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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESEJO DE MARY
O DESEJO DE MARY

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

Capítulo XVII


Quando os três se afastaram, Philip virou-se para Mary e olhou para ela sem dizer nada. Lentamente, seus olhos a inspecionaram para confirmar que não havia sofrido nenhum dano físico. Estava ilesa. Por sorte daquele tolo, chegou antes de poder tocá-la. No entanto, pela expressão de seu rosto, soube que a dor de Mary não era corporal, mas mental. Permanecia imóvel, com o olhar perdido e agarrava com força a pequena retícula, que não soltou durante a confusão. As mechas de cabelo que escaparam do seu penteado estavam penduradas em ambos os lados do rosto e seu corpo ainda estava rígido. Quem não a conhecesse, pensaria que estava tão acostumada a sofrer aquele tipo de situação que se mantinha impassível. Mas ele sabia que não era assim. Suas bochechas ainda tinham a cor do sangue e seus olhos brilhavam de ódio. Aquele energúmeno, a quem procuraria novamente, a humilhou na frente de todos. Talvez nenhum dos presentes entendesse o duplo significado de suas palavras, mas ele entendeu e queria matá-lo por isso.

?Mary... ?Disse-lhe para acorda-la do possível choque.

?Ele te machucou? Dói a ferida? ?Ela perguntou depois de piscar várias vezes.

?Não vamos falar de mim. No momento, estou interessado em saber se tem força o suficiente para voltar para casa ?insistiu em saber.

Percebendo um tremor em sua voz, desejou abraçá-la, depois quis acariciar aquele rosto angustiado com uma mão. Mas se obrigou a não fazer nem um, nem outro. Não desejava iniciar outra guerra senão acalmar a anterior.

Enquanto esperava uma resposta, retirou-se dela, inclinou-se para o chão e pegou suas roupas. Quando as tinha em seu poder, apalpou o bolso interior de sua jaqueta e suspirou aliviado ao comprovar que a arma continuava dentro.

?Teria usado? ?Mary perguntou olhando-o fixamente. Ao observar como lorde Giesler arqueava uma sobrancelha ao não entender a que se referia, acrescentou: ?Eu a vi. Tropecei com ela...

?E não atirou nele? ?Retrucou enquanto vestia a jaqueta. ?Me decepciona, Mary Moore Arany. Pensei que era a mulher mais coerente nesta cidade ?alegou num tom brincalhão.

?Isso não teria sido um ato coerente, mas insano. E se tivesse procedido desse modo, teria consolidado a opinião que todos têm de mim... ?murmurou, abaixando o rosto envergonhada.

?Bem, eu teria feito isso se Thomas e Johnson não tivessem chegado. Aquele idiota merecia um tiro na testa ?declarou com veemência e odiando ainda mais Wang por fazê-la sentir-se uma pária.

?Lorde Giesler! ?Exclamou enquanto levantava novamente a cabeça. Então olhou por cima de seus ombros para comprovar se aquelas palavras foram ouvidas por outras pessoas.

?Mary, te perguntei se tem forças para caminhar até sua casa. ?Repetiu depois de vestir o casaco.

Queria lhe responder. Deixar claro que nada nem ninguém a afundaria tanto para não poder seguir com sua vida, mas não pôde. Começou a se sentir tonta... Sua mente começou a repensar o que havia acontecido: os insultos de Wang, a presença de Lorde Giesler, os gritos de pessoas animando a luta, ela agarrando o pescoço de seu inesperado salvador, os golpes dele em seu agressor. A arma, o que teria acontecido se tivesse atirado nele? Mais pessoas... Mais barulho... Suas palpitações aceleraram... Wang já se tornara um médico e ela nunca conseguiria... Faltava ar... Queria vomitar... Cheiro de café... Fumaça diante dos olhos... Talvez fosse uma névoa... Não, não era. Eram suas lágrimas que a impediram de ver. Estava entrando em choque pelo pânico e devia impedi-lo. Sem pensar duas vezes, correu para Philip, desesperada, caótica, morta de dor e raiva...

?Está muito sujo, milorde ?Lhe disse quando se colocou na frente dele. Estendeu suas mãos enluvadas em pele cinza e começou a sacudir o casado. ?Shira diz que a roupa escura não esconde as manchas brancas e está certa. Olhe para você! Um homem como você não deveria mostrar uma aparência tão desalinhada ?acrescentou.

O que começou com palmas leves acabou se tornando fortes impactos de pequenos punhos com luvas.

?Mary, por Deus! O que está fazendo? Pare! Pare uma vez! ?Lhe pediu ao vê-la agir dessa forma tão estranha. Depois de deduzir que esse comportamento não pararia, agarrou-lhe pelos pulsos, afastou-as de seu corpo e as levantou até que pôde apoiá-las sobre seu peito. Quando ambos os olhares se cruzaram, descobriu, irritado, que seus olhos estavam banhados em lágrimas e que lutava para detê-las. Quando ele entendeu o que estava acontecendo, soltou uma mão e puxou com a outra dela. ?Vamos! Vamos sair daqui! ?Acrescentou antes de levá-la ao primeiro lugar seguro que encontrasse e no qual ela pudesse desabafar com total liberdade.

Em ocasiões anteriores, quando ele agarrou a mão de uma amante para manter alguma intimidade entre os dois, ele se orgulhava de apreciar sua submissão, mas agora ela não sentia satisfação, mas ódio. Ódio pelo homem que, para acalmar a raiva que despertou nele, teria que deixar de existir. Olhou de canto de olho para Mary e amaldiçoou baixinho a atitude frágil que mostrava. Ansiava ver a mulher que lhe jogou os tubos metálicos, aquela que, apesar de todas as adversidades que encontrou, o operou e salvou sua vida. Ele queria ouvir seus gritos e até ser repreendido por levá-la em público de uma maneira tão inadequada. No entanto, sua Mary não estava lá, ao seu lado, mas presa em um turbilhão emocional.

Quando chegou ao final da rua, pois nenhuma das bancas pelas quais passaram lhe pareceu adequado, olhou desesperado para o lugar onde seu empregado estacionou a carruagem, mas não o encontrou. O que havia dito a Thenders? Pediu-lhe que o esperasse dez minutos antes de retornar à residência? Quanto tempo havia passado? Porque para ele só tinham passado alguns segundos...

Agarrou com mais força a mão de Mary e avançou para frente. Seus olhos não paravam de olhar para um lado e outro da rua, procurando uma carruagem de aluguel. Precisava acordá-la, tirá-la daquele abismo profundo em que ela havia mergulhado. Se não o fizesse, podia perdê-la para sempre...

?Milorde! Lorde Giesler! Estou aqui! ?Thenders gritou chicoteando os cavalos.

?Graças a Deus! ?Philip exclamou agradecido.

?Desculpe, senhor ?O lacaio se desculpou. Quando parou os animais, eles relincharam em protesto contra a decisão abrupta. Jogou as rédeas para o lado direito, pulou no chão, abriu a porta e estendeu a escada de metal. ?Voltei assim que soube que um senhor defendia a honra de uma das filhas do Sr. Moore ?explicou. ?O que aconteceu, milorde? Por que a senhorita Moore tem o olhar perdido?

?Vamos, Mary, levante um pé. Preciso que suba na carruagem ?Philip disse enquanto segurava seu braço esquerdo com muita ternura e sem atender aos pedidos do servo. ?Te levarei para casa.

Tornara-se uma boneca, um objeto inerte. Seu choque era tanto que não lhe permitia que ouvisse o que estava sendo pedido. Philip olhou para Thenders, quando Mary ficou imóvel na frente da escada, e ele assentiu, entendendo sem palavras o que desejava. Aproximou-se dela pela direita, agarrou-lhe o braço e, junto com Giesler, a levantaram e colocaram dentro da carruagem.

?Para onde quer ir, milorde? ?Ele perguntou uma vez que seu mestre ajudou a mulher a se sentar.

?Para a residência Moore ?afirmou antes de se sentar na frente dela e segurar suas mãos.

?Cuide dela, milord. A senhorita Moore tem um caráter muito forte, e é a mulher mais inteligente que conheci em minha vida ?Thenders manifestou com carinho depois de recolher a escada.

Fechou a porta, subiu com agilidade a seu assento, pegou as rédeas e atiçou os cavalos.

Quando a carruagem começou a andar, Philip levantou-se e sentou-se ao lado de Mary. Colocou um braço nos ombros dela e a puxou para ele.

?Mary... ?Disse-lhe logo depois de lhe beijar o cabelo despenteado ?deve reagir. Você sabe, melhor do que ninguém, que não pode manter essa raiva dentro de você, porque isso te machucará muito. Precisa se libertar dessa comoção. Por favor, peço que solte a mulher que encara o mundo com coragem. ?Ele se recostou enquanto acariciava o braço direito. ?Observe onde você está, pequena. Está comigo, ao meu lado, e eu prometo que tudo o que acontecer aqui, será mantido em segredo. Não é de pessoas fracas chorar. Eu fiz isso muitas vezes quando minha mãe morreu. Meu ódio por ela foi tão grande que demorei muito tempo para me recuperar, e o fiz chorando sobre sua tumba enquanto lhe reprovava sua falta de amor. Agora, quando conheci uma mulher pela qual estou disposto a dar minha vida, a compreendi; tudo tem um por que, uma razão para que aconteça... Por favor, pequena, chore, grite, faça o que quiser. Se quiser direcionar sua raiva para alguém, aqui estou. Me bata o quanto quiser, mas acorda desse transe de uma vez.

Seu rosto descansava no casaco preto e sujo do lorde. Seus olhos pararam de olhar para a janela para direcioná-los para o peito do homem que a abraçava. O peito subia e descia, agitado. Tentava acalmá-la quando ele não era capaz de fazê-lo. Lentamente, levantou o rosto e depois de observar a expressão de seu rosto, o braço esquerdo, esse que ele não deixava de acariciar, moveu-o para colocá-lo sobre o forte torso masculino.

E ali, sentindo seu calor, ouvindo as palavras de conforto e carinho que ele oferecia, ela deixou as lágrimas que retinha serem liberadas de uma vez por todas.

?Assim, muito bem. Você está indo muito bem, Mary ?Philip a encorajou ao ouvi-la chorar. Seus braços seguiam segurando-a, cuidando dela. Queria mostrar-lhe que não estava sozinha, que podia contar com ele quando e para o que fosse. ?É tão corajosa, tão especial... ?ele acrescentou depois de beijar novamente a cabeça emaranhada que descansava sob o queixo. ?Não desista nunca, pequena. Por mais que digam, por mais que escute, você será o que quiser ser...

?Não... ?Mary soluçou. ?Não sou nada! Nunca serei!

?Carinho... ?Esfregou-lhe as costas para consola-la. ?Será tudo o que desejar. Valoriza força e coragem suficientes para lutar contra homens tão insignificantes quanto Wang. Além disso, lembre-se que possui algo que os outros nunca conseguirão... a mim ?declarou solene. ?Não permitirei que lhe façam mais mal e quem tentar, deixará de respirar. Juro! ?Clamou ao sentir em sua pele a umidade e o calor das lágrimas.

Não lhe respondeu. Mary continuou chorando e assoando o nariz enquanto percebia como toda a pressão que tinha guardado, toda a indignação que tinha vivido, desaparecia lentamente. Não era prudente acreditar nele. Ela sabia que, em estados de raiva, as pessoas prometiam coisas que depois não podiam cumprir. No entanto, algo dentro dela indicava que as alegações de lorde Giesler não cairiam em um saco sem fundo. Sua promessa levaria a termo, mesmo que lhe custasse a vida.

?Médico! Se tornou um maldito médico! ?Exclamou depois de vários minutos em que não conseguia consolar seu pranto.

?Garanto que nesta cidade não atenderá nem um único paciente. Se tentar, sofrerá uma grave consequência ?Philip disse enquanto lhe oferecia um lenço.

?Por que a vida é tão injusta, lorde Giesler? ?Mary perguntou se separando um pouco dele. Pegou o lenço e assuou o nariz. ?Ele é um médico qualificado e sem vocação. Em contrapartida, eu, que nasci com o dom, não posso consegui-lo! ?E quebrada de dor voltou a chorar. ?É injusto! É injusto! ?Exclamou no meio daquele forte choro.

Philip, consternado pelo sofrimento de Mary, estendeu as mãos para consolá-la. Ao aceitá-lo, apertou-a tão forte que pensou que partiria em dois. Tinha razão. Ela estava certa. A sociedade masculina não era capaz de assumir a igualdade. Mas ele não pensava assim. Sua irmã lhe mostrou que as mulheres eram tão fortes como os homens. Onde ele se ajoelhou, Valeria estendeu-lhe uma mão para que se levantasse e continuasse lutando. E isso mesmo faria com Mary. Estender-lhe-ia essa mão e o resto de seu corpo se precisasse.

?Mary... ?sussurrou enquanto lentamente afastava suas mãos dela. ?Sou uma prova viva desse dom que tem. Sem você, não estaria aqui.

?Isso... isso não importa... ?soluçou, enquanto levantava o rosto.

?Isso importa, pequena. Graças ao que fez, estou vivo ?Acrescentou enquanto colocava seu rosto entre as mãos e afastava com os polegares suas lágrimas. ?Diga-me o que devo fazer para ajudá-la e juro pela minha honra que farei.

?Pode voltar no tempo e me tornar um homem? ?Retrucou sem deixar de soluçar. ?Porque é a única forma possível de conseguir o que desejo.

Ao escutá-la, Philip sorriu levemente. Aproximou-se muito devagar, a abraçou e lhe deu um beijo na testa.

?Não quero um homem, quero ver minha Mary. Essa mulher que é capaz de lutar contra o mundo para alcançar seu sonho ?confessou.

Mary ficou sem fôlego. Não pela pressão que exerciam aqueles fortes e robustos braços nela, mas pela declaração de lorde Giesler. «Minha Mary». Desde quando havia assumido essa postura? E, por que não lhe pareceu desagradável? Ela nunca ansiou essas palavras e nem muito menos de um homem. Então o que a fez ficar quieta e aceitar sem gritar?

«Vai se casar com o homem que viu esta noite em seus sonhos ?ouviu as palavras de Madeleine como se estivesse ao seu lado repetindo-as. ?Ele lhe dará o que nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!»

Aterrorizada com essa lembrança, ela rapidamente se afastou de lorde Giesler. O que estava fazendo? Não era consciente de que suas ações a levaram à premonição de sua irmã? Entretanto, essa distância que se obrigou a ter, não a reconfortou. Ao contrário, se sentiu tão desgraçada que baixou o rosto e o esfregou com as mãos. Era uma loucura. Todas essas emoções a estavam deixando louca. Precisava sair de lá. Queria se afastar dele antes que esses sentimentos crescessem. Mas exatamente no momento em que decidiu separar os lábios e pedir que a deixasse descer, sua mão esquerda sentiu a pressão de uma palma forte e quente. Mary fixou os olhos naquela união e deixou a carícia daquele polegar confortá-la. Estava perdida. Lorde Giesler a induziu a continuar em um mundo que ela nunca imaginara ter, mas no qual, por alguma estranha razão, sentia-se calma para alcançar.

?Mary... ?começou a dizer enquanto se voltava para ela. Estranhou ao notar a brusca mudança de atitude nela. Pela expressão de seus olhos, sua Mary, a corajosa e enérgica mulher, havia despertado, tal como desejou. Só esperava que, pensando na situação em que ambos viviam, não pretendesse fugir com a carruagem andando. Com grande agilidade mental, ele procurou maneiras de afastá-la dos pensamentos que a mantinham abstraída. ?Você pode me explicar por que esse tolo tentou bater em você? Eu gostaria de saber que frase deve ouvir antes de morrer.

?Não tem porque morrer ?disse Mary, movendo-se desconfortável no assento, mas sem retirar sua mão da dele. ?Não interceda mais, milorde.

?Philip ?pediu enquanto lhe agarrava a outra. Aproximou as duas mãos aos lábios e as beijou com ternura. ?Me chame de Philip. Acho que mereço essa honra depois de ter colocado minha vida em perigo ?acrescentou com um ligeiro tom brincalhão.

?Você não esteve em perigo... ?alegou, olhando para longe do homem para fixá-lo nas partes de seu corpo que continuavam unidas a ele. ?Wang não o tocou em nenhum momento.

?Ele não ?comentou com astúcia. ?No entanto, senti um braço tentava me sufocar. Não considera isso perigoso? Porque eu estava prestes a desmaiar por falta de oxigênio ?prosseguiu brincando. ?Quem te ensinou? Já o usou em outras ocasiões?

?Meu pai e não, não o usei até agora. ?Seus olhos se voltaram de novo para os dele e, apesar de nomeá-lo como inédito, a repentino calor que emergiu de suas entranhas a relaxou. ?A última vez que o senhor Wang e eu nos encontramos, fora na assembleia, utilizei a técnica do guarda-chuva.

?A técnica do guarda-chuva? ?Ele retrucou, desenhando um enorme sorriso no rosto. ?E, em que consiste?

?Eu bati na carruagem com esse objeto enquanto ele pedia socorro de dentro ?respondeu.

E Philip soltou uma grande risada, recostou-se no assento e puxou Mary novamente para o peito. Uma vez que sentiu o leve peso de seu rosto, liberou uma mão para colocá-la de volta em seus ombros.

?É por isso que Thomas perguntou se usou a bolsa desta vez? ?Perguntou sem deixar de rir. Ela assentiu e ele continuou rindo. ?É uma mulher corajosa e perigosa, Mary Moore Arany.

?Milorde, não deve encorajar meu comportamento inadequado ?respondeu contemplando, atordoada, o orgulho exibia seu rosto. ?Minha mãe ficaria irritada se ela escutasse.

Ao lembrar o ato imprudente da senhora Moore, Philip torceu o gesto. Estava ansioso para descobrir a razão pela qual aquela mãe não reparou na proteção de uma das suas filhas.

?Milorde? ?Lhe perguntou Mary ao apreciar a mudança de emoção em seu semblante.

?Philip ?ele repetiu.

?Não seria apropriado que o tratasse com tanta familiaridade ?disse enquanto se afastava dele o suficiente para chamá-lo adequadamente.

?Por que sua mãe te deixou sair sem proteção? ?Mudou de assunto ao ver que Mary seguia reticente em chamá-lo por seu nome. ?Não pensou nos problemas que poderia ter?

?Não a culpe por isso! ?Exclamou horrorizada. ?Minha mãe não sabia o que decidiria depois da tarefa ?insistiu.

?E, em que consistia a dita tarefa? Porque seria muito urgente permitir um descuido semelhante ?perseverou enquanto cruzava os braços.

?Me enviou para pegar alguns vestidos. Como bem sabe, minha irmã mais velha se casa com o visconde de Devon no sábado e toda a família está louca por terminar os últimos preparativos.

?E? ?Insistiu levantando as duas sobrancelhas.

?E como ninguém poderia me acompanhar, fui sozinha. Mas ela não pensou que, depois de buscá-los, eu fosse dar um passeio.

?Sozinha... ?afirmou apertando a mandíbula.

?Tinha que fazê-lo, milord. Juro-lhe que minha casa é uma colmeia de abelhas. Todos andam de um lado para outro agitados e não tive nem um só momento de tranquilidade. Além disso, depois de comprovar a cor do vestido que escolheu essa petulante costureira para mim, devia me acalmar ou, do contrário, lhe teria quebrado o vidro da vitrine.

?Que cor? ?Perguntou se virando para ela.

?A do vestido? ?Philip assentiu. ?Verde esmeralda ?respondeu franzindo a testa.

?Então, o responsável por toda essa bagunça tem sido a cor desse vestido?

?Sim, milorde ?afirmou sem hesitar um único segundo.

?Já vejo... ?murmurou, levando a mão direita em direção ao queixo para acariciar sua barba. ?Ainda assim, creio que ao senhor Wang não lhe viria mal uma conversa. Penso que alguém deve lhe ensinar certos modos...

?Não! ?Mary berrou virando-se para ele. ?Eu imploro, não faça nada com ele!

?Por que Mary? Sente algo especial por ele? ?E depois de soltar essa pergunta, o ciúme se apoderou da pouca sensatez que tinha.

?De jeito nenhum! ?Ela exclamou sorrindo discretamente. ?Tudo o que sinto por ele é antipatia e ódio. Não pensará que...? ?Levou a mão direita para a boca para não rir. Era a primeira vez que um homem mostrava para ela sentimentos tão absurdos como eram os ciúmes. Ódio... sim. Repugnância, também. Mas ciúmes? Nunca! No entanto, apesar de tê-los listados dessa maneira no passado, notou certa alegria de não poder descobrir de onde vinha e por que. ?O pai dele é o professor Wang. Já ouviu falar dele?

?Não ?respondeu como um garoto zangado.

?Tudo surgiu desde o momento em que sonhei ser médica ?começou a explicar enquanto se acomodava no assento e olhava para frente ?meu pai falou com ele, que leciona desde muito jovem em Cambridge, para que pudesse assistir como ouvinte suas aulas.

?Não teve uma preceptora? ?Retrucou, relaxando aquela raiva repentina e absurda.

?Sim, eu tinha. Mas ela se despediu quando eu continuei discordando das explicações que oferecia em matemática e ciências. Disse-lhe que devia ler livros mais atuais, que os dela foram escritos na Idade Média ?afirmou com orgulho.

?Não deveria me admirar... ?murmurou esboçando um pequeno sorriso.

?Suas explicações eram ancestrais! ?Se defendeu diante do sutil ataque. ?Era incapaz de assumir que tinham passado alguns séculos e que realizaram investigações que anulavam aquelas premissas! ?Acrescentou.

?E, diante disso, se despediu... ?refletiu em voz alta Philip.

?Há pessoas que não são capazes de assumir a realidade... ?comentou sarcástica.

?Entendo... ?acrescentou, incapaz de apagar o sorriso.

?Desde esse dia meu pai arrumou um professor mais apto ?salientou-ao meu conhecimento. ?Inspirou fundo, relaxando cada vez mais, apesar de estar dentro da carruagem com um homem a quem tinha manchado a roupa de lágrimas. ?O senhor Wang se tornou meu mentor... Philip ?acrescentou seu nome olhando-o de canto de olho. Ao ver seu sorriso de satisfação, continuou: ?Não se importava com minhas roupas, mas com a facilidade com que aprendia. Meus dias eram magníficos. Pela manhã ouvia as maravilhosas teorias e à tarde, depois de comer o almoço que Shira me preparava, comprovava a veracidade dessas explicações. Lembro que na primeira vez que tive um cérebro humano em minhas mãos, chorei de alegria enquanto meus colegas de classe procuravam uma lixeira para vomitar.

?Quando começou a visitar e curar pacientes? ?Quis saber.

?Muito cedo... ?suspirou. ?Meu pai jamais me proibiu nada e menos quando lhe ofereço uma explicação lógica. É um bom homem...

?E paciente ?acrescentou sarcasticamente. ?Ainda me lembro de uma conversa que tive com Logan sobre o desespero que demonstrou ao pedir para ele embarcar a sua irmã...

?Sabe por que fez isso? ?Interrompeu-o, olhando-o fixamente nos olhos. Philip assentiu. ?Então, não deveria julgá-lo mas compreendê-lo. Sabe o que nos aconteceria se alguém indagasse sobre nossos antepassados? Tudo pelo que lutamos seria destruído ao saber que somos filhas de uma cigana e que minha irmã mais velha supostamente sofreu uma maldição até se comprometer com o visconde ?disse com pesar.

?Minha mãe era uma cigana espanhola e não menosprezo o sangue que corre por minhas veias, Mary ?comentou como uma repreensão.

?Eu tampouco. Estou muito orgulhosa disso, mas te peço, por favor, que minha família não descubra. Eu não suportaria ouvir as repetidas provocações de minhas irmãs e esbarrar com o rosto de felicidade que minha mãe mostraria mil vezes por dia... ?respondeu sorrindo.

Não soube por que o fez nem com que intenção, mas ficou olhando sem piscar mais tempo do que deveria. O Titã de olhos azuis e cabelos louros a fez confessar algo que nem ela mesma se disse em voz alta. Orgulhava-se de ser filha de uma cigana, embora não acreditasse em maldições, sonhos futuristas ou feitiços. Mas amava a sua mãe mais do que jamais poderia expressar. Essa reflexão tão afetuosa fez que seus olhos se banhassem de novo em lágrimas.

?Por que chora? Ainda se encontra mal? ?Lhe perguntou Philip segurando-lhe de novo as mãos.

?Embora pareça estranho para você ?continuou a chamá-lo "você" porque assim quis e desejou ?o faço de felicidade e graças a você ?acrescentou.

O cruzamento de olhares e o silêncio que apareceu após sua confissão a deixaram tremendo. Ela nunca se sentiu assim. Estava... louca! Desviou os olhos dos dele para fixá-los, inconscientemente, naqueles lábios que beijaram suas mãos. O estupor que mostraram de repente suas bochechas foi devido à lembrança que surgiu em sua cabeça. Relembrou sem poder evitá-lo os poucos momentos em que ambas as bocas se uniram. Desejava fazê-lo de novo. Fosse uma demência ou não, queria fazê-lo. Se inclinou para frente e justo quando fecharia os olhos, a carruagem parou de se mover. Mary rapidamente afastou as mãos do homem, arrumou as saias do vestido e colocou várias mechas de cabelo atrás das orelhas.

?Senhorita Moore! Como se encontra? ?Perguntou Thenders depois de abrir a porta.

?Muito melhor, obrigada ?disse antes de olhar para lorde Philip, que não era capaz de tirar seus lindos olhos azuis dela.

?Deixe-me ajudá-la ?comentou o cocheiro depois de estender as escadas. Ofereceu-lhe a mão e a agarrou com força até que ela colocou ambos os pés no chão.

?Deixou de fumar? ?Mary perguntou depois de inspirar descaradamente as roupas do funcionário.

?Sim, senhorita Moore. Você me disse que não era bom para minha saúde e segui seu conselho ?comentou satisfeito.

?Muito bem... ?respondeu colocando sua bolsa na flexura do cotovelo direito. Ao notar que a carruagem não se movia, virou-se para a porta e ficou com a boca aberta ao ver que lorde Giesler tinha a intenção de sair. ?Não! ?Exclamou. ?Não saia! Minha família se preocupará ao vê-lo aparecer comigo e, como sempre, me culparão de tudo.

?Isso não acontecerá se eu explicar o que aconteceu ?Philip comentou apoiando as duas mãos nas armações de metal.

?Por favor, Philip. Não faça... ?pediu suplicante e sem perceber o sorriso que Thenders mostrava quando a ouviu falar de uma maneira tão familiar com seu senhor.

Giesler quase se recusou a atender seu pedido, mas pensou melhor. Até agora, todos os que se dirigiam a Mary não respeitavam suas opiniões, desejos ou determinações. Ele era diferente e queria provar isso não apenas com palavras, mas também com ações.

?Está bem ?concordou voltando para seu assento. ?Mas me prometa que se quiserem castigá-la novamente, você me enviará a um de seus servos para me informar.

?Prometo ?comentou esboçando um enorme sorriso.

?Até sábado, Mary.

?Até sábado, Philip ?expressou antes de voltar para a entrada de sua casa.

?Milorde, onde deseja ir? ?Lhe perguntou Thenders uma vez que Mary pisou o último degrau que a levava até a porta principal de sua casa.

?Para a Universidade de Cambridge. Preciso falar urgentemente com o professor Wang ?respondeu sem tirar os olhos dela.

?Agora mesmo, senhor ?disse antes de guardar as escadas e fechar a porta.


Capítulo XVIII


Antes de bater na porta, Mary virou-se lentamente para observar a carruagem de lorde Philip se afastar de sua casa. Uma vez que ele estava fora de vista, ela suspirou profundamente devido à tristeza que a dominou. Tinha ido embora e em vez de se sentir feliz, o que teria sido o normal nela, apareceu em seu lugar um grande desconforto no abdômen, como se lhe tivessem tirado o baço sem anestesia. Se virou para a porta, olhou para ela e respirou fundo. Não entendia o motivo pelo qual se sentia assim. Nem sua vaidosa lógica lhe dava uma resposta coerente. Talvez tivesse chegado o momento de procurá-la em outra parte de seu cérebro, uma que mal utilizava: o sistema límbico. O mesmo que se encarregava de produzir as emoções. Tinha de ser corajosa e sincera consigo mesma. Embora se negasse a aceitá-lo, era evidente que ele despertava nela uma rara e inexplicável agitação. Um que a teria encorajado a bater um pouco mais em Wang, se não tivesse pensado que o mataria. Sim, embora esse comportamento tenha sido inapropriado, troglodita e irracional, ela não podia julgá-lo com a racionalidade que usou até agora, porque a fez sentir, pela primeira vez em sua vida, especial e única. A isso se referia sua mãe quando falou sobre o instinto protetor que gerava o amor? Em seu caso não era. Entre eles não havia amor, mas carinho. Lorde Giesler afeiçoou-se a ela por ter-lhe salvo a vida e, como cavalheiro que era, assumiu que estava em dívida. Agora, depois de resolvido, não havia obrigação moral entre eles. A única coisa que encontraria no sábado, dia em que se voltariam a encontrar, seria uma fria camaradagem.

As primeiras gotas de chuva tocaram seu rosto. Levantou-o, fechou os olhos e tentou acalmar sua mente, pois devia prepará-la para o que aconteceria quando entrasse em sua casa e sua mãe lhe pedisse explicações sobre o acontecido no mercado. No entanto, esta não conseguiu calma, mas inquietação ao lhe oferecer algumas imagens da confusão e, embora não fosse adequado, sorriu. Achou muito engraçado lembrar como aquele verme tentou fugir e como foi incapaz de reagir aos golpes do lorde. Se não foi razão suficiente para se afastar dela quando lhe acertou com seu guarda-chuva a carruagem, esperava que a atitude de lorde Giesler fosse o motivo final para evitá-la no futuro.

Gorda e rameira... Dois adjetivos tão simples e prejudiciais quanto a mente que Wang escondia dentro de sua cabeça. Como esse idiota poderia se tornar um médico licenciado? E como ele conseguiu passar nos exames? Quando ela assistia como estudante ouvinte, ele se reclinava em seu assento, cruzava os braços e adormecia, devido ao cansaço da madrugada. Talvez o fato de ser filho do professor e médico tão importante, além de nascer homem, o ajudaram a alcançá-lo.

Odiando de novo o mundo e às injustiças sociais, levantou o punho direito e golpeou a porta várias vezes, pois ninguém a escutou à primeira. Quando Shira a abriu, o que passava em sua mente se apagou com rapidez ao contemplar a cena que se vivia em frente ao quarto preferido de sua mãe. Esta gritava, Josephine lhe replicava em voz alta e Madeleine tentava aplacar a discussão. Mas se a acalorada disputa familiar a fez duvidar sobre permanecer fora, apesar da chuva se tornar cada vez mais intensa, os gritos de Anne, que vinham do andar superior, a deixaram atônita.

?Senhorita Moore, chegou na melhor hora do dia ?Shira disse sarcasticamente.

?Você acredita? ?Respondeu erguendo a sobrancelha direita. Muito lentamente, tirou o casaco e, junto com a bolsa e as luvas, ofereceu a Shira. ?O que aconteceu desta vez? ?Perguntou, dando vários passos para dentro.

Ouvindo a porta fechar atrás dela, deu de ombros.

?Sua mãe discute com a jovem Josephine porque, para surpresa e felicidade de todos, um jovem chamado lorde Cooper lhe enviou um presente ?começou a explicar a empregada.

?Outro cavalo? ?Perguntou virando para ela.

?Não ?respondeu enquanto colocava o casaco e a bolsa no guarda-roupa da entrada. ?Era um ramalhete com duas lindas rosas brancas ?adicionou depois de colocar as luvas na gaveta do armário. ?Tão branca quanto seus cabelos ?frisou.

?E? ?Perseverou intrigada, pois não entendeu por que algumas flores poderiam criar uma briga semelhante quando não o provocou as armas que possuía debaixo da cama.

?E a Srta. Josephine, depois de ler a nota que acompanhava o presente, fez mil pedaços e ofereceu ao cavalo como alimento.

?O ramalhete também? ?Se interessou em saber.

?Oh, sim! ?Respondeu Shira revirando os olhos. ?Embora sua mãe corresse atrás dela para não fazê-lo. Aquele animal desfrutou de um almoço bastante peculiar.

?Papel e flores... ?murmurou Mary desenhando um pequeno sorriso. Logo, ao apreciar que os gritos de Anne não paravam, fixou seu olhar no andar superior e perguntou: ?E, Anne? Por que grita dessa forma?

?Tudo começou quando a senhora tirou o vestido dourado de seda que sua irmã guarda no armário. Sua mãe decidiu que, como não deixou seu quarto para que a costureira lhe confeccione um novo, deve colocá-lo com um xale para o casamento.

Mary ficou horrorizada com Shira. A peça que se referia, foi colocada por Eli uma só vez: na apresentação social da filha do baronete de Drumes. Mas, depois do escândalo que gerou, porque todos os convidados falaram sobre o vestido ousado da segunda filha dos Moore em vez de se concentrar na protagonista da festa, sua mãe escondeu-o no fundo do guarda-roupa gritando que, quando passasse a raiva iria transformá-lo em panos de tirar o pó.

?O que Eli respondeu? ?Perguntou, arregalando os olhos e percebendo como seu batimento cardíaco começavam a acelerar.

?Que não o usaria nem que dependesse de sua vida ?respondeu, dando de ombros.

?E? ?Mary perseverou se virando lentamente em direção às escadas.

?A senhorita Anne, ao ouvi-la, ficou tão brava que entrou no quarto e não parou de gritar com ela desde então. Se continuar a gritar dessa forma, ficará sem voz para responder às perguntas que lhe fará o pároco em...

Shira não terminou sua conclusão resumida. Mary levantou as saias de seu vestido com ambas as mãos e subiu o mais rápido que pôde. Pararia aquela loucura antes que causasse a maior tragédia familiar. Elizabeth ainda não estava preparada para enfrentar uma vida social nem para usar os vestidos que lhe lembravam o que aconteceu naquela noite. Contendo o fôlego, correu pelo corredor e, uma vez que se colocou em frente à porta do quarto da terceira das irmãs, abriu sem bater.

?Pare de uma maldita vez! ?Gritou ao entrar.

Quando observou a cena, sentiu tanta tristeza por Elizabeth, que a força que obteve para chegar até ali, se dissipou de repente. Ela permanecia sentada sobre o colchão, escondendo seu rosto entre os joelhos, de camisola e com o cabelo sem pentear, enquanto Anne se situava frente aos pés da cama, fazendo mil dramas.

?Não vou parar, Mary. Elizabeth precisa de uma boa bronca. Não pode continuar com esta atitude infantil ?Anne disse cruzando os braços.

?Eu disse para deixá-la em paz! ?Berrou se aproximando de Anne. A empurrou o suficiente para separá-la de Eli e poder se virar ao redor da cama até se sentar ao seu lado. Colocou o braço nos ombros dela e a abraçou. ?Sua felicidade cega você, irmã! ?Lhe repreendeu apertando a mandíbula. Deu-lhe um terno beijo na bochecha e lhe perguntou: ?Está bem?

Eli respondeu que não com um leve aceno de cabeça.

?Isto é incrível! ?Anne exclamou fora de si. Agitou as mãos, irritada e se aproximou da cama. ?Está do lado dela? Desde quando e por que, Mary? Ah! Entendo! ?Levantou a palma da mão direita para que não a contestasse e continuou: ?Como a maldição desapareceu e isso fará com que você encontre um marido, se aliou a ela ?apontou o dedo para Elizabeth com raiva ?para que não se cumpra, estou errada?

?Deveria apertar os lábios, se manter em silêncio e permitir que sua parte sensata raciocine adequadamente ?Mary resmungou, olhando-a como se quisesse esquartejá-la. ?Porque agora mesmo não pensa com coerência ?resmungou.

?Coerência? ?Vociferou. ?Desde quando você não é capaz de ver com clareza? Elizabeth não suporta que me case com um aristocrata e quer arruinar o melhor momento da minha vida! ?Clamou fora de si.

Cansada de ouvir bobagens, irritada pela atitude de sua irmã mais velha e triste ao notar como Elizabeth se encolhia entre seus braços, Mary saltou da cama, caminhou até Anne e, sem pensar duas vezes, lhe deu um bofetão semelhante ao que lorde Giesler deu em Wang.

?Mary! ?Gritou Elizabeth se levantando da cama. ?O que você fez? Certamente você deixou marcas no seu rosto! ?E levou as mãos à boca horrorizada ao pensar que Anne teria um olho roxo em seu casamento.

?Alguém devia colocá-la em seu lugar ?respondeu sem arrependimentos. ?E as marcas serão suavizadas se você colocar um pano com água fria. ?Ela desviou o olhar de Eli e depois olhou para Anne. Ela havia colocado as mãos na bochecha para acalmar a dor: ?A única desgraçada que mora nesta casa é você ?continuou a falar com raiva. ?Está tão obcecada com o seu futuro idílico que não vê o que está acontecendo. Você não se importa se estamos bem ou mal, a única coisa que te interessa é acordar, provar esse estúpido vestido de noiva e confirmar que todas têm acatado as ordens que dita antes de sair.

?Mary... ?Anne sussurrou confusa pelo tapa e pelas palavras que captavam seus ouvidos. ?Eu...

?Eu? Isso é a única coisa que ouvi de você desde que chegou!! Eu! Eu! Eu! ?Gritou enquanto andava de um lado para o outro movendo as mãos, descontrolada. ?Onde está nossa Anne? Porque eu não a encontro desde que, supostamente, desapareceu a maldição.

?Mary... ?interveio Elizabeth?não seja cruel com ela. É normal que se sinta feliz. Não a chame de egoísta. Sabe que sempre esteve cuidando de nós...

?Deveria ter te protegido! ?Gritou Mary.

?Mas... o que estive fazendo a vida toda, Mary? Proteger você! Quantas vezes evitei que te castigasse? E ela? ?Apontou com o dedo indicador da mão esquerda. ?Escondi muitos comportamentos inapropriados de nossos pais para salvá-la!

?Por favor... ?Eli sussurrou lembrando-se de tudo o que fez e que, segundo ela, eram as causas de sua desgraça.

?Aquele homem mudou você... ?declarou com fervor.

?Sim, eu não nego. Logan me mudou porque, desde que estamos apaixonados, descobri o que é o verdadeiro amor. Mas ainda sou a mesma irmã de sempre. Vocês são a coisa mais importante para mim. A felicidade de vocês é minha e seus sofrimentos são meus... são meus igualmente ?garantiu com firmeza.

?Tem certeza de que nossas tristezas são suas? ?Mary retrucou mordaz.

?Sim! ?Anne respondeu com firmeza.

?Mary... por favor ?Elizabeth interveio. Seus braços se estenderam flácidos para o chão e seus olhos se encheram de lágrimas. ?Não faça isso... É melhor que...

?Deve saber, Eli. Não pode culpar você por algo que não sente. Além disso, o que aconteceu com você foi por sua culpa. Se tivesse te protegido, nada teria te acontecido.

?Protegê-la? De quê? O que estão escondendo? ?Anne exigiu saber, olhando primeiro a uma e depois a outra.

?Elizabeth? ?Mary cutucou enquanto se aproximava dela.

?Eli? ?Anne interveio, se colocando entre as duas. Ao ver como sua irmã escondia o rosto com as mãos, abraçou-a com força. ?Eli... por favor, o que se passa com você? Sabe que me pode contar tudo...

?Não... Não... é... ?Eli soluçou. ?Não seria capaz de... não olharia para mim...

?Basta! ?Mary exclamou com raiva. ?Diga-lhe ou eu o farei!

?Vamos, Eli ?Anne a encorajou, levando-a para a cama. Uma vez que a fez se sentar, afastou os cabelos do rosto e enxugou as lágrimas com a mão direita. ?Sou sua irmã mais velha e te prometo que te ajudarei em tudo o que precise.

?Somos as irmãs Moore Arany ?Mary declarou solenemente enquanto se sentava do outro lado de Eli. Pegou a mão esquerda dela e apertou-a entre as suas. ?Para o bem e para o mal... ?Olhou para Anne carinhosamente quando notou como ela também colocava a sua entre as dela.

?Para o bem e para o mal... ?Anne repetiu.


***

Com as mãos atrás das costas, Philip voltou ao longo corredor abobadado. Os estudantes, que frequentavam a universidade durante aquele dia, o observavam de lado e murmuraram enquanto passavam. Ele olhou para o relógio de bolso e franziu a testa quando confirmou que se passaram mais de quarenta minutos desde que pediu para ver o professor. Ele esperava que a explicação oferecida pelo secretário fosse verdadeira e que aparecesse quando a aula terminasse. Caso contrário, ele eliminaria a posição que deveria assumir como lorde e retornaria o comportamento de Philip Giesler, o ex-agente temerário da Scotland Yard. Certamente o reitor, quando ouviu rumores de que um homem estava invadindo as salas de aula perguntando pelo o Sr. Wang, obrigaria o professor a sair de sua toca.

Enquanto observava as poucas pinturas importantes que encontrou ao seu redor, ponderou sobre a conversa que teria com Wang quando o recebesse. Não parecia certo começar por se referir às qualidades ineptas e desrespeitosas de seu filho, nem explicar que lhe deu alguns socos no rosto depois de ouvir do que chamou Mary. O melhor era, se finalmente pudessem conversar, perguntar-lhe o motivo pelo qual estava obcecado por ela. Seu instinto policial, que desenvolveu ao longo dos anos ao lado de Borshon, lhe indicava que havia um passado complicado que deveria conhecer e que só então encontraria uma maneira de livrá-la daquele homem, porque não pretendia passar o resto da vida andando atrás de Mary para evitar qualquer incidente com o idiota do Wang. Ele não tinha dúvida de que acabaria usando a arma, que ainda estava em seu bolso, e que esse ato criminoso o afastaria do objetivo que fora marcado.

De repente, irrompendo o sepulcral silencio, ouviu-se o estrondo do impacto de umas solas de sapatos masculinos sobre o chão brilhante. Philip virou-se para a pessoa que se dirigia diretamente a ele e fez uma rápida e exaustiva inspeção visual: cabelos grisalhos, embora ainda tivesse alguns fios loiros finos, nariz pontiagudo, muito adequado para segurar os grandes óculos de que precisava, maçãs do rosto marcadas, barba bem cuidada. Sua altura correspondia à estatura habitual em um varão e cobria seu corpo com um longo jaleco branco manchada de sangue.

?Suponho que seja Lorde Giesler, certo? ?Lhe disse a modo de saudação enquanto estendia a mão direita para ele.

?É o senhor Wang? ?Lhe respondeu Philip aceitando a saudação cordial.

?O mesmo ?disse tirando o jaleco. ?Eu sinto a espera. Mas na semana passada prometi aos meus alunos que hoje, na aula de anatomia, eles teriam o privilégio de observar como os pulmões e intestinos de um corpo humano são removidos e não poderia decepcioná-los ?acrescentou, colocando a roupa suja sobre o antebraço esquerdo. Se fizer a gentileza de me seguir, o conduzirei até meu escritório.

?Como queira ?concordou Philip dando-lhe o passo.

Por alguns momentos, apenas o som de sapatos batendo no chão era ouvido. Olhou-o de lado, tentando descobrir o que pensaria, mas não chegou a nenhuma conclusão. O rosto de Wang apenas mostrava cortesia, como se ele ainda não soubesse o motivo de sua visita.

?Devido à amabilidade que me mostra, devo supor que ainda não sabe o que aconteceu com seu filho? ?Giesler rompeu o silencio.

?Ao contrário. Sabia disso antes mesmo de Peter vir até mim ?Wang explicou, virando para a galeria estreita à direita, onde ficavam os escritórios dos professores. ?É um dos grandes inconvenientes da popularidade, lorde Giesler. Por maior que seja a cidade em que se vive, todo mundo tem conhece ?acrescentou sem olhar para ele.

?Não tenho dúvida ?Philip alegou com certa reprovação.

?Quero deixar claro que não o julgo ?apontou parando em frente a uma porta preta sólida. ?Se estivesse na sua situação, teria agido como agiu.

?Minha situação? ?Cutucou levantando as sobrancelhas.

?O protetor de meninas inocentes e um combatente da injustiça ?esclareceu Wang. Enfiou a chave na fechadura, virou e, uma vez aberta, empurrou a porta com a ponta dos dedos da mão direita: ?Entre, por favor, e sente-se.

Philip entrou na sala e observou o que havia nela. Logo atrás da porta havia um cabide de parede com três ganchos. Duas prateleiras cobriam a largura e o comprimento das divisórias frontal e direita, onde os livros que não podiam ser colocados eram empilhados em cima de outros. Na parte esquerda encontrou uma janela, escondida atrás de umas cortinas opacas marrons e uma pequena cômoda sob esta. A mesa, com a mesma cor que as prateleiras, estava desordenada e repleta de papéis. Sobre ela encontrou um tinteiro no canto esquerdo. Nada de bebidas, nada de copos vazios, só encontrou uma embalagem de caramelos.

?E bem? ?Giesler perguntou uma vez que Wang pendurou o jaleco em um gancho e caminhou até a sua poltrona.

?Tudo o que posso fazer agora é me desculpar pela atitude que meu filho demonstrou no mercado. ?Indicou calmamente enquanto se sentava. Se recostou um pouco na poltrona de veludo preto e juntou as mãos pelas pontas dos dedos. Então os levou aos lábios e bateu levemente.

?Não é o suficiente. Como compreenderá, não vim aqui para escutar uma desculpa de sua parte. Você não incentivou seu filho a se comportar de maneira tão cruel. Só preciso que me explique o motivo pelo qual tem uma certa fixação doentia por ela ?disse sem hesitar.

?Não pensará que...? ?Alegou, separando as mãos. Depois as colocou sobre a mesa e olhou para Philip sem piscar. ?Peter não tem intenção de cortejar a senhorita Moore ?acrescentou um pouco surpreso.

?Essa conclusão já tinha descartado ?respondeu Philip enquanto desabotoava os botões do casaco. ?Vi muitas formas de conquistar uma mulher, mas nenhuma incluía o insulto ou a humilhação em público.

?Tão grave foi? ?Wang soltou arregalando os olhos.

?Sim, foi. Como entenderá, não vou repetir as palavras que lhe falou, porque isso aumentaria a raiva que tento controlar para conversar corretamente com você. Mas garanto-lhe que adoraria arrancar a língua dele com minhas próprias mãos ?declarou com firmeza.

?Sinto muito... ?disse o professor depois de suspirar. ?Eu gerei esse problema e se você procura vingança, deve direcioná-lo para mim.

?Por quê? ?Perguntou Philip reclinando na cadeira e cruzando os braços.

?Sabe que a senhorita Moore frequentou esta universidade por quatro anos? ?Wang cutucou quando se levantou.

?Sim. Ela me contou que foi uma aluna ouvinte durante algum tempo ?Giesler respondeu sem desviar o olhar do homem.

?E das melhores! Foi uma honra que Randall a deixou sob meu cuidado. Essa jovem me fez sentir orgulhoso de me dedicar ao ensino ?Falou enquanto se dirigia para a janela. Se colocou na frente da cômoda, abriu a primeira gaveta com alguma dificuldade, pegou um envelope enorme de dentro, fechou com um forte impulso do quadril, voltou a poltrona e o ofereceu. ?É uma pena que a sociedade não a entenda como merece...

?O que é isso? ?Giesler retrucou, inclinando-se para frente. Depois que o pegou, abriu e encontrou uma pilha de folhas.

?Os exames que fiz em segredo à senhorita Moore ?Wang explicou calmamente. ?Se você olhar atentamente, descobrirá que nas margens superior direita há um símbolo egípcio. Eu tive que usar esse sistema numérico para nos proteger.

?Que significa? ?Quis saber. Depois de retirá-los, colocou-os nas pernas e observou a caligrafia de Mary.

Clara, mas não bonita nem rítmica. O tamanho geral de seus escritos podia ser catalogado como mediano, com o qual a timidez e a introversão estavam eliminados. O espaço entre as palavras era praticamente simétrico, indicando-lhe que sentia certa obsessão pelo controle. As maiúsculas tinham uma altura muito superior à das minúsculas concluindo, nesse detalhe, que conhecia e assumia a diferença de classes. Na verdade, nada do que ele descobriu lhe pareceu estranho. Se tivesse notado certa beleza nos cantos finais das letras, teria pensado que Wang o enganava ou que Mary não era a mulher que dizia ser. Mas tudo aquilo afirmou o que já sabia dela.

?São suas qualificações ?Wang disse. ?Como bem sabe, uma mulher pode entrar na universidade para presenciar as aulas como ouvinte, mas elas ainda não podem ser avaliadas.

?Mas você fez isso ?Philip comentou sem tirar os olhos dos papéis enquanto verificava as folhas uma por uma.

?Sim. Minha consciência moral me instou a fazê-lo. Eu sou um daqueles homens que não catalogam as pessoas pelo modo como estão vestidas, mas pelo que guardam em suas cabeças ?disse serenamente.

?As palavras de Mary, quando se referiu a você em nossa breve conversa, foram praticamente às mesmas ?Philip disse cuidadosamente arrumando os papéis para colocá-los de volta no envelope. ?Mas ainda não me disse o que esse símbolo significa.

?É uma alça invertida ou grilhão ?esclareceu Wang. ?Os egípcios usavam para escrever o número dez. No meu caso, para classificar seus exames.

?Quer me dizer que Mary obteve a nota máxima que se podia alcançar? ?Perguntou espantado.

?Sua capacidade intelectual ultrapassa inclusive a minha... ?refletiu Wang antes de suspirar profundamente.

?E imagino que você, depois disso e em um arrebato de proteção paternal, mostrou a seu filho ?Philip concluiu depositando o envelope na mesa.

?Sei que agi mal, que não deveria ter feito comparações, mas naquele momento agi desesperadamente. Meu filho, lorde Giesler, não era um jovem responsável. Ele quase não assistia às aulas porque passava as noites jogando em clubes. Tive que usar a única coisa que encontrei para fazê-lo entrar na razão ?contou.

?Não procurou alternativa? Porque garanto que uma punição sem precedentes teria sido uma boa opção. ?Murmurou Giesler.

?Jamais pensei que Peter a odiaria tanto por isso ?disse aflito. ?Garanto-lhe que o meu único propósito foi fazê-lo compreender que devia aproveitar o tempo e ter nascido homem. Que Mary, apesar de desejar e de sua boa qualificação, nunca conseguirá realizar seu sonho...

?Isso é o que você diz! ?Exclamou Philip, ficando de pé. ?Mas eu não compartilho sua ideia ?acrescentou.

?Lorde Philip, não abrace o impossível ?Wang disse calmamente ?e imploro que não a incentive a sonhar com falsas esperanças. Isso a deixaria mais infeliz...

?Falsas esperanças? Como você pode falar assim, Sr. Wang? Você a conheceu e reconhece sua capacidade invejável. Não acha que ela seria uma médica melhor do que qualquer estudante que eu vi aqui hoje?

?Claro que seria! ?Wang respondeu se levantando de sua poltrona. ?Estou certo de que, se pudesse consegui-lo, se tornaria uma grande profissional, inclusive superaria seu próprio pai.

?Então? Por que não a ajudou? ?Philip disse depois de colocar as duas mãos na mesa.

?Porque ninguém apoiaria minha decisão... ?Wang refletiu, sentando-se novamente. Ele esfregou o rosto, erguendo os óculos na testa, encarando o envelope e acrescentou: ?Embora Randall Moore seja um dos melhores médicos que moram em Londres e metade da cidade esteja em dívida com ele, ninguém permitiria que sua filha tomasse seu lugar. A sociedade masculina ainda não é sensata e teme que chegue o dia em que aqueles que cuidam de suas casas, criam seus filhos e os agradam em suas camas, serão capazes de igualá-los. Os homens exigem poder absoluto, lorde Giesler, e igualdade não é um conceito incluído em nenhum dos seus conceitos atuais.

?A sociedade muda e os pensamentos devem fazê-lo também ?Filipe declarou solenemente. ?Viajei para diferentes países da Europa e posso garantir que, apesar de poucas, existem mulheres que ocupam cargos que antes pertenciam apenas a homens.

?Mas está em Londres, milorde, e isso não acontece aqui.

?Nós podemos mudar ?insistiu.

?De verdade? ?Retrucou incrédulo. ?Porque eu não tenho tanta certeza disso.

?A sociedade precisa de um empurrão ?Philip determinou depois de tirar as mãos da mesa. Ele deu vários passos para trás e abotoou os botões. ?E estou disposto a lhe dar.

?Sabe como poderia ajudá-la? Se você realmente quer fazer isso... ?disse Wang pegando o envelope. Ele levantou e ofereceu de volta.

?Como? ?Philip respondeu aceitando.

?Construa um hospital e coloque-a no comando. Ninguém se atreverá a desprezar a pessoa de quem depende o salário que leva para casa ?garantiu.

?Assim que é fácil resolver um problema social? ?Giesler soltou incrédulo.

?A isto deve ser adicionado um alto status social, isto é, para torná-la um membro da aristocracia. Caso não saiba, os de sua classe podem fazer e pensar aquilo que lhes agrada sem que tragam muitas réplicas.

Philip fixou os olhos no envelope que segurava na mão esquerda e depois olhou para Wang, que se levantara para se despedir. Tinha razão. As duas opções que ele ofereceu eram adequadas para ajudar Mary. Poderia construir um hospital em Londres, em uma cidade pequena ou onde ela quisesse, mas... casar com ele? Esse segundo ponto, embora parecesse sublime, era o que ele queria com fervor, não seria tão fácil quanto pedir ao administrador que subsidiasse o prédio.

?Vou esperar por notícias suas ?Wang disse estendendo a mão para ele.

?Terá ?Philip garantiu. ?Só mais uma coisa ?acrescentou sem soltar a mão. ?A próxima vez que seu filho encontrar Mary, não serei tão benevolente...

?Não se preocupe com ele, milorde. Esta mesma tarde partirá para Chester. Meu irmão precisa de um médico jovem e competente para curar seus paroquianos ?informou.

?Uma oportunidade que não deve ser desperdiçada ?resmungou Philip.

?Garanto-lhe que não ?afirmou Wang entendendo o duplo sentido das palavras. ?Tenha um bom dia, Lorde Giesler.

?Igualmente, senhor Wang.

Quando saiu do escritório, olhou o envelope e sorriu. Assumir a baronia já não era discutível. Devia fazê-lo por ela. Agora precisava se concentrar em encontrar uma maneira de Mary se apaixonar por ele, até o ponto de que aceitasse se tornar sua mulher. Essa parte do plano seria a mais complicada. Ela não prestava atenção a seus encantos masculinos, apenas o olhava quando estavam juntos. Mary estava mais interessada no que guardava dentro de seu cérebro e isso, nesse mesmo momento, não parava de embaralhar centenas de alternativas para consegui-la. Mas todas as opções tinham um começo comum: o envelope seria o primeiro presente que ele ofereceria à sua futura esposa. Como reagiria ao vê-lo? Agradeceria a ele? Receberia a resposta muito em breve...


Capítulo XIX


A quarta dança de Anne e Logan, já casados, aconteceu enquanto ela os observava do lado de fora do salão.

A cerimônia foi muito simples, tal como decidiram os noivos, apesar de terem excedido a capacidade da igreja. Como Anne lhes explicou, a família de seu futuro marido era muito grande e nenhum deles queria perder o momento em que o visconde prometia, diante de todos, que sua vida como libertino havia terminado. Quando chegou o momento em que Logan colocou o anel em sua irmã, tanto seus convidados como eles contiveram o fôlego, enquanto os Bennett, que ocuparam noventa por certo dos assentos, aclamaram como bucaneiros bêbados.

?Não diga uma palavra ?sua mãe avisou ao ver que ela separava os lábios para comentar a repentina atitude. ?Prefiro que se concentre em aplaudi-los a sussurrar sobre o motivo pelo qual sua irmã usa um olho roxo no dia do casamento.

Nada pôde ser feito quando deixou o rosto exposto. Por muito que sua mãe tentasse dissimular o hematoma, misturando um creme com pó de tintura marrom até que a assemelhasse à cor de sua pele, as lágrimas de emoção de Anne foram eliminando pouco a pouco o unguento. No entanto, o visconde não mostrou estranheza quando ele levantou o véu para beijar sua bochecha. Talvez sua irmã tenha lhe explicado que o tinha acontecido. Só esperava que não acrescentasse à informação quem o havia feito e por que.

Quando a valsa terminou, o casal recém-casado caminhou em direção aos marqueses de Riderland. Suas mãos nuas permaneceram entrelaçadas, mostrando seu profundo amor. Tinha ouvido falar da liberdade que os Bennett tinham para mostrar seus sentimentos em público, mas até aquele momento não havia presenciado e, apesar de ser um comportamento socialmente incorreto, ficou satisfeita ao saber que nem todos os aristocratas eram tão primitivos e frívolos. Mary deu outro gole na taça enquanto se concentrava nos casais que se preparavam para dançar. Segundo seu critério, só se tratava de um absurdo comportamento humano para exibir uma qualidade tão insignificante como era se mover ao compasso de uns acordes musicais. Mesmo assim, sua mãe as forçou a aprender. Mas nada correu como o planejado. Onde Anne, Elizabeth e inclusive a pequena Madeleine desfrutavam do aprendizado, ela e Josephine tentavam se livrar alegando mil desculpas absurdas. No final, a senhorita Mesh terminou as aulas quando Josh apareceu com uma pistola presa no cinturão negro. Desde aquele dia, Elizabeth se tornou uma professora muito rigorosa e ambas tiveram que aprender pela força. Sorrindo ao se lembrar daquelas tardes chuvosas em que Madeleine tocava piano e o resto das irmãs dançava em frente ao calor de uma lareira, ela prestou atenção nos casais que já davam suas primeiras voltas. Foi quando o líquido que guardava em sua boca, saboreando-o como se fosse enxaguante bucal, saiu de sua boca e seu nariz. Depois apareceu a tosse e logo a seguir um rastro de lágrimas. Quando parou de tossir, enxugou as lágrimas e voltou a olhar para o centro da sala. Não havia sido uma miragem. Aquilo era real. Suas duas irmãs mais novas foram incluídas no grupo de dançarinos. Sua mãe autorizou? Nesse caso, um milagre acabara de acontecer. Embora o fenômeno mais estranho de todos, superando a decisão de sua mãe, fosse contemplar Josephine, em seu lindo vestido, adotando uma atitude submissa e encantadora sem uma arma para protegê-la. Intrigada, fixou seus olhos nela e seu acompanhante. O jovem era alto, loiro e, apesar de não distinguir claramente, devido à distância, exibia um comportamento muito típico da aristocracia. Seria o mesmo que lhe enviou as flores? E, onde haviam se conhecido? Exceto em alguma caçada ou em uma das lojas de armas que sua irmã frequentava, não podia colocá-los em outro lugar. Quando o casal deu outra volta, Mary sorriu ao ver a expressão no rosto de Josephine. Por um segundo, pensou que desfrutava da companhia e da música, mas não era assim. Ela mostrava a típica expressão de quem mastigava alhos frescos. Sem deixar de rir, pois só lhe faltava sacar uma pistola e apontar-lhe ao peito para que não se aproxime tanto dela, se concentrou em Madeleine. Ao contrário de sua irmã gêmea, Shira escolheu fazer um penteado menos austero. A cor vermelho-alaranjado brilhava ainda mais sob as luzes. Mas Mary não ficou impressionada com aquela característica bonita de sua irmã, mas como o jovem se movia com ela. Seu acompanhante a fazia dançar com delicadeza, com graça e com uma elegância tão extraordinária, que muitos convidados curiosos repararam neles. O jovem em questão era mais alto que Madeleine, seu cabelo curto e preto acentuavam o rosto severo que, apesar de sua juventude, exibia absoluta maturidade e convicção. Como o parceiro de Josephine, seu comportamento era rígido, aristocrático. Quem seria? Alguém muito importante se sua mãe consentiu que sua filha caçula, mais tímida que um rato, dançasse com ele em público. Ao realizar uma meia volta, pôde apreciar a expressão de Madeleine. Estava extasiada, encantada, feliz. Seus olhos brilhavam e seu sorriso era permanente. Mary olhou para as mãos da irmã. Ela estava usando luvas brancas, evitando qualquer contato com o cavalheiro. Possivelmente essa fosse a razão de não ter fugido. Tal como lhe alertou semanas antes, seu problema, o de perceber a maldade das pessoas, se controlava se sua pele não tocasse ninguém.

Depois do rápido escrutínio dos membros de sua família que permaneciam na celebração, pois Elizabeth voltou para casa depois do término da missa, seus olhos vagaram pelo interior da sala até que encontraram a figura masculina que não havia deixado de procurar...

Chegou tarde. Tanto à cerimônia eclesiástica como à festa, lorde Giesler chegou com vários minutos de atraso. Embora Anne tenha dito a seus pais que não apareceria porque não gostava de visitar lugares morais, ele o fez e soube o momento exato em que entrou. Seu corpo a avisou disso antes de ouvir os sussurros feitos por aqueles que estavam sentados atrás dela. Sem nenhuma explicação lógica, os pelos em sua pele se arrepiaram, como se ele lhe tivesse soprado na nuca, seu coração batia descontroladamente e seu sangue fervia, a ponto de perceber como o suor encharcava suas roupas. Tentou se virar, para confirmar a suspeita, mas sua mãe lhe deu uma cotovelada e a obrigou a não se mexer. E assim passou o resto da cerimônia: pensando em que banco tinha se sentado, tentando ouvir, quando falavam sobre ele, se tinha vindo sozinho ou acompanhado e se perguntando se a procuraria...

Ao sair da igreja, seu olhar passou de um rosto masculino para outro, buscando o único que desejava encontrar. Mas tampouco conseguiu vê-lo porque os Bennetts os rodearam para lhes dar as boas vindas à família. Quando os beijos, os abraços e os apertos de mão acabaram, nem sequer tentou procurá-lo porque, assim como sentiu sua chegada, soube o momento em que se foi...

Depois de embaralhar mil alternativas pelas quais pôde perceber sua proximidade e distância, continuava sem encontrar uma resposta que a satisfizesse. Seu eu sensato não acertava ao concluir uma teoria admissível, no entanto, seu eu místico insistia em esclarecer que a cigana que vivia nela abandonava a prisão onde a mantinha encarcerada ao notá-lo, e que voltava quando ele partia. Por isso, sentiu frio, que não observasse nada a não ser escuridão a seu redor e, que lhe embargara um sentimento de tristeza tão profundo que parecia estar a ponto de entrar em uma horrível depressão. Mas essa versão não era adequada para ela porque então teria que admitir que a maldição existia e depois disso retrair todas as provocações que fez sobre sua origem. Como negar, num piscar de olhos, que a noite e o dia não foram produzidos pelo movimento de rotação da Terra, mas pela graça de Morgana? Não. Não poderia mudar tão rapidamente. Teria que continuar assumindo as coisas pouco a pouco. Existiria um ponto intermediário? Seria uma boa opção reconhecer que a herança cigana coexistia com a herança tangível? Seu olhar encontrou as únicas pessoas que encontraram um equilíbrio entre as duas culturas: seus pais. Eles estavam juntos há quase três décadas e ainda se amavam como se tivessem acabado de se conhecer. Eles se entendiam e se respeitavam melhor do que outros casamentos com convicções semelhantes. Alguma vez reprovou Morgana por suas orações não curarem a febre de suas filhas? Jamais. Enquanto seu pai as obrigava tomar o xarope mais repugnante do mundo, sua mãe permanecia sentada junto ao travesseiro, acariciando-lhes o cabelo, ao mesmo tempo em que rezava a sua criadora para que as libertasse da doença.

Mary suspirou profundamente. Estava cansada de tantas crenças místicas, de raciocínios ilógicos e de conclusões errôneas. Já não sabia o que era real nela ou o que não era. A única coisa que reconhecia era que, desde que viu pela primeira vez Lorde Giesler, tudo nela mudou. A princípio sentiu ódio, pois ninguém lhe havia chamado bruxa em sua própria casa. Mas até esse momento, seguia lendo seus livros e sonhando em alcançar seu desejo. Logo apareceu a compaixão; ficou muito impressionada ao ver como um corpo tão extraordinário se debilitava por uma enfermidade. Nesta fase, os livros permaneceram fechados. Depois passou à incerteza: saia da cama imaginando como teria passado a noite e se havia tomado os remédios. Naquele momento, nem se lembrava de que havia livros ou ensaios que deveria ler. Finalmente, apesar de lutar com todas as suas forças, nasceram sentimentos que a levaram a um desejo tão intenso que não havia noite que fechasse os olhos e ele aparecesse. Também devia acrescentar, a esse transtorno de personalidade, que se sentiu uma princesa salva por um valente príncipe quando a defendeu de Wang. Era verdade que o jovem estava em desvantagem, mas isso não o impediu de desfrutar do momento. E... Como chamar esse estado de bem-estar que obteve ao ouvir suas palavras de consolo?

No entanto, apesar de tudo, devia pôr freio à mulher apaixonada que habitava em seu interior. Precisava voltar a ser plena, reflexiva e sensata que foi antes de encontrá-lo e que retornasse o mais rápido possível. Mas... como fazê-lo se a única coisa que a mantinha sã até agora estivesse constantemente divagando? Pois era sua mente irracional que não lhe permitia se concentrar em seus objetivos. A única coisa que lhe oferecia eram imagens de lorde Giesler nu, ao seu lado, beijando-a e tocando-a em lugares do seu corpo onde nem ela mesma o tinha feito. Se ele fosse como os outros, não estaria à beira do desespero. No entanto, ao tratá-la daquela forma tão terna, encorajava essa atração que tentava eliminar.

Colocou as mãos no peito, agitado com tanta confusão. Ela não deveria pesar mais opções, exceto as que tinha ao seu alcance: ou se aproximava dele, para acalmar e apagar essa paixão, ou pedia a seu pai que a internasse em um convento afastado de Londres.

Enquanto ponderava que alternativa tomar, seus olhos voltaram a se concentrar nos casais de dança. Silenciou um grito, apertando os lábios com força ao descobrir que lorde Giesler estava entre eles com uma jovem de cabelos dourados. Há quanto tempo estavam juntos? Por que a convidou para dançar? Os ciúmes, esse sentimento possessivo que nunca teve, se apoderaram dela. Sua raiva aumentou até o ponto de perder a pouca sensatez que lhe restava. Não queria que ele tocasse a cintura de outra mulher. Não permitiria que seduzisse ninguém além dela. Esse homem era dela e lutaria por consegui-lo. Mary respirou fundo, endireitou as costas, assim como as damas aristocráticas, e entrou no salão com a força que lhe causou a determinação que havia tido: os separaria de imediato e deixaria bem claro a todos os presentes que ele já tinha uma mulher com a qual dançar.

A música, os dançarinos, as vozes daqueles que tentavam conversar apesar do barulho musical, da fumaça dos charutos, do calor da respiração, do cheiro das flores que adornavam o local, do riso leve... A perturbaram tanto que mudou de direção e de opinião. Caminhou lentamente pela galeria direita do salão, procurando não chamar muito a atenção. Não foi difícil. Felizmente, todos os convidados estavam tão concentrados em suas conversas que não a notaram.

?É verdade! ?Admitiu uma jovem que conversava com outras cinco mais. ?Lorde Giesler se colocou em perigo para salvá-la de um problema que ela mesma causou.

Mary arregalou os olhos, prendeu a respiração e, lentamente, ficou atrás delas, se escondendo atrás de um dos grossos pilares de mármore.

?Ele é um cavalheiro exemplar! ?Exclamou uma com um longo suspiro.

?Sim, e ela é uma insensata ?garantiu outra. ?Em primeiro lugar, não deveria passear sem proteção por um lugar tão perigoso e em segundo... porque não deixou o senhor Wang tranquilo? Pelo que ouvi, ele só quis comprar um café e ela o insultou em frente a uma centena de pessoas ?acrescentou antes de agitar o leque.

?Parece mentira que se escandalizem tanto pelo comportamento que mostra essa filha em particular do doutor Moore ?expôs uma diferente. ?Sempre foi o mesmo. Meu querido marido me diz que acompanha o pai nas reuniões médicas às sextas-feiras no clube e não consegue ficar calada. Passa todo o tempo reprovando lhes a falta de conhecimentos inovadores e se orgulha de possuir a verdade.

?A verdade? ?Espetou outra com tom sarcástico. ?A única verdade é que passou toda sua juventude fechada em bibliotecas e livrarias, que se converteu em uma solteirona e que seus pais não param de lamentar o fato de que ninguém lhe proponha casamento. Mas quem em sã consciência faria isso? ?Adicionou antes de gargalhar alto.

?Não seja tão cruel querida ?respondeu a mulher à sua esquerda batendo levemente no ombro com o leque fechado. ?Ainda há muitos velhos viúvos, homens cegos e alguns surdos que podem pedir ?alegou antes que todas começassem a rir.

Enquanto isso, as mãos de Mary se tornaram punhos pequenos, suas bochechas ardiam e seus olhos emitiam fogo. Naquele momento, sentia tanta raiva que podia arrancar o pilar e golpeá-las com ele. No entanto, toda essa raiva contida foi diminuindo ao ver que lorde Giesler se dirigia ao pequeno grupo herege. Sem pensar duas vezes, saiu de seu esconderijo e foi a seu encontro. Os olhos do lorde, ao vê-la caminhar com tanta determinação para ele, se alargaram pela perplexidade.

?Boa noite, lorde Giesler ?ela disse em voz alta e com um entusiasmo exagerado, para que as bruxas de língua afiada a ouvissem. ?Estava me procurando?

Philip olhou para Mary, depois olhou para as cinco mulheres que estavam maravilhadas e perplexas, pegou a mão que ela ofereceu e a beijou.

?Estou sempre procurando por você, Srta. Moore.

?Pela dança que lhe prometi? ?Perseverou ela escutando como as harpias falavam sem escrúpulos sobre o inesperado encontro.

?Era só uma dança? Acho que me prometeu duas ?declarou Philip colocando a mão que tinha beijado sobre seu antebraço esquerdo.

?Seguidas? ?Espetou, agitando as sobrancelhas. Tinha tentado dar um castigo às bruxas, mas não queria terminar a noite com um novo escândalo nas costas.

?Somente se não se sentir exausta após a primeira ?afirmou Philip, conduzindo-a ao centro do salão.

Onde estava todo mundo? Porque Mary não podia nem senti-los nem ouvi-los. Tudo ao seu redor desapareceu ao notar o forte aperto de uma mão sobre sua mão esquerda e certo calor sobre a parte inferior de suas costas. Muito lentamente, apoiou as pontas dos dedos no ombro esquerdo de Lorde Giesler e fechou os olhos para tentar ouvir os primeiros acordes musicais.

?O que aconteceu lá, Mary? ?Philip perguntou uma vez que começaram a dançar.

?Falavam sobre mim ?respondeu depois de abrir os olhos.

?Imagino que se tratava de uma conversa muito agradável ?disse esboçando um pequeno sorriso.

?Para elas sim, para mim, não ?garantiu.

Enquanto seu nariz captava aquele cheiro tão característico nele, seus olhos vagaram lentamente pelo rosto masculino, estudando-o como se fosse uma pústula infectada em uma bandeja. As sobrancelhas louras eram espessas, mas as suas grandes linhas exaltavam o arredondamento de suas orbitas oculares. O nariz não era chato, embora também não pudesse classifica-lo de aquilino. Era aceitável determinar que se encontrava num ponto intermediário. Sua barba de várias semanas, apresentava listras loiras mais claras e escuras que as de seu cabelo que, nesta ocasião, estava perfeitamente penteado para trás. Depois seu olhar se centrou na boca: tinha nascido com uns lábios volumosos e com uma cor carmesim realmente invejável. Depois de rever também o queixo e admitir que sua estrutura óssea facial era adequada para um homem de sua masculinidade, avançou do pescoço para a camisa e foi então quando quase tropeçou. Verde... Lorde Giesler tinha decidido exibir publicamente um colete, um lenço e uma gravata com a mesma cor que seu vestido.

?Seu valete o obrigou a se vestir desse tom, como fez comigo a vendedora da boutique? ?Lhe perguntou a modo de repreensão pelo ousado gesto.

?Não. Ele optou por um vermelho sangue ?explicou sem mais.

?Por que você mudou de ideia? Um homem do seu tamanho daria uma aparência mais viril à primeira opção ?perseverou Mary.

?Por que falavam de você? ?Philip mudou de assunto.

Era absurdo explicar-lhe o verdadeiro motivo. Mary não entenderia que, depois da conversa com o professor Wang, decidiu deixar claro, com aquela indumentária, suas intenções para com ela. A combinação de suas cores era só o primeiro passo de seu cortejo, o segundo... estava esperando-a em sua casa.

?Porque não há outra questão em Londres que seja tão importante quanto o incidente que vivi no mercado e a salvação oportuna de sua parte. Acho que pensaram que me livrou de um julgamento final.

?Juízo Final? ?Perguntou ele no meio do giro que lhe fez dar.

?Sim, eu ouvi isso. Estava prestes a ser julgada ou linchada publicamente até você chegar...

?Entendo... ?murmurou Philip sem deixar de observar a tristeza e a ira que Mary mostrava em seu rosto. ?Foi por isso que veio ao meu encontro com tanto entusiasmo? Prometo que tive que piscar várias vezes para ter certeza de que não era uma alucinação.

?Não ?admitiu envergonhada.

Embora tentasse baixar o rosto e esconder o rubor de suas bochechas, ele lentamente levantou a mão esquerda, pedindo-lhe que o levantasse novamente.

?Falaram sobre meus comportamentos insanos e como me sinto orgulhosa por ser tão inteligente ?continuou explicando. ?E então direcionaram a conversa para a tristeza que meus pais mostram por não me encontrarem um marido. Uma delas até deduziu que terminarei casando-me com um velho viúvo, com um surdo ou com um cego.

?Ou com um homem que abomina a ineptidão de algumas mulheres que usam a cabeça apenas quando precisam usar belos penteados e chapéus caros. ?Philip murmurou.

?Oh, você me deixou perplexa! ?Comentou com surpresa simulada. ?Não procurava isso em suas amantes? Porque, meu querido Philip, você é precedido por uma reputação de uma caveira maior do que meu cunhado atual.

?Estava procurando um momento divertido, minha querida Mary ?apontou usando o mesmo tom de voz que ela? e sempre o encontrei. Mas quando o ato terminava, não as abraçava e sussurrava-lhes palavras de amor. Eu saía sem olha-las. Não me importava o que diziam, o que sentiam ou o que aconteceria ao vê-las em outra ocasião. Entretanto, desde que certa mulher entrou em minha vida de lobo solitário, preciso de algo diferente. Já não me contento com encontros esporádicos, é mais, desde que a conheci, mantenho vida de celibato ?adicionou maliciosamente. ?Agora não estou procurando uma mulher que goste de usar joias que expressem o poder de compra que receberei quando me tornar barão. Quero uma mulher que não se contente com a banalidade diária, que seja capaz de resolver problemas que eu não posso resolver sozinho. Uma esposa corajosa, uma mãe dedicada e que, acima de tudo, seja livre para realizar seu sonho ?disse sem hesitar.

?E a paixão? Não a procura em sua futura esposa? Dizem que os maridos procuram amantes porque seus cônjuges não são boas no leito ?se atreveu a dizer enfrentando-o com o olhar.

?Quando uma pessoa ama, respeita e admira outra, o desejo está incluído. Essa paixão, da qual você fala, se transforma em ânsia, proteção, necessidade, força e acaba se tornando morte, se a pessoa amada não puder ser conquistada. É isso que estou tentando demonstrar, há algum tempo, à mulher que removeu não apenas pequenas vísceras podres do meu corpo, mas também meu coração. Mas, ao que parece, não sou bom o suficientemente para ela. Talvez seu homem perfeito seja tão inteligente, que a faz emudecer cada vez que tem oportunidade, em vez de se contentar com um que a ame tanto que daria sua vida para salvar a dela ?acrescentou antes de dar um passo para trás e dar-lhe um beijo nos dedos, pois a dança para eles tinha terminado.

Pela primeira vez em muito tempo, Mary ficou sem palavras. Tinha entendido corretamente? Porque talvez a música, as voltas e a raiva que essas línguas viperinas despertaram, tamparam seus ouvidos e ela não entendeu exatamente a pretensão de lorde Giesler.

Enquanto caminhavam até seus pais, juntos e com a mão que ele havia beijado sobre seu antebraço direito, observou-o de relance. Não encontrou nem uma mísera careta de zombaria. Seu rosto era firme, sereno, tanto que lhe causou pânico. Sim e muito. A mulher que enfrentou os problemas com sua verborragia, sua inteligência ou com um guarda-chuva preto miserável, tremeu de medo ao ouvir que ele tinha uma intenção maior do que pagar uma dívida. Tentou respirar calmamente, para que seu corpo agisse com a firmeza de sempre, mas seus joelhos tremiam, seu coração tremia tanto que o espartilho estava lhe causando muito dano, suas mãos voltaram a suar e uma tontura súbita fez com que sua visão começasse nublar.

?Boa noite, milorde ?Sophia cumprimentou Philip com uma leve reverência. ?Vejo que hoje desfruta de muita saúde. ?O sorriso que lhe dedicou desapareceu quando olhou para o vestido da sua filha e para o colete do lorde. Se esforçou para esboça-lo de novo e não mostrar o assombro que sentia, porém, ao reparar no rosto pálido de Mary, avançou para ela, pegou-lhe uma mão e lhe perguntou: ?Você está bem?

?É apenas uma ligeira tontura, mãe. Como você sabe, não estou acostumada a dançar e me canso só de dar um pequeno salto ?respondeu apertando-lhe a mão e avançando para frente, para colocar alguma distância entre eles.

?Certo! ?Comentou Randall estendendo a mão para Giesler para cumprimentá-lo. ?Até agora, nenhum homem se atreveu a fazê-lo. ?E depois disso, ele começou a rir. ?Como se encontra hoje, milorde? Ainda lhe dói a região? ?Perguntou-lhe quando acalmou sua risada.

Naquele momento, Mary olhou para Philip com a boca aberta, surpresa com a descoberta. Doía? Desde quando? Por que ele não disse a ela? Não lhe perguntou na carruagem se tinha saído machucado?

?Não sinto mais nenhum desconforto, Sr. Moore. As cápsulas a acalmaram ?respondeu sem olhá-la, pois, sabia que, se o fizesse, começaria a gritar com ele.

Não respondeu sua pergunta quando estavam dentro da carruagem, talvez porque, como lhe indicou, estava mais preocupado em como ela estava do que com o que pudesse acontecer com ele. No entanto, uma vez que ele voltou para casa, a dor tornou-se irritante e Shals insistiu em chamá-lo. Agora amaldiçoava a decisão de seu mordomo. Justo quando acabava de declarar seu interesse por ela, descobria que a havia enganado. Poderia acontecer uma tragédia maior?

?Como avisei na outra noite, não pode esquecer que foi operado há relativamente há pouco tempo e que, apesar de se sentir forte, não posso garantir como evolui por dentro. Se lhe parecer conveniente, posso visitá-lo amanhã...

?Randall, querido, amanhã partimos para Lonely, se esqueceu? ?Sophia lembrou-o, que viu como o rosto de Mary passou do pálido fantasmagórico ao vermelho fogo.

?É verdade! Obrigada por me lembrar, querida. ?O médico disse dando a ela um sorriso terno e cúmplice. ?Mas Mary decidiu não se juntar a nós... ?Seu olhar voltou para Philip. ?Se sentir desconforto novamente, pode chamá-la ?concluiu sem perguntar.

?E as gêmeas? ?Mary interrompeu, virando-se para a mãe e de costas para Philip.

Atender ao seu chamado? Se seu amado pai pensava que aproveitaria da semana de tranquilidade que pretendia, esperando que aquele mentiroso a chamasse, ele não a conhecia! Antes se trancaria em um convento, que curá-lo de novo!

?Foram se despedir de Anne. Se querem estar prontas antes da meia-noite, não podem sair tarde ?respondeu Sophia apreciando como o rosto branco fantasmagórico de sua filha se transformava em vermelho fogo.

?Partirei com elas. Creio que a noite terminou para mim também ?indicou Mary mostrando um falso esgotamento.

?Então, não me concederá a próxima dança? ?Philip perguntou, tentando relaxar a tensão que tinha aparecido entre eles.

?Deseja dançar de novo com Mary? ?Soltou Randall com tanta estranheza que ganhou um leve golpe de sua esposa.

?Espero que me perdoe, milorde ?ela respondeu olhando-o como se fosse uma menina arrependida de fazer uma trapaça. ?Mas como meu pai disse, não estou acostumada a dançar e meus músculos estão contraídos e exaustos.

?Se desejar, como fui o culpado por sua exaustão, posso lhe trazer uma bebida. Certamente a hidratação ajudará a acalmar a fraqueza do corpo ?insistiu.

Não, não podia deixar Mary ir embora pensando que era um vilão. Ele precisava esclarecer que, naquele momento, só se importava com ela e que foi Shals quem decidiu chamar o pai dela.

?Não ?recusou novamente. ?É melhor que eu acompanhe minhas irmãs. Agora tenho que assumir a posição de irmã mais velha e tenho a obrigação de cuidar delas.

?Cuidar delas? ?Sophia aceitou incrédula.

? Sim, mãe, cuidar delas. Foi isso que eu disse ?resmungou.

?Nesse caso... ?Philip disse, pegando a mão direita para beijar os nós dos dedos. ?Me reservarei a honra de lembrá-la que me deve uma dança no futuro.

?Vou guardar isto ?respondeu Mary sem poder afastar os olhos daqueles lábios.

? Senhor e senhora Moore, se me desculpam, creio que minha noite também chegou ao fim ?lhe disse ao separar-se dela.

?Também vai embora? ?Randall perguntou.

?Sim. Alcancei o propósito que me trouxe até aqui e, como bom guerreiro depois de uma batalha sem precedentes, mereço um descanso ?admitiu observando como Mary endireitava suas costas. ?Se desejarem, posso levá-las para casa. Não seria nenhum incômodo... ?insistiu, não se afastando dela.

?Não! ?Mary exclamou com mais ímpeto do que deveria.

?Não se preocupe, milorde. O visconde ordenou que preparassem uma carruagem para minhas filhas ?Sophia respondeu confusa.

?Sendo assim. Boa noite ?manifestou antes de sair.

Por alguns segundos, Mary observou a figura masculina se afastar deles. Como sempre acontecia quando ele estava perto, tudo ao seu redor carecia de importância. Não ouviu a música, nem os murmúrios, nem a conversa que seus pais mantiveram. Ali estava só lorde Giesler, caminhando até seus amigos para poder se despedir educadamente deles. No entanto, um movimento brusco a fez desviar o olhar do centro da sua atenção e cambalear.

?O que diabos aconteceu entre vocês dois? ?Sophia perguntou. Agarrando-a pelo braço e puxou sua filha para tirá-la do salão.

?Nada. Por que acha que algo tinha que acontecer? ?A repreendeu, enquanto se deixava guiar por sua mãe.

?Por quê? —Perguntou sussurrando enquanto revirava os olhos. —Porque lorde Giesler parecia ter rasgado o tecido do seu vestido para fazer seu colete e gravata. Ele te chamou para dançar em público e, quando te acompanhou até nós, seu rosto parecia não ter cor ?continuou entre sussurros.

?Em primeiro lugar, seu valete, assim como a vendedora que lhe vendeu o vestido, concluíram que a cor ideal desta temporada é o verde esmeralda. Me chamou para dançar porque lhe prometi, como pôde ouvir, e empalideci porque, depois dessa dança, entendi que era o centro das atenções e dos sussurros. Tenho certeza de que amanhã, antes que possa tomar uma boa xícara de café, algum boletim escreverá algo como... A segunda filha do famoso Dr. Moore, aceita uma dança com o homem que a salvou do escândalo na última quinta-feira. Não sabe do que estou falando? Bem, contarei novamente... ?disse em tom cantado e movendo as mãos de forma teatral.

?Então... Não te desagrada lorde Giesler? Porque senti algo que deveria saber... ?tentou dizer.

?Josephine, Madeleine! Que alegria vê-las! ?Exclamou quando entrou no hall. Pela primeira vez na vida, adorou a falta de consideração das gêmeas para interromper certas conversas. ?Agora mesmo estava perguntando para a mãe se poderíamos sair.

?Que me mordam se não o faço! ?Josh falou visivelmente irritada.

?Eu não quero, mas ela insistiu ?apontou um dedo para Josh. ?disse que antes de dormir tem que atirar em algo ou alguém ?comentou Madeleine a quem ainda brilhavam os olhos devido à felicidade.

?Mãe? ?Mary cutucou voltando-se para ela.

?Anda, vão embora! Será melhor para mim que o façam ?considerou enquanto lhes dava um beijo na bochecha a modo de despedida. ?Assim não terei que presenciar como Josh pisa os pés de outro jovem cavalheiro ?acrescentou enquanto abraçava a entusiasmada Madeleine.

?Boa noite mãe ?disse Mary, ansiosa para que as despedidas terminassem. Ela precisava chegar em casa, se trancar no quarto e refletir sobre tudo o que aconteceu. Além de suavizar sua raiva. Por que ele não disse a ele que se sentia dolorido? Ela poderia tê-lo curado! Teria feito todo o possível para sair de sua casa, vê-lo e verificar como se encontrava. Mas não. Preferiu chamar seu pai antes dela. Talvez, a diferença que pensava ter visto em relação a outros homens, não houvesse.

? Boa noite, minhas filhas. Sejam boas e obedientes.

?Sim, mãe ?todas as três responderam de uma vez.

Antes de sair, olhou Mary nos olhos e franziu a testa. Sua vida estava prestes a alcançar sua grande mudança. O vínculo que as unia a fazia saber. Mas nesta ocasião não devia se preocupar, porque Mary não era como Anne e a maldição tinha desaparecido. Só esperava que, aconteça o que acontecesse, a decisão que logo tomaria sua segunda filha fosse, de uma vez por todas, a adequada para alcançar sua felicidade.

?Você pisou nele? ?Mary soltou quando não podia mais ouvi-la.

?Três vezes ?admitiu sorrindo maldosamente. ?Mas o muito insensato não entendeu meu desejo e continuou dançando até terminar a maldita música ?murmurou Josh. Agarrou com ambas as mãos a saia do vestido e caminhou até a entrada esmagando as lajes do chão como se pisasse em baratas. ?Deveria ter trazido um punhal e ter-lhe atravessado o coração quando pediu permissão a nossos pais para me levar para dançar! ?acrescentou tão furiosa que a palidez de sua pele desapareceu.

?Bem, adorei dançar com aquele cavalheiro ?Madeleine comentou sonhadora. Ao contrário de sua gêmea, ela andava na ponta dos pés e movia a saia de um lado para o outro, como se continuasse dançando. ?Me apaixonei pela música, a beleza que as cores dos vestidos ofereceram à sala, como elas os agitavam ao dançar, as risadas, os sussurros e a sensação de liberdade. Não acharam maravilhoso?

?Não! ?As irmãs responderam juntas.


Capítulo XX


O caminho para casa tornou-se eterno...

Enquanto as gêmeas não paravam de discutir sobre a primeira e única dança que tiveram em sua vida, Mary se manteve em silêncio, com os olhos pregados na janela e movendo, de forma involuntária, os botões de seu casaco como se pretendesse arrancá-los. Não conseguia eliminar de sua mente o momento em que descobriu que Philip chamara o pai para acalmar sua indisposição. Toda vez que revivia, mais frustrada se sentia.

Desde que visitou pela primeira vez um doente, ouviu, por parte de muitas pessoas, milhares de ofensas a sua pessoa, mas nenhuma a feriu tanto como a traição do homem por quem tinha se apaixonado. Quando ouviu sua própria voz admitindo tanta barbárie em sua cabeça, se moveu desconfortavelmente no assento. Ela não conseguia definir amor como um sentimento baseado no desejo. Sua mente ainda devia permanecer em choque para escolher uma palavra tão inapropriada. Esta voltava a errar, como costumava fazer desde que o conheceu. Ela suspirou profundamente, recostou-se no assento e fechou os olhos. A culpa de toda a sua demência mental era a crença infeliz da família. Se não tivesse se deixado levar por absurdas falácias ciganas, ainda continuaria mantendo sua apreciada racionalidade e sua vida não teria se alterado até o ponto de descrever uma atração como paixão.

Amor era o que seus pais tinham. Amor era acordar com saudade da pessoa que dormia ao seu lado, mesmo que ela ainda estivesse abraçando você. O amor era sonhar com ele, mesmo que seus olhos continuassem abertos. O amor era sentir como o batimento cardíaco acelera ao vê-lo se aproximar. Amor era sentir falta das suas carícias, dos seus beijos e da sua voz, não importando quantas pessoas podem estar ao seu redor... Poderia descrever sua dor como a necessidade de tudo isso?

Piscou várias vezes quando notou a umidade de suas primeiras lágrimas. Não podia chorar por algo irreal. Ela não sentia saudade de seus beijos, suas carícias nem sequer ansiava pelo tom de sua voz. A pressão que sentia no peito, o que lhe impedia de respirar, era um horrível sentimento de traição. Era disso que se tratava! Sentia-se tão traída que precisava chegar de uma vez por todas em sua casa, se fechar em seu quarto e liberar todas as lágrimas que desejavam brotar. Quando já não lhe restasse nenhuma, quando a razão voltasse para ela, certamente a mulher que uma vez foi, apareceria e lhe proporcionaria essa força que tinha perdido para continuar a vida que se propôs antes de conhecê-lo.

?Você concorda? ?Josephine perguntou.

?Sobre o que? ?Lhe respondeu. Muito lentamente abriu os olhos e concentrou o olhar em sua irmã.

?Sobre o casamento! ?Exclamou Madeleine com entusiasmo. ?Você não achou que foi o melhor casamento do ano?

? Não posso responder isso. Caso não se lembre, não tive a honra de ser convidada para fazer uma comparação justa ?disse Mary irônica.

?Não participei de nenhum e, apesar disso, acho que foi o mais bonito. De qualquer forma, teremos que nos acostumar com esse tipo de comemoração, porque prevejo que a próxima, embora não seja tão popular quanto a de Anne, será muito especial para todos nós. ?Madeleine declarou sorrindo maliciosamente.

?Se você diz... ?disse antes de voltar a fechar os olhos, fingindo que seu cansaço lhe impedia continuar ouvindo-as.

Mas foi a pior coisa que pôde fazer porque estava realmente cansada de lutar contra seus sentimentos. O barulho suave da carruagem, o calor que havia dentro, a deixaram sonolenta. Enquanto suas irmãs continuaram a conversa, ela reviveu, através de sonhos, o momento em que o conheceu. Retornou a irritabilidade que manifestou quando os criados queriam banhá-lo com água fria para diminuir a febre. Viu aquele corpo fraco novamente, esperando por sua ajuda. Sofreu outra vez a agonia que sentiu ao operá-lo, ao ser consciente de que a vida do Titã estava em suas mãos. Sentiu o calor de sua boca sobre a sua, o fôlego acariciando-lhe as bochechas, a reação de seu corpo quando isso aconteceu. Olhou para aquele rosto zangado e ouviu os rosnados ao lutar com Wang, a calma que alcançou ao tê-lo ao seu lado. Sua voz, o brilho que aqueles olhos azuis revelaram quando olhou para ela, sua proteção, a dança, o ciúme quando o descobriu dançando com uma mulher que não era ela, sua decisão, a previsão de Madeleine, a escuridão da noite iluminada por uma fogueira de onde ele saía para amá-la, a frieza que sempre sentiu seu corpo até que o encontrou...

?Não! ?Gritou repentinamente.

?Mary! ?Madeleine exclamou horrorizada. ?O que há com você?

A mais nova das Moore tentou se levantar para confortá-la, mas nesse momento a carruagem parou. Desesperada e desorientada, Mary abriu a porta para sair sem a ajuda do cocheiro do lado de fora. Estava com falta de ar, ainda sem respirar, seu coração batia tão rápido que podia sair do peito a qualquer momento. Ela correu, apesar das vozes que suas irmãs deram para parar, ela não podia e não queria parar aquela corrida angustiante. Precisava se trancar em seu quarto, precisava chorar sem testemunhas, precisava... esquecê-lo.

?A chave está embaixo do vaso ?Josephine observou como sua irmã, perturbada e angustiada por algo que ela não conseguia compreender, começou a bater exasperada na moldura direita da porta.

?Por favor, fiquemos em silêncio. É melhor que Shira não presencie este horrendo espetáculo ou contará a nossa mãe ?Madeleine indicou que estava tão agitada como Mary.

?Shira já está acordada ?comentou a donzela ao abrir a porta. ?Com os gritos que deram, creio que toda a cidade deve estar ?adicionou como bronca.

Mary ficou na frente dela, mas não a olhou. Não havia ninguém lá além dela e essa voz em sua cabeça que repetia incoerências: amor, desejo, ele, saudade, alívio, decepção... Em uma explosão de loucura, abraçou Shira para tirá-la de seu caminho. A pobre empregada teve que se agarrar com força à porta para não cair. Josephine, chocada e irritada pelo ato tão cruel para com uma mulher nobre e querida pela família, avançou para frente, agarrou Mary pelo braço esquerdo e puxou com tanta força que a fez voltar para a saída.

?Me solte! ?Mary berrou desesperadamente.

?Não até me dizer o que acontece com você ?respondeu.

?Não acontece nada comigo! ?Gritou antes de empurrar o braço para baixo para se livrar do forte aperto.

?É por causa do Lorde Giesler, não é verdade? ?Madeleine comentou com uma voz trêmula enquanto se aproximava delas.

?Quem lhe disse que a culpa da minha raiva é aquele homem? ?Perguntou, virando-se para a irmã mais nova como se quisesse dar-lhe uma surra. ?Não há mais problemas no meu mundo?

? Ele te magoou, sinto a tua dor ?disse a jovem consternada.

?Ele? Jamais me tornaria tão estúpida para permitir que um miserável homem me destroçasse! ?Objetou solenemente. ?Você acha que eu sou tão fraca quanto Eli? Ou talvez você pense que posso enlouquecer como Anne? ?Adicionou com raiva.

?Não. Acho que é Mary e se apaixonou, mas a tristeza que sente não permite que você veja a realidade. ?explicou dando um passo em sua direção.

Mas Josephine ficou entre elas. Como especialista na luta, sabia quando era hora de agir para evitar um ataque indesejado.

?Vá para a cama, Mary ?Josh comentou com tanta tranquilidade que lhes pareceu impróprio dela. ?Tenho a certeza que quando acordar amanhã, o problema estará resolvido.

?Ah ?exclamou revirando os olhos. ?Você não tem ideia do que está falando! ?Continuou com raiva.

?Senhoritas, por favor, ?interveio Shira que não saía de seu assombro. ?O melhor para todas será se retirar para descansar. Agora mesmo não são capazes de agir com tranquilidade. Quando chegar o novo dia, falarão com seus pais sobre...

?Não há nada para falar! ?Mary gritou, se virando para as escadas tão desesperada para fugir de tudo, que a saia de seu vestido se enrolou entre suas pernas e a fez cair de joelhos.

?Mary! ?Madeleine disse enquanto se aproximava dela.

?Não me toque! ?Pediu levantando a mão esquerda para evitar qualquer contato.

Enquanto isso, Shira, perplexa por esse ato de raiva, se afastou delas para procurar algo que, segundo intuiu, seria conveniente dar a Mary nesse momento. Se não ouviu mal, o confronto entre as três foi gerado por um nome, o mesmo que havia enviado um envelope para a segunda irmã Moore. Voltou com ele nas mãos e esperou que a moça se levantasse. Ao ver que não o fazia, o estendeu ali mesmo.

?O que é isto? ?Rosnou.

?É para você, de lorde Giesler. Foi trazido por um servo chamado Shals exatamente quando todos foram para a igreja ?explicou.

?Não quero! Devolva-lhe! ?Depois de ficar exausta ao expressar essas palavras, colocou as mãos no rosto e começou a chorar.

?Mary... ?sussurrou Madeleine triste ao vê-la tão destruída.

?Vou abrir! ?Josephine gritou puxando o envelope que ainda estava nas mãos de Shira. ?Se está assim por um homem, descobrirei agora mesmo o que ele fez com você e desafiá-lo a um duelo.

Todas ficaram expectantes ao ouvir a jovem proclamar aquela frase em voz alta. Dissera com tanta firmeza que ninguém duvidava que ela cumprisse. Com os olhos de Shira e Madeleine fixos nela, Josh rasgou o envelope como se arrancasse o pescoço de uma galinha.

?Que diabos são esses papéis? ?A menina perguntou ao tirar os documentos de dentro. ?Avaliações? Quando você fez? Por quê? Comentou com nosso pai? Alguém nesta casa sabia que fez os testes para obter a licença de médico?

?Do que está falando? ?Retrucou Mary levantando-se de um salto.

Com os olhos banhados em lágrimas, com as mãos ainda trêmulas e incapaz de controlar a respiração, ela pegou os papéis mencionados por sua irmã. De fato, foram os resultados das avaliações que o Professor Wang insistiu em fazer-lhe no Verão passado. Uns que, conforme explicou, não superou e que destruiu para que ninguém pudesse reprovar sua incapacidade. Mas a enganou.

Passou lentamente as folhas, certificando-se de que não havia uma única correção. Eram tão perfeitos que nem sequer teve o valor de pôr um número compreensível para todos, senão que utilizou um símbolo egípcio. Atônita, sem poder dizer uma só palavra, afastou o olhar dos papéis e olhou para suas irmãs. As duas mostraram em seus rostos a mesma confusão que ela e, como deduziu, aguardavam uma explicação. No entanto, não estava em condições de dá-la, pois nem ela sabia o que dizer.

?Por que Lorde Giesler te enviou? Como os conseguiu? ?Josh finalmente perguntou.

?Não sei... ?Mary murmurou tão desorientada e atordoada que não podia ficar de pé.

?Há uma nota ?Madeleine disse depois de pegá-la do chão. ?Será melhor que a leia. Possivelmente responda às perguntas que Josh fez a você ?alegou enquanto lhe oferecia. ?Vamos ?disse empurrando sua gêmea para a escada ?é melhor que Mary permaneça sozinha.

?Mas... mas...

?Acredite. Pressinto que devemos sair e você deve se retirar também ?se virou para Shira. ?Vamos deixá-la em paz.

?Tem certeza? ?Perguntou a serva sem se mexer.

?Tenho. Eu prometo às duas que amanhã Mary encontrará todas as respostas que precisa e nos contará com calma o que aconteceu ?expôs antes de pegar a mão de Josh e puxá-la escada acima.

Quando chegou ao último andar, pouco antes de virar para o corredor esquerdo, Madeleine olhou para Mary e sorriu. Horas... faltavam apenas algumas horas para ela se tornar a mulher mais feliz de Londres.

Mary se sentou no primeiro degrau, colocou os documentos sobre seus joelhos e os repassou de novo. Por que o Sr. Wang mentiu para ela? Desde que frequentou a primeira aula, ele sempre mostrou seu apoio. Então, por que ele escondeu que passou na avaliação final? Suas memórias apareceram sem esforço, fazendo-a reviver cada minuto, como se tivesse acontecido esse mesmo dia...

Ao terminar a aula de anatomia, onde dissecaram um cadáver com um problema de aterosclerose, aproximou-se discretamente dela e lhe disse que tinham que se encontrar em seu escritório o mais rápido possível. Quando todos os alunos saíram, ela seguiu para o escritório sem fazer barulho. Estava tão emocionada por conhecer os resultados que chegou até lá dando pequenos saltos. Uma vez que entrou, sentou-se e olhou para o professor. Algo ruim acontecia porque a expressão terna e compreensiva que sempre lhe mostrou tinha desaparecido... E assim foi. A primeira coisa que ele deixou claro foi que estava muito decepcionado porque tinha colocado muitas esperanças nela. Chorando lhe perguntou onde estavam suas avaliações, que desejava levá-las para casa e revisar seus erros. «Como compreenderá, tive que destruí-los pelo bem de nós dois», lhe respondeu. Saiu chorando. Abandonou o escritório com o coração partido em mil pedaços e sem nenhuma confiança em si mesma. Ao chegar em casa, se trancou no quarto para repassar os temas que apareceram na avaliação. Não entendia nada. Suas respostas eram exatas às que havia nos livros. Então... que tipo da avaliação tinha usado com ela? Apesar de ter as provas sobre o engano, não duvidou do homem que sempre denominou seu mentor. No dia seguinte voltou à universidade e Peter Wang começou sua odiosa guerra contra ela. Cansada de tudo, decidiu não aparecer mais e seguir acompanhando seu pai...

Colocou os papéis dentro do envelope e desdobrou o bilhete que Philip escrevera para ela. As lágrimas voltaram, nublando sua visão.

«Não só por isso, minha querida, você é digna do meu respeito e adoração».

Sem pensar duas vezes, levantou-se, foi até a porta, abriu-a e correu para o único lugar onde queria estar.


***

O Philip atirou o copo para dentro da lareira. O fogo se avivou pelo licor e os cristais começaram a estalar e a fragmentar pela alta temperatura. Apoiou as mãos na treliça, colocou a cabeça nos braços e observou as chamas. Acabou. Sua história com Mary terminou antes mesmo de começar. Não era necessário que ela o confirmasse, apenas observando seus olhos e seu rosto, descobriu o desafio da traição. Devia ter-lhe contado durante a dança, em vez de se concentrar em expressar seus sentimentos. Mas estava tão abstraído em apreciar sua companhia que não pensou em nada, exceto em aproveitar aquele momento. Se tivesse afastado suas emoções, não padeceria a dor mais mortal que um homem pode sofrer: tristeza ao perder a mulher amada. Agora era tarde demais para explicar que, depois de deixá-la em casa, ele visitou Wang, que mais tarde seguiu para a embaixada alemã, onde conversou com seu amigo Müller sobre as alternativas existentes para ela se tornar médica, nem sobre a recomendação deste para que se matriculasse na Universidade de Halle . Nem poderia dizer-lhe que conversou com seu administrador e que enviaria uma carta ao avô no dia seguinte para informá-lo de sua decisão de aceitar o título, nem que os dois o visitariam após o casamento. Nada, já não poderia contar nada a ela...

Ele afastou as mãos da lareira, virou-se e olhou para a poltrona onde havia permanecido desde que entrou na sala. Como se ela fosse culpada por seu fracasso, caminhou em direção a ela e lhe deu um chute, o que a fez voar para o centro da sala.

?Não deveria tratar assim a mobília da sua casa. Poderia causar uma fratura e não teria mais remédio que chamar um médico ?disse ela ao abrir a porta com brutalidade.

?Mary! ?Gritou surpreso. ?É real ou uma alucinação?

Sua respiração, apesar de permanecer muito agitada devido à corrida, parou ao vê-lo tão angustiado, como se não tivesse corrido desesperadamente por mais de quinze minutos. A gravata verde e o colete, iguais ao tom do vestido, não cobriam mais o seu corpo. Os punhos da camisa pressionavam os cotovelos e os botões estavam abertos, mostrando grande parte do peito forte. Quantas vezes teria tocado o cabelo? Muitas, por tão despenteado que estava. E era saudável se sentir tão orgulhosa ao contemplar um homem como ele destroçado dessa maneira por ela? Porque se esse sentimento de felicidade pudesse ser descrito como pecado, acabara de se tornar a maior pecadora do mundo. Olhou-o lentamente, regozijando-se com aquela aparência descuidada enquanto seu coração batia tão forte que ela podia levitar e se aproximar dele com pouco esforço.

?Sim, Philip, sou real ?comentou dando um passo à frente.

?O que aconteceu com você? Por que...?

?Por que estou um desastre? ?Interrompeu-o, afastando inocentemente com a mão direita os fios de cabelo que escondiam seu rosto. ?Porque não foi fácil correr até aqui sem me despentear ?acrescentou, esboçando um leve sorriso.

?Correndo? ?Retrucou, dando um passo em sua direção.

Tremia. Todo seu corpo vibrava pela emoção que sentia ao tê-la em sua casa, ao seu lado, apesar de acreditar que tinha perdido-a para sempre.

?O cocheiro pensou que sua função terminou quando nos deixou em casa. Acho que ele não deduziu que, dez minutos depois, deixaria minha casa para vir... até aqui ?continuou avançando outro pequeno passo em sua direção.

?Para me agradecer pelo presente? ?Disse apontando com o queixo o envelope que ela segurava na mão esquerda.

?Por que chamou meu pai? Por que não me pediu para ajudá-lo? E como conseguiu isso? ?Perguntou sem respirar enquanto dava um novo passo.

?Não fui eu quem chamou seu pai, mas Shals e depois de deixar você em casa, fui à universidade para que o Sr. Wang me desse respostas ?respondeu, diminuindo um pouco mais a distância entre eles. ?Ao voltar, comecei a sentir um leve desconforto e meu mordomo ficou tão preocupado que ele mesmo saiu em busca dele.

?Se foi Shals, está isento de qualquer culpa. Tenho certeza que ele fez isso porque estava muito preocupado com você ?comentou com muita calma. ?E, conseguiu? Me refiro às respostas.

Parou. Embora desejasse se jogar em seus braços, ao ouvir que ele não havia pedido ajuda a seu pai, decidiu atrasar um pouco mais esse momento. Sua mãe não disse que as mulheres deveriam se afirmar? Bem, embora ela tivesse aparecido em sua casa, sozinha e com um único pensamento em sua mente, atrasaria tudo o que poderia o motivo de sua chegada.

?Sim ?respondeu, incapaz de desviar o olhar dela.

?E? ?Perseverou, abrindo a mão esquerda, deixando o envelope deslizar pelos dedos até cair no chão.

?Me disse que não havia conhecido ninguém como você. Que estava tão obcecado com seus resultados que os mostrou ao filho. Que ele os manteve desde então em uma gaveta de seu escritório e, depois de me mostrar, ele não teve escolha senão entregá-los para mim.

?Por que fez isso, Philip? ?Persistiu sem se mexer.

?Porque soube pela forma em que o olhei e lhe falei que, se não queria terminar em um estado semelhante ao de seu filho, devia me entregar ?resmungou.

?E a que conclusão chegou depois de descobrir meus resultados? Continua admitindo o que me confessou no baile ou esqueceu?

?É um incômodo, Mary, e tão inteligente que me assusta. Mas sei que é a mulher que sempre esperei. Roubou meu coração, minha cabeça e meu corpo. Já não me pertence nada do que vê porque a dona de tudo é você. Minha declaração de amor lhe parece adequada, Mary?

?Não sei. É a primeira vez que um homem ousa falar comigo dessa maneira e, embora possa parecer arrogante, esperava algo mais de um libertino, do amante que conseguiu deslumbrar as mulheres mais frias da aristocracia de Londres ?apontou com diversão.

?Nenhuma delas conseguiu me tocar sob a pele.

?Se refere a quando coloquei meus dedos para arrancar a fossa ilíaca de dentro de você? Isso foi um ato de caridade, Philip, não implicou prazer... ?disse com uma voz tão suave que parecia uma daquelas sereias místicas seduzindo um marinheiro.

?Tentarei melhora-la ?disse antes de ouvi-la rir. ?Você é única. Um tesouro maravilhoso que encontrei na minha vida e que quero proteger para sempre. ?Um passo. ?Nunca senti isso e juro que isso me faz temer, porque sei que se meus sentimentos não forem correspondidos, cairei em um poço sem fundo. ?Outro passo. ?Anseio pelo seu cheiro. Aquele que você deixou impregnado no meu quarto e que, devido à sua ausência, desapareceu. Eu sinto sua falta o tempo todo, mesmo se você estiver perto. Quero e estou ansioso para tocá-la continuamente. Eu preciso conhecer seus pensamentos, antecipar seus desejos. Sinto-me derrotado quando não tenho você e forte quando te vejo aparecer. Meu coração vive e bate para sentir você, observar você, pensar em você... Mas se todas as minhas palavras não foram suficientes para deixar meus sentimentos claros, vou lhe dizer uma coisa que nunca saiu da minha boca, Mary Moore Arany. Te amo. Eu te amo muito e faço isso desde o primeiro momento em que meus olhos te encontraram ?declarou em pé na frente dela, tão perto que ele podia ouvi-la respirar.

?E? ?Retrucou, erguendo o rosto até que seus olhos se encontraram.

?E desejo te beijar até você ficar sem fôlego ?disse estendendo os braços até que suas mãos a agarraram pela cintura e a puxaram para ele.

Eles se entreolharam em silêncio, ouvindo apenas as batidas dos dois corações. Não havia dúvida. Ele era seu titã loiro. O homem das visões de Madeleine. O único que acordou seu sangue cigano. O homem que a amava por quem era. Poderia deixá-lo partir? Desejava que o curso da vida continuasse? Sim, claro que sim! Mary levantou lentamente as mãos e as levou para os cabelos desgrenhados. Como se ele fosse uma figura de cristal frágil, foi acariciando-o, observando o prazer que mostrava em seu rosto ao fazê-lo. Depois, as pontas dos seus dedos percorreram suas bochechas e seus lábios como se os desenhasse. Em seguida, estas desceram lentamente pelo pescoço, sentindo o calor de sua pele, regozijando-se ao perceber o ritmo da pulsação na veia cava superior. E terminaram o percurso no peito, tocando com suavidade os pelos do peito meio nu.

?O que você está esperando para fazer? ?Ela perguntou com voz entrecortada pelo desejo.

?Nada! ?Exclamou antes de beijá-la tal como desejou fazer o dia que a conheceu com aquela camisola sedutora e com uns espantosos rolos na cabeça.

E ela se deixou beijar...

Ao fechar os olhos, não observou escuridão, mas sim pequenas luzes coloridas tremeluzentes. Nunca imaginou que um ato tão simples, como pressionar seus lábios contra os dele, pudesse fazê-la sentir tanto. Não queria descrevê-lo como uma carícia, porque realmente não era. Através daqueles lábios, Philip transmitia anseio, ternura, confiança, desejo e posse... Quando a aproximou ainda mais dele, ambas as sombras, projetadas no chão graças à luz do fogo, tornaram-se uma. Jamais pensou que dois corpos pudessem encaixar-se com tanta perfeição, com tanta semelhança. Muito lentamente, estendeu suas mãos pelo peito de Philip, acariciando aquela pele nua e quente. Um gemido. Philip respondeu a esse gesto com um profundo suspiro de prazer. Fascinada pelo poder que exercia nele, continuou acariciando-o até que suas mãos alcançaram seus ombros debaixo da camisa. Esse ato ousado acarretou duas inesperadas consequências. A primeira foi que Philip pressionou com a ponta de sua língua seus lábios, incentivando-os que se abrissem. Fez. Ansiosa por saber o que aconteceria, abriu a boca. Os movimentos daquele órgão muscular, que só servia para a mastigação, deglutição dos alimentos e para articular os sons da voz, realizaram no interior de sua boca uma função mais importante: o aumento do desejo. Notou como respirava pelo nariz com tanta força que o ar quente que expulsava lhe fazia cócegas onde atingia. Mas em vez de se retirar, como qualquer mulher inocente faria, ela imitou-o. Em algum lugar entre a sua boca ou a dele, esses órgãos musculares se tocaram e causaram um turbilhão mental. Philip a apertou tanto que descobriu a segunda consequência: excitado. Ele estava tão excitado que a dureza atravessava sua roupa para alcançar sua pele. O que desejou antes que ele aparecesse em sua vida? Não lembrava. A única afirmação que podia ocorrer naquele momento era ele. Só desejava a ele. Tudo o mais, tinha deixado de existir para ela...

?Você é... ?sussurrou Philip quando Mary acariciou seus braços por debaixo da camisa.

?Sou... ?lhe disse cravando-lhe as unhas, como se estivesse gravando seu nome onde tocava.

?Uma perversa... ?sussurrou fechando os olhos, deixando-se levar pelo momento maravilhoso.

?Por tocar em você ?Perguntou enquanto suas mãos voltaram para o peito. Um agitador pela excitação. ?Eu quero fazer, eu preciso fazer ?insistiu quando começou a desabotoar os botões da camisa.

?Mary... Vou perder o pouco controle que tenho ?insistiu colocando sua testa sobre a dela.

?Vou te dizer uma coisa que nunca disse ?apontou, enquanto lhe tirava a camisa e a jogava ao chão. ?Não me respeite, Philip. Hoje eu não quero que você faça isso. Então liberte de uma vez esse homem que... Philip! O que está fazendo? ?Perguntou enquanto ele a segurava nos braços.

?Farei todos os seus desejos se tornarem realidade, Mary Moore Arany, porque a única função importante que terei em minha vida será fazer você feliz ?afirmou antes de atravessar o salão a grandes passos.


Capítulo XXI


?Me coloque no chão, por favor... ?sussurrou sem afastar sua boca daquele peito nu e quente, ao chegar ao pé da escada. ?Poderia se machucar e não terminaríamos a noite tal como planejamos...

Philip olhou para o último andar, depois para ela e deu um suspiro profundo. Mais uma vez, sua pequena estudiosa estava certa. Embora naquele momento sua excitação tenha atingido um ponto tão alto que o impedisse de pensar com clareza, teria que guardar todas as forças para depois. Um depois que estava esperando desde que a conheceu.

?Como deseja ?lhe disse, enquanto a baixava tão devagar que o tempo se eternizou. Seu corpo deslizando lentamente pelo seu, o extasiou até não ver nada diante dele exceto aquele rosto bondoso e angelical. Como podia o amor nublar tanto a mente de uma pessoa? Ou era a felicidade o que lhe deixou cego de amor? Seja qual fosse o motivo, queria que cada dia de sua vida ocorresse esse milagre: Ela ao seu lado, aceitando o seu amor incondicional. Uma vez que Mary pisou o chão, suas mãos acolheram o belo semblante para observá-lo e deleitar-se com o rubor erótico que exibia. ?Você é a mulher mais bonita que eu já conheci... ?lhe garantiu antes de beijá-la de novo.

Mary enlouqueceu com o beijo. Era tão quente e terno que suas pernas começaram a tremer e a parte mais baixa de seu ventre começou a encolher mais e mais até que sentiu umas pontadas de dor tão intensas que a incomodaram. Já não havia dúvidas, a certeza estava escrita na sua própria pele. Era uma Arany da cabeça aos pés e, embora devesse se sentir contrariada pela descoberta, não era assim. Era a primeira vez que sua verdadeira essência brotava e lhe mostrava o caminho correto.

?Têm dúvidas? ?Philip perguntou enquanto tirava a boca da dela e a encarava com olhos estreitados.

?Não ?Mary garantiu esboçando um enorme sorriso. ?Nenhuma ?garantiu.

Ao ouvir as palavras que desejava ouvir daquela boca gloriosa, não se atrasou nem um segundo mais. Agarrou-a pela mão e puxou-a para o primeiro andar, para o seu quarto, para o único lugar da casa onde queria estar com ela.

Enquanto isso, escondido atrás de uma parede na entrada, como faria um ladrão habilidoso, Shals sorria orgulhosamente e esfregava as mãos. Já tinham senhora! E não uma qualquer, como pensaram em várias ocasiões. Graças a Deus, o mestre tinha encontrado a única mulher que poderia fazê-lo feliz...

Mary ficou parada em frente à porta do quarto até que Philip abriu e a empurrou com a ponta dos dedos de sua mão direita. Seu coração estava tão acelerado, que a fazia vibrar. Todo seu corpo se dispunha a se entregar, a lhe declarar que lhe pertencia. No entanto, estaria preparada para um passo tão importante? Seria o amor o que a havia levado até ele? Ou só o desejo de ter um homem que a respeitasse e a valorizasse por ser quem era? Com milhares de ideias fervendo em sua cabeça, caminhou lentamente para dentro do quarto, observando-o como se fosse a primeira vez. Sua respiração... O hálito quente de Philip acariciava-lhe a nuca em cada passo que ela dava, encorajando-a a continuar. Olhou a cama, logo a lareira, acesa e avivada por algum fiel servo, e se dirigiu para ela.

?Posso esperar ?ele comentou colocando as mãos nos seus ombros, tentando acalmar qualquer dúvida que surgisse em sua mente.

?Eu sei ?respondeu sem tirar os olhos do fogo que era o mesmo que ela contemplava em seus sonhos. A mesma cor das chamas, a mesma sensação de tranquilidade, de segurança. Então, por que não parava de tremer?

?Tenho o suficiente para saber que você veio a mim, que você quer ficar ao meu lado. Não haverá perda tempo entre nós ?lhe garantiu, depois de lhe dar um beijo no pescoço e fazer com que sua pele se arrepiasse diante do leve contato.

?Sim, vim... ?disse através de um profundo suspiro. Fechou os olhos e inclinou suavemente a cabeça para trás. ?Quando li seu bilhete, tive certeza de que ninguém, exceto você, poderia me entender e me amar como sou. Sem contar com meu pai, claro ?acrescentou desenhando um leve sorriso.

?Eu sempre vou... ?Assegurou-lhe com um tom tão doce, que a fez inspirar fundo.

?Quero avisar que não sou como todas as mulheres que você teve até agora.

?Não me lembro de nenhuma, Mary. Talvez porque nenhuma tenha sido tão importante quanto você para mim. ?Depois da confissão, ele abraçou-a, atraindo-a mais a ele.

?Não sou romântica, mas prática ?confessou. ?Vejo a vida de uma forma diferente das demais. Sei que o coração bate porque tem que fazê-lo para poder viver. Que o sangue não ferve, mas aumenta consideravelmente a temperatura porque há uma infecção nele. Que suamos porque nosso corpo reage desse modo ao realizar uma sobrecarga e que...

?Querida, prometo que estarei atento a todas essas reações médicas, ?comentou divertido sem deixar de apertá-la.

?E apesar disso, acha que a nossa relação pode funcionar? ?Retrucou confusa e se virando para ele.

?Funcionará, porque farei esse coração bater não apenas para sobreviver, mas também por mim. Farei sua pele suar quando insinuar o que farei com você, quando estivermos sozinhos e, como resultado, seu sangue ferverá sem a necessidade de adoecer.

?Tem certeza? ?Insistiu, olhando para ele com uma devoção tão imprópria nela que aquele coração que estava pulsando para mantê-la viva ficou petrificado.

?Sim ?lhe respondeu no momento em que colocou as mãos sobre o cabelo para tirar-lhe as forquilhas até deixar livre sua bonita e longa cabeleira. ?E você, tem certeza que sou merecedor do seu amor?

?Sim ?respondeu sem hesitar um segundo. ?Mas quero confessar que nunca... que você será o primeiro a...

Voltou a beijá-la, sem lhe permitir explicar o que ele já sabia.

O cheiro de Philip a encheu enquanto os lábios fortes e suaves a envolviam. Desta vez não precisou sentir a pressão da língua para abrir sua boca, o fez para recebê-lo e ficou atônita ao ouvir seu próprio gemido quando o beijo se intensificou. Enquanto ele lhe acariciava os braços, o cabelo, o rosto e o pescoço, ela fazia o mesmo em seu peito forte e nu. Não houve timidez, nem pudor apesar de ser a primeira vez que se entregava de corpo e alma a um homem. Agora compreendia por que as mulheres se convertiam em amantes. Como iriam atuar com sensatez quando eram beijadas e acariciadas dessa forma?

? Quando te vi no alto da escada ?Philip começou a dizer enquanto desabotoava o primeiro botão do vestido ?descrevi você como uma bruxa... ?Sua voz aveludada e sensual acariciava o pescoço de Mary enquanto falava. ?Então admiti que uma bruxa fosse uma descrição muito simples para você...

?Medusa ?comentou Mary fechando os olhos, inclinando a cabeça para trás para continuar sentindo o calor da respiração de Philip em sua pele.

?Sim ?sorriu. ?Minha Medusa...

O segundo botão desabotoou, o terceiro, o quarto... e o vestido deslizou pelo corpo de Mary até Philip apreciar como o espartilho apertava tanto o tronco, que levantava de maneira descarada e pecaminosa seus bonitos peitos. Desapareceria. Aquela prenda do diabo desapareceria logo de seu corpo, assim como as calçolas e as meias de seda.

?Você me deixou sem fôlego, Mary... ?ele continuou enquanto seus dedos desamarravam o laço do espartilho. Uma vez aberto, jogou-o em algum lugar do quarto com indiferença. Então ele se ajoelhou para fazer o mesmo com as calçolas. ?E repetiria mil vezes naquele dia, morreria mil vezes mais para encontrar você ?acrescentou ao se levantar. Depois de olhá-la, inclinou a cabeça para inspirar a fragrância que ela desprendia entre seus seios.

O doce odor de Mary, sem perfumes nessa zona de sua pele, emergiu dali e o excitou tanto que sua ereção se fez terrivelmente dolorosa... Tal como imaginou, era feminino, hipnótico e tão suave como era tocar uma nuvem com a ponta dos dedos. Com muito cuidado, porque o tremor dela se fez notável, suas grandes mãos pousaram sobre os seios, abrangendo-os, enchendo-os, acostumando-os a seu toque. De joelhos. Esteve a ponto de ajoelhar-se diante dela e começar a chorar como um jovem inexperiente. Se alguma vez pensou que tocá-la seria maravilhoso, errou, pois essa palavra não definia a reação de seu corpo por e para ela.

?Pelo que entendi, é bom ficar nu para fazer sexo ?Mary comentou, sentindo como o desespero começava a incomodá-la.

?Um ?ele disse pegando-a pela cintura e transportando-a para o pé da cama ?o que vamos fazer nunca, nunca, deve chamar de sexo mas fazer amor. ?Depositou-a lentamente e justo quando ela ia replicar tal afirmação, ele colocou os lábios sobre sua boca para fazê-la calar. ?Dois ?continuou ao se separar? isso pode ser feito com ou sem roupas. Mas eu desejo que na nossa primeira vez nada cubra seu corpo. Quero admirá-lo, venerá-lo até que não seja capaz de pensar em nada exceto em te despir de novo. ?Muito lentamente, ele a fez se sentar. Ajoelhou-se e sem desviar o olhar dela, pegou um sapato, tirou-o e beijou seu peito do pé. Então ele fez o mesmo com o outro. Mary moveu os dedos dos pés, como se tivessem adormecido. Philip sorriu pela atitude infantil. ?O romantismo, minha querida senhorita Moore, começa com devoção à pessoa ao seu lado e, se você não percebeu, aqui está apenas você.

?Ao seu lado... ?murmurou ela sem poder afastar os olhos dele.

?Sempre ?admitiu no instante que acariciou ambas as pernas com lentidão, com suavidade. ?Está entendendo? ?Perguntou quando seus dedos alcançaram as ligas elásticas. Com calma, enquanto suas mãos arrastavam as meias de seda, ele beijava sua pele nua.

?E quando se supõe que faremos amor? ?Disse extasiada.

Colocou ambas as mãos sobre o colchão para sentir alguma sujeição, pois seu corpo se debilitou tanto que não podia se sustentar nem mesmo quando permanecia sentada.

?Esse é o fim, querida ?Philip respondeu separando lentamente as coxas. ?Primeiro você tem que chegar ao paraíso. Para obtê-lo, preciso que você relaxe... ?Pediu-lhe justo quando a mão direita se colocou sobre seu sexo, úmido, quente e necessitado por ele.

?Philip! ?Exclamou sobressaltada.

?Shhhh... ?disse antes de pegar os tornozelos para acomodar as plantas de seus pés sobre o colchão. ?Deixe-me desfrutar você...

Olhou. Ele não sabia quanto tempo estave fazendo isso, mas não conseguiu tirar os olhos daquele lugar íntimo e virginal. Felizmente para ele, ela concedeu-lhe o privilégio de ser o primeiro a descobrir seu gosto, dar prazer, possuí-la até que gritasse que era dele...

?Isso...? Isso...? Philip! ?Gritou quando aqueles gloriosos lábios roçaram ansiosos seu sexo. Agarrou-se à colcha, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. O que era aquilo? Entre suas pernas? Poderia ser feito com a língua? E ela pensava que era um músculo sem importância! Por que lhe abria a...? ? Oh, sim! ?Exclamou e se esqueceu de pensar.

Luzes... O quarto não estava mais na escuridão, mas iluminado por milhões de pequenas luzes coloridas quando Philip passou a língua nos lábios vaginais molhados, enchendo-se da essência que ela emitia devido à sua excitação. Seu sabor o encheu de luxúria, de necessidade, de brutalidade. Ela supôs ao notar suas grandes mãos se acomodar sob seu glúteo, segurando-a para que não se movesse nem se retirasse dele. Seus dedos, até agora emaranhados na colcha, se enrugaram, como se quisessem arranhar o tecido quando aquele perverso órgão muscular alcançou seu clitóris. Que Morgana cuidasse da alma do grande investigador Mateo Realdo por dissecar um e convertê-lo em um importantíssimo tema de Anatomia! Mas Philip não tinha assistido a nenhuma aula para ser tão habilidoso... Esteve a ponto de sofrer um ataque de inveja quando as contrações vaginais se fizeram tão intensas que foi incapaz de respirar pausadamente. Mordeu os lábios, apertou-os. Suas bochechas ardiam, suas pálpebras se abriam e se fechavam. Queria saltar da cama, gritar, correr nua pela casa, mas sempre pela mão do homem que a estava levando a uma agradável morte com a boca.

Tudo isso era feito antes da cópula? Pois que Morgana se apiedasse dela porque não queria nada do que uma vez desejou. Já não queria noites tranquilas, onde um marido idoso dormisse no quarto contíguo enquanto ela estudava um novo ensaio. Agora queria Philip em sua cama! Todas as noites, todos dias, toda a sua vida!

E justo quando estava suplicando a Morgana que esquecesse tudo o que lhe pediu antes de conhecê-lo, Philip colocou a ponta da língua no clitóris e o estimulou de tal forma, que esteve prestes a chorar.

?Philip! ?Exclamou desesperada, contraindo todos os músculos que pôde controlar nesse momento.

?Te quero, linda! ?lhe respondeu ele, afastando-se o suficiente para observar maravilhado o êxtase de sua mulher.

Quando ele a notou no limite, quase prestes a pular no abismo do prazer, sua boca se aproximou daquela área feminina novamente e fez sua língua tocar sem parar enquanto colocava um dedo na vagina para que o gozo aumentasse. Mas Mary continuava parada, não chegava. Rapidamente tomou a decisão de masturbá-la com dois dedos. Claro que ela precisava de dois! Sua mulher não era como as demais: tímida, leve, fraca, apesar de ser virgem. Ela era a mulher mais poderosa que havia conhecido e que, por sorte, poderia acolhê-lo sem medos, sem medos.

?Philip! Philip! ?Gritou, se retorcendo como se a tivesse possuído uma alma endiabrada. Gritando com uma voz que não era sua, evocando-o como ninguém o havia chamado.

?Quer mais, querida? Ou você acha que é o suficiente para o seu primeiro dia? ?Perguntou sem deixar de lhe dar prazer.

?Sim, por favor ?choramingou. ?Eu preciso, eu quero, eu desejo...

E ele a agradou com a boca, com os dedos, com a respiração, com a língua, com os dentes... Tudo o que ela queria, ela conseguiu.

Ao culminar, ao sentir como seu corpo relaxava depois do imenso esforço de tocar o céu, tentou acalmar sua respiração. Não o fez. Não era capaz de fazer nada além de pensar no êxtase que havia alcançado. Seu corpo tinha vida e ele a havia proporcionado. Nunca se sentira tão desperta, tão lúcida, tão hábil fisicamente. Seu coração batia como se tivesse corrido atrás de um galgo, mas não estava cansada, mas disposta a seguir. O que se comentava depois de um momento assim? Devia lhe agradecer?

?É... Ha... Não... ?Tentou dizer ao notar que Philip se afastava.

Não podia vê-lo com clareza. Sua visão ainda continuava nublada pela paixão.

?O que, Mary? O que você quer me dizer? ?Perguntou-lhe sem poder apagar o sorriso de satisfação de seu rosto.

Não lhe pôde responder. Pela sua boca não saíam palavras, ao vê-lo despir-se daquela forma tão sensual, mas pequenos soluços. Tempos atrás, talvez dias ou semanas antes, descreveu-o como o grande chefe de uma tribo e que as mulheres desse clã pré-histórico ergueriam os quadris para que gerasse nelas um macho tão forte e vigoroso como ele. Pois mataria todas elas! Ela era a única que Philip poderia querer gerar, pois tinha pleno direito ao ter lhe salvado a vida. E por amá-lo à sua maneira. Ciumenta pelas mulheres passadas e pelas que ele rejeitaria por ela num futuro, levantou-se para frente até sentar-se de novo. Os olhos de Philip brilhavam pela paixão e desejo. Os seus... também. Quando ele se colocou na frente dela, ela estendeu as mãos para seu ventre e acariciou a marca da operação com a ponta dos dedos. Ele inclinou a cabeça para trás, suspirou fundo e expirou emitindo um gemido. Sem afastar o olhar dele, levou suas mãos para a ereção. Irreconhecível. Eram como a noite e o dia. Talvez essa fosse a razão pela qual sua mãe ficou tão brava... Nenhuma mulher virtuosa devia observar o sexo de um homem sem haver um casamento entre eles. Mas ela não era uma mulher casta, restavam-lhe poucos minutos para se transformar numa grande pecadora e, pelo que tinham concordado, manteriam uma relação.

?Quer me tocar? ?Philip perguntou quase sem voz, como se alguém a tivesse arrancado.

Mary não respondeu. Abriu a mão direita, a colocou ao redor de seu membro e a acariciou com muito cuidado. Pelo profundo gemido que expulsou por sua boca, e pela espessura de suas veias, compreendeu que estava tão excitado que podia segregar a qualquer momento. Então sua mente, até agora abstraída de toda racionalidade, lhe enviou uma informação coerente, mas a rejeitou de imediato. Tinha pouco mais de vinte e cinco anos, aquele homem a adorava, ela o adorava e ambos desejavam manter um acordo... Por que não se lançar a uma aventura?

?Mary... ?Sussurrou-lhe afastando a mão de seu sexo. Muito lentamente, levantou-a junto com a outra para tirar-lhe a camisola pela cabeça. O movimento de seu cabelo e como este acariciava sua pele, o estimulou mais. ?Não farei nada que não queira ?disse, como se lesse sua mente.

?Quero você Philip ?ela admitiu, inclinando-se lentamente para trás. ?Mas antes de entrar, antes que esse vínculo que nos une se torne inabalável, preciso que você esteja ciente do que pode acontecer entre nós, porque não tomei medidas para...

? Eu não as quero ?se inclinou para ela e lhe deu um beijo na testa. ?Não vou nem querer até você decidir.

?Então... continua ?encorajou-o, dando-lhe um olhar de cumplicidade e sedução.

?Seu conhecimento médico a informou sobre o que sentirá na primeira vez? Porque posso causar-lhe alguma dor que desaparecerá nas seguintes...

?Shhhh ?Mary o fez calar posando um dedo sobre seus lábios. ?Sei o que acontecerá quando entrar em mim.

?E? ?Perguntou, sorrindo, acomodando-se sobre seu corpo.

?E estou preparada ?assegurou-lhe antes de colocar os dedos em seu pescoço firme.

Mas ele não agiu como ela esperava. Philip não colocou o quadril no dela para começar o ato de penetração, mas sua boca estava beijando todas as áreas de pele nua que ele encontrou em seu caminho.

O sangue palpitava nos ouvidos de Philip e se acumulava em seu membro, dando-lhe tanta dureza e rigidez, que ele acabaria ejaculando sem entrar. Mas queria derrubar a barreira do não romantismo que Mary tinha marcado e demonstrar-lhe que isso mesmo encontraria entre os dois. Dado seu histórico com os homens e sua visão de realidade, sabia que lhe custaria muito conseguir algo com o que muitas mulheres tinham nascido. Mas era um bom desafio para começar: conseguir que Mary o amasse tanto que lhe dissesse as duas palavras mais formosas do mundo.

Pensando na sensação que teria quando a ouvisse, abriu a boca para capturar um dos mamilos de seus maravilhosos peitos. Chupou-o, saboreou-o e mordeu-o até que a ouviu gritar seu nome com tanta força que perderia a voz. Depois fez o mesmo com o outro até que sentiu suas gloriosas pernas tocando-lhe as costas, convidando-o a unir-se a ela. Mas não queria se apressar, o tempo não importava... Queria que, quando se lembrasse de sua primeira vez, suas bochechas ruborizassem, que seus olhos brilhassem e a pele arrepiasse. Esse era o começo entre eles. Mary deveria se acostumar a ser tocada, amada, adorada pelo único homem que a amava por seu caráter, por ser fiel a seus princípios, por ser pura. Queria que apagasse de sua mente qualquer nome ou situação que lhe desse lembranças ruins e se concentrasse nele, o único que estaria disposto a dar sua vida por ela.

?Philip... ?sussurrou ao notar uma das grandes e quentes mãos acariciando de novo seu sexo, apalpando sua umidade, deslizando, escorregando nela e extasiando-a. A excitação era formosa, compreendeu, porque o homem que a tocava a tratava com o mesmo fervor que a uma deusa. ?Philip... ?repetiu fechando os olhos, emaranhando os longos cabelos loiros entre seus dedos.

Ele, complacente a todos os seus desejos, moveu-se sobre ela até que sua ereção tremeu ao notar o lugar por onde devia entrar. Levantou o rosto, olhou para ela, deleitou-se com essa visão, com a sua mulher, com a paixão que mostrava aquele maravilhoso semblante corado pelo desejo e a beijou enquanto se introduzia nela, com todo o cuidado que lhe permitiu sua própria excitação. Sua boca era tão quente, suave e úmida quanto seu sexo. Sua língua escorregava pelo interior de sua boca como seu sexo dentro da vagina. Mary e Philip, Moore e Giesler, mulher e homem, por e para sempre...

?Philip... ?disse abrindo os olhos, observando-o com tanto amor, que o coração esteve a ponto de lhe sair pela boca ao nomeá-lo.

?Mary, meu amor, te amo ?respondeu com os lábios tão perto dos dela que a beijou sem fazê-lo.

Ouvindo apenas os suspiros de ambos, introduziu-se um pouco mais.

Apertada, quente, cercando-o, acolhendo-o...

?Philip! ?Gritou quando a posse ocorreu e notou como se quebrava por dentro. Apertou as unhas nos ombros, jogou a cabeça para trás e elevou os quadris. ?Continue! ?Encorajou-o ao notar que havia parado suas investidas por medo de machucá-la. ?Quero te sentir no fundo!

?Eu estou ?garantiu. Ele lentamente retirou o sexo, molhado não apenas da umidade da excitação de Mary e a penetrou com tanta força que os dois quadris se encaixaram como as peças de um quebra-cabeça. ?Você é minha, querida! ?gritou fora de controle. ?Você é minha, Mary! Só minha! ?Acrescentou sem parar de entrar e sair dela, escutando seu nome e a mistura de seus gemidos.

?Para sempre... ?lhe sussurrou ela ao ouvido.

E culminou. Aquele ato de amor, paixão e possessão, almejado pelos dois, o fez ejacular dentro dela. Nem os calafrios que sentiu, nem os tremores que o prazer provocou, o fizeram sair dela. Não. Não podia, nem queria se afastar por aquilo ser um sonho. Olhou-a, atordoado, incapaz de afastar os olhos do rosto de sua amada. Queria ver se os seus olhos expressavam a mesma felicidade, se estavam tão satisfeitos, tão cheios de amor...

?Eu te amo ?disse antes de beijar o nariz dela.

?Eu sei ?respondeu, acariciando-lhe o cabelo e o rosto. ?E prometo que eu sinto...

?Não precisa prometer nada ?apontou. Deitou-se ao seu lado, atraiu-a até ele e a abraçou. ?Sei que um dia fará.

?Estou aqui, ao seu lado... ?Se virou para ele e o olhou com tanto carinho que seu coração se encolheu. Por que não poderia dizer a ele o que esperava? Não tinha ido a sua casa e se tinha entregado? Então... por que seus lábios se apertaram quando tentou fazer isso? Talvez porque a vida tenha lhe mostrado que as palavras eram esquecidas, mas que os fatos duravam. E era isso que ela lhe ofereceria o resto de sua vida. Atos, mil atos de amor e adoração por ele.

?É mais do que eu poderia desejar... ?indicou beijando-a novamente.

?Obrigado por me aceitar sem restrições ?expressou quando descansou a cabeça no peito, agitado pela respiração.

?Mary...

?Mmm...? ?perguntou enquanto acariciava o peito de Philip com as pontas dos dedos.

?Qual tem sido o seu maior desejo? ?Sua mão esquerda começou a percorrer as costas com calma, serenidade.

?Antes ou depois de conhecê-lo? ?Perguntou levantando o rosto, mostrando um sorriso que o deixou sem fôlego.

?Nas duas situações ?admitiu. Se inclinou e beijou ternamente aqueles lábios inchados pela paixão vivida.

?Eu sempre quis me tornar uma médica, mas já sabe disso. Depois de encontrar você, meu único desejo era matá-lo, revivê-lo e depois... te levar para a cama ?disse, depois de colocar sua bochecha direita no busto firme.

?Eu te disse lá embaixo que viverei só para te agradar ?ele garantiu. ?E eu gostaria de cumprir seu primeiro sonho, pois o segundo acabamos de fazê-lo realidade.

?Não pode fazer nada ?disse sem olhá-lo. Não queria que ele descobrisse a sombra de tristeza que acabavam de aparecer em seus olhos. Nem desejou que se sentisse culpado de não conseguir o impossível. As promessas eram feitas, mas em muitas poucas ocasiões se cumpriam.

? Claro que posso ?apontou levantando-se e fazendo que ela o fizesse. Agarrou-lhe as mãos, levou-as para a boca e as beijou. ?Você pode se tornar uma médica licenciada uma vez que nos casarmos.

?Nos casar? ?Soltou confusa. Tentou se afastar, mas ele a impediu. ?Não quero te obrigar a nada, Philip! Podemos ser amantes.

?Amantes? ?Ele gritou tão desconcertado que ficou sem fôlego no meio da palavra. ?Como pode pensar em algo assim, Mary? Te amo!

Ficou olhando para ele, surpresa ao observar seu desespero e confusão ao compreender que falava sério. Mas... estava pronta para se casar? Era um passo muito importante e decisivo, inclusive muito mais que o de lhe entregar a virgindade. Anne conheceu seu marido sem ela e Elizabeth...

?Falei com um amigo na embaixada alemã ?começou a dizer para quebrar o silêncio desconfortável que se criou entre eles. ?Explicou-me que há uma universidade na Alemanha que admitem mulheres e que...

?Quando? ?Perguntou, apoiando os joelhos sobre o colchão.

?No mesmo dia que conversei com Wang. Foi ele quem me sugeriu que deveria sair desta cidade para fazer realidade seus sonhos ?explicou sem deixar de olhá-la.

?Mas... sair daqui? Deixar minha família? Casar com você? ?Disse mal respirando, acariciando o cabelo com desespero.

?Não quer se casar comigo? ?Perguntou-lhe quase sem voz.

?Pretendia começar uma relação, Philip. Não sabemos se seremos capazes de...

?Seremos! ?Exclamou saltando para ela, agarrando-a ao seu corpo como se voltassem a ser um e trazendo-lhe a tranquilidade que necessitava. ?Sei que conseguiremos!

?Mas nunca sonhei com um casamento... ?sussurrou. ?Eu nunca vi isso possível... Não suportarei os olhares, os comentários, os nervos de minha mãe, as provas do vestido, a cerimônia... ?Sua agonia aumentou ao enumerar tudo aquilo que tinha vivido Anne durante as duas últimas semanas.

?Nesse caso, só nos resta uma alternativa ?indicou ele se afastando o suficiente para acolher aquele rosto em suas mãos.

?Qual?

?Se o que te preocupa é tudo o que sofrerá até que consiga te fazer minha esposa, há uma opção mais rápida e menos perigosa para mim, se ao final decidir fugir ao meu lado ?expos com tom de zombaria.

?Tem certeza do que me pede? ?Insistiu. ?Você sabe que é um passo muito importante para...

?Mary, você é a única mulher que eu quero ao meu lado. Eu preciso de você tanto quanto o ar que eu respiro ?declarou solene.

?Acho tão estranho me tornar alguém tão importante para uma pessoa ?admitiu, inclinando lentamente o rosto. Mas Philip o levantou até que ambos os olhares se cruzaram e ela pôde contemplar sua felicidade que, embora lhe custasse assumi-lo ainda, era a mesma que a sua. ?O que você está pensando em fazer?

?Seus pais partirão hoje para Lonely, certo? ?Ela assentiu. ?Bem, quando eles voltarem, ficarão agradavelmente surpreendidos pelo fato de termos nos casados em Gretna Green.

?Quer que fujamos como fizeram meus pais? ?Seus olhos se arregalaram e seu coração bateu rápido.

Sua mãe teria uma síncope, seu pai não pararia de sorrir e suas irmãs... Bem, suas irmãs entenderiam.

? Somente se você me aceitar ?respondeu aproximando sua boca da dela. ?Você quer ser minha esposa, Mary Moore Arany?

?E deixar para trás a humilhação que suportei nesta cidade, as disputas sobre minha incapacidade mental e as fofocas malignas, para obter uma vida nova, me tornar uma médica em terras alemãs e me submeter a um marido que, apesar de me respeitar e me amar, converterá minhas noites em um pesadelo sexual? Sim! Claro que quero me casar com você, Philip! ?Gritou antes de se lançar para a sua boca.


Capítulo XXII


Algumas horas mais tarde, os dois seguiam abraçados em uma das carruagens de Philip rumo a sua casa. Enquanto observava a bolsa que Shals lhe preparou em menos de dez minutos, pensou sobre tudo o que lhe havia acontecido desde que o conheceu. Não encontrou nada que lhe fizesse duvidar da decisão que tomou. Ao contrário, estava feliz, entusiasmada e satisfeita. Apertou a mão esquerda no casaco de Philip e olhou para ele. Como sempre, lhe devolveu o olhar acrescentando a esse gesto amoroso um sorriso tão terno que lhe paralisou o coração. Seu marido... Em pouco mais de um dia, o homem que lutou para alcançar seu amor se converteria em seu marido e ela em uma mulher casada, uma mulher unida a ele para sempre. Essa visão da realidade a fez estremecer. Meses atrás, nem sequer pensou que isso fosse possível. Jamais suspeitou, quando discutia com suas irmãs sobre os sonhos delas, que viveria a vida que elas ansiavam. Tinha assumido que não haveria ninguém que pudesse amá-la sem fazê-la mudar seus pensamentos, seu comportamento ou sua visão da vida. Como poderia existir um homem, gênero que odiava com todas suas forças, que a compreendesse e a amasse sem tentar mudá-la? Mas estava errada, porque existia e o encontrou. Ou melhor, ele a encontrou naquele dia em que, depois de amaldiçoar a decisão de sua mãe de levantá-la cedo, em todos os idiomas que aprendeu, ela deixou o quarto de camisola, com os horríveis tubos que Shira enroscava na cabeça, coçando o traseiro enquanto bocejava. Como Philip poderia nomear esse momento como o mais maravilhoso de sua vida? Se estivesse em sua pele, sem dúvida teria fugido sem olhar para trás.

Mary sorriu ao compreender que o amor podia cegar as pessoas, entre as quais se encontrava seu futuro marido. Só esperava que, com o passar dos anos, quando convivesse com ela dia após dia, quando discutissem por alguma decisão importante, continuasse a defini-la desse modo.

?Se está pensando em fugir de mim, te aviso que não conseguirá ?Philip levantou muito devagar o rosto de Mary com o dedo indicador de sua mão direita até que voltaram a cruzar seus olhares. ?Não haverá janela ou porta que não vigie enquanto estiver dentro.

?Não vou fugir de você ?lhe respondeu com um grande sorriso. ?Já não...

?Isso me tranquiliza, porque eu não gostaria que Londres inteira se queixasse do horrível sequestro de uma das filhas do Dr. Moore. Caso você ainda não saiba, há pessoas que não aprovam meu comportamento em determinadas situações ?Disse antes de puxar os fios do rosto que ele não tinha conseguido captar rapidamente e dar um beijo carinhoso nos lábios.

?Certamente muitas mulheres descreveriam esse sequestro como romântico ?apontou mordaz ao lembrar-se dele dançando com uma jovem.

?Mas a única que quero sequestrar o chamaria um ato ofensivo, pois não respeitaria sua decisão ?expos, observando certo rubor nas bochechas de Mary. ?Por que você corou? Quer que eu te sequestre? Sabe que eu farei isso com prazer...

?Não ?respondeu, abaixando os olhos levemente e removendo um fio insistente do casaco de Philip. ?Acabei de me lembrar de algo que me deixou com raiva...

?Da minha parte? ?Retrucou, movendo-se no assento para olhá-la melhor. ?Eu fiz algo que te desagradou? Se sim, peço-lhe mil perdões.

?Dançar ?respondeu, sem tirar os olhos dos botões daquele casaco preto.

?Dançar? ?Estendeu ambas as mãos para o rosto dela e levantou-o lentamente.

?Na outra noite, na festa, te vi dançando com uma jovem loira. ?Quando ele a ouviu e entendeu que a razão desse leve rubor se devia ao aparecimento de um sentimento tão inesperado nela quanto ao ciúme, começou a rir. ?Porque você está rindo de mim?

?Oh, Mary, querida! ?Disse, trazendo a boca para a dela novamente. Prometo que não tive escolha a não ser fazê-lo. ?Quando Mary levantou uma sobrancelha em questão, continuou: ?Fui te procurar. Não parecia certo que, enquanto eu permanecesse no salão ouvindo conversas sem sentido para mim, você continuasse escondida naquela varanda. Mas no meio do caminho, conheci lorde Anson e, depois de me pedir uma opinião sobre a compra de um dos armazéns no píer, ele me empurrou, com palavras hábeis, para dançar com a filha a peça seguinte.

?E aceitou ?Mary murmurou.

?Por obrigação, querida. Mas prometo que nem sequer olhei para ela, porque meus olhos ainda estavam fixos na única mulher que me interessou na festa. ?Ele expressou acariciando suas bochechas com os polegares. ?Quando a dança terminou, eu a acompanhei até Anson e fui te procurar.

?Uma atitude muito educada de sua parte ?continuou com tom mordaz.

?É o comportamento esperado de um futuro barão. Se ninguém nesta cidade tivesse descoberto minha verdadeira identidade, continuaria sendo Giesler, um ex-agente da Scotland Yard e o amigo de Logan Bennett.

? E quem espalhou esse segredo? ?Mary retrucou intrigada.

?Minha irmã ?declarou antes de bufar. ?Valeria não parou de insistir no assunto desde que seu marido descobriu que meu avô ainda estava vivo e que havia uma possibilidade do legado de nosso pai perdurar em nós. Mas sempre rejeitei essa herança até te conhecer...

?Aceitará pra mim? ?Perguntou arregalando os olhos.

?Só por você ?manifestou antes de lhe dar um beijo tão apaixonado, que lhe encolheram os dedos dos pés.

E seu coração disparou. Mary não sabia mais se o fazia ao ouvir aquela confissão, para acalmar aqueles ciúmes absurdos ou porque, na realidade, como garantiu a ele no quarto, conseguia fazer com que seu órgão vital não apenas batesse pela sobrevivência, mas também por tê-lo perto.

?Você pode vir comigo ?sugeriu quando seus lábios se separaram. ?Dessa forma, verificará que não quero fugir de você.

?E como seus servos reagirão ao nos ver aparecer juntos a esta hora da manhã? ?Disse espantado com a determinação de Mary.

Embora Shals estivesse tão feliz que não deixava de chorar enquanto preparava sua bagagem, os empregados do senhor Moore poderiam agir de outra forma. Talvez até lutassem para que ela não saísse de lá, se o fizessem, ele usaria sua força bruta para realizar o chamado sequestro.

?A única que poderia nos descobrir seria Shira, que tem o ouvido tão fino como o de uma coruja. Mas temo que depois do que aconteceu com minhas irmãs ao voltar da festa e depois de preparar a bagagem da família, estará tão esgotada que não sairá da cama até o meio-dia.

?Eu não quero te causar nenhum... ?tentou dizer.

?Não faremos nada de errado, Philip ?disse colocando um dedo nos lábios para silenciá-lo. ?Mal notarão nossa presença. Subirei ao meu quarto, pegarei um par de mudas e descerei rapidamente.

?E, como entrará? ?Queria saber enquanto a carruagem estacionava em frente à entrada da residência Moore. ?Subirá pelo muro como um amante vigoroso?

?Alguma vez fez isso? ?Cutucou, estreitando os olhos.

?Não ?respondeu categoricamente.

?Eu também não ?suspirou calmamente. ?Prometo que não precisarei escalar ou pôr em risco minha vida para entrar na minha casa. Minha mãe guarda uma chave embaixo do vaso cinza na entrada. Como pode supor, exigem a presença de meu pai a qualquer hora, muitas vezes ele volta tarde e ela não quer incomodar nenhum de nossos criados. Embora eu pense que nunca teve que usá-la porque minha mãe sempre espera. Ela diz que não pode adormecer se o marido não estiver ao seu lado ?Ela explicou surpresa ao entender, pela primeira vez em sua vida, o desespero que sua mãe sofria por seu pai. Quem poderia adormecer com a incerteza de não saber o que poderia acontecer com a pessoa amada?

?Eu prevejo que a mesma coisa acontecerá comigo... ?Philip declarou antes de abrir a porta, impaciente por ver Mary entrar novamente e seguir em direção a Gretna Green.

Aceitou a mão que ele lhe ofereceu para ajudá-la a descer e não a retirou até que chegaram à entrada principal. Com os olhos de Philip cravados nela, levantou o vaso, pegou a chave e tão lenta como pôde, abriu a porta. Silêncio. Como deduziu, ninguém do serviço havia se levantado e seus pais teriam partido junto com as gêmeas para Lonely. Apesar da determinação que havia tomado, embargou-lhe certa tristeza ao ser consciente de que sua família não estaria ao seu lado em um dia tão importante para ela. Antes de entrar em sua casa pensou que se casar em Gretna Green era uma boa ideia, pois assim se economizaria sofrer tudo aquilo que Anne sofreu, mas depois de entrar, de inspirar o perfume que caracterizava as pessoas que tanto amava, a fortaleza que tinha tido desapareceu de repente. Como seu pai reagiria quando lhe desse a notícia? Odiaria ela por não lhe permitir acompanha-la pelo braço, como fez com sua irmã? Ou a apoiaria, pois ele agiu da mesma forma com sua mãe? A imagem de seu pai acompanhando Anne até o altar apareceu em sua mente. Perderia vê-lo tão bonito e sorridente, a sua mãe chorando pela emoção, a suas irmãs sussurrando sobre o vestido que lhe fariam usar. Quando desse a notícia obteria repreensões, aborrecimentos, desconsolo. Tudo isso mancharia sua felicidade e seria incapaz de olhar com dignidade ao homem que amava.

?Sabe? ?Ele sussurrou nas costas dela depois de notá-la hesitante. ?Fiquei aqui mesmo no dia que te conheci e isso faz quarenta e dois dias.

?Nunca entendi o motivo ?lhe respondeu em voz baixa enquanto recuperava um pouco de serenidade.

Se virou para ele e, apreciando em seus olhos uma extraordinária devoção, decidiu seguir em frente com o plano. Sua família a entenderia e a perdoaria quando ela explicasse as razões pelas quais ela havia feito isso. Inclusive agradeceriam por isso! Bem, não seria agradável para nenhum deles ouvir uma série de rumores maliciosos sobre o rápido vínculo matrimonial entre a horrível segunda filha dos Moore e o adorável lorde Giesler. Certamente algum dos futuros médicos com os quais manteve uma disputa às sextas-feiras, espalharia o rumor de que o tinha envenenado e que não lhe daria o antídoto até que se casasse com ela...

?Seu pai visitou Logan para pedir que ele levasse Anne em sua próxima viagem. Meu amigo o rejeitou, mas ele era teimoso e deixou um envelope com uma boa quantia em dinheiro antes de sair. Bennett queria devolvê-lo pessoalmente e, como nossa amizade superou mil infortúnios, ele me pediu para acompanhá-lo para evitar boatos falsos sobre sua visita. Durante todo o trajeto, imaginei uma casa muito escura e tenebrosa, cheia de jovens bruxas vagando pela casa. Quando entrei, meus pés não conseguiram dar um único passo à frente. Talvez porque assumi que este era o lugar menos perigoso ou o mais rápido para escapar, se ocorresse alguma desgraça.

?E sua previsão se cumpriu... ?comentou Mary subindo na ponta dos pés e dando-lhe um sorriso travesso. ?Você encontrou uma bruxa malvada...

?Não. Encontrei a mulher mais perfeita e linda do mundo ?ele murmurou, segurando as mãos dela para colocá-las em seu peito ?e por quem estou disposto a esperar o tempo necessário para que ela fique comigo pelo resto da vida.

?Estou, Philip ?disse, trazendo os lábios um pouco mais perto do seu.

?Mary tenho notado suas dúvidas. Não as quero entre nós. Sei o que podem criar em um futuro e...

?Estou muito segura da minha decisão Philip Albrecht Freiherr Von Giesler ?lhe disse antes de beijá-lo com tanta paixão, que tudo o que havia a seu redor deixou de existir e de importar.

Já não estavam em sua casa, não se encontravam no mesmo lugar onde a conheceu, Josh não apontava com uma pistola o seu coração, nem ouvia os gritos de sua mãe. Eles... só estavam eles.

Mary abriu a boca, para aumentar a paixão que ele lhe oferecia cada vez que a beijava. Com os olhos fechados, afastou as mãos do peito de Philip e as colocou sobre o pescoço, atraindo-o mais a ela, evitando qualquer distância e fazendo desaparecer todas as suas indecisões. O amava. Já não havia dúvida disso. Embora não fosse capaz de dizer-lhe com palavras, seu corpo reagia sem necessidade de falar. Seu tremor, seus gemidos, o desejo latente de tê-lo de volta em uma cama, nu, acariciando com as pontas dos dedos sua pele arrepiada... tudo era mais do que suficiente para garantir que não poderia viver sem ele e que não dava a mínima para o que aconteceria no futuro se eles continuassem unidos.

?Uhum... uhum... ?disse alguém das nove pessoas que, estupefatos diante da cena, foram incapazes de se mover do corredor pelo qual apareceram.

Mary tentou se afastar de Philip, mas este, com a agilidade de um gato, colocou as mãos em volta do rosto dela para impedir que se mexesse. Foi ele quem assistiu com os olhos estreitados e erguendo as sobrancelhas, que interrompeu um momento tão íntimo.

?Diga-me que não há ninguém olhando para nós. Que era apenas o vento batendo nas vidraças ?Mary implorou.

?Eu lhe disse que nossa filha não faria nada de errado. Ela é a mulher mais sensata que eu já conheci ?comentou Randall com um sorriso de orelha a orelha.

?Isso é o que você chama de nada de errado? ?Sophia retrucou, tão chocada com o que tinha visto que gaguejou ao falar.

?Quanto apostamos? ?Josh interveio estendendo a mão esquerda para Anne, que pegou uma mão de seu marido para não desmaiar.

?Eu te disse que tinha saído em busca de respostas ?Madeleine se intrometeu sem parar de bater palminhas.

?Pois, pelo que temos presenciado, não me cabe a menor dúvida de que as encontrou ?apontou Roger abraçando Evelyn, que não parava de suspirar diante da romântica situação.

?Eu os avisei que não havia necessidade de chamar o comissário. Meu grande amigo e futuro membro desta família, tem protegido Mary desde que a conheceu ?explicou Logan, que não podia apagar o sorriso.

O grande Philip! O amante de todas e de nenhuma tinha esquecido de sua primeira regra para encantar uma mulher: não beijá-la em público. E não era um público qualquer. Havia toda a família Moore e os marqueses de Riderland!

?Bom dia ?Philip disse se separando de Mary apenas o suficiente para cobri-la com seu próprio corpo e protegê-la de qualquer disputa, como Logan indicou.

?Bom dia? ?Sophia estourou com os olhos tão abertos que podiam sair disparados como balas. ?Só vai dizer essas palavras depois de passar uma noite com a minha filha?

?Bom dia a todos ?Giesler observou olhando para os Bennett e contagiando-se da diversão que ambos mostravam pelo ocorrido.

?Isto não é o que parece ?Mary finalmente falou, tentando suavizar, com um tom de voz relaxado e calmo, o drama e o embaraço do evento.

Mas não conseguiu nada. Ali havia nove pessoas que os olhavam como se houvessem cometido um assassinato. Nove! E ela tinha sido uma tola ao acreditar que todos tinham saído, que estavam sozinhos... Não sabia que em casa poderia acontecer o impensável? Já era um fato firme: quando Philip estava a seu lado, se esquecia de coisas tão primordiais como essa...

?Pois a mim me parece que Lorde Giesler te beijava apaixonadamente e, por como movia a cabeça e brincava com sua língua, respondia-lhe com o mesmo ardor ?o médico apontou divertido.

?Randall Moore! ?Exclamou Sophia. ?Como você pode zombar de algo tão vergonhoso para a família? Pelo amor de Morgana! ?Escapou. ?Beijando-se como dois desavergonhados diante dos marqueses de Riderland!

?Não se preocupe, Sophia ?Evelyn interveio para acalmá-la. ?Nossa família não fica escandalizada com coisas assim. Pelo contrário, estamos muito felizes que nosso querido Giesler tenha decidido se casar com uma mulher tão especial quanto Mary. Porque tenho certeza que vão se casar, certo? ?Perguntou a Philip em um tom que não admitia replica.

? Sim, excelência. Nossa pretensão era partir para Gretna Green para nos casar o mais rápido possível ?explicou Philip, agarrando a Mary pela cintura apesar da cara de espanto que ela pôs.

?A Gretna Green? ?Gritou Sophia a ponto de sofrer uma síncope.

?Não sei por que está tão nervosa, querida. Nós fizemos o mesmo há pouco mais de trinta anos ?Disse Randall estendendo primeiro a mão para Philip para cumprimentá-lo. Este respondeu à saudação e ao pacto silencioso que ambos criaram depois de soltá-la. Então o médico virou-se para sua filha e abriu os braços para recebê-la. Mary não pensou, saltou para ele chorando. ?Tem certeza mina filha? ?Ele perguntou em seu ouvido. ?Você sabe que eu não me importo com o que aconteceu durante sua ausência. Você cumpriu os...

?Tenho, pai. Acho que é a primeira vez na minha vida que estou tão certa de algo ?lhe respondeu ela fechando os olhos, sentindo tanta emoção ao abraçá-lo que não podia deixar de chorar. Sentiria saudades dele e sabia que, embora ele a tivesse perdoado por fugir para casar com Philip, ela jamais faria desaparecer esse espinho do seu coração.

Enquanto Mary permanecia nos braços de seu pai, Giesler se aproximou de Logan para receber esse abraço e as palmadas nas costas que costumavam se dar quando algo saía tal como esperavam. Beijou as mãos de suas futuras cunhadas. Inclusive Elizabeth, a quem todo mundo acreditava estar doente, se deixou tocar. Depois se virou para Sophia e esperou que ela reagisse. Depois de bufar como um cavalo depois de uma corrida, abraçou-o.

?Eu sei que a ama e que faz isso desde o dia em que apareceu nesta casa, mas se você a machucar, juro que te matarei ?sussurrou sem apagar o sorriso.

?Se isso acontecer, eu serei o primeiro a me colocar diante de você para que cumpra sua promessa ?respondeu calmamente.

Terminada a demonstração de afeto com sua futura sogra, Philip se dirigiu a Evelyn, que o agarrou em seus braços como faria sua mãe, se ela ainda estivesse viva. Finalmente, ele se virou para Roger. Ele estendeu a mão, como deveria tratar um marquês, mas Roger o abraçou e deu uma tapinha nas costas como Logan o fez.

?O segredo da felicidade ?ele sussurrou no meio daquele abraço ?é amar a pessoa ao seu lado, aceitando suas virtudes e seus defeitos...

?Como você quer o casamento? ?Anne perguntou. ?Quando será realizado?

?Nem pense que eu quero um casamento como o seu! ?Exclamou Mary horrorizada. ?Eu não sou você. Minha paciência tem um limite e acabarei estrangulando a costureira se ela me forçar a experimentar o vestido mais do que duas vezes.

?Tinha que fazê-lo ?Anne comentou enquanto Logan estendia o braço sobre seus ombros para aproximá-la ainda mais a ele.

?Sim, porque essa costureira é incompetente ?Mary disse enquanto observava Philip voltar ao seu lado. Embora não devesse, embora não fosse adequado, estendeu a mão direita em sua direção para agarrá-la. Quando o fez, ele a levou para a boca e deu-lhe um beijo suave nos nós dos dedos.

?Não, porque ela está grávida ?comentou sua mãe com um brilho nos olhos que nenhum dos presentes sabia como especificar se era por causa do anúncio da gravidez ou da emoção contida no casamento de Mary.

?Grávida? ?Mary perguntou atordoada. ?Desde quando? E...

?Oh, Mary! Não responderei suas perguntas ?Anne disse envergonhada com a insolência de sua irmã. ?Tenho certeza de que Lorde Giesler ensinou a você como criar uma nova vida...

Mary ficou tão corada que pensou que lhe apareceriam queimaduras nas bochechas. Era verdade que Philip lhe mostrou o que deviam fazer para criar uma vida, assim como lhe prometeu que não a deixaria tranquila até que isso acontecesse... Seis filhos! Ele queria seis meninos! Seis Giesler fortes e robustos que os ensinaria a seduzir mil corações femininos...

?Roger, se não se importa, preciso que converse com Sheiton ?Philip comentou. ?Quero que me consiga uma licença especial.

?Tenho certeza que Cooper a conseguirá amanhã mesmo ?Roger garantiu. ? E inclusive pode casar vocês, se não se importam.

?Será uma honra para nós ?Philip respondeu olhando para Mary novamente.

?Disse Cooper? ?Madeleine perguntou a Josh em seu ouvido, que ficou vermelha como um tomate por causa da raiva que esse nome despertava nela. ?Não será o pai de...?

?Não! ?Josh exclamou se afastando de sua irmã gêmea para se dirigir a Mary e abraçá-la novamente.

Só faltava sua mãe. Seu pai, suas irmãs, seu cunhado inclusive os marqueses a tinham abraçado para lhe desejar o melhor. Mas a mulher que lhe deu a vida, seguia olhando-a como se ainda não pudesse aceitar o que estava acontecendo. Por que não agia com ela como fez com Anne? Onde estavam as lágrimas de alegria, os abraços e os beijos?

?Mãe? ?Mary lhe perguntou dando um passo em direção a ela.

?Sempre soube que encontraria um homem que te faria feliz, mas não pensei que o encontraria tão rápido... ?comentou com a voz quebrada, como se fosse incapaz de dizer seu nome, esse que havia gritado em mil ocasiões, esse que sua filha tinha escutado e que lhe a tinha feito correr para se esconder. ?Minha filha, sentirei sua falta! ?Ela exclamou abrindo os braços. Uma vez que se abraçaram, ambas começaram a chorar e essa emoção foi transmitida aos outros. ?Minha preciosa rata de biblioteca encontrou o seu homem... Minha menina, como sempre disse, é uma verdadeira Moore e espero que seu marido a ame tanto quanto eu, minha vida...

?Pensei que, depois do espetáculo que oferecemos, lhe reprovaria que se converteu em uma Arany ?Philip disse ao seu futuro sogro.

?Por que você acha que minha filha mudou? ?Randall estalou, estreitando os olhos e mostrando a confiança própria de um membro Moore.

?Porque Mary me disse uma vez que seu sangue cigano é o que a leva a se tornar uma mulher irracional ?Giesler apontou sorrindo de orelha a orelha.

?Bem, está errada. Não foi o sangue Arany que me levou para o acampamento onde Sophia morava, nem o que me levou a tirá-la de lá para casar com ela, mas o meu ?Randall confessou orgulhoso. ?O sangue Moore é mais selvagem e quente que o da minha esposa, Philip. Só espero que você possa lidar com o desgaste físico e mental que uma mulher tão especial como Mary será.

?Como entenderá, após a confissão, me apresentarei à casa dos Sheiton o mais rápido possível. Quero me casar com Mary esta tarde para que o sobrenome Moore não perca sua verdadeira essência...

E os dois soltaram uma risada enorme enquanto mãe e filha ainda estavam se abraçando.


Epílogo

Brunswick, Alemanha, 16 de abril de 1883


Mary agarrou a mão que Philip lhe ofereceu e desceu com sua ajuda. Não havia nenhuma parte de seu corpo que não lhe doesse. Parecia que tinha feito a viagem sobre um camelo coxo em vez de em uma confortável carruagem. Mas não podia ficar no hotel, como lhe sugeriu seu marido. Ela tinha que estar a seu lado em um dia tão importante. Uma vez que seus pés tocaram o firme chão, levantou a cabeça e deu uma olhada ao seu redor. Como Valeria explicou, o eremita Edgar Albrecht Freiherr von Giesler, vivia nos arredores da cidade. Mas não foi muito exata ao denominar aquela residência como mansão. Ela o equiparava mais a um velho castelo medieval, só faltava que uma comitiva de cavaleiros com reluzentes armaduras metálicas saísse a recebê-los. Sem deixar de admirar as cinco torres, as mais de trinta janelas de meio arco e a entrada, que a comparou com a fachada da catedral de San Pablo, Mary caminhou até a porta apoiando-se no braço esquerdo de Philip.

?Esse é o estandarte da família ?Philip comentou apontando para uma enorme tapeçaria pendurada na torre à direita. ?Como pode ver, pelo tamanho da tela, os Freiherr von Giesler sempre estiveram muito orgulhosos de sua posição e poder.

?Exceto seu pai ?Mary apontou com diversão.

?Certo. Embora te imploro que não fale sobre esse assunto. Meu avô ainda não superou que meu pai rejeitasse a vida e o dever que o esperavam para fugir para Londres com uma cigana espanhola.

?Prometo que ficarei sentada e não abrirei a boca, exceto se tiver que responder alguma pergunta ?disse para tranquilizá-lo, mesmo que ela fosse incapaz de fazê-lo.

Depois de ler a última carta que Philip recebeu de seu avô, escrita com o próprio punho, queria arrancar os olhos com as mãos. Como podia ser tão estúpido ao pedir que encontrasse uma maneira de anular seu casamento para se casar com uma moça alemã? Acaso as mulheres inglesas não eram boas para os Von Giesler? Achou que ela não era suficiente para seu neto? Pois era! Desde que se casaram, se converteram em um matrimônio tão feliz como o de seus pais. Só esperava que, depois de conhecê-la, mudasse de opinião e se retratasse, ou usaria todas as desculpas possíveis para que Philip não retornasse a Brunswick até que o velho ogro falecesse.

Antes de chamar, Philip lhe dedicou um terno sorriso ao qual ela respondeu com um ligeiro assentamento. Estava nervoso e não era para menos. Uma vez que entrasse e seu avô consentisse o casamento, começariam uma nova vida longe de Londres e de todos os que amavam. Mas era o destino de seu marido, o único legado que herdou de seu pai e tinham que ser fortes para aceitá-lo.

?Preparada? ?Ele perguntou pegando a aldrava de metal.

?Sempre ?Ela garantiu.

Quatro golpes. Philip bateu na aldrava quatro vezes antes de a porta se abrir lentamente e recebe-los um criado vestido de preto rigoroso, como se vivessem em período de luto...

?Guten morgen,[9] Bert ?cumprimentou enquanto o deixava passar em primeiro lugar.

?Guten morgen, joker ?lhe respondeu o empregado com semblante sério. Se afastou para o lado para que os dois pudessem entrar e estendeu os braços para pegar os casacos. ?Ihr Großvater erwartet Sie im Büro[10]

?Danke schön[11] ?ele respondeu antes de pegar a mão direita de Mary.

Enquanto ele a dirigia para aquela área da casa, ela observou a austeridade e a frieza do lugar. Não deveria estranhar tanto, porque o lado de fora deixava muito claro o que poderia encontrar lá dentro. No entanto, não pôde deixar de se surpreender. Era um lar bastante frívolo, apático, solitário e masculino demais para o seu gosto. Percebia-se que uma mulher não morava ali há muitos anos. Segundo Philip, desde que a baronesa morreu, o barão se recusou a se casar novamente e insistiu em viver lembrando sua esposa. Continuou inspecionando o imenso hall. Não havia flores nos vasos, estes permaneciam vazios. As cortinas eram tão rudes que não permitiam a entrada de claridade, portanto, sua mente indicava, erroneamente, que havia anoitecido. Grades de madeira escura grossa e grossa, luminárias simples, castiçais de cobre... Solidão. Aquele lugar exalava tristeza, abandono e isolamento severo. O barão havia superado a ausência de seu filho? Não. Tudo o que olhava ao redor dizia que, após a fuga com a mãe de Philip, o mundo deixou de existir para o velho aristocrata. Mas se não superou essa separação, por que não aceitou o casamento e lhes pediu que retornassem?

?Você não tem a obrigação de entrar ?uma vez parado em frente à porta do escritório, Philip lhe sussurrou.

?Mas eu quero fazer isso ?ela garantiu a ele.

?Nesse caso, vamos entrar ?declarou antes de bater na porta com as juntas da mão direita.

?Herein[12] ?uma voz masculina respondeu em alemão.

Philip abriu e, como fez quando chegou, pediu que ela avançasse à sua frente. Com o queixo erguido, demonstrando tanto orgulho quanto o altivo barão mostraria, Mary deu vários passos em direção à sala para encontrar um velho, também vestido de preto, com a cabeça inclinada para alguns papéis que lia com a ajuda de óculos. Ele não era um ogro, como seus netos haviam descrito. Ele era simplesmente um homem que, após o passar dos anos e a experiência dessa solidão, tornou-se uma pessoa esquiva, pois ainda não havia se dignado erguer o rosto para cumprimentá-los.

?Komm rein. Bleib nicht da stehen[13] ?o homem falou sem olhar para eles.

?Ich komme nicht alleine [14] ?Philip respondeu depois de colocar a palma da mão direita nas costas de Mary.

?Wen hast Du mitgebracht?[15] ?enfim levantou o rosto. Quando a descobriu, seus olhos azuis, iguais aos de seu marido, se fixaram no ventre inchado de Mary. Philip não o informou sobre o filho que eles esperavam? Porque a evidência não podia mais ser escondida facilmente. Sua barriga cresceu tanto que não conseguia ver as pontas dos pés ?. Schwanger! Deswegen hast Du sie geheiratet?[16]

?Sprechen Sie nicht mit ihr in diesem Ton, oder Ich schwöre...[17]

?Wie wagen Sie es mich mit solcher Rücksichtslosigkeit zu behandeln? Ich bin kein Hund! [18]? interveio Mary dando um passo à frente.

?Fala alemão? ?Perguntou em inglês ao seu neto.

?Falo cinco idiomas, milorde. Então posso entendê-lo e responder com o que melhor lhe convier ?afirmou com tanta integridade que Philip emitiu sem querer um longo suspiro.

Edgar se inclinou lentamente na poltrona, juntou suas mãos e ficou por alguns segundos observando-os em silêncio. Valente. Para seu pesar, devia admitir que seu neto possuía a valentia que não seu pai teve, ao se apresentar diante dele com sua esposa. E grávida! Não havia mais possibilidades de romper o casamento, como lhe pediu em sua última missiva. Devia supor que os futuros Von Giesler possuiriam sangue inglês e não alemão como sonhou.

?Tem intenção de passar muito tempo nos observando dessa maneira? ?Mary cutucou com raiva.

?Estou tentando assumir que meu neto se casou com uma língua afiada inglesa ?Edgar respondeu fascinado pela ousadia da mulher.

O que lhe tinham explicado sobre as mulheres inglesas? Que eram fracas, que sempre estavam doentes e que, por sua atitude fria, os maridos buscavam o calor de uma amante. Isso era impensável para os Von Giesler! Eles se caracterizavam por amar suas esposas, por cuidar delas e protegê-las até que parassem de respirar. Mas pela forma de falar daquela jovem e pelo que carregava em seu ventre, talvez fosse a única inglesa que não sofreria contínuas enfermidades e manteria a seu neto em sua própria cama.

?Nesse caso, vou me sentar, porque deduzo que levará mais tempo do que minhas pernas podem suportar. ?E depois disso, foi até as cadeiras colocadas em frente à mesa e se sentou.

?Nós não viemos para discutir, vovô ?Philip finalmente disse, que ainda estava impressionado com o comportamento de sua esposa. ?Quero que saiba que não cumprirei sua última ordem e que rejeito o título.

?Rejeitá-lo? ?Retrucou o velho com surpresa.

?Sim, isso mesmo que disse ?ela se intrometeu esboçando um enorme sorriso.

?Não sou surdo, jovenzinha ?Edgar a repreendeu por sua falta de decoro. ?Apenas confuso ?ele acrescentou tirando as mãos do estômago para colocá-las sobre a mesa.

?Mil desculpas ?lhe disse se concentrando no tremor que a mão esquerda do velho mostrava.

?Por que vai rejeitá-lo? ?Perguntou a Philip que estava ao lado de sua esposa.

?Não vou me separar dela. Não sou como meu pai. Vim até aqui para lhe deixar claro que nada, nem ninguém me afastará da mulher que amo. Se quiser que ostente o título de barão, ela se tornará baronesa ?admitiu solenemente. Palavras que fizeram Mary se sentir tão feliz que ela quase se levantou e o beijou na frente do velho ogro, mas ela se conteve. Não por causa da possível falta de respeito, mas porque seus pés realmente doíam.

?Ela não se adaptará a este lugar ?comentou Edgar com tom reflexivo. ?É difícil que uma mulher inglesa não decida, em algum momento de sua vida, retornar a sua terra ?colocou como desculpa. ?Em vez disso, uma mulher que cresceu...

?Desde quando tem esses tremores? ?Mary perguntou, se levantando da cadeira. Os leves movimentos involuntários daquela mão lhe despertaram tanto interesse que ela se esqueceu de suas dores. ?São muito contínuos, certo?

Sob o olhar atento do marido e do velho atônito, ela circulou a mesa, ficou ao lado dele e pegou sua mão.

?Me solte! ?Edgar exclamou enquanto tentava se livrar do aperto, o que ele não conseguiu porque sua fraqueza o impediu.

?Tem paralisia agitante[19] ?lhe disse a seu marido depois de apalpá-lo muito lentamente os dedos. ?Ele não pôde escrever as últimas cartas, Philip. Alguém o fez por ele.

?Sim, meu sobrinho Dagobert ?Edgar confessou perplexo ?mas escreveu tudo aquilo que lhe ordenei. Não posso permitir que destrua a integridade que caracterizou os Freiherr von Giesler durante gerações. Não somos como esses ingleses que mostram uma conduta irrepreensível e logo sucumbem às perversões ?alegou solenemente.

?¿Perdeu mais alguma habilidade? Basta que eu saiba se esqueceu algumas lembranças sem importância... ?insistiu sem se afastar do velho e esquecendo as duras e nocivas palavras.

?O que é tudo isso? ?o barão gritou olhando para seu neto.

?Isto é minha esposa, vovô. Uma mulher que roubou meu coração com sua inteligência. Possivelmente não houve nessas gerações uma esposa tão erudita como a minha ?respondeu com orgulho. ?E eu entendo que tenho medo. Geralmente, causa esse efeito quando anuncia que se matriculou na Universidade de Halle[20] para obter um diploma médico.

?Universidade? Uma mulher? ?Soltou chocado. ?Por quê?

?Oh, porque a vida de esposa inglesa me aborrecia! ?respondeu zombando.

?Uma baronesa diplomada! ?Edgar exclamou mais surpreso se pudesse.

?Lembro que meu marido veio vê-lo para rejeitar o título e só posso me tornar uma baronesa licenciada se você consentir em nosso casamento ?concluiu com sarcasmo.

?Que meus olhos verão antes de fechá-los para sempre! ?o velho soltou horrorizado.

Então Mary pegou a mão trêmula novamente e a colocou na barriga. O ser dentro dela continuou se movendo, inquieto quando ela transmitiu sua ansiedade.

?Verão o que você quiser ver ?lhe disse com tom carinhoso. ?Depende do que desejou durante toda a sua vida. Certamente foi muito duro viver em solidão e se amaldiçoou pela decisão que tomou seu único filho. ¿ Quantas vezes quis voltar no tempo para mudar a discussão que manteve com ele? Porque tenho a certeza de que não houve um único dia que não se arrependa de tê-lo deixado partir. Perdeu o nascimento de seus netos, seu carinho e todas as experiências que tiveram por não desistir de seu orgulho. Quer que a história se repita? ?Enquanto ela falava, Edgar podia sentir o movimento daquela criatura em sua mão, ele até pensou que, por alguns instantes, havia parado de tremer para notar o tremor daquele pequeno ser. Ele olhou para Philip, depois para a mulher e acabou fixando seus velhos e cansados olhos naquela grande e agitada protuberância. ?Se você aceitar o casamento, preencherei esta casa com vida e lutarei com meu marido para que a herança de sua família persista. Não tema o que acontecerá entre nós, juro que meu marido não sairá da cama sem conseguir o que precisa e até agora, sempre desfrutei de uma saúde muito boa. Me cansava tanto como a você esse comportamento débil que muitas esposas se obcecam em ter.

?E deixar a Alemanha? ?Edgar perguntou olhando-a nos olhos.

?Exceto visitar minha família, não vou me afastar de você ?ela declarou sem rodeios.

?Você me promete??O velho perseverou finalmente se levantando.

?Eu prometo ?ela garantiu antes de abraçá-lo e olhar para o marido para sussurrar algumas palavras que ela ainda não havia dito: «Te amo».


Progressão do próximo livro Das irmãs Moore:

 

A batalha de Elizabeth


Londres, 15 de fevereiro de 1884.


Ele abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente para ela, os pesadelos se foram e em seus sonhos havia apenas paz e sossego. Puxou o lençol para o lado, sentou-se e ouviu o silêncio oferecido dentro de casa. Sua mãe, junto com as gêmeas, partiu cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo o pai, o parto estava se aproximando e ninguém estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett.

Elizabeth pôs os pés no chão e se levantou. Ela, antes de ir para a reunião de família, teve que terminar de consertar os crisântemos para fazê-los chegar à florista que os vendia. Enquanto caminhava até a janela, para abrir as cortinas e contemplar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança que sua vida havia dado desde a última visita de Mary. Além de não ter esses sonhos nauseantes, recuperou a força para sair de seu quarto, sua casa e andar pelas ruas com a cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, a razão pela qual havia mudado tanto. Parecia que sua parte cigana havia subido das suas cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, ela se sentia feliz consigo mesma.

Ela pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Havia nuvens e pelo movimento dos galhos das árvores também vento. Como se estivesse sentindo o frescor lá fora, colocou as mãos no pescoço da camisola e a levantou. Mas, na realidade, apenas simulou porque não estava com frio. O que ela via dentro dela era algo muito estranho, tanto que a deixou perplexa. Confusa por essa sensação tão estranha, começou a mover os pés para dirigir-se para o banheiro. Entretanto, algo que observou pelo canto do olho a instou a colocar-se de novo em frente à janela. Uma pipa. Alguém, aproveitando o vento, fazia voar uma pipa de cor vermelha. Mas parecia descontrolada, pois ia de um lado para outro à mercê da brisa. Depois, começou a girar em círculos, depois se dirigiu a ela como se fosse o projétil de uma bala. Fechou os olhos, assustada ao imaginar o impacto que esta teria no vidro, mas os abriu ao não escutar nada. Apoiou as mãos no parapeito e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então, a pipa voltou a aparecer diante dela, nesta ocasião sobrevoava a residência vizinha. Seu olhar não podia afastar-se desse brinquedo que algum menino soltaria assustado, e continuou a observá-la até que se enredou em uma das árvores que rodeavam a que um dia foi a residência dos Bohanm. Sua curiosidade aumentou quando descobriu uma figura caminhar até essa árvore. Tratar-se-ia do menino ou do pai deste? Eles seriam os donos? Porque todo mundo falava sobre a venda da fazenda, mas até o momento ninguém rondava pelo lugar. Entretanto, ali havia alguém. Essa figura, que no princípio era desfocada, foi ficando cada vez mais nítida. Era um homem, de cabelo dourado. Estava em mangas de camisa e despenteado, como se tivesse dormido com essa mesma roupa. Sua necessidade de descobrir de quem se tratava aumentou, até o ponto que tirou o trinco e abriu a janela. Seu cabelo louro e solto se moveu pelo vento, como fez a pipa. Elizabeth se inclinou para frente até que pôde vê-lo com mais clareza. Seus olhos azuis se abriram de par em par ao contemplar um homem tentando escalar o tronco da árvore. Um que conheceu na última visita de Mary, o irmão de seu cunhado: Martin Giesler. Um sorriso repentino cruzou-lhe o rosto ao apreciar que não era tão hábil em trepar pelos troncos como Josephine. Antes de levantar um pé, fechava os olhos, como se estivesse calculando a distância exata para não cair. Depois os abria e fixava a ponta do sapato na região que pensou correta. Demorou mais de dez minutos para sentar-se no ramo grosso que havia sob a pipa. Estendeu as mãos para cima, tentando alcançar a linha com a ponta dos dedos e então, no que durou um piscar de olhos, Eli foi testemunha de como se partiu o ramo onde ele permanecia sentado, de como empurrou seu corpo para cima, para agarrar-se ao ramo que tinha sobre sua cabeça, e de como movia as pernas. O pobre coitado parecia um macaco fazendo um espetáculo de circo. Uma vez que saltou ao chão e confirmou que não estava ferido, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e soltou uma sonora gargalhada. Ao ouvir-se, levou as mãos para a boca e emudeceu a risada.

Já não ouvia o riso desde que aquele homem lhe fez mal...

 

                                                                  Dama Beltrán

 

 

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