não posso permiti-lo.
O olhar que lhe dirigiu comunicava o que a sensatez a impedia de dizer. Não importa o que pensa permitir.
– Sempre soube que é bastante ousada, Cassandra, e que não tem inclinação para obedecer a regras que não aceita. Suponho que não possa ficar surpreendido por se
recusar a ser uma mulher obediente.
– Sou bastante obediente, Ambury. No entanto, visto que me casei consigo para a proteger, não pode ficar surpreendido que eu lhe desobedeça para o fazer.
A discussão continuava a aguardar, qual tempestade no horizonte. Tornava o ambiente hostil e a conversa afiada. O olhar que ela lhe dirigiu desafiou-o a desalinhar
as nuvens negras, como se lhe aprouvesse uma boa tempestade.
Pela primeira vez, ele perguntou-se se, por tudo o que lhe era mais caro, se condenara a partilhar a vida com uma estranha. Não era pelo facto de ela ter desertado
tão depressa da lua de mel sem pensar por uma vez nos sentimentos dele. Nem sequer porque a lealdade que dedicava à tia prevalecia sobre a lealdade que lhe dedicava
a ele. E não era por ela ter comparado o casamento dos dois à relação entre amante e protetor, e o ter desafiado a fazer o mesmo.
A verdadeira razão estava na forma como ela o olhava.
Ela não confiava nele.
– Amanhã explico-lhe o que espero e o que não espero ver no seu comportamento no futuro. Por agora, vamos para a cama.
Ela olhou-lhe o peito nu e a pergunta transpareceu no olhar.
– Desejo-lhe boa noite, Cassandra – disse, levantando-se e afastando-se. – Passei demasiado tempo em cima de um cavalo e não tenho disposição de dar qualquer tipo
de lição à minha mulher hoje à noite.
Caminhou a passos largos até ao quarto. Lá dentro, não estava acesa nenhuma lâmpada e não teve vontade de ir buscar a do quarto de vestir. Sem tirar mais nenhuma
roupa, caiu em cima da cama e, quando o rosto tocou a colcha, já estava meio a dormir.
A mão sentiu um alto. Fechou-a para o agarrar. Suave e irregular, o invólucro era permeável ao tilintar do seu conteúdo.
Curioso, levantou-se e transportou a sua descoberta para o quarto de vestir. Assim que a lâmpada o iluminou, soube o que era.
Abriu o cordão da bolsa de veludo e deixou cair o conteúdo na palma da mão. Safiras e diamantes cintilaram. Um papel dobrado caiu ao chão. Pegou nele.
Pedi-os ao Prebles hoje à tarde. Os trinta dias terminaram. Visto que as nossas circunstâncias se alteraram, dou-lhos sem qualquer custo para si. Devolva-os ao cofre
da família, Ambury. Como futura condessa, acabarão por ser novamente meus, espero.
Pousou as joias e a mensagem que mostrava claramente que Cassandra já conhecia a razão pela qual ele insistira tanto em saber como é que os brincos tinham ficado
na posse da tia. Não admira que mostrasse tanta frieza e reserva em relação a ele, ainda há pouco. Claro que agora não confiava nele, se é que alguma vez confiara.
CAPÍTULO 21
Cassandra levantou-se cedo, colocando um fim misericordioso a uma noite muito inquieta. A conversa com Ambury repetira-se na sua mente durante o tempo todo que estivera
deitada, e esperava que vestir-se exorcizasse as memórias desconfortáveis.
Nunca o vira verdadeiramente irritado anteriormente, mas adivinhara em como não seria do tipo de homem de se pôr aos berros. Em vez disso, o estado de espírito que
o ocupava extravasava dele com uma intensidade silenciosa. O seu rosto tinha a capacidade de mostrar grande dureza quando ele não o amenizava com sorrisos e o humor
sagaz. Na noite anterior, quando ele se sentara na cadeira que atirara para perto da escrivaninha, parecera-lhe uma escultura de gelo.
Aquela raiva profunda não fazia qualquer sentido. Ele sabia para onde ela fora, e porquê. É verdade, o plano fora passarem duas semanas juntos no Essex e habituarem-se
um ao outro como casal que eram. No entanto, a união dos dois não fora de amor e a partida dela dificilmente interrompera um idílio romântico há muito aguardado.
Saiu de casa vestida para o dia e dirigiu-se a passos largos para Oxford Street. Por muito que desfiasse argumentos, o óbvio desagrado com que ele a confrontara
deixara-a inquieta e um pouco triste. A reação dele fazia ainda menos sentido do que o seu comportamento. Dos dois, era ela quem tinha direito de estar irritada,
não ele. Não lhe via razão para tanta sobranceria. Não poderia, por nada, alegar que ela o havia magoado.
Sentiu um alerta quando a palavra lhe ocorreu. Pressentira-a nele, assim como alguma consternação. Tentou rejeitar aquela ideia como sendo ainda menos lógica do
que todas as outras. Não tinha a capacidade de magoar Ambury, disso tinha a certeza. Contudo, não conseguia deixar de sentir que a conversa da noite anterior revelara
uma brecha entre os dois que não constava das que conheciam quando proferiram os votos em casa de Kendale.
Uma melancolia voltou a avolumar-se dentro dela. A tristeza incluía uma sensação de perda, talvez pela familiaridade fácil que ela e Ambury partilhavam. Prosseguiu
o caminho, esperando que o peso que lhe dominava o humor aligeirasse com o passar do dia.
Uma hora depois, saiu de uma carruagem alugada em frente à Fairbourne’s. O edifício tinha um aspeto frio e quedo. Confiava que Emma recebera a carta que ela tinha
enviado no dia anterior e que tratara das coisas que lhe pedira. Quando deparou com a porta da frente destrancada, soube que sim.
Outras provas de que tudo se encontrava em ordem alinhavam-se na grande parede da galeria. Viam-se alguns quadros, incluindo a estranha pintura de cariz primitivo
que tanto apaixonara Emma quando chegara para avaliação.
Emma saiu do escritório, fresca e adorável num vestido verde- -claro que combinava com o cabelo castanho igualmente claro. Deu um beijo a Cassandra, recuou um passo
e cruzou os braços.
– O que anda a tramar? O Southwaite não ficou satisfeito por ter feito desaparecer a sua tia quando ele não estava em casa. Deu-me indicações para descobrir para
onde a levou.
– Seria melhor ele não saber, o que significa que a Emma também não saberá.
– A preocupação dele é a segurança dela. Espero que saiba disso, Cassandra. Não quer que o seu irmão volte a levá-la.
– O seu marido faz parte do governo e jurou preservar o primado da lei. Por favor não insista para que lhe dê o paradeiro dela, Emma. Sabe que tenho razão em guardar
segredo.
– Até do Ambury?
– Sim.
Especialmente de Ambury.
– Vai enfrentar o mundo inteiro, sozinha? E agora, a vinda de Herr Werner. Vai dizer-me porque me fez convidá-lo para ver estes quadros?
Herr Werner era o emissário particular do conde Alexis von Kardstadt, membro da família real da Baviera, que trouxera a coleção de arte do seu amo para Londres na
primavera anterior. Os quadros do conde tinham sido a principal atração do leilão da Fairbourne’s, no qual Cassandra vendera também as suas joias.
Herr Werner sabia como é que a tia Sophie acumulara as suas joias, porque o conde fora um dos amantes que a presenteara com algumas. Cassandra esperava convencê-lo
a explicar o que sabia a Ambury, para debelar qualquer suspeita de que a tia Sophie pudesse tê-las roubado.
– Presumo que ele cá esteja não só para vender, mas também para comprar. Com os fundos daquele leilão a pesar-lhe na bolsa, ocorreu-me que a sua leiloeira poderia
ser um bom sítio para ele começar a aliviar a sua carga.
– Que bondade sua pensar no melhor interesse da Fairbourne’s. Sei que há mais alguma coisa por trás, mas permito-lhe que guarde reserva sobre esse assunto também,
se insistir.
Cassandra pegou nas mãos de Emma.
– Sente-se magoada por eu não me abrir consigo? Deveria contar-lhe tudo e deixá-la a si a braços com a tarefa de decidir o que contar ao seu marido se ele lhe pedir
informação? Não quero ser fonte de descontentamento dele em relação a si.
Emma sorriu com pesar a apertou as mãos da amiga.
– Tornou-se complexo, não foi? Gerir a nossa amizade, agora que estamos casadas. Não estou magoada, mas preocupo-me consigo.
Cassandra procurou tranquilizá-la, mas sons vindos da rua distraíram-nas. A vistosa carruagem que Herr Werner se acostumara a usar em Londres parara à frente do
edifício.
Herr Werner tinha um aspeto muito diferente daquele que apresentara no início do verão. Um corte de cabelo elegante dava-lhe aos caracóis louros um aspeto desalinhado.
As roupas tinham perdido o toque militar da sua primeira visita. Quando se aproximou de Emma, mostrou toda a deferência com que tratara o marido, mas um brilho de
familiaridade notou-se no olhar, talvez devido ao facto de a ter conhecido quando ela era apenas a filha de um leiloeiro.
– Condessa – cumprimentou, beijando-lhe a mão. – Foi gentil da sua parte pensar no meu amo, com relação às raridades que a sua família descobriu. Estou ansioso por
as ver.
– Não ficará desiludido. Lembra-se de Lady Cassandra Vernham, tenho a certeza. Ela também veio examinar os quadros.
– Claro. Minha senhora – cumprimentou, beijando a mão de Cassandra. – Agora, sinto-me duplamente grato pelo convite. Fico tão satisfeito por me encontrar em Londres
nesta altura. Tem sido raro nos últimos meses. A hospitalidade de incontáveis cavalheiros têm-me permitido viajar pelo vosso fascinante país.
– Vamos apreciar arte juntos, Herr Werner, e conversar sobre as suas viagens – convidou Cassandra.
Aceitou, então, o acordo dele e o seu braço. Espreitou Emma por cima do ombro, quando começaram a andar e abanou a cabeça quando esta fez menção de os seguir.
Pararam em frente ao pequeno quadro, primitivo e peculiar, de que Emma gostara. Herr Werner parecia tão desconcertado como Emma quanto ao seu valor. Cassandra repetiu
o que ouvira Emma dizer sobre a sua antiguidade.
– Tem aproveitado para caçar nos condados que visita? – perguntou, quando retomaram a marcha.
– Como é que adivinhou? Pelo bronzeado do rosto, não? Nem um bom chapéu consegue poupar-nos ao sol de horas. É com alívio que lhe digo que me familiarizei muito
bem com os mosquetes. Como representante do conde, não queria parecer desastrado.
Representante do conde, agora, já não um seu criado. Herr Werner procedera a uma elevação de estatuto durante os meses passados em Inglaterra, o que explicava a
hospitalidade generosa por parte dos outros cavalheiros.
Cassandra inclinou-se para examinar o quadro holandês que retratava o interior de uma casa.
– A mulher deste quadro faz-me lembrar a minha tia.
Ele observou-o também.
– Espero que Lady Sophie esteja bem.
– Está tão bem como quando a viu, em março. Foi a última pessoa que ela recebeu, porém, e praticamente a única no espaço de um ano. A sua amizade deve ser excecional.
– A honra não foi minha, mas sim do conde, como também a amizade.
– Ele deve ter ficado satisfeito por saber que recuperou o rubi. Era uma peça magnífica. Tive pena de a perder.
Notou um decréscimo de provavelmente vinte por cento no leilão depois de Sophie a fazer devolver o colar de rubi e pérolas a Herr Werner.
– Foi mais alívio do que alegria, julgo eu. É uma joia de família importante, com uma longa história, que faz parte do tesouro da família.
– Ele devia estar completamente apaixonado, para lha oferecer – comentou ela com uma gargalhada. – Ouvi dizer que a minha tia tinha esse efeito nos homens. Foi sensato
da parte dela reconhecer que o arrependimento não tinha a ver com a paixão, mas sim com uma generosidade irrefreada. Uma mulher diferente podia tê-lo mandado embora
de mãos vazias.
O olhar de Herr Werner continuava no quadro holandês.
– O conde é muito generoso, e não tem arrependimentos, isso é verdade. Mas não é imprudente no que diz respeito a mulheres e nunca lhe faltaria a moderação ao ponto
de oferecer uma joia de família a uma amante passageira.
Passou ao quadro seguinte. Cassandra permaneceu no mesmo lugar, tentando vencer a amarga desilusão. Herr Werner acabava de lhe dizer que o colar não fora nenhum
presente amoroso. E as outras joias todas?
Fora cega em não o ver, há tantos anos. Herr Werner tinha razão: condes não ofereciam de presente joias de família às suas amantes. Compravam outras joias se quisessem
coroá-las.
Ver joias de família a ornar o corpo de uma amante... Ela pensara que as anotações tinham sido feitas para a tia Sophie se assegurar de que aquilo não acontecia.
Agora, ao que tudo indicava, as notas tinham como único objetivo garantir, desde logo, que este aristocrata ou aquele príncipe não soubessem quem subtraíra os tesouros.
Não. Ela não pensaria tais coisas acerca da tia Sophie. Era injusto e indigno fazê-lo.
Herr Werner voltou para junto dela.
– Talvez devesse ter sido mais discreto. Presumi que sabia, uma vez que cedeu tão facilmente o colar. Tem de compreender... Não posso deixar que alguém diga que
o conde exige a devolução de presentes que deu de livre vontade. Coloca em causa a sua honra.
– Está a sugerir que não foram dados de livre vontade? Duvido que ela lhe tenha encostado uma pistola à cabeça para que lhe fossem oferecidos de presente.
– Agora ficou perturbada, e irritada. Lamento. Digamos que houve um equívoco que resultou na aquisição das joias por parte da sua tia. Foi assim que o conde expôs
o assunto na carta que lhe escreveu, e ela aceitou a visão dele assim que leu as suas palavras.
Um equívoco? Que tipo de equívoco poderia ser? O conde era um canalha que se arrependera do presente dado depois de arrefecido o caso amoroso, nada mais. A única
alternativa era impensável.
Não obstante, surgiu-lhe uma memória. Recente, de uma tia Sophie grisalha e discreta a esgueirar-se para dentro da biblioteca de Ambury enquanto o criado deste era
distraído por outra pessoa.
Depois, acorreram outras, da sua viagem com Sophie, de ser o centro das atenções em salões, em que deslumbrava aristocratas como Sophie costumava fazer, enquanto
esta desaparecia. Não acreditava que a tia se pusesse a vasculhar estojos de joias nos quartos de vestir. Era errado pensar sequer uma coisa daquelas. E, contudo...
Herr Werner ofereceu-lhe novamente o braço. Quando ela o aceitou, hesitante, deu-lhe palmadinhas na mão.
– Vamos ver o resto dos quadros enquanto se acalma, cara senhora.
– Foi uma perda de tempo, tal como na convocatória anterior – comunicou Kendale. – Luzes no mar, disseram-me. Se havia algumas, eram das nossas próprias forças navais.
O mar está cheio delas, embora não seja evidente o que fariam se uma frota francesa carregasse contra elas.
Relatava o acontecido enquanto observava, com Yates e Southwaite, um jovem cavalo castrado ser arrebatado no Tattersall’s. Homens de todas as proveniências enchiam
o pátio, muitos dos quais se concentravam junto da bancada onde o leiloeiro incitava às licitações.
Southwaite fora vender, e talvez comprar. Yates fora fazer companhia a Southwaite até um dos seus garanhões ser posto à venda. Presumia que Kendale se tivesse juntado
a eles para alguém o ouvir queixar-se.
– Eles não saberiam o que fazer – comentou Southwaite. – Você sim. É por essa razão que é sensato ser o Kendale a atender as convocatórias quando elas nos chegam.
– Não me insulte elogiando-me como a um rapazinho. Qualquer um de nós saberia o que fazer. Sou eu sempre quem vai porque vocês se aproveitam de mim. Que diabo! Da
próxima vez será um de vós, não eu.
– Não é que passemos o tempo todo em festa – interpelou Yates. – O casamento não é só prazer. Logo verá. Vai saber a que me refiro.
– Não será para breve, depois de um testemunho como esse. Que diabo, Ambury. Só disse os votos há quinze dias e de repente parece um homem casado há quarenta anos.
– Só é assim porque, enquanto você tinha o traseiro em cima da sela, eu tive o meu quase o dia inteiro espalmado na cadeira de um advogado. Como os deveres maritais
me ocupam, não me sinto inclinado a simpatizar com um homem que não tem obrigações nessa área.
Voltou a prestar atenção aos homens que circulavam à volta deles, procurando avistar um em particular.
– Ele não está com grande disposição, Southwaite, e não me parece que a razão seja a tal cadeira do advogado. Sabe o que se passa?
– Consigo adivinhar. Já descobriu o paradeiro da tia de Cassandra, Ambury?
– Nem sequer cheguei a tentar. Conto saber tudo de que preciso mais logo.
– Conta? Eu contava ficar a saber de tudo ontem e, contudo, aqui estou, ignorante ainda.
– A tia perdeu-se? – perguntou Kendale. – Se se perdeu, não devem ficar aqui. Diga-me o que sabe, e eu ajudo-o a encontrá-la.
Yates lançou um olhar demolidor a Southwaite, por ter mencionado o assunto.
– Não se perdeu dessa forma. Foi-me garantido que está num sítio muito seguro.
– Um sítio que só uma pessoa sabe qual é – acrescentou Southwaite. – Se a minha mulher soubesse, tenho a certeza de que me informaria, como eu lhe ordenei. Uma vez
que não...
– Ah! – fez Kendale, eliminando em grande medida qualquer vestígio de humor da sua expressão, mas os olhos traíram-no. – Então é por essa razão que o casamento não
está a ser divertido, Ambury. Teve um desentendimento com a sua mulher enquanto eu estive fora. Não pode estar assim tão surpreendido por ela ser desobediente, se
possui um espírito tão invulnerável às restrições comezinhas.
Uma tempestade há dois dias latente, manifestou-se violentamente dentro de Ambury.
– Tenha muito cuidado com o que diz, Kendale. Está muito perto de a insultar, e eu não esperarei que seja explícito para o desafiar.
O sorriso ténue de Kendale desapareceu. Os olhos ganharam frieza.
– Já são dois homens prontos a matar por ela, o que é demasiado. Desobediente ou não, já lançou mão dos seus encantos. Uma vez que está completamente enfeitiçado,
desejo-lhe apenas felicidade na companhia da senhora.
Com isto, deu meia-volta e foi-se embora.
Yates fez menção de ir atrás dele, para lhe dar a tareia que precisava de dar a alguém para não rebentar, mas uma mão no braço deteve-o.
– É inegável que está de péssimo humor – disse Southwaite. – Mas não se deixe perder a razão. O que tinha na cabeça, a falar de duelos por uma coisa tão pequena?
– Ele insinuou...
– Nada de impróprio. Não gosta do facto de ela se recusar a dizer-lhe o que deseja saber, mas faz sentido quando ele diz que não deve surpreender-se por ela revelar
a mesma independência que sempre mostrou.
O facto de Cassandra não lhe ter revelado o paradeiro da tia ainda era o menos. Ressentia-se perdidamente pelo facto de ela ter decidido que ele não era de confiança,
e Ambury detestava que a descoberta da questão dos brincos lhe desse alguma razão.
Se aquilo fosse o princípio e o fim da história, o tempo e a lógica poderiam sanar tudo. No entanto, não lhe parecia que fosse assim.
Mesmo que naquele dia tivesse passado horas a registar as promessas que lhe fizera, espumava de raiva ao pensar na atitude que ela tivera na noite anterior, na saída
precipitada de Elmswood, no grau em que ela desejava preservar a sua independência de todas as formas possíveis. Era como se ela tivesse examinado a aliança deles,
pegado numa caneta e desenhado uma caixa à volta dele, e outra à volta dela, com uma única linha comunicante denominada «prazer». Não gostava daquilo. Ela era a
mulher dele, que raio!
Sacudiu a mão de Southwaite.
– Com licença. Tenho estado à procura de alguém e vou à sala dos subscritores para ver se essa pessoa lá está.
Só os membros do Jockey Club tinham acesso à sala dos subscritores do Tattersall’s, que servia de posto avançado daquele em Londres. Yates entrou pela porta do pátio.
O criado que estava de plantão saudou-o.
Não havia mesas nem cadeiras confortáveis. Ali, ninguém jogava às cartas nem havia nenhuma biblioteca a incentivar explorações intelectuais. Ao centro, uma mesa
fornecia utensílios de escrita e papel para registar apostas, mas, tirando isso, as paredes com painéis e o teto alto com a sua claraboia quadrada encerravam pouca
mobília. Os homens dirigiam-se ali principalmente para jogar, e as probabilidades que se definiam naquela sala ditavam aquelas que se jogavam por toda a Inglaterra
nas corridas maiores.
Yates ganhara e perdera a sua quota-parte de apostas no passado, mas não se encontrava ali para jogar novamente. Olhou os homens que conversavam e faziam tempo até
que o cavalo que cobiçavam saísse para o pátio. Avistou aquele que procurava quando um grupo de vultos a um canto se deslocou, revelando-o ao centro.
Yates aproximou-se e juntou-se ao grupo de aduladores. Um a um, os outros notaram a sua presença e afastaram-se, olhando por cima do ombro com ar desconfiado. Rapidamente
Yates se viu a sós com a sua presa.
– Parece que o mundo inteiro sabe que raramente nos falamos, agora, e receia que a conversa possa acabar mal – disse Penthurst.
– A proximidade do seu julgamento provavelmente pô-los a esperar o pior. Ou a esperar que aconteça. A cidade tem andado aborrecida, e dava-lhes jeito algum teatro
– declarou Yates.
– Veio desejar-me um bom julgamento? Ou dizer que espera que aconteça o impossível e eu acabe pendurado de uma corda?
Penthurst não acabaria enforcado. Nos tempos presentes, isso não acontecia a duques, muito menos por causa de um duelo. Ele diria que fora uma questão de honra,
os lordes concordariam e tudo estaria terminado.
– Não tencionava falar de todo disso, mas de uma outra coisa.
– Claro.
O tom de voz dele implicava que a recusa em falar daquele duelo era uma falta de carácter, previsível, aliás.
Yates combateu a vontade de falar sobre o assunto, longamente e a viva voz. Passara mais de seis meses a imaginar-se a enviar Penthurst para o diabo, por não ter
encontrado uma forma de recusar o duelo, ou de o terminar de forma diferente. Se começasse, não iria parar, e logo naquele dia. Os homens que os observavam teriam
o seu drama, pela certa.
– Por acaso sabe se os planos para erguer torres na costa estão a avançar? – perguntou, então.
Penthurst era amigo íntimo de Pitt e, embora recusasse qualquer ministério, parecia saber de quase tudo antes de qualquer outra pessoa.
– Não serão verdadeiramente torres, mas as fortificações servirão o mesmo propósito – respondeu Penthurst. – Há quem pense que é insensato e um desperdício de dinheiro.
Ganhou vida própria, porém, desde aquela história na Irlanda.
– Já se sabe onde irão construí-las?
– Está a ser decidido, julgo.
– Por quem?
Penthurst sorriu aquele sorriso que, gostando-se dele, até era tranquilizador, mas decididamente irritante, se não.
– O Highburton tem alguma localização em particular que gostasse de recomendar? Se sim, terá de se pôr na fila com todos os outros proprietários que acalentam a
possibilidade de arrendar ao governo a preços inflacionados e de comer do mesmo tacho.
– O dinheiro não me interessa. Gostaria de ter uma propriedade na lista por outras razões. Seria retirada mais tarde. Não chegaria a ser arrendada.
Penthurst fitou-o com dois olhos ponderados, escuros e fundos.
– Está a tramar alguma. Visto que é você, sei que não se trata da primeira coisa que me ocorre, que é fraude. Uma das suas investigações?
– Pode chamar-lhe assim.
– Em nome de quem?
– Do meu pai.
Os olhos escuros de Penthurst limitaram-se a continuar a olhar, profundamente.
– Como é que ele está?
– Melhor. Por enquanto.
Penthurst assentiu com a cabeça. Caminhou até ao centro da sala, em direção à mesa. O mar de corpos afastou-se para desenhar um corredor para ele, como se a sua
mera proximidade provocasse deferência nos outros. Ou desejo de largueza.
Pegou numa caneta.
– Presumo que tenha a localização da propriedade.
Yates pegou na caneta e anotou a informação.
– Há um rendeiro na localização mais provável, mas tem a certeza de que chegam franceses todas as noites, por isso não se oporá.
Penthurst pegou no papel e leu-o.
– Que peculiar. Posso poupar-nos tempo aos dois. Tenho a certeza de que esta propriedade já se encontra na lista. Não como posse de Highburton, porém. Parte de um
fideicomisso, se bem me lembro. O peculiar é a razão pela qual reparei nela.
– Sabe quem é que diligenciou para que fosse incluída?
– Não. Não me subornaram a mim.
– Consegue descobrir?
Matava-o pedir-lho. A pergunta parecia não querer fazer-se.
Penthurst deixou-a pairar no ar durante um bom bocado. Por fim, encolheu os ombros.
– Possivelmente, vou ver. – Dobrou o papel. – Ainda não o felicitei pelo seu casamento, Ambury. É uma mulher muito bela. Sempre julguei que os boatos a respeito
dela eram iniciados por senhoras pouco dotadas e muito ciumentas.
De repente, voltavam a aproximar-se perigosamente de todo o drama.
– Se pensa isso, porque é que...?
– Porque é que, o quê?
– O Southwaite disse que o Lakewood o desafiou porque o ouviu insultar uma mulher.
– Foi uma mulher que esteve na origem de tudo, essa parte é verdadeira. Mas ele não me desafiou por causa de nenhum insulto que eu tenha proferido.
Então era pior. As possibilidades deixaram-no ainda mais mal-humorado. Recordou-se de quando entrara na casa de Mrs. Burton e vira Penthurst ao lado de Cassandra.
Pare de pensar como um louco, ou então vai acabar por se portar como um idiota.
– Como cavalheiro, compreende que não posso dizer quem é, claro. Nem a si. Nem aos lordes – declarou Penthurst. – Suponho que, se mo pedirem, e a minha recusa em
explicar não for aceite, vá acabar pendurado por uma corda.
– Se assim for, prometo não dançar na sua sepultura.
Penthurst deixou sair toda a irritação.
– É compreensível que a sua lealdade pertencesse a ele e não a mim. Há muitos anos que eram amigos. No entanto, ele não era inteiramente o homem que você julgava,
Ambury.
– Tenho a certeza de que os lordes acreditarão nisso, se o senhor o diz. Atendendo às circunstâncias, sou o último homem que se tem de preocupar em convencer. Agora,
tenho de ir. Agradeço-lhe desde já a sua ajuda com a propriedade, se puder. Como pagamento, dou-lhe um conselho.
– E qual é?
– Corte o cabelo. Dá-lhe um ar antiquado. O que era sinal de independência de gosto há um ano, daqui a seis meses parecerá simplesmente excêntrico.
– Tenho andado a pensar nisso, embora a minha amante vá amuar.
– Então talvez também esteja na altura de fazer alguma alteração nesse departamento.
CAPÍTULO 22
Depois de sair da Fairbourne’s, Cassandra deu um longo passeio por Hyde Park para aclarar as ideias. Sentia-se desgostosa com o desenrolar da conversa com Herr Werner.
Teria sido melhor ter deixado o assunto em paz.
Só lhe faltara dizer que Sophie tinha roubado o colar ao conde. Além disso, Ambury sempre acreditara que ela roubara os brincos a Highburton, e agora as provas apontavam
todas para isso.
A devolução dos brincos dificilmente resolveria o assunto. O que iria Ambury fazer? Alguma coisa honrada, o que poderia ser muito mau para a tia Sophie. Era possível
que ela estivesse mais segura no lar do Dr. Wakely.
Podia pegar na tia e fugir, mas para onde? Já não era livre e independente. Aonde quer que fosse, Ambury tinha todo o direito de a seguir. Tampouco, admitia, desejava
fugir. Fizera votos, e a honra, a sua honra, pedia-lhe que tentasse cumpri-los.
Começou a perguntar-se se não seria melhor simplesmente deixar a tia no sítio onde atualmente residia. O resfolegar de um cavalo ao lado do seu ombro arrancou-a
aos pensamentos. Virou a cabeça e reconheceu imediatamente o animal, e o seu companheiro que puxavam a carruagem. O cocheiro freou os cavalos.
Um lacaio saltou da parte de trás do veículo. Ela não esperou por ele e aproximou-se, decidida, da porta. Aquele apressou-se a abrir-lha e a descer os degraus. A
seguir, ajudou-a a subir.
Ambury estava no interior. Mudou de lugar para lhe deixar o do sentido da marcha. Ela instalou-se com vagar, preparando-se para uma viagem desconfortável.
– Há alguma razão para não ter saído numa das carruagens da família? – perguntou ele.
– Talvez tenha saído simplesmente para dar uma volta pelo quarteirão e tenha mudado de ideias, tendo sido mais fácil entrar numa carruagem de aluguer.
– Pensei que talvez não quisesse que nenhum criado conhecesse o seu destino.
– Também. Visto que me encontrou quando quis, parece que falhei. Disse-lhes para me seguirem?
– Não tive de o fazer. Por cuidado com a sua segurança, o mordomo enviou dois homens para precaver o seu passeio. Um regressou com a informação de que tinha vindo
para aqui. Passear sozinha é uma das coisas que deve deixar de fazer, se criou esse hábito. A cidade é demasiado perigosa.
Cassandra não gostou da ideia de deixar de poder deslocar-se sem levar um criado atrás dela, mas, claro, era assim que seria a partir de agora. Emma já tivera de
se acostumar. Um dia, contudo, ela e Emma teriam de encontrar uma forma de desfrutar de um dia sem as respetivas escoltas, só para elas, como costumavam fazer.
Os portões do parque desfilaram na janela, depois as casas de Mayfair.
– Onde vamos?
– Não muito longe. Há uma coisa que quero mostrar-lhe.
Parecia em tudo igual à noite anterior. Severo e distante. Não disse mais nada, porém. Nenhuma pergunta relativamente ao paradeiro da tia Sophie. Nenhum sermão sobre
o comportamento que esperava. Nenhuma palavra acerca dos brincos. O silêncio dele inquietava-a mais do que qualquer boa discussão.
Pararam em St. James’s Square. Cassandra viu através das árvores a casa de Emma, do outro lado. Ambury saiu da carruagem e ofereceu-lhe a mão.
Ela acedeu e olhou em redor, perplexa.
– O Prebles colocou um agente imobiliário à procura de casas para arrendar – principiou ele. – Esta parece ser a melhor das propostas apresentadas. O que lhe parece?
Ela contemplou a fachada por detrás da carruagem. Era de bom tamanho, muito à semelhança da de Southwaite.
– É muito bonita. Aprecio a localização próxima da Emma.
– Julguei que apreciasse. Assinei o arrendamento esta manhã.
Tinha a chave com ele. Ela entrou e deparou com quartos espaçosos de janelas compridas e boas proporções. A casa estava equipada com mobília agradável que seria
mais do que adequada.
Subiram as escadas.
– Quando é que nos mudamos?
– Suponho que possamos fazê-lo assim que o pessoal for contratado. Os criados de Highburton estiveram aqui hoje, a limpar e a fazer as camas.
Os aposentos da senhora da casa tinham sido decorados em cores creme e verde-claro. A cama ostentava cortinas estampadas, que, tal como o resto dos tecidos, tinham
um aspeto tão limpo que só podia ser obra dos criados.
Gostou especialmente do novo quarto de vestir. Não era de longe tão amplo como o que ocupava atualmente, mas aquela dimensão tornava-o mais privado. A janela tinha
um assento acolhedor, do qual se viam os jardins das traseiras.
Ela sentou-se e admirou a vista.
– Julgo que me será muito agradável viver aqui.
– Fico contente.
Ele aproximou-se e olhou para ela.
– Fica muito bonita à luz desta janela, Cassandra. Julgo que me será muito agradável vê-la sentada neste recanto da nossa casa.
O comentário elogioso surpreendeu-a. Ele parecia sincero, ainda que não se mostrasse muito afável. A forma como a olhava deixava-a afogueada e inquieta. Por um momento,
não lhe pareceu tão distante como se mostrara na carruagem. Alguma da familiaridade que com facilidade se forjara durante as primeiras noites visitou-os.
Deveriam estar a ter uma discussão, não um momento romântico.
Ele pôs a mão dentro do casaco e tirou alguma coisa. Pegou na mão dela e despejou o conteúdo de um saquinho de veludo. Os brincos.
Ah! Seria agora a discussão.
– Encontrei isto quando me fui deitar. E o seu bilhete. São o motivo da frieza da receção que me foi feita ontem à noite, parece-me.
– Em parte. A sua atitude convidava igualmente a alguma invernia.
– Era minha expectativa passar duas semanas a desfrutar da sua companhia. Fui lento a aceitar que a sua tia teria precedência sobre tudo o resto, incluindo o seu
marido.
Ali estava. A reprimenda que merecia uma boa discussão. Estaria magoado por ela não ter pensado nele primeiro? Ou tratar-se-ia apenas de orgulho e sentimento de
posse?
Na noite anterior, talvez tivesse perguntado e, ao fazê-lo, ter-lhe-ia mostrado a falta de lógica do ressentimento dele. A dedicação que tinha para com Sophie não
deveria surpreendê-lo. Afinal, fora ela que proporcionara o casamento dos dois.
Os acontecimentos do dia tinham-na deixado tão desanimada que escolheu não se pronunciar.
Ele indicou a mão dela.
– Como é que soube?
– Vi um retrato, com uma mulher que os usava – disse ela. – Foi assim que soube que pertencem à sua família. Assim como soube que tem investigado a minha tia com
aquelas perguntas todas sobre a história deles. Conhecia a sua proveniência final melhor do que eu.
– Não vou negá-lo. Devia ter-lhe explicado assim que casámos, mas os brincos e a investigação deixaram de ser prioritários durante algum tempo.
– Uma vez que já os recuperou, não é necessário que voltem a sê-lo.
– Não é assim tão simples.
O tom de voz dele pareceu-lhe mais tranquilizador do que autoritário. Ela teria preferido o último. Ele não ia deixar o assunto em paz.
– A minha tia comprou-os num penhorista.
– O meu pai acredita que foram roubados antes de o meu avô morrer. Julga que houve uma traição na família. Não diz de quem suspeita, mas julgo que suspeita de alguém.
Pegou-lhe novamente na mão e fechou-lhe os dedos sob as joias, para ela as agarrar.
– Ele quer saber. É importante para ele. Se não fosse, eu nunca teria investigado depois de os comprar no leilão.
Ela nunca levaria a melhor se se manifestasse contra o dever que ele sentia ter para com o pai.
– Um criado deve tê-los tirado e vendido ao penhorista.
Ele olhou pela janela que a enquadrava. Ela via que ele se debatia com alguma coisa.
– A sua tia tinha muitas joias, Cassandra.
– Os amantes dela...
– Uma quantidade enorme de joias.
Ela não conseguiu manter a postura de indignação durante mais tempo. O dia abalara a confiança que ela tinha em Sophie, e as forças abandonaram-na. Tudo se pusera
demasiado confuso. Desviou o olhar, derrotada e infeliz.
– Suplico-lhe que não conte ao meu irmão as suas suspeitas. Utilizá-las-ia da forma mais cruel.
Ele segurou-lhe no queixo e voltou a erguer-lhe o rosto.
– Eu disse que a protegeria independentemente do que acontecesse, desde que não comprometesse a minha honra.
Ela sentiu o coração partir-se. Proteger uma ladra provavelmente estaria fora de questão.
– Precisamos de saber se alguma das joias foram roubadas – avançou ele.
– E se tiverem sido?
Ele sentou-se ao seu lado ao abrigo da janela.
– Cassandra, se ela fez isto com outras joias, elas devem ser devolvidas aos donos. Não posso ter uma mulher a viver em minha casa com o conhecimento de que roubou
coisas que nunca restituiu.
– Não me parece que ela possa viver connosco, de qualquer maneira. O Gerald leva-a embora se assim for. Fá-lo-á para me punir, embora agora me encontre fora do alcance
dele. É evidente que não desistiu.
– Eu trato do seu irmão. Não se atreverá a tirar uma pessoa da minha casa. O Prebles está a preparar uma petição para o tribunal da Chancelaria que deve resolver
o assunto de uma vez por todas. O seu irmão não conseguirá ser guardião em meu lugar, portanto não deve preocupar-se mais com isso.
Ela inspirou profundamente para a ajudar a recompor-se, mas algumas lágrimas insistiram em turvar-lhe a visão. Apesar da raiva com que chegara na noite anterior,
apesar da receção fria que ela lhe fizera, ele passara o dia inteiro a diligenciar para cumprir a promessa feita.
– Fez isto, mesmo sabendo... isto é... mesmo suspeitando... que ela...
– Disse que o faria, não disse? Relativamente àquilo de que suspeito, preciso de saber o que temos em mãos, com a sua tia. Está na altura de me deixar falar com
ela.
– Nunca o impedi de falar com ela. Foi ela própria que o fez.
– Podia ter ajudado. Não o fez. Em lugar disso, atrasou e dificultou. Evitou saber a verdade, e eu permiti-o, por sentimento.
Permitira-o. Se pensava que havia sido roubada propriedade da família, ele poderia ter encontrado uma forma de falar com Sophie.
*
Yates aguardou, permitindo que os dedos hábeis de Cassandra lhe abrissem os botões da camisa. Estava à sua frente, nua, a fazer por ele o que ele tinha feito por
ela. Em redor dos dois, só o silêncio. Nem os sons da cidade penetravam naquele quarto virado para os jardins.
Não havia criados, nem mais alma nenhuma nas proximidades. Iria mudar muito em breve, mas naquele dia agradava-lhe o isolamento e a novidade do lugar.
Ela levantou para ele os olhos cheios de malícia enquanto lhe desapertava a roupa de baixo. O seu toque chegou deliberadamente além dos botões e do tecido.
– Estava a contar ter uma discussão terrível consigo hoje – disse. – Do tipo de discussão irreconciliável para um casal. Penso que talvez desejasse fazê-lo, mas
que escolheu outro caminho.
Fizera-o, e ao fazê-lo deixara coisas por dizer que provavelmente nem deviam ser ditas. Somente votos não eram o bastante para criar confiança, muito menos lealdade.
Ela empurrou-lhe a roupa para baixo e segurou-lhe o membro com firmeza na mão.
– Sinto-me grata, hoje, por esta casa e pelo pedido, e pela sua disposição para suspeitar em vez de julgar saber. Como é que as amantes mostram a sua gratidão?
Ele puxou-a para um abraço para sentir o corpo dela no seu. A pele dela pareceu-lhe fria, mas aqueceu assim que se encostou ao corpo dele.
– Um homem teria de ser um idiota para não gostar quando a mulher lhe diz para a tratar como a uma amante. Contudo, por mais que tente, não consigo pensar em si
dessa maneira.
– Porque me falta experiência e competência? É suposto ser você a retificar isso.
Um homem teria de ser um perfeito idiota para fazer outra coisa que não concordar que aquele era o plano, e passar à lição seguinte.
Não tinha de esperar trinta dias, para Cassandra desenterrar memórias. Podia ter dado informação sob sua honra a um magistrado, e Sophie ter-se-ia visto obrigada
a explicar-se o melhor que conseguisse.
– Foi gentil da sua parte – disse ela. – Não tinha percebido o seu tato. Foi por não querer ter de dizer aos seus pais que quem os traiu não foi um criado, mas sim
uma velha amiga? Ou apenas por consideração para com uma mulher idosa que já não representa uma ameaça para as joias de ninguém?
Ele fez um sorriso breve, vincando levemente as linhas da boca.
– Julgo que o fiz para me dar tempo para a seduzir. Também como desculpa para a ver.
Que coisa mais desarmante para se dizer. O coração dela permitiu-se a infantilidade de uma pequena cambalhota.
– Então era tudo parte de um esquema para me acrescentar à sua lista de conquistas? Estou chocada, Ambury. Então talvez seja de justiça que tudo se tenha desenrolado
assim tão mal.
– Parece-me que acabou por se render – replicou ele, beijando-lhe os lábios. – Portanto, não me parece que tenha acabado assim tão mal, pelo menos para mim.
Tocou-a profundamente que ele dissesse aquilo, especialmente num dia que se seguiu a uma noite tão má.
– Para ser sincera, também não se revelou assim tão mau para mim – sussurrou ela.
Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a de novo, longamente, despertando-a. Não foi apenas o corpo dela que respondeu, mas também as suas emoções mais profundas.
Sentiu-se muito cuidada naquele toque e naquele beijo.
Observou-a enquanto deslizava o polegar nos lábios dela.
– A casa é nossa. Os lençóis são novos. Estou com vontade de ver se nos recebem bem.
A ideia seduziu Cassandra por razões que não o prazer. Precisava do reconforto de receber o toque dele.
Pousou os brincos na almofada, aceitou a mão dele e seguiu-o até ao quarto.
– Porque é minha mulher, e descobri que isso torna tudo diferente.
– Que inconveniente para si.
– Pode crer que o é. Mas é uma evidência. Mesmo quando os atos são os mesmos, a experiência não o é.
– Por diferente, quer dizer menos escandalosa, imagino, e, portanto, menos excitante. Mais respeitável, e com limites para aquilo que se faz. Sinto-me lisonjeada,
Yates, mas imagino que se revele menos bom para si. Estava a tentar dispor-me a ser muito, muito ousada, como os homens esperam que as amantes sejam, mas não quero
que pense mal de mim.
Ele deslizou as mãos pela pele dela, pensando que o prazer mais comezinho seria excitação o bastante para aquele dia, como para qualquer outro, se lhe fosse dado
tocar aquela fogosa exuberância.
– Ousada de que forma?
Ela depositou-lhe uma linha de beijos no peito.
– Uma vez disseram-me que tinha uma boca escandalosa. Mais tarde fiquei a saber o que queriam dizer com aquilo. Fiquei chocada, mas talvez me tenha habituado à ideia.
Contudo, não é algo que as esposas façam.
A excitação dele duplicou imediatamente de intensidade. Agarrou-a pelas nádegas e puxou-a para si, encostando-lhe o membro ao ventre.
– Na verdade, dizem-me que algumas esposas sim – sussurrou ele entre beijos desafiadores.
– Verdadeiramente?
– Hum.
– Quem diria... Então não se importa?
– Não, não me parece.
– Posso fazer mal. Nunca... – Ela olhou-o nos olhos e parou de falar. O rosto desenhou um sorriso endiabrado. – Oh, não me parece que se importasse minimamente.
– Olhou para baixo. Com os dedos, fez uma pequena dança sobre o membro dele, concentrando-se depois na ponta. – Deixe-me ver se... – Debruçou-se e deu-lhe uma dentadinha.
Sensações intensas dispararam dentro dele como um relâmpago. Cerrou o maxilar com uma força tremenda.
– Provavelmente seria mais fácil se me ajoelhasse.
– Talvez.
Sim. Já.
Ela baixou-se. A posição deixou-o numa expectativa insuportável. Via-lhe as costas elegantes, a anca bem-feita e a erótica curva das nádegas.
A nuvem de cabelo escuro inclinou-se sobre ele. Um calor de veludo envolveu-o e ele perdeu todo o juízo.
– Acho que os novos prazeres me beneficiam tanto a mim como a si – murmurou Cassandra entre arquejos profundos. – Isto é delicioso.
Ele retirou-se devagar e entrou profundamente. O que ela fizera não requeria aquela união demorada e lenta depois de ele recuperar. Podia com a mesma facilidade
possuí-la rapidamente.
Decidiu que não era do seu melhor interesse explicar-lho.
Parou, enterrado naquela incomparável suavidade até ao limite. Inclinou-se e curvou a cabeça para lhe estimular os seios. O gemido dela foi música para os seus ouvidos.
Ela cingia-o em subtis contrações. Era tão bom estar dentro dela. Passou a língua pelos mamilos duros e escuros até ela gemer incessantemente.
Ela dobrou os joelhos e acomodou as ancas, para o tomar mais profundamente. Fez beicinho e mudou novamente de posição.
– Está impaciente – disse ele.
Viu alçarem-se-lhe as sobrancelhas.
– Ao contrário de si, esta tarde ainda não estive em êxtase.
– Sabe que estará sem demora. Nunca a deixei descontente.
Ele retirou-se e voltou entrar, saboreando cada instante de sensação.
– Não tem de ser sempre à bruta, Cassandra. Pode dar grande prazer saborear os matizes.
– Como quando nos obrigamos a degustar um bombom muito devagar?
– Ou a deixar um bom brandy repousar na boca.
– O brandy não me diz nada, mas gosto de bombons.
Ele sentiu relaxar a frustração que a inquietava. Ela queria-o profundo e próximo, mas já não de impaciência. Ele retomou o movimento e pequenos sinais de deleite
espalharam-se pela expressão dela.
Não subiram a correr à montanha. Em vez disso, subiram mão na mão, parando aqui e ali para admirar a paisagem. Quando a escalada se consumou, desta vez, não houve
trovão. Para ele foi um suave aguaceiro que lhe inundou a essência de uma chuva cálida de comoção.
Cassandra reparou que o lusco-fusco escurecia, mas não se mexeu. Continuou aninhada no abraço de Ambury, receosa de que uma simples respiração mais profunda arruinasse
o momento.
Atreveu-se, contudo, a espreitá-lo. Ele tinha os olhos fechados, mas não dormia. Os seus braços estavam demasiado alerta.
O prazer de que desfrutaram tê-lo-ia comovido a ele tal como a ela? Pensara que talvez pelo menos um pouco. Havia momentos em que tinha toda a certeza de que gozavam
de uma ligação e compreensão perfeitas, e que a intimidade que partilhavam era completa. Perguntava-se, porém, naquele momento, se seria possível para um homem conhecê-la
tal como uma mulher conhecia. Perguntava-se igualmente se ele teria planeado aquilo, para propósitos seus. Talvez ele procurasse conquistá-la usando de ternura.
Era uma perspetiva ignóbil, mas não podia desconsiderá-la. Os votos não haviam tido o condão de a tornar maleável e obediente, mas aquele tipo de elo teria, definitivamente,
esse poder. Ocorreu-lhe que seria aquela a razão pela qual Emma tinha o cuidado de aplacar o orgulho e o temperamento de Southwaite. Não por causa de dever, de medo,
ou de falta de vontade própria, mas porque permitira que ele se apoderasse do seu coração de forma que só podia desejar a felicidade dele.
Ambury ergueu-se num braço e olhou para ela.
– Perguntou-me quando a pedi em casamento se aceitaria que tivesse amantes depois de me dar um primeiro e um segundo herdeiros. Decidi que não.
Ela desejou que ele não se pusesse a emitir ordens, qual conquistador, tão cedo.
– Confiei que se mostrasse razoável.
– É uma resposta razoável. Não terá qualquer amante. Nunca.
– É demasiado cedo para decidir isso. Precisará de esperar até a novidade do casamento esfriar e eu passar à categoria de incómodo.
– A minha visão não vai mudar.
Ela devia explicar que aquilo não era pensar razoavelmente. No entanto, ele pareceu-lhe inflexível e, naquele momento, a ideia de outro amante não lhe era minimamente
apelativa. Melhor seria travar as batalhas que fossem importantes.
Deixaram-se absorver pela intimidade e pela paz que partilhavam. Talvez, se ele não queria partilhá-la, tivesse experimentado algo semelhante ao que ela experimentara
naquele dia. Com as limitações de um homem, claro.
– Cassandra, preciso que me traga a sua tia para eu poder falar com ela. Confia o suficiente em mim para o fazer?
A questão pairou na escuridão crescente. Pelo menos era uma pergunta, e não uma ordem.
Confiara nele quando a pedira em casamento. Não havia razão para não o fazer agora. A não ser os brincos. Não fora uma desilusão pequena, e tocava em tudo quanto
era importante para ela em questões de confiança.
Procurou decidir com a cabeça. O seu coração não tinha capacidade para ser tão implacável. Nele havia confiança, independentemente das conclusões a que os pensamentos
chegassem. Reconhecer o que lhe ia no coração trouxe-lhe paz e alívio, e um sorriso interior.
– Levo-o a visitá-la amanhã à tarde.
CAPÍTULO 23
A carta chegou com o pequeno-almoço na manhã seguinte. Destacava-se do resto do correio. Reconheceu imediatamente o envelope, depois o selo e a caligrafia. Passara-se
quase um ano desde a última carta que recebera de Penthurst.
Quebrou o lacre e abriu o papel. Continha apenas uma palavra. Teria ele imaginado que lhe seria dado ver alguma porção da sua surpresa pela forma como o nome havia
sido desenhado? Era impossível que Penthurst não tivesse considerado a descoberta muito interessante.
Yates considerava, sem qualquer dúvida. Interessante e desconcertante. Tanto que saiu da sala de pequeno-almoço, regressou aos aposentos e escorraçou Higgins. Pegou
no violino e entregou-lhe a sua confiança.
A música criou o seu mundo à parte, como sempre fazia. Preenchia-lhe a mente, certeira e organizada. Não pensava em grande coisa enquanto tocava, mas deixava-se
perder na pureza do som enquanto a composição fazia a sua magia.
Quando a peça terminou, pousou o instrumento. Continuava sem respostas, mas pelo menos sabia as perguntas. Tinha simplesmente de decidir se desejava formulá-las.
Depois tinha de decidir se devia formulá-las.
Percorreu o pequeno corredor e abriu a porta que comunicava com os aposentos de Cassandra. No quarto de vestir, a criada abanou a cabeça, indicando-lhe que ela ainda
não se levantara. Ele entrou no quarto e parou ao lado da cama. Era bela, ali deitada. O simples facto de olhar para ela trazia calma ao caos que o ameaçava.
As pestanas ergueram-se e ela olhou para ele.
– O que se passa?
– Nada. Pensei que estava a dormir.
Queria olhar para si. Não sei porquê.
– Acordei há pouco. Não me mexi, para escutar em segredo.
Ele precisou de um momento para perceber que se referia à música. Ela fez um gesto lânguido na direção da janela.
– Está aberta, e a sua também, por isso a música chega até aqui em boas condições.
Sentou-se e esfregou os olhos. Ficava adorável, sonolenta e desalinhada.
– É tão bonito. Porque não toca para as pessoas?
Não era às pessoas a que se referia. Era a ela. Ele resistiu à inclinação de encolher os ombros e dizer que não sabia.
– Talvez porque o meu pai não aprovava. Até gosta bastante de música, e admira os músicos. Não era uma reprovação moral, nem julgava a atividade indigna de mim ou
desadequada.
– Então o que o fazia reprová-la?
– Tinha outros planos para o meu tempo, especialmente quando eu saí da universidade. Tocar bem requer muita prática. Horas e horas.
– Então, a que é que ele queria que se dedicasse?
– Ao Parlamento. À Câmara dos Comuns, para começar a forjar as relações que me dariam poder quando o sucedesse. A herança do título só tem algum alcance. Eu não
tinha interesse, resisti e dediquei-me ao violino e a outras coisas.
E agora, quando precisava de saber o que quem estava no poder sabia, ia ter com homens como Penthurst, que não tinham dado largas aos impulsos juvenis da mesma forma.
– Vejo por que não deseja tocar para ele, claro. Mas para outros... Quando tocou na abertura da exposição da primavera de Emma, arrebatou toda a gente. Os homens
tinham lágrimas nos olhos. É um grande talento que tem, e que partilha com todos quando faz uma apresentação. Sabem que têm almas quando o ouvem a tocar.
Era extremamente elogioso o que ela lhe dizia. Também era revelador da verdadeira razão pela qual ele não tocava em público. Deixava-o desconfortável ver as pessoas
tão comovidas. Constrangia-o ver homens crescidos a chorar. Sentia-se desajustado quando as pessoas lhe diziam que lhes tocava a alma, pois a música que ele tocava
nunca lhe fizera nada daquilo.
Beijou-a, pelo elogio.
– Vou visitar o meu pai. Iremos visitar a sua tia dentro de algumas horas.
– Importa-se que eu ouça pelas janelas? – perguntou ela. – Não desejo... intrometer-me.
– Não me importo.
Ambury desceu aos aposentos do pai, admitindo que a ideia de tocar a alma de Cassandra era apelativa.
– Como é que ele está hoje? – perguntou Yates ao criado quando entrou na sala de estar.
– Cansado, senhor. A não ser isso, o normal. Ele está acordado, se deseja vê-lo.
Yates aproximou-se do cadeirão onde o pai estava sentado, de robe e lenço. Supôs que, quando chegasse o dia em que entrasse ali e lhe visse o pescoço desprotegido
e a barba por fazer, saberia que algo estaria pior.
O pai tinha os olhos fechados e parecia gozar de tranquilidade. Uma paz quase de beatitude. Talvez porque o criado tinha aberto a janela.
– Yates. Que bom vir visitar-me.
Yates sentou-se na cadeira que todas as visitas usavam. Olhou novamente para a janela.
– Pergunto-me se se sentirá suficientemente bem para falar da propriedade. Tenho alguma informação, e também algumas perguntas.
– Por vezes parece-me que não conseguiremos chegar a uma conclusão, mas pergunte o que tiver de perguntar.
– Descobri mais informação sobre os brincos. Aqueles pelos quais me perguntou tantas vezes, que estavam desaparecidos desde o último inventário. Como sabe, a minha
mulher esteve algum tempo em posse deles. Recebeu-os da parte da tia, Lady Sophie Vernham.
O pai ficou vermelho de raiva.
– Fico muito desiludido com ela, por se aproveitar de uma amizade dessa forma. A sua mãe perdoou muitas coisas à Sophie, e vai angustiá-la saber que a sua gentileza
foi paga com furtos.
– A alegada história das joias de Lady Sophie Vernham nunca foi roubo, claro. Sempre afirmou terem sido ofertas de amantes.
– Uma mentira perspicaz da parte dela, ocorre-me. Não diz o mesmo sobre estes brincos, tenho a certeza.
– Não, diz que os comprou a um penhorista.
O pai olhou para ele, surpreendido.
– A sério? É possível, suponho. Prefiro pensar que não se aproveitou desta casa e que os subtraiu. Pensar nisso causa-me tristeza.
Yates inclinou-se, procurando apoio nos joelhos para os cotovelos. Olhou diretamente para o pai.
– É possível que não as tenha roubado nem comprado? É possível que o avô lhas tenha dado?
O pai precisou de alguns instantes para assimilar as implicações. Procurou endireitar-se. O esforço e a raiva voltaram a tingir-lhe o rosto de vermelho.
– Não. Não é possível. O meu pai praticamente não a conhecia, não tinha casos de espécie alguma e não aprovava homens que os tivessem. Se começar com uma das suas
investigações de mau gosto sobre ele, vai terminar de mãos vazias, asseguro-lhe. Sim, sei dessa sua desastrosa ocupação. Proíbo-o de sujeitar esta família às ingerências
vulgares e aos rumores maldosos que promove.
Nunca, nos últimos meses, haviam estado tão perto de uma discussão. A indignação do conde parecia pronta para se expandir ainda mais.
– Esperava a resposta que deu. Não obstante, era uma possibilidade que devia investigar. Lembre-se de que foi o pai quem me encarregou de descobrir como é que as
joias desapareceram.
– Eu disse-lhe para encontrar o ladrão, não para fazer perguntas delirantes, e logo acerca do seu avô. Com o casamento que fez, quer pensar o melhor possível da
tia. Compreendo. Vamos aceitar a explicação do penhorista e não avançar mais. – Inspirou profundamente e pareceu expirar a sua agitação. Fechou os olhos. – Bom,
parece-me que é a atitude mais benevolente para todos.
– Quer descansar? As minhas outras perguntas podem esperar.
– Há mais?
– Bastantes mais.
Terá imaginado que os olhos que o espreitaram lhe pareceram sobretudo melancólicos, e não cansados?
– É melhor tratarmos disto agora, então. Nunca se sabe o dia de amanhã.
– Aquela propriedade antiga, na costa... A terra de propriedade contestável... Está na lista de localizações para as novas defesas do governo. As rendas serão significativas.
– O governo nunca arrendará uma propriedade em condições duvidosas. Não movimentou influências por causa disso, pois não? Se o fez, andou a perder tempo.
– Não o fiz. Foi outra pessoa. O Barrowmore.
O pai ficou muito quieto. Na verdade, todo o aposento.
– Que estranho – disse.
– É, não é? Só me resta pensar que o Barrowmore espera retirar algum lucro. Que provavelmente a família dele detém a outra escritura. Não acha?
O pai ficou algum tempo a olhar pela janela e só depois assentiu.
– É estranho que dois itens do nosso património tenham saído misteriosamente da nossa posse e ido parar às mãos da família da minha mulher. Logicamente só se pode
presumir que não se trata de uma coincidência. Peço-lhe como seu filho e seu herdeiro que me diga como é que isto aconteceu, pai.
O pai não lhe devolveu o olhar. Em vez disso, ficou de olhar parado, com uma expressão de desalento.
– Não sabia das joias – declarou finalmente. – Da propriedade sim. Ele deu-lha. O seu avô deu-a à Sophie. Como parte de um fideicomisso ou outra coisa qualquer,
para ela receber o rendimento até eu morrer, e depois a propriedade passar para ela e os herdeiros dela.
– Então sempre houve um caso.
– Não houve caso nenhum, estou a dizer-lhe.
– É a única explicação. Ele pode não o ter admitido perante si, e pode ter ido para a sepultura com a moral intacta, mas ofertar joias e propriedades a uma mulher
normalmente significa uma coisa. Que diabo! O nome Highburton é tão sagrado que deixa que eu acuse uma mulher de ser uma ladra para não admitir que o seu pai era
falível?
– Disse-lhe que não sabia das joias. Continuo sem saber se foram um presente.
Claro que tinham sido. O pai mostrava a mesma teimosia naquilo como em todas as antigas discussões. Recusava-se a aceitar o óbvio porque a visão tão rígida que tinha
da vida o obrigaria a condenar o próprio pai.
– Tampouco, apesar da sua certeza no contrário, houve algum caso entre eles.
Claro que tinha havido.
– Pergunte-lhe, se julga que a minha memória e o meu bom senso se sujeitam a uma cegueira de sentimento. Ela lhe dirá.
Planeava fazê-lo.
Já sabia o que precisava de saber. Levantou-se. O pai olhou para ele.
– Não esperava tanto rigor, Yates. Contava apenas cativar a sua atenção durante algum tempo, para não estar completamente ignorante quando tudo passasse para as
suas mãos.
– Agradou-me ser rigoroso, e aprender consigo os pormenores sobre os nosso bens.
– Provavelmente continuará a votar nos malditos whigs quando ficar com o título.
– Muito provavelmente. Não se culpe, porém. É uma perversão do meu carácter que se esforçou ao máximo por corrigir.
O pai riu baixinho e compôs o robe.
– A brisa arrefeceu. Vou fechar a janela – disse Yates, avançando para a fechar. – A minha música incomoda-o quando está a descansar? Percebi hoje que provavelmente
consegue ouvi-la se a janela está aberta. Os meus aposentos ficam por cima. Foi irrefletido da minha parte.
– Não me incomoda. É agradável, e frequentemente útil. Nunca percebi as baboseiras poéticas que se dizem sobre a música. Eu considero-a boa para pensar com clareza,
sem excesso emocional. Vai achar que não tenho coração, por dizer isto.
Yates voltou-se para ele.
– De todo. Se alguma vez desejar pensar claramente, diga-me, e eu toco para si.
O pai fez um gesto com a mão, dispensando a ideia.
– A sua mãe diz que não gosta de tocar para outras pessoas. Escuto o que me entrar pela janela, quando entrar.
Yates parou atrás do cadeirão ao sair. Pousou a mão no ombro do pai.
– É verdade que não gosto de tocar para um público, mas toco de boa vontade para si.
O pai esticou o braço, apertou-lhe a mão e depois deu-lhe uma palmadinha, como quem reconforta um filho.
– Que sítio é este? – perguntou Ambury.
Observou a porta azul e olhou para a esquerda e para a direita, para a mistura de pessoas comuns que passavam por eles. Não se tratava de nenhum bairro elegante
e Cassandra esperou que ele não a repreendesse por se ter deslocado lá no passado.
– É difícil de explicar – disse. – É uma casa, e também um refúgio, e também um lugar de negócios. Venha, eu mostro-lhe.
Ela levou-o até à porta e fez soar o batente. Vozes chegaram-lhe do interior por uma janela aberta. Ambury ouviu-as e alçou uma sobrancelha.
– Francês.
– Sim, na sua maioria.
Uma mulher idosa de grande volume abriu a porta. Sem uma palavra, deu meia-volta. Cassandra seguiu-a, com Ambury ao lado dela. Entraram na sala de jantar da casa,
que, contudo, não era usada para refeições.
Filas de mesas enchiam o espaço. Às mesas, estavam sentadas mulheres com folhas de papel e pires com cores à frente. Pincéis e trapos não tinham descanso.
Ambury curvou-se para examinar um dos papéis pousados numa mesa próxima.
– Estão a colorir gravuras para a tipografia.
Algumas das mulheres eram jovens e outras pareciam bastante idosas, mas a maior parte estava na meia-idade. Muitas usavam roupas que tinham passado de moda recentemente,
com corpetes justos e saias volumosas. Algumas até tinham perucas, embora o pó estivesse agora cediço e amarelo.
– São emigradas, claro – explicou Cassandra. – Mulheres de bom nascimento, sobretudo. Vêm para aqui e ganham alguns xelins, para dar o que fazer ao corpo e à mente.
Algumas vivem aqui, mas a maioria não.
– Pôs a sua tia aqui? Não se vê um homem em lado nenhum. Dificilmente é mais seguro do que em casa do Southwaite, ou na dos meus pais.
– O meu irmão nunca encontraria este lugar. Se encontrasse, nunca lhe seria permitida a entrada. Estas mulheres sabem como se proteger, a si próprias e às outras.
Ambury não parecia convencido. Observou as mesas e as cabeças inclinadas sobre elas.
Um burburinho enchia o espaço e, ocasionalmente, riso. As mulheres pareciam gostar do trabalho e da oportunidade de pôr em dia a conversa e a coscuvilhice.
Uma porta abriu-se do outro lado do compartimento e Marielle Lyon entrou, trazendo mais um saco de gravuras. Entregou-as a mulheres que já tinham acabado as últimas
e fez uma pausa, inclinando o rosto delicado para inspecionar algum do trabalho.
Cassandra foi vista por ela e acenou-lhe. Marielle pousou o saco e foi na direção deles. Também ela se vestia à moda antiga, e manchas de tinta enfeavam-lhe a renda
rasgada dos cotovelos. Mesmo assim, possuía uma elegância invejável, etérea.
– Apresento-lhe Marielle Lyon – disse Cassandra a Ambury. – É uma amiga da Emma.
– Já ouvi falar nela. É dela, a casa?
– Não sei se é dela. Mas vive aqui. É seguramente a rainha do espaço.
Marielle cumprimentou Cassandra com um beijo e avaliou Ambury quando Cassandra o apresentou.
– Está sozinho? – perguntou. – O outro não está consigo?
– Refere-se ao Kendale – explicou Cassandra. – Há uns meses, começou a persegui-la pela cidade. A Marielle reparou imediatamente. Não foi, Marielle?
– Apraz-me saber que o meu amigo teve o bom senso de admirar a sua beleza, embora não devesse ter andado a segui-la dessa maneira.
– Não era l’amour. Pensou que eu era espia.
A cadência do sotaque dela era encantadora.
Ambury chamou a si o seu charme também.
– E é?
– Uma vez que é seu amigo, deixo-o na ignorância. Diverte-me.
Voltou-se e esticou um dedo elegante.
– A sua tia está ali atrás, Cassandra. É muito ativa e gosta de conversar com a Madame Chardin. Coscuvilhices sobre velhos amigos.
Cassandra espreitou a tia Sophie. Tinha uma touca branca na cabeça e um avental sobre o vestido de padrão florido. A mulher ao seu lado disse algo e Sophie atirou
a cabeça para trás numa gargalhada.
Ambury seguiu Cassandra quando esta enveredou por entre as mesas.
A tia Sophie ergueu os olhos de surpresa quando a alcançaram. Disse alguma coisa à interlocutora em francês e sorriu.
– Chegam mesmo a tempo para uma história deliciosa sobre Mademoiselle O’Murphy e aquele quadro infame que Boucher pintou com ela. Madame diz que o rei insistiu que
todas as suas mulheres colocassem rouge nas nádegas e que isso explica a tonalidade rosada no centro do traseiro da senhora na figura. E eu que sempre presumi que
seria falta de gosto de Boucher.
– Maldição – murmurou Ambury. – Esquecemo-nos do rouge.
Cassandra pisou-lhe o pé, com força.
– Tia Sophie, gostávamos de falar consigo e explicar o que preparamos para sua proteção.
– Claro. A Marielle não se importará se procurarmos privacidade na cozinha, tenho a certeza.
Disse algo a Madame Chardin e levantou-se para indicar o trajeto de saída.
– Era uma irlandesa adorável, aquela O’Murphy. A Madame Chardin diz que sobreviveu a tudo. Era esperta, a fedelha.
A cozinha proporcionava alguma privacidade. Cassandra sentou-se com Sophie à mesa rústica. Ambury ficou de pé.
Cassandra explicou a petição que este fizera ao tribunal da Chancelaria, e os outros esforços que envidara em prol dela.
– O Ambury alugou uma casa – concluiu Cassandra. – Assim que nos mudemos, levamo-la para viver connosco. Até lá...
– Até lá, seria melhor se viesse para a casa da minha família – disse ele.
Cassandra mostrou-lhe um sobrolho franzido. Não fora nada daquilo que ela planeara.
– Preferia ficar aqui – declarou Sophie. – Estou em segurança, e não me sinto intrusa.
Ambury olhou-a muito diretamente.
– Ficar na casa dos meus pais seria desconfortável?
– De todo. Apenas prefiro ficar aqui.
Desceu o silêncio. Sophie e Ambury só tinham olhos um para o outro. E não eram os mais amáveis.
– Tia Sophie, acerca dos brincos de diamantes – principiou Cassandra, detestando a acusação que estava prestes a insinuar. – Disse que os comprou num penhorista,
mas a informação é muito vaga. Preciso que me diga exatamente de que forma é que entrou na posse deles.
Sophie abriu a boca para falar, mas Ambury voltou a interromper.
– Foram uma oferta, não foram? De um membro da minha família.
Confusa, Cassandra desviou o olhar do marido para a tia e depois de novo para o marido.
A tia Sophie examinou demoradamente Ambury, tirando-lhe as medidas de todas as formas.
– Sim, agora que mo recorda, foram uma oferta.
– Foram? – perguntou precipitadamente Cassandra. – De quem?
– Dizê-lo seria trair a confiança de alguém.
Ambury não pareceu surpreendido pela resposta. Cassandra mal conseguia conter o seu espanto.
– Não foi o único presente – voltou Ambury. – Julgo que houve uma propriedade também.
Sophie hesitou, mas rendeu-se com um suspiro.
– Houve. Está num fideicomisso e tenho rendimento das rendas. Depois há a minha casa...
– A sua casa?! – exclamou Cassandra. – Há anos que tem a casa. Há uma eternidade. Julguei que tivesse sido o meu pai quem lha comprou.
Sophie estendeu o braço e deu-lhe uma palmadinha no rosto.
– Fique calma, querida. O seu pai deu-me dinheiro. Escolhi usá-lo para viajar, depois de ter a casa e as rendas, juntamente com a parte da minha mãe, para garantir
o meu sustento.
Voltou-se para Ambury.
– Pelos vistos descobriu que a sua família foi generosa comigo. Não devia incomodar-se com histórias tão antigas. Como diz Cassandra, foi há uma eternidade.
– Agradeço a sua tolerância com as minhas perguntas, para não haver ambiguidades quanto à propriedade dos bens. Tal como diz, foi há uma eternidade, e não há razão
para não encerrar o assunto.
Cassandra estava em pulgas para encerrar o assunto de forma cabal. Parecia-lhe que podia rebentar, tantas eram as perguntas que a assolavam.
Ambury sentou-se finalmente. Sorriu para a tia Sophie. Subitamente, era todo encanto.
– Tenho razões para pensar que o Barrowmore tentará procurá-la mais uma vez. É sensato aceitar a casa dos Highburton como refúgio. Sei que a minha mãe gostará de
a receber.
– Sabe que mais? O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
Cassandra olhou de soslaio para Ambury. Pegou na mão da tia.
– O Gerald agora é o conde, tia Sophie. O pai não pode ajudá-la. Só o Ambury.
Sophie fitou Ambury.
– Não está a deixar-me grande escolha sobre onde viver agora, pois não?
– Não, se quer a minha proteção.
Sophie exalou um pequeno suspiro de ressentimento.
– Então devo obedecer, pois que me encontro necessitada da proteção de alguém depois destes anos todos. Vou arrumar as minhas coisas, o pouco que tenho, e confiar
na sua palavra em como Elinor não vai considerar-me um estorvo nem um fardo.
– Não vá fazer as malas já. Há mais uma coisa acerca da qual precisamos de falar ainda com privacidade – disse ele.
– Mais? Que mais há para tratar?
– Preciso de lhe perguntar sobre as suas outras joias.
– Quem? Porquê? – balbuciou Cassandra depois de a tia Sophie sair para arrumar as coisas dela.
– O meu avô – disse Ambury. – E a razão habitual.
– Não. – Esforçou-se por impedir um risinho de acompanhar o seu espanto. Não conseguiu, tendo sido saudada com um olhar muito highburtoniano. – Perdoe-me. É que
é... refrescante. Não acha? – Escapou mais um risinho. Quase se engasgou no esforço de o conter. – Não lhe dá alguma satisfação saber que, afinal, tem a quem sair?
Ele encolheu os ombros.
– Alguma, suponho.
Ela franziu os lábios e olhou-o com sobranceria.
– Muito bem, os condes de Highburton, baluartes da retidão moral e um exemplo para todos nós.
E com um grande sorriso, acrescentou:
– Meu Deus, que descoberta!
Uns olhos azuis bastante severos admoestaram-na.
– Não que eu vá contar a alguém – assegurou ela. – Consigo guardar segredos de família tão bem como qualquer pessoa. Este está a salvo comigo. – Esticou-se e deu-lhe
um beijo. – Assim como, tenho a certeza, as revelações da minha tia relativamente às joias estão seguras consigo, Ambury.
– Está a chantagear-me, Cassandra?
– Credo, não.
– Porque não aceito isso.
– Claro que não.
– As duas revelações não são iguais. E as joias, aquelas que ela admite ter pedido emprestadas, devem ser devolvidas.
– Concordo. Qualquer item emprestado deve regressar à proveniência.
Regressaram com vagar à entrada. Da sala de jantar chegava o burburinho em francês. Algures no piso de cima, a tia Sophie arrumava a mala.
– Apesar de ter brincado, fico um pouco triste por saber do seu avô – disse ela.
– Estranhamente, eu também. Muda as memórias que me ficaram dele. Não é mau, mas não deixa de ser uma mudança.
O toque de melancolia de Cassandra nada tinha a ver com memórias. Para ela, o avô de Ambury não passava de uma figura reputada.
A tia Sophie desceu as escadas. Seguia-a uma jovem, transportando uma mala que entregou a Ambury.
O rosto de Sophie não mostrava qualquer expressão. Os seus olhos tinham aquela expressão distante, ausente, que tanto preocupava Cassandra. A conversa sobre o passado
longínquo devia ter chamado a si os pensamentos enquanto esteve sozinha.
Ambury reparou. Ofereceu-lhe o braço e falou com brandura.
– Vamos, então, Sophie.
Ela pareceu confusa. Contudo, olhou para ele e acalmou-se.
– Tem a certeza de que ela não se importa?
– Tenho a certeza.
Sophie começou a andar.
– Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer.
CAPÍTULO 24
A mãe dele recebeu Sophie de braços abertos. A saudação afetuosa pareceu resgatar a mente de Sophie de onde quer que tivesse estado. As duas mulheres escorraçaram
Ambury e Cassandra e fecharam a porta da biblioteca para falarem em privado. Sobre o eterno passado, talvez.
Yates foi procurar Cassandra depois de consultar Prebles acerca da petição que fizera ao tribunal da Chancelaria. Foi encontrá-la no quarto dela, a olhar pela janela,
com um ar um pouco perdido, muito à semelhança de Sophie na carruagem. Embora quieta, pressentia-se o tumulto interior.
Ele abraçou-a por trás e beijou-lhe o ombro.
– O que a deixa tão pensativa?
Ela encolheu os ombros.
– Muitas coisas. Demasiadas revelações, talvez. Desde logo, não me agrada saber que a minha tia tirou algumas daquelas joias. Não me parece que tenha sido tudo equívocos,
como ela diz que foram.
– Julgo que é provável que sim.
Era o tipo de mentira que se diz a uma pessoa que não precisa de saber a verdade toda. Do tipo que se diz a uma pessoa de quem se gosta.
– Disse que saber do meu avô também a deixou triste. Porquê?
Um sorriso pesaroso curvou-lhe os lábios.
– Compreendi que me agradava a possibilidade de que se parecesse com os Highburton anteriores numa coisa. Pensei... – Voltou-se e deu-lhe um beijo. – Não é importante.
Ele sentou-se na cadeira azul e puxou-a para o colo.
– Pensou o quê?
Ela brincou com o lenço dele durante uns momentos.
– Pensei que, com toda a retidão que tem no sangue, havia uma boa possibilidade de não dividir o meu marido com eventuais amantes.
– Mas isso não é importante?
– Era apenas uma vaga suposição relacionada com o seu sangue. Seria seguramente mais justo se viesse a parecer-se mais com eles nesse aspeto. Disse-me que não posso
ter amantes.
– Por outras palavras, pensa que devemos ser iguais na virtude ou no adultério. Uma visão compreensível, suponho, mas radical.
– Imagino que seja improvável, agora que sabemos que a sua linhagem não lhe proporciona a inclinação para ser tão virtuoso.
Ele não fazia ideia se seria improvável ou não. Nem era claro se aquilo importava realmente a Cassandra. Esperava que sim, percebeu.
– Então, toda essa sua cogitação versava as minhas inclinações herdadas com respeito à virtude matrimonial?
– Estava a tentar organizar muitas coisas. Por exemplo, tanto quanto consigo compreender, o meu irmão tem sido muito cruel por muito pouco. A minha tia podia ter
rendimentos de uma propriedade, mas não era muito. Não o bastante para o que tentou fazer com ela.
– Planeava retirar muito mais rendimento dessa propriedade.
Falou-lhe das torres de defesa e das diligências de Gerald para colocar a terra na lista.
– Se conseguisse controlá-la, controlaria a terra e o dinheiro que dava. O fideicomissário não se teria oposto, desde que a sua tia estivesse a ser acompanhada.
– Muito mais?
– Centenas por ano, pelo menos.
– Não tem coração, se tentou aprisioná-la por dinheiro, mesmo sendo centenas de libras. E o comportamento dele para comigo... Tanta raiva e... ódio... Sim, ódio.
Anos de ódio, sem razão nenhuma para além da arrogância e do orgulho. Há algo de muito triste nisto. Seguramente que uma pessoa não se torna tão dura sem motivo
nenhum. – Secou os olhos. – Tenho saudades do rapaz que conheci em criança, Ambury. É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o lugar dele
quando eu não estava a ver.
Ele procurou o lenço de assoar e entregou-lho.
– Quando é que ele mudou?
– Quando herdou. Só compreendi em que medida quando...
Secou novamente os olhos.
– Quando, o quê?
– Não pergunte – disse ela com doçura.
– Quando aconteceu aquilo com o Lakewood?
– Disse-me que não devemos falar disto. Foi uma decisão sensata, compreendi.
– Nem tanto. Disse-me uma vez que ninguém sabe o que aconteceu, a não ser a Cassandra. Eu gostaria de saber, também.
Ela abanou a cabeça.
– Vai culpar-me por manchar a memória dele, tal como sempre me culpou por lhe manchar a reputação. Compreendi que posso suportar quase tudo, querido, mas não a sua
reprovação.
Ele não acreditava que ela desejasse proteger-se da reprovação dele. Ela queria preservá-lo de macular aquelas memórias. Sensibilizava-o que ela se recusasse a defender
o seu próprio comportamento para as preservar para ele.
Abraçou-a com força e ela pousou a cabeça no ombro dele.
– Continuo a querer saber. Diga-me.
Ela demorou tanto tempo a falar que ele julgou que não o faria. Depois suspirou novamente.
– Tal como lhe disse, não foi nenhum acidente, aquele dia. O barco, o facto de nos ausentarmos juntos, a situação comprometedora, foi tudo planeado.
Recordou que ela o alegara, depois do jantar, e da reação que tivera. Desta vez, reprimiu a irritação. Pressionara-a para que lhe contasse tudo e devia estar disposto
a escutá-lo.
– Não vi nada de mal no barquinho – retomou ela. – Nos bosques, ele pareceu incapaz de encontrar o caminho de volta. Eu indicava-lhe por onde seria e ele insistia
em fazer de outra forma. Era uma farsa mas, ao mesmo tempo, eu só me congratulava por não ter aceitado a mão de tamanho pateta. Só quando saímos dos bosques, finalmente,
e o meu irmão, a minha mãe e todas as pessoas presentes no piquenique nos encontraram, é que compreendi o custo da estupidez dele.
– Pedi para ouvir isto, mas não quero ouvi-la a insultá-lo – disse ele, contendo a raiva que a história despertava. Não sabia ainda se estava furioso com ela ou
por ela, o que só piorava tudo. – Ele não era um homem estúpido.
– Não, não era. Eu é que fui estúpida, por pensar que podia rejeitar o pedido de casamento dele e ficar por ali.
– Ele não faria o que acaba de dizer, Cassandra. Nunca montaria uma cilada a uma mulher de forma tão desonrosa. Percebeu mal.
Ela endireitou-se e olhou-o de frente.
– Não percebi. Nessa tarde, ele veio falar novamente comigo para me pedir a mão, para fazer a coisa certa. Não o recebi. Mas uma hora depois fui à procura do meu
irmão, para lhe dizer que aceitava. Estavam juntos no escritório dele e eu ouvi-os a rirem-se do assunto. O Lakewood brindava o meu irmão com todos os passos em
falso. O buraco que não deixava passar a água e que o fez ter de usar os ramos para pôr água no barco. O sol que não parava de surgir e ele a ter de ignorar as minhas
sugestões para o seguirmos para oeste. Foi uma grande risota para os dois. Decidi naquele momento que dava a minha vida para não ser obrigada a casar-me com um homem
que não queria.
– Bom, quase conseguiu, não foi? Ficar sem a sua vida.
As palavras saíram sem ele contar, expelidas pelo caos de reações que experimentava com a história. Ele não era inteiramente o homem que você julgava, dissera Penthurst.
Maldito Penthurst e maldito Lakewood.
Ela corou como se ele a tivesse esbofeteado.
– Deveria ter-me poupado, revelando toda a intriga? A verdade da desonra dele teria sido preferível a especulações? Ou julga que, mesmo sabendo o que sabia, deveria
ter aceitado a proposta dele? Meu Deus! Julga que sim, não julga? Acredita que apesar de tudo eu devia ter-me casado com ele, ter-nos redimido aos dois e ter aprendido
a esquecer quem ele era. – Ela empurrou-o e tentou saltar do colo dele. – Bom, não o fiz, e fico satisfeita ainda que você não fique.
Ele agarrou-lhe a cintura antes que ela escapasse. Segurou-a com firmeza, sentindo-a debater-se.
– Maldição! Claro que fico satisfeito por não se ter casado com ele. Se tivesse, ele ainda estaria vivo e você não estaria casada comigo. É terrível pensar assim,
e igualmente infernal saber que estou satisfeito por tudo ter acontecido como aconteceu. Como é que acha que isso me faz sentir? – Inspirou profundamente e procurou
controlar-se. – Era o meu amigo mais antigo, Cassandra.
Ela parou de se debater.
– Lamento, Ambury. Lamento que seja infernal para si, e lamento ter-lhe contado. Sabia que não era prudente. Não devia ter insistido.
– Precisava de ser dito. Estava cansado de não ter qualquer explicação desse dia.
Segurou-a contra si enquanto as emoções dos dois se acalmavam. Depois ficou a segurá-la simplesmente porque lhe apetecia. Tentou imaginar o que ela lhe descrevia
e encaixar naquilo o homem que ele conhecia. A adoração de Lakewood por Cassandra tinha-lhe parecido despropositada, era inegável. E ele possuía um lado calculista
que conseguia ser desagradável.
Até o reconhecimento daquelas verdades lhe causava alguma culpa.
– Porque julga que o fizeram? – perguntou ele, uma boa meia hora depois.
– Era dinheiro, para o Lakewood. Também ouvi isso. A falarem do dote. Para o meu irmão... Era nisso que estava a pensar quando me encontrou. Um homem comportar-se
desonrosamente para enriquecer faz algum sentido. Fazê-lo para casar uma irmã parece estranho, não parece?
Ele pô-la de pé e levantou-se.
– Vou debruçar-me sobre o assunto e ver se me ocorre uma resposta menos estranha. Agora temos de nos vestir para jantar, para recebermos devidamente a sua tia nesta
casa.
Uma hora depois entrou no quarto de vestir de Cassandra. O dramatismo do dia pareceu-lhe muito distante assim que viu como estava bela com o vestido de noite de
marfim que lhe torneava suavemente as curvas. Ofereceu-lhe o braço para a acompanhar ao piso de baixo.
– É herdeira da sua tia, não é? – perguntou ele nas escadas. – Talvez o Gerald desejasse controlá-la a si tal como a controlava a ela. Repare que exigiu que casasse
com um homem escolhido por ele. Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança. Combinaria o matrimónio
e o seu marido dividiria o rendimento.
– Imagino que sim. Só que, para meu desalento, isto leva-nos a fechar o círculo! Toda essa tribulação por algumas centenas de libras por ano! O Gerald precisa ainda
mais de uma ocupação do que eu pensei, se for verdade.
*
Depois do jantar, as senhoras deixaram Yates entregue ao seu porto. Uma vez que o pai estava demasiado doente para descer para jantar, bebeu sozinho e debruçou-se
sobre a descrição de Cassandra do que acontecera naquele dia há seis anos.
Mudava tudo, mas ainda não sabia bem como. Não gostava de pensar mal de Lakewood. Tinham convivido durante anos. Embora ninguém fosse perfeito, e Lakewood tivesse
as suas falhas e vícios, Cassandra descrevera um nível de mentira e de calculismo que a maior parte dos cavalheiros consideraria inaceitável e desonroso.
Uma coisa era comprometer uma mulher e ambos se casarem por pressão da sociedade. Outra coisa era iludir uma mulher para esta ficar comprometida e ser obrigada a
casar-se com alguém quando não o desejava. A distinção não era evidente e, talvez, dadas as circunstâncias do seu casamento, fosse em abono próprio.
Evidentemente que Lakewood já não podia falar em defesa própria das suas intenções e se tinha conspirado ou não com Barrowmore. Um bom amigo devia dar-lhe o benefício
da dúvida. Por mais que quisesse fazê-lo, não podia. Cassandra dissera a verdade, tinha a certeza. Não mentiria acerca de uma coisa daquelas.
Que choque não devia ter sido quando Cassandra recusara a sua proposta de fazer a coisa certa. Algumas centenas por ano poderiam ter sido uma recompensa pequena
para Barrowmore, mas Lakewood herdara uma propriedade empobrecida a par do título de barão, e algumas centenas por ano teriam feito uma grande diferença.
Ele não era inteiramente o homem que você julgava. Teria Penthurst descoberto o esquema e ameaçado expor Lakewood? Seria humilhante que a história fosse dada a saber
a todos. Conseguia imaginar Lakewood a arriscar a vida num duelo para evitar aquilo. Era mais condizente com ele do que desafiar alguém por causa de uma mulher.
Entristecido por aquela nova imagem de um velho amigo, pousou o copo e saiu para procurar Cassandra. A vivacidade dela escorraçaria aquela nostálgica melancolia.
A sala de visitas estava vazia. Um lacaio indicou que as senhoras já se haviam retirado.
A caminho dos seus aposentos, decidiu espreitar o pai. Entrou no quarto de vestir. Para sua surpresa, a mãe encontrava-se à porta do quarto e o perfil elegante e
majestoso revelava que espreitava por uma pequena abertura.
Não o ouviu a aproximar-se, de tão concentrada que estava naquilo que via no outro quarto. Ambury colocou-se atrás dela e espreitou por cima da sua cabeça.
O pai estava deitado na cama, reclinado sobre almofadas, e a camisa de noite branca refletia o brilho da vela. Ao lado da cama, numa cadeira bastante próxima, viu
a tia Sophie.
Estavam de mãos dadas. E enquanto ele e a mãe observavam, o pai ergueu a mão de Sophie e beijou-a na palma, tal como se faz a uma amante.
– Não vai contar-lhe o que sabe.
A mãe sussurrou a ordem assim que reparou nele. Fechou a porta que dava para o quarto e depois chamou-o com a mão. Fê-lo atravessar o quarto de vestir até à pequena
sala de visitas que a flanqueava.
Ambury precisou de alguns minutos para reorganizar os pensamentos. Não ajudava o facto de a mãe não parecer minimamente surpreendida com as implicações daquilo que
acabavam de ver.
– Presumi que fosse o avô – declarou por fim. – A Sophie é dez anos mais velha do que o pai.
– Continue a pensar que foi o seu avô se é mais fácil para si, embora não consiga imaginar que diferença possa fazer.
Fazia diferença por uma série de razões. Desde logo, porque o homem que se encontrava ali dentro em reunião com uma antiga amante havia massacrado vezes de mais
com lições de moralidade um filho com o qual parecia agora ter mais em comum do que aquilo que admitia.
Mas, desde logo, talvez fosse exatamente essa a razão para todas as discussões.
– Não se importa? – perguntou ele.
– Foi há muito tempo.
– Porque é que me parece que na altura também não se importou muito?
Ela suspirou, mas nada daquilo alterou em nada as costas direitas da mulher que estava sentada qual estátua na ponta de um banco.
– Se quer saber, dei a minha bênção, Yates. Fiquei satisfeita por ele ter encontrado alguém por algum tempo. Foi depois de o menino ter nascido e os médicos não
aconselhavam mais nenhuma gravidez. Bom, sabe o que isso significa. Ela era uma amiga querida na altura, e quando vi o interesse que ele tinha nela, eu... deixei
que ambos soubessem que não me importava de todo.
– Durou muito tempo?
– Pouco menos de um ano. O pai dele não foi tão compreensivo quando ficou a saber. Era de facto um verdadeiro Highburton, e obrigou o seu pai a terminar tudo.
– E deu-lhe a propriedade e valores para resgatar a honra da família. Não admira que o pai não quisesse que eu investigasse a propriedade, embora tenha a certeza
de que não sabia nada acerca das joias.
– Na altura desconhecia completamente e só ficou a saber da propriedade quando herdou o título. Ele nunca teria maculado o que tinham com coisas dessas, como se
ela fosse uma cortesã comum. Tinham verdadeiro afeto um pelo outro. E, julgo eu, verdadeira... paixão. Eu amo-o profundamente, mas... não podia negar-lhe o conhecimento
daquele tipo de amor, se ele queria.
Ele pôs-se a andar num passo impaciente, encaixando aquela descoberta final em tudo o resto. Rematava uma série de perguntas e explicava por que razão Sophie não
desejara ficar hospedada naquela casa.
Ele olhou para a mãe, que mantivera em tudo a atitude de condessa, mesmo quando o informava do caso amoroso que permitira e talvez até encorajara. Tem a certeza
de que Elinor não se importa?
– O Pai pensou que os brincos talvez tivessem sido roubados. Chegou a pensar que tivesse sido a Sophie a levá-los. Uma traição na família, disse. A veemência dele
quanto a isto faz mais sentido agora.
– E você estava determinado a descobrir a verdade para lhe dizer, não é assim? Que incómodo que acabaram por ser aqueles brincos. Contei-lhe finalmente a verdade
há uns dias, para ele não pensar que ela o tinha usado. Fui eu quem lhos deu, Yates, não foi o seu avô. Foram o meu... presente de despedida. Quando terminou, soube
que ela e eu não voltaríamos a ser amigas chegadas.
– Foi bom da sua parte continuar a recebê-la, e a ser sua amiga, mesmo quando começaram a chover as histórias sobre ela.
– Seja o que for que se diga mais de mim, espero que se saiba que não sou nenhuma hipócrita.
Não era uma hipócrita. Poderia bem ser o único elemento da família a quem o epíteto não serviria.
– Trouxe-a cá acima para o ver?
– Ela dificilmente encontraria o caminho sozinha.
Sacudiu a saia, alisando o tecido e juntou as mãos sobre o colo.
– Tampouco tem muito tempo. A mente dela começa a vaguear. Cassandra reparou seguramente. Dentro de alguns anos... quem sabe? Agora, está na altura de irmos. Ela
não demorará a ir-se embora.
Ele aproximou-se e beijou-a na testa.
– Diz-se que ele conquistou o troféu da temporada quando a mãe aceitou o pedido dele. Nem ele sabia a metade da história.
Deixou-a, sentada como se os corpetes ainda ditassem a sua postura, aguardando, enquanto o marido se demorava em recordações de uma grande paixão com a sua amiga.
Sempre foi a mulher mais generosa que tive a honra de conhecer, dissera Sophie.
Podia apostar que sim.
CAPÍTULO 25
Cassandra levantou a perna para se sentar nas coxas de Ambury. Ele sobressaltou-se, acordando, e espreitou por cima do ombro.
– O que está a tramar?
– Estou apenas a admirá-lo do meu ângulo favorito – replicou, acariciando as nádegas firmes tão apelativas aos seus olhos.
– Só não me diga que Lady Lydia também me apanhou este ângulo. Prefiro pensar que protegeu os olhos virginais.
– Claro que sim. Imediatamente. Não viu nada.
Inclinou-se e depositou-lhe um beijo cuidadoso no alto das costas.
– Estava aborrecido quando chegou a casa. Não correu bem, no tribunal, hoje?
– Correu muito bem. Terminou. O Penthurst foi absolvido. Os pares aceitaram a sua presunção de que, como cavalheiro, não podia explicar cabalmente a razão do duelo
sem comprometer o bom nome dos inocentes. Ajudou o facto de não ter sido ele a convocá-lo, imagino.
– Não concorda com a decisão deles, diria.
– Fico satisfeito por ter terminado como terminou. Se fiquei descontente, foi porque a verdade do que aconteceu permanece um mistério. E porque os meus pressupostos
podem ter-me custado dois amigos em vez de um.
– Será que o Penthurst poria um fim ao mistério, se lhe perguntasse?
– Disse-me que não pode, por uma questão de honra. Um dia, contudo, talvez ele revele alguma coisa, se houver algo de que possa falar. Entretanto, debato se devo
contar ao Kendale e ao Southwaite o que me contou sobre o esquema montado com o seu irmão para a comprometer. O Southwaite, pelo menos, suspeito que não o receberá
com surpresa.
Ela encostou a cabeça aos ombros dele.
– Quer fazê-lo só por minha causa? Em meu favor? Poderá ser melhor deixar que o recordem sem essa história a manchar a honra dele.
Beijou-o novamente, um pouco mais abaixo.
– Já sabe que não teve nada a ver comigo, não sabe? É só isso que me importa... que deixe de se perguntar. O Penthurst é um conhecido, nada mais. Se tenho sentimentos
por ele, é apenas gratidão por me tratar com respeito e nunca me ter rejeitado, quando outros foram menos generosos.
O colchão mexeu-se para acomodar as costas de Ambury. Bem acordado, agora, fitou-a.
– Outros como eu, quer dizer. Ao tratá-la como uma mulher do mundo, insultei-a. Peço desculpa. Não tenho outra além do desejo, que pode afetar o discernimento de
um homem da pior forma.
– Não posso dizer que me importe, por ter sido ousado e tentado adicionar-me às suas conquistas. O resultado disso é que um dia serei a condessa de Highburton.
Ele puxou-a para um abraço.
– Perguntei-me muitas vezes o que poderia ter acontecido se Lakewood não a tivesse reclamado para ele tão depressa nessa temporada.
– Começou a desejar ter-me cortejado então? É muito querido.
– Não é de agora que o penso. Começou antes do casamento do Southwaite. Sempre a desejei.
Ela aceitou o beijo profundo que acompanhou a declaração. A excitação que sentia multiplicou-se numa resposta que lhe era tão fácil com ele. A diferença, daquela
vez, como das últimas vezes, era a forma como o seu peito se preenchia com camadas de emoção tão pungentes que facilmente choraria se não tivesse cuidado.
Pousou a cabeça no peito dele e arrastou os dedos sobre o relevo sólido e subtil dos seus músculos. As carícias dele, por seu lado, deixavam-na igualmente afogueada.
– Julgo que prefiro que tenha acontecido como aconteceu. Eu era tão parva como qualquer rapariga e na altura teria esperado mais do que ser desejada da forma que
refere.
– E agora não?
Sentiu a garganta a arder. Não esperava mais, mas desejava-o profundamente. O prazer era maravilhoso, e a intimidade intensa, mas queria acreditar que não era apenas
o coração dela que experimentava toda aquela alegria, dolorosa de tão intensa, durante o tempo que passavam juntos.
Ele girou e apoiou-se nos braços para ficarem de frente um para o outro.
– Não deve haver expectativas de mais, nem sequer de grande prazer, num casamento como o nosso. O dever e a lealdade são tudo o que se pode realmente esperar.
– Eu sei. É bom que me queira dessa forma, e eu a si. Não estou a queixar-me.
– Nem eu. Mas penso para mim próprio que, ao não esperar mais do que isso, o encontrei, acidentalmente.
Tudo o que havia à volta dela desapareceu, deixando-os apenas aos dois e a um nervoso de excitação que a assustava. Era como se se equilibrasse numa corda muito
fina, num dedo apenas. Uma mera respiração poderia atirá-la para a desilusão. E, no entanto, o que via nos olhos dele encorajava-a a acreditar que tal não aconteceria
se arriscasse dar um passo em frente.
– O meu prazer consigo não é apenas físico – declarou ele. – Vivo uma alegria rara, consigo. Não é só o orgulho que me faz querer tê-la comigo, e para mim. – Beijou-a
com doçura. – Deslumbrou-me, Cassandra, e roubou-me o coração.
Ela abraçou-lhe o pescoço e puxou-o para o beijar.
– Eu sabia que o amava, mas não me atrevia a esperar que partilhasse dos mesmos sentimentos.
Beijou-o uma vez e outra. Digladiaram-se em doce paixão, primeiro, depois feroz, como se tentassem consumir-se um ao outro. Ela sentiu-o entrar, duro e fundo, reclamando
a sua posse tal como ela gostava.
– É bom – murmurou ele. – Perfeito. Ainda melhor com amor.
Ela envolveu-lhe a anca com as pernas.
– Sim. Com amor é maravilhoso.
Cassandra sentiu Yates mexer-se na cama. Abriu os olhos e deparou com ele a contemplá-la.
– O que é?
– Venha comigo. Preciso de fazer uma coisa.
Vestiram os robes e ele conduziu-os para o quarto de vestir.
Apontou para uma cadeira próxima do guarda-roupa.
– Sente-se aqui.
Ela subiu para a cadeira, chamando as pernas e os pés para debaixo de si. Ele voltou-se, com o cabelo desgrenhado pelo amor e a seda crua do robe flutuando. Ocupava-se
com alguma coisa em cima de uma mesa.
Quando se virou para ela, tinha um violino numa mão e um arco na outra.
– Não se sinta insultada se parecer não reparar em si enquanto faço isto – disse. – Saberei que está aí. Não me perco tanto como poderá parecer.
Lisonjeava-a para além de qualquer medida que ele a convidasse para ouvir. Esperava que ele não julgasse que lhe devia aquele presente.
– Não quero importuná-lo, querido. Tem a certeza de que não o farei?
– Veremos se acontece, mas não estou em crer. Juro-lhe que quero fazer isto.
Ela não levantou mais objeções. Sentou-se o mais quieta que conseguiu e esperou não o importunar minimamente.
Nada há de comparável a ouvir um violino romper o silêncio da noite. O som preenchia o pequeno compartimento, parecendo emergir de todas as direções. As notas fluíam
limpas, claras, puras. Os sons do Céu deviam ser assim.
Ela contemplava os dedos fortes que se movimentavam sobre o instrumento como se tivessem vontade própria, ao passo que o arco libertava a música. A expressão dele
fascinava-a. Dura. Pensativa. As pálpebras semicerravam-se sobre olhos concentrados no interior, como se os sons entrassem em conversa com a mente.
A experiência comoveu-a. Deixou-a exultante. Desejou que nunca terminasse.
Quando terminou, ele pousou o instrumento de forma indiferente, como se nada de extraordinário acabasse de ocorrer.
– Obrigada, Yates. É o melhor dia de declarações de amor que poderia ter-me concedido. Foi maravilhoso.
Ele devolveu o violino ao estojo e foi ajudá-la a levantar-se. Com um braço à volta dela, conduziu-a de volta ao quarto.
– Foi bom, não foi?
– Eu não causei interferência?
– A consciência da sua presença foi maior do que a de outros no passado, mas não causou distração. Longe disso. Na verdade, parece que há mais alguma coisa que o
amor melhora.
O amor tornara a música melhor, mas não diferente. Yates reconheceu-o no dia seguinte, enquanto terminava de se vestir. Fora uma alegria ter Cassandra ali com ele.
Se outra pessoa tivesse ocupado aquele espaço de forma tão absoluta teria, indubitavelmente, achado aquilo um incómodo. Ela encaixara, contudo, tão perfeitamente
como se encaixava no seu corpo quando ele a abraçava. Da forma ideal, como em tantos aspetos.
Mesmo assim, a música trouxera-lhe a clareza de que precisava. Organizara-lhe os pensamentos que o haviam mantido acordado. Enquanto tocava, a sua mente circulara
pelas imagens e impressões do dia, dispondo e reorganizando.
Pessoas do passado e do presente visitaram-no. Lentamente, emergiram novas constatações. Que Sophie voltara a confundi-lo com o pai hoje, ao sair de casa de Marielle
Lyon, tal como acontecera quando ele se aproximara dela em casa do Dr. Wakely. Que diria a Cassandra que não teria amantes; não previa desejar alguma vez fazê-lo,
mas ela tinha direito que lhe fosse comunicado o compromisso. Que as revelações do dia tinham explicado tudo, e ao mesmo tempo não.
O último pensamento não parava de retornar, até outras memórias se ligarem a ele. Pequenas, sobretudo. Pequenas singularidades que mal notara na altura. Então, algo
que não era nada pequeno tornou-se um eco por trás de tudo o resto: a mágoa de Cassandra por o irmão a tratar a ela e à tia de forma tão cruel por tão pouco.
Talvez desejasse apenas vê-la casada com um homem com quem tivesse um acordo relativamente àquela herança.
É como se o meu irmão tivesse desaparecido e outra pessoa tomado o seu lugar quando eu não estava a ver.
O Gerald está a revelar-se um insolente. Devia dizer ao pai dele o que se passa, para ele o pôr no lugar.
– Senhor!
Um sobressalto arrancou-o aos pensamentos. Higgins estava ao seu lado de casaco na mão. Voltou-se e vestiu-o.
– Não estarei em casa para jantar. Diga ao mordomo.
Antes de sair da casa, foi à procura da tia Sophie. Com sorte, estaria errado, mas não julgava que estivesse.
– Explique novamente porque é que estou a escrever esta carta – disse Southwaite enquanto a caneta deslizava sobre o papel.
Estava sentado a uma escrivaninha, no Brook’s.
– Porque é meu amigo.
– Não vai fazer nada de estúpido com o Barrowmore, pois não? Andar aos socos ou outro tipo de mau comportamento? Credo, não pensa desafiá-lo, espero.
– O Kendale vai comigo para me impedir, caso pareça ir por aí.
– Bem, é deveras tranquilizador – replicou Southwaite com secura. – Diga-me o que devo escrever. Não gosto disto, mas faço-o.
Yates espreitou por cima do ombro de Southwaite.
– Venha ter comigo a St. James’s Park esta tarde às quatro horas, para tratar de um assunto de grande importância relativamente ao património da sua família.
Southwaite mergulhou a caneta e escreveu: Por... favor... venha... ter... comigo... a...
– Acrescentou o «por favor».
– Estou a ser educado.
– O homem é um canalha. Não escolho ser educado.
– É o meu nome que assina a carta, não o seu, e eu escolho ser educado. – Continuou a escrever. – Ele não vai gostar deste ardil.
– Não me importo minimamente, desde que venha. Nunca acederá a encontrar-se comigo, isso é certo. Reparei recentemente que nunca passei um minuto na companhia do
homem sem ter outras pessoas por perto.
– Tem a ver com a sua mulher?
– Tem.
– Vai dizer-me do que se trata?
– Não.
Não a ele. Nem a ninguém, a não ser que chegasse um dia em que não tivesse escolha.
Southwaite assinou com um floreado, dobrou o papel e selou a carta. Entregou-a a um dos criados do clube para que a enviasse. A seguir acompanhou Yates até às poltronas.
– Já se acostumou ao estado de casado? – perguntou Southwaite quando se puseram confortáveis.
– Concluo que se ajusta a mim como nunca tinha esperado.
– Diz-se que à sua noiva também.
– As senhoras têm falado?
– Sim, tal como é seu hábito. A Emma está encantada por ter ficado com aquela casa, por isso imagino que não se cansarão de trocar segredos durante os próximos meses.
Em relação à sua noiva, a Emma confidenciou-me no outro dia ao jantar que a Cassandra tem expressado uma supremo contentamento e que pensa que você é um marido maravilhoso.
– Que lisonjeiro.
– Foi o que pensei. A minha irmã opinou então que a Cassandra provavelmente ficou impressionada porque o Yates é um homem muito duro, e os homens duros são preferíveis,
ao que a Emma se lançou numa preleção sobre a insuportabilidade de viver com um homem duro, a não ser que a Lydia tenha ouvido dizer o contrário.
– E você, o que disse?
– Nada. Pareço-lhe idiota? A Lydia rebateu que decidira que não se casaria, a não ser que estivesse segura de que o homem tinha o grau apropriado de dureza. Neste
ponto, a Emma parece ter-se perguntado se estariam a falar de outra coisa que não de comportamento. Corou até à raiz dos cabelos.
– De certeza que a Lydia repetia apenas algum disparate que ouviu, independentemente de qualquer duplo sentido.
– Sem dúvida. Não deixei de franzir o sobrolho à minha irmã, caso estivesse a usar «duro» de maneira obscena e deliberadamente desbocada para me irritar.
– É uma sortuda por o ter como irmão, Southwaite. Você é muito paciente.
– Eu sei. – Southwaite esticou as pernas e cruzou os pés. – Então, como é que conseguiu passar de homem obrigado a casar à ponta da espada a marido maravilhoso tão
depressa? Tive de seduzir e cortejar durante meses para ser maravilhoso.
– Simplesmente exerci o talento considerável que possuo para fazer uma mulher feliz.
– Então, ela não teve qualquer escolha, suponho.
Oh, tivera escolha. O charme não fazia caminho com Cassandra Vernham.
– A verdade é que estou deslumbrado por ela, Southwaite. Só penso em tê-la comigo e ela, graças a Deus, não se importa. Fiz a coisa certa e acabei por me apaixonar
pela minha mulher.
O sorriso provocador de Southwaite desapareceu.
– Estou perplexo. Contente por si, mas perplexo.
– Não era de esperar.
– Mais uma razão para me alegrar por si. E fico satisfeito por ter um amigo que está cativo também. Torna este estado mais suportável. Devo avisá-lo de que nem tudo
serão felicitações. Há homens que julgam que sucumbir é uma fraqueza, e que devem ter pena de nós.
Um daqueles homens entrou na sala. Viu-os e aproximou-se.
– Não lhe diga, ainda – advertiu Southwaite. – Assim que o Kendale souber que está apaixonado, nunca mais se cala.
Especialmente a mulher sendo aquela mulher.
– O que se passa? Porque é que me mandou chamar, Ambury? – perguntou Kendale, em jeito de saudação. – Estão os dois com ar de quem foram apanhados com a mão na massa.
Yates ofereceu-lhe uma cadeira empurrando-a na sua direção com o pé.
– Sente-se para jogarmos às cartas enquanto esperamos, Kendale.
– Esperamos por quê?
– Tenho um encontro esta tarde. Preciso que venha comigo para se certificar de que não mato o homem.
Barrowmore circulava por St. James’s Park, olhando em volta à procura de Southwaite. Yates já assumira posição num sítio onde ninguém poderia pôr-se à escuta sem
dar nas vistas, e que consistia precisamente na parte central da relva próxima ao canal. Kendale estava encostado a uma árvore a alguma distância, parecendo não
se ocupar com nada.
Barrowmore viu Yates e parou. De semblante carregado, tentou decidir o que fazer.
– Ele não vem – chamou Yates. – Estou aqui eu.
Barrowmore hesitou, mas depois aproximou-se.
– Se isto se deve à minha tia, deve saber que já enviei uma petição ao Lorde Chanceler para que averigue o assunto e o resolva rapidamente.
– Não é necessário.
– Tenciona abrir mão dela?
– Não é necessário, porque ela já revelou aquilo que você espera manter em segredo com o seu afastamento.
A afirmação fez sumir o sorriso pretensioso do rosto de Barrowmore. Este recuperou, mas precisou de bastante tempo, durante o qual pareceu tão assustado a Yates
que este chegou a sentir pena dele. Devia ser um inferno viver todos os dias com aquele tipo de medo.
Barrowmore tentou aparentar superioridade, mas só conseguiu arrogância.
– Ela não está boa da cabeça. Seja qual for o disparate que tenha dito, as palavras dela não podem ser levadas a sério.
– A cabeça dela não é o que costumava ser, mas na maior parte das vezes Sophie está tão lúcida quanto você. E a sua história não foi relatada em nenhum outro momento.
Embora o medo que tem não seja sem razão. Ela já tinha dito coisas, de passagem, que aludiam a este mistério. Suficientes para eu ter vontade de a interrogar.
– A minha tia tem muitas histórias. – Mantinha os maxilares cerrados e os lábios comprimidos. – Histórias infindáveis, sobre príncipes e duques e festas e escândalos.
Metade não é verdade, tenho a certeza, tal como esta.
– Esta foi sobre estar grávida ao mesmo tempo que a cunhada e sobre ficarem juntas no campo durante o tempo de gravidez. Num sítio discreto, pois Sophie não era
casada. Tenho a certeza de que a mãe de Cassandra se lembra da história toda também. Talvez eu lhe deva perguntar.
– Não se atreva a chegar perto dela.
– Também vai isolá-la, se, com a idade, ficar indiscreta? Deve estar a começar a preocupá-la.
A agitação de Barrowmore atingira níveis extremos. Yates não conseguia decidir se o homem ia dar-lhe um soco ou desabar em lágrimas.
– Fala-me em enigmas. Não tenho tempo para isto.
Começou a andar.
– Só uma delas teve uma criança que sobreviveu ao primeiro dia – disse Yates, alto o suficiente para Barrowmore ouvir. – A Sophie. A condessa ficou com a criança
como se fosse dela.
Barrowmore gelou. Olhou em redor com ar desesperado, para ver se alguém estava perto o suficiente para conseguir ouvi-los. Avançou novamente até estar a menos de
um passo de distância.
– Repita isso e eu mato-o, Ambury.
– Não me parece que vá repeti-lo, mas quero respostas. A minha curiosidade é o meu maior defeito. Quando é que soube a verdade, que era filho de Sophie, e não da
condessa? O meu palpite é: quando o seu pai estava a morrer. Os homens gostam de acertar contas nessas alturas.
Imaginou Barrowmore a ouvir a derradeira revelação e a ficar a saber que não era a pessoa que, a vida inteira, julgara ser. Choques como aquele podiam mudar o carácter
de um homem, especialmente se, subitamente, houvesse muito mais a perder além da suposta identidade. O comportamento de Barrowmore era repreensível mas pelo menos
agora fazia algum sentido.
– O que ele me disse foi que a minha irmã tinha demasiadas parecenças com a tia e que devia vigiá-la de perto para ela não trazer desonra à família. Ele tinha razão
nisso, e fico aliviado por ela agora ser problema seu.
Yates sentiu-se furioso ao ouvir o insulto a Cassandra. Manteve a calma com esforço.
– Também lhe disse que ela não era sua irmã. Não por causa de qualquer problema com a legitimidade dela, mas com a sua. A Sophie sabe que ele estava ao corrente
daquilo que tinham feito. Sabia que ele tinha intenção de lhe contar.
– Sou filho dele, maldição. Seu filho e herdeiro.
– Aos olhos da lei, sim. Ele não o repudiou. O título era seu. As terras também. Qualquer herança que designasse um descendente do mesmo sangue dele, em vez da sucessão
habitual, contudo, estava sujeita a contestação por parte da Cassandra. Ainda está.
– Está a ameaçar-me, Ambury? Então é disso que se trata. Casou-se com uma vadia em quem tropeçou e agora afinal quer dote.
Ambury quase se atirou a Gerald para o esganar. Pelo canto do olho, viu Kendale ficar rígido, em alerta, e dar um passo. Fez-lhe um gesto atrás das costas para não
se aproximar e conseguiu aplacar-se no meio da fúria que o urgia a dar uma boa tareia a Barrowmore.
– Devia exigir o maior dote que este país já viu, depois da forma como a tratou, seu canalha. Era isso que temia, que ela se casasse com um homem que viesse a saber
da verdade e perseguisse o que pudesse em nome dela. Mais valia estar casada com algum tipo que pudesse controlar.
– Se tentar alguma coisa, não lhe darei sossego. Vai ficar empancado na Chancelaria durante anos a fio. Ela não verá um penny.
– Provavelmente não, mas vê-lo-á a si humilhado e dado como bastardo para o mundo inteiro saber. Poderá valer mais do que dinheiro.
Enraivecido, quase a espumar, Barrowmore afastou-se novamente a passos largos, depois deu meia-volta e regressou. Desta vez, tinha os punhos cerrados.
– O que raio é que quer? Quanto?
– Nenhum dinheiro. Precisa apenas de retirar as petições relativas à sua mãe e não tecer senão louvores a Cassandra no futuro.
– Louvores?
– Louvores celestiais. De quão encantadora é. Do quanto a ama. E como lamenta o afastamento dos últimos anos. Deve escrever-lhe uma carta, para este efeito, para
começar. Não deixe de se prostrar diante dela e de lhe pedir perdão.
– Está louco? Não vou escrever ou dizer nada desse género.
– Então, eu irei expor a verdade do seu nascimento, e você irá desafiar-me, e eu acabarei por o matar. Esta alternativa tem o seu encanto, mas, em prol da minha
mulher e das outras pessoas envolvidas, abdicarei desse prazer.
Gerald continuava com ar de quem queria bater em alguma coisa. Ali perto, debaixo da árvore, Kendale mantinha-se em alerta.
– Maldição, se tudo o que quer é uma carta cheia de mentiras e o fardo de uma velha palerma, faça-se a sua vontade. Mas juro que, se algum dia contar alguma coisa
destas a alguém, se eu ouvir um rumor sequer, é um homem morto.
– Não tenho interesse em dizer a ninguém. Nem sequer à minha mulher.
Gerald cravou os olhos nele. Yates devolveu-lhe o olhar, à procura... não sabia de quê.
Gerald fez menção de partir.
– Sabem quem ele é? – perguntou Yates.
Tinha de saber.
– Quem? Ah, refere-se ao velhaco para quem ela levantou as saias. Não, graças a Deus! – O semblante dele carregou-se, pesado de desconfiança. – Que diabo, você sabe?
Yates olhou para o irmão que o destino lhe atribuíra. Gravou na memória a forma como a arrogância e a virtuosidade dos Highburton podiam ser distorcidas, para jamais
esquecer os seus perigos.
– A Sophie não disse e eu não perguntei. Não faço ideia de quem ele era. Absolutamente nenhuma.
CAPÍTULO 26
Cassandra aninhou-se na curva do braço de Yates, acomodando a cabeça no ombro. Pousou-lhe a palma da mão no peito. Se ficasse atenta, conseguia sentir o bater do
coração. Era um ténue eco de vibração que se dispersava pelo corpo.
O ar fresco do outono arrefecia o quarto, mas estavam confortáveis ali debaixo. As cortinas estampadas da cama protegiam-nos do frio maior da noite. Ela nunca fechava
as cortinas por completo, porém. A casa nova ainda a fascinava. Gostava de ser capaz de ver a luz prateada raiar a escuridão da madrugada, dali, onde dormia.
– Vai cedo para a Fairbourne’s, para ajudar a Emma? – perguntou Yates.
Ele ficava muitas vezes na cama dela até de manhã, como naquele momento. Parecia desfrutar da acalmia do acordar, nos braços um do outro, ouvindo iniciar-se o dia
na casa.
– Vou chegar uma hora antes do leilão. Ela não precisa verdadeiramente de mim, a não ser para a ajudar a não se preocupar. Vai matá-la, não poder fazer nada de útil.
O irmão hoje desempenhará o papel dele e o mundo deve presumir que ela é apenas uma cliente, tal como eu.
– A sua tia vai?
A pergunta aludia a um desenvolvimento interessante que tivera lugar desde que se haviam mudado para St. James’s Square. A tia Sophie saíra da sua reclusão. Começara
a visitar os pais de Yates. No dia anterior, acedera a receber Hortense, a tia de Southwaite.
– Julgo que um leilão a iria cansar. Nem me parece que ela goste deles. Nunca falou em joias adquiridas dessa forma.
A forma como as adquirira estava a ser retificada. Cartas discretas de Mr. Prebles seguiam o seu caminho para outras tantas localizações no Continente. Sophie cooperara
com o plano de restituição, na medida em que lhe fora possível. Não recordava verdadeiramente a proveniência de algumas daquelas joias.
Ele depositou-lhe um beijo na cabeça.
– Ela parece estar satisfeita aqui, com a companhia da Merriweather. A insistência para que a Signora Paolini fosse mantida no grupo de cozinheiros não é o desastre
que esperei, embora ache a comida da senhora um pouco estranha. Atenção, não disse «má».
Ela decidiu não mencionar que a interferência da tia Sophie podia explicar quaisquer peculiaridades.
Uma tosse discreta interrompeu a ociosa felicidade. Soou na porta uma batida delicada. Yates sentou-se e espreitou o quarto de vestir.
– O que é, Higgins?
– Uma carta, senhor. Um envio especial para a senhora. Quer esperar até ao pequeno-almoço?
Yates atirou os lençóis para trás e rumou ao quarto de vestir. Regressou com a carta.
– É de Anseln Abbey.
Entregou-a e voltou a subir para a cama.
Ela sentou-se e enrolou um casulo de roupas à sua volta.
– Espero que a minha mãe não esteja doente.
Abriu-a e deparou com uma comprida missiva da parte do irmão.
Era o último tipo de carta que esperaria receber dele. Cheia de rapapés, pedia-lhe perdão pelo comportamento passado e prometia regenerar-se. Desenhara longas linhas
sobre o quão estava errado e exprimiu a esperança de que ela encontrasse mais tempo para a mãe. Ofereceu-se para se organizar de forma a não estar presente em nenhuma
propriedade da família, se este fosse um requisito para a visita dela. Chegava até a admitir que ela possuía ótimas qualidades, e incluiu uma pequena lista.
Agradecia-lhe por tomar conta da querida tia Sophie.
Ela deixou cair a carta em cima da cama e ficou a olhar para as garatujas do irmão. O espanto inicial deu lugar a uma emoção mais profunda. Quase chorou. Era como
se o irmão tivesse regressado de onde quer que fosse onde se havia metido. Sentiu uma grande comoção e imaginou-se a desfrutar de tempo com Gerald a falar e a rir
como as outras mulheres faziam com os irmãos. Imaginou reuniões familiares às quais levava os seus filhos, e uma proximidade que preenchia os vazios que os últimos
anos tinham cavado na família.
Ficou quase inebriada de alegria.
Então, formou-se uma reação muito diferente.
Pegou na carta. Observou-a de perto. Não encontrou uma única correção. Era como se Gerald tivesse feito múltiplos rascunhos e continuasse a copiar até o último sair
perfeito, muito à semelhança do que faziam para a precetora quando eram pequenos.
Quanto mais vezes lia a carta, mais estranha esta lhe parecia. Não conseguia acreditar que Gerald a tivesse escrito. Nem num assomo de generosidade, Gerald teceria
aquela profusão de elogios. Gerald nunca admitiria ter cometido todos aqueles erros, a não ser que alguém estivesse ao seu lado com uma pistola encostada à cabeça
dele.
Voltou-se. Yates contemplava o dossel estampado. Parecia contar as figuras retratadas. Não mostrou qualquer interesse por aquela entrega especial. Nenhum. Nem sequer
perguntara se a mãe dela estava doente.
Cassandra dobrou a carta e pousou-a numa mesa próxima. Rodou e voltou a enfiar-se na cama, fitando o marido.
– Era do Gerald. Uma tentativa de reaproximação. Muito contrita.
– É bom, não é?
– Muito bom, embora não me pareça que, na verdade, ele deseje aproximar-se muito. Fico satisfeita, porque não desejo aproximar-me muito dele. Aconteceram demasiadas
coisas entre nós para voltarmos a acertar-nos. No entanto, agrada-me a perspetiva de ver a minha mãe mais vezes e mais à vontade.
– Depois de toda a mágoa, diria que a tentativa dele de se desculpar devia deixá-la feliz.
– Deixa-me muito feliz. Não viu como fiquei comovida? Quase chorei. – Fitou-o nos olhos e completou: – Foi inesperado, mas é uma surpresa maravilhosa, neste dia
esplêndido.
– Provavelmente significa que também não criará problemas com a sua tia. São boas notícias. O Prebles disse que o Gerald retirou a petição que fez à Chancelaria.
Isto explica porquê.
– É um grande alívio, ele ter-se esclarecido.
Aconteceriam outras coisas boas a partir dali, mesmo se ela e Gerald não voltassem a ser amigos. Ela podia visitar a casa da juventude sem ser desprezada. Podia
resgatar memórias perdidas, dos tempos idos e da família, de antes de o seu pai morrer.
Esticou os braços e beijou Yates, sentindo um alívio e uma gratidão profundos por tudo aquilo. Não sabia como é que ele o tinha conseguido. Quer o tivesse subornado,
ameaçado ou chamado à razão, convencera Gerald a escrever aquela carta. Sabia-o.
– Tem fome para o pequeno-almoço? – perguntou ela. – Estou a pensar que podíamos ficar mais um bocadinho na cama.
Beijou-lhe o peito uma, duas, três vezes, saboreando-lhe a pele. A mão dele procurou a cabeça dela, segurando-a com os lábios selados contra o seu calor.
– Tenho fome, mas não é de um pequeno-almoço. É de si. Como sempre. Da sua beleza, da sua paixão e do seu humor, mas, principalmente, do seu amor.
– Estará sempre aqui ao seu dispor, Yates. Banqueteemo-nos juntos.
– Um banquete sem fim.
Ele rodou e pôs-se sobre ela. Inclinou-se, então, para a beijar profundamente.
Ela saboreou aquele beijo, e todos os que se lhe seguiram. Abandonou-se ao coração e ao corpo dele. Desfrutou desmesuradamente do prazer, reconhecendo em cada toque a verdade que ambos conheciam e partilhavam: que o amor tornava tudo diferente, e melhor.
Madeline Hunter
O melhor da literatura para todos os gostos e idades