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Series & Trilogias Literarias
O maior tolo é o que passa a vida buscando liberdade absoluta, pois é a morte a única saída da prisão chamada destino. Em meio às esparsas nuvens brancas que uma vez ou outra cortavam-lhe o caminho, o homem alado fazia sua viagem, sempre inconformado por não conseguir assobiar. Por longos períodos a fio ele bateu suas asas tomado pelo completo tédio, pois não podia sequer sibilar suas canções favoritas, gravadas na memória desde uma época saudosa, quase pueril. O sopro dos seus lábios não podia contra a rajada constante de vento no rosto. E não era para menos, a velocidade impelida pelas asas que o erguiam rivalizava com a dos mais velozes gaviões-imperadores. Em termos de medida, os mais de oito metros de envergadura eram quase do tamanho das asas de um gavião-imperador adulto.
Após vagar sem rumo por uma quantidade considerável de locais, conhecidos previamente ou não, o homem alado decidira rumar para seu destino final, e dentro de poucos instantes ele veria a terra sagrada despontar no horizonte, acabando com a plenitude azul da água salgada do mar. Enquanto isso não acontecia, ele se divertia girando a cabeça durante o voo. A cada mudança de ângulo, o couro cabeludo era acariciado pela força do vento, que rearranjava os cabelos, fio a fio, num constante vendaval. Ele sentia uma felicidade engrandecida pelo egoísmo sempre que os fios dançavam ao sabor do vento. Claro, o prazer em si não era extraordinário, mas só de saber que ele era o único homem vivo ou morto a ter experimentado aquilo, ele se sentia um pouco mais felizardo.
Foi depois de se distrair observando sua sombra cortar as águas turbulentas de um redemoinho que o homem alado levantou o rosto e finalmente avistou a última parada. O lugar de muitos nomes, às vezes era a terra sagrada, outras o lar dos monstros, mas independente da fama que o precedia, todos conheciam o lugar pelo seu nome original: Cesaro.
Sobrevoando uma praia estreita, espremida entre a força da água e a imponência da floresta, o viajante avistou, mesmo sob a luz forte do sol quente, a imensidão escura que todos temiam. As famosas terras de magia e terror, que originaram relatos obscuros e permeados de palavras incertas sobre criaturas e situações absurdas. De cima da gigante área verde, o homem alado identificou, por entre as copas das árvores, um solo virgem, dono da mais bruta selvageria, da natureza primordial, de tempos anteriores à ocupação humana.
Sem conter a excitação, ele galgou ares mais altos. Passou pela umidade das nuvens mais distantes e atirou-se para o lugar mais limpo que encontrou, de onde tinha visibilidade excelente das terras do Cesaro. A extensão de terra assustava, principalmente alguém que passara um tempo tão longo isolado entre o céu e o mar. Batendo as asas para se manter equilibrado, ele ponderou:
— Hora de me situar... Se eu vim do mar, então vim do oeste. Agora para chegar no templo tenho que virar à esquerda. Sei que fica no lado mais norte das terras do leste, espero não demorar muito para achar, ou terei que esperar até amanhã. — Dito isso, rumou com vontade para baixo, impulsionando ainda mais a queda com suas asas, visando o extremo norte.
O homem alado percorreu o céu seguindo a longa faixa estreita de areia da praia no sentido norte. Durante o voo ele viu a geografia mudar; pedras escuras permeando o branco da areia como sementes soltas na terra, esperando para crescer. E mais adiante elas já estavam crescidas. A praia sumira completamente e as ondas do mar agora se chocavam diretamente com um paredão de pedra que aumentava sua altura quanto mais se ia para o norte.
Quando o sol se preparava para descansar abaixo do horizonte e o homem alado considerava fazer uma pausa para descansar e se alimentar, a floresta mostrou seu limite. De um lado um enorme penhasco que apresentava ao mar a rigidez de pedras primevas. Do outro, o viajante vislumbrou os campos sagrados, ditos serem o lugar escolhido por Sauza para descansar e perecer.
Em contraste com a inquietação arrepiante que vinha sentindo até então, uma atípica paz de espírito aflorou no corpo do viajante; como se a floresta macabra povoada por aberrações encontrasse na sua vizinhança o paraíso, onde gatos da fortuna faziam da grama verde a sua cama, e mesmo o habitante mais feroz não demonstraria mais agressividade que uma vaquinha domesticada. Ele chegou ao lar dos filhos do zodíaco.
Baixando altitude e aproveitando os últimos raios de sol alaranjado, o homem alado começou a fazer uma busca aérea. Até então, nada se movia pelos campos à sua frente, mas ao olhar além de uma colina alta ele notou um sinal de que alguém já habitara aquele trecho: um templo a céu aberto.
Curioso, logo intentou visitar o local, mas o amontoado de pedras altas dispostas de forma não natural perdeu a sua atenção quando certo barulho lhe chegou aos ouvidos. Era o som inocente de risadas de crianças. Atiçado, o homem olhou para todos os lados e julgou certamente que a fonte do barulho era um bambuzal próximo dali. Com uma leve batida de asas ele pairou cautelosamente sobre a mata de bambus. A vegetação fechada não lhe permitiu ver o que acontecia lá embaixo, mas já tinha certeza de que eram mais de uma, e indubitavelmente estavam em movimento.
— Espera, Janela! — Um gritou. Um impulso de asas. — Ela tá indo por aqui! Vem, Enzo! — Mais um impulso. Seguindo aos poucos, guiado pelas vozes, o homem alado chegou até a borda do bambuzal e, do meio do mato, se apertando entre os bambus, ele viu sair uma pequena criança, sem nem cinco anos de idade. Era uma menina.
II
— Enzo, ela foi por aqui, vem! — O menino gritou, mesmo sem necessidade, pois Enzo seguia bem atrás dele – e até passaria na frente se o bambuzal permitisse, mas também não foi necessário – já estavam prestes a sair.
Fora do bambuzal os dois meninos pararam, sérios. À frente deles estava Janela, a menina que brincava se escondendo deles no bambuzal. Ao lado dela viram uma figura estranha. Um adulto. Não importava tanto o fato de ele ter enormes asas saindo das costas, só estar ali já era motivo para desconfiança. Enzo tomou a frente.
— Quem é você? O que tá fazendo com a Janela? — Perguntou com a voz alta e as sobrancelhas franzidas.
— Não estou fazendo nada com ela. Não é, Janela? Ele olhou para a menina, parada ao lado dele, absolutamente tranquila. Ela confirmou com a cabeça. — Viu só? Meu nome é Ivan, qual é o de vocês?
Ainda relutante, Enzo respondeu pelos dois. Ele era o mais velho, afinal:
— Meu nome é Enzo, sou o filho de Capricórnio! — Exclamou com uma destreza anormal para uma criança de seis anos. — Eles são meus irmãos mais novos, Bato e Janela.
— Que nome engraçado, o de vocês dois. Qual a constelação? — Janela virou-se com boa vontade, mostrando algumas pedras verdes encrustadas nas costas. Ivan deu uma olhada no que pôde, mas muitas pedras estavam encobertas pelo vestido surrado da menina. — Eu não sou muito bom em identificar constelações. Qual é? — Ele perguntou.
— Tolo. — A menina respondeu.
— Touro? Muito bem! E você, Bato? — Ainda assustado, Bato permaneceu calado, protegido por Enzo à sua frente.
— Ele é o filho de Sagitário.
— Não precisa ter medo de mim. — Ivan disse, colocando a mão na cabeça de Janela e afagando seus cabelos. — Eu quero ser amigo de vocês. De verdade!
— Eu já falei com adultos, viu? Não sou medroso igual a esses dois.
— Eu num sou medosa, Enzo! — Janela gritou.
— Tudo bem, Enzo. Eu entendo, você é o responsável pelos seus irmãos e isso é muito bom. Mas quem cuida de vocês? Vocês não podem estar vivendo sozinhos. — “Podem?”, pensou Ivan ao terminar de dizer a frase.
Silêncio.
— Vamos combinar uma coisa: se vocês me levarem até a sua casa eu deixo vocês voarem nele. — Ivan levantou os braços e as asas se abriram e se separaram do homem. Uma enorme placa óssea – maior até que o próprio Ivan – unia as duas asas gigantes. Ivan estava na verdade deitado sobre a placa todo tempo em que voava, seguro pelas axilas no ponto de união da placa com as asas. A largura era ajustada como num abraço ao corpo de Ivan e o comprimento por uma torção que promovia uma dobra entre as pernas, fazendo do homem alado um curioso embrulho.
— Nossa! — Bato exclamou, impressionado com o tamanho das asas.
— Qual o nome desse bicho? — Enzo perguntou. Janela já levantava os braços para alcançar as penas.
— O nome dele é Reimi, apesar de eu não saber realmente se é ele ou ela. — Respondeu risonho. As crianças esqueceram todos os seus receios e se aproximaram de Ivan e Reimi.
— Que legal! — Exclamaram os três, observando Reimi parado, a ponta inferior do corpo ósseo fincada no chão servindo de apoio.
— Como é? — Perguntou Enzo. Bato subiu com ele e os dois se agarraram ao corpo de Reimi.
— Olha só, é meio macio! — Disse o mais velho, apalpando o corpo de Reimi. Ivan levantou Janela – que agitava os braços, afoita – e a colocou com Bato, que fez questão de segurar forte a irmã caçula.
— Preparados? Vou contar até três e Reimi vai levar vocês para o alto. Um...
Enquanto as crianças ainda trocavam olhares de expectativa entre si, com sorrisos ansiosos nos rostos, Reimi abriu as asas e decolou num átimo, tirando gritos desesperados dos três pequenos. Janela começou a chorar e apertou Bato num abraço desajeitado, procurando por qualquer pontinha de segurança que seu irmão pudesse oferecer.
Os gritos perduraram até certa altitude, quando Reimi parou de subir e começou a planar. As primeiras batidas de asas assustaram, mas quando o transporte passou a bailar graciosamente nas correntes de vento, as crianças ficaram mais confiantes, e até se espichavam para ver a paisagem. Janela cessou seu choro.
— Por Sauza! Isso é mais divertido que andar no Ignis, Enzo. — O mais velho não gostou de ouvir aquilo, mas ficou quieto. Os três sentaram no corpo de Reimi e contemplaram o belo pôr-do-sol no horizonte oceânico. Era uma das cenas preferidas de Enzo. O garoto sempre se deixava levar pela beleza do espetáculo alaranjado.
— Que boito. — Janela disse, encerrando as vozes até o sol desaparecer por completo.
— Ei, desçam! — Ivan chamava lá embaixo. Reimi planou em círculos, descendo até chegar próximo a Ivan, e quando percebeu que terminariam o passeio aéreo, Enzo começou a puxar Reimi para cima. Após notar que seu esforço não fazia diferença alguma e que continuavam perdendo altitude, ele se inclinou para o lado e, avistando Ivan, propôs:
— Ivan, eu levo você até nossa casa, mas deixa a gente ficar com o Reimi um pouco mais! Você segue a gente! — Bato riu da esperteza do irmão e Janela riu junto, sem realmente saber o porquê.
— Isso não é justo! — Gritou Ivan. — Não vou conseguir acompanhar vocês!
— Monta no Ignis! Ele é bem rápido.
— Ignis? Que Ign... — Ivan foi interrompido por um barulho estranho seguido de um trote curto. Virou-se para trás e deu de cara com um íbex adulto, com chifres enormes retorcidos para o alto. O animal de pelo avermelhado se aproximou e ofereceu montaria. Ivan subiu no lombo do bicho, meio atrapalhado, e seguiu cavalgando no rastro dos filhos do zodíaco.
III
— Eca, essa maçã está ruim! Não come nada que tá aqui, Janela. — Bato comentou. O filho de Sagitário era o mais equilibrado dos três. De cabelo quase loiro, tinha pele muito branca, olhos claros da cor verde e um nariz fino arrebitado, que dava um ar delicado ao menino de cinco anos, mas ele nunca perdia uma aventura; sempre cuidadoso e precavido, jamais hesitaria em salvar sua irmã caçula, mesmo que precisasse pôr sua vida em risco. Com Enzo a história era diferente, teria a mesma solicitude com o irmão mais velho, porém este negaria qualquer ajuda de um irmão mais novo.
— Vocês não deviam nem estar mexendo nessas coisas! Larguem tudo. Janela, o que é isso que tá na sua mão? — Enzo colocou ordem. O menino tinha a pele morena e cabelos muito pretos. Apresentava uma cicatriz retangular no canto direito da testa. Era apenas um ano mais velho que Bato, mas seu amadurecimento era fora do comum. Enérgico e determinado, às vezes beirava o egoísmo com seu individualismo latente.
— Água. É Água, Enzo. — A filha de Touro continuou balançando o cantil que encontrara preso a Reimi. Janela era a mais teimosa do trio. Talvez fosse uma característica normal da idade, mas os irmãos achavam que não, ela era realmente cabeça-dura. E não se importava quando tentavam alertá-la do seu gênio problemático, ela sempre jogava os cabelos castanhos na frente do rosto e saía correndo sem dar atenção.
Ivan assobiou para Reimi assim que avistou uma grande tenda armada mais à frente. As asas gigantes desceram, e dessa vez nenhuma argumentação fez Ivan mudar de ideia. “Que droga, tava tão legal!”, “Muito obrigado, Ivan.”, os meninos disseram ao descer. Janela apenas abriu os braços para Ivan, pedindo colo para descer. Com os três no chão, Ivan retomou o questionamento:
— Então é aqui que vocês vivem? Aquele homem cuida de vocês? — Ivan notou uma figura masculina dentro da tenda através da janela. Ele retornou o olhar e desapareceu dentro da casa, rumando na direção da porta de entrada, que não estava visível ainda para o quarteto.
— Sim, é o Galope, vem conhecer ele. — Bato saiu correndo na frente. Ivan seguiu com os demais, mas quase parou de susto quando viu o tal Galope. O homem não era um homem. Era uma criatura híbrida, famosa apenas por existir no imaginário de crianças e de mentes tresloucadas. Galope era um centauro.
O anfitrião sabia intimidar. Com os braços cruzados, Galope aguardou calado até o visitante dizer a primeira palavra. O rosto carrancudo, com espessas sobrancelhas e barba negra volumosa não parecia dar boas vindas a Ivan. A musculatura colossalmente desumana terminava o trabalho de espantar gente nova. O semblante ficou mais amigável, no entanto, quando Bato foi levantado e cumprimentou o centauro com um caloroso abraço filial, ficando em seguida nas costas do centauro, de pé.
— Galope, espero não estar incomodando. Meu nome é Ivan e venho de muito longe para encontrar os caídos do céu. Eu vim pelo céu e avistei as crianças do alto. Conheci os três e os convenci a me trazer até aqui, espero que não se importe. — Ivan resolveu calar a boca. Estava quase assumindo uma postura de arrependimento com aquele palavreado, e não se sentia assim; mas era esse o sentimento que aflorava quando as pessoas viam Galope – quando não era o medo na sua forma mais pura.
— Meu nome é Adônis. Apenas meus amigos me chamam de Galope. Me responda uma coisa, senhor Ivan. — O centauro fez uma pausa para olhar as estrelas, que já estavam numerosas apesar da hora. — É você o homem que veio do céu para salvar Maciaan?
— Minha intenção é ajudar, sim, mas não sou arrogante ao ponto de achar que posso fazer alguma coisa sozinho. Por que esta pergunta? Existe alguma profecia sobre mim?
— Não, nada dessa natureza. Apenas deduzi pela lança dourada que carrega nas costas. Posso olhar?
Ivan não gostou do desconhecido visar a lança tão abertamente, mas sabia que sua arma não era uma peça comum, e que atiçava a curiosidade nos olhos de pessoas especiais. Um objeto de poder incomensurável, que lhe foi confiado para restaurar o equilíbrio de poder no mundo, ao mesmo tempo em que não aparentava nada de diferente de outras lanças. Pelo contrário, parecia até ser uma mera peça de colecionador, um adorno para salões de reis e grandes ferreiros.
— Claro, pode sim. — O homem entregou sua arma para o centauro. Mais de perto pôde ver que o monstro tinha um ar verdadeiramente maligno e visceral. Teve pena dos homens que tiveram que enfrentar tal criatura. Deduziu pelas cicatrizes cobrindo o corpo que ele já participara de vários confrontos.
— Engraçado. Essas inscrições, a cor dourada... Eu nunca tinha visto a lança, mas imaginava bem diferente desse brinquedo. E pensar que essa coisinha leve é a única arma indestrutível no mundo. — Ivan estranhou o centauro saber tanto sobre a sua lança. Lembrou-se de seu finado mestre. Quando o conheceu, ele também se apresentou de forma altiva, demonstrando saber muito mais do que aparentava.
Adônis devolveu a arma para Ivan e completou com um sorriso amigável no rosto:
— Estou preparando uma sopa, venha e fique conosco, deve estar com fome. E pode me chamar de Galope. Vamos, gente!
As crianças correram para entrar na tenda espaçosa. Enzo foi à frente e entrou pela porta, Bato escorregou de Galope e foi logo atrás. Janela, por outro lado, foi por um caminho que nenhum dos outros percorreu. Ela foi até a janela lateral da tenda, onde caixotes empilhados formavam uma escada tanto do lado de dentro quanto de fora da tenda. A menina subiu os degraus e entrou pela janela.
— Ah, por isso o nome dela... — Ivan riu.
— Agora está tudo bem, ela consegue subir. Imagine quando era um bebê... Tínhamos que passar junto com ela, senão chorava a noite toda.
IV
Como Ivan já esperava, na tenda não havia luxo algum. Boa parte do chão era coberto com um tapete grosso, o restante era terra batida; mas algo que surpreendia era a limpeza. Olhando a tenda de fora não se podia julgar que seus habitantes levavam higiene tão a sério. Do lado esquerdo ficava um fogão de pedra, e esperando o fogo, acima dele, estava uma panelona de ferro tampada. Do lado esquerdo viam-se caixas empilhadas – algumas com frutas e verduras – emparelhando com grandes vasos com água. No canto posterior, num amontoado, esteiras de palha estavam dobradas.
— Sei que não será fácil passar a noite aqui, mas é o que podemos oferecer. — Disse Galope.
— Não tem problema algum! Não sou nenhum herdeiro palaciano. Acreditaria se eu dissesse que já morei até em uma colmeia?
— Colmeia. É casa de abeia. — Janela tentou entrar na conversa.
— Aqui no Cesaro nós até temos casas, mas devem estar imundas! Podemos limpar amanhã e você vai para lá. — Galope continuou. Parecia saber que o viajante não vinha fazer uma visita rápida. — Elas ficam lá para os lados do templo. Eu é que sempre vivi assim, em tendas, sempre fui nômade. Aí as crianças apareceram e acabaram se acostumando também.
— Tudo bem, não tem problema. — Ivan respondeu sinceramente. Não se sentia incomodado de viver ali e não queria dar trabalho. Conseguia se virar até com menos, afinal ele mesmo já fora nômade e, de certa forma, ainda era um.
— Enzo, você me ajuda a terminar a sopa. Bato vá dar um banho em Janela. — O centauro ordenou.
Os dois menores saíram para a parte detrás da tenda – Janela novamente evitando a porta – onde havia uma banheira de madeira e alguns barris d’água.
Quando os dois voltaram do banho, Ivan acabava de colocar as últimas batatas descascadas e cortadas na panela. Galope pôs a tampa e fez sinal para Enzo. Em seguida pediu a Ivan que se afastasse. Sem entender o motivo, Ivan deu três passos para trás. Enzo fez um movimento para cima com o braço e no lugar que Ivan estava brotou um fogo repentino que chamuscou parte do chão de terra e se expandiu rapidamente, gerando calor e fumaça. Das partículas negras e carmesins apareceu Ignis, o íbex pelo avermelhado.
— Uau... — Ivan não notou que sussurrava, impressionado. Galope colocou madeira e um pouco de palha no fogão e Ignis, com uma docilidade totalmente oposta à sua imagem selvagem, pôs a pata dianteira no fogão. Do casco emergiram pequenas labaredas que incendiaram a madeira. O animal saiu comportadamente pela porta, abaixando os enormes chifres na saída.
— Viu só? Até o Ignis já aprendeu a sair pela porta e a Janela não consegue. — Disse Enzo, arrancando risos dos demais. Ivan ainda estava impressionado demais para rir da piada, e caminhou para o lado, seguindo Ignis com os olhos. O animal deitou próximo a Reimi, que estava quieto, de asas fechadas, verticalmente hirto à frente da tenda.
— Que impressionante. Eu já vi muita coisa, mas isso foi muito lindo. Parabéns, Enzo. — O garoto ficou sem graça com o elogio de Ivan.
— Ivan, Ivan. Por que não conta as coisas que viu para a gente? Lá no alto eu consegui ver muita coisa, o Reimi é muito bom para viajar. — Bato disse. Os olhos puros não deixavam transparecer se o garoto falou o que lhe veio na cabeça ou se apenas estava com vergonha de pedir abertamente para dar um passeio noturno em Reimi.
— Depois ele vai contar, mas agora não é hora. Ivan, se quiser tomar um banho, fique à vontade, a banheira fica lá atrás. E você, Enzo, se quiser banhar, vá logo depois dele ou vai perder a sopa.
Ivan não acreditou na hospitalidade com que fora recebido. Estava tão acostumado a arranjar problemas por onde fosse, que ser recebido tão bem era quase um alívio para seu corpo e espírito. Enquanto tomava banho, presenciou um show de luzes natural, o céu do Cesaro lhe mostrou uma chuva de estrelas cadentes como ele nunca antes vira, e a lua – ah, a lua – nunca estivera tão resplandecente.
V
Após a refeição, quando a saciedade toma conta dos corpos e permeia de preguiça até o espírito mais trabalhador, Enzo abriu as esteiras em cima do tapete e todos deitaram, com exceção de Galope, que ficou inquieto na porta, olhando para o alto.
— Conta istoia. — Janela pediu, sacudindo o ombro de Ivan.
— É, você falou que viu muitas coisas diferentes. A gente quer saber! — Bato reforçou.
— Se prepara, meu amigo. Esses aí não dormem fácil não. E se a história não for boa, vai passar a noite toda ouvindo reclamações. — Galope avisou, sem perder a concentração que tinha no céu.
— Você não quer ouvir, Galope?
— Ele não precisa, já sabe histórias demais. — Enzo falou. — Ele é muito velho, sabia? Viajou por Maciaan todinha.
— E tem o livro que ele lê. Do Tiestes. — Bato completou.
— Quem é Tiestes? Mora aqui com vocês? — Ivan perguntou.
— Não, ele foi um dos filhos do zodíaco. De Capricórnio. — Enzo parecia orgulhoso em dizer aquilo. “Capricórnio? As histórias que meu mestre contou sobre ele não eram nada boas.”, Ivan pensou. — Ele deixou um diário cheio de histórias, mas a maioria é sobre os filhos do zodíaco de antes.
— Tolo era guigante. — Janela disse.
— É gigante! Gi! Não gui! — Enzo corrigiu.
— Bom, esperem um pouco aqui, meninos. — Ivan levantou e foi até Galope. — Tem alguma coisa errada, Galope? Você parece meio preocupado.
— É o céu. Está muito agitado.
— Eu percebi, aqui no Cesaro ele parece tão mais limpo...
— Não é isso. Realmente, aqui é mais fácil ver as estrelas, mas olhe só! — Galope apontou para riscos brilhantes cruzando o céu noturno. — Isso não é normal, é um sinal.
— Sinal de quê? — Ivan perguntou. Não imaginava possível ter estrelas cadentes passando avisos.
— Elas estão sinalizando que está vindo mais um. Mais uma criança vai cair do céu.
Ivan se empolgou com a informação, mas Galope não intentava levar o hóspede a lugar algum:
— Ivan, eu vou ao templo, tenho que estar lá para receber o novo filho do zodíaco. Por favor, cuide das crianças essa noite.
— Tudo bem, mas se precisar de ajuda, sabe que estou à disposição.
— Não precisarei, só vou esperar um bebê aparecer. Mas obrigado assim mesmo. Qualquer coisa, pergunte ao Enzo, ele já conhece bem tudo por aqui, de manhã eu devo estar de volta. Boa noite. Boa noite, pequenos! Se comportem com o Ivan!
— Tchau! Até mais, Galope! — As crianças se despediram. Ao que parecia, não se importavam de ficar sozinhas à noite, nem mesmo Janela.
Ivan retornou para dentro e apagou a pequena fogueira no centro da tenda ouvindo o trio contestar.
— Agora está muito escuro, como vai contar a história pra gente? — Bato argumentou.
— Eu vou trazer o Ignis! — Enzo se levantou, mas logo foi detido por Ivan.
— Calma, seus apressados! Olha só como a noite está bonita. Minha história precisa de uma luz diferente para ser contada. — Ivan abriu a janela mais próxima ao lado em que estavam deitados. Somados à baixa luminescência das costas das crianças, os feixes de luz fraca da lua entraram e aos poucos os três adaptaram a visão à iluminação delgada.
As crianças deitaram, olhando para Ivan. Então o novo integrante da família contou a sua primeira história:
— Era uma vez, numa ilha muito, muito longe daqui, uma mulher linda chamada Ligeia...
ENZO
O PRENÚNCIO E A NOVA ERA
VI
Adônis estava inquieto naquela noite. Chegava com passos curtos até o templo do Cesaro, repetindo olhadelas para o céu inundado por estrelas incomuns. “Hoje ele vem, tenho certeza”, pensava o centauro. Aguardava há muito tempo a chegada da sua razão de existência, o filho de Sagitário.
Após deixar seu velho amigo Tiestes, Adônis retornou ao Cesaro sem qualquer desejo futuro; tornou-se mais um dos monstros a habitar o norte de Kelicerata; sem ambições, mas cheio de nostalgia. “Deve haver um motivo para eu ainda estar vivo”, ele repetia, mas as incontáveis vezes que escutou a frase dita pela própria voz não o ajudaram a descobrir que motivo era esse. Até o dia em que ele foi visitado. O homem que comandava tudo, e que era tudo.
— Transforme-se em um centauro. — Adônis ordenou, incrédulo.
E o homem mudou sua pele azul para o tom pardo que escurecia até chegar às patas pretas de cavalo que, até então, não existiam no corpo do homem. E Adônis acreditou, e ficou triste por Tiestes.
— A que devo esta visita? Deve perceber que agora não passo de mais uma aberração do Cesaro.
— Você não precisa ser uma aberração do Cesaro. Você é livre para visitar qualquer lugar, vá e seja a aberração de Maciaan. — O homem retornou à sua forma original, de olhos pretos e dois pés azulados, e continuou a falar antes de Adônis condenar sua piada. — Mas eu não vou viver para sempre, centauro. Um dia eu vou desaparecer, e alguém vai precisar de você.
— O filho de Sagitário?! — Perguntou, com a voz rouca de quem não falava há muitos dias.
— Muito bem! Mas não será por agora. Existe alguém sob meus cuidados, e não vou desaparecer tão cedo. Quero deixar claro que não pretendo voltar a Kelicerata ou Casul, muito menos ao Cesaro, por isso vim até você. O lugar precisa de um guardião, afinal.
— Sinto que já estou fazendo esse papel...
— Que bom. Então espere, centauro. Não será agora ou em pouco tempo, mas o dia vai chegar. — Após terminar a frase, o corpo do visitante se umedeceu, e seu sorriso se transformou em água, junto com o resto de si.
— Espere! Por favor, me diga, quando?!
— Você saberá, centauro! — O que era água virou fumaça branca, se perdendo no ar e deixando as palavras soltas ao redor de Adônis.
Adônis saiu do Cesaro após aquele dia. Regressou às terras do sul de Maciaan, mas o que viu não aliviou suas preocupações. Precisava rememorar o tempo que passou morando no deserto, e aquela terra fértil de clima vívido não era capaz disso. Ele cavalgou mais para o sul, até os limites do amor de seu velho amo, Atreio. E finalmente encontrou paz. Em terras esquecidas pelo próprio tempo, Adônis encontrou a vastidão seca de areia e calor. E lá ele se esqueceu do mundo, até o dia em que ele soube.
De volta ao Cesaro, Adônis não sabia quantos anos passara fora, mas enquanto circundava as pedras altas do templo, seu coração batia forte, mostrando que fora tempo demais. Quando se deparou com a mesa circular de pedra no meio do templo, a respiração se acalmou. O vento barulhento desapareceu, e o centauro percebeu que, se fechasse os olhos, não estaria mais sozinho. Um longínquo galopar fez Adônis abrir os olhos, e pelo peso das pálpebras, ele dormira sem notar. “Como eu caí no sono?”, ele pensou, mas a figura deitada sobre a mesa o fez desprezar qualquer resposta.
O centauro ergueu no alto o corpinho do caído do céu. Era menino e tinha pele da cor das mãos de Adônis. Nada havia nas suas costas, o que fez o centauro lembrar que era ele quem devia expor as pedras verdes. De súbito, o galopar ressurgiu ao longe, e o centauro desconfiou.
Saiu do templo, seguindo o barulho dos cascos chocando-se com pedras. Seguiu para leste, mas se deparou com o vazio da noite. De frente para o penhasco, ele só via o oceano parcamente iluminado pela lua. Aguçou a audição, e reparou que não estava equivocado; não obstante o barulho das ondas, o ruído persistia, e foi só quando um vulto grande surgiu debaixo de si, que Adônis descobriu sua origem. Parado à distância de um salto, equilibrado nas pedras que desciam pelo penhasco, um animal fitava o centauro. Era uma camurça disso não havia dúvidas. Mas o que poderia querer? E por que surgira do mar?
Adônis não previu que o animal pularia em cima dele, mas não teve remorso de levantar a mão. Derrubaria o bicho pelo atrevimento, e retomaria sua obrigação com a criança, mas não foi o que aconteceu. Quando estirou o braço para golpear a camurça, o animal se iluminou de um vermelho vivo e quente.
— Fogo? — O centauro se espantou. Sem tempo para reagir, foi atravessado por uma bola de fogo. Perdeu o ar por um segundo, mas logo viu que estava ileso, e a criança também. Virou-se de costas para ver o animal, em sua forma difusa em chamas, se materializar novamente. — Pelo poder de Sauza, o que é voc...
Os dedos de Adônis tocaram algo diferente, e algo havia mudado na criança. O centauro a virou de costas e vislumbrou o desenho de uma constelação, marcada na pele por pequenas pedras verdes.
— Você queimou a pele dele? — O centauro deu um riso breve. — Mas, espere aí, essa não é a constelação de Sagitário, é a de Capricórnio! E você... É o espírito protetor dele.
A camurça encarou Adônis seriamente, e ambos se entenderam.
— Está bem, eu acabei virando vítima da minha própria expectativa, quem diria? Mas eu sou o guardião do Cesaro, então devo cuidar de todos, não só de Sagitário. Vou precisar correr até Kelicerata para achar alguma ama de leite. Espere aqui que daqui a uns dias eu volto com esse pequeno. — Adônis disse ao animal, certo de que ele entendia, mas ainda assim se achando tolo.
O centauro partiu rumo ao sul, e atrás dele, a camurça o acompanhou por toda a viagem.
Capítulo 2: A mulher de Caxa
I
Ivan abriu os olhos e se deparou com uma cor muito específica entrando pela janela aberta. Levantou o corpo e colocou a cabeça para fora, observando aquele azul escuro que ainda tinha um pouco de noite em si, mas já era claro para apagar o brilho das estrelas. Ouviu um barulho na parte externa e lembrou que fora algo parecido que tinha lhe despertado. Virou-se e viu Galope adentrar a tenda, com uma criança recém-nascida encolhida em seus braços.
— Venha cá, me ajude aqui. E acorde o Enzo, por favor. — Galope disse, assim que o viu de pé.
Ivan chamou Enzo com dois tapas nas costas e um sussurro, e logo foi até Adônis, sem notar que o garoto sequer tentou abrir os olhos.
— É mais um?
— Sim, mais um menino. Encha esta cumbuca com água e venha comigo para fora. — Antes de sair, Galope levantou a voz: — Enzo!
Enquanto Ivan saía da tenda, Enzo finalmente se pôs de pé, com os olhos ainda fechados e uma disposição quase nula. Esticou os braços para se espreguiçar e, como um cão de muita idade, voltou a deitar logo após se estirar. Do lado de fora Ivan seguiu Galope até uma longa mesa de pedra lisa.
— Vamos esperar um pouco até clarear mais... — Ivan acatou sem questionar. Não sabia o que iam fazer, nem o motivo de precisar de luz, mas pressurosamente colocou a cumbuca na mesa e buscou um lugar para sentar.
— Então, Ivan, qual o motivo verdadeiro de ter vindo? Até agora o seu objetivo me parece muito vago.
— Eu fico pensando se você não vai me considerar um louco com ilusões de heroísmo depois que eu contar.
— Sei que muita gente pode se impressionar facilmente, ao se deparar com um cara voador que se julga salvador de Maciaan, por exemplo, mas eu já vi muita coisa nesse mundo, garoto.
Ser chamado de garoto trouxe boas memórias a Ivan, e com um sorriso leve ele continuou:
— Galope, a minha missão não foi dada por um rei, nem vem de nenhuma profecia louca. Ela foi passada para mim pelo homem sem signo. Acho que não preciso te explicar sobre ele...
— Não, mas... Para dizer a verdade, eu gostaria que você contasse quem ele acabou sendo. Quer dizer, eu vi alguns filhos do zodíaco morrerem, mas nunca cheguei a saber quem sobreviveu. Acompanhei até muito longe o plano de Tiestes.
— Sendo sincero, eu nunca o conheci. Ele passou a missão de matar Afrodite e restaurar o equilíbrio do mundo para o aprendiz dele, que acabou sendo meu mestre. Eu herdei esta missão e pretendo cumpri-la, não importa como. — Adônis torceu as sobrancelhas ao ouvir aquilo. Da última vez que um portador da lança dourada pensou daquele jeito obstinado, o resultado não tinha sido bonito. Ivan franziu a testa, puxando algo da memória. — Esse nome, Tiestes, nunca ouvi falar. Tenho certeza de que o homem sem signo se chamava Amat-Gadu.
— Isso é nome de aquático... Mas ao mesmo tempo lembra o nome de outra pessoa; duas, na verdade. — “Dois caídos do céu da geração passada tinham nomes similares, mas Tiestes me disse antes de partir que os últimos sobreviventes eram ele e Saga...”. — Enfim, não acho que matar Afrodite seja tão difícil. O problema é encontrar ela. Quer dizer, alguém que se mantém viva desde os tempos de Sauza deve ter um esconderijo muito bom.
— Ou ela nem precisa se esconder. Meu mestre a conhecia, e Amat-Gadu também. Eu acredito que ela viva sem se esconder, só que...
— Debaixo d’água!
— Isso!
— Olha, se esse for o caso, já restringe bastante a sua busca. No lugar de ir atrás da localização dela, sua meta principal deve ser achar um meio de chegar ao mundo submarino. Mas sobre essa segunda parte da sua missão, o desafio é maior do que você pensa. Matar Afrodite é um simples trabalho de assassinato. Achando a pessoa certa e o método, se faz. Agora, trazer equilíbrio para Maciaan, meu amigo... É capaz de você juntar os doze caídos do céu e nem com eles dar um jeito nessa terra caótica.
— Eu acredito no potencial deles. E por falar nos caídos do céu, olha um vindo aí! — Enzo finalmente saiu da tenda com os olhos despertos, mas ainda inchados, e foi até os dois. Quando chegou próximo à mesa, Ignis se materializou ao lado dele, oriundo de uma chama que brotou espontaneamente do chão.
Enzo passou a mão pelo corpo de Ignis e deixou os pelos que arrancou em cima da mesa.
— Vamos lá! — Adônis deitou o bebê de bruços e a criança começou chorar, se não pelo posicionamento forçado, pelo frio da pedra. — Ajude aqui, Ivan. Segure pelos ombros, não deixe ele se virar. Agora sim, vamos revelar essas pedras...
— Para que vai usar a água? — Ivan perguntou.
— É só para não queimar meu dedo. — Galope pegou alguns pelos de Ignis e posicionou sobre as costas do recém-nascido. Com a mão esquerda esticou bem a pele, e com a direita, após mergulhar o polegar na cumbuca com água, pressionou um fio contra a pele esticada. Um filete de fumaça subiu do polegar do centauro.
O pelo entrara em combustão, e Galope retirou uma pequena camada cinzenta de pele dura, revelando uma pedra verde nas costas do menino.
— Então a pedra fica dentro do corpo?! — Ivan fixou o olhar na pedra escura.
— Não, olha só... As pedras vêm encrustadas na pele, mas por algum motivo há essa segunda pele por cima delas. Quando expostas ao calor do fogo, essa segunda pele endurece e cai. — O centauro retirou o segundo pedaço de pele.
— Você faz isso com todos?
— Com o Enzo eu não precisei. Ignis se deu ao trabalho. — Ele disse sorrindo para Enzo.
— Bato tem uma cicatriz grandona!
— É... Eu deixei uma das pedras do Bato coberta, para ver o que aconteceria. Acabou que a segunda pele se uniu ao resto do corpo, e quando eu fui tirar, ela não saía com calor de fogo. Tive que abrir com uma faca, e ele só tinha quatro anos...
— Nossa! Você não podia ter deixado como estava?
— Sim, mas ele vivia reclamando que não queria a constelação incompleta. Agora ela está completa, e ele ganhou uma cicatriz de recordação.
Ivan achou aquilo insensível, mas pela naturalidade com que Galope e Enzo falavam, não podia ser nada sério. “Deve ter sido como um pai arrancando um dente mole do filho”, ele pensou, tentando consertar a imagem cruel que havia imaginado anteriormente.
— Pronto! — Galope levantou o garoto, que ainda chorava, e mostrou as costas para Ivan.
— Eu não sou muito bom com as estrelas...
— É Gêmeos, Ivan! Diante de nós está o filho de Gêmeos! Há muito tempo não vem um desse aqui no Cesaro. Enzo, vou precisar de sua ajuda.
— Mas eu ainda nem comi nada! Estou sem forças até para falar...
— Faça depois de comer, então. Vou levar o Ivan lá para o lado do templo, e preciso que você vá até Porocop e procure uma pessoa para mim. Na vila de Caxa, pergunte por uma mulher chamada Cíntia e diga-lhe que Adônis precisa de uma ama de leite. Traga essa outra mulher até aqui.
— Ei, espera um pouco — Ivan contestou — voei como um louco a toda velocidade e vi apenas mata fechada para todo lado. É impossível para ele cruzar todo o Cesaro em algumas horas, quem dirá fazer o caminho de volta depois. A criança já terá morrido de fome muito antes do dia em que Enzo voltar!
Enzo e Galope riram entre si.
— O Cesaro tem muitos segredos, Ivan. Enzo conhece atalhos para Porocop que vão trazê-lo de volta antes do fim da tarde.
Ivan não podia entender que tipo de atalho encurtaria distâncias tão colossais, mas não insistiu. Não queria virar motivo de piada para crianças, ainda mais o atrevido Enzo.
— Vamos de uma vez. Vou cozinhar uns ovos para a refeição da manhã e você parte logo depois de comer, Capricórnio. — Adônis encerrou a conversa e guiou todos de volta à tenda.
II
Ivan observou Enzo desaparecer além de uma colina enquanto Adônis dava as últimas instruções a Bato.
— Não deixe Janela segurar ele de maneira nenhuma — o semblante severo do centauro parecia ainda mais carrancudo — você só precisa ficar olhando ele aqui nesse cesto; se chorar, dê um pouco d’água e se ele não parar, vá até o templo com ele.
— Pode usar o Reimi, vou deixar ele aqui. — Ivan avisou de longe, apontando para Reimi encolhido, sem mover qualquer pena.
Ivan e Adônis partiram para o lado oeste, passando através dos campos irregulares do Cesaro. A caminhada foi tranquila; o chão era firme e a grama baixa, o terreno quase convidava os pés para um passeio. Ivan, acostumado com mata fechada – como a selva que isolava o Cesaro dos Campos de Porocop – se encantou com o lugar. Com o céu límpido e o calor do sol amenizado pelo vento fresco, Ivan pôde entender porque o lendário herói Sauza escolheu aquela terra para chamar de sua casa.
Ao lado de velhas cercas caídas, de madeira quase deteriorada por completo, Ivan avistou uma casa pequena, de janelas largas e um aspecto que devia ser rudimentar mesmo na sua melhor época; provavelmente por ter sido erguida em terreno tão plano ainda estava de pé.
— Vamos ver se dá para aproveitar alguma coisa. — Adônis chamou.
Assim que entraram, Ivan ouviu ruídos rasteiros por todos os lados da sala. Ratos perambulavam ali dentro havia décadas, geração após geração de pragas se alastrando pelas paredes, deixando a estrutura da casa arruinada, exceto para servir de casa para os próprios roedores.
O cheiro de mofo e carne podre incomodou especialmente Adônis, que decidiu não passar da sala:
— Vamos embora, isso aqui está condenado e não é de hoje...
Seguindo o centauro, Ivan virou-se para sair. Quando passava pelo vão da porta, pisou numa saliência do trapo que um dia foi o tapete da entrada. Imediatamente ele retirou o pé e a protuberância se arrastou até a ponta do pano, e dali debaixo saiu correndo um pequeno réptil alongado, que seguiu em linha reta para um buraco na parede, balançando suas patinhas curtas.
— Ande, saia logo daí! Vou derrubar esse antro de ratazanas. — Ivan atendeu à ordem e se afastou da casa. Foi tomado de surpresa quando Galope derrubou a frente da casa com coices violentos. A parede já estava prestes a esfarelar, mas isso não era demérito ao poder do centauro, que, com poucos golpes, transformou a casa decadente num entulho disforme.
Do meio do entulho se ouviram guinchos alarmados e a grama ao redor da casa se agitou como pequenas ondas do mar. “Um desses aí é o lagartinho das pernas engraçadas”, Ivan pensou.
— Essa era a casa boa, Ivan. Pelo jeito, você vai ter que ficar com a gente na tenda; ou podemos fazer uma nova casa. O poder de Janela vai ajudar bastante na construção.
— Galope, eu agradeço bastante a sua disposição, mas não precisa se esforçar tanto. Eu não estou vindo da cidade, muito pelo contrário. Passei a maior parte da minha vida sendo nômade, muitos dos meus anos foram vividos dia e noite dentro de florestas. Morar na tenda já é um conforto enorme para mim.
— Bom, se você diz que não se incomoda...
— Não mesmo!
— Certo. Já que estamos aqui, vou mostrar o templo. É logo adiante.
Na ida para o templo, os dois passaram por outra casa – ainda menor que a primeira – que Adônis destruiu quase inteira com apenas um golpe. Logo que a viram, o centauro fez sinal para Ivan e correu em alta velocidade em direção à casa. Sem diminuir, ele desferiu um soco que aniquilou a parede lateral e derrubou as paredes adjacentes. Antes da casa se tornar um entulho similar ao anterior, Ivan viu um corvo solitário fugindo pela janela, assustado.
— Essa última casa era do guardião do Cesaro. Foi um grande amigo meu, e as histórias que conto às crianças sobre os filhos do zodíaco foram escritas por ele.
— Parece ter sido um cara legal.
— Ele era. Mas também muito amargurado, solitário. Infelizmente a tristeza dele se propagou na vida de muitas pessoas, a maioria nunca chegou a ter contato com ele, inclusive. Era assim que tinha que acontecer, eu acho. Vamos, o templo do Cesaro é bem ali.
Na ponta mais noroeste do Cesaro, onde Ivan contemplou novamente o horizonte como linha divisória entre céu e mar, ele encontrou o templo. Ao contrário do que imaginava, não era uma construção ortodoxa, era um templo a céu aberto, demarcado por estranhas rochas altas que pareciam ter caído do céu ou sido expulsas das profundezas da terra.
Além de ser o ponto mais noroeste do Cesaro, o templo ficava no local mais alto daquela região. O desfiladeiro que delimitava o templo a oeste e norte tinha a maior altura desde que a praia desaparecia para dar lugar ao paredão rochoso. A brisa do mar era tranquilizadora, e quando Ivan caminhava por entre as pedras soltas do templo, uma brisa correu pelo labirinto carregando pólen e pétalas de flores brancas de aspecto quase luminoso.
Estranhamente, a brisa que vinha escoando pelos lados das pedras altas, ao passar por Ivan, tomou um rumo ascendente. O visitante viu as pétalas bailarem rumo ao céu azul antes de se dispersarem por completo nas correntes de ar superiores.
— Eu quero vir depois aqui com o Reimi.
— Por que diz isso? — Perguntou Adônis, já próximo ao centro do templo, onde uma pedra circular servia como altar.
— Não sei... Tenho a impressão de que, vistas de cima, essas rochas podem formar alguma coisa.
— Bom, esse é o templo do Cesaro. Daqui vêm os caídos do céu.
— Uma dúvida, Galope: eles realmente caem do céu? Literalmente?
— Há, há, não sei dizer. Normalmente só aparecem aqui. Numa noite vou tentar olhar para o alto e ver se percebo algum bebê caindo.
— Eu quero estar aqui na próxima vez! — Ivan se entusiasmou.
— Ivan, eu quero deixar uma coisa bem clara; se você realmente intenta unir os doze caídos do céu, vai passar muito tempo aqui, mais do que imagina. Veja Janela, já tem quatro anos e só agora apareceu mais um. Quer mesmo arriscar? Existe a chance do décimo segundo só surgir muito tempo depois de você já estar morto...
— Não se preocupe, Galope. Eu sei que estarei aqui para promover a união entre eles. — Uma convicção inabalável se destacou naquelas palavras. — E por falar nos doze, o que realmente é o poder deles? Você disse lá atrás que o poder de Janela ia ajudar na construção de uma casa, não entendi isso.
— Vamos voltando, então? Estou preocupado com Bato cuidando do Gêmeos... — Ivan concordou, e na volta Galope explicou sobre os poderes dos filhos do zodíaco.
— Cada caído do céu possui um dom muito particular. Alguns nascem com grandes habilidades corporais, outros podem ter algum poder mental; mas existem poderes bem específicos. Janela, por exemplo, nasceu completamente normal, mas com ela veio um cinturão dourado muito parecido com esta sua lança. Nós chamamos de Coração do Ídolo, depois vou te mostrar o porquê. Há também os que surgem com um familiar, como Enzo. Ignis, uma espécie de avatar da natureza, veio com ele. Eu também sou um exemplo deste caso.
— Como assim, você?
— Eu não sou humano, como qualquer um pode ver. Eu surgi aqui no Cesaro, muitas décadas atrás, junto com o nascimento de um caído do céu, um filho de Sagitário. Sou o guardião deles, Bato é o terceiro que tenho o dever de proteger.
Ivan não fazia ideia da origem de Adônis. A ouvir aquelas coisas, se perdeu ao tentar imaginar a idade do centauro e por pouco não perguntou se ele era imortal.
— Além desses, há os que nascem com controle sobre certos elementos da natureza, como era o caso de Yozien, antigo filho de Áries e morador daquela casa que visitamos. Há também os que são a representações materiais de forças superiores, esses possuem a fama de serem os mais poderosos entre todos. O último filho de Peixes era um Elemental da água. Quando chegarmos em casa você vai ver o que as crianças podem fazer. Estou certo de que vai se surpreender.
III
— Eu não acredito que você fez isso! — O berro de Adônis assustou Janela e Ivan, que estavam afastados de Bato, só olhando. O menino começava a chorar de medo. — Qual a parte de ir até nós você não entendeu?
O garoto queria se desculpar, e suas razões até podiam justificar o que fez, mas o medo de Adônis era mais forte. Fazia suas mãos suar, seus joelhos tremer e sua coragem sumir.
— Não me interessa se Janela ia para o templo, a floresta ou o fundo do mar! Você deveria ter ficado com o bebê!
— Mas ela podia se machucar... — A voz tímida conseguiu ser ouvida.
— Nesse caso você só precisava paralisar ela, e não o bebê. Bato, se ele morresse esta seria a sua desculpa? Foi passear com Janela?! — O menino não conseguiu mais prender o choro e começou a soluçar. O pranto saiu grave, talvez pela vontade de ainda tentar contê-lo. Algumas palavras cortadas se destacaram do choro, mas não faziam sentido nenhum. Vendo o estado do menino, Adônis abrandou sua postura e assumiu um tom mais compreensivo.
— Bato... Escute, eu sei que você gosta da Janela e só queria proteger a sua irmã, mas veja só o seu novo irmãozinho; ele não merece a sua proteção também?
— De-culpa, Ga...ope! — O menino agarrou a perna do centauro e deu um abraço forte, querendo a todo custo ser perdoado pela bobagem que fizera. Estava verdadeiramente arrependido.
— Tudo bem, está desculpado. Agora preciso que você se recomponha e me ajude a preparar a comida, está bem? Pare de chorar para fazermos logo o nosso almoço. — O menino enxugou o rosto e parou de chorar, embora sua respiração ainda estivesse descompassada.
— Ivan, vá com ele. Tragam um frango de cauda longa.
— Venha, Bato — Ivan acariciou a nuca do menino — vamos com Reimi, mas eu já vou avisando que ele não gosta de levar ninguém chorando...
— Janela, para dentro! — A menina correu pelas caixas e pulou para dentro da tenda. — Ainda bem que não aconteceu nada com você, pequenino. — Adônis pegou o cesto com o bebê e entrou na tenda.
***
Ivan e Bato pousaram numa área a nordeste, com árvores espaçadas e arbustos abundantes, a mando do menino. Ivan rapidamente notou a presença de animais por perto, graças aos ruídos recorrentes que revelavam a posição dos bichos.
Dando passos lentos, buscando se aproximar de um frango de cauda longa, Ivan acabou se concentrando demais em sua vagareza e não reagiu quando um frango de penas azuis e negras correu de um arbusto próximo. O rastro da cauda comprida cheia de penas escuras foi a única coisa que ele viu.
— Droga!
— Ele foi pra onde? — Bato perguntou. Ivan indicou a direção, cauteloso com a velocidade dos movimentos. Bato, por sua vez, seguiu para o arbusto indicado sem qualquer precaução.
— Ei, Bato! — Sussurrou. — Vai devagar!
Sem dar ouvidos a Ivan, o menino continuou andando e o inevitável aconteceu. O frango, sentindo-se ameaçado, não hesitou em correr, e após uma agitação no arbusto, lá foi ele em alta velocidade. Ivan não se conteve:
— Eu avis...
— MIADAI! — Bato falou em voz alta e o frango, como que comandado por forças maiores que a sua própria, endureceu o corpo no meio da corrida. Paralisado, a ave não pôde fazer nada quando o menino chegou mais perto e a levantou do chão com toda a calma do mundo. O filho de Sagitário depositou o frango de cauda longa nos braços de Ivan e disse: — Vamos logo!
IV
Antes do fim da manhã Enzo encerrara a travessia da floresta e já estava nos Campos de Porocop. Dita amaldiçoada, a floresta do Cesaro sempre abatia os corajosos que tentavam percorrê-la. Pelos animais ferozes ou pelo cansaço de passar semanas viajando em constante perigo, os intrusos tombavam pelas sombras deixando apenas ossos e promessas de atingir o outro lado. Os nativos, entretanto, tinham conhecimento de como completar a viagem em poucas horas, usando atalhos que desafiavam a lógica dos mais experientes exploradores.
— Caxa fica para o lado de lá... — Enzo pensou alto, vendo que não mais contaria com a sombra das árvores para amenizar o calor. O menino vagou pelo espaço aberto que era Porocop, a imensa terra do norte de Kelicerata, com relevos ligeiramente sinuosos e vegetação predominantemente rasteira, mas bonita de se ver, tudo amparado pelo céu azul que, de tão amplo, parecia acelerar o movimento das nuvens, como se as convidasse para uma corrida infinita. Não era estonteante como o céu do Cesaro, mas bastava para prender os olhos de visitantes do sul.
Quando achou o povoado no fim das vistas, logo depois de um talhão hortaliças, não teve paciência para andar todo o caminho e invocou Ignis. Montado no íbex, galgou a distância em pouco tempo; o animal místico saltitava um pouco, mas o incômodo era recompensado em velocidade. Normalmente Ignis já se igualava aos cavalos mais rápidos, mas quando Enzo pedia pressa, Ignis cruzava longas distâncias tão rápido quanto Galope, e seu corpo se incendiava, transbordando de energia. Por duas vezes ele foi visto correndo tão rápido, e durante algum tempo as pessoas de Porocop comentaram sobre uma montaria endemoniada procurando por seu cavaleiro. Fosse Ignis não estar tão veloz, talvez os especuladores pudessem notar no meio das labaredas um pequeno ousado no comando.
Em Caxa, sem ideia de onde procurar por Cíntia, Enzo recorreu ao velho mercador de peles.
— Ei, pequeno Enzo! Ainda está quente demais para você me vender peles. — O menino entrou na loja pequena e amontoada de quinquilharias, de vasos de cerâmica a botas de couro penduradas no teto baixo.
— Eu não vim te vender nada, senhor Bernard. Estou procurando uma pessoa aqui da vila chamada Cíntia. Sabe como posso encontrar?
— Cíntia? Hum, fale mais dessa moça, garoto. A única Cíntia que conheço aqui não pode ser a que você está procurando. — O velho deu um riso escrachado.
— Eu não sei, velho! Só sei que preciso ver Cíntia de Caxa.
— Velho?! Ora, moleque, está querendo levar um murro na cabeça para aprender a ter modos? Passe fora daqui, Caxa não tem nenhuma Cíntia para você. Xô, xô!
Enzo saiu imediatamente, um pouco assustado pelo tom do senhor Bernard. O velho não era ameaça alguma para Enzo – o garoto sabia – mas é natural das crianças se amedrontar com uma repreensão, especialmente quando sabem que foram desobedientes ou desrespeitosas. O menino vagou pela vila buscando mais alguém a quem recorrer, mas as ruas estavam estranhamente vazias. Chegando à praça principal, ele ouviu barulho de gente: vozes, palmas e assobios.
A região central de Caxa era uma área plana de dois níveis. O primeiro continha uma estátua em cobre de cavalos de corrida banhados pela luz emanada de um disco com pequenas pontas triangulares, simbolizando o sol. Um pouco afastado da estátua ficava um poço, de onde muitos moradores retiravam água. No segundo nível, quase dois metros abaixo do chão, estava uma grande arena circular, acessível por escadas de todos os ângulos. Normalmente vazia, neste dia havia um grande palanque montado e uma plateia vistosa sentada à frente. Algumas carruagens e cavalos parados próximo à estátua indicavam que pessoas de fora vieram presenciar o evento, fosse o que fosse.
Enzo se apressou para chegar até lá, mas no caminho ele achou o que procurava.
— Eu vou dizer tudo à Cíntia! Ela vai ter que tomar alguma providência!
— E você acha que ela vai conseguir mudar alguma coisa? Vamos voltar, está quase terminando.
— Ela conhece o duque, e além do mais, essas palmas deveriam ser para mim! Se quiser, fique; eu não tenho estômago para aguentar nem mais um minuto dessa gente!
Enzo permaneceu quieto e atento à conversa das duas jovens, fingindo estar olhando ao evento. No palanque, uma moça alta recebia um buquê de flores e era parabenizada por outras moças, todas usando vestidos coloridos e penteados arrumados. Ao seu lado, Enzo percebeu o término da conversa; enquanto uma voltava para a plateia, a outra saiu com passos firmes e apressados. Era ela quem Enzo precisava seguir.
O garoto sorrateiramente chegou a uma viela, onde a jovem virou à esquerda e entrou por uma porta. Enzo inocentemente achou diferente que a porta de entrada daquela casa desse para um beco fechado, mas não se incomodou e foi ver o que acontecia lá dentro, através da janela. A garota ainda tinha a voz alterada.
— Eu tinha os votos, Cíntia! Não é justo eles me tirarem do concurso quando eu já estava esperando para receber a coroa!
Enzo viu a conversa se desenrolar numa saleta escura, algo lembrando uma recepção de lojinha, mas com paredes rubras e, ao fundo, uma música animada sendo tocada no piano. Em frente à jovem, uma mulher usando um vestido preto decotado e justo, com cabelos presos e olhar penetrante respondia enquanto saboreava uma cigarrilha.
— Você fez sua cama, agora deite nela, garota. Eu acho que já foi impressionante terem deixado você participar, em primeiro lugar!
— As pessoas me conhecem, eu não estava me escondendo nem fingindo ser outra coisa. Votaram em mim sabendo de tudo que faço. Mas o que me deixou irritada foi dizerem que só ganhei porque estava sendo favorecida. Isso é mentira e preciso de sua ajuda para provar! Se for necessário, apelarei ao duque!
— Está louca, Natália? — Cíntia deu uma gargalhada. — Você é a favorita do sobrinho do duque, ele vem periodicamente até esse fim de mundo só por você, e é exatamente por isso que acham que sua vitória foi comprada. E você acha que colocar o duque na história vai melhorar o seu lado? Esqueça esse prêmio bobo, querida. Ele vale tanto quanto os clientes da Gertrude.
— Não acredito que você não vai me ajudar, Cíntia...
— Já falei: Esqueça isso! E pare de choramingo. Da próxima vez pense na sua reputação antes de engravidar de um nobre! Tantas meninas sonham com isso e quando acontece, é logo com uma prostituta; ora, quando resolveu anunciar por aí que o filho era do sobrinho do duque, você só pensou na sua imagem, agora aguente a represália causada pela inveja. E pode enterrar esse assunto, não quero ouvir reclamação de que você não está trabalhando direito! — Ao ouvir isto, a jovem deu um tapa no balcão e saiu calada. Um homem apareceu pela mesma porta e cumprimentou Cíntia.
— A menina está nervosinha, hein...
— Deixa ela. Você já está indo muito cedo, o salão não está agradando?
— Não, não, eu desci direto do quarto para não passar pela tentação, Cíntia. Prometi que ia encontrar com minha esposa depois do concurso, se ela imaginar que eu estou aqui...
— Ah, claro. Então, tenha um bom dia, senhor Nobu. Até mais.
Sem ter para onde correr, Enzo foi avistado assim que o senhor Nobu saiu pela porta da rua.
— Ei, Cíntia! Tem um menino bisbilhoteiro aqui do lado de fora. Quer que eu dê uma lição nele?
A mulher saiu para identificar a criança, mas não lhe pareceu ser filho de ninguém conhecido.
— Sim, pode levar ele. Não gostamos de intrometidos aqui, moleque! – Nobu levantou Enzo pela camisa e estava prestes a dar um safanão no garoto, quando foi interrompido. — Espere, senhor Nobu! Solte-o agora. Pode deixar ele comigo, não se preocupe.
Um pouco desconfiado, o homem acatou o pedido e foi embora. Cíntia puxou Enzo para dentro e apagou a cigarrilha amassando-a no cinzeiro.
— Enzo! É você, meu querido... Por Sauza! Como você está crescido.
— Como você sabe meu nome? Você que é Cíntia, não é?
— Ora, menino, claro que sim. Eu sou sua mãe! — Ela envolveu o garoto num abraço apertado e desconfortável.
— Você não é minha mãe! — Ele gritou, se soltando dos braços dela.
— Ora, claro que sou. Quem você acha que te amamentou quando era um bebê? Você e seu irmão Bato. Eu que cuidei dos dois. Você chegou aqui sozinho?
— Uhum. — Confirmou.
— Ei, menina. Veja se tem biscoitos na cozinha e traga aqui. — Ato contínuo, ela abriu um pote de vidro com biscoitos doces e ofereceu a Enzo, que pegou dois e devorou rápido.
— Galope mandou eu te procurar. Falou que eu tenho que levar uma ama de leite para o Cesaro.
— Como ele está? Cortou aquele cabelo comprido?
— Não, mas está deixando preso. Eu tenho que voltar logo. Porque o bebê vai ficar com fome. — O menino bocejou, despreocupado.
— Tudo bem, lindinho. Espera um pouco aqui, sentadinho. Não entre nesse corredor, só tem gente maluca aí dentro. — Ela disse, antes de sumir no corredor fracamente iluminado de vermelho em vários pontos da parede. Numa parte do meio as velas estavam apagadas, e foi ali que Cíntia virou.
Enzo ficou entretido com as melodias do piano, e entediou-se quando o pianista parou. Dois homens saíram e um entrou antes de Cíntia voltar, trazendo pela mão a bela jovem de antes.
— Espera um pouco! Você quer que eu vá até o Cesaro com essa criança?
— Natália, acredite em mim, não vai acontecer nada com você.
— Certo... Mas eu não vou abrir mão do que você me prometeu! Quando eu voltar, quero morar com meu filho na capital!
— Eu não disse isto. Prometo que levo você para morar em Kelicerata, até aí eu garanto com a minha palavra, mas para morar com o menino você vai ter que resolver com o pai dele ou diretamente com o duque. Enzo, entregue essa carta a Galope, por favor. — O menino pegou o envelope lacrado, dobrou duas vezes e guardou no bolso, tirando risadas de Natália.
Cíntia deu beijos nos rostos dos dois e observou até que a dupla virasse no fim da viela. Enzo deu uma última olhada para aquela mulher que se dizia sua mãe, e seguiu para seu lar com Natália.
A lua crescente se mostrava branca no céu claro do meio da tarde, como um convidado que chega cedo para a festa e, não podendo se retirar, se distrai vendo os retoques finais dos preparativos. No Cesaro, Ivan e seus novos companheiros aguardavam uma demonstração. Janela os arrastou até um local afastado da tenda, alegre como sempre. “É melhor seguirmos ela, para não acontecer nenhum acidente com a tenda”, Galope disse a Ivan, enquanto trilhavam o rastro da pequena serelepe. E ali estavam eles: o centauro, o filho de Sagitário, o recém-nascido filho de gêmeos e Ivan; todos aguardando a apresentação da taurina.
— Aquele é o tal Coração do Ídolo que você mencionou? — Ivan perguntou, apontando para o adereço que Janela ajeitava no corpo.
— Sim. Assim como a sua lança, ele apareceu aqui junto com o caído do céu. A princípio achei que fosse um acessório de guerra, pelo metal ser tão rígido, só depois notei que as extremidades se uniam, formando um tipo de cinturão. — Galope respondeu, e a menina já se aprontara, passando o instrumento em volta do corpinho, por cima do ombro direito e por baixo do braço esquerdo.
— Peparados? — Berrou, e antes que respondessem ela bateu no objeto, na altura do peito, onde se evidenciava uma figura circular em alto relevo. Um clique metálico foi ouvido e em seguida Ivan presenciou a mágica acontecer.
Pedaços de pedra se ergueram do gramado e voaram em direção à garota. De pedrinhas a pedregulhos pesados, as rochas foram atraídas até o corpo da criança e flutuaram ao redor dela com velocidade crescente.
— Uau! Isso é fantástico. Quando ouvi Coração do Ídolo imaginei um poder bem diferen... — Ivan foi interrompido por Bato.
— Agora que vai ficar legal! — Mal o menino exclamou, cheio de entusiasmo nos olhos e na voz, o chão passou a tremer. O balanço inconstante logo foi substituído por ondas sísmicas homogêneas, e após a vibração mais forte a terra se abriu, cuspindo uma gigantesca pedra preta. Como as demais, ela buscou circular o corpo da pequena, mas o peso foi demais para a estrutura e a rocha se partiu em pedaços menores, mas ainda bem maiores que um homem adulto.
A velocidade de giro diminuiu gradativamente, e as pedras começaram a se acomodar ao redor de Janela, de forma que ela não podia mais ser vista. Quando cessaram o movimento, cada pedra estagnou numa posição fixa, desenhando uma figura monumental que provocou gritos de comemoração em Bato. Ivan estava boquiaberto com o ídolo de pedra à sua frente.
De forma humanoide, o amontoado de rochas deu duas passadas duras e pesadas em direção ao grupo. Cuidadosos, os três se afastaram, até Galope, que estava ciente da firmeza das rochas. Sem qualquer risco de desligamento, as pedras aparentavam estar naturalmente acopladas, mas a imponência do ídolo intimidava até os mais confiantes.
No corpo do ídolo, os pedregulhos que formavam o tronco encetaram um movimento independente, se remanejando para abrir um buraco de onde a pequena Janela se mostrou, dependurada. O riso galhofeiro e inocente da criança era diametralmente oposto ao terror que seu poder era capaz de causar a uma cidade inteira de homens armados. Ivan notara isto e finalmente entendia que a dimensão atribuída aos poderes dos filhos do zodíaco não era nem um pouco equivocada.
— Janela, está bom! Desça logo daí, antes que assuste o bebê.
— Olha Galope... Se ele não chorou com o que essa menina acabou de fazer, duvido que outra coisa o fará. — O pequeno parecia confortável nos braços do centauro, e nem a aparição do ídolo de pedra fez sua desatenção silenciosa se perder.
A menina se arrastou pelo buraco e saiu de dentro do gigante. Assim que ela pulou para os braços receptores de Ivan, o monstro perdeu sua força ligante e os pedaços começaram a ruir. Bato em especial se deslumbrou ao ver a criatura se desfazer, e todos pensaram que seria hora de voltar para a tenda e esperar por Enzo, mas a última rocha a pender para o lado – aquela que formava um lado da perna direita – revelou detrás de si os vultos de dois viajantes. Estavam chegando, Enzo e Natália.
— Ai, que coisa é aquela? Aquele é o centauro? É muito grande! Sauza que me proteja daquilo lá. Menino, é bom que você saiba falar com ele igual você fala com aquele seu íbex. Se alguma coisa me acontecer, Kelicerata inteira vai vir me procurar!
Enzo já parara de ouvir há muito tempo, e se entretinha girando um saco de pãezinhos quase vazio. Quando viu o grupo à frente, Ignis surgiu debaixo dele e o menino galopou a toda velocidade em direção a eles. Bato e Ivan, que o receberam com acenos de mão, ficaram bobos quando o menino circulou o grupo dizendo, em voz alta, antes de rumar para a tenda:
— Essa moça não para de falar!
Quando Natália se aproximou do grupo uma estranha quietude tomou conta de todos. Bato e Janela olhavam curiosos para a visitante até que, confusos, voltaram-se para Galope. Por que não estavam conversando? Não era esse o papel dos adultos, conversar entre si? Mas tanto ele quanto Ivan não abriram a boca; o aviso de Enzo os havia preparado para receber uma mulher extrovertida, faladeira ao ponto de fazer um menino fugir desembestado, louco para se livrar da companhia, mas ali se apresentava uma moça calada, de uma timidez obediente que espera permissão para falar.
— Olá! — O centauro finalmente cortou o silêncio.
— Oi.
— Como se chama, garota?
— Meu nome é Natália.
— Bem vinda ao Cesaro, Natália. Meu nome é Adônis, esse é Ivan. Os pequenos são Bato e Janela. Cíntia explicou a nossa necessidade para você?
— Ela falou que eu tinha que amamentar um bebê por alguns meses...
— Sim, é esse aqui — Adônis ergueu o neném para Natália, e ele começou a chorar — pegue, vamos.
O menino cessou o choro, aconchegado nos braços da jovem.
— Acho que não há muito mais o que fazer, além de mostrar a casa. Venha comigo. — Natália confirmou com um aceno de cabeça, e todos seguiram Galope.
— Nossa, que medo! — Cochichou para Ivan. — Cíntia disse que eu não devia me preocupar com o centauro, mas quando eu vi o tamanho dele, achei que ia rugir ao invés de falar.
— É, eu também tive essa impressão, há, há. Estou aqui no Cesaro desde ontem, aliás.
— Então nós praticamente chegamos juntos! Olha só... E esse menino aqui, qual o nome dele?
— Ele não decidiu ainda. Na verdade ele até me sugeriu pensar em um.
— Que ótimo, eu quero escolher, então. Porque, vamos ser sinceros, que tipo de nome é Bato? E Janela? — Bato estava próximo e ouviu a moça caçoar do seu nome. O menino se entristeceu ao saber que tinha um nome feio, e quase ficou para trás do grupo, até que saiu correndo gritando.
— O que deu nele?
— Acho que ele ouviu você falar mal do nome dele...
— Ai, coitadinho. Mas não precisava correr tão revoltado — o que nem Natália nem Ivan perceberam era que o grito de Bato era para esconder, e até impedir, um choro infantilmente honesto — era só falar comigo, eu sou muito boa com nomes, vou escolher um para ele também.
— Eu acho que não foi iss...
— Mas vem cá, por que você veio aqui? Até hoje eu nunca ia imaginar que tinha gente que entrava no Cesaro de verdade, quer dizer, com o que falam daqui, né? Acho que eu dei sorte de chegar junto com um homem alto, másculo, tão lindo, Sauza está olhando por mim... — Ela virou-se para o bebê, evitando o olhar de Ivan, e não pôde ver que a reação dele não era o que ela desejava.
— Estou aqui numa missão, e... — Ivan foi interrompido antes de concluir a primeira frase, e já começava a entender a irritação de Enzo.
— Não me diga que você é um cavaleiro? Ai, com essa lança eu já devia ter percebido, desculpa. Ela é feita de ouro? Os cavaleiros de Kelicerata sempre andam tão vistosos... Lá em Caxa não aparecem muitos, sabe?
— Não, eu não sou cavaleiro. Minha missão eu herdei do meu mestre, e ele não tinha nenhum posto no exército de Kelicerata. — Ivan falou rápido, para não ser interrompido; “Embora ele fosse príncipe de Casul, mas é melhor não falar disso para ela”, pensou.
Natália ajeitava o bebê para amamentar, e não perdeu a chance de deixar Ivan constrangido.
— Ivan! — Ela cobriu o seio com a mão.
— Mas eu não estava... Deixa para lá. — Ser tratado como um menino foi a gota d’água para ele, e ele passou o resto do caminho para a tenda olhando diretamente para frente, sem dar muita atenção ao que Natália dizia. Infelizmente para ele, aquele comportamento levou Natália a pensar que logrou sucesso em deixa-lo embaraçado.
— Nós dormimos aqui nesta tenda. — Galope indicou. Estava curioso para ver a reação da garota, mas ela se manteve acanhada, deu uma olhadela dentro da tenda e não respondeu nada. Ainda demoraria para se acostumar com aquela figura assombrosa que falava e agia como uma pessoa comum. — Bom, vou até o templo, quero enterrar aqueles escombros antes do anoitecer.
— Espera, eu vou com você, Galope! — Ivan se convidou.
— Não, acomode a garota, você sabe que não tem muito a se mostrar aqui, vai ser fácil. Se eu não voltar até escurecer, vocês preparam a comida, o Enzo sabe onde fica tudo.
Adônis sabia o motivo da passividade da jovem, todos os contatos que tinha com humanos se iniciavam da mesma maneira, e ele não se sentia confortável daquele jeito, sendo assim preferia dar espaço e deixar Natália se acostumar com o tempo. Mal sabia ele que o interesse de Ivan era se manter junto ao centauro justamente para evitar a companhia da Natália extrovertida. E ele não estava enganado, assim que o centauro saiu de cena, Natália se transformou; agarrou o pescoço de Ivan com a mão e levantou a voz:
— Eu não acredito no que acabei de ver! — Sem explicar, ela pulou para fora da tenda, e ainda com o filho de Gêmeos no braço, correu animada para o lado norte. Quando Ivan saiu da tenda perguntando o motivo daquilo, ela gritou já longe: — É o mar!
Ivan seguiu Natália, mas parou no meio do caminho, ao lado de Enzo e sentou-se com o menino.
— É, eu já entendi porque você não gosta dela, Enzo.
— Eu gosto dela. — Ivan não esperava esta resposta. — É chato ficar ouvindo ela falar sem parar, mas ela é boa.
Natália ficou por um bom tempo a admirar o oceano e sua violência rodopiante. Sempre ouvira que no mar a água corre em círculos, e era a primeira vez na vida que tinha a chance de ver. Sentou-se longe da beirada – pois a queda era longa até os rochedos que aparavam a força das ondas – e ali ficou, admirando o cenário que seria sua casa por um longo tempo. Ao se dar conta daquilo, não pareceu gostar tanto da ideia. Mas para viver na capital com o filho, valia a pena. Valia?
— Eu não sabia que ainda tinha gente que ficava assustada com o mar! — Ivan gritou para a mulher, que voltava pisando devagar. Quando chegou junto dos dois, ela respondeu com uma calma infrequente.
— Eu não fiquei assustada, Ivan. Eu só nunca tinha visto o oceano. Está ficando frio. — Segurando os cotovelos descobertos, ela encolheu os ombros e olhou para o alto. — E escuro também. Olha só quantas estrelas, e o sol nem se pôs completamente...
— É, vamos indo. Enzo, vá procurar Janela e Bato. Vá com Reimi e não demore. — Com um assobio não de Ivan, mas de Enzo, Reimi esticou as asas – um espreguiçar após um prazeroso cochilo diurno – e levantou voo até os três, catando Enzo do chão e levando para o alto. Paralisada, Natália apenas olhou para Ivan, esperando que ele explicasse.
— Não é nada, é só um par de asas que eu arranjei por aí. Não precisa ter medo. Mas você não viu quando entrou na tenda? Ele estava ali parado o tempo todo.
— Eu vi um monte de penas emboladas. Achei que era uma capa pendurada num tronco.
— Uma capa? Uma capa feita de penas?
— Pode parecer estranho para você, que é um bicho do mato, mas em Kelicerata tem um alto posto no castelo representado por um uniforme com uma capa coberta de penas de gavião-imperador. — Ela bufou e entrou na tenda.
— Galope disse que amanhã vamos assar pão. Como não caçamos nada agora de tarde, espero que Bato traga alguma coisa para comer, senão vamos ter que nos sustentar com essas frutas.
— Mas vocês não podem colher tudo de uma vez! Olha só para isso, o quanto tem de podre aqui embaixo! — Começou a retirar frutas estragadas aos montes, jogando-as no chão. — Ivan arrastou todas para fora e fez menção de cavar um buraco para enterrá-las, mas acabou jogando um pouco de terra por cima, apenas.
Bato não levou caça, então os cinco tiveram que se virar com o que tinha na tenda. A jovem, quase insultada, se recusou a acreditar que aquilo fosse usual, e não deixou ninguém comer as frutas antes de cortar todas e fazer um arranjo no prato grande, criando formatos com as fatias de laranja, morango, pera e caqui. As jabuticabas, ela preferiu não arriscar e jogou tudo fora. No centro do prato, derramou mel, fazendo uma poça que se espalhou e embebeu os pedaços próximos. Bato, de birra, reclamou e não gostou de ter que esperar tanto para comer as frutas, mas Janela e Enzo gostaram do resultado. Ivan entendeu que era aquele toque feminino, o que estava faltando no lugar; mas não imaginava ele que Natália não estava apreciando ser a única da região a ter aquele jeito.
Mais tarde, deitado na esteira, Ivan parou de acariciar os cabelos de Bato. Ao contrário de Enzo, o menino tinha cabelos bem finos, mais até que os compridos de Janela. Os três adormeceram enquanto Ivan contava histórias do seu tempo de marinheiro, tempo quase esquecido. Virando-se para afastar os olhos da luz verde das costas das crianças e buscar o seu sono, Ivan flagrou Natália de pé, no lado de fora da tenda, sendo abraçada pelas asas escuras de Reimi. Quando viu o rapaz de olhos grudados nela, a garota entrou, não sem antes fazer um carinho em Reimi.
— Ele é tão quentinho... — Sussurrou. Ela usava uma camisola fina, de tecido branco, com o busto rendado. As pernas firmes combinavam perfeitamente com os tornozelos finos, e Ivan disfarçou ao olhá-las.
— Galope ainda não voltou. Acho que vou sair e procurar.
— Acha que ele pode estar em apuros?
— Não, pensando bem, é capaz até dele estar colocando outra pessoa em apuros. — Os dois riram brevemente, e seus olhares se encontraram.
— Mesmo estando escuro... Ainda não está tarde. Sei que as crianças ficam com sono logo, mas nós somos adultos. — Ela sorriu e se apoiou à frente de Ivan, deixando o cabelo roçar o rosto do homem, antes de sentar junto a ele. A tarde de caminhada e o banho frio à noite não foram suficientes para apagar o cheiro suave do perfume impregnado nos fios.
— Eu tenho uma mulher... — Retrucou enquanto ela se ajeitava com ele na esteira, mas não adiantou e os dois deitaram de lado, corpos justapostos. Sua mão percorreu a coxa de Natália, subindo antes de chegar ao joelho. Sua pele estava fresca, e Ivan acariciou a barriga dela com movimentos circulares, antes de levantar a mão e segurar o seio. Apertando gentilmente, ele encostou o rosto na nuca de Natália e inspirou o delicioso cheiro de mulher. Como a ventania que surge e some em pouco mais que um instante, só para anunciar que a chuva está começando, Ivan soltou o corpo de Natália e se virou de costas para ela. Quase inaudível, ele disse antes de fechar os olhos para a luz virente: — Eu tenho uma mulher.
Sem admitir para si mesma que se sentia humilhada, Natália afastou suas costas das costas de Ivan, abriu uma esteira ao lado do cesto que acomodava o pequeno filho de Gêmeos e se encolheu, com frio. Ao contrário da água que corre, como nos redemoinhos do mar, lágrimas não produzem barulho. Ninguém nunca soube que Natália chorou, quando dormiu no Cesaro.
***
No dia seguinte, após comer, Ivan saiu com Bato para caçar. Sabia que Natália tinha razão em reclamar; por mais que ele fosse acostumado a viver como andarilho e as crianças também não reclamassem da rotina, havia jeitos mais civilizados de se viver. Eles não eram nômades, afinal. Residiam num lugar fixo, e não havia motivo para não viabilizar certas facilidades. Já tinha em mente a ideia de cavar um poço próximo a casa. Até então eram abastecidos por um grande reservatório que Adônis enchia semanalmente, indo e voltando do rio que corria dentro da mata com enormes baldes de água – o que de fato não era laborioso para o centauro, o monstro parecia ter sido criado para cumprir tarefas manuais, e nunca na vida reclamou de receber trabalho braçal.
Quando retornaram, ainda pela manhã, ela estava novamente no lado norte, observando o mar. Ela sentava num tamborete, e Ivan cogitou ir até a jovem para ver se precisava de algo, mas mudou de ideia sem muita dificuldade. Estava amamentando o bebê, e era este o trabalho dela no Cesaro. Mais tarde procuraria ela para conversar.
— Ela foi para lá desde que acordou. — Enzo avisou, quando Ivan entrou na tenda.
— Ela pode fazer o que quiser, Enzo. Mas você não vai ter esse privilégio, pare com essa vadiagem e venha me ajudar. Vamos perfurar um poço. Fica meio perigoso lá pelo final, mas por enquanto você vai ter que me ajudar.
— Ela parecia triste. — Ivan parou. O menino realmente estava incomodado com o estado de Natália.
— Ela falou algo de mim? — O menino negou. — Vamos logo abrir este buraco.
A manhã passara e os dois cavaram um grande círculo, mas de profundidade irrisória. Suados e cansados, Ivan e Enzo voltaram para a tenda seguindo os passos saltitantes de Bato, que assistira tudo deitado no gramado. Quando finalmente chegaram a casa, Ivan notou Natália preparando uma bagagem.
— O que é isso?
A moça não respondeu e continuou com o que estava fazendo. Quando terminou de encher a sacola com tudo que tinha, mais uma trouxa de alimentos, ela retirou o bebê do cesto e anunciou:
— Eu vou voltar para minha casa! — Aproveitando o silêncio de todos, Natália caminhou até o lado de fora da tenda, acenando com a cabeça para as três crianças, mas sem dirigir o olhar para Ivan.
— Espera! Acho que antes de ir embora, você tem que falar com ele, não? — Ivan apontou para o lado de fora, e a jovem viu ao longe Adônis. Janela saltou apressadamente pelas caixas e pela janela para gritar o nome do centauro e acenar, alegremente. Bato foi mais explosivo, correu pela porta e não parou até alcançar Galope, que vinha num passo tranquilo, e subir nas costas do amigo.
— Estou falando sério! Eu vou embora, sim! — A garota falou com olhos inflamados de certeza, mas logo em seguida engoliu em seco, e seus olhos se tornavam inseguros a cada passada que Galope dava em direção a ela. Assim que ele chegou, ela cortou o cumprimento dele e declarou com ímpeto: — Estou indo para Caxa.
— O que aconteceu aqui? — A pergunta parecia direcionada a Ivan, mas ele não tirou os olhos de Natália. A garota abraçou o bebê com mais força, como se fosse um amuleto protetor, e levantou voz para o centauro.
— Eu não aguento mais viver aqui! — Galope teve vontade de repetir a pergunta, mas não o fez.
— Natália, Cíntia me contou do seu gênio difícil. Você não ficou nem um dia inteiro aqui, não acha que está exagerando?
— Exagerando?! Não tem nada aqui! Eu preciso de algo para fazer, pessoas para conversar! E olha o tipo de vida que vocês levam, por pouco não passam por animais!
— Ei, porque você acha que pode falar alguma coisa da nossa vida? Você esqueceu que é prostituta? — Ivan falou demais, e pagou por isto. O tapa de Natália avermelhou o rosto dele, e as crianças se assustaram com o barulho. Ivan, por mais descontente que estivesse com aquela atitude, jamais levantaria a mão para uma mulher, de modo que o silêncio formado foi a deixa que Natália precisava para sair. Mas tinha mais uma coisa que ela precisava levar.
— Janela, você vem comigo. — Puxando-a pela mão, ela tentou se afastar do local, mas Adônis a impediu, apenas usando sua voz grave.
— Você não vai levar Janela. Nem o menino!
Com os pés tremidos, Natália procurou esconder a face amedrontada e se virou. Precisava ser rápida e enérgica, ou cederia diante da figura imponente de Adônis.
— Não vou levar? Ele precisa de mim! E Janela não vai viver aqui e ser mais um bicho arisco do Cesaro como vocês! A menina já tem mais de quatro anos e ainda não aprendeu que precisa passar pela porta! Você sabe que estou certa, Adônis, não tente me impedir! — A corajosa rapariga deu as costas e saiu andando decididamente, apesar do coração acelerado.
A pequena Janela relutou, tentou se soltar, mas Adônis nada fez ou falou. Ivan, que esperava alguma reação, resolveu seguir o julgamento do centauro. Ele era responsável pelo Cesaro, afinal. Mas a taurina não ia deixar se levar sem uma luta. Com uma teimosia beligerante, a menina puxou a mão até se soltar e cair de bunda no chão. Não chorou, apenas se ergueu e correu de volta para ficar com os demais.
— Pois fique aí! Vou dizer a todo mundo de Caxa que conheci uma monstrinha do Cesaro! — Essas foram as últimas palavras ditas por Natália antes de sair do local.
— Tem certeza disso, Galope?
— Enzo, você vai com ela. Entre para arrumar suas coisas e prepare-se para ir. — O menino entrou na tenda sem hesitar. — Eu não temo pelo menino, mas sim pela segurança dela. Sem Enzo, com certeza vai morrer na floresta. E não temos conhecimento dos poderes daquele menino, não é prudente deixar um filho do zodíaco tão novo na mão de humanos comuns.
— Estou pronto! — O menino saiu com um cantil com água e uma fatia de melancia na mão, já mordida por ele.
— Vá até Caxa com ela, e peça para abrigo para Cíntia, mas é importante que você durma no mesmo local que o bebê, entendeu? Diga a ela que eu estou pedindo isto.
— Dormir? Eu não posso voltar hoje?
— Enzo, o seu irmão caçula precisa de você. Sei que você não quer ir, mas é algo temporário. Nós vamos resolver isso de um jeito mais apropriado, mas agora não dá tempo, vá logo e depois mudamos os planos. E não se esqueça: seu dever é proteger o seu irmão!
— Sim, eu sou o mais velho e o mais forte! — O menino abraçou Bato e Janela, e se despediu dos adultos antes de Ignis aparecer e leva-lo até Natália. Ela pareceu não gostar da companhia de Enzo, mas não pediu que ele voltasse. De costas e com raiva, foi assim que Adônis e Ivan viram Natália pela última vez.
BATO
TRAVESSURAS E SUFOCOS
V
Durante uma tarde ensolarada, até mesmo as misteriosas florestas do Cesaro podem ser alvo de admiração. Numa pequena área noroeste, a mais próxima ao templo do Cesaro, um pequeno aventureiro passeia por entre as árvores, ignorando os desníveis de solo e a enorme quantidade de folhagem no chão. Com suas patas desengonçadas e seu jeito cômico de andar, balançando o rabo que rasteja, um lagarto destemido anda sem qualquer receio ou pressa, com o pescoço estirado e aparentemente a consciência de não haver qualquer criatura assustadora por perto, para lhe ameaçar. Mas no Cesaro, nem só os monstros com presas e sede de sangue oferecem ameaça...
— Miadai! — A voz fina de Bato ecoou. Instantaneamente, o réptil endureceu e sua desfilada foi interrompida para sempre. Bato se aproximou e agarrou com dois dedos o lagarto pelo rabo, colocando o bicho num cesto com mais três espécimes semelhantes e dois sapos magros.
Os animais capturados se chocavam entre si com o balanço do cesto, mas Bato não se preocupava; sabia que não eram capazes sequer de mover os olhos, quanto mais tentar uma escapada. O menino ajeitou as sandálias de couro nos pés e desceu um declive, saltando e tomando cuidado para não pisar nas folhas caídas. Já tinha tomado alguns tombos antes, e aprendera a correr pisando só em terra e grama, para o bem do seu traseiro. Quando finalmente encerrou a descida, deu de frente com os irmãos Enzo e Janela, ambos fazendo uma limpeza local, retirando gravetos e pedras, e deixando apenas um círculo no chão com algumas folhagens forrando o centro. Bato chegou despejando tudo do cesto no centro do círculo, com certa displicência. Enzo fez cara feia, mas não reclamou, apenas ajeitou os animais e trepou na árvore mais próxima, sendo seguido pelos mais novos.
As crianças pareciam saber o que estavam fazendo, exceto por Janela, que volta e meia, era alvo de reclamações por parte de Enzo, que exigia silêncio absoluto. A menina, emburrada, cruzava os braços e virava o rosto enfezado, sempre tirando um riso de Bato.
— Ei, olha lá! Tem um vindo. — Enzo sussurrou, apontando com o dedo para um animal que se aproximava. A pelagem escura denunciava de longe, era uma queixada. — Vamos pegar ele!
Bato seguiu a recomendação do irmão mais velho e agarrou o pedaço de pau que lhe foi dado, deixando um galho torto para Janela usar. Enquanto isso, Enzo se movia, cauteloso, ao longo de um galho baixo da árvore, de modo a se posicionar bem acima da queixada. Enquanto o animal mastigava os lagartos indefesos, Enzo aprumou um saco de linhagem de boca larga e se jogou em cima da sua caça. Foi uma queda direta e certeira.
A gritaria tomou conta do lugar, e enquanto Enzo pelejava para manter a queixada segura, Bato e Janela desceram do tronco com suas armas em punho. Bato mostrou ter experiência, pois mirava na cabeça do animal, apesar de não ter força suficiente para abatê-lo. Janela via tudo como uma grande brincadeira, e se contentava em aplicar golpes de qualquer maneira no saco de linhagem, que muitas vezes nem atingiam o lombo do bicho.
Finalmente, após agarrar uma pata traseira, Enzo conseguiu derrubar o adversário, cuja persistência já vinha lhe cansando. Assim que a queixada caiu de lado, Enzo não perdeu tempo e arrancou o galho da mão de Janela, partindo-o em dois após golpear o animal na cabeça.
A comemoração foi geral. As crianças gritaram e pularam intensamente, Janela novamente parecendo alheia à conquista, e comemorando pelo simples prazer de dançar e gritar. A farra foi interrompida quando Bato escutou algo e duvidou da vitória:
— Ele não morreu?
— Claro que sim, olha só! — Enzo deu chutes na queixada desfalecida, e Janela imitou, caindo sozinha após desferir o golpe.
— Então que barulho é esse? — Bato atentou para os grunhidos ao fundo, e seus irmãos confirmaram escutar. O menino mais novo deu alguns passos para frente e olhou para a árvore do seu lado esquerdo, espichando o pescoço. A visão fez Bato gelar e correr em disparada. — Corre que lá vem eles! CORRE!
A queixada que tinham abatido era diminuta, se comparada às que compunham o grupo. Sete animais barulhentos e furiosos, de pelagem negra e queixo esbranquiçado, partiram em perseguição aos três caídos do céu. As queixadas eram todas maiores que Janela – umas do tamanho de Enzo – e atacaram com intuito assassino. Muito mais veloz, o bando logo alcançou as crianças, e Janela, que ainda tropeçava só de andar mais apressadamente, estatelou após pisar em falso, logo atrás de Enzo.
— JANELA! — Bato gritou, desesperado. Enzo virou-se, afoito, e clamou por ajuda.
— IGNIS! — O espírito guardião surgiu de um estalo de fogo além dos pés de Janela. Com a pelagem incandescente, Ignis expeliu uma rajada de fogo, assustando momentaneamente o grupo selvagem; Bato e Enzo ergueram Janela do chão e partiram sem olhar para trás, com a menina se esforçando para não ser completamente arrastada pelos mais velhos.
— A gente não vai montar no Ignis pra fugir?
— Não, ele tem que ficar lá jogando fogo neles! — Os três correram até perder o fôlego, e finalmente alcançaram uma área aberta, mas ainda assim, não podiam se despreocupar, pois logo adiante se estendia o fim do Cesaro, numa queda fatal em direção às pedras e ao mar.
Os grunhidos voltaram cada vez mais próximos. Ignis exterminara cinco deles, mas dois se safaram, e corriam em direção às crianças. Os três se afastaram o máximo que puderam das árvores, atentando para a beira do precipício, até que as duas queixadas passaram o limite da floresta, deixando Enzo, Bato e Janela sem esperanças de salvação. Os três deram um último grito choroso, e quando as feras estavam frente a frente com o trio, a fumaça negra de Ignis irrompeu na frente das crianças e, sem ter tempo de se materializar, o íbex jovem causou uma combustão desmedida, que assustou a todos. As queixadas caíram instantaneamente, desfiguradas; as crianças não foram feridas pelo fogo de Ignis, porém o susto da explosão tão próxima lhes despertou um novo e mais profundo sentimento: o pavor.
Janela não suportou. Em choque, a menina correu para o precipício. Bato viu tudo acontecer, e se empurrou para a beirada, deitando o corpo e esticando o máximo que podia; Enzo se ajoelhou atrás dele, mas Janela estava fora de alcance. Ela caiu sem se dar conta do que estava acontecendo, e enquanto seu corpo girava no ar, Janela ouviu o chamado desconsolado dos irmãos:
— JANELA!!!
— JANELA!!!
— JANELA... VÁRIA!!! — Bato gritou, sem saber porquê. Os dois meninos não acreditaram, mas o novo comando de Bato – que até então só podia paralisar pequenos animais e objetos – havia paralisado a irmã mais nova em pleno ar.
Com lágrimas de desalento e alívio misturadas pela face, os meninos perceberam que tinham acabado de presenciar um milagre, e Enzo abraçou seu irmão mais novo o mais apertado que pôde.
Os dois montaram em Ignis e desceram o rochedo até alcançar Janela, com os cabelos esvoaçados e até as lágrimas do rosto completamente inertes.
— Pronto, solta ela. — Enzo pediu. Com um aceno de cabeça e um pensamento, Bato fez Janela se mover e cair aconchegada sobre Enzo e Ignis.
Após um demorado abraço, os três prometeram nunca mais sair para caçar sem avisar Galope.
Capítulo 3: O risco inesperado
I
Assim como aconteceu com Adônis, chegou o dia em que Ivan já não tinha mais histórias para contar. Mas as crianças não perceberam e, para dizer a verdade, talvez nem pudessem escutar com o mesmo entusiasmo inocente de outrora. Enzo e Bato passavam mais tempo em Caxa que no Cesaro; os dois revezavam a estadia na vila, ajudando Cíntia na criação dos novos caídos do céu. Não era corriqueiro, para os garotos, se perder em longas discussões sobre o tempo de estadia de cada um na vila. Ambos já preferiam ficar lá.
Desta vez, era o momento da ida de Bato para o vilarejo. Saiu cedo, com o raiar do sol. O menino já tinha um bom número de amizades em Caxa, mas Enzo e Janela ainda eram suas companhias prediletas. Esta tinha um jeito de ser muito diferente dos dois irmãos, sempre negou os convites para passar uns dias no vilarejo, mesmo quando avisada que não precisaria compartilhar com os irmãos mais velhos as obrigações. “Se é só para brincar, prefiro brincar aqui que tem mais espaço só para mim!”, ela chegou a dizer uma vez.
Mas brincadeiras já não eram tão presentes no Cesaro. Com dez, onze e doze anos, Janela, Bato e Enzo já participavam de um treino rigoroso. A ideia foi de Ivan, que precisava de algo para se entreter e tomou para si o desafio de formar entre os filhos do zodíaco uma geração de guerreiros tão forte quanto a relatada no diário de Tiestes. Bato não tinha tanta aptidão para combate, mas Enzo e Janela exibiam potencial para igualar os feitos do habilidoso Amadeu, Ivan acreditava. Sendo assim, ele combinou uma rotina de exercícios com os garotos.
Pela manhã, Adônis os acompanhava num treino físico de resistência, com corridas de longas distâncias, e de vez em quando nado em uma lagoa a sudeste da tenda. O corpo esguio de Bato era supreendentemente rápido nadando, de forma que na primeira vez que foram nadar como parte do treino, ele teve um desempenho formidável. À tarde, Ivan ensinava sobre combate e táticas de luta. A preocupação com alimentação diminuíra bastante após a construção de um curral e uma horta bem variada, que Adônis cultivava desde batatas e feijões, até algumas ervas medicinais que ele enviava para Enzo vender em Porocop.
Neste dia, excepcionalmente, quem cuidava do treino matutino de Janela era Ivan. O céu estava carregado de nuvens arroxeadas, que teimavam em não sumir. A experiência do centauro dizia que naquela noite provavelmente ganhariam mais um companheiro. Assim sendo, ele tirou o dia para limpar o templo, capinar os arredores e deixar tudo preparado para a noite.
— Vamos parar, Ivan. Eu quero descansar!
— Descansar?! Não sei de quê. Está cheia de fôlego, ainda.
— Meu fôlego aguenta muito mais, viu?! Mas minha perna está doendo. — Ivan parou e sentou no gramado elevado, e a menina se prostrou ao lado dele. — Aqui é muito ruim para correr, cheio de subida e descida. Galope me leva bem mais para lá — a menina apontou para o leste — que o chão é bem retinho.
— Então vamos para lá, que não quero você dando desculpas, Enzo vai chegar logo e quero ver os dois competindo. — Ivan assobiou para o céu.
— Ah, eu não vou. O Enzo sempre ganha em tudo. Não vou competir. Não quero.
Em dias ensolarados era fácil enxergar a sombra de Reimi se projetando no chão e viajando a velocidades enormes, mas neste dia, as nuvens escondiam não só a sombra, mas o próprio Reimi. As asas majestosas – cada vez maiores – não foram avistadas até o momento em que desceu bruscamente para o local onde estava Ivan. Os dois levantaram voo na direção da grande planície que Janela usava para correr.
— Vamos por ali, Reimi! — A menina apontou para o norte.
— Por que não ir direto?
— Eu gosto de ir com o Reimi perto do mar. Vem um ventinho muito bom. — E, realmente, havia uma brisa mais que refrescante vindo do norte. Não querendo perder o calor do corpo, Ivan deitou em Reimi, indiferente, mas Janela se pôs de pé para receber uma lufada que lhe levantou os cabelos. Ela raramente cortava, e os cachos castanhos desciam emaranhados pelas costas da menina. Mesmo quando atrapalhavam a visão, fazendo-a ter que tirar o cabelo do rosto constantemente, ela se negava a prender. Ela, Ivan e Adônis incorporavam bem a figura selvagem que muitos atribuíam ao Cesaro. Os três, com seus cabelos compridos e espíritos valentes, eram muitas vezes comparados a bichos arredios por Enzo.
— Ei, o que é aquilo ali embaixo? — Ivan reparou num brilho que reluzia dentro de um bosque, logo abaixo deles.
— Galope diz para a gente não ir lá.
— Mas o que é? Ele nunca me falou de nada do tipo. — Ivan fez Reimi descer. Já estavam bem próximos da planície, mas Ivan optou por pousar dentro do bosque.
O bosque era tão comum quanto qualquer outro. A única anormalidade era justamente a origem do brilho. Em uma determinada área, cresciam flores miúdas, dotadas de fluorescência nas pétalas. O que parecia um brilho branco do alto, Ivan agora identificava ser uma pluralidade de cores. De fato, a cor branca reluzia com mais intensidade, mas havia também lilás e verde muito presentes entre as plantinhas, e em menor quantidade, outras infinitas tonalidades e cores, todas brilhantes e, estranhamente, melancólicas. Ivan não pôde deixar de sentir, ao caminhar pelo campo florido, uma tristeza profunda. Talvez fossem as nuvens negras que deixassem aquele aspecto tão notório? Em dias de sol forte e brilho desimpedido, quem sabe, aquelas luzes poderiam se transformar em faíscas preciosas de alegria.
— Janela, o que é esse lugar? — Ivan olhou para longe. Ao contrário de Ivan, a menina não ousou pisar no campo de flores, e preferiu se conter detrás de algumas árvores.
— Eu não vou entrar aí, não. Galope falou que era um cemitério. Ele vai ficar muito bravo se ficar sabendo que você veio aqui! — E a menina correu para fora do bosque, na direção da planície.
— Espera! Cemitério de quem? — Sem resposta, Ivan correu atrás de Janela, e só pararam na hora de retornar para casa.
***
O resto do dia foi parado, mesmo para o Cesaro. Enzo chegou ao início da tarde, de cara fechada.
— Está tudo bem com Dolga e Guiara. — O menino anunciou, antes de se jogar numa rede e cair no sono. Ele já tinha idade para se cansar após dispender esforço em atividades que fazia contra sua vontade, e a vinda para o Cesaro pareceu ser o caso. Bato também já apresentava este traço, mas Janela ainda guardava em si a excitação infantil tão adequada aos mais novos. Quando Ivan a liberou do treino da tarde, ela não hesitou em sair para explorar o lado sudoeste; sentia uma vontade enorme de nadar na água da praia, e o local mais próximo que dava acesso ao mar – sem que fosse necessário se jogar de um penhasco – era daquele lado.
Quando Janela retornou, próximo ao anoitecer, estava acompanhada de Adônis.
— Aposto que a água estava bem gelada. — Ivan disse à menina.
— Estava sim. É desse jeito que eu gosto, né?!
— Galope, o que acha? Vai ser hoje? — O centauro deu mais uma olhada no céu antes de responder.
— Sim, quando o céu está tão coberto de nuvens assim, é o sinal. À noite elas desaparecerão de uma vez, e teremos mais um caído do céu.
— Isso é ótimo! Enzo está aí dentro. Chegou pela tarde.
— Sim, Janela me contou. Vou descansar um pouco, Ivan. Se quiser ir comigo, sinta-se convidado. Você acabou não indo na ocasião da chegada de Guiara...
— É claro que aceito o convite. Saímos mais à noite, então.
Mais tarde, Ivan soube que era hora de partir no momento em que Enzo comentou, olhando para o céu:
— Olha só como as estrelas estão maiores! — Quando percebeu Galope e Ivan se levantando, o menino logo se ofereceu para ajudar. — Posso ir com vocês? Eu nunca fui! Bato estava com você, quando Guiara nasceu...
— Pode, claro — o centauro consentiu, ao ver que Janela se encontrava num sono pesado e não acordaria tão cedo — mas apague esse fogo aí do lado e não faça barulho.
O menino obedeceu e logo os três estavam andando na direção do templo, deixando a tenda para trás, identificável na noite apenas pelo brilho verde que saída das costas de Janela.
— Que signo vocês acham que vai vir hoje? — O menino perguntou.
— Eu não sei, são muitas opções para chutar... Virgem, esse é meu palpite.
— Bato acertou, na vez de Guiara. Lembro que ele me falou que seria Câncer, e ele acertou na mosca! — Adônis comentou, se gabando da intuição do filho de Sagitário.
— Eu quero que seja Escorpião. Vocês sabiam que o filho de Escorpião é sempre nomeado rei de Kelicerata? — Galope já sabia do fato, o que deixou Enzo um pouco desapontado, mas Ivan ouvia aquilo pela primeira vez. — Eu queria poder ser rei assim tão fácil.
— E você, Galope? Só está faltando o seu palpite.
— Estou mais preocupado com o que a nova criança será capaz de fazer do que com o signo dela. Nós já temos cinco aqui e nenhum deles é o novo guardião do templo.
— Ora, mas você está fazendo um ótimo trabalho aqui, Galope.
— Eu sei, Enzo. Mas eu não estou aqui para isso. Assim como você tem Ignis, eu tenho que permanecer ao lado de Bato. Enquanto não surgir o novo guardião do templo, eu tenho que ficar aqui.
— Ué, deixa Janela! Ela nunca quer sair do Cesaro. Até Guiara já sabe ler e escrever, e só tem cinco anos. Janela tem que ficar aqui mesmo. — O menino disse sem maldade, mas o tom não agradou a Galope.
— Vamos logo, Galope! Fale logo qual signo você acha que vai ser! — Ivan animou.
— Isso não interessa! E não quero perder horas até chegar lá no templo, eu vou correndo, se quiserem acompanhar, fiquem à vontade.
O centauro encerrou a conversa e correu com sua velocidade estrondosa. Em questão de segundos, o trote longínquo se perdeu na escuridão, deixando Ivan e Enzo para trás.
— Eu quero ir... — O menino disse a Ivan.
— Então vamos! — Ivan chamou Reimi, que o pegou logo em seguida. Enzo partiu com Ignis – o animal flamejante deixou para trás um rastro incandescente no capim – e logo estava na cola de Galope.
Quando se reuniram no templo, Ivan teve novamente a sensação opressora de pequenez diante de algo muito maior. Apesar de esmagador, o sentimento não era desagradável; opostamente a isso, ele tinha a impressão de que ali, e somente ali, era possível perceber os braços acolhedores de alguém superior e benevolente.
Passando pelas pedras altas, Enzo chegou até o centro do templo e se debruçou no grande altar redondo. Com o queixo apoiado na superfície de pedra, o menino perguntou:
— E agora? A gente faz o quê?
— Nada, só esperamos. — Ivan não reclamou, baixou a lança dourada no chão e sentou, com as costas apoiadas numa das pedras. Enzo permaneceu junto ao altar por um longo tempo, e a impaciência o fez prestar atenção em algo quase imperceptível.
— Ouviram isso? Tem um sapo aqui perto! — O menino começou a caçada, sem esperar por respostas.
— Enzo, não saia daqui. Está escuro demais, você não vai ver se ele é venenoso. — Mas o menino não estava mais na área central do templo. Ao perceber que fora ignorado, Adônis foi buscar o menino, se guiando pelo coaxo intermitente do sapo.
Ivan prestava atenção, ainda sentado, para o vulto de Galope que cruzava o templo e aparecia detrás de uma rocha ou outra. Não pretendia sair dali, mas o grito de Enzo o fez pular do chão e sair correndo para o último lugar que vira o vulto passar. Quando chegou, preocupado, viu a cena mais hilariamente cruel desde que chegara ao Cesaro: a figura enorme e assustadora de Adônis admoestando Enzo com um puxão de orelha que quase levantava o menino do chão.
— Calma, Galope, ele não ia se ferir com o sapo, já vi ele pegando vários...
— Ele não estava caçando sapo algum, achei o sapo logo que vim atrás dele. Estava se escondendo, isso sim! — Ele largou a orelha de Enzo.
— Eu só queria dar um susto em você, já estava chateado de ficar esperando!
— Com essas luzes saindo das costas, você nunca vai pegar ninguém desprevenido. E não estamos aqui para brincar ou passar o tempo, você veio por que quis, então fique quieto no seu canto e aguarde!
Os três estavam prestes a voltar ao centro do templo, quando uma explosão de fogo fez os três se alarmarem. A negrura do local foi cortada por labaredas ascendentes, oriundas do centro do templo. Enzo não teve outra reação a não ser gritar, e o menino se esgoelou de medo. Mesmo assustados, Galope e Ivan agiram com rapidez. O centauro correu para se proteger atrás de uma das rochas, mas elas não eram largas o suficiente. Quando novas chamas jorraram, queimando os caminhos do templo do centro para as regiões mais periféricas, Galope desviou-se das chamas como pôde e buscou abrigo nas rochas mais afastadas. Ivan, com Enzo coberto pelo seu corpo, se escorava contra a pedra mais próxima ao centro.
Com o fogaréu crescente se alastrando pelos lados a cada nova explosão, Ivan não tinha o que fazer, a não ser torcer para que aquelas labaredas não crescessem ao ponto de engolir a pedra que usavam como escudo. Enzo mudou bruscamente de grito para um murmúrio covarde.
— Ivan! Saia daí! Venha mais para fora do templo! — O centauro conseguia ver que as labaredas do centro alcançavam uma altura cada vez maior, e se continuasse progredindo, logo o raio de alcance das chamas ia envolver os dois.
— Ivan, Ivan! — O menino chorava.
— Enzo, calma. Se acalma, garoto... — O menino levantou o rosto do peito de Ivan e olhou para os lados. Rajadas flamejantes cercavam os dois. E foi então que o menino teve uma ideia. Quando estava de olhos fechados, o medo se prolongava a cada onda de calor que sentia, e a esperança minguava quanto maior era o estrondo das explosões; mas quando viu o que estava acontecendo, tudo aquilo desapareceu. Ele viu lindas labaredas alaranjadas dançando ao seu redor, e aquilo lhe era muito mais que familiar.
— Ignis... — Enzo nunca se assustara ao cavalgar envolto pelas belas chamas do corpo de Ignis. Ele nunca sentiu calor ou medo, e agora não era motivo para começar a temer o fogo. — IGNIS!
O espírito animal surgiu do chão, coberto de chamas vermelhas, precedido de uma fumaça negra que emergiu abrupta. Sem precisar ser ordenado, o íbex adulto realizou a vontade de Enzo e entranhou o local com chamas. Ivan, que já havia presenciado as chamas de Ignis, sabia que não seria queimado, mas se encolheu por reflexo. Protegidos do fogo externo, ambos caminharam sob a proteção de Ignis para um lugar mais afastado, e se reuniram com Adônis.
— Vocês estão bem?
— Sim, tudo normal, não fomos atingidos diretamen... — Ivan foi interrompido por Enzo, que afirmou, com certeza absoluta:
— Eu tenho que ir lá.
— Enzo! — Galope tentou impedir, mas o menino montou em Ignis e foi até o centro do templo. O centauro teve a chance de impedir, mas quando se aproximou de Ignis, sentiu um calor tão ameaçador quanto o das explosões. Enzo estava decidido a resolver a situação sem ajuda.
Sem saber o que acontecia no centro do templo, Ivan e Adônis esperaram, e à medida que as explosões encolhiam, as labaredas saracoteavam por espaços menores, abrindo espaço para os dois se aproximarem em segurança. Quando tudo acabou, eles finalmente chegaram ao altar do templo, e um bebê estava deitado na pedra, dormindo profundamente. Enzo ao lado, acariciava Ignis, que parecia esgotado. O animal tombou no chão, e, atendendo ao pedido de Enzo, ele foi descansar. O íbex se cobriu de pequenas chamas efêmeras e desapareceu junto com o brilho delas.
— Ai! — Ivan queimou a mão quando tentou levantar a lança dourada, que havia deixado no chão na pressa de ajudar Galope.
— Ora, ora... Então até mesmo a indestrutível lança dourada não é imune ao calor, não é? — Galope caçoou de Ivan, que se abaixou para abanar a lança com a camisa.
— Já ouvi dizer que grandes ferreiros e forjadores de prestígio igualável afirmaram que a lança é feita de um metal indestrutível. Só acabamos de confirmar que ela realmente é feita de tal metal. — Ivan procurou mudar de assunto. — E o menino, tudo bem com ele?
— É uma menina. Está dormin... — Enzo interrompeu, quando algo lhe chamou atenção assim que Galope retirou a menina do altar.
— Ela está com a constelação nas costas!
— Hum... É verdade, Enzo. Ela fez como você, liberou as pedras sem a minha ajuda. E pelo visto, é filha de Libra. Nenhum de nós acertou.
— Eu ia falar Libra! — Enzo declarou.
— Não fale tão alto, Enzo. Precisamos aproveitar que ela está dormindo, não quer morrer assado como um porco na brasa, não é? Ivan, já terminou aí?
— Sim — o homem ergueu a lança, intacta e novamente fria, e caminhou até o altar — o que faremos com ela?
— Ela provavelmente vai demorar para acordar, temos que arranjar uma mãe para ela antes disto. Com esse tipo de poder, ela não pode ser criada como Dolga ou Guiara. É imprescindível que a ama de leite venha morar aqui no Cesaro.
— Mas na casa da Cíntia nem tem mulher com filho pequeno. Ah! Eu vi lá em Caxa, tem duas mulheres com filhos neném.
— Seja quem for, você vai ter que convencer. Negar o peito a essa pequena quando ela começar a chorar pode muito bem ser considerado como sentença de morte. De qualquer forma, fale com a Cíntia antes, explique o que aconteceu aqui, e ela deve arranjar uma solução. O que está esperando? Vá arrumar suas coisas que você vai voltar para Caxa agora mesmo!
— Eba!
— Nem pense que vai voltar para se divertir. Você não pode sair de perto dela por um segundo! Se não conseguir trazer ela e uma aia amanhã mesmo, durma no mesmo quarto. Sem você por perto comandando Ignis, essa criança pode exterminar com a vila inteira num piscar de olhos.
O menino se entristeceu ao saber que precisaria seguir ordens tão rígidas em Caxa; no final das contas, iria apenas para arranjar uma ama de leite e voltaria em seguida. Ivan apressou o garoto:
— Use Reimi para ir até a tenda. Aqui é bem perto da floresta, então volte para cá. Nós vamos te esperar. Não se esqueça de trazer o cesto para acomodar ela. E procure no lado que eu durmo, tem uma sacola com alguns pertences meus, está arrumado como bagagem, traga também.
— Você vai para Caxa também, Ivan? — A curiosidade do menino o fez perguntar.
— Talvez. Agora vá logo!
Enquanto o menino voltava para casa, como uma pequena luz virente cruzando o céu, Ivan e Adônis permaneceram no templo, a esperar pelo retorno do filho de Capricórnio. Só quando se viram sozinhos com a filha de Libra é que perceberam que estariam em sérios apuros, caso a menina encetasse uma nova sequência de explosões de fogo. Adônis tentou ao máximo deixar os braços firmes, evitando qualquer movimento que acordasse o bebê que segurava.
— Está pensando em sair do Cesaro, Ivan?
— É uma coisa que eu queria conversar com você, Galope. Há um tempinho eu venho pensando no tempo que tenho e na minha missão. Eu preciso matar Afrodite, mas desde que vim para cá, não cheguei mais perto de concluir este meu objetivo, entende? Eu achei que ficar aqui me traria algum avanço, ou que eu usaria meu tempo para me aproximar dos caídos do céu, mas já se foram seis anos, e só temos metade deles. Não me entenda mal, gostei muito do tempo que passei aqui com você e as crianças, são amigos insubstituíveis! É que eu tenho uma vida longe daqui me esperando...
— Eu entendo, meu amigo.
— Quero viajar por Kelicerata e procurar alguma pista de Afrodite. Assim que eu souber o paradeiro dela, pretendo eliminar aquela bruxa de uma vez e voltar para o meu lar. Logo estarei chegando aos quarenta anos, e não quero adiar eternamente o meu regresso. Bem, eu deixei alguém esperando por mim, entende?
— Não se preocupe. Saiba que instruirei os garotos para realizar a sua segunda missão. Juntos, eles serão capazes de restaurar o equilíbrio em Maciaan.
— Como eu já te disse uma vez, precisamos seguir o legado de Sauza. A história diz que ele nomeou três filhos para governar Maciaan, e acho que é isso que precisa ser refeito. Retomar o trono das nações aos herdeiros de direito. Um para governar o leste, outro o oeste, e um terceiro para mediar os conflitos, vivendo entre as duas grandes nações.
— Escorpião e Leão. O terceiro, provavelmente é essa garotinha aqui. Será que ela vai assumir o posto no Castelo de Libra?
— Eu não sei... Mas segundo o que meu mestre disse uma vez, o mediador da geração passada não era o filho de Libra, e sim...
— O filho de Peixes, o imperador do oceano.
— Exato! Mas como o Império Oceânico não existe mais, eu não sei como devemos proceder...
— Ivan, meu caro. Você é parte da família, não tenha a menor dúvida que nos empenharemos para cumprir a missão. Você sempre foi livre para sair do Cesaro, só espero que volte aqui para nos ver, uma vez antes de partir definitivamente para sua casa.
— Eu volto, Galope, eu volto.
Os dois aguardaram o retorno de Enzo, que chegou preparado para viajar de volta até Caxa. Sem muita demora, o menino ajeitou o que faltava, despediu-se de Adônis e partiu com Ivan, levados por Reimi até a floresta ao sul, que unia o Cesaro aos Campos de Porocop. A brisa fria da noite aliviava a tensão dos dois. Estavam no céu, muito acima do chão, sem qualquer jeito de se defender de um ataque ardente da filha de Libra, e talvez a única forma de saírem vivos no caso de uma ameaça, seria arremessar o bebê e fugir para o alto com Reimi, mas nem Ivan nem Enzo se atreveriam. O homem estimava os filhos do zodíaco como se fossem sua cria, e o menino era resoluto na sua responsabilidade como protetor dos irmãos mais novos. Mesmo se a situação exigisse o fim da filha de Libra, era impossível predizer se eles não optariam por se sacrificar no lugar dela.
Sem que nenhum imprevisto ocorresse, Ivan e Enzo seguiram o plano como combinado. Ao chegar ao início da floresta do Cesaro, o local onde a magia e bem-aventurança da casa de Sauza mudava para uma atmosfera de terror e opressão capaz de extirpar a força de vontade do mais valente dos invasores, Reimi desceu. Enzo pulou para o chão, levando o bebê, e após a despedida, entrou na floresta sozinho, enquanto Ivan levantou voo novamente. Sob o corpo ósseo de Reimi, Ivan tentou seguir o trajeto de Enzo, guiado pela luz esmeralda emitida pelas costas do menino, mas após ultrapassar uma árvore baixa de tronco velho e apodrecido, ele não estava mais lá para ser encontrado. Provavelmente o rapazinho já estava a milhares de passos ao sul de Ivan, que decidiu percorrer todo o caminho até Porocop, sem usar os atalhos da floresta. Longe de todos os seus amigos, Ivan prometeu que viajaria até onde fosse necessário para responder a pergunta derradeira: onde encontrar Afrodite?
DOLGA
NO MUNDO DE GENTE GRANDE
II
— Eu não acredito que você vai embora! — A voz aguda era de Guiara. A menina invocada tinha pele clara e cheia de sardas que casavam perfeitamente com os claríssimos olhos azuis; o cabelo comprido, meticulosamente penteado de lado nunca era visto desarrumado. Ela parava na porta imperativamente, com olhos resolutos sob as sobrancelhas franzidas. Dentro do quarto, Dolga terminava de atochar os últimos utensílios que julgava importante para sua viagem: um par de sandálias de couro, das que mais apertavam os pés – eram as preferidas dele. Algumas porções de bolo de trigo, embrulhadas em papel grosso, aguardavam na cama ao lado de um cantil d’água do tamanho que os adultos normalmente carregavam. “Precisa ser um cantil grande, o meu não vai servir para a viagem”, ele tinha pensado no dia anterior. O bolo tinha acabado de sair do forno e a água estava fresquinha, ele pegou tudo sorrateiramente, como já era acostumado. E mesmo assim, não passou despercebido aos olhinhos azuis de Guiara.
— Eu vou embora e eu já decidi. Vou embora! — O menino levantou a voz para a irmã, mas só para ela, tendo a precaução de não chamar atenção das pessoas nos outros cômodos. Sempre que faziam barulho demais em casa, eram imediatamente repreendidos; não só era inconveniente para as mulheres que precisavam trabalhar, mas também causava estranhamento em alguns clientes, que uma vez ou outra se queixavam para Cíntia sobre a presença de crianças no local. — Isso aqui não é lugar de homem!
O menino estendeu os braços, mostrando o quarto, cheio de indignação. O aposento era confortável, com duas camas desnecessariamente grandes para as crianças, lençóis coloridos e bem cuidados, sempre cheirosos e macios. Uma cômoda guardava as roupas dos dois, e ocupava o lugar que sobrava entre as duas camas, encostada na parede de frente para a porta. As paredes eram escuras como toda a casa, mas a iluminação das velas não era filtrada por vidros coloridos, tornando aquele quarto – como a cozinha e o quarto de Cíntia – um lugar livre da iluminação alaranjada, vermelha e púrpura do resto do cabaré. A janela do quarto, entretanto, era estreita e não propiciava a entrada direta da luz do sol, o que não acontecia no grande salão de festas da casa. Ao lado da porta, e servindo de apoio para o braço estendido de Guiara, um móvel alto de madeira erguia um grande espelho oval, com o topo levemente inclinado para frente, de modo a deixar que as crianças pudessem se ver no reflexo sem precisar subir em bancos. No topo do móvel, todo tipo de quinquilharia, desde miniaturas em gesso a caixinhas de música. Quando se olhou no reflexo, Dolga reparou na sua mochila de pano em cima da sua cama, e do lado oposto, a cama de Guiara, com infindáveis bonecas de trapo. Definitivamente, um homem de verdade precisava sair daquele lugar, e ele já estava com sete anos, não podia mais se sujeitar a viver numa casa de mulheres!
Pegou os embrulhos com comida e o cantil e colocou de qualquer jeito na mochila, decidido a sair naquele mesmo instante. Vendo a resolução do irmão, Guiara abandonou o posto ante a porta e partiu para cima do menino, intentando segurá-lo de qualquer maneira. Dolga, como já era de se esperar, não se deixou ser pego, e fez isso com uma facilidade assombrosa. Que ele era rápido na corrida, todos já sabiam, mas a ligeireza dela ia muito mais além da força nas pernas. Sua agilidade era descomunal até para coisas banais como mover os dedos ou girar o corpo, o que lhe garantia uma habilidade fantástica, que o travesso fazia questão de usar, especialmente quando precisava se esconder de algum adulto.
— Pode ficar aqui com elas. Você é menina igual a todas as outras! — Dolga disse, saindo pela porta, enquanto Guiara caía na cama dele, sem ter tempo de virar a cabeça e olhar as costas do irmão que fugia. Ela gritou muito alto, e a voz aguda alertou os que estavam próximos.
— Guiara?! O que aconteceu? — Uma das mulheres da casa apareceu, mas assim que bateu os olhos na menina, já podia dizer que nada de mal tinha acontecido, e amuou antes de dar dois passos no quarto. — Para que esse desespero todo, menina? Olhe lá, que não estou com paciência para malcriação!
A menina inventou qualquer coisa para gerar uma perseguição a Dolga, mas ela e qualquer outro já sabiam que Dolga, quando corria para valer, era inalcançável. E o menino já saía do beco que ligava a casa a uma das ruas principais de Caxa. Resolveu continuar correndo, pelo menos até sair do vilarejo, e em poucos segundos já estava do lado de fora.
“Agora sim!”, ele pensou. Finalmente ele realizava o que tanto queria: ir para Kelicerata. Todos os homens que passavam pela casa de Cíntia vinham de lá, ou iam para lá. Todos. Quando perguntava pelo vilarejo sobre a capital, sua vontade crescia mais e mais. Ficou sabendo das grandes lutas, da bravura dos soldados, das competições, da riqueza... Cada nova informação sobre a capital era um novo motivo para um garoto aventureiro antecipar a sua viagem rumo a Kelicerata. Uma vez, Enzo obrigou Dolga a ir para o Cesaro e passar uma temporada morando com os outros irmãos, mas ele não durou mais que três dias. A vida de um homem bravo era boa demais para ser daquele jeito. Dormir no chão, plantar e colher a própria comida, ser assustado por cobras e insetos a todo o momento... Não era com aquela vida que ele sonhava, e certamente um homem verdadeiramente valente – como ele já se julgava – lutaria por uma vida mais gloriosa que aquela.
Dolga seguia alegre pela estrada de terra até que uma carroça apareceu, seguindo o mesmo trajeto. Passou devagar, sem levantar poeira e dando a chance para o menino olhar bem para os homens que a conduziam. O cavalo era grande, mas parecia desanimado; a tralha que levavam estava coberta por lona; os homens, não tinham nada de especial. Dois descamisados, de cabelos alvoroçados e sobrancelhas unidas. Pareciam irmãos, tanto pelas feições, quanto pela atitude. Um segurava um saco de caramelos que levava até a frente do mais magro, que segurava as rédeas do animal. Os dois olharam bem Dolga no canto da estrada, e gentilmente ofereceram o doce. Ainda que o menino tivesse levado comida na mochila, só considerou a quantidade, não havia pensado que logo enjoaria do bolo massudo, ou que ficaria com vontade de comer algo mais saboroso com o decorrer do dia. Com um sorriso, aceitou com a cabeça.
O homem passou mais uma vez o saquinho de caramelos para o condutor, e depois arremessou desajeitadamente para Dolga. O menino, ágil como era, conseguiu volver e correr rapidamente para pegar o saco de doces sem deixar cair no chão, sem perceber os olhares maliciosos dos homens, que pretendiam rir do menino que não chegaria a apanhar o item.
Mas Dolga pegou. E a risada foi ainda mais alta do que esperavam, quando viram a cara do menino após notar que não tinha nada para ele no saco. Os dois voltaram a cabeça para a estrada, ainda rindo sem parar, enquanto Dolga ficou de pé, revoltado e sem a chance de responder. “Eu sou homem, e isso não fica assim”, ele pensou.
Largou a mochila ali no campo e correu para a carroça. Bastou um salto para chegar até os dois pelas costas, causando barulho e fazendo-os virar para trás. Sem entender como o menino se aproximou tão rápido, os dois receberam uma boa quantidade de tapas no rosto, sem oportunidade de revide, tal era a rapidez do menino. Após cinco ou seis bofetadas na cara, o irmão condutor reagiu e se atirou em cima de Dolga. O menino safou-se com certa facilidade, contornando o corpo do homem e pulou para a frente da carroça. O outro se ergueu para arremeter contra a criança, mas Dolga novamente se adiantou, pulando para o lombo do cavalo. Com um pedaço de madeira que recolheu do chão antes de subir na carroça, começou a vergastar o animal, não se atendo ao lombo, acertando até o pescoço do bicho. Açoitado, o cavalo tentou jogar o menino para o chão com pulos e coices violentos, mas Dolga mostrava que estava mais que preparado para reagir aos movimentos, o que não se podia dizer do homem magro que voltava a atacar. Recuperado do primeiro vacilo, o condutor se preparou, desta vez tomado de fúria, e lançou-se de corpo inteiro em cima do pequeno agressor, de modo que foi acertado na barriga pelo coice do cavalo, que ainda sofria as chibatadas.
O condutor caiu em agonia, e o irmão foi até o chão, preocupado. Diante dos gritos de dor, Dolga pensou ter ido longe demais, e pulou do cavalo para o chão, sentindo uma ponta de preocupação. Devagar, a criança se aproximou dos dois irmãos, com uma visível vontade de se desculpar; os olhos começavam a lacrimejar, e quando perceberam a chegada dele, logo ordenaram que ele catasse um remédio entre as tralhas da carroça. Dolga pulou sem precisar de mais palavras e começou a vasculhar tudo na busca pelo remédio, mas tudo era muito diferente e os frascos que encontrava não tinham nada escrito no vidro. Quando pensou em voltar para perguntar sobre o remédio, foi surpreendido por um dos homens, que o agarrou com força e velocidade desmedidas, ao ponto de fazer os dois rolarem até o chão. Preso pelos braços de um adulto, Dolga era tão frágil quanto qualquer outro menino de sete anos. Tentou escapar com histeria, mas nada aconteceu, o homem estava determinado a não deixa-lo fugir.
O condutor deu a volta na carroça e apareceu diante dos dois deitados no chão. Ainda com a mão na barriga, rangeu os dentes de ódio, e Dolga não tinha argumentos para acalmar o homem; a marca do coice na barriga se encarregaria de invalidar qualquer pedido de perdão.
— Você queria arrumar confusão e depois sair correndo, moleque? Então corre depois disto! — O homem ergueu o pé e pisou com força. Dolga conseguiu desviar do golpe balançando as pernas o mais que pôde, mas uma hora, o condutor acertou, e no primeiro pisão, a perna quebrou. Mas não parou no primeiro.
O choro da criança era muito mais suplicante e verdadeiro que o berro do homem, minutos antes, mas isso não causou clemência no condutor, que não se interrompeu no primeiro osso quebrado. Jogou seu peso adulto na outra perna de Dolga, e depois nos joelhos, sempre pisando mais duas vezes após ouvir os estalos, para garantir que aquele menino – o insolente – sofreria o suficiente. Quando achou que ele teve o que merecia, o condutor parou, com sua vaidade restaurada, e chamou o irmão para seguir viagem. A carroça partiu pela estrada corriqueiramente, deixando chão e choro para trás.
Capítulo 4: A partida do recém-chegado
I
Dias e noites passaram como a ventania que desce as colinas em direção aos ramos indecisos das árvores. Ao tempo de vidas que vêm e vão, um homem continuou sua procura sem rumos e sem pistas, seguindo para o destino inevitável desse tipo de busca: incontestavelmente infrutífera. Este homem, incompleto mas esperançoso, agora trilha o caminho de volta, por uma estrada sem bordas, levado pelo vento e pelas estupendas asas misteriosas chamadas de Reimi.
Ivan, o homem alado, regressava para o Cesaro, tão rápido quanto os céus lhe permitissem. E ainda assim, estava atrasado. O dia tinha sido cinzento, e como era de se esperar, a noite vinha carregada de infindáveis promessas cintilantes, anunciando a chegada de mais um filho do zodíaco. Quando tempo se passara desde o último? Meses, um ano ou mais, talvez... A pequena filha de Libra fora a última a chegar, mas agora um caçula estava a caminho.
“Vamos Reimi, mais um pouco, não me deixe na mão!”, Ivan depositava sua confiança em seu companheiro. As asas bateram com mais afinco, e logo chegaram ao ponto desejado. O homem alado mergulhou na copa das árvores sem medo de colidir com galhos rígidos. E acabou colidindo com dois ou três deles, mas não eram tão rígidos. Reimi chegou ao chão e Ivan saltou, abanando com o braço, claramente pedindo para que ele subisse de volta e fosse o mais rápido que pudesse para o Cesaro. Ivan também ia, mas tomando um atalho significativo. O andarilho correu por alguns metros, com seu longo cabelo trançado desenhando uma linha escura no percurso, tão imprevisível quanto veloz. Ivan achou seu alvo. Uma enorme árvore, provavelmente no fim da vida, com tronco largo e raízes rebeldes, que insistiam em se mostrar, remoendo toda a terra ao redor da base.
Ivan não conhecia tantos atalhos quanto Adônis ou Enzo, mas aquele ficara bem fixado em sua memória, mormente porque levava o viajante do meio da floresta até o Cesaro. E assim aconteceu. Um pouco espremido por causa da altura e dos músculos, Ivan se meteu em um buraco no tronco da árvore. Ele sempre achava que ali embaixo deveria ser malcheiroso, mas supreendentemente só sentiu um agradável odor de terra úmida. E após aspirar uma única vez, já estava do outro lado do tronco da árvore, mas numa localidade bastante diferente.
Muito ao norte de Reimi, que continuava o voo sem descansar, Ivan galgara uma enorme distância sem perceber; e sem questionar, afinal o charme do Cesaro era sua gama de mistérios inexplicáveis. Ivan continuou a corrida e após alguns passos já estava fora da floresta, pisando no capim verde do Cesaro. Coçou a barba recente e malcuidada, olhou para o alto e confirmou pelo céu amplamente iluminado pelas estrelas que chegara no dia certo. O bom condicionamento de Ivan se mostrou mais uma vez, e o portador da lança dourada correu sem descansar até chegar ao templo.
— Momento estranho para aparecer, velho amigo!
— Sério que me reconheceu? Achei que a barba serviria de disfarce... — Ivan sentou de frente para o altar, com as costas contra a parede fria de uma das rochas altas, o que o deixou bem à vontade, refrescando a pele molhada de suor quente.
— Se viesse mais gente aqui, talvez eu conseguisse te confundir com outra pessoa — o centauro brincou — mas me diga o que o trouxe aqui, já tem um ano e meio que você foi embora. Achou o que estava procurando?
— Galope... — Ivan permaneceu de olhos fechados, se deliciando com o frio da pedra. — Quando ele aparecer você me acorda. Passei os últimos dias voando com Reimi, e o balanço daquelas asas não deixa ninguém dormir direito.
— Tudo bem, fique à vontade! — E daquele jeito, quase corriqueiro, foi o reencontro dos dois grandes amigos que estavam separados há quase dois anos. Ivan não se preocupou em ter ofendido Galope com aquela chegada, e nem poderia, afinal a amizade dos dois permitia tal comportamento.
E, sem cerimônia, Ivan caiu no sono ali, sentado.
— Ei! Acorda! — O esforço para levantar as pálpebras foi grande, mas a visão seguinte foi recompensadora. Galope segurava um bebê no colo, que dormia calmamente. — É um menino.
— Sem labaredas desta vez? Que pena... — Caçoou enquanto bocejava.
— Por sorte, não. Vamos correndo? Estou querendo chegar logo em casa.
— Eu posso correr no meu ritmo, mas não posso te acompanhar porque Reimi ainda está a caminho, só vai chegar daqui a uns quatro dias, acredito eu.
— Vamos no seu ritmo, então. — Os dois começaram a correr para o leste. — E então? Achou Afrodite?
— Infelizmente não. Tudo que achei foi a velha história de Sauza, em todas as cidades que visitei. Mesmo na capital, não ouvi nenhum rumor sobre ela ainda estar viva.
— E mesmo assim resolveu voltar? Na noite da chegada de um caído do céu? Estava com saudade dos pequenos?
— Não, até que foi por acaso. Quer dizer, eu andei reparando num número crescente de estrelas cadentes durante a noite. Alguns dias atrás eu notei que todas elas rumavam na mesma direção, e eu sabia que no norte só havia o Cesaro. No momento exato que constatei isso, a noite se encheu de estrelas cadentes por um momento. Lindo, como uma chuva de luzes. E então eu entendi que era um sinal para eu segui-las. Iniciei minha viagem de volta, e hoje durante o dia o céu estava nublado daquele jeito. Foi então que percebi que dava para chegar ainda de noite. Parece que Sauza montou todo um esquema celestial para me atrair até aqui neste exato dia...
— Provavelmente foi isso mesmo. — Adônis respondeu seriamente. Ivan quase tentou consertar sua fala, afinal de contas ele não era tão crente em Sauza como todos em Kelicerata. Acabou não dizendo nada, pois sua crença na deusa mãe poderia ofender Adônis. E sendo o próprio centauro uma criação celestial, Ivan não se sentia à vontade para explicar que, além da lenda do herói Sauza, havia uma história muito mais antiga, contando os primórdios da criação sob os olhos amoráveis da deusa mãe.
II
— Que novidade é essa? — Ivan perguntou ao centauro quando chegaram próximos à tenda. Ao lado esquerdo da tenda havia um novo abrigo – bem menor que a tradicional moradia de Adônis – feito de madeira, barro e pedra cinzenta. A construção era bastante simples, de estrutura retangular e teto plano baixo; Galope erguido nas patas traseiras tinha a altura da casa.
— É a casa de Cibele. A mulher que veio para cuidar de Isabel, a menina de Libra.
— A pequena que quase explodiu o Cesaro...
— Exatamente. Elas dormem ali na casa. Disse que precisava de um lugar separado para dormir, pois não pretendia suscitar desconfiança do esposo, quando ele chegasse. E também vivia tagarelando do frio que faz dentro da tenda.
— As garotas de Cíntia agora estão casando? — Ivan sussurrou, um tanto curioso. Sabia da fama das prostitutas que trabalhavam para Cíntia. Eram sempre muito novas, e cujo espírito aventureiro – e, na maioria dos casos, ambicioso – sempre levava as jovens a buscar algum futuro na capital de Kelicerata, onde conforto e riqueza eram abundantes e acessíveis para quem soubesse onde procurar.
— Não faço ideia. Mas ela nunca trabalhou para Cíntia. Venha, vou te contar lá dentro.
Uma sensação familiar tomou conta de Ivan, quando entrou na tenda. Desde que fugira da sua terra natal, ainda pequeno, Ivan sempre viveu como nômade. Fosse viajando pelas terras de Maciaan, embarcado numa viagem marítima, ou nos anos que passou na ilha que chamava de casa, o homem não conhecia a rotina de retornar diariamente até um lar e descansar na mesma cama toda noite, até viver no Cesaro. Sob a luz da pequena chama acesa em uma lanterna, passou os olhos nos garotos; Enzo e Bato dormiam em redes, calmos como sempre e Janela deitava de costas no chão forrado com esteiras de palha, com os braços abertos e a cabeça caída para o lado direito do corpo.
Com o bebê ainda adormecido, Adônis forrou a mesa de pedra com um pano grosso e deitou a criança de bruços. Amassou um punhado de palha e entregou uma vareta de madeira a Ivan, que a acendeu no fogo da lanterna e devolveu ao centauro.
— Quando você saiu para procurar Afrodite, Enzo seguiu para Caxa, como de costume — aquecendo uma lâmina minúscula no fogo do montinho de palha, Adônis começou a habilmente retirar os pedaços de pele que cobriam as pedras de cor esmeralda — e lá no vilarejo, se deparou com uma mulher aguardando por ele. Cibele carregava consigo um recém-nascido e sabia de antemão que dois garotos iam e voltavam do Cesaro com frequência. Quando encontrou Enzo, disse que precisava vir para o Cesaro e se dispôs a cuidar da menina. Enzo não deu atenção, mas descobriu que Cíntia não tinha ninguém para amamentar a criança, e acabou trazendo a Cibele.
— Então a mulher queria mesmo vir para o Cesaro? Enquanto cuida de uma criança de colo?
— Ela está procurando o marido, na verdade. Parece que ele pegou um bom dinheiro com um nobre, dizendo que viria até aqui. O tempo passou e ele nunca deu notícias, e ela ficou sendo alvo de muitas suspeitas. Fugiu da capital mirando o norte. Em Caxa, o último vilarejo antes do Cesaro, ela esgotou sua esperança de achar o marido perdido, e desde então mora aqui conosco, esperando que o homem finalmente chegue ao destino prometido.
— Ela está esperando faz um ano? Não quero duvidar da integridade do marido dela, mas se ele foi honesto em sua promessa de viajar até aqui, provavelmente morreu pelo caminho.
— Logo que ela chegou, eu corri pela selva por dias a fio, e não encontrei nenhum sinal dele. Ainda fazemos varreduras de vez em quando, e até hoje nada. É claro que ele ainda pode estar morto na floresta, e a chance é bem grande, mas depois de um ano procurando e não achar nada, creio que ele realmente não chegou a pisar aqui no norte de Kelicerata.
— Não conheço tal mulher e já me sinto tocado pela sua história... Ela pretende ficar aqui indefinidamente?
— Acho que não. Uma vez a ouvi dizendo que voltaria para a capital quando os filhos estivessem mais crescidos. Mas nem depois disso ela cansou de procurar pelo marido na floresta.
— Descobrir que o marido morreu sozinho na floresta ou voltar para casa sem ter ideia do paradeiro dele, nenhum dos dois é um bom final para esta história.
— Eu gostaria que ela considerasse ficar aqui. É uma pessoa muito boa, você verá. Isabel nasceu para ser filha dela, as duas se entendem como ninguém. Se rumar para Kelicerata de novo, provavelmente será alvo de perseguições, já que o marido sumiu devendo dinheiro. Veja, terminei! É o filho de Peixes!
Adônis levantou o dorminhoco na altura do rosto de Ivan, iluminando sua face com a luz verde das pedras, que formavam a constelação. O centauro pediu a Ivan que ajeitasse o pequeno no cesto, e que depois conversariam mais; ele precisava descansar à noite, pois teria que acordar muito cedo. Ivan forrou o cesto com bastante algodão e cobriu com um lenço limpo, e deixou o cesto bem próximo de onde dormiria, suspenso em uma rede.
***
Sem perceber que deixou de passear por pensamentos aleatórios para cair no mundo misterioso dos sonhos, Ivan se viu acordado pelo cheiro de Galope. Há muito tempo não precisava acordar com aquele odor peculiar, e assim que o centauro se aproximou para pegar o cesto com o filho de Peixes, Ivan despertou, levemente atordoado.
— Está fazendo o quê? Nem amanheceu direito...
— Quero levar ele o mais cedo possível. — O centauro saiu com o cesto, e minutos depois voltou para depositá-lo no topo da mesa de pedra, já sem a criança.
— Vai levar ele para onde? — Ivan já falava plenamente consciente, mas ainda sem a mínima vontade de abrir os olhos.
— Vou procurar os homens-peixe. Preciso que eles levem esse pequeno para ser um do povo deles. — Assim como Ivan falava buscando um caminho de volta para o sono, Galope não se importou de continuar seus afazeres enquanto conversava, e já passava da entrada da tenda quando Ivan reagiu ao último comentário abrindo abruptamente os olhos e levantando da rede.
“Como é que é?!”, a pergunta ecoou na cabeça de Ivan.
Ficou de pé num salto e correu para o lado de fora da tenda, onde se fez ouvir em alto e bom som:
— Galope! O que foi que você falou? — O homem respirava brevemente, ansioso pela confirmação do centauro.
— Abaixe a voz. Quer acordar todos?
— Repita o que você disse agora há pouco!
O centauro terminou de encher um pequeno barril com água e caminhou até Ivan, com um ar sério no rosto.
— O que está acontecendo? Não estou gostando do seu tom de voz, e você não tem mais idade para receber lições, rapaz. — O centauro permaneceu sem resposta, e Ivan pela primeira vez manteve um contato visual ameaçador para com o amigo. O centauro retrucou no mesmo tom. — Eu disse que vou levar o menino para o povo do mar.
— Você disse que ele vai se tornar um dos homens-peixe?
— Sim, é isto que acontece com todos os caídos do céu da constelação de Peixes. — O centauro deu por encerrada aquela conversa subitamente hostil. Não sabia de onde Ivan tirara aquele mau humor, mas Adônis não era daqueles que buscava as razões, ele apenas aceitava os fatos e reagia da maneira apropriada. Deu as costas para Ivan e foi em direção à porta fechada da pequena casa.
— Só uma pessoa é capaz de transformar uma pessoa em um aquático e vice-versa! — Ivan gritou, mas não fora suficientemente alto para ele demonstrar a raiva que estava sentindo. — AFRODITE!
Galope continuou seu caminho até a casa, de onde uma pessoa apareceu pela porta entreaberta e disse, com um sussurro assustado:
— Ele ainda não terminou...
— Não tem problema. Se precisar, dou água para ele. — A pessoa detrás da porta entregou o filho de Peixes de volta a Adônis. O menino encetou uma gritaria desesperada tão logo largou o peito de Cibele, mas o centauro não se comoveu. Enrolou o menino em um lenço limpo, dando várias voltas no corpo dele, e se voltou para Ivan: — Se era tão fácil descobrir o paradeiro de Afrodite, você deveria ter percebido enquanto lia o diário de Tiestes. A transformação é mencionada não só na entrega de Nic-a-Noy, mas também quando ele diz que vai separar as gêmeas do armagedom!
A resposta de Ivan foi dada com muita revolta, mas pouca agressividade:
— Eu não li todo o diário de Tiestes... Só folheava por algumas passagens. — Com dentes cerrados de raiva consigo mesmo, Ivan custou a acreditar que a resposta estava o tempo todo ali tão perto.
— Vou tentar descobrir a localização dela quando entregar o menino. Não se zangue tanto.
— Posso ir junto? — A vontade de chorar era grande, mas Ivan não se permitia. Lágrimas de ódio, era isso que seu corpo tentava expulsar.
— Não sou cavalo, Ivan. A única vez que coloquei alguém nas minhas costas foi para transportar para longe um moribundo que ameaçava a vida dos meus amigos. Você esperou muito tempo, não se afobe agora que está tão perto. Com sorte, você pode avistar algum homem-peixe enquanto voa acima do mar.
— Reimi só vai chegar em alguns dias...
— Então espere, meu amigo. Só espere. — Galope olhou de volta para a pessoa escondida atrás da porta e, com um aceno, partiu para o sul.
Vendo de relance um rosto com olhos grandes a espionar, Ivan passou pela casinha com passos firmes na direção norte. Após muitos passos carregados de raiva e insatisfação, o homem se ajoelhou na beirada do despenhadeiro e, diante da imensidão azul e agressiva da água do mar, ele gritou como nunca antes havia feito. Até sua garganta queimar de dor. E finalmente chorou.
— Você era do povo do mar, mestre... Por que não me contou onde ela estava? POR QUE MORREU SEM ME CONTAR?
III
Com passos silenciosos Ivan retornou para a tenda, e foi convidado a se servir de uma refeição matutina por uma mulher de mais de vinte anos que ele não conhecia. Era Cibele, uma mulher baixa, corpulenta, de olhos azuis, cabelo alaranjado e um aspecto muito agradável aos olhos. A pele queimada do sol e mãos ásperas denunciavam que tinha disposição até para trabalho braçal, e Ivan logo deduziu que ela ajudava bastante Adônis no trabalho rural. Sentados à mesa de madeira do lado de fora da tenda, Bato e Enzo estavam com uma criança no colo, cada um. Janela pulou do banco e correu em direção a Ivan, com os braços abertos. A menina foi suspensa e o recebeu com um abraço forte, não se esquecendo de brincar com o cabelo de Ivan, como sempre longo e preso como um espesso rabo de cavalo.
Enzo o cumprimentou sem se mover, e Bato levantou o braço da criança em seu colo, acenando e forçando uma voz fina para desejar bom dia, tirando risos de todos os presentes. Cibele colocou um prato para Ivan, com ervilhas e ovos cozidos, e um pedaço de pão branco. O homem colocou Janela no chão e sentou-se com os demais.
— Aquele no colo de Enzo é Rafael, e com Bato é a Isabel. — Ivan se impressionou como eram parecidos. Rafael era maior um pouco, tinha olhos castanhos e cabelo loiro, muito claro. A menina tinha tez mais escura, olhos amendoados e cabelo fino muito ruivo; ela parecia mais filha de Cibele que o próprio Rafael.
— Parabéns, são ambos muito lindos. A Isabel não dá trabalho por causa do... fogo?
— Não, nunca aconteceu nenhum acidente com isso. — A mulher respondeu, orgulhosa.
— Uma vez eu achei que ela ia queimar, porque estava chorando muito e a pele dela começou a ficar muito vermelha, mas não aconteceu nada. — Enzo comentou, e Ivan notou que sua voz já estava bem mudada.
— Ele tem mó medo do fogo dela! — Bato caçoou, e Enzo deu um peteleco na orelha do irmão mais novo, fazendo com que Cibele colocasse ordem, antes que os dois começassem a brigar sério.
Todos estavam aproveitando a comida até que Janela perguntou sobre os gritos de Ivan mais cedo.
— Todo mundo acordou naquela hora. — A menina comentou, inocentemente. — Por que vocês estavam brigando?
Visivelmente constrangido, Ivan respondeu para encerrar logo aquele assunto.
— Nós não estávamos brigando, Janela. Eu só não sabia que o filho de Peixes teria que virar um aquático, e fiquei um pouco surpreso.
— Eu não gostei de saber disso, vou dizer a verdade: não gosto de aquáticos, nunca gostei! — Cibele disse.
— Mas você morava na capital, não? Deve ter visto muitos por lá.
— Nem tanto... É verdade que aparecem alguns por lá, mas não é tanto quanto se pensa. Normalmente eles não gostam de viajar para tão longe do mar. E mesmo assim, eu tinha um conhecido que trabalhava com transporte marítimo. Passava muito tempo longe de casa e convivia demais com eles. Um dia voltou definitivamente para Kelicerata, dizendo que o porto onde trabalhava tinha sido dominado pelos homens-peixe. Parece que o homem mais rico do porto tinha saído em viagem, e eles afundaram o navio para pegar tudo que ele levava consigo. Parece que era muito ouro, e acabaram usando o dinheiro para comprar os navios e propriedades da cidade. Quando se viu, eles tinham mais posses que as pessoas, e não durou muito até que todos deixassem a cidade, por questão de segurança mesmo! A maioria foi atrás de outra cidade portuária sob comando de gente normal, mas muitos retornaram para a vida longe do litoral.
— Isso é triste. Mas só de não haver tanto ódio entre as duas partes, já é um alívio.
— Eu não odeio eles, mas prefiro não me misturar, vai saber o que se passa na cabeça deles? É igual a cachorro do mato, não dá para confiar.
— Bom, eu pretendo encontrar o máximo deles que conseguir. Vou aguardar Reimi chegar e parto em uma busca.
— Quem é Reimi? — Bato respondeu energicamente:
— É um bicho que só tem asas! Não tem cabeça, não tem nada! Só asas!
— Eu sei onde tem aquáticos, Ivan. Vamos lá na praia que de vez em quando eles aparecem. Mas é um pouco longe... — Ivan se entusiasmou com a declaração de Enzo e terminou a refeição com muito mais gosto.
Mais tarde Ivan e Enzo deixaram a casa para ir até a praia, que ficava a pouco mais de quatro horas de caminhada na direção sul. Ivan quis seguir pelo litoral, pois do alto da falésia ele podia observar uma grande área do mar – mas mesmo que avistasse algum aquático na superfície, seria impossível estabelecer contato sem Reimi. Ainda que conseguisse chamar atenção por meio de gritos, o que já era improvável dado o som do vento forte no local, ainda havia uma enorme distância vertical que impediria uma conversa entre os dois.
— Viajar a pé não é mais para mim...
— Para de resmungar, velhote!
— Velhote? Tome vergonha na cara, moleque. Quantos anos você já tem?
— Treze. E Você? Duzentos?
— Tenho três vezes a sua idade. Agora faz as contas aí, espertão. — Para a surpresa de Ivan, Enzo respondeu imediatamente.
— Trinta e nove?
— Isso. Na verdade tenho trinta e oito. — Ao se ouvir dizer aquilo, Ivan foi incapaz de não pensar “Não sou mais um garoto da lua”, lembrando o seu antigo apelido dado pelo seu velho mestre. — Você aprendeu matemática?
— Mas é claro! A gente tem um professor lá em Caxa. Eu, Bato, Guiara e Dolga sempre temos aulas. Janela que nunca vai lá em Caxa, mas Galope queria que ela tivesse aula também.
— E como estão Guiara e Dolga? Nem sei como estão aqueles dois. Continuam sem vir ao Cesaro? Descobriram o poder deles?
— Eles não gostam daqui. O Dolga a gente descobriu. Ele corre muito rápido. Já ganhou uma corrida que apostei com ele.
— Mas você é muito lento!
— Não! Eu não sou lento nada, você que é velho. Apostei montado em Ignis!
— Ele corre mais rápido que Ignis? — Ivan perguntou, surpreso.
— Sim, mas ele vai ver, ainda vou ganhar dele.
— Você devia apostar uma corrida com Galope, de verdade. Para saber qual é o mais rápido do Cesaro.
— Rá! Eu ganho, certeza!
— E Guiara? Nenhum poder?
— Não. Ela não sabe fazer nada. Só fica brincando de boneca. Cíntia vive com ela, toda hora elas estão juntas.
Quanto mais conversava com Enzo, Ivan percebia que o garoto tinha responsabilidade, conhecimento e carisma. Havendo a necessidade de um sucessor para sua missão, ele ficaria tranquilo imbuindo em Enzo a responsabilidade, bem como lhe entregar a lança dourada que recebera de seu mestre. Mas vencer Afrodite era seu objetivo pessoal, e este ele não delegaria a ninguém. Após terminar a caminhada, Ivan se deparou com a faixa estreita de areia branca que se alongava por todo o sul do Cesaro.
— Pronto, agora é só esperar algum aparecer. Eles vêm muito para este lado. — Enzo disse, retirando a roupa e entrando na água salgada.
— Não vá para muito longe! — Ivan alertou, ao perceber um redemoinho no horizonte.
IV
Com a vista fixa na água agitada do mar, Galope seguia seu caminho com o filho de Peixes aconchegado nos braços. Após trilhar incessantemente por longas faixas de terra litorânea, ele finalmente avistou aquilo que buscava. Aquáticos, um grupo de cinco. Pelo menos os que estavam na beira da praia, mas o centauro não desconfiou que houvesse mais algum abaixo da superfície da água. As figuras eram típicas: todos com a tonalidade azul da pele, cabelo muito preto e muito longo, sem volume algum, úmido e grudado pelo corpo. Três deles mordiscavam o que parecia uma carcaça de peixe, e estavam com a cara lambuzada de óleo e sangue. Os outros dois pareciam bastante à vontade, um deitado na areia úmida, o outro sentado na água rasa, com as ondas batendo contra as costas.
O primeiro a ver Adônis foi o que estava sentado na água. De chofre alertou os demais, que esboçaram uma reação bastante cômica. Assim como as pessoas da terra, os aquáticos nunca tinham visto um centauro, mas a reação destes não foi de pavor, pelo contrário. A bizarrice com a qual se deparavam era pretexto para uma animação violenta e escandalosa, e logo os cinco se posicionaram de pé, visando Adônis.
O centauro sabia que aquele grupo não tramava nada de bom, e os encarou ameaçadoramente, mas não ousou se aproximar. Estacou onde estava e esperou que os monstros do mar viessem até ele; na terra ele teria vitória garantida, mas se o arrastassem para o mar, ele estaria em apuros. Nenhum dos cinco era particularmente robusto, mas a força de um aquático, mesmo magro, não podia ser desprezada. Os cinco se aproximaram, completamente nus, mas munidos de orgulho e valentia.
— Cansei de resto de peixe! Agora quero carne de cavalo! — Um gritou histericamente, com os olhos negros vidrados em Galope. Ele se adiantou e correu para cima do centauro.
Adônis manteve a calma, esperou que o inimigo chegasse mais perto e virou para a esquerda, buscando proteger o recém-nascido. O aquático saltou, cravando as unhas duras nas costas e abdômen de Adônis. Esperando alguma reação com os braços, o monstro do mar se desequilibrou quando o centauro ergueu as patas da frente, mas ao invés de tentar se libertar das mãos inimigas, Adônis desceu as patas com ímpeto e brutalidade, e o pé do inimigo foi esmagado pelo peso e força do guardião do Cesaro. O grito agonizante do aquático clamava por ajuda, e os companheiros deixaram as passadas lentas para avançar com tudo em cima de Adônis.
Com o pé destruído, o aquático usou a dor e a raiva como combustível para sua agressividade, e, ainda com os dedos fincados no tronco da sua presa, ele avançou o pescoço e mordeu Adônis na cintura. O centauro sentiu a dor quando os dentes cortaram sua carne, mas seu olhar deixava claro que a criatura mais temida do leste de Maciaan não seria intimidada pela mordida de um peixinho. Adônis envolveu o pescoço inteiro do aquático com sua mão e apertou, fazendo-o aliviar a mandíbula. Sem qualquer intenção de enforcar ou quebrar o pescoço do inimigo, Adônis mostrou que podia ser tão cruel quanto as histórias contadas sobre ele. Com o pé preso, o aquático viu a diferença de poder quando Adônis puxou seu pescoço para cima, estirando todo seu corpo. Galope não tinha intenção alguma de deixar o seu agressor permanecer vivo, e, com um puxão do braço, sentiu o corpo se estirar até desligar incontáveis ossos do inimigo; caso não tivesse soltado o pé do aquático, a própria pele teria sido rompida e ele não seria diferente da carcaça que acabara de largar na areia.
Segurando ainda o pescoço do adversário morto, Adônis atirou o saco de ossos em cima do segundo agressor, que caiu de costas na areia. Inclinou-se para trás e golpeou outro com um coice que o arremessou de volta às ondas. O quarto atacou pela frente, e Adônis deixou o braço desprotegido, usando-o como isca para proteger o bebê que carregava do outro lado. Como previsto, o inimigo agarrou o braço e cravou suas presas fundo no antebraço de Adônis, que emitiu um urro violento de dor. Por reflexo, o centauro ergueu seu braço, levando para cima o inimigo pendurado e desceu ferozmente. O inimigo caiu, mas um pedaço do braço de Adônis foi junto com os dentes do aquático. Sem controlar a fúria, o centauro pulou em cima do inimigo caído e o pisoteou. Fez a mesma coisa com o outro que se livrara do saco de ossos e já rastejava na direção da praia.
Com o braço ensanguentado, Adônis virou-se para o último aquático restante. O que caíra no mar já tinha fugido, e um acovardado era a única coisa que sobrara. De pernas trêmulas, ele deu meia volta e correu com passadas longas até a praia.
— Espere! — Adônis gritou, e correu atrás, mas uma vez na água, um aquático era inalcançável. O centauro respirou, decepcionado, enquanto pequenas ondas se chocavam contra suas patas, e antes dele voltar à areia, uma onda maior surgiu, mais alta que ele próprio.
Galope fez menção de se proteger, levantando a mão, mas a onda se partiu exatamente acima dele, e seguiu para a praia sem tê-lo molhado. Sem entender o que se passara, ele olhou para trás e viu o que o mar acabara de cuspir: o aquático amedrontado.
— Escute bem, vou falar apenas uma vez. Preciso de um aquático, mas não quero você. Quero alguém em quem possa confiar. Você vai me contar onde eu posso achar um, ou eu preciso ajustar o seu corpo para ficar mais parecido com os seus amiguinhos?
— Depois da Ponte dos Mundos, mais ao sul, tem uma cidade, um porto. Lá tem muitos aquáticos, muitos trabalham lá carregando navios, e...
— Já basta. Vocês deviam se capazes de nadar contra a força de um redemoinho, e aqui está você, jogado na praia por uma ondinha qualquer! Sua vida é uma falta de respeito a qualquer outro ser vivente.
— Eu não sei o que aconteceu. A onda surgiu do nada, e... — Sem dar atenção ao aquático, Adônis retomou sua viagem, para o sul, para depois da Ponte dos Mundos.
***
Foi à luz avermelhada do pôr do sol que Adônis achou a cidade portuária que estava procurando. O bebê chorava inquieto no braço do centauro, com pernas rechonchudas que se debatiam numa revolta infrutuosa, mas não sem motivo. Desde que saíra do Cesaro, no começo do dia, não se alimentara de nada além d’água. Mesmo Adônis já sentia um cansaço anormal. Acostumado a quebrar a barreira da imaginação humana, não fora a primeira vez que ele cruzara terreno para mais de quarenta dias em poucas horas de corrida, contudo não podia prever que precisaria viajar tanto para encontrar aquáticos propensos a colaborar, e a fome já lhe causava dor de cabeça e um mal-estar geral.
Quando se aproximou da cidade, construída na parte mais baixa da região, cobrindo uma estreita e comprida linha paralela à costa, Adônis sentiu uma calmaria obscura, e não discerniu com precisão se a aparência turva e tremulante das casas com telhas vermelhas era fruto da luz do sol poente, da sua visão alquebrada ou de uma névoa macabra que o atingiu logo que passou pelas primeiras ruas da cidade. As casas tinham portas e janelas lacradas, e não pareciam ter sido abandonadas recentemente, uma vez que a grama que se via nos jardins era alta e emaranhada. A solitude e abandono geral do lugar fez Adônis rememorar o Cesaro, muito embora as sensações variadas que sua morada causava na alma dos visitantes não tivesse um impacto tão assolador quanto a tristeza que sentia ali. As casas eram feitas de tijolos e pedra; um sinal de que muito dinheiro e trabalho fora empregado nelas, e que reforçava a incômoda curiosidade de saber o motivo de terem sido abandonadas. Após cruzar um bom número de ruelas vazias, alguém finalmente veio ao encontro de Galope, e pelo jeito que surgiu correndo de uma esquina, parecia estar em busca de alguma coisa. O homem pequeno e raquítico de cabelos em pé paralisou assim que se deparou com o que procurava. Vinha correndo atraído pelo choro do bebê, aflito achando que alguma criança pudesse ter sido abandonada à própria sorte ali, mas jamais esperaria bater de frente com uma criatura medonha.
— Tenha calma! Não tenho intenção alguma de lhe fazer mal, pelo contrário, gostaria de sua ajuda para talvez aliviar o sofrimento desta criança em meus braços. Mora aqui? Fui informado que encontraria uma cidade portuária por estas bandas, habitada por aquáticos e de grande movimento, mas só me deparei com ruas silenciosas e casas vazias.
O homem pareceu amedrontado ao ouvir as primeiras palavras de Adônis, mas logo se deu conta do equívoco que cometera e respondeu com a cordialidade típica dos homens que trabalham viajando.
— Não mora mais ninguém aqui na cidade, homem-cavalo, exceto aquáticos, como você bem disse; mas nenhum deles se instalou nas casas aqui em cima, e por isso mesmo você as encontrou abandonadas. Confesso que sua figura era a última coisa que esperava achar aqui ou em qualquer outro lugar, mas vejo que sanar o choro desta criança também é uma preocupação sua, então não vejo motivos para não colaborarmos. Sou um avô, afinal, e o choro infantil já não é algo que eu consiga ignorar sem sentir remorso. Estou indo à morada dos aquáticos, por que não vem junto? É um pouco mais abaixo, do lado da praia, venha!
Galope atendeu e seguiu o caminho junto do Senhor Ezequias. O velho de pernas curvadas se apresentou como o cozinheiro da cidade, cargo que Adônis se mostrou muito curioso para conhecer mais, porém o cozinheiro disse que ele entenderia tudo com uma simples olhadela ao local a que ele se destinava. O homem andava puxando um riquixá carregado de enormes sacas entupidas de sal, e Adônis se ofereceu gentilmente para carregar o peso no lugar dele; Ezequias pediu para levar o bebê, ainda que a troca não fosse justa na medida de peso, ele achou que estaria livrando o centauro de um grande incômodo, pois o menino chorava alto e tinha a garganta forte, com certeza aquele choro constante próximo ao ouvido não era um importuno desprezível.
Ainda que o propósito do cozinheiro no local permanecesse em segredo, isso não impediu o homem de falar sobre si, e como era tagarela! Adônis não encarou como um problema, muito pelo contrário, se viu distraído da estranha sensação que a cidade abandonada colocava sobre seus sentidos.
— Mas eu não fico zangado com esse rumo que tomei, isso lhe garanto francamente! Quando se trabalha para nobres e grandes comerciantes, é muito fácil se livrar de qualquer problema eventual usando um lado ou outro, e assim eu fui ensinado por meu pai, que fora em sua época um cozinheiro muito melhor do que eu sou hoje. Mas eu deixei de ser garoto e as artimanhas de trabalhar para gente poderosa não funcionava mais. Os nobres se tornaram grandes comerciantes, os grandes comerciantes se tornaram nobres, e os dois tipos de empregadores se tornaram apenas um. Falo isto muito abertamente, e em nome não só dos trabalhadores da cozinha, mas de todos que vivem de algum modo sob o comando dos grandes e poderosos. A partir do momento em que eles não tinham mais rivalidades – uma vez que já se consideravam como iguais – a serventia dos intermediários, dos trabalhadores privilegiados, que podiam ter informações precisas, mas não se prendiam a laços familiares ou de grande amizade, caiu por terra. Tornamo-nos tão necessários quanto o mais sujo mendicante, e tão logo aparecesse outro com capacidade laboral semelhante, sua permanência no trabalho estava ameaçada. Eu fui deposto do meu cargo no Castelo Henpakihan ainda jovem, mas já tinha meu filho e minha finada esposa. Ela trabalhava com esculturas, e por longo tempo foi a provedora da casa, uma vez que eu não ganhava muito cozinhando para um pequeno restaurante. Quando ela faleceu, achei aqui uma fonte de renda vultosa e regular, e permaneço até hoje, mesmo após o abandono geral dos moradores. Meu filho já tem seus filhos, e não precisa tanto de mim, mas sempre que vou até a capital o visito e os encho de presentes. Para que mais eu trabalharia ganhando tão bem, vivendo quase que sozinho?
A conversa continuava, e Adônis pouco falava, preferia assim, até. O choro do filho de Peixes e a conversa do velho Ezequias se misturaram a vozes ainda longe, mas que se intensificavam ao passo que os dois desciam por uma ladeira de terra muito íngreme, ladeada por um morro alto e de mata densa do lado direito e mais casas abandonadas do lado esquerdo, que deram lugar a um alto paredão de terra e areia quanto mais se descia.
Ao chegar à parte mais baixa, onde a mata densa se dispersava deixando apenas o chão arenoso e amarelado, Galope avistou mais pessoas – grupos pequenos, faziam rodas de cinco ou seis – mas inexistentes se comparados com a legião de aquáticos que habitava o lugar. “Definitivamente chegam a duzentos, talvez um pouco mais”, pensou o centauro. Com seus longos cabelos lisos e negros, pele azulada e olhos completamente escuros, os aquáticos dominavam aquela região da cidade costeira.
Na água, atracados, se viam cinco grandes barcos. Dois deles eram feitos para navegação e pescaria, com cabines e muitos utensílios no convés, até as chamadas redes de pesca, que Ivan contara ter usado bastante. Os três restantes eram os chamados barcos de viagem, mais largos que os outros, mas consideravelmente mais simples. O convés era liso e reto, tendo apenas uma abertura retangular no centro. As viagens entre o leste e oeste de Maciaan eram feitas em sua maior parte dentro daqueles barcos; pessoas sem dinheiro para atravessar a Ponte dos Mundos ou sem tempo para percorrer o trajeto pelo chão contratavam os serviços dos aquáticos, que entupiam o barco com quantas pessoas fosse possível e arrastavam a embarcação pelo mar violento. O tempo da viagem gira em torno de sessenta dias, com uma parada no meio do caminho para fazer a limpeza dos dejetos, mas quase todos acabam não embarcando de volta para completar o resto da viagem, tamanha imundície se instala no interior do barco. Os aquáticos não reclamam, afinal o preço cobrado é do trecho completo e eles acabam puxando menos peso na segunda metade da viagem.
Muito se diz sobre as primeiras viagens naquele tipo de transporte, sobre como os pioneiros tiraram a própria vida se jogando no mar agitado, ou como posteriormente eram descobertos jogados pelos cantos, sem vida.
As viagens se reduziram de tal modo que os homens cuja valentia permitia aceitar voluntariamente tais condições eram taxados de loucos desvairados. Para transporte de mercadoria, entretanto, o serviço era mais que vantajoso, e o montante a se ganhar com transporte de especiarias e utensílios deixou muitos ricos, mesmo com a grande taxa de perda – não só porque alguns objetos eram destruídos durante a viagem, mas pelos casos de furto, muito comuns e para os quais os aquáticos faziam vista grossa; “Nosso trabalho é apenas arrastar o barco pelo mar”, eles se defendiam.
— Venha comigo! — Ezequias encorajou; pelo jeito pretendia aproveitar a gentileza do centauro até o último momento. Quando o riquixá fosse posto no lugar exato que ele almejava, com certeza devolveria o menino choroso, e a troca de favores se findaria.
Enquanto andavam pela areia da praia, Adônis percebeu que Ezequias era mais que conhecido pelos aquáticos. Todos, sem exceção, o cumprimentavam, fosse com um gesto afetivo ou apenas um aceno de mão seguido de um grito. Os mais afoitos se exaltavam de tal forma que pareceu a Adônis que o velho cozinheiro era venerado por alguns.
— Ezequias, eu preciso resolver os meus assuntos. Agradeço pela sua conversa e pela ajuda com os caminhos da cidade, mas doravante pretendo continuar com minha missão. — Adônis percebia o leve brilho esmeralda surgindo nas costas do bebê, e se intensificava quanto mais o sol desaparecia. A sensação ruim que o atingira na entrada da cidade se amplificara na praia, e o ar era opressor.
“Como é possível que tenha piorado aqui na praia, onde o vento é tão mais forte?”, ele se questionava, mas se os aquáticos eram a fonte daquele mal-estar, os ventos marítimos seriam a última coisa a atenuar os efeitos daquele lugar no corpo de um forasteiro. Ao mesmo tempo, Adônis percebia na multidão olhares curiosos e desconfiados, olhos que ele pousaram sobre ele desde que surgira no mundo.
— Aqui, coloque do lado de lá! — Ezequias apontou para uma cobertura feita com galhos e folhas de árvores, ainda com a parte lateral sendo ajeitada por alguns aquáticos. Era uma proteção contra o vento, e no centro havia uma fogueira improvisada com pedras e galhos. Um aquático teimava em tentar acender a fogueira, sem sucesso. Do riquixá Ezequias retirou uma pederneira, e com a mão levantada num gesto hesitante, o aquático não precisou de muito tempo para entender o que o velho sorridente queria. Chamou por um nome, agitou a mão com uma força desnecessária, e da multidão surgiu um aquático magro, carregando uma sacola de couro muito surrada. Adônis não soube dizer se era muito novo ou muito velho, mas definitivamente descartou a possibilidade daquele apressado ser um adulto, pois todos do povo do mar eram robustos quando adultos. “Por se encarregar do dinheiro, parecia ser mais velho à primeira vista, mas somente alguém mais novo que os demais se permitiria ser comandado com tanta violência e desatenção.”, concluiu.
E era o pagamento que ele trazia. Deitou o saco de couro aos pés do cozinheiro, e Ezequias abriu para que Galope espiasse o que tinha ali. Era ouro, mormente, mas o centauro percebeu outras preciosidades. O velho de pernas tortas deu uma piscadela para Adônis e depois cochichou, entregando o bebê de volta ao centauro:
— Isso aqui não vale nada para eles, e eles tem muito, muito mais, homem-cavalo...
Voltando-se para a multidão, Ezequias ergueu os braços e, infundido pela gritaria, usou a pederneira para acender o fogo, deixando todos em êxtase.
— E tudo que eles pedem em troca, veja só — o pequenino subiu no riquixá e enfiou a mão numa das sacas de sal, retirando uma tira de carne bovina do tamanho do próprio braço — é um pouco de carne assada!
Enquanto o velho ajeitava o fogo crepitante e posicionava as carnes, Galope notou quantos já estavam ali reunidos, cada um mais afoito que o outro, embora se pudesse dizer que nenhum deles sentia fome. Ele se deu conta de que estaria em sérios apuros, caso o aquático de outrora resolvesse aparecer e denunciar o que ele tinha feito aos seus companheiros. Ou a confiança de Adônis no seu amigo mais recente estivesse sendo subestimada: nenhum dos aquáticos distinguiria só pelo olhar que tipo de amizade existia entre o centauro e o adorado cozinheiro, e não parecia que seriam capazes de abrir mão do empenho de Ezequias apenas para acertar as contas de um conflito particular. O centauro resolveu esperar mais um pouco, e se aproximou de Ezequias novamente.
— O segredo é não retirar o sal e deixar a carne mal passada, eles adoram o sabor do sangue quente. — O cozinheiro confidenciava a Adônis. — Esse menino não vai parar de chorar nunca?
— É sobre ele que preciso falar com esses aquáticos. Preciso da ajuda deles para locali...
— Ajuda? Ora, homem-cavalo, não seja inocente — o velho riu enquanto retirava um pedaço de carne e entregava aos mais próximos — eles prestam serviços. Recebem dinheiro e cumprem o combinado; pelo menos dizem que cumprem.
— Bom, o menino já está esfomeado, e como eu não vi nenhuma mulher aqui nesta cidade, ou consigo alguém para me ajudar ou vou embora antes que ele morra de fome!
— Silêncio, silêncio... — Ezequias apressou-se em advertir o centauro. Da multidão uma figura imponente abria caminho, com passos pesados e despreocupados. — Ele é o chefe, fique quieto e cale a boca do menino!
De forma respeitosa, os que estavam à frente de Ezequias deram lugar ao aquático que chegou. Era forte e alto, embora a maioria ali fosse também, e tinha os ombros assustadoramente mais largos que a maioria dali. Adônis percebeu que aquele não era nenhum jovem, apesar da pele ser lisa como a dos demais. Ele mesmo, que vivera centenas de anos, não aparentava nenhum traço de debilidade pela idade, e talvez os homens-peixe fossem iguais a ele neste aspecto.
— Mas que prazer vê-lo com tanta disposição, Bal-t-Moer! O seu pedaço especial já está pronto, e trouxe muito mais, para satisfazer todo o grupo. Quando me informaram que haveria um novo encontro dos atravessadores eu larguei mão de todos os compromissos e me empenhei para conseguir toda a carne e chegar à noite exata. Como pode ver, já não sou tão jovem, e me entristece perceber que os dissabores da velhice se acumulam cada vez mais rapidamente a cada dia que se passa, mas também cresce a minha alegria de ver que você não mudou muita coisa, desde que nos vimos pela primeira vez! Se continuo pontual e diligente com meu trabalho aqui, é em grande parte graças à vontade de servir você, não por achar que somos desiguais nem pela obrigação impelida pelo recebimento dos honorários, mas porque tenho apreço sincero e admiração por você em especial. Não é o mais velho do grupo, mas ainda assim exerce a liderança sem abusar da força, e essa qualidade também me atinge, de maneira que evito pensar que seria mais proveitoso me retirar para uma vida tranquila e de abundância. Sim, admito que poderia realizar este desejo se assim quisesse, mas não creio que seria feliz deixando de lado nossa amizade, ainda mais sabendo que toda riqueza que tenho ou um dia venha a ostentar, será possível graças a você!
— É um grande prazer para mim também, Ezequias. Seu apoio não é desmerecido pelas obrigações seladas em nossos acordos, e todos aqui sabem disso, não pense que eu sou o único a reconhecê-lo. Se algum dia você for velho o bastante para não conseguir chegar até aqui carregando a sua bagagem, serei o primeiro a caminhar até sua casa para saber do seu estado. Quanto a mim, não sou tão vigoroso quanto já fui, apesar das suas amigáveis palavras que recebo de bom grado.
— Aqui, aproveite e pode pedir mais, se assim desejar. — Ezequias ressaltou ao entregar um prato grande e raso, com uma porção generosa de carne a Bal-t-Moer. Antes de dar a volta para a multidão, o líder dos aquáticos olhou curioso para Adônis e para o bebê que chorava, e como tendo recebido algum sinal, o centauro se aproximou sem hesitação.
— Ora, essa não é uma visão corriqueira!
— Pelo que ouvi, você é o líder do grupo. Tenho assuntos a tratar e acredito ser do seu interesse.
— Somos homens e somos algo mais. Além disso, não acredito que compartilhemos semelhanças. — Ao emitir aquele tom, todos ao seu redor compactuaram da sua decisão, e ao menor sinal, a multidão avançaria em Adônis.
— Reconhece esse sinal? — O centauro mostrou o bebê a Bal-t-Moer, apontando para a constelação de Peixes que brilhava nas costas. Bal-t-Moer não escondeu o espanto, sem, entretanto, perder a compostura. Após considerar em silêncio, enquanto voltava seguidamente os olhos para o bebê e Adônis, ele convidou:
— Venha comigo.
Enquanto Galope seguia Bal-t-Moer pela multidão, sentiu os olhares hostis desaparecerem pouco a pouco.
V
— Você com certeza não foi criado em meio a nobres. — Bal-t-Moer sentou-se sobre uma pilha de almofadas ajeitadas na praia exclusivamente para ele. Rasgava a carne com os dentes, chupando o caldo que podia, mas aparando com o prato as gotas que escorriam. Atrás dele seis aquáticos esperavam em pontos afastados, com certeza eram a guarda pessoal do chefe, ainda que parecessem preocupados em parecer distraídos. Adônis não os levou em consideração e respondeu sem cerimônia.
— Não, minha origem é bem mais humilde que a do nosso amigo em comum.
— Isso é bom. Pode me dizer o que quer sem rodeios. Não que eu não goste do jeito pomposo do Ezequias, com ele eu já me acostumei. Esse menino não vai parar de chorar?
— É o que mais desejo, faz algum tempo, já, mas não depende de mim. Você sabe muito bem quem ele é e o que precisa ser feito para ele parar de chorar, eu imagino.
Bal-t-Moer ficou quieto, concentrado na comida. Por mais incomodado que Adônis estivesse com o súbito desinteresse, a apreensão maior foi a dos homens atrás do chefe. Para eles, que não puderam ouvir o que se falou, o silêncio era sinal de desentendimento, ou em caso mais grave, um prelúdio para uma briga. Os que esperavam sentados ou se colocavam de esguelha não puderam ignorar a necessidade de ficar de prontidão, e todos se viraram de frente para o centauro, dando um ou dois passos para reduzir a distância e parando novamente.
Após engolir a última tira de carne, o chefe dos aquáticos ergueu o prato e derramou o caldo sangrento que sobrara na boca. Um filete turvo escorreu pelo canto da boca, mas o aquático limpou com a palma da mão, esfregando-a depois numa almofada.
— Vão comer! Não deixem ninguém se aproximar, pois o que tenho a conversar aqui é de suma importância. Levem isso também! — Os aquáticos se retiraram daquele pedaço da praia, e um deles recolheu o prato de Bal-t-Moer antes de mostrar os dentes para Adônis e sair apressadamente. — Deixe-me pegá-lo um pouco.
O centauro entregou o menino, que foi segurado de costas, iluminando o rosto azulado com um verde parco e belo.
— Eu sei o que você quer de mim, homem-cavalo. E eu gostaria muito de lhe ajudar, mas quero que compreenda o que está me pedindo. Qual o seu nome? Você tem um?
— Eu me chamo Adônis. — O centauro coçou o queixo, afundando os dedos na barba negra e áspera.
— Adônis, eu sei reconhecer o imperador do oceano. Apesar de não parecer, sou bastante velho e conheci não só Nic-a-Noy, como recebi ordens do herdeiro do mar, filho de Água-Marinha, mesmo após a destruição do império. Entenda que sou nostálgico e é com uma grande alegria que eu seguro este bebê em minhas mãos. Nunca tinha visto as pedras tão de perto, sabe? Lá embaixo não temos todas essas cores aqui de cima; enxergamos bem, porém é tudo muito escuro. Só vi luz lá embaixo três vezes.
— E uma delas era esta mesma luz.
— Sim. Via-se de longe. Nic-a-Noy era anunciado pelo brilho que o acompanhava sempre que o céu escurecia. Água-Marinha também! Este brilho é um símbolo os tempos gloriosos de outrora. Mas os tempos são outros. A maioria dos que estão aqui não conheceram os tempos do Grande Império, e muitos dos que conheceram, como eu, já estão confortáveis com o que conseguiram depois. Se essa criança aparecer de repente no fundo do mar há muito mais gente que tentará se livrar dela do que os poucos que buscarão o regresso do imperador.
— Eu sei que o imperador não é a maior autoridade entre vocês. Por que não deixam para ela decidir? Ouvi dizer que não há palavra dita por Afrodite que não seja repetida por todos respeitosamente. — Bal-t-Moer pareceu aturdido por um momento, mas logo se lembrou de que qualquer suspeita que levantasse sobre aquelas palavras – sobre o conhecimento de Afrodite por alguém de fora do povo do mar – era enviesada pela sua vivência com humanos. Aquele homem-cavalo era tão estranho para ele quanto deveria ser para qualquer outro humano, dificilmente ele estaria envolvido em tramoias secretas contra a deusa mãe. Sem ter a chance de arguir, foi atropelado pelas palavras de Adônis. — Eu sei o que preciso saber, e o meu dever é levar o menino até ela. Ele será um de vocês, quer você queira ou não; o imperador deve voltar.
Foi então que o aquático riu, timidamente.
— A mãe de todos é tão amada quanto incontestável, mas eu vejo muito dos humanos nesses mais novos, e temo que haja pela primeira vez uma reação à mãe. Mas sim, você está certo que a melhor coisa é leva-lo até ela e que lá seu destino seja traçado; é inclusive vantajoso para mim que a decisão não sofra intervenções da minha parte, pois como pode ver, sou responsável por uma quantidade grande dos que provavelmente se oporão à decisão do retorno de um líder absoluto. Mas você erra quando pretensiosamente diz que o imperador voltará. Afinal, como pode haver um imperador se não há império? O Castigo ainda está lá, dormindo sobre os escombros do que um dia foi a maior cidade do mundo. Eu já visitei Kelicerata, e digo a você: o título que ela atribui para si pode ser verdadeiro agora, mas jamais convencerá os que presenciaram os áureos tempos de Asu-Na-Buru.
— Itatibe? Itatibe ainda está no fundo do mar?
— O Castigo nunca acabou... Desde que esmagou Asu-Na-Buru, não se moveu. Nós que sobrevivemos pensamos que o castigo sumiria após destruir a cidade, e ele começou a desaparecer. Mas somente a parte superior e fria sumiu. O Castigo continua, grande e vigilante o suficiente para impedir qualquer um do povo do mar que tenha esperança em reconstruir Asu-Na-Buru. Se nem os escudos do mar puderam com ele, por que nós teríamos alguma chance?
— Eu não fazia ideia de que Itatibe ainda estava lá. Mas se há alguma chance de salvação para seu povo, é por meio desse menino. O que me diz?
— Você deu sorte, Adônis. Encontrou um dos poucos saudosistas que aceitariam esse tipo de coisa — ele não sabia que não tinha sido o primeiro a quem Adônis se dirigira; um alívio, pois a primeira abordagem não teve um desfecho amigável — e me encarregarei de leva-lo à mãe de todos assim que possível. Daqui a uns dias nossos barcos partirão para o oeste, e vou pessoalmente me encarregar do menino.
— Alguns dias? A criança já não tem forças nem para agitar os braços. Ele precisa ser amamentado nesse meio tempo, então.
— Então temos um problema grande nas mãos. Ezequias é sempre pontual, mas os outros que virão fazer negócios, ávidos pelo ouro que podemos pagar, esses demorarão alguns dias. Pediria para você procurar ajuda humana entre os que desembarcaram hoje, não devem ter andado até muito longe, mas não vi nenhuma mulher entre eles.
— Eu correria atrás de qualquer um, sou mais veloz que qualquer coisa que você possa imaginar, mas não é qualquer pessoa que vai resolver o problema em questão. Acho que a melhor solução é partir até a capital, lá com certeza encontrarei alguém! Precisarei usar da força, mas seguramente conseguirei uma mulher para dar de mamar.
— Está louco? São incontáveis dias e noites de viagem até Kelicerata!
— Eu já te disse. Sou muito mais rápido que qualquer coisa!
— Então seria mais proveitoso partir direto para encontrar a mãe de todos! — Diante das palavras do aquático, Galope se viu confuso, todavia próximo de encontrar uma saída para o seu problema e o de Ivan.
— Ir até Afrodite? Ela não está no fundo do mar?
— De certa forma, está. Mas é possível ir até ela através da ponte.
— A ponte? A Ponte dos Mundos? — E então Adônis enxergou a verdade. — A Ilha do Centro! Afrodite está no Castelo de Libra...
— Você passa por sabido, mas ainda há muito a descobrir, está vendo?! Se se julga tão rápido, pode leva-lo sem minha ajuda, basta seguir a ponte, mas cuidado! Dizem que muitos caem dela, e a... — Adônis não pretendia mais esperar, agarrou o filho de Peixes, que ainda chorava, das mãos de Bal-t-Moer e despediu-se, afobado.
— Eu já atravessei a ponte, Bal-t-Moer, mais de uma vez. Muito obrigado e despeça-se de Ezequias por mim!
GUIARA
DOIS IRMÃOS
VI
— Você tinha de bater nele, mãe.
— E eu consigo? Aquele menino sempre escapa dos meus tabefes. — Cíntia terminava de calçar os pés de Guiara com sapatilhas brancas e catou uma fita azul na gaveta. Desenrolou a fita para prender no cabelo da menina, enquanto continuava. — Mas quem precisa tomar um castigo é você, querida. Você sabe que é proibido entrar no salão de dança e mesmo assim entrou correndo com a cara mais deslavada que eu já vi.
— Porque eu precisava te avisar que Dolga estava fugindo, né? Se eu tivesse feito essa ajuda, você não ia nem saber que ele tinha corrido. Eu te ajudei, viu?
— Não é a primeira vez que ele diz isso, querida. Você merece um castigo, e muito bem dado! Eu aposto que ele, sem demora, aparece na porta querendo alguma coisa para comer. — A mulher fez um laço com a fita, prendendo o cabelo de Guiara. Arrumada com vestido e calçados brancos, e as fitas azuis, combinando com os olhos da criança, presas com laços no cabelo e na cintura, ela levantou da cama e se pôs de frente à mãe.
— É por isso que ele fica indo embora, mamãe! Todos os meninos ficam dizendo e rindo que ele mora aqui. — A garota cruzou os braços, simulando uma indignação teatral.
— Pois eu só tenho esta casa! Se está tão insatisfeito morando aqui, ele que venha reclamar diretamente comigo, que o mando para morar na casa do criador de porcos ainda esta noite!
— É mesmo?! Jura, mamãe? — A garota abriu um largo sorriso branco. Cíntia, que não pretendia explicar o sarcasmo, apenas confirmou, instilando euforia na pequena filha de Câncer. — Eu vou contar para ele agorinha!
— Por que não espera ele voltar, Guiara? Acabou de banhar, o sol está muito forte. Não quero ver você suja de novo! Como pode uma menina tão bonita não aguentar ficar limpa por um só dia! — Guiara, que já ia pela porta, se virou para responder.
— Eu não quero ser menina bonita, mamãe! Meu irmão não gosta de morar com menina bonita! — Ela arrancou o laço que prendia o cabelo e jogou no chão do quarto, saindo correndo em seguida.
— Ora, era só o que me faltava! Eu não dei sapatos e roupas de homem para ele? Ele quer mais o quê? Vou ter que expulsar as minhas garotas para ele aceitar morar nessa casa? É cada uma...
Guiara não era tão rápida e nem tinha a pressa de Dolga, por isso parou quantas vezes foi preciso para perguntar sobre o paradeiro de seu irmão. Enquanto não recebia indicação, seguia para o caminho de fora da vila, afinal já tinha visto Dolga tentar fugir, uma vez até o seguiu por boa parte da estrada, até que mudaram de ideia e voltaram. Se tivesse sorte, o encontraria fazendo o caminho de volta, sem precisar andar muito. Uma garotinha de seis anos normalmente teria medo de andar por trilhas desconhecidas, mas Guiara, com sua cabeça avoada, só podia imaginar que os caminhos que saíam de Caxa, fossem eles quantos fossem, só podiam levar para Kelicerata, pois era esse o destino que Dolga sempre tomava quando saía de Caxa. Claro, ela já tinha ido algumas vezes até o Cesaro, acompanhada por Enzo e Bato, mas desta vez, como eles não a estavam acompanhando, logicamente ela não poderia estar rumando para o Cesaro. E foi com esta convicção plena de que estava indo para Kelicerata, que Guiara caminhou com os pés confiantes e a cabeça curiosa. Sim, curiosa, pois se deixava atrair por animais, árvores com formatos esquisitos ou até nuvens engraçadas.
Enquanto corria pelos campos de Porocop, uma figura montada apareceu, iluminada pela luz alaranjada do pôr-do-sol. A despreocupação da viagem de Guiara foi interrompida pela primeira vez quando ela notou que o homem a cavalo a tinha identificado e vinha em sua direção. Olhou ao redor, desconfiada, mas só viu campos verdes desnivelados, sem nenhum lugar para correr e se esconder.
O homem se aproximou da menina, sem desmontar. Ela se lembrou do rosto, definitivamente era alguém de Caxa, ainda que não fosse realmente um conhecido seu.
— Você vende ovo? — Perguntou, resoluta.
— Hã? Que jeito estranho de começar uma conversa, menina. Qual seu nome?
— Eu me lembro de você. Uma vez você levou ovo na minha casa.
— É eu vendo coisas, mas não só ovos. Vendo carne, óleo, sementes, temperos, e muito mais. Mas eu não vendo de casa em casa, menina.
Guiara insistiu que ele vendia as mercadorias dele na casa dela e, sem jamais revelar o seu nome, acabou entregando o local em que morava, e toda a confusão na cabeça do rapaz se desfez. Por ter uma cozinha muito grande e muitas bocas para alimentar – e para evitar encontros indesejados com as outras senhoras do vilarejo – Cíntia deixava de comprar muitos ingredientes nos armazéns e negociava diretamente com os fornecedores. Aquele rapaz era um desses negociantes, e logo que descobriu a identidade da garota, ficou apreensivo. Não estavam tão perto de Caxa, ao menos não para uma criança a pé.
— Menina, venha comigo, eu te levo de volta para Caxa. Não quer andar de cavalo? — A resposta da menina não podia ser mais clara: Guiara girou e começou a correr para longe do homem, berrando um longo e estranho “não”.
O rapaz, que nunca teve jeito com crianças, suspirou. Agora que tinha decidido levar a garota de volta para casa, não pararia até concluir a missão. Quem sabe, talvez ganhasse uma recompensa pela devolução da menina. Ele recordou algumas garotas – as suas prediletas entre as prostitutas de Cíntia – e, de repente, levar a menina de volta para Caxa se transformou numa tarefa inevitável. O campo era aberto e a menina era lerda. Não custou muito para o cavalo se alinhar com a criança, que se assustou com a aproximação do homem. Com um movimento simples, ele se inclinou na montaria e agarrou a menina pelo laço que a contornava na altura da cintura. Guiara gritou, esperneou, socou o ar. O homem tentou equilibrá-la na sela segurando firme pelo laço, mas quando ele começou a se desfazer, o homem resolveu domar a criança de uma ver por todas. Deu-lhe um tapa no rosto, com a mão firme e aberta, que fez a pequena se assustar e parar de se debater. O choro veio com medo, silencioso e acompanhado de tremedeira na ponta dos dedos. Guiara estava sozinha com o agressor, e sua mamãe não fazia ideia do que estava acontecendo.
Sem a necessidade de bater mais, o homem a colocou junto de si na sela e cavalgou.
— Você veio para bem longe da vila. — Guiara nada respondeu. Segurava forte a cintura do agressor, mas não segurava as lágrimas, que enxugava esfregando o rosto nas costas do homem. — Já estamos chegando na estrada, vamos seguir por ela e em pouco tempo estaremos lá. — Certo desconforto tomou conta do rapaz. Agora se dava conta, pela quietude da menina que antes aparentava ser tão atrevida, que o golpe fora violento demais para uma criança, e se sentia mal por aquilo.
Poucos raios de sol avermelhados sobravam no céu quando o cavalo alcançou a estrada e, num retorno mais que espontâneo, a menina gritou:
— Dolga! — Doida para pular da sela, logo foi contida pelo homem, que questionou o motivo daquilo. Guiara se conteve e apontou com o dedo para um ponto no canto da estrada. Uma pequena área se destacava da escuridão recente, por estar iluminada de verde. O homem cavalgou calmamente até o local, onde Dolga se encontrava, prostrado de barriga para cima.
A menina pulou de encontro ao irmão e o homem notou que das costas dela emanava a mesma luz esmeralda.
— Vocês são caídos do céu? — A resposta não veio, e o homem apeou do cavalo, se ajoelhando perante Dolga, como ela já tinha feito antes. O estrago era visível e aterrador. A criança caída na estrada estava viva, mas suas pernas estavam em petição de miséria. Claramente ele só vivia por conta de uma vontade sádica dos céus. A atitude correta e misericordiosa era dar cabo da vida dele ali mesmo, sem esperar nem mais um minuto, mas a menina insistia em conversar, aos prantos.
— Eu queria chamar você. A mamãe vai deixar você em outra casa. Você não precisa mais fugir, Dolga... Por que você está assim? O que aconteceu?
— Eu não quero mais fugir. Tem gente ruim aqui. Eu prefiro ficar com você, irmã. — A voz era rouca, quase muda, de quem chorou até não aguentar mais. Dolga sentiu as lágrimas de Guiara molhando sua face, na medida em que caíam das bochechas da irmã. No braço, sentiu cair a fita azul que se soltou da cintura da menina. Ele ergueu a fita debilmente, e largou sobre a cabeça dela. — Não esqueça o laço no cabelo. Você fica linda com ele...
— Dolga! Volta para casa! Dolga, por favor! DOLGA!
O homem se emocionou com o que viu, e lágrimas de compaixão pelas duas crianças rolaram pelo seu rosto.
Capítulo 5: Cortando laços
I
Tendo saído da cidade abandonada um pouco depois do escurecer, Galope cavalgou o mais rápido que pôde, sem se importar com o cansaço acumulado; teve a chance de se alimentar junto aos aquáticos, mas se entregou à pressa e partiu para o norte, de volta até a Ponte dos Mundos. Galope não era descuidado, conhecia os próprios limites e mesmo sabendo que ainda estava longe do destino final, tinha certeza de que chegaria sem esgotar suas forças. O centauro já participara de batalhas intensas, muitas delas travadas em regiões inóspitas, e nunca se deixou abater. A busca por Afrodite não passava de uma longa e inócua corrida, e a fome que sentia era o estímulo necessário para continuar galopando, pois entendia que as dores se tornariam mais contundentes no momento em que parasse para descansar.
O filho de Peixes não chorou mais desde que bebera um pouco d’água, e aquilo preocupava Adônis. Acreditava que a água aliviaria um pouco o incômodo da criança, mas não imaginava aquele súbito silêncio; sem outros recursos, aproveitou a calmaria para se concentrar e aperfeiçoar sua velocidade, alcançando resultados espetaculares. Quando avistou os primeiros sinais de luz e movimento, preferiu não dar atenção. Passaria tão rápido que nem seria visto.
E assim foi. Muitos homens das redondezas atinaram para o barulho da cavalgada do centauro, mas a escuridão protegeu o viajante de qualquer tipo de ataque. “Fiz bem em evitar essa região durante a descida”, ele pensou. Sabia que há algum tempo grandes grupos se instalaram próximos à Ponte dos Mundos, formando cidadelas dedicadas a abastecer o sistema de transporte pela ponte, mas a quantidade de casas e pessoas vagando durante a noite, iluminadas por lampiões, era acima do esperado. “Finalmente, lá está ela”, murmurou preocupado.
Da última vez que fez a travessia, o centauro chegou à Ilha do Centro em pouco mais que um dia de viagem; repetir esse feito era decretar a falência do menino, afinal a ponte não oferecia qualquer recurso de subsistência. Erguida muito acima do nível do mar, a Ponte dos Mundos era apenas uma larga passarela de pedra que conectava as terras do leste e oeste de Maciaan; apesar de unir os dois lados do mundo, a distância infindável que percorria tornava impossível sua travessia, exceto por viajantes com poderes sobrenaturais ou por um detalhado esquema de logística, responsável por abastecer os viajantes durante todas as semanas da jornada.
— Da última vez, eu corri arrastando uma enorme carga de pedra, menino. Vamos torcer para que a sua leveza me permita chegar até o castelo mais rapidamente. — Adônis buscou o rosto do menino com o olhar, mas ele estava encolhido, com a face escondida na pele do centauro. Adônis encarou aquilo como uma demonstração de fome, dor ou medo... Alguma coisa de ruim. Tinha visto bebês demais nos últimos anos, e compreendia que tanto tempo de silêncio não era um bom sinal, ainda por cima depois de todo o berreiro que se arrastou durante o dia. — Não se preocupe. Eu vou conseguir!
O centauro finalmente alcançou a Ponte dos Mundos – sem ser notado pelos moradores das proximidades – e seu trote se transformou num trovão que abalava a pedra branca da ponte.
***
— Ei, está sentindo isso? — O homem de barba e cabelos ensebados questionou o companheiro.
— Sentindo o quê, Eliseu? A única coisa que dá pra sentir nesse fim de mundo é o vento, o tédio e o seu mau cheiro, seu desgraçado!
— Pare de besteira, venha cá! — Eliseu puxou os cabelos crespos para trás, deixando as orelhas descobertas e encostando o lado da face no chão. — É um barulho, olha só! E junto com ele, a ponte está tremendo...
— Era só o que me faltava, essa ponte cair justo quando eu estou bem aqui no meio dela! — O companheiro reclamou. O sistema de transporte pela ponte exigia que houvesse pontos para descanso e alimentação espalhados ao longo da ponte. Eram constituídos por grandes tendas de lona que se abriam e fechavam, a depender do vento, para garantir sombra e acomodação noturna para seis pessoas – nunca houve grupo de viagem maior que este número. A comida e bebida eram calculadas para consumo e reposição por viagem, que aconteciam a cada sete dias, e os encarregados de cada posto se revezavam em duplas.
Com o ponto de apoio montado bem acima de uma coluna vertical que sustentava a Ponte dos Mundos, era muito mais fácil para Eliseu e seu companheiro verificar os abalos sísmicos, e, preocupados, logo os dois procuraram alguma resposta, ainda que não soubessem exatamente qual era a pergunta.
— Eu não vou ficar aqui de jeito nenhum. Se tudo cair, eu vou para lá! — O homem apontou para a construção ancestral à sua frente. O Castelo de Libra, tão monumental quanto desconhecido, exibia suas espessas paredes de pedra cinzenta para a admiração apenas do céu e do mar. Construído sobre uma ilha rochosa solitária, a base do castelo ocupava toda a extensão da ilha, de forma que ele mesmo parecia se erguer diretamente do fundo do mar, tal qual fazem as colunas que aguentam o peso da ponte.
Com suas duas torres baixas nas laterais e seu topo plano, seguro pela muralha que servia de parede externa, a única maneira de pisar na Ilha do Centro era entrando pela porta do castelo, que por sua vez só ficava acessível graças a uma conexão estreita ligando o portão principal à Ponte dos Mundos.
— E vai lá sobreviver quanto tempo? Quantas vezes fomos até o portão e tentamos entrar sem sucesso? — Eliseu já perdia a paciência.
— Estamos ferrados se isso cair, a verdade é essa! Discutir não vai dar em nad... — O homem esqueceu Eliseu quando viu uma sombra surgir no horizonte. — Ei, tá ouvindo o barulho ficar mais forte? — Ambos estavam, e ouviam claramente, sem precisar se abaixar contra o chão. Eliseu se voltou para avistar o que tanto chamava a atenção do seu companheiro, e também notou a sombra se chegando cada vez mais perto.
— Ué? O sol já está baixando mas ainda é dia, por que eles estão chegando aqui tão cedo?
— Eliseu, mesmo se já fosse madrugada, não tinha que ter ninguém por perto — o queixo do homem tremia ao falar, e os olhos inquietos confirmavam que ele pressentia um grande perigo — o próximo grupo só vai chegar aqui daqui a dois dias... Eliseu, faça algo de útil uma vez na vida e pegue a minha besta, por favor.
Eliseu não gostou de ser insultado, mas obedeceu por ter notado algo diferente no seu colega. Ele estava nervoso e assustado, mas todos que trabalham na ponte ficam assim em algum momento. Os que superam, continuam a trabalhar e receber bem, os que cedem ao desespero do isolamento são mandados embora ou, movidos pela cobiça, mentem e garantem mais alguns meses do trabalho que já deixou muitos abastados. Eliseu viu a verdade, porque as pernas não mentem. A tremedeira dos joelhos era o que estava impedindo o homem de dar cinco passos e apanhar a sua arma. Enquanto carregava a besta, Eliseu ouviu seu colega murmurar alguma coisa:
— Você se lembra daquela história do herói... Do herói da ponte? O tal Luca Suines. Eles falaram que na Guerra de Maciaan, depois da guerra, todos os soldados que guardavam a ponte morreram por culpa de um monstro. E o Luca conseguiu matar esse... Monstro. E sobreviveu sozinho na ponte. Você lembra qual era o monstro?
Eliseu já havia preparado a besta, mas algo de inexplicável naquelas palavras o atingiu profundamente, e ele sentiu uma necessidade inexorável de responder. O monstro, qual seria o monstro? Ele sabia. Mas estava difícil lembrar, algo de incomum não deixava Eliseu pensar com clareza, e nunca surgia nada de incomum na ponte. Era só vento e água, por todos os lados. O que estava diferente?
— Eliseu?
Não era na ponte, algo havia mudado em outro lugar. Dentro de si, era isso! Alguma coisa em Eliseu mudou de repente! Mas o que poderia ser? O homem apertou a besta com as mãos e se concentrou, de olhos fechados.
— Eliseu!
Estava tão perto de descobrir, mas ainda não conseguia identificar o que era... Seu coração estava batendo muito forte e muito alto, aquilo não deixava sua mente trabalhar direito. Era isso! Seu coração estava diferente, por que batia com tanta violência? E o ritmo, tinha algo diferente, não era como uma batida comum, parecia algo mais feroz, algo selvagem... Um galope de cavalo, era isso que parecia. Cavalo? O que ele acabara de ouvir sobre Luca Suines?
— ELISEU! A BESTA! — O grito assustou Eliseu, que abriu os olhos subitamente e atirou a besta para o colega. Mesmo assustado e agindo por reflexo, ele conseguiu mirar direito, e o seu companheiro poderia alcançar a arma sem problemas. E então chegou o trovão, arrebatando qualquer senso que ainda existia na cabeça de Eliseu, e uma figura alta e corpulenta veio junto, acertando em cheio seu companheiro de trabalho, que voou alto antes da besta arremessada chegar às suas mãos.
Eliseu era um bom mentiroso. Mentia tão bem que ele mesmo acreditava. Mas as pernas não mentem. E quando Eliseu viu a monstruosidade levantar as patas da frente e abanar a cauda escura, ele lembrou quem era o monstro de Luca Suines: o centauro. Não lembrou graças à memória; foram as pernas, que sentiram a urina quente escorrendo devagar, e avisaram a Eliseu que ele iria morrer, como seu amigo, vivo diante de seus olhos dois segundos antes.
O homem prendeu a respiração, fechou os olhos e se agachou o mais devagar que pôde. Puxou as almofadas próximas com um silêncio inimitável e cobriu seu corpo, querendo acreditar, a qualquer custo, que poderia sobreviver se não fosse notado.
II
Após quase um dia inteiro de corrida ininterrupta sobre a ponte, Galope estava frente a frente com o Castelo de Libra. Quantos ele derrubou pelo caminho, ele não saberia dizer. Os primeiros foram fruto do acaso, derrubados pela brutalidade do híbrido que arrancava qualquer pessoa ou coisa que se colocasse em seu caminho. Mesmo após o nascer do sol, com o caminho visível, para onde o centauro ia se esquivar? Não lamentou nem por um segundo os barris, caixotes, carruagens e corpos vivos que derrubou enquanto corria.
O centauro se aproximou da ponte estreita e viu que não seria possível chegar ao outro lado sendo grande como era; mas havia um homem ainda ali perto, ele viu muito bem uma figura ensebada conversando com o outro, que já fora engolido pela fúria das águas; ele serviria para levar o menino até o outro lado. Mas o menino parecia já não ter condições de ser salvo. A boca mole não se movia mais, e a respiração se mantinha com um doloroso esforço. Era perceptível que ele já havia vivido mais do que devia. Se fosse um bebê diferente, mesmo entre os filhos do zodíaco, já teria falecido. Aquela criança tinha algo de muito especial, e Galope esperava algum dia encontra-lo novamente para descobrir o quê.
O centauro se virou para procurar o segundo homem, que não estava à vista. Deu o primeiro passo em direção à tenda, onde obviamente ele estava escondido, quando reparou que estava sendo observado por um terceiro homem. Além da ponte para o castelo, do lado esquerdo, um par de olhos vislumbrava Adônis com curiosidade. Sobrancelhas grisalhas e um longo cabelo prateado era a única coisa que Galope discernia àquela distância. Andou um pouco para a esquerda, de modo a ficar de frente para o homem misterioso, ainda que ele estivesse num posto mais elevado, certamente aquela janela se situava num andar intermediário do Castelo de Libra. O que se seguiu foi um estranho diálogo silencioso, travado por gestos e momentos de silêncios desafiadores.
O homem iniciou, apontando o dedo para Adônis, questionando a razão dele ali estar. O centauro levantou a criança, assegurando-se de que o homem grisalho o tinha visto. Com o mesmo dedo que usara antes, o homem apontou para baixo várias vezes. Adônis parou por um tempo, tentando entender o significado daquilo; sem sucesso, ergueu novamente o menino, mostrando as costas dele. A resposta foi a mesma. Galope se perguntou se não estava esquecendo algo, então se aproximou da beirada da ponte, que não oferecia apoio algum, resumindo-se a uma queda alta para o centro de um redemoinho.
Seria possível que o homem queria ver o menino ser arremessado? “Talvez ele ache que a criança está morta”, Adônis pensou. Num gesto feito para se certificar das intenções do homem, o centauro ergueu o menino bem à frente do corpo, pronto para soltar a criança no mar, e observou a reação do outro. Nada. O homem de cabelos grisalhos agora estava quieto e perplexo, como uma criança diante de uma mariposa libertando-se do casulo. O que aconteceu, entretanto, era ainda mais belo e admirável. Tanto Adônis quanto o homem do castelo não esperavam o surgimento de uma corrente de água dançante. Emergida do centro do redemoinho, com movimentos circulares simples e repetitivos, mas belos e harmônicos, a corrente d’água aproximou-se de Adônis, esguichando água salgada no corpo do centauro e parando próximo ao garotinho.
A ponta da serpente líquida permaneceu estática, aguardando o movimento do bebê ou do centauro, mas o seu corpo alongado continuava a bailar, levado pela corredeira do redemoinho, que puxava a outra extremidade da corrente. O homem de cabelos prateados desapareceu da janela com afoiteza, e coube apenas a Galope decidir o que fazer.
— Se é a vontade de Sauza...
Adônis esticou o corpo e introduziu o pé da criança no líquido, e ele despretensiosamente subiu pelas pernas, como uma cortina branca se elevando numa manhã de vento forte: sem avisar, subia mais e mais um pouco. A água cobriu a cabeça do menino e ele escorreu pelas mãos molhadas do centauro, levando um rosto sereno, sem sorrir nem chorar, até a superfície do mar, nas revoltas ondas do redemoinho.
Sem ter o que esperar, Galope se virou para o caminho da ponte, e a única coisa que permitia ele retornar ao Cesaro sem remorsos era a mesma que o vinha mantendo de pé e acordado: fé incondicional. Retirou o pedaço de pano que cobria o ferimento do braço e inalou o mau cheiro da ferida. Ficaria com uma cicatriz enorme, mais uma para a coleção. Ajeitou novamente o trapo no braço e deu um nó, buscando a área menos suja de sangue para cobrir diretamente a ferida. Antes que pudesse iniciar viagem de volta, um ruído pesado chamou sua atenção. Ao longe, o grande portão do Castelo de Libra se abria.
Detrás da porta o homem misterioso se revelou, com as sobrancelhas cinzentas denotando um espanto juvenil que não combinava com o homem. Largando a porta aberta – pesada demais para se fechar sozinha ou com a força do vento – o homem correu pela ponte estreita sem calcular os passos. Parecia não ter consciência do perigo que corria, passando tão veloz e despreocupado por cima do redemoinho; ou talvez tivesse, mas não ligasse. A pressa se provou desnecessária, pois o centauro desistiu da corrida logo que viu o homem surgir na porta e o esperou calmamente do outro lado.
— Espere! — O velho chegou a Adônis cansado e sem fôlego, e Adônis percebeu que ele era ainda mais debilitado do que se podia pensar de um ancião que corria com tanta precisão nos pés. Após recuperar um pouco de ar, mas sem ter forças para se manter ereto e olhar o híbrido nos olhos, o velho retomou: — Eu vi o que você fez... Serpenteou a corrente de água. Só um bruxo da água pode fazer esse tipo de coisa.
— Não sei quem você é, ancião, mas não faço ideia do que está falando. Viesse antes do seu castelo, poderíamos ter conversado melhor e com mais calma. Eu fiz apenas o que você indicou, levei o menino para a beirada da ponte e soltei na água.
— Não. Eu realmente indiquei isso, mas você fez outra coisa. Você comandou as águas para que levassem a criança, é muito diferente de soltá-la na água. Só quem é capaz de fazer isso é um bruxo da água, não tente me confundir, sou mais velho do que aparento e sei muito mais da vida do que você pode imaginar.
As palavras do velho estavam equivocadas, Adônis sabia muito bem, pois não era bruxo de coisa alguma. Mas, pelo que disse, era fácil desviar da confusão e enveredar diretamente para a verdade oculta. Um bruxo da água tinha aquele tipo de talento, era verdade e o centauro já conhecera um há muito tempo – a memória agora lhe surgia límpida e transparente como água da fonte – mas se o encantamento que acabara de presenciar não foi arte do velho estranho nem de forças ocultas do castelo, só uma pessoa poderia ser o bruxo da água, e não era ele.
— A criança. O menino é um bruxo da água! — Assertou para o velho, que desistira de recuperar o fôlego e se manter de pé ao mesmo tempo, e sentava no chão da ponte, observando o centauro. — Eu não havia percebido até agora, mas depois que você falou, acabei recordando que não foi a primeira vez que esse tipo de coisa aconteceu perto dele. — Adônis se lembrou do aquático que fora impedido de nadar por uma onda na praia, e pelo sossegamento repentino da criança após tomar um pouco d’água, mesmo precisando se alimentar. Aquelas coisas fariam todo sentido, se o menino fosse um bruxo da água, como agora se pensava.
— O caído do céu é um bruxo da água? E se ele veio para a mãe de todos, estou certo em julgar que é o filho de Peixes? — Adônis confirmou a suspeita do velho, que caiu em gargalhada. — Após tantas eras, finalmente o imperador do oceano retorna ao povo do mar... Não imagina o quanto me fez feliz, homem-cavalo...
— Ele vai encontrar Afrodite, não é mesmo? Entrar nesse redemoinho é o caminho para ela? — Adônis quis se certificar que descobrira a localidade da mulher da lenda. O velho, em meio a risadas ofegantes e tosses sofridas, respondeu.
— Sim, o caminho principal está no castelo, mas pelo mar é possível achar uma entrada para encontrar com a mãe de todos. Graças à Afrodite, existe esse caminho alternativo, glória! Do contrário, como você com esse corpo enorme levaria a criança? Eu poderia nem estar no castelo hoje... Não sabe como me fez feliz, centauro. Após incontáveis gerações, o dom do controle maior finalmente caiu nas mãos do filho de Peixes, que honra presenciar isso ainda em vida! Certamente ele conseguirá reagrupar o povo do mar, e o Império Oceânico ressurgirá mais forte que nunca! — O velho tossiu fortemente, e Adônis teve a impressão de que toda aquela alegria que o homem demonstrava no rosto estava transbordando pelos pulmões fracos.
— Desculpe perguntar, Guerreiro de Libra — Adônis já tinha desvendado a identidade — mas como pode ter certeza disto? Entendo que o menino vá se tornar um aquático após encontrar Afrodite, mas isso não garante que ele vá cumprir qualquer tipo de desejo seu ou de qualquer outro. Seria a vidência uma habilidade do Guerreiro de Libra que eu não conhecia?
— Não é preciso prever o futuro para entender isso, centauro. A mãe de todos é inquestionável. Qualquer um, mesmo que não seja originário do nosso povo, se rende ao bem querer infinito dela. Não é uma relação de submissão ou respeito, como os homens fazem com seus reis, é algo mais profundo... A sensação de entrega total que só pode haver entre filho e mãe. Não espero que entenda isso, sei muito bem que é tão filho das estrelas quanto o menino que acaba de mergulhar lá em baixo. Mas ele saberá. Daqui a alguns momentos, ele terá a grandiosa força do povo do mar correndo sob sua pele azulada. — O velho ergueu a própria mão enrugada para o alto e a admirou com desprezo. — Eu preciso estar constantemente nesta forma, para servir como Guerreiro de Libra; é bastante funcional para estudar tudo que preciso, e mesmo após tantos anos não esgotei tudo que há para se aprender aqui no Castelo de Libra, mas veja só: uma pequena corrida e meu coração bate com violência e dor. Acho que sua chegada e a do menino servirão como justificativa para eu retornar à minha gloriosa forma.
O velho levantou os braços para Galope, como se pedindo colo, e Adônis entendeu que o homem desejava ser lançado como o menino, diretamente nos braços maternais de Afrodite. O híbrido ergueu o velho cansado no ombro, pois reconhecia que se não o fizesse, ele mesmo se arrastaria até a beirada e se jogaria.
— Tem certeza absoluta do que diz, velho? Pois há um homem que resistiu aos encantos de Afrodite, e não vejo como outro não possa repetir o feito. Sendo tão estudado, com certeza já ouviu falar de Sauza, ou no castelo não há menção alguma a ele?
— Como não conhecer o encarcerador da mãe de todos? Mesmo este castelo e todos os livros que contém foram produzidos por ele! — Galope sentiu-se tentado a acrescentar a ponte que os sustentava na coleção de feitos de Sauza, mas nada falou. — Ele foi único. Não posso esperar outro como ele, assim como jamais esperaria por alguém como a mãe de todos. Por que essas indagações, centauro, estaria interessado em encontrar Afrodite? Imagino o que sairia da sua transformação, com certeza algo singular! — O velho tentou rir, mas só conseguiu piorar a tosse. — O elo com ela se dá na alma, logicamente; penso que apenas um corpo sem vida permaneceria indiferente à presença dela.
Galope ergueu o velho pelo tronco na beirada da ponte, como havia feito com o filho de Peixes, e surpreendeu-se com as lágrimas que corriam pela face do homem adulto.
— Pareço um tolo, não? Mesmo constantemente em contato com ela, me desfaço em lágrimas de emoção só de lembrar que vou revê-la. — Adônis se deu conta que o poder de Afrodite não era algo a ser subestimado sob qualquer hipótese, e finalmente se despediu do homem.
— Vou te largar e voltar para o lugar que chamo de lar. Qual o seu nome, meu velho?
— Bak-Tanu. O último Guerreiro de Libra do Império Oceânico, mas com as boas novas trazidas por você, acredito que não serei o guardião final deste castelo.
O homem de cabelos prateados caiu no redemoinho, como uma rocha na água, sem alternativa senão ser engolido e afundar até o escuro das profundezas.
III
Antes de fazer a viagem de volta, Adônis lembrou-se de mais uma pessoa no local e lhe pareceu sensato dar um aviso. Vagarosamente se aproximou do que restara da tenda de apoio, e falou com voz alta:
— Sei que está escondido no meio dos panos! Não intento causar sua morte, então esqueça um pouco o pânico e ouça minhas palavras! Todo viajante que passaria por este ponto vindo de Kelicerata está morto. Não quero que sofra durante dias numa espera sem serventia, então não se atenha a saltar no mar por achar que logo mais virá alguém com suprimentos. Que Sauza guie sua alma na direção das estrelas. — Eliseu descobriu o olho direito e observou o monstro proferir aquelas palavras, mas não ousou responder. Após o aviso, a fera se voltou para o lugar de onde veio e os trovões recomeçaram. Enquanto se afastava numa velocidade comparável apenas às estrelas cadentes, Galope torceu para que o homem fosse resgatado por Afrodite e não se tornasse uma vítima como tantos outros foram, na ponte. Mas Eliseu não tinha pretensão alguma de morrer, e assim que os trovões se afastaram, ele se levantou do meio da tenda, confuso e amedrontado, as calças úmidas ainda.
— Eu não vou morrer aqui de jeito nenhum! — Ele gritou para os ventos. Ergueu o que sobrou da tenda e desatou da corda que segurava tudo à ponte. Os pedaços de madeira e lona voaram sem rumo pelo céu, pouco a pouco baixando para acertar a superfície do mar agitado, e após ver o tamanho da queda, Eliseu se preparou: agarrou três galões de água potável e os prendeu ao corpo. Esgueirou-se até a beirada, onde uma corda descia até o mar, ladeando a gigantesca coluna que sustentava aquele trecho da ponte. Todos os postos de abastecimento se posicionavam acima de uma coluna, justamente para oferecer este recurso. Em caso de fuga, os homens poderiam abandonar a ponte usando a corda para descida, e foi isso que Eliseu fez.
Engolido pelo pânico, ele se demorou mais do que o necessário, pois a cada balanço da corda ele se desesperava para se agarrar à parede, e só retomava a descida quando o vento diminuía. Quando atingiu o nível da água, ele derrubou as garrafas dentro de um pequeno barco, seguro por cordas e ganchos e pulou dentro, se agachando em vergonha e desolamento. Acalmou-se, recobrou a lucidez, olhou para o alto, onde a colossal Ponte dos Mundos se destacava do resto do céu, jogando sobre ele uma sombra enorme. Apanhou uma lâmina reservada no barco – que também tinha mais galões de água potável – e cortou uma corda que arrodeava a coluna da ponte e segurava contra a parede um amontoado de blocos rochosos. Com a força esperada, as pedras adentraram o mar, gerando choque mesmo contra a corrente forte dos redemoinhos próximos. Agora era só esperar.
Um pouco mais demorado do que Eliseu gostaria, finalmente alguém respondeu ao chamado, mas não era quem ele esperava. Com a cabeça para fora da água, um aquático veio ter com ele.
— Quem é você? Onde está Uj-Oqen? — Eliseu gritara, sem demonstrar exatamente se tinha raiva ou desespero.
— Uj-Oqen? É verdade que ele anda muito por esses lados, mas não o vi por perto. Eu sou Bak-Tanu! — Com a pele jovial azulada, cabelos longos negros, olhos escuros e face sem uma ruga, o Guerreiro de Libra estaria irreconhecível para Adônis, se fosse visto agora.
— Eu não me importo quem de vocês veio me atender! Vocês foram pagos para colocar essas pedras aqui, e quando elas fossem derrubadas, você e seus amigos deviam, digo, DEVEM puxar o barco até a praia!
— Esse não é meu trabalho, senhor! Não me importaria de leva-lo, afinal tenho que ir até a costa levar boas notícias a alguns conhecidos, mas você morreria de fome antes de eu chegar até lá.
— Não! Não vou morrer, não. Aqui tenho água e sementes secas para comer, prometo que vou resistir! Você poderia dividir os peixes que come comigo, também! Não me abandone aqui, por favor!
Bak-Tanu considerou por um tempo, e resolveu ajudar o pobre homem. Puxaria o barquinho pelas ondas revoltas do oceano; apesar de pequeno ele era robusto, parecia ser capaz de resistir bem. Caso o homem viesse a falecer, ele largaria a responsabilidade e o deixaria à deriva. Eliseu, sentindo dentro de si uma ponta de esperança – pensava ter se esvaído por completo – posicionou a lâmina e libertou o barco das amarras que o seguravam à ponte. Assim eles partiram, deixando isolados no centro do mar Afrodite e o filho de Peixes.
***
— Vem, não melhorou nada desde que chegamos aqui! — Ivan provocou. Estava na grande planície que usavam para treino, junto com Bato, Janela e Enzo. Os dois mais novos aguardavam deitados na grama, assistindo a luta entre Enzo, que empunhava a lança dourada, e Ivan, que se defendia com um galho torto. Bato queria ir até o rio mais próximo para nadar, mas Ivan não permitiu, queria acompanhar ele, mas só iria depois de terminar com Enzo. Ivan estivera bastante atordoado nos últimos dias, pensando em Galope. Assim que o centauro partiu, ficou inquieto, olhando para o céu a todo o momento tentando avistar Reimi, ainda que soubesse que ele demoraria uns dias para aparecer.
Sua busca por aquáticos não dera resultado, e ele desistiu algum tempo após as crianças perderem o ânimo. Só restava aguardar um dos dois. Reimi, seu velho companheiro, por mais rápido que fosse, não podia competir com o trote fantástico de Adônis, e era este último quem dava mais esperança. O amigo conhecia Maciaan como ninguém, era forte e rápido; certamente voltaria com uma resposta positiva sobre Afrodite. E mesmo sabendo disso, a ansiedade não lhe saía da cabeça. Foi quando resolveu levar os três mais velhos para treinar um pouco. Partiram cedo para o lado leste do Cesaro e começaram a correr na campina.
Já cansados, Enzo desafiou Ivan para um duelo e desde então estavam bradando suas armas um contra o outro, numa disputa amigável. O garoto ainda não era páreo para Ivan, mas suas qualidades como guerreiro já se evidenciavam. Manejava espada e lança com destreza, e tinha jeito com arco e flecha. Ele mesmo já tinha ciência do seu talento, e por isso se enraivava tanto cada vez que Ivan escapava de seus golpes precisos usando apenas um pedaço de pau; cada novo golpe trazia uma nova esquiva, e a persistência fazia Enzo perder a concentração. Uma estocada exageradamente forte! Ivan girou o corpo, segurou o cabo da lança e puxou, aliando à sua força muscular a velocidade do giro. Enzo foi arrastado, pois se negava a largar sua arma, e acabou tropeçando no pé de seu professor.
— Nesse caso, quando o adversário ganha tão facilmente, sua melhor alternativa é fugir. Pelo menos com Ignis você tem certeza de que nisso não será vencido! — Ivan declarou, tirando gargalhadas de todos, menos de Enzo.
— Galope vem de lá! Galope está vindo! — Janela alertou.
Ivan deixou os três onde estavam e partiu na direção do centauro, que vinha do lado oeste, onde ficava o templo. Adônis já estava em condições muito melhores, havia descansado na volta, e aproveitou o ritmo lento da viagem para repor as forças, se alimentando e tratando do seu ferimento. O antebraço completamente enfaixado com musgo amarelado aplicado diretamente na ferida estaria completamente cicatrizado em algumas semanas; ele já conhecia as propriedades curativas daquela planta, e no Cesaro não era muito difícil de encontra-las. A decisão de não correr de volta diretamente para Ivan lhe deu tempo também de pensar melhor no que descobrira na Ilha do Centro.
Os meninos levantaram, e quando Enzo passou pelos outros dois, os irmãos se uniram na caminhada até Ivan e Adônis. O centauro contou tudo sobre a viagem e ressaltou que não estava confiante com o atual estado de Ivan.
— Não preciso provar a você tudo que sou capaz de fazer, você sabe muito bem que não sou um homem qualquer! — Ele reagiu.
— Não estou questionando sua força física ou sua inteligência, Ivan. Ora, raios, o filho de Tiestes, um homem comum portando uma lança, foi capaz de vencer inúmeros inimigos de poder sobrenatural! Mas o que eu vi nos olhos de Bak-Tanu, aquela devoção à Afrodite... É uma batalha de espírito, não de força ou mente.
— Posso te garantir que meu espírito também não deve nada, Adônis. Tudo que fiz, as coisas que aconteceram desde que eu nasci, antes mesmo de saber pronunciar meu nome... Eu tenho mais garra que... — Adônis interrompeu o discurso inflamado de Ivan.
— Esse é o problema, Ivan! Seu espírito é forte, é muito presente em você! O que o velho me disse, que Afrodite conquista todo e qualquer coração, não faz seu espírito forte uma fraqueza?
Ivan analisou aquelas palavras com minúcia, e o receio de Adônis finalmente lhe fisgara. Não seria a primeira vez que seu espírito bravo seria domado, duas vezes antes isso já acontecera. Nas duas vezes, fora dominado, não por imposição, mas por acolhimento. As duas Ligeias que ele conheceu, foram capazes de deixa-lo em transe, e ele nunca deixou de amá-las. O que era Afrodite, senão uma Ligeia de tempos antigos? Estaria ele realmente pronto para exterminar alguém que ele ama mais que a própria vida? “Nora-Celtah...”, o pensamento lhe veio à mente, e ele soube indubitavelmente que seria incapaz de matar uma Ligeia, fosse ela quem fosse.
De boca tristonha e ombros pesados, Ivan não respondeu. Se Afrodite tivesse o mesmo apelo que tinha quando foi Ligeia, nem ele nem qualquer outro conseguiria lhe fazer mal. Enquanto o homem entranhava suas eternas esperanças em irremediável apatia, Galope o resgatou da perdição com uma afirmação direta:
— Eu sei como vencer Afrodite. — Mesmo as crianças – que sabiam da história, mas não entendiam o fardo que a missão representava para Ivan – não se seguraram de curiosidade e questionaram Galope antes de Ivan. — O Guerreiro de Libra disse que qualquer resquício de espírito ou emoção seria invariavelmente tomado por Afrodite, mas que alguém sem espírito estaria imune ao carisma, encanto ou seja lá o que for que ela use.
— Então seu plano é me matar? — Ivan indagou, tentando parecer irônico sem conseguir.
— Não necessariamente. Já vi pessoas vivas sem qualquer vontade de viver, cuja face foi roubada da felicidade, tristeza, amor e ódio. Fui o causador de muitas delas, inclusive; na época em que lutei com os rebeldes do sul de Maciaan, fiz muitas coisas horripilantes. Eu poderia fazer o mesmo com você, se estiver disposto a abandonar seu gosto pela vida, seus objetivos futuros, até sua nova família — Adônis passou a vista por cima dos garotos de um jeito que apenas Ivan reparou — pela sua missão de matar Afrodite.
Ivan não queria decidir tão rapidamente, mas o mínimo pensamento já bastava para lhe dar a única resposta possível. Ele precisava matar Afrodite; pelo juramento que fez a seu mestre e Nora-Celtah. Ele tinha certeza de que naquele momento, tantos anos depois, ela ainda esperava por ele. Ainda era tarde e o dia estava claro, mas a lua estava presente no céu, solitária. Enquanto ela estivesse presente, Ivan sabia que nunca estaria sozinho.
— Eu aceito.
— Enzo, leve Janela para casa. Daqui a pouco eu e Bato alcançamos vocês.
— O quê? Mas eu quero ver, Galope! Não acredito que voc...
— BASTA! — A voz rouca e poderosa de Adônis surgiu, assustando até Ivan. Nunca eles tinham presenciado o centauro usar aquele tom ameaçador, que, se precisasse ser comparado a algo, podia ser ao prenúncio da morte. O menino tomou a mão de Janela e caminhou para o lado oeste sem se virar, carregando a lança dourada consigo. O centauro, o filho de Sagitário e Ivan caminharam para o norte, e avistaram o início de uma pequena floresta, que Ivan recordou já ter entrado antes.
Era o bosque que uma vez entrara com Janela, aquele que ela afirmou ter um cemitério. Ivan recordou aquela palavra – cemitério – e sentiu o coração bater mais forte, a pele se arrepiar e os dedos tremerem levemente. Mas não entraram no bosque, pelo contrário. Galope parou diante da primeira grande árvore e chamou os dois para junto dele. Era um salgueiro alto, de tronco largo, e Adônis esperou Ivan chegar próximo a ele para falar.
— Quando você chegou aqui, era um estranho montado em asas gigantes, louco para conhecer os filhos do zodíaco e encontrar Afrodite. Fico feliz de ter ajudado na sua busca, e ao mesmo tempo triste. Enquanto cuidei dos filhos de Sagitário, aprendi que mesmo as coisas boas, as melhores coisas da sua vida, um dia se acabam. Conheci e perdi grandes amigos, Ivan, e você certamente foi um dos melhores.
— O que é isso, Galope? Você falando assim, parece que vou morrer! — Ivan forçou um riso, procurando Bato, mas o menino estava tão perdido quanto ele.
— Você não vai morrer, Ivan. Mas quando eu terminar, você não sentirá mais nada, nem por mim nem pelos meninos. Ou qualquer outra pessoa. — O centauro agarrou Ivan contra o tronco do salgueiro e apertou o corpo do amigo. — Quando acabar o sofrimento, vou te devolver a lança, e te deixar frente a frente com Afrodite!
Ivan tentou se defender, mas tudo aconteceu muito rápido. Mal terminou de proferir as palavras, Adônis ergueu seu enorme punho fechado e acertou no tronco de Ivan. O grito dele calou o susto agudo de Bato e se estendeu por longos segundos, alimentado pela dor excruciante espalhada por todo o corpo, mas especialmente retorcida e comprimida no abdome, onde dedos e fibras lutavam para se encontrar, impedidos por tripas imprensadas contra ossos lascados.
A visão turva não permitia a consciência reduzida de Ivan enxergar coisa alguma que não fosse borrão ou dor, ainda que ele só desejasse virar o rosto e conferir se sua barriga estava muito ou pouco aberta. Seus braços tentaram lançar mãos no lugar para fazer o trabalho dos olhos perdidos, mas as mãos eram desobedientes, só queriam ir para lugares de menores dores, convencendo Ivan de sua incapacidade até para coordenar seus movimentos, de forma que só sobrou, no fim da vida, um pouco de audição.
Bato... Vária. corda. pendurar. paralise... Antes. seja... demais.
E antes de apagar completamente, o rugido bruto da morte voltou, seguido de uma voz pura e chorosa.
AGORA!
V... VÁRIA!
IV
— Janela, vá chamar a Cibele.
A menina correu para pular a janela da tenda. Com onze anos, ela já não tinha necessidade de evitar a porta, mas aquilo se tornara um hábito persistente, e sob o comando exigente de Enzo, ela nem percebeu que seria mais rápido sair pela porta – que dava para a frente do casebre de Cibele. Acabou parando quando se deu conta do cenário lá fora.
— Bato! Olha só a luz verde!
— Toda noite a gente vê essa mesma luz verde, Janela! — Enzo retrucou. — Anda logo, chama ela para pegar a Isabel que já quero dormir!
— Não estou falando da luz aqui dentro da tenda. Olha lá fora! Tudo verde...
Enzo levantou da rede com Isabel no colo e Bato, que estava deitado no canto da tenda, divagando em pensamentos soltos, se juntou aos dois do lado de fora. A pouca iluminação da noite estava diferente do usual. A lua exibia uma cor diferente da branca, uma cor exatamente igual à luz que as crianças emitiam das costas. Com um sorriso bobo no rosto, Bato foi o primeiro a tirar uma conclusão daquele fenômeno extraordinário.
— É ele! Ivan acordou! Ele sempre dizia que a lua ficava verde quando ia ajudar ele.
— Mas parece que tem alguém que não está gostando dessa ajuda. Está ouvindo? — Bato e Enzo levaram as orelhas ao chão para confirmar o estrépito. Conheciam muito bem aquele barulho violento: em algum lugar nos arredores, Adônis corria dando seu máximo. — Ele vai espancar Ivan de novo! Ignis!
O mais velho deixou Isabel nas mãos de Janela e montou no íbex.
— Enzo, eu acho que a gente não devia se meter nisso... Galope proibiu a gente de ir lá! Está muito escuro, não vai dar para achar o lugar certo, e...
— Então fique aqui se quiser! Por mais quantos dias vamos ficar sem saber nada de Ivan? — Enzo partiu com Ignis em grande velocidade, e Bato não perdeu tempo: correu até Reimi, que pousava atrás da tenda como sempre, e saiu em perseguição ao irmão.
— Enzo! ENZO! E se ela me queimar?! — Janela segurava Isabel com os braços esticados. Embora nunca houvesse ocorrido nenhum acidente, ela sabia o que aquele bebê era capaz de fazer, e preferia não ficar sozinha com ela. Correu o mais rápido que pôde até a porta de Cibele, tentando não chacoalhar demais a menininha que apenas a olhava, cheia de curiosidade nos olhos amendoados.
Ignis era tão rápido quanto Adônis, mas seu trote era consideravelmente mais galante e silencioso. Isso não era, entretanto, suficiente para deixar o animal discreto em sua corrida, pois quando acelerava demais, as fagulhas de seu corpo se transformavam em curtas rajadas de fogo, lançadas inofensivamente sobre o corpo de Enzo e o trajeto percorrido. O espírito animal era um belo espetáculo de se ver, especialmente durante a noite. Foi seguindo o vermelho luzente que Bato alcançou seu irmão mais velho pelo céu, e após algum tempo de corrida, outra pessoa os encontrou.
— Enzo! O que está fazendo?! Volte para casa. Agora! — Adônis não poupou a voz, mas Enzo tinha sua determinação inabalada. Sabia que Ignis era mais rápido, e logo tomou a dianteira. Chegando antes, com certeza poderia ajudar Ivan a se livrar de Adônis. Infelizmente para o garoto, a lealdade de seu irmão era absoluta. — Bato! Pare ele!
O menino sabia que Enzo brigaria com ele de novo, quando estivessem sozinhos, mas não tinha outra opção senão obedecer ao centauro.
— Vária!
Ignis prosseguiu por inércia, mas logo retornou agitado para o local em que Enzo fora paralisado. Em pleno ar, Enzo exibia suas pernas arqueadas, os olhos marejados e a boca torcida. Ele sabia que Bato não reagiria contra Galope, e que seria congelado em questão de segundos.
— Volte lá atrás, pegue ele com Reimi e leve de volta para a tenda. Só vamos liberar ele pela manhã. Vá! — O centauro não esperou para ver Reimi fazer um arco no céu escuro e retornar até a figura suspensa de Enzo; mesmo vislumbrando a lua verde no céu, continuou seu rumo, ocultando dentro de si uma grande decepção com o amigo Ivan.
Sob a luz verde da noite fria Adônis percorreu o trajeto até o local onde tinha aprisionado Ivan. Sabia que a dor do amigo era infinita e inimaginável, mas era o preço a se pagar; Ivan concordou e não podia desistir no meio do caminho; aquela era uma viagem escura e tortuosa, cujo rastro de sangue deixado pelo viajante era sumariamente escondido pelas sombras do desespero, e não restava nada a não ser seguir sempre em frente. O centauro sentiu uma pontada de compaixão ao avistar Ivan, mas não o suficiente para ter complacência com a rebeldia dele. Adônis acelerou sua corrida e armou um soco com o braço direito.
Descendo uma encosta com passos cambaleantes, devido não só ao esgotamento físico, mas mormente à instabilidade mental, Ivan ainda se mantinha de pé, algo característico dos raros guerreiros teimosos que encontram no suspiro final não a oportunidade de desistir e se entregar, mas de persistir mesmo estando na fronteira da consciência.
O filho da lua seguia com a boca aberta, ofegando com seu andar curto e torto, guiado por forças impensáveis. Nunca aprendeu a se guiar pelas estrelas por mais que tentasse, e a sua grande companheira redonda no céu podia ser o único motivo de não cair desfalecido, mas a visão de Ivan já turvara o bastante para distorcer mesmo aquela gloriosa luz noturna. Após dias de fome, sede e dor excruciante, qualquer outra pessoa já estaria rendida à loucura.
Dadas suas condições, ele não percebeu a aproximação violenta de Galope, e o centauro se viu à vontade para desferir o golpe da maneira que achasse mais apropriado. Pela sua altura, Adônis poderia acertar um alvo com força e velocidade suficientes para separar a cabeça do corpo, mas como sua investida era amigável – ainda que violenta – ele precisou abaixar no momento de acertar o soco. Mirando o tronco ao invés da cabeça, o golpe adquiria características bem diferentes; Galope evitava o degolamento, mas o poder destrutivo ainda permanecia, podendo causar danos irreparáveis, ainda mais ao já prejudicado corpo de Ivan. Prudentemente, Adônis abriu a mão antes de tocar Ivan, fazendo-o receber menos danos, mas o homem foi empurrado com uma força astronômica, e seu corpo agora voava pelo céu do Cesaro, de volta ao bosque de onde não devia ter saído.
Foi a velocidade com que voava – e não propriamente o choque com a palma da mão de Adônis – que devolveu a consciência a Ivan, como uma criança inquieta que rola na cama para além da beirada e retorna dos sonhos, antes de se chocar com o chão, graças à vertigem. A luz da lua voltou a ser branca e os olhos de Ivan perderam o brilho verde enquanto ele agitava os braços e tremia as pernas; uma cena deprimente, mas não se pode pedir mais de quem desperta sentindo seus ossos esmigalhados rasgando o corpo por dentro, procurando uma posição para se acomodar. Os gritos chorosos pediam uma intervenção da morte, mas seria ela capaz de seguir um homem que cortava o céu tão rapidamente?
A dor não deu a Ivan uma noção de quanto tempo ele passou no ar, mas ele desejou que a viagem pelo céu tivesse continuado eternamente assim que seu ombro bateu contra o primeiro galho. O corpo girava a cada choque, e tudo que Ivan queria naquele momento era chegar ao chão de cabeça; não tinha recobrado coordenação para mergulhar, mas acreditava firmemente que a árvore lhe concederia este último desejo. Caiu verticalmente, porém com os pés para baixo. A perna esquerda rompeu o silêncio do bosque com um som macabro, e após ser dobrada para o lado mais errado, foi esmagada pelo resto do corpo.
Amedrontado pela crueldade da vida, e por ainda estar ligado à sua, Ivan chorou em silêncio.
— Você ainda não pode morrer.
Uma voz etérea sussurrava entre as sombras do bosque. Ivan ouviu claramente a mensagem, mas demorou a reagir. Talvez esperasse para ouvir uma segunda vez ou precisasse reunir forças para mover timidamente a cabeça. E ele moveu. Alguns metros adiante, o bosque se abria numa clareira, e luz vinha do chão, quebrando a desesperança enegrecida de Ivan.
— Você ainda não pode morrer.
Ele sentiu o chamado, e a voz lhe soou especial... Familiar.
Com uma ideia louca na cabeça, Ivan fez a única coisa que pôde. Arrastou-se como um verme, agarrado a pedras e raízes. Cada pedaço de grama arranhava sua pele como uma navalha cega. Mesmo com a perna destruída, ele se apoiava no lado esquerdo do corpo para rastejar, pois qualquer pressão do lado direito o fazia querer dilacerar o coração, pulmão e qualquer outra coisa que ainda estivesse inteira dentro do peito. Ele não ouviu mais a voz, mas não precisou; assim que se aproximou da clareira, avistou a figura da pessoa que o chamava. Ela usava um vestido branco esvoaçante, e tinha um olhar caloroso e calmo. Parecia sorrir, mas ele não tinha certeza disso. Os pés descalços estavam cobertos por pétalas brancas de flores luminescentes, as mesmas flores de antes. “É um cemitério”, pensou. Assim que adentrou o perímetro do jardim, evitou agarrar as flores e só destruiu as que seu corpo se arrastou por cima. Ela era linda.
A mulher de branco se agachou quando Ivan chegou aos seus pés e segurou seu rosto banhado em lágrimas. Ela tinha pele alva, como as pétalas das flores, e emitia a mesma luz. Os cabelos esvoaçavam como o vestido, ainda que não houvesse vento no bosque. Ela passou a mão pelo corpo de Ivan, e o toque era diferente de qualquer outra coisa que ele tinha sentido há muito tempo. Adônis, as árvores, o vento, o chão, tudo trazia dor. Ela era singular. A visão de Ivan clareou aos poucos e sua respiração retomou sua regularidade. O peito até parou de doer.
— Você não é a Nora? Nora, é você? Nora... — Ivan queria saber a resposta, mas não estava se sentindo bem em perguntar, então se calou. Felicidade era suficiente. A perna parou de doer, e Ivan entendeu que logo estaria curado de toda dor, quando outra voz surgiu, e a mulher de branco desapareceu, deixando um efêmero rastro de luz.
— Por que você saiu? — Adônis questionou, imperativamente. — Eu avisei que seria muito difícil. Não aguentou? Quer desistir, é isso?
Ivan levantou a cabeça e lançou um olhar feroz contra Adônis. Minutos atrás ansiava a própria morte para libertar-se do sofrimento; não podia perdoar o amigo por ter feito aquilo com ele, ao mesmo tempo, sabia que sofrer era o objetivo e o caminho necessário para abandonar o sentimento e a humanidade. Seu coração batia descompassado, sem saber como responder, pois o centauro estava certo.
— Eu só posso pedir desculpas, Galope. Invocar o poder da lua foi algo involuntário. Talvez a essa hora eu já estivesse morto, se não o fizesse.
— Não está arrependido, então? Vamos tentar mais uma vez?
— Com uma condição. Eu quero ficar preso aqui. Entre essas flores.
— Eu não recomendaria. Isso aqui é um cemitério, sabia? Mas posso fincar um tronco aqui no meio e te amarrar depois... As crianças estão muito tristes. Uma vez Bato e Enzo vieram comigo. Eles não suportaram ver você nesse estado, não entendem que só posso te dar água e comida em quantidade necessária para evitar que morra, nada além disso. Bato teve que paralisar Enzo a meu pedido. Fiquei realmente apreensivo com a reação agressiva dele, desde então não trouxe mais ninguém para ver você. Esse olhar raivoso que você atira contra mim agora... É só o começo.
— O que é isso? Esse lugar. Cemitério de quem? — Ivan precisava saber.
— Você me disse que o mestre do seu mestre era o homem sem signo. Para conseguir isso, ele precisou ser o único filho do zodíaco vivo, você sabe, não é? Mas de tempos em tempos, como você presenciou aqui no Cesaro, sempre surgia um novo caído do céu. Essas crianças foram mortas, uma a uma, sempre que apareciam no templo do Cesaro. O último guardião, na sua busca por liberdade matou todos eles. Eu não sei quantas dúzias dessas crianças, tão pequenas quanto Isabel, foram enterradas aqui. Cada uma delas ameaçava o plano do último filho de Capricórnio. Tanto tempo depois, vendo que se tornaram esse jardim, me pergunto como pode uma história tão triste criar algo tão belo...
O centauro entrou no jardim luminoso e agarrou Ivan pelo pescoço. Ele não revidou, mas seus olhos se encheram de ódio quando foi tocado pela mão de Adônis. Sentindo a garganta presa, teve que perguntar antes de apagar:
— Quanto temp... — tentou puxar ar em vão — vai durar?
— Eu não posso revelar isso. — Para a tortura surtir o efeito desejado, Ivan não podia saber quanto tempo teria de sofrer.
Ivan desmaiou asfixiado, e quando acordou, estava amarrado num tronco, rodeado pelas belas luzes brancas tremulantes. A cada novo dia a fome enchia sua barriga, a sede secava sua esperança e a dor se tornava mais parte de si. Mas todas as noites, ela estava lá.
No dia o corpo cedia ao apodrecimento. Os olhos se perdiam na escuridão perpétua, a pele grossa se esfarelava sob os raios de sol do meio dia, as lágrimas não tinham coragem de abandonar aquele corpo desesperançoso. Mas tudo bem, afinal a noite chegaria com seu resplendor. E a noite chegou, mas sem qualquer alívio. Sem pétalas de flores bruxuleantes, sem a luz cálida de Nora-Celtah para devolver vida a seu corpo. Por que continuava mergulhado em trevas? A noite finalmente o traíra? Fosse este o caso, não havia escapatória; foram tantos dias – incontáveis – que Ivan já não se encontrava mais em condições de se reerguer. Nem a maravilhosa lua parecia ser capaz de emitir sua luz verde revigorante sobre o corpo do seu predileto. Assim sendo, a solução é morrer.
“Mas já não estou morto?”, o pensamento se repetiu tantas vezes, que Ivan já acreditava estar morto. E de chofre, algo mudou. A dor, ainda aterradora, se estabilizou, contudo havia um ponto do corpo em que ela ainda era um pouco mais aguda: no seu pulso esquerdo. “O que está acontecendo?”, o verme ousou pensar novamente. Imagine se cada pedra, filete de água e semente de amendoeira resolvesse pensar, a loucura que seria. Entretanto, aquele corpo decadente ousava pensar, como se estivesse vivo. Ivan tentou enxergar alguma coisa, mas não tinha mais essa capacidade.
De frente para ele, Adônis estava sério, segurando-o pelo pulso. Nas costas de Ivan, as pedras milenares formavam a parede externa do Castelo de Libra. Abaixo de si, apenas o barulho inconfundível das águas.
— Um dia eu apareci no Cesaro para proteger o filho de Sagitário. Eu acredito que você também foi escolhido para uma tarefa específica, e se for matar Afrodite, esta será sua melhor chance. Sauza te guie, Ivan. — O centauro largou Ivan e arremessou a lança dourada em seguida. Como a água rodopiante que corre eternamente, Ivan foi sugado para o centro do redemoinho, sem sentir o medo da queda, o frio do mergulho ou a aflição de ser puxado pela maré. Sem sentir nada.
Quando a água penetrou pelo nariz, o corpo inteiro se tremeu por um instante, numa vaga memória de como reagir àquela invasão imprópria, mas assim que suas vias se preencheram, Ivan estava mortificado novamente e tudo era só mais uma dor entre tantas outras mais costumeiras. Seus olhos, tão desacostumados ao mundo, relutaram em identificar uma luz no meio do vazio negro; a percepção se deu tardiamente, depois que ela já envolvia todo o corpo de Ivan.
E com a luz, sua mente ressurgiu. “A realidade é fantástica”, foi o primeiro pensamento de Ivan, quando se deu conta de que a luz era uma luz, e que a uniformidade das trevas podia ser quebrada. Ele foi arrastado, ainda sem posse dos movimentos, na direção da fonte da luz, e aquilo o deslumbrava cada vez mais. Quanto mais forte ela ficava, menor era a presença das trevas. Outro pensamento surgiu: uma memória. Da última vez que vira luz, ele também se deslumbrara, e na anterior também, e na anterior a essa, mas agora era diferente. Antes eram pequenas luzes que dançavam com o sopro do vento, e algumas delas se deixavam levar quando o vento era muito forte, pintando o céu com um rastro de fragilidade pacífica. Uma fragilidade bela, embora comum, como a de uma pétala de flor.
“Pétala de flor!”, ele lembrou. Sabia o que era uma flor, e se deu conta que conhecia um mundo inteiro de cores, sons e formas variadas, mas que fora engolido por uma sombra dura e permanente. Tudo que havia naquele mundo de outrora, Ivan sabia que podia recuperar, afinal estava se lembrando sem qualquer encorajamento! E resolveu tentar: tinha a impressão de que para melhores resultados, podia fechar os olhos e se concentrar, mas não sabia se estava com os olhos abertos, então deixou aquilo de lado e apenas se preocupou em recuperar o que lhe fora extirpado. Quanto mais seu corpo se movia para dentro da luz, mais ele recordava, até que ele entrou no azul e sabia de tudo novamente. A primeira coisa que falou – não com a boca, pois não conseguia usá-la e estava ciente disso – foi:
— Ligeia!
— Sim. — Alguém respondeu. Ivan buscou a pessoa, mas a luz azul era esmagadora. Ofuscou sua visão – que agora funcionava, não havia dúvidas – e permitiu que ele fosse surpreendido por alguém. “Nora?”, pensou. Mas não era Nora-Celtah; ainda assim era a mulher mais linda de todas, como ela. Ivan tinha firmeza daquilo, pois não era a beleza trivial que se percebia pelo sentido da visão, era a beleza perceptível pelo sentido extrapolado, presente apenas na alma. Ela tocou em seu corpo e ele conseguiu se mover novamente, e a cada segundo ao lado daquela Ligeia, seu corpo renascia, majestoso.
Finalmente, seus olhos abriram e ele pôde ver a luz azul da mesma maneira como se viam as outras cores azuis, verdes, brancas... Mais suntuosa que a luz, ele a distinguiu, e da sua boca saiu um som.
— Afrodite. — Ela sorriu levemente quando foi reconhecida. Talvez fosse culpa do sorriso, mas Ivan se perdeu por momentos infindáveis, enquanto ela rodopiava ao seu redor, abraçando-o uma vez ou outra. Mesmo quando ela o soltava, ele ainda se sentia grudado a ela; era o cabelo dela, tão longo que envolvia os dois sem emaranhar, fluído como água. “Isso é água!”. Deu-se conta que o cabelo por onde nadavam era água, e quando regressou a visão para a mulher, notou algo mais: o corpo dela tinha algo diferente. Já tinha visto o corpo de mulheres na sua vida passada, mas nunca tinha visto aquilo que circulava pelo corpo dela como um coração vaguejante. Ela notou que ele queria olhar, e encerrou o seu nado.
Estavam num lugar muito menor do que Ivan julgara. Era uma espécie de caverna esférica encolhida e inundada pelo mar. Ele encetou o próprio nado e tocou o corpo de Afrodite.
— Com ele você ficará pronto mais rapidamente. — A boca não se moveu, mas ele ouviu a voz branda dela, e introduziu sua mão no abdome, um pouco acima do umbigo. Como os cabelos, a pele dela era a própria água, e não ofereceu qualquer resistência a Ivan. Como sangue bombeado, o objeto chegou até a mão de Ivan. Seus dedos seguraram a pedra, seus olhos se iluminaram como nunca antes na vida, nem mesmo quando a lua lhe emprestava sua luz.
Tudo estava vívido. As paredes e suas frestas, a lança dourada acomodada na parte inferior do local certamente tinha sido trazida junto com ele pela força da água. Dois túneis se abriam ali. Um foi por onde entrara, o segundo era mais estreito e estava no alto, levando a algum lugar acima. Afrodite retomara sua dança aquática, envolvendo Ivan enquanto ele se revigorava além de qualquer limite com aquele prisma nas mãos. Da mesma forma que seus olhos, agora sentia sua musculatura exceder as possibilidades mais improváveis, e então perguntou, extasiado e com gritos risonhos:
— Que grandiosidade é esta?! Como posso estar segurando em minhas mãos algo comparável apenas à pulsação das estrelas?!
Ela respondeu tão despreocupada quando das outras vezes:
— É simples. É a única coisa que compõe meu coração. Amor.
A última palavra rasgou Ivan como uma adaga no coração; ele se lembrou da última coisa que restava lembrar. Não era a primeira vez que sentia aquela sensação prevalecente sobre qualquer desejo individual. Da outra vez, não tinha sentido amor em suas mãos, materializado em uma pedra, mas dentro do próprio coração, gerado pelo esplendor genuíno que o movera durante anos até chegar ali. E nada mais sobrou de esquecido em sua mente.
Estava ali porque era o ponto final da sua busca. Queria matar Afrodite. Aquela pedra não era um coração, era uma dádiva dos mundos, presente da deusa ancestral Draco, e continha todo o poder da vida e da imortalidade. Aquele era o Prisma Pulsar, o último artefato que precisava destruir.
“Mas não posso mata-la”, Ivan pensou. Pela primeira vez desde que a luz azul o resgatou do sofrimento eterno, Ivan sentiu algo ruim. Afrodite passou rodopiando diante de seus olhos.
“Não pode ser verdade... Tudo que fiz para matar Afrodite e destruir o Prisma foi em vão? Eu não posso deixar ninguém matar esta pessoa; eu devo mata-la, mas nunca poderei! Não permitirei! Foi tudo em vão! Adônis me matou duas vezes por nada”.
— ELE ME MATOU POR NADA!
O grito repentino de Ivan assustou Afrodite, que encerrou seu nado e seus olhos abriram por completo, formando um semblante alarmado no que antes só demonstrava paz. Mas Ivan não prestou atenção nisso. Com quase quarenta anos, finalmente poderia concluir sua tarefa e voltar para seu lar, mas era incapaz de completar a missão. Como seu mestre, Alcides Grankill, e o mestre dele, Amat-Gadu, Ivan ficou cara a cara com Afrodite, mas sua determinação não era capaz de sobrepujar a benquerença que sentia pela mulher chamada de mãe de todos. Na explosão de ódio, Ivan virou-se para a lança dourada sob seus pés e nadou até ela, segurando o cabo firmemente. Ao menos aquela pedra maldita ele estava apto para destruir.
— Não! Se destruir o Prisma Pulsar, eu vou morrer!
— Não é verdade! Não pode ser...
— Ele me mantém viva até agora! Por favor, por que quer fazer isto comigo? Só fiz o que fiz pensando no seu bem. — A voz chorosa denunciava seu sentimento autêntico.
— Eu vou te manter viva a partir de hoje! — Ivan ergueu a lança dourada e comprimiu a ponta contra o Prisma Pulsar. Com mais facilidade que o imaginado por ele, a pedra se desfez contra a parede da caverna e seus cristais se esfarelaram fugazmente, misturando-se na água e desaparecendo para sempre.
A luz azul se dispersou. Ao contrário do que Ivan pensava, era emitida pela pedra, e não por Afrodite. Mas seus olhos ainda funcionavam perfeitamente, e ele nadou a curta distância que os separavam. Encostada contra o teto, Afrodite parecia estar chorando quando lamentou:
— Você não chegou a completar a sua mudança — ela acariciou o rosto de Ivan com a palma da mão — e eu nem tive tempo de te nomear...
— Meu nome é Ivan. Sou de Namal-te-Raan, como você. — Ele respondeu.
— Não. Seu nome é Zi-g-Oc. E você é meu filho. Meu último fi...
O corpo de Afrodite se perdeu entre as águas, e os contornos que delineavam a mulher mais linda do mundo desapareceram, seguiram a corrente.
Antes que Ivan misturasse suas lágrimas à água do mar, algo violento surgiu. Sem sinal prévio, a corrente de água acelerou, e o que antes passava sutilmente pela sua pele o acometeu com uma força indefectível, causada apenas e exclusivamente pelo poder de uma das dádivas do mundo. Indefeso, Ivan foi arremessado para o alto, percorrendo o estreito túnel da caverna.
O que se seguiu foi demasiadamente veloz para fazer algum sentido. Ivan saiu do túnel abruptamente e bateu o lado do corpo contra um teto de pedra muito baixo. Sem entender como enxergava, ele passou os olhos em volta e imaginou-se como uma raposa em sua toca. O lugar era pequeno e desconfortável. Não havia nada realmente, o túnel por onde viera descia de uma banheira no centro do aposento e ao redor da banheira as paredes logo se curvavam, quase não deixando espaço suficiente para alguém da altura de Ivan se manter de pé. Ao lado direito ele distinguiu uma fenda que dava acesso à escadaria, e ignorando os jatos d’água que continuavam a jorrar da banheira, ele encetou a subida. O que Ivan não notou em sua pressa foi a rebeldia e estranheza da água, que não respeitava a verticalidade da queda. Assim que a banheira expelia novos esguichos, eles cortavam direções impossíveis; os que não se chocavam com as paredes e teto seguiam um fluxo fantástico girando em espirais e ângulos obtusos.
No topo da escadaria, de volta à luz do dia, o corpo de Ivan finalmente se ergueu ereto, e ele sabia – ainda que nunca tivesse pisado ali – que estava dentro do Castelo de Libra. Diferentemente do lugar por onde entrara, o castelo não possuía qualquer aspecto cavernoso, suas paredes altas não tinham nada de rudimentar. As pedras frias que formavam as paredes e teto eram grandes e firmes em seus lugares, e o chão, também de pedra, era plano e aparentava ter sido polido recentemente. Sem qualquer sinal de vida por perto, Ivan passeou pelas salas do castelo, sem vergonha de abrir as portas altas de madeira. Os ambientes vazios se acumulavam porta após porta, deixando o castelo parecido com um brinquedo muito grande, cujo dono já crescera há tempos, tendo esquecido o prazer de encher os salões da sua caixa com personagens e festança. Na sexta área que entrava para investigar – essa era uma sala mais comprida que larga – Ivan resolveu se debruçar sobre a janela. Disse a si mesmo que tinha saudade de admirar aquele céu azulado. Ao se aproximar da vista do lado de fora, outra coisa lhe chamou a atenção, mas que transparecia o mesmo azul calmo do céu e do mar. Sobre as ondas que empurravam as paredes rochosas da construção, filetes espiralados, pilastras ascendentes e correntes circulares de água pululavam ao redor do castelo, chegando a alturas admiráveis.
Ivan tentou olhar mais para o alto, mas estava em um nível muito baixo e a janela era afastada do mar. Saiu do aposento e correu até achar uma escada para um andar superior que tinha visto um pouco antes. Pretendia alcançar um ponto em que pudesse ter uma vista panorâmica do que estava acontecendo, mas uma peculiaridade o fez parar no meio do caminho. Em meio à imensidão vazia, uma porta alta de madeira tinha o símbolo da balança entalhada; precisou entrar e ver do que se tratava. Um elemento humano se destacou: um trono de recosto alto com detalhes dourados e vermelhos decorava o lugar, cujas paredes abrigavam altas janelas nas laterais da sala. Um velho de longos cabelos prateados estava de pé, em frente a uma delas. Ele não identificou Ivan até ele estar a alguns passos de distância.
— Quem é você? — Perguntou o velho, sem medo ou espanto no rosto. “Talvez este castelo não seja tão isolado quanto eu estava pensando”, cogitou Ivan, sem responder nada ao velho. — Veio estudar também? Por que não concluiu a transformação? Sabe que a biblioteca fica completamente fechada, não é? O corpo da terra é mais apropriado para longas sessões de leitura, usar um meio termo não ajuda muito...
Ivan não fazia ideia de como responder àquelas perguntas, mas seu corpo não parecia diferente. Suas mãos, braços e pernas estavam normais, e ele finalmente atentou para o fato de estar nu. O velho, apesar de vestido com um aspecto bastante formal – a vestimenta era justa no corpo e o tecido verde escuro era bem grosso, cobrindo-o do pescoço aos pés, que por sua vez estavam descalços – parecia não dar atenção à nudez de seu visitante. Foi quando Ivan parou para ver o único objeto que carregava, a lança dourada. Tudo se esclareceu quando viu seu reflexo na ponta da lança. O tempo que respirou debaixo d’água, a estranha força renovada que sentia nos músculos, a visão eficaz mesmo sem luz no aposento embaixo do castelo; tudo era possível porque ele agora era um aquático. Ou meio aquático. Sua pele não se tornara azul, mas seus olhos totalmente enegrecidos e o cabelo – que sempre fora de um tom castanho semelhante aos olhos – agora era preto como a noite mais negra. Lembrando-se de seu velho mestre, que também era um mestiço, Ivan sorriu de orelha a orelha.
— Ei, rapaz! Não está prestando atenção em mim?! Me diga, que arte é essa aí fora? Junin-g-En veio com você? Aquele menino está muito exibido... Tem um ano e já faz isto acontecer!
— Não, eu não vim com ningu...
— Me ajude a subir a escadaria de trás, vamos ver isso lá do terraço do castelo.
Ivan obedeceu sem dizer nada. Ergueu o velho nos braços – estranhando a leveza do corpo dele – e subiu os lances de escada até o topo do castelo. A visão da Ponte dos Mundos, imponente e infinita de um lado ao outro, cedeu sua grandiosidade à impressionante dança de luzes multicoloridas que seguia as ondas de água no céu. Os arco-íris deslumbraram os dois admiradores, mas o significado real daquele evento apenas Ivan desvendou, quando deixou de lado a beleza das cores para entender o formato criado pelo fluxo da água. Assim como das outras vezes, o poder liberado na destruição de uma dádiva do mundo provocou uma mudança no ambiente, mas o isolamento não permitiu que houvesse terremotos ou desmoronamentos. No lugar, o oceano foi afetado; no ponto mais alto do Castelo de Libra, Ivan divisou a gigantesca mão que se erguia do mar, engolindo o castelo com sua palma e esticando os dedos para o céu, buscando a todo custo voltar para o seu lugar devido.
Após mais alguns minutos de deslumbramento – um pouco mais presente na expressão de Bak-Tanu que de Ivan – a energia do Prisma Pulsar se esgotou. A água se tornou novamente impotente perante as leis naturais e precipitou de vez, se reagrupando à costumaz tormenta marítima.
— Como pode uma criança tão pequena fazer algo desta proporção? Ele está com a mãe de todos, não é? Me leve até ela, quero vê-lo um pouco. — Ivan nada disse ou fez. — Quer ficar aqui fazendo o quê? Ah, não quero saber, mas não entre na biblioteca molhado deste jeito!
O velho desceu pela escadaria se apoiando na parede fria, um degrau por vez. Certamente havia um traço nobre em sua personalidade; submeter-se a tais condições quando podia escolher manter-se como aquático – forte e ágil mesmo em idade avançada – evocava um senso de honra e determinação voluntária ímpares, ou, ainda que aquela circunstância fosse um dever obrigatório, não parecia ser o tipo de incumbência atribuída a sujeitos de índole fraca. O corpo decadente retornou pela escada um tempo depois, impávido e apressado. As canelas tremiam para subir os degraus um pouco mais rápido, pois a explicação precisava ser imediata e convincente. Quando atingiu o topo do Castelo de Libra, encontrou o que temia: o estranho não estava mais por ali. A desolação não o impediu de bradar furiosamente até atingir a beirada e derramar lágrimas no oceano.
— O que você fez com a mãe de todos?! Eu o amaldiçoo! Devolva ela para mim... ESTE CORPO NÃO PODE VIVER AQUI SOZINHO!
As lamúrias de um homem tão debilitado não seriam capazes de transpor a altura até a superfície do mar, e ainda que fossem, Ivan já se encontrava longe, muito abaixo do mundo conhecido. Enfrentar Bak-Tanu não seria problema, e disso se deduz que o motivo da fuga não foi covardia. Vergonha. Foi a vergonha incomensurável que fez Ivan pular para a água assim que o velho desapareceu na porta; a vergonha do filho que tirou a vida da mãe.
JUNIN-G-EN
ÓDIO SOB A MARÉ
V
Beijado pela força da água ele cruzou o caminho de curvas longas, curtas, obtusas e sem fim. Não perdeu o sorriso do rosto nem por um segundo, e mesmo a turbidez do fundo do mar transparecia suas formas e cores para os apurados olhos escuros de um aquático. Quem nadava tão alegremente com Junin-g-En nas mãos era Uj-Oqen.
Seus cabelos negros, muito compridos, se confundiam com as correntes e desenhavam ondas formando um rastro fugaz para a região fria do oceano.
— Está vendo, Junin-g-En? Estamos quase lá! — O bebê de cinco meses não esboçou reação, mas estava alegre. Tinha sido notado nas águas ao redor do Castelo de Libra por Uj-Oqen, que resolveu dar uma volta com ele para um local mais longínquo. Adiante, além dos puxões marítimos, o azul escuro e turbulento deu lugar à monumental parede cinzenta. O Castigo.
Dentro da área fria, Uj-Oqen diminuiu a velocidade de nado e parou com as piruetas. Apesar de não oferecer perigo, aquele local tinha águas lúgubres, e chegar tão perto era, para alguns, um ato ignominioso; mas o jovem aquático não tinha medo, pois acreditava que ir até o Castigo era o destino de Junin-g-En.
Chegaram próximos à montanha submarina e os dois tocaram a parede lisa, corroída por anos de correntes violentas, extremamente gelada e imóvel. A montanha era inatacável, porém insciente. Asu-Na-Buru, a cidade submarina, coração do povo do mar, jazia em escombros debaixo do gigantesco monstro geográfico. Uj-Oqen retirou a palma da mão da parede, pois o frio começava a doer, e porque sentiu algo se aproximar. Virou a cabeça para longe, buscando aquela singularidade abstrusa na continuidade perfeita das ondas, e eventualmente descobriu do que se tratava. Foi quando sua espinha dorsal gelou de verdade: Gon-Oqen quebrava a movimentação das águas impondo seu ritmo agressivo sobre elas, nadando com raiva e com voracidade até o irmão mais novo, os olhos negros firmes no alvo: o filho de Peixes, Junin-g-En.
De chofre, Uj-Oqen rumou de volta para o Castelo de Libra. Tomando impulso no corpo de Itatibe, o Castigo, o aquático conseguiu imprimir velocidade ao nado, mas ele sabia que precisaria de outro artifício contra o irmão. Seu nado podia fazer humanos se impressionarem, mas nunca fora apto para vencer Gon-Oqen numa corrida, e para complicar o quadro, um dos braços segurava o filho de Peixes. Graças à disposição das correntes, o percurso do irmão mais velho foi atrasado, entretanto, terminada a curva longa em que ele precisou mais se debater do que acelerar, a disputa se tornou fácil. O Castigo já estava coberto pela escuridão do mar quando o pé de Uj-Oqen fora puxado pelo irmão.
— Por que protege esta praga? — Ele vociferou, arremessando o irmão mais novo para baixo.
Uj-Oqen não respondeu, aproveitou o arremesso para cobrir trajeto e nadou para longe, decepcionando Gon-Oqen. A perseguição continuou.
— Por que não pensa na segurança do seu povo? Ele vai crescer e nos escravizar, como sempre. Agora somos livres! Temos poder, os humanos nos obedecem!
— Porque é o desejo da mãe de todos! Ela não pode ser contrariada, irmão! — As mãos violentas esticaram seus dedos para pegar o pé de Uj-Oqen novamente, mas não o alcançaram.
— Eu vou precisar te matar para dar um fim nele? — O monstro perguntou, raivoso. A voz denunciava o alcance imediato, mas Uj-Oqen permanecia no páreo, nadando do jeito que podia, e sem entender como ainda estava safo. — O que está acontecendo? O que está fazendo comigo? É ele, não é?!
Uj-Oqen virou-se para trás e percebeu que os movimentos do irmão eram mais agressivos e precisos. O sincronismo do corpo, as flexões dos braços e joelhos, Gon-Oqen era uma perfeição do nado, sua técnica perfeita combinada ao seu ímpeto bruto. E, ainda assim, não chegava a Uj-Oqen. Era arte de Junin-g-En. O irmão novo diminuiu a velocidade, e o velho imprimiu mais. Continuaram separados.
Em um dado momento, Uj-Oqen parou de nadar e, virado para Gon-Oqen, viu o irmão bramir de ódio a poucos metros dele, com o nado à toda velocidade. O rapaz estendeu sua mão para o lado e, na ponta dos dedos, pôde sentir a turbulência enervada que o rodeava. Os poderes de controle da água de Junin-g-En eram realmente fantásticos.
— Irmão... Você é quem não consegue pensar no nosso povo. Misturou-se com humanos nas praias, ganhou presentes e acha que tem algum poder sobre eles. Nosso destino está nas mãos dele, do nosso imperador! É o desejo da mãe de todos. Sinto muito...
— Uj-Oqen!!! Ele não pode viver no castelo para sempre. Algum dia ele vai sair de perto da mãe de todos, e eu estarei lá! — O mais novo se afastou, sem pressa, enquanto Gon-Oqen já tremia os braços de cansaço, mantendo o ritmo frenético de nado sem sair do lugar. — UJ-OQEN!!!
O bebê balançou os bracinhos, sem muito propósito, e a corrente turbulenta ficou tempestuosa, fazendo vibrar mesmo as águas calmas que rodeavam Uj-Oqen. Gon-Oqen foi cuspido para longe dali, rugindo de cólera enquanto o mar levava o que ele tinha trazido de ruim.
A preocupação de Uj-Oqen foi logo comunicada a Bak-Tanu, e o Guerreiro de Libra foi categórico: Uj-Oqen deveria levar o infante para ser criado por Bal-t-Moer. Ele era outro aquático com poderes que se alastravam pela terra seca, mas era mais velho que Gon-Oqen, e, principalmente, mais obediente. Sua devoção à mãe de todos era imperiosa, e seus seguidores acumulavam-se por todos os lados do oceano, não havia outro mais indicado para cuidar do filho de Peixes, mormente se a ameaça viesse apenas do séquito de Gon-Oqen, um grupo muito restrito às praias do lado oeste de Maciaan.
Afrodite se despediu do futuro Imperador do Oceano, ansiando pela volta do seu filho mais prodigioso ao Castelo de Libra. Ela nunca o viu depois daquele dia.
Capítulo 6: Estrelas brilham no céu sem lua
I
Noites silenciosas marcaram o Cesaro após a partida de Ivan, e ventos sibilantes cortaram vários céus enquanto as crianças se recusavam a falar com Galope, até que, um dia, Cibele resolveu dar um basta naquilo tudo. Isabel e Rafael já tinham dois anos, e cuidar dos filhos durante a rotina já era estafa suficiente, para ter que lidar com a briga entre Galope e os outros três – segundo ela, já estavam velhos demais para agir como pirralhos. Enzo já se aproximava dos quinze anos; ele, Bato e Janela eram demasiado maduros para a idade que tinham, e não foi preciso muita coça para que retomassem o convívio amigável com Galope. Quando Ivan fora levado pela Ponte dos Mundos, os três se conformaram com o acontecido e mantiveram a rotina e os trabalhos diários, o que, de certa forma, foi até elogiado por Galope e Cibele em conversas privadas, mas era patente o descontentamento dos irmãos, que se negavam a falar com o centauro, e os treinos de resistência passaram a ser feitos individualmente, ou, quando os irmãos combinavam de treinar juntos, faziam questão de evidenciar que Adônis não era bem-vindo como expectador nem necessário como professor.
Galope, ao contrário do que se esperava, não demonstrou decepção com o tratamento frio. O centauro já vivera o suficiente para ter seu coração calejado, e talvez sua própria natureza o ajudasse a reagir daquela forma, afinal, o que era ele senão um simples protetor? Sabia que seu dever era acompanhar e proteger o filho de Capricórnio – que desta vez era o carismático Bato – mesmo que levantasse descontentamento e ódio por isso. E não chegou a tanto. Enzo, sim, desenvolvera uma cólera profunda, especialmente nos primeiros dias após o aprisionamento de Ivan, mas seu comportamento era ao mesmo tempo rebelde e obediente; tinha suas vontades, e as defendia com certo fervor, mas para ele a família era o mais importante, e Galope sempre fora o chefe dela e quem dava a palavra final. Bato seguia a mesma linha, mas seu afeto por Galope era ainda mais intenso, e a sua obediência, muito maior. Tinha respeito pelos mais velhos, e sua ligação astral com o centauro certamente pesava um pouco mais, por isso ele acabava tomando o partido – ainda que não anunciasse – de Galope, se sentindo constrangido, às vezes, por não apoiar Enzo, que também era alvo de sua admiração. Janela, por sua vez, era a mais independente nas discussões. Escolhia aleatoriamente o seu lado – e muitas vezes criava um terceiro ponto de vista, só para ela – mas em geral se aliava a Enzo, como fazia na guerra do silêncio que ele resolveu iniciar.
O dia em que o pé de guerra se findou foi escolhido por Cibele com acertada sabedoria. As nuvens carregadas de trovões anunciavam a chegada de um filho do zodíaco. Isabel e Rafael estavam saudáveis, mas logo começariam a falar e a mamãe gostaria de ver seus filhos vivendo no clima alegre e fraterno de meses anteriores.
— Eu sou o guardião do templo. Vou continuar a viver aqui do mesmo jeito que vivi nos últimos anos. Se a revolta é tão grande, eles que passem a morar em Caxa ou qualquer outro lugar. Nunca os amarrei aqui no Cesaro. — Galope respondeu rispidamente, o que não era nada inesperado, mas Bato sentiu as palavras com certa tristeza.
— Eu sei muito bem disso! Se não fui embora ainda, é porque este é o meu lugar, protegendo os meus irmãos. Eu sei que você nunca vai se desculpar pelo que fez com Ivan, então de que adianta continuar insistindo? Seu dever é com o templo? Pois o meu é com Janela, Bato, Rafael e Isabel.
— E Dolga e Guiara — Bato acrescentou à fala de Enzo, esquecendo-se do filho de Peixes.
— Eles também. Então continuaremos aqui no Cesaro, pois ele é tão nosso quanto seu!
— Não foi exatamente como eu tinha imaginado, mas... Só de não ter que intermediar as conversas, já fico feliz. — Cibele sabia que aquelas pazes não restauraria a amizade de outrora, mas era o primeiro passo. “O tempo cura tudo.”, ela pensava, e aqueles meses de rancor logo dariam lugar a uma gradativa reconciliação.
Ou assim ela pensava, pois, como era esperado, a noite trouxe mais membros para a família, e eles modificaram permanentemente a vida daqueles que viviam no Cesaro.
***
— Ei, Cibele! São dois, um menino e uma menina! — Enzo e Bato se exaltaram quando avistaram Cibele, que esperava sentada numa cadeira em frente à tenda principal. Adônis entregou um dos gêmeos a ela, o menino. De cabelo preto, ele dormia fragilmente, e se encaixou com perfeição nos braços da gorda mulher.
— É o filho de Escorpião. Temos um futuro rei diante de nós! — O centauro exclamou. Aparentemente, a chegada das crianças era o suficiente para refazer os laços de benquerença no Cesaro. Quando perguntado sobre a menina, ele continuou, revelando as esmeraldas nas costas da recém-chegada: — Ela é a filha de Aquário. Fiquei um pouco nervoso quando vi duas crianças. Da última vez que apareceram gêmeos aqui, muita coisa deu errado, e muita gente morreu também, graças a Itatibe. Espero que nada desta sorte volte a acontecer.
— Não fale esse tipo de coisa, Adônis. Pode atrair. Mas veja só esses dois, não acredito que tragam nada de ruim, são tão graciosinhos...
— Os gêmeos de antes eram de Virgem e Aquário... Pode ser que ela esteja trazendo coisas ruins de novo... — Bato falou, sem pensar, e calou a boca com as mãos assim que notou o olhar reprovador de Cibele. Mas não resistiu e falou mais. — É verdade, ela transformava a água em cristais, tem no diário de Tieste...
— Já chega disto, Bato! — Adônis levantou a voz, num ato muito raro de se ver, e todos ficaram espantados, mormente por não haver necessidade daquela reação.
— Mas ela não vai cristalizar coisa alguma, não é, meu bebê... — Cibele sorria à toa, e a criança, ainda adormecida, apertou seu dedo. — Viram isso? Cristal? Ela está apertando a ponta do meu dedo. Que lindo. Esse vai ser o nome dela, o que acham?
— Por mim, tudo bem. É fácil de lembrar.
— É um nome bonito. — Bato comentou.
— Acho diferente, mas é bonito, realmente. — Enzo concluiu, bocejando. — Vou dormir, amanhã de manhã levo ela e ele para Caxa. — Encerrou a conversa, dirigindo-se para as esteiras de palha, onde Janela já se encontrava em sono profundo.
— O que acham de nomeá-lo Renan? É um nome tão bonito, e é o nome do meu esposo!
— Cristal e Renan, então. Acho que não haverá objeção, não é? — Bato meneou a cabeça em concordância e pulou para sua rede. Galope encerrou a conversa com Cibele e entregou a menina para que ela a levasse para o berço no aposento dela. Os dois dividiriam o leito com Rafael. Ao sair, ela comentou, sem motivo:
— Vamos deitar, aqui não daria para vocês dormirem em paz, com esse cheiro horrível do Adônis.
Os três – Cibele, Adônis e Bato – se olharam espantados. O protesto, no entanto, não veio por parte de ninguém, tal foi o embaraço, e a mulher, envergonhada, saiu da tenda calada, com passos apressados.
II
A estranheza daquela noite não terminou ali. Com a chegada das crianças em Caxa, a vida de Cíntia se tumultuou com problemas: conversas indevidas, declarações descabidas e brigas escandalosas se tornaram corriqueiras. A mudança abrupta no dia-a-dia do bordel chegou a ser notada até pelos que não eram frequentadores, pois as discussões brotavam até nas mais inocentes atividades, como, por exemplo, numa ida até a feira ou nos passeios matutinos que algumas mulheres sempre faziam, e aproveitavam para levar os gêmeos. Após algumas semanas, muito se confabulou sobre aquela onda de hostilidade que arrebatou o vilarejo, e relatos sobre uma maldição começaram a circular pelas casas. Cogitou-se até atribuir aquele mau agouro às crianças, mas isso logo foi esquecido, pois o casal nada fazia de diferente: eram recém-nascidos e, como todos os bebês, inofensivos. A suspeita chegou até os ouvidos de Galope por Bato, e na cabeça do centauro perdurou um pouco mais.
— Os filhos do zodíaco não podem ser subestimados. Dos que já nasceram, só os gêmeos não demonstraram nenhuma capacidade sobre-humana. É, Guiara demorou anos para despertar o poder dela, mas no caso deles é diferente. Nenhum deles trouxe um artefato ou guardião mágico, como Janela e Enzo, mas... E se os poderes deles já estiverem se manifestando? Nem todos os poderes cedidos pelas constelações são vantajosos. Pode ser que as crianças carreguem consigo algum tipo de espírito maligno da discórdia.
— Que Sauza me afaste deste tipo de coisa, Adônis — Cibele respondeu, preocupada — Enzo me contou que já aconteceu até de provocarem incêndio lá na vila. Olha que já fiquei horrorizada quando falou do assassinato, Caxa não tem tamanho para esse tipo de coisa.
— É verdade. Estou pensando em trazer os dois e as amas de leite para cá, só para termos certeza. Com a saída das crianças de lá, poderemos averiguar se a convivência dos habitantes volta ao normal. Enzo já deixou Dolga ciente; se algo de extremo acontecer, ele deve pegar os dois e vir correndo. O problema é que não estaremos a salvo se minha suspeita estiver correta. — O centauro pousou um olhar profundo na mulher, e ela não precisou de muito para deslindar o significado.
— É a Isabel, não é...
— Sim. Ela ainda está aprendendo a falar, não temos como contê-la em caso de briga, seja com palavras ou pela força. Se os gêmeos forem os causadores dessa tal maldição que caiu sobre Caxa, é meu dever trazer os pequenos para o Cesaro. Você sabe que o poder dos gêmeos do passado trouxeram Itatibe, a entidade que desencadeou destruição em massa em Casul – mais de uma vez, inclusive. Se Renan e Cristal forem realmente os arautos dessas desgraças que estão acontecendo, eu preciso recolher ambos e prevenir a ruína de Caxa.
— Eu entendo, Adônis. Mas vai ser difícil viajar mundo afora carregando dois filhos pequenos.
— Quanto a isso, não se preocupe. Podemos arranjar um lugar para você morar em Caxa ou outra vila próxima, e levamos você e as crianças com Reimi. Ora, do tamanho que ele está, até eu caibo com folga em cima dele. E se quiser voltar para a capital, lhe arranjaremos dinheiro, não se preocupe. O Cesaro tem muitas pedras preciosas; já que é para você, os meninos não vão se recusar a minerar um pouco ao meu lado.
— Eu aceito com gosto! Em Kelicerata posso buscar o paradeiro do meu esposo, com certeza alguém de lá sabe alguma coisa, eles sempre sabem — Adônis se espantou com o otimismo de Cibele e preferiu não expressar nenhuma emoção, pois no fundo acreditava que essa era uma esperança vazia de uma viúva ingênua — mas e Isabel? Quando Ivan voltar, ele vai querer todos os caídos do céu juntos, não?
— É. Mas quando ele voltar, não vai ser difícil achar uma menina que se explode em chamas, mesmo na capital. — O centauro não compartilhava da mesma esperança de Cibele e Enzo. Para ele, Ivan já teria voltado se quisesse, ou pudesse. “Virou peixe ou morreu antes disso”, pensava sempre que se lembrava do companheiro. — Vamos juntar os minerais e avisar a Cíntia do plano. Se tivermos sorte, as crianças não serão a causa de nada, e Caxa só está passando por um tempo difícil.
Dias depois da conversa, eles executaram o plano. E Caxa voltou ao normal. Sob muito pesar, Cibele se despediu das crianças e Galope, e seguiu para a capital do leste, rumo ao sul do Cesaro. O local mais sagrado de Maciaan voltou a ser habitado pelas mesmas figuras de dez anos antes, mais os gêmeos da discórdia; e assim permaneceu por pouco mais que três anos, quando a chegada de mais um filho do zodíaco alterou completamente o cenário. Nesta época, muito já se sabia sobre os gêmeos.
Renan, pouco antes de completar três anos, descobriu que podia voar quando tentou seguir Reimi, que levantou voo com Janela e Bato. O pequeno, desde então, usa e abusa desta habilidade fabulosa, porém nunca conseguiu voar muito alto ou rápido, e se desgoverna sempre que uma rajada de vento mais forte passava por ele. Ainda assim, todos os irmãos, até Enzo, que já era um homem feito, com dezoito anos, invejava um pouco aquele poder libertador. Por consequência, concluiu-se que a causadora de intempéries era ninguém além de Cristal. No auge dos seus quatro anos, apresentava um cabelo preto e liso como o dos aquáticos, e tão longo que quase cobria toda altura da miúda – vivia enrolado nas pernas, pois ela não prendia nem cortava. A menina não denunciava motivo, mas sempre gerava intrigas, e todos atinaram que a proximidade dela fazia com que perdessem a cabeça ou falassem coisas sem pensar. Quando as conversas compartilhadas com Cristal não terminavam em briga, causavam, minimamente, o desconforto de alguns.
Foi esta família atribulada que recebeu mais um membro: Vasto. Pedras verdes iluminavam as costas da criança, formando a constelação de Áries. Bato e Enzo aguardaram, curiosos, a chegada do irmão, mormente para saber que poder fantástico ele traria, todavia – como já estava se tornando um costume, desde o nascimento do filho de Peixes – não puderam saber de nada. Pela primeira vez os pequenos gêmeos viram um neném, e Enzo partiu com o mais novo, junto Bato, com a missão de arranjar uma ama de leite. A ordem de Galope foi cortante: passariam alguns dias morando junto, para se certificar da segurança dos demais, caso o poder de Vasto se revelasse. E o impensável aconteceu.
No segundo dia da saída dos rapazes com Vasto, uma figura monumental achou seu caminho até o templo. Precedido por tremores de terra e gemidos bestiais, um gigante apareceu no Cesaro, sem mais nem menos. Chegou forçando a natureza a debandar a cada tremido causado pelos seus passos. Diante da ameaça inaudita, Adônis e Janela se aprontaram para combater. Os gêmeos foram incumbidos a Reimi, que deveria planar com suavidade e longe do alcance do monstro. A figura grotesca pulava como um animal carniceiro, sem muito discernimento do que estava a fazer. O corpo completamente coberto de pelos mal escondia a genitália, que balançava com os movimentos bruscos. Aquele era um gigante genuíno: barba grossa unida com sobrancelhas e cabelo crespo quase tomavam conta da cara enorme, cujos olhos espremidos exibiam um misto de preocupação e curiosidade agressiva.
Por ter sido avistada com antecedência, a criatura foi recebida por combatentes preparados. Até o terreno foi escolhido a dedo. Um campo aberto e desnivelado, que propiciasse a Galope muito para onde correr, ao mesmo tempo em que não era apropriado para o gigante se manter totalmente equilibrado. Não muito longe para o norte, o penhasco que dava para o mar fornecia rochas para Janela usar à vontade, e era o destino final do gigante, segundo os planos do centauro. O invasor era mais alto que o penhasco, é verdade, mas, se derrubado da maneira correta, o fim era garantido. Afinal, rochas sempre serão rochas e crânios sempre serão crânios.
Atraído por pedras arremessadas, o gigante chegou. E como era grande! A altura que Reimi normalmente voava não alcançava o peito do monstro. Janela percebeu a diferença e puxou mais pedras para si, que amontoaram mais imponência ao ídolo. Com dezesseis anos e ousadia majestosa, Janela era uma guerreira hábil e corajosa. Não era de manejar o ídolo em qualquer situação, pois aquele poder acarretava devastação em grande escala, mas manuseava o gigante de pedra com destreza, se mantendo firme e equilibrada num espaço oco que reservava sempre na barriga do colosso. O que se seguiu foi um balé. Galope corria de um lado para o outro alvejando as pernas do gigante – mais alto que isso não era possível arremessar – com lanças esculpidas em madeira. O trabalho era rústico, mas a ponta era afiada e penetrava a pele do adversário. Ainda que não causasse dano real, fazia seu papel de distrair, abrindo a chance para Janela desferir duros golpes no dorso do inimigo.
A estratégia seguiu conforme o planejado, até porque o gigante evitou destruir o ídolo de Janela. Reagiu num primeiro momento, de fato, mas na sequência não tentou desferir segundo soco direto nem quando o corpo rochoso deu brecha, limitou-se a combater com empurrões e ataques de baixo impacto. O mais estranho observado por Adônis e Janela era que não havia ódio no ataque. O monstro era histérico e agressivo, mas suas investidas não tinham nada de assassinas. E os golpes continuaram, as lanças perfuraram, e o peso das pedras bateu uma última vez, não para quebrar, mas pretendendo empurrar. E o gigante caiu.
O pé direito ferido quedava junto ao esquerdo, dentro d’água. O corpo e a cabeça estavam intactos. Na queda, o derrotado lançou seu braço esquerdo no chão, quase esmagando Galope e impedindo a derrubada total do seu corpo. Vendo que o plano não tivera êxito, Galope clamou por cuidado; Janela estava muito próxima do desfiladeiro, e o gigante se preparava para subir de volta. Mas ela não recuou. Ao contrário, desfez o ídolo na beirada do penhasco e se pôs de frente para o oceano. Segurando o artefato dourado na cintura – agora que crescera, já lhe servia como cinto metálico – e berrou. Berrou com vontade, com fúria, com o desejo do céu e do infinito que corria no seu sangue. O chão vibrou até ecoar pelas nuvens, e a parede do desfiladeiro se dobrou.
O gigante, que ainda se encontrava apoiado no desfiladeiro, foi tragado para baixo junto com as toneladas de rocha que se contorciam dentro da terra. Seu braço que estava por cima e os pés que estavam na água foram puxados também. Adônis correu para longe da avalanche de pedra, vacilante no terreno que tremia, porém Janela estava no epicentro da catástrofe, não lograria fugir nem com Reimi à sua disposição; foi engolida pelo primeiro jato de terra que eclodiu do chão, estava entregue à própria sorte.
III
— Eu não acredito. É absurdo! — Enzo exasperou, chutando o chão de terra remoída. Ele, Bato, Adônis e os gêmeos se encontravam próximos ao mar, numa região pedregosa que abria caminho por uma extensa faixa enladeirada, cujo cume se igualava ao terreno alto lateral: era uma enorme fenda na parede do antigo desfiladeiro. A terra da passagem era irregular, e enfincada de pedras escuras em toda extensão; Cristal permanecia quieta, só ouvindo a conversa no colo de Adônis e Renan flutuava pela área, não querendo sujar os pés na terra úmida.
— Mas foi o que aconteceu. Como não está acreditando? Não está vendo sob seus pés? Janela moveu toda esta área do desfiladeiro e cobriu o gigante com ela, depois o fez girar, derrubando mais e mais pedra, e assim foi empurrando. Quando o monstro rolou até ali — Adônis ergueu o dedo para uma área afastada da praia, onde o terreno estava abarrotado de pedregulhos de todos os tamanhos — já tinha tanta pedra e terra em cima que nem ele conseguia se levantar. Só ficou a cabeça, um braço e os pés do lado de fora, o resto estava soterrado.
— Mas por que ela foi embora? Isto não explica... — Bato tartamudeou.
— Quando já estava dominado, o gigante tentou se comunicar. Não dizia nada com nada, mas uma coisa ele conseguiu passar. Ficava repetindo “sono” constantemente, entre urros loucos. Quando chegamos mais perto, notamos que ele estava simulando dormência e depois abria os olhos repentinamente. Enquanto conversávamos sobre o que fazer, ele levantou o braço e socou o chão. Achávamos que ele ia voltar a lutar, mas só premeu o solo para deixar a terra plana. Usando os dedos livres, furou a terra úmida, marcando uma constelação no chão, venham ver.
O centauro guiou os dois jovens da praia até a região comentada, e lá estava, com algumas rochas por cima, a constelação de Touro marcada no solo.
— Logo que o vi marcando o desenho, achei que faria a constelação de Áries. Explicaria muita coisa, pois Vasto tinha acabado de nascer. Mas era Touro. Quando percebeu, Janela mostrou as costas para o gigante, e ele parou por um longo tempo, admirando.
— Ele sonhou que tinha que pegar Janela? Isto não justifica ela ter ido junto, Galope! — Bato insistia em negar.
— Não sei nada sobre justificativas, Bato. Só sei que Janela liberou o gigante assim que notou docilidade. E ele realmente se acalmara, provavelmente por ter achado o que queria. Livre, ele ofereceu as mãos e ela subiu. Eu não deixei ela ir sem reclamar, se é o que está pensando, Bato. Apontei com todos os meios que aquilo era loucura, mas ela voltou com a voz alta, brigando, vocês sabem como ela é... Disse que ela não tinha lugar aqui e que vocês dois já preferiam passar mais tempo com as mulheres da cidade que com ela.
— É verdade. — Enzo disse.
— Não! Não é verdade! — Bato censurou o irmão, e a voz anunciava uma veemência estranha. Todos sabiam que Bato era muito calmo, e para ele reagir daquele jeito, só podia ser obra de Cristal; mesmo ele tinha noção de que poderia dialogar com mais calma, porém não estava dizendo mentiras. Galope os lembrou de Cristal, e cogitou ela ter afetado Janela no dia anterior.
— E eu não a condeno! Mesmo que a reação dela fosse efeito do feitiço de Cristal, é fato que vocês vivem passando dias e mais dias fora do Cesaro, enquanto ela fica sozinha comigo e os gêmeos. Não acham que ela tem razão em se sentir abandonada? Por que não dizem de uma vez que só continuam aqui por obrigação?
— Porque não é verdade. — Enzo retomou. — Estou cansado de dizer que sou tão responsável pelos meus irmãos quanto você, Galope. Talvez até mais, já que você é o guardião do Bato, e olha por todos nós por conveniência. Não, desculpe. Eu sei que há carinho, não quero menosprezar o seu trato, mas conosco é diferente. O meu vínculo com meus irmãos é algo que transcende este mundo, Galope. Eu os protegeria além da minha capacidade, se fosse exigido.
— Quanto mais cresce, maior também fica a jactância, hein, Enzo?
— Ele está certo! E é isso que você devia fazer com Vasto e os gêmeos. Nós já não precisamos de você para nos cuidar. E eu vou buscar Janela!
— Que loucura está dizendo, Bato — Galope se adiantou com um trote rápido para a frente do filho de Sagitário, o bloqueando — não imagina a velocidade do gigante? A esta hora ele e Janela estão muito além do alcance da vista!
— E de que importa ser tão rápido, se sabemos para onde ele foi? Estou indo para as montanhas do leste, e você não vai me impedir. Lôran!
— Não! Bato, não faça isto! — O centauro estacou empedernido, enquanto Bato passou sem demora por ele e seguiu para o leste. Toda a força, velocidade, fúria e conhecimento de séculos de Galope nada valeram contra um garoto de dezessete anos que sabia palavras mágicas. — Enzo! Que adiantou o seu discurso de agora há pouco? Vá, proteja seu irmão. E por favor, tente fazê-lo mudar de ideia!
Enzo foi até Galope e retirou Cristal dos braços rígidos, depositando a garota no chão de terra. Ela sentou-se e começou a brincar com o chão, enquanto Enzo dizia as últimas palavras, antes de partir:
— Eu vou tentar fazer ele mudar de ideia, mas se acabarmos indo para o outro lado, eu te garanto que voltaremos juntos e salvos. Eu, Bato e Janela. Cuide bem dos outros, pai.
Daquele jeito, os filhos de Capricórnio e Sagitário abandonaram sua casa e seu pai, sem a certeza do regresso. Montados em Ignis, os irmãos partiram, deixando Adônis de costas, petrificado por uma magia que só se quebraria algumas horas depois, quando já estariam longe demais até para o trote excepcional do centauro. Sem considerações prévias, os irmãos rumaram como uma estrela cadente, cruzando mesetas e saltando acima do cume das árvores mais altas das florestas. Ignis não precisava se alimentar e nem sofria fadiga por correr, e a primeira parte da viagem seguiu longa e proveitosa até onde a vontade de Bato se sustentou. Mesmo as paradas foram breves, com o jovem apressando Enzo sempre que podia. Em um dado momento, enquanto se equilibrava entre galhos de árvores para colher frutas – preferiam isso a caçar animais, pois matavam a fome e podiam ser consumidas cruas no lombo de Ignis – Bato avistou do alto a próxima pegada do gigante. Estavam seguindo os rastros que encontravam, fosse solo revolvido ou qualquer outro indício, e até então estavam fazendo um bom trabalho. Quando notou a próxima direção a seguir, esbaforido como já estava, perdeu o equilíbrio e caiu da árvore. Enzo tratou de se posicionar logo abaixo, e conseguiu amortecer a queda, mas não hesitou em admoestar o irmão. Firmou-lhe a palma da mão no rosto e colocou senso na cabeça dele.
As montanhas estavam próximas, seus contornos já eram visíveis no horizonte, e Ignis garantia a viagem com rapidez e segurança. Aloprar não era o caminho, e agora Bato não teria Cristal por perto para justificar suas intemperanças. O mais novo percebeu que estava passando do limite, ainda que com motivos, e buscou apaziguar os ânimos. Sentou para comer com Enzo, e até deu risada em alguns momentos da conversa; Enzo procurou falar sobre Janela, mas só das boas lembranças – que eram, de fato, a maioria das memórias que tinham juntos. Ver os olhos verdes claros de Bato arrefecendo o tranquilizou, pois ele já considerava desde cedo as dificuldades que encontrariam, viajando daquele jeito sem planejar. O fato das montanhas estarem visíveis, mas não o gigante denunciava muita coisa: o ensejo de alcançar a irmã antes de transpor as montanhas já fora perdido, e agora eles teriam que se aventurar pelo desconhecido. Para o filho de Capricórnio, Janela era uma presença inconstante: era divertida, corajosa e desinibida, o total oposto de Bato; mas era também cabeça-dura, ao ponto de levar a teimosia acima da racionalidade, e aquilo o irritava bastante. A situação em que estava agora era uma prova disto. A amava como podia, e não imaginava ser capaz de amar mais, contudo via em Bato um amor mais profundo por ela, carregado com esperança e intimidade, algo que, talvez, fosse aquele sentimento que dizem se achar apenas uma vez na vida, e que encontra somente o coração dos mais afortunados. Antes de retomar a corrida, fez questão de lembrar a Bato que Janela já havia derrubado o gigante uma vez, e provavelmente faria de novo, se fosse preciso. “Não esquente a cabeça, ela sabe se cuidar!”, ele disse sorridente.
Durante a noite, Ignis se mostrou útil novamente, sendo eficaz em aduzir os jovens ao longo de grandes paredes rochosas. A superfície áspera se camuflava com ranhuras invisíveis à luz da lua crescente, mas nenhum dos dois trepidou nas subidas íngremes. A graciosidade dos saltos era tão segura quanto bela, e Ignis percorreu as alturas laconicamente. Seu porte se desenvolvera junto com Enzo, e o corpo do espírito animal rivalizava em tamanho com o de galope. Os chifres, tenros quando era uma camurça, estavam firmes, intrincados e apresentavam curvatura e bifurcações obtusas nas pontas, que causavam até desconfiança em desavisados que porventura o avistassem nos Campos de Porocop. Após trespassar a primeira subida lancinante, os viajantes desceram um pouco por mais algumas pedras até chegar num planalto reto e sem vegetação. Naquele lugar, tomaram tenência da provação que seria aquela perseguição: terrenos inóspitos e perigosos se revelaram diante dos jovens, e morros e montanhas sustentavam o peso da noite, enviesando o vento frio do alto escuro na direção dos recém-chegados. Sem florestas para ofertar frutas aos aventureiros, sem sebes escondendo pequenos animais. Frio e chão para galgar eram tudo que se achava nas montanhas do leste.
Enzo achou melhor não desperdiçar tempo se detendo por causa do clima frio, afinal tinham Ignis para amenizar a temperatura, e continuaram montados, envoltos por chamas bailantes que aqueciam na medida certa. No fim da madrugada, eles já haviam contornado várias montanhas e alcançado o pináculo de outras, e resolveram parar e dormir. Recostaram-se na parede gélida de pedra que se erguia do chão e deixaram-se imprensar por Ignis, que manteve o fogaréu aceso e brilhante correndo pela pele e roupas dos rapazes, tão inapropriadas para aquela travessia.
— Consegue ver alguma coisa, Enzo?
— Não.
— Eu consigo. Mais montanhas...
— Deixe de pensar nisso e vá dormir. Amanhã teremos a claridade do dia para nos guiar, e passaremos por esta cadeia de montanhas num piscar de olhos!
— Janela não tem Ignis para se aquecer...
— Bato, eu vou resgatar Janela, e levar nós três de volta para casa, mas você precisa parar de duvidar do nosso sucesso. Foi você que decidiu vir, por Sauza! Se quer me acompanhar, terá que parar de choramingar, pois eu já decidi que vou encontrar Janela, e você?
— Sim, eu quero. E não estou choramingando.
— Então pare de duvidar de si mesmo. Essa luz que sai das nossas costas não quer dizer nada? Somos caídos do céu, nós podemos, Bato. Mesmo que a cadeia de montanhas seja infinita, eu sou capaz de correr até o ponto mais sul de Maciaan, e no meio do deserto, faço a curva para entornar essas malditas montanhas, mas nem que seja a última coisa que eu faça, eu vou passar para o outro lado! Você vem comigo? — A força de vontade de Enzo era tão inspiradora, com labaredas cobrindo seu corpo com vermelho piropo, que Bato não precisou responder. Ajeitou-se como pôde e dormiu um sono valente.
IV
Muito tempo passou desde o sumiço de Bato sem que a preocupação de Adônis findasse. O centauro se manteve num dilema irremediável: a vontade de ver o filho de Sagitário era tanta que chegava a sair desembestado pelo Cesaro, a toda velocidade, só para extravasar a ansiedade; ao mesmo tempo, não se permitia ir além, pois precisava cuidar de Renan, Cristal, Vasto e posteriormente Silvestre. Esse era o filho de Leão, chegara há dois anos e vivia em Caxa. Havia outra razão para ele não se afastar do templo, uma que o atormentava todas as noites e todos os dias, mas que preferia nunca cogitar: um novo filho de Sagitário poderia surgir no Cesaro, caso Bato morresse. Apenas o pensamento daquilo já o importunava sobejamente, e viveu diariamente com aquele padecimento sem jamais encontrar uma solução por nove anos, até que uma possibilidade se apresentou.
Os caídos do céu que habitavam o Cesaro não eram nada parecidos com os antigos. Os filhos de Escorpião e Aquário eram problemáticos. Ambos de cabelos lisos muito pretos – ele mantinha curto e ela na altura da cintura – já não se passavam tanto por gêmeos. Pela exposição à luz solar quase constante, a pele de Renan se tornara bem mais escura que a de Cristal, e o porte físico dele se diferenciava também, pois a menina com treze anos ainda era muito baixinha, apesar da fisionomia magra garantir harmonia a sua aparência. Renan vivia pela preguiça; sua habilidade de voar autonomamente pelos céus lhe dava uma liberdade inimaginável, e se negava a fazer qualquer coisa por obrigação. Os descontentamentos causados pelo seu comportamento fizeram Adônis não nutrir por ele o carinho especial que tinha por todos os outros, mas o centauro jamais se isentou da responsabilidade de cria-lo, dando comida e segurança independentemente das brigas. Ter Cristal ao lado não ajudava. Sua presença sempre gerava desentendimentos, mesmo nos dias de melhores humores, e a garota nada podia fazer para evitar. Os demais entendiam, e pode-se dizer que aprenderam a viver com as irritações diárias sem desgostar da garota por isso. A personalidade caprichosa era um agravante: sua família conseguia conviver com a inconveniência do seu poder, mas pessoas de fora do Cesaro não acreditavam – ao menos não antes de confirmarem pessoalmente, nas mais simples relações sociais, o efeito da presença de Cristal – e a menina ficava impedida de fazer o que mais gostava, que era visitar Caxa e outras vilas do norte de Maciaan. Uma vez, Cíntia a convidou para assistir ao Festival da Princesa Plebeia e ela se apaixonou completamente. Também, pudera! Cristal tinha acabado de completar dez anos; há idade mais apropriada para uma sonhadora se encantar com vestidos bordados, festas pomposas e prazeres diários da corte? Para ela, as moças participantes se tornaram o modelo de beleza e postura a seguir; e os nobres que porventura compareciam ao evento – normalmente eram os administradores das terras do norte de Kelicerata, nada além disso – eram tomados como a mais alta estirpe do reino.
Cíntia a convidava sempre que podia, desde então. Sabia da influência da criança no comportamento dos outros – especialmente no comportamento dos clientes e das mulheres da casa – por isso as visitas não eram mais frequentes. O primeiro convite decorreu de uma crise depressiva; a lástima era tanta que preferiu arriscar o convívio saudável em Caxa, tudo porque havia perdido sua filha preciosa. Guiara não vivia mais em Caxa. Fugiu com Dolga para Kelicerata sem sequer se despedir adequadamente, no dia em que o rapaz completara dezoito anos. Passou um ano transtornada pela sua filhota de dezessete, perdida no mundo, seguindo justamente Dolga, que era assaz inteligente, mas nem um pouco cuidadoso. Precisava de um dengo, e Cristal era sua alternativa. As prostitutas da casa aceitaram a visita da menina amaldiçoada, pois se preocupavam com a saúde de Cíntia, que já vinha se deteriorando devido ao desgosto. Elas não podiam ter filhos – novas regras da casa, mais uma consequência da depressão de Cíntia. Quando engravidavam, tiravam a criança e morriam no processo ou perdiam o útero para sempre. Algumas escolhiam manter o filho e abandonar a vida de rameira, mas durante uma época até se tornou comum alardearem nos corredores, em tom de zombaria, que tinham uma nova ama de leite para os filhos do zodíaco assim que alguma mulher da casa descobria gravidez. Cristal, paparicada tanto por Cíntia em Caxa, já agia como se fosse rainha no Cesaro, sem mover um dedo para ajudar Galope a manter o templo e a casa, mas era tudo fantasia incerta até o dia em que acharam um cavaleiro perdido na floresta.
A figura do homem caído não causou espanto a Galope, mas sim o fato de ainda estar vivo. Muitos homens enfrentavam os perigos atribuídos ao Cesaro, mas todos encerravam suas vidas pouco tempo depois de adentrar a floresta. Para quem desconhecesse os mistérios do lugar, era praticamente impossível atravessar e chegar ao extremo norte, e aquele seria mais uma vítima, se o centauro não tivesse cruzado com seu corpo deitado sob uma sebe. Despido de sua armadura era impossível saber, mas após dois dias de tratamento, o homem perdido se recuperou e tratou de se apresentar àquele grupo estranho que o acolhera, possivelmente tendo-o salvo da morte. Era um cavaleiro do Castelo Henpakihan, a Casa Maior e sede do governo de Kelicerata. O motivo da sua jornada era simples, mas proeminente em importância e nobreza: achar o chefe da nação.
— Há vários decênios os governantes de Kelicerata buscaram pelo rei, mas até então todas as tentativas de se chegar ao Cesaro fracassaram. Servidores do castelo, exploradores, aventureiros e mercenários, nenhum logrou honraria tão nobre. — Disse o homem se apoiando nos joelhos ainda fracos, com a cabeça baixa mirando Renan. — É um prazer servi-lo, filho de Sauza!
Todos se sensibilizaram com a presteza do cavaleiro, ainda mais por praticar o seu servilismo de maneira tão patente, mal tinha se recuperado. Vasto gravou a cena na memória; sendo uma criança tímida, não se percebia nele os traços de um líder, mas aquela figura vassala mantinha aspectos de austeridade e dignificação que lhe instigava enlevo. Considerava mais nobre aquele servo peculiar que um monarca de moral bamba. Não obstante, ainda com nove anos era o principal ajudante de Galope com as tarefas, e participava de todos os treinamentos físicos propostos pelo seu tutor.
— Era de se esperar! Kelicerata é o domínio do Escorpião, afinal. — Renan se gabou, soltando-se no ar com o rosto orgulhoso. Não tinha interesse particular em sair do Cesaro; era um verdadeiro cão vadio, e por isso não acatou o desejo do cavaleiro de imediato.
— Pela graça de Sauza! Nós vamos para o castelo! Renan, o que você quer dizer com esse risinho torto? Não acha que vai me deixar aqui, não é?
— Até onde sei, eu sou o único filho de Escorpião, Cristal. Qualquer um sabe que esse seu jeito não serve para entrar na realeza. — O menino provocava. Para ele, a vida era uma grande diversão, e não se importava de continuar no Cesaro, assim como também não se importaria de ir com o cavaleiro para reinar na capital. Como bom vagabundo, para ele tudo se aceitava, contanto que não precisasse tomar a iniciativa. Os gêmeos esqueceram-se completamente do cavaleiro e começaram a discutir abertamente, ela por necessidade e ele por simples malandragem.
Vasto e o cavaleiro aguardaram pelo fim da briga dos irmãos, que nunca chegaria se terceiros não dessem um basta, e foi isso que Adônis fez quando desvendou, naquela situação, a sua maior oportunidade. Fez questão de colocar o cavaleiro novamente em repouso, e retirou dele qualquer anseio, deixando claro que deliberaria sobre o destino do menino. Ato contínuo, chamou Renan para fora da tenda e foi acompanhado de perto por Cristal; é claro que ele tinha a palavra final, mas ela faria de tudo para que a decisão não fosse diferente de mandar Renan para a capital, com ela de acompanhante.
— Você sabe que é seu destino, não é? O filho de Escorpião é o rei de Kelicerata por direito, apontado por Sauza desde o surgimento dos caídos do céu. Por que está considerando deixar essa obrigação de lado? Não vê que é uma grande honra? Silvestre ainda é um bebê, mas pretendo deixar claro que ele precisará tomar as rédeas de Casul quando for adulto.
— Do que está falando, Galope? Casul nem existe mais! E não quero ser comparado a um pirralho que se mija o dia inteiro. Faço o que quero, e pelas razões que julgo justas.
— Que frieza! Eu acho que você seria um ótimo rei, Renan... Colocaria todo mundo aos pés, eu que não teria coragem de enfrentar um rei tão decidido! — A menina se intrometeu, sem tomar postura para argumentar, mas insistente em fazer curtos comentários.
— Por que se nega? Eu preciso que você aceite, Renan. Eu preciso! — Galope notou que estava soltando o que não devia; razoavelmente, aquilo se dava pela presença de Cristal. Enquanto ponderava se deveria encerrar a conversa e sair sem dar explicações para voltar mais tarde, longe da menina, o centauro notou nas crianças um olhar mais atento, particularmente curiosas sobre o que acabara de dizer, então resolveu continuar. — Eu tenho que reencontrar Bato, preciso saber se ele está seguro... PRECISO SABER SE ELE ESTÁ VIVO!
Os gêmeos engoliram em seco, com olhos inseguros e pálpebras agitadas. Rebeldes, travessos e desrespeitosos, os dois se resumiam a crianças obedientes quando sentiam raiva na voz de Adônis – como qualquer um em sã consciência. Aquele era um tom muito específico, raramente usado nas mais escandalosas discussões, mas que estrondava o ambiente sempre que a conversa envolvia o sumiço de Bato. Vasto e o cavaleiro, ainda dentro da tenda, também se assustaram.
Após um período silencioso, Renan, com lágrimas escorrendo pelas bochechas – mas sem emitir o menor ruído – abriu caminho pelos céus, e só após subir muito, e se esconder acima de densas nuvens brancas, ele se permitiu chorar a plenos pulmões. Cristal, ainda quieta, também não queria responder ao guardião do templo, e esperou até que ele dissesse que estava tudo bem. Quando ele sinalizou, ela também se afastou, e deixou escapar algumas lágrimas, não de medo, mas carregadas de uma profunda tristeza irremediável. Com tão pouca idade, a filha de Aquário já se questionara muitas vezes sobre sua função no Cesaro; concordando com outros momentos em que havia analisado seu papel, chegava à conclusão de que nenhum grupo que formasse ao seu redor, por menor que fosse, conseguiria viver em paz.
Renan não retornou naquele dia. Seu sumiço causara preocupação na cabeça do cavaleiro, pois esse tomava para si a tarefa de imbuir no menino o desejo de governar Kelicerata – era, acima de tudo, um patriota – e mesmo Adônis, que conhecia o comportamento pernóstico de Renan, ansiava pela volta do filho de Escorpião. A espera só durou uma noite em claro, pois na manhã seguinte o garoto retornou, com semblante firme e a cabeça decidida. Após reunir todos, inclusive o visitante, declarou com certa altivez:
— Eu quero ir para Kelicerata. Já que é o peso que tenho que carregar junto com essas pedras nas costas, eu aceito. Mas tenho uma condição!
Vasto era o único decepcionado com a decisão do irmão mais velho, mas nem ele nem os demais, encantados com a declaração, tiveram tempo para dizer nada antes do menino dizer, olhando para Cristal:
— Eu só vou se Cristal for junto!
Um absurdo! Adônis tivera o cuidado de recolher a menina, que quase levou à ruina um pequeno vilarejo dos Campos de Porocop, não seria agora que a loucura se enredaria a tal ponto em sua mente para fazê-lo aceitar aquela condição. Cristal na capital acabaria não só com a cidade, muito provavelmente desencadearia brigas e desacertos por toda Kelicerata, ainda mais vivendo no Castelo Henpakihan, onde líderes de todo o leste de Maciaan costumavam frequentar. O posto de guardião do Cesaro, que Galope exercia há bons anos, sequer era dele; o funcionamento daquela terra mágica era conhecido por todos: o Cesaro se encarrega de trazer seu próprio guardião, e comumente lhe atribuía alguma característica para forçar a permanência no lugar. Os ventos da discórdia emanados por Cristal já tinham mostrado que ela, ainda miúda, era um grande perigo para todos fora do Cesaro, se fosse da alçada de Adônis, ele não teria dúvidas em imputar a responsabilidade de guardar o templo à Cristal. E mesmo após considerar tudo com sobriedade, quando respondeu aos olhares curiosos que o cercavam, a fala de Adônis causou euforia.
— Vão os dois, então. E façam um bom trabalho. — Chegou a se arrepender assim que abriu a boca, mas aquela era a verdade do seu coração, e não havia pensamento racional capaz de suprimir palavras de emoção. Não estando perto de Cristal.
Com tudo acertado, os gêmeos partiram alguns dias depois. O cavaleiro foi posto a par de tudo sobre os dois, e foi aconselhado a seguir todos os passos dos gêmeos. A travessia da floresta do Cesaro, que durou semanas e ceifou tantas vidas, chegou a ser concluída pelo trio em questão de horas. No Cesaro, Adônis e Vasto permaneceram, endurando corações que batiam forte, a despeito da saudade que só crescia. Nenhuma notícia de Bato chegou, nem os gêmeos deram sinal de vida, mas ainda assim os anos passaram, implacáveis. Quando Vasto completou vinte anos, mais um caído do céu apareceu no templo. O filho de Virgem, nomeado Edgar, se uniu a Galope, Vasto e Silvestre; segundo as contas, aquele era o último. Enzo, Bato, Janela, Dolga, Guiara, Isabel, o filho de Peixes, Renan e Cristal; se todos estivessem vivos, Maciaan agora era habitada por todos os filhos do zodíaco.
No primeiro dia de vida, Edgar revelou seu poder, e assim que Galope tomou ciência de como funcionava, não teve mais suspeitas, o menino era o guardião do templo. Nos anos que se seguiram, Galope rememorou sua primeira época como guardião: três caídos do céu que eram respeitosos e trabalhavam sem reclamar. Silvestre cresceu para ser bastante orgulhoso, mas fora isso, o centauro não via nada neles que não tomasse como motivo de satisfação. Quando o menino mais novo completou quatro anos, Vasto já tinha vinte e quatro e Silvestre tinha dezessete, e com tanta diferença de idade, os três presenciaram a mudança derradeira acontecer. Daquele dia em diante, os planaltos verdes, serras com picos escarpados, céus claros e florestas escuras do Cesaro seriam abandonados para sempre. Regressava ao Cesaro, pisando nas pedras pontiagudas que forravam a beira de uma praia no extremo norte, alguém de espírito portentoso e passos vagarosos – nostálgicos, até – com a mente resoluta e o punho firme. Ele buscava vingança, e na sua mão direita uma arma dourada retinia em contato com as pedras.
ISABEL
A FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA
V
Não era costumeiro aquele tipo de gente aparecer na taberna, mormente por ser tão próxima da capital, que oferecia estabelecimentos para todos os tipos de público, mas “Dinheiro é dinheiro”, pensou o taberneiro. Ele levantou da mesa, largando um jogo de cartas desfavorável e deixando os companheiros sem saber se deviam continuar a partida. Com roupas fedidas, careca exposta e um olho mais esbugalhado que o outro, ele se dispôs a atender a mulher gorda e suas duas crianças. Os parceiros de jogo não eram mais apresentáveis; mesmo os que tinham algum apreço por higiene, vestiam-se de maneira taciturna e ostentavam olhares arredios. Um grupo desprezível, de fato, mas o que mais se podia esperar de uma espelunca mal iluminada, com paredes mofadas e assoalho dissonante?
— Diga, senhora. Está procurando por alguém? O pai das crianças? — O taberneiro riu sardonicamente, acompanhado pelos amigos que olhavam para a mulher, já desinteressados no carteado.
Olhando de soslaio para os meliantes na mesa, ela virou-se para o homem e ciciou:
— Eu preciso de um serviço. Eu tenho que sair daqui. Com eles dois. Mas estão me procurando.
— Quem exatamente está te procurando? — O homem baixou a voz, talvez por costume, pois os poucos que estavam no recinto continuavam ouvindo e atentos.
— Os Antares. — O dono do estabelecimento chegou a torcer a espinha de susto, e deu as costas para a mulher, com uma risada desconfortável.
— Saia daqui, Dona. Eu não quero ter nada com gente que tem problemas como os seus. Vamos, saia! — Ele já estava sentado na mesa com os outros. Abanava a mão como se Cibele e as duas crianças fossem cachorros moribundos. Sem ter como apelar, ela saiu da taberna, cobrindo os cabelos com trapos e fazendo o mesmo com os pequenos. Um dos homens que jogavam cartas, para a surpresa dos demais, levantou-se e foi atrás.
Era um homem de rosto muito fino, sobrancelhas altas e lábios avermelhados. Tinha modos esquisitos, mas em geral a sua aparência era inofensiva, bem franzina. Não fosse o olhar maligno que sustentava, ninguém o levaria em consideração. O homem a alcançou na rua, que no fim da tarde não tinha lá muita gente, mas mesmo assim ela se encaminhou para um canto mais afastado, antes de ter com ele:
— Pode me ajudar? Preciso sair dos arredores da capital com eles dois — o homem espiou os pequenos, que, de tão cobertos, ficavam mais em evidência que se não tivessem disfarces — o mais cedo possível. De preferência já não quero estar aqui amanhã.
— Eu posso resolver o seu problema, te garanto. Mas sai caro, tem como pagar? — Ela respondeu positivamente. — Então não tem mistério. Vem, vamos para um lugar mais apropriado. Esses moleques devem estar com um calor desgraçado com esses panos na cabeça, por que não tira?
Cibele não quis dar satisfações sobre os meninos, pois o estranho sequer fez menção em se apresentar, e o olhar matreiro não se esvaiu em nenhum momento. Àquela altura, os soldados com certeza estavam buscando por uma mulher com um casal de filhos, e os panos na cabeça foram o que ela arranjou de última hora para fazer Rafael e Isabel se passarem por dois meninos. O lugar em que estavam era uma vila grande, porém erma. Em geral, habitada por gente da capital que não conseguiu moradia e precisou se arrumar em terras mais afastadas do centro. Era bem próximo da Floresta dos Troncos Amarelos, porém atravessar este último trecho era complicado. Soldados faziam vigia dia e noite, e os Antares eram especialmente rigorosos. Ela não podia arriscar. Andaram um tanto até chegar numa choupana de madeira, com aspecto rude; mais parecia abandonada. Um grupo de quatro igualmente suspeitos os receberam.
Cibele não passou por tonta, foi logo se chegando junto ao grupo quando iniciaram conversa, mas foi à toa, e o grupo de vigaristas – e ela assim já os considerava, sem ter o mínimo de dúvida – apenas ignorou a presença dela. Realmente, não havia razão para abafar a voz, porque entre eles a conversa se desenrolava numa linguagem desconhecida; ver aqueles homens falando tão estranhamente suscitou uma desconfiança ainda mais grave em Cibele. Após a conversa curta, o homem de antes se virou para ela, ao passo que os demais saíram sem dar um cumprimento.
— Venha, vamos ficar lá dentro, só poderemos te levar durante a noite. Me disseram que está impossível sair sem ser notado.
Cibele atendeu ao pedido, recolhendo as crianças e indo na frente, mas precisava esclarecer uma questão:
— Me diga, senhor... O que foi isso que fizeram agora há pouco? Como se entenderam falando daquele jeito?
— Nós não somos daqui. Somos do oeste de Maciaan, é a maneira que falamos lá. — Aquela era a revelação de que ela precisava, mas que a deixava em apuros ainda maiores. Cibele não era uma menina ingênua, fora criada dentro de Kelicerata, tanto é que tinha voltado esperando alguma segurança. Em toda sua vida nunca soube de gente que não soubesse falar a Palavra; até aquáticos, ela teve a oportunidade de ouvir, vezes tantas! E todos eles, fossem do oeste de Maciaan ou do fundo do mar, conheciam a Palavra. Só um grupo era conhecido por falar com a boca do mal: a Irmandade do Rio Negro. Diziam ser originalmente assassinos, mas rumores, sendo rumores, acabaram atribuindo outros tipos de escória a este grupo. Bandoleiros, raptores, assassinos de aluguel, tudo que de ruim se podia fazer, era atribuído a esse grupo. E a marca que os distinguia era a boca do mal. Tal qual animais, eles sabiam se comunicar sem usar a Palavra, que era o bem mais sagrado – junto com o Olhar e a Vontade – da humanidade. Quem não usa a Palavra, se esconde dos homens e se esconde de Sauza. Assim sendo, não merece a confiança de ninguém.
Cibele entrou na casa e descobriu, logo após entrar os pés, que era efetivamente uma casa abandonada. A poeira fazia tudo cheirar mal e os poucos móveis estavam a ponto de se desmancharem. A própria construção aparentava ter poucos dias até ceder, por dentro logo se via. Próximo à porta, um caixote que destoava do tapete carcomido e das cadeiras e mesas tomadas por cupins. Além do cômodo principal, só havia uma saleta entupida de entulho; quase não se podia entrar, e mesmo a porta estava escancarada de jeito a ser impossível voltar ao lugar do ferrolho. Precaveu as crianças para não ir até ali e fez menção de ir para perto da porta, mas o homem sem nome entrou no caminho, e a obrigou a se sentar numa das cadeiras tortas.
Correndo perigo ali presa ou fugindo dos Antares, ela desejou estar do lado de fora. O homem foi até o caixote e colocou a tampa no lugar, deixando entrever no movimento o brilho metálico dos objetos guardados. Armas; não sabia o quê, quais ou quantas, mas Cibele tinha certeza de que eram armas. Os quatro ficaram quietos, um olhando para a cara do outro quando surgia alguma desconfiança, e a noite caiu sobre o céu de Kelicerata. Os outros membros da irmandade retornaram, e falaram com suas bocas imundas tudo que queriam, bem na frente dos seus cativos.
— É agora. Passe o dinheiro, Dona. Mas o que é isto? Pela sua cara de desespero de antes, deu a entender que ia me pagar muito bem! Está zombando da minha cara?!
— É tudo que eu te... — O homem não moderou o peso da mão, e golpeou o nariz de Cibele, deixando-a cair por cima dos pedaços da cadeira, com a cara já ensanguentada. As crianças iniciaram a gritaria tão logo viram a mãe no chão.
— Segurem elas! — Os homens acataram. Um ficou de guarda na porta, o segundo levou Isabel até o quarto entulhado, largando a menina rente à entrada e arrastando a porta como pôde. A porta deitada formou uma barreira que impedia a criança de sair, mas a deixava vendo tudo que acontecia no outro cômodo, tapando apenas a visão da sua mãe, que permanecia caída no chão e gritava pela segurança dos filhos.
O terceiro retirou uma espada curta do caixote e entregou para o homem sem nome, e o quarto encurralou Rafael num canto da casa. O menino tinha conseguido correr de início, mas sem ter para onde fugir, terminou nas mãos do criminoso, reagindo com chutes débeis que em nada atrasavam sua captura.
— Tome! Leve tudo! Por favor, deixe meus filhos em paz, nós vamos sumir daqui. POR FAVOR, NOS DEIXE IR!
O homem chegou para perto e recolheu a caixa de dinheiro que Cibele vinha escondendo das mãos trêmulas dela. Ainda sob a voz estridente de Isabel, ele ergueu a espada e rasgou o braço da mulher, que caiu chorosa sobre o assoalho podre com o braço esquerdo lhe faltando uma tira.
— E agradeça que os Antares só pagam por você viva, senão já não tinha mais a cabeça no pescoço!
O terceiro homem arremessou Rafael para o entulho por cima da porta troncha. O menino rodou no ar e caiu de costas na ferraria velha que se amontoava no quarto, e seu grito de dor engoliu as súplicas de Isabel e Cibele. O choro da mãe mutilada, a angústia do irmão que gritava de agonia com o corpo perfurado e o grito desequilibrado de Isabel se amontoaram ao vozeirão grave do homem que ardeu de raiva quando gritou:
— CALEM A BOCA! — O rugido tomou conta do local, mas a reação foi devastadora.
Naquele começo de noite os pássaros da Floresta dos Troncos Amarelos debandaram com o estrondo de uma explosão rubra e alta. No limite do desespero, Isabel fez a única coisa que podia fazer, a única coisa que nasceu para fazer. Queimou todas as roupas que lhe cobriam o corpo, queimou Rafael junto com os entulhos, Cibele no chão e tudo mais que havia por perto. Queimou os homens maus, queimou tudo, até a segurança que pairava no coração dos soldados e moradores das redondezas. Pessoas que quando chegaram ao local, com passos curtos e temerosos, encontraram a única coisa que havia sobrado: a pequena filha de Libra, em prantos pelo resto da vida.
Capítulo 7: Inevitável acerto de contas
I
O vento do Cesaro ainda era o mais fresco de Maciaan. Sem pressa, Ivan seguiu pisando na grama alta, arestas cortantes riscando o tornozelo e a panturrilha, sentindo a terra debaixo do mato com ajuda do próprio peso. Conhecia um caminho mais brando, de campo aberto, mas precisava lembrar a sensação de caminhar pelo chão daquele local. O corpo nu era acariciado pela brisa, e os cabelos, totalmente escuros, cobriam boa parte das costas; não ficavam presos numa trança já há muito tempo. Quanto tempo teria passado? No fundo do mar não existe dia ou noite, só o desejo de ir aonde se quer, aonde se deseja.
Cada passo trazia um acréscimo e aos poucos o sentimento crescia. A vontade de rever alguém era o que lhe fazia seguir sem virar a cabeça para os lados. O centauro não era quem ele queria ver, não era mesmo! Mas precisava achar Adônis. Quem ele desejava já não podia ser encontrada entre os vivos. Embora soubesse que um contato podia ser estabelecido, ele não ousaria; não porque tivesse ressalvas com a vida além da vida, só não tinha certeza de quem o receberia no jardim das luzes. Afrodite? Nora-Celtah? Qual das duas apareceria? Talvez as duas fossem uma só, e descobrir isso seria a pior das situações. Quando avistou uma mata fechada mais ao norte, Ivan sentiu um calafrio, e então soube que viver na dúvida não era uma opção tão ruim; a imaginação uma hora se esvai, mas a memória se guarda, evidente como um lembrete ou escondida como um tesouro.
Quando finalmente chegou à tenda, sentiu certo incômodo de ver que ela continuava no mesmo lugar de sempre. A silhueta de quem o aguardava não era o seu alvo, isso notou desde muito longe. O homem tinha uma estatura normal, então era baixo para Ivan. Cabelos escuros e muito volumosos puxados para trás mostravam um rosto sério, mas nem um pouco agressivo. Barba afeitada e o porte magro combinavam com os olhos claros da peculiar cor violeta e as sobrancelhas finas alongadas. Uma figura pitoresca, mas que não causou interesse em Ivan.
— Você é ele, não é? Ivan? — Os dois não se cumprimentaram, apesar da hospitalidade de Vasto. — Eu posso te arrumar algo para vestir, venha cá!
Ivan não tinha interesse em se vestir, mas aceitou porque queria entrar na tenda e dar uma olhada. Não soube precisar o que faltava, mas notou que estava quase vazia. O canto onde dormia estava totalmente limpo, o lugar das crianças deitarem, abaixo de uma das janelas, também não tinha nada. A tenda era só um dormitório e abrigo da chuva. Perguntou-se quantos moravam ali, já que nem as redes estavam nos lugares devidos.
— Você é o caído do céu...
— Áries! Me chamo Vasto! — Estendeu uma calça de algodão para Ivan. Enquanto o mestiço se vestia, Edgar irrompeu com a voz alta, desembestado pela porta, chamando por Vasto; ao ver o estranho, calou-se imediatamente e correu para um canto, onde permaneceu quieto e observador. Vasto encarou com naturalidade, afinal a estranheza de Edgar era compreensível. O menino nunca saíra do Cesaro – não propriamente como criança – e também não tinha visto visitante algum nos poucos anos de vida que tinha.
— Edgar, o filho de Virgem — explicou — este aqui é Ivan, aquele que vivo comentando!
Ivan reparou naquela última frase algo que carecia de explicação, mas não demonstrou interesse em perguntar, por vergonha. Não era de se acanhar, ainda mais naquele dia, mas sentia-se demasiadamente deslocado conversando com Vasto. Seus pensamentos enuviados e sua motivação para estar ali o tinham preparado para as mais agressivas discussões e batalhas, mas, para sua surpresa, encontrou um jovem adulto de aspecto convidativo e atitude acolhedora. Dialogar com ele de maneira cordial com a cabeça obstruída com agruras era impróprio demais; preferiu continuar conciso.
— Preciso me encontrar com Adônis. Ele mora aqui?
— A essa hora ele está no templo. Não se preocupe que antes do fim da tarde ele aparece. Quero tanto conversar com você! É sério, eu ainda moro aqui no Cesaro porque esperava te ver. Precisamos falar de um assunto muito sério.
— Eu não quero estragar o seu dia, Vasto, mas preciso encontrar Adônis. O quanto antes. Nosso papo fica para depois. — Saiu pela porta sem se despedir, com o mesmo passo obstinado que o levara até a tenda. Vasto o seguiu, com a intenção de falar – o tal assunto sério – no trajeto até o templo. Deixou Edgar avisado sobre regras que o menino ouvia sempre que o deixavam sozinho e emparelhou com Ivan do lado de fora da habitação. O homem de olhos completamente escuros erguia o rosto para o alto, procurando algo, e um assobio longo trouxe até ele seu antigo companheiro. Passou a mão pelas duas asas, apertando com firmeza cada pedaço até as pontas, e subiu no couro que as unia, feliz de ver Reimi tão bem e crescido. Comprovou que a decadência era um presente que os anos só reservavam para os humanos; ver Reimi como ele, inquebrantável através das décadas, era revigorante e mesmo os uroncions, que padeciam da velhice, eram mais resistentes que os humanos. Antes de subir para o céu, Vasto pulou junto, sem consciência de que não era desejado, mas também sem achar que precisava de alguma permissão para voar em Reimi.
— Ei, eu entendi que você não gosta de conversa, mas o que tenho para dizer não pode ser ignorado. Venho te esperando desde a infância, você tem que me ouvir, pelo menos! — Ivan continuou lacônico, mirando o horizonte. — Eu tenho uma missão. Uma herança, na verdade; uma herança que preciso receber de você...
Vasto entendeu, após ser ignorado mais uma vez, que teria que falar abertamente até convencê-lo a trocar algumas palavras; que não era mudo ele já sabia.
— É a lança. Esta lança aí que segura tão firme na mão! Você tem que me entregar, eu fui escolhido pelo céu para trazer o equilíbrio ao mundo, mas preciso da lança!
— Está falando bobagem, Vasto. O mundo já retomou o equilíbrio. — Um pouco sorridente, Vasto sentiu um êxito descomedido só de trazer Ivan para a conversa. Agora não mediria explicações.
— Não, você não entende. Eu recebi esta missão. Eu vou trazer equilíbrio à Maciaan, é o meu destino. Só que para conseguir, eu preciso da lança! Por que você acha que pode definir a situação do mundo? Tenho respeito por você, mas...
— Você não precisa trazer equilíbrio a nada, seu tolo. A lança era necessária para quebrar as dádivas do mundo, eu já quebrei todas faz muitos anos. O poder do céu que estava aprisionado em Maciaan já foi destruído. Ou melhor, ainda há uma das dádivas: a Pedra Celestial. Se quiser destruir esta, vai ter que matar todos que carregam seus fragmentos, inclusive você! — Os ânimos começavam a oscilar como o movimento de Reimi.
— Você deve estar enganado. Eu fui lembrado da herança hoje enquanto dormia! Sou lembrado toda vez que pego no sono. Minha mãe aparece e me alerta para a urgência cada vez maior, preciso reunir os caídos do céu para trazer de volta o equilíbrio do mundo, mas só conseguirei de posse da lança dourada!
— Como assim? Lembrado no sono? Isso se chama sonhar! Não comece a alucinar demais, ou pode cair daqui de cima, desde quando filhos do zodíaco tem mãe?!
— EU TENHO. Ela só aparece nos sonhos, é verdade, mas ela é real! — Ivan olhou com desdém, o rapaz não merecia a pouca atenção que lhe dera. — Furiae é real!
O nome perfurou a cabeça de Ivan, deixando-o num estado letárgico. “Furiae?”, ele não pôde parar de pensar. De pé e desatento, mergulhado em pensamentos mirabolantes, o primeiro solavanco provocado por Reimi fez Ivan despencar.
— Reimi! — Ato contínuo, Vasto direcionou Reimi para baixo até alcançar o mestiço, que conseguiu estender o braço e segurar a mão do companheiro. Com os olhos aprofundados em uma dúvida causticante, Ivan retornou à realidade para ver diante de si um jovem preocupado e cheio de dúvidas estampadas no rosto.
— Furiae é o nome da Ligeia. Da Ligeia atual. Como você soube desse nome?
— Ela se apresentou. Mas sempre soube meu nome...
— Ela apareceu para você no sonho? Isso é impossível! — Vasto reafirmou que Furiae aparecia sempre nos sonhos, vaticinando a chegada da lança, e Ivan precisou pensar. — Eu tinha uma teoria sobre esse equilíbrio do mundo. Após matar Afrodite, o verdadeiro equilíbrio só retornaria se os filhos de Escorpião, Leão e Libra assumissem seu papel reinando em Maciaan, mas isso não exige a ação da lança, muito menos a presença de todos os caídos do céu...
— É por isso que eu precisava tanto falar contigo. Para saber o que é essa herança que vem com a lança dourada; e o que preciso fazer para completar a minha missão... — Ivan retomou sua quietude inicial e sentou-se para olhar novamente para o horizonte. Após algum tempo, Vasto recebeu uma resposta:
— Eu sei tanto quanto você sobre essa herança, Vasto. Até menos! Tudo que sei é que as dádivas do mundo aglutinavam energia dentro de si, e que as destruindo, o equilíbrio voltaria. Qualquer coisa além disso é especulação. — Vasto sentou-se cabisbaixo no corpo de Reimi, e os dois permaneceram quietos por muito mais tempo; num dado momento, Ivan se lembrou do trecho que cruzavam, e forçou Reimi a baixar a altitude. — Vasto, estamos próximos do templo. Vou descer aqui porque quero ir andando. Desculpe-me por não te dar mais respostas, mas você me convenceu que há algo mais sobre esta missão que ainda não nos foi revelado. Se for o seu dever seguir com esse legado, eu passo a lança de bom grado. Só peço que espere mais alguns momentos, pois preciso dela para uma última tarefa. — Jogou-se do alto.
Vasto não sabia o que era tal tarefa, e chegou a perguntar – e foi ignorado – se Galope teria alguma relação, mas tão logo Ivan pisou no chão, começou uma corrida veloz na direção do templo. Mesmo que Vasto quisesse, ainda não podia pular atrás, pois o impacto que um mestiço aguentava era muito maior do que o baque que ele – ou qualquer humano – levaria se pulasse da mesma altura. Seguiu pelo ar.
II
O pouso prematuro de Ivan foi o subterfúgio encontrado por ele para recobrar a frieza para o combate. Permanecer pelo resto da ida com Reimi faria um favor a seu corpo, mas a mente sairia prejudicada da decisão. A menção a Furiae mexera intimamente com ele, e usar de silêncio e meditação para esquecer a última conversa era arriscado: primeiro porque exigia uma disciplina hirta, coisa que a própria mente se encarregaria de inviabilizar, graças às possibilidades acerca da função da lança que pululavam em seu pensamento; em último lugar, a presença de um indivíduo junto era o que colocava tudo a perder. Sem ter controle sobre ele, nada garantia que uma nova conversa surgisse no momento da chegada ao templo, abalando novamente a preparação do guerreiro. Correndo, eliminava estas duas inconveniências: não teria ninguém para lhe distrair com especulações; e a mente e o corpo se focavam a cada passo dado – fosse na elevação do solo que mudava constantemente, nos movimentos dos braços e na altura que levantava a perna para cada passada, ou até na velocidade do vento contra seu corpo, ele tinha no que prestar atenção para dissipar as distrações.
Com o corpo e a mente já dominados, ele avistou o templo do Cesaro. Afastado das pedras altas, a forma de uma pessoa – um adolescente. Continuou correndo, o cabo da lança comprimido pela mão. Um diálogo se estabeleceu no templo, mas Ivan só conseguiu ouvir claramente o último grito:
— Está armado! Vou segurar! — O adolescente começou uma corrida contrária, na direção de Ivan e com gestos exagerados – joelhos afoitos e cabeça muito inclinada para frente – não parecia treinado por Adônis. A velocidade, entretanto, era sublime! Ivan apontou a ponta da lança para sua frente e ameaçou o rapaz. Caso a ousadia fosse demais, Ivan a usaria como alavanca, aproveitando o movimento para lança-lo lateralmente. O adolescente não parou – e como era alto! Ivan reparou no momento da colisão que ele ergueu um braço horizontalmente, buscando derrubá-lo. “Um tolo, de fato! Esse movimento não o defende da ponta da lança, e na presente situação ainda me auxilia...”.
A disputa estava resolvida na cabeça de Ivan: posicionaria o cabo da lança abaixo do braço do jovem e empurraria o tronco. O instante da colisão foi ainda mais rápido que sua previsão, mas o resultado, inesperado. Com uma velocidade incalculável, desviou a ponta da lança e a colocou atrás do adolescente. Era loiro e seus olhos eram verdes, a cor ficara marcada, tal era o olhar prepotente que ostentava quando Ivan ergueu a lança com toda a força, sem gerar efeito. O instinto agiu. Ivan, um mestiço, deveria ter força para mover qualquer um, mas, se falhou, deveria ser por conta da distância entre sua mão e a extremidade da lança, e Ivan, por reflexo, esperou a figura chegar mais perto, o que se deu praticamente no mesmo instante, tal era a velocidade de ambos. O experiente trouxe a outra mão para premer força na lança, que tangia a barriga do loiro, mas nem assim ele tremeu. O impulso causado pelas velocidades foi tremendo; atingido pelo braço horizontal Ivan seguiu pelo ar, girando sem controle de si e caiu no chão, atarantado.
A queda de costas não lhe causou nada, mas a dor transversal que sentia na altura do ombro era absurda! “Um humano teria a coluna separada da cintura! Mas que aberração é esse moleque?!”, pensou enquanto rolava no gramado e virava para trás, avistando novamente o rapaz, que continuava a disparar seu olhar pretensioso. Desejou não ter mudado a direção da lança no último segundo.
— Você quer ele vivo? — O rapaz perguntou, com voz alta, para alguém atrás de Ivan. O centauro se mostrou, e Ivan deu passos laterais, tentando deixar os dois à vista.
— É assim que quer fazer? Mandando garotos no seu lugar?
— Você sabe que não há necessidade de conflito, Ivan! O que fiz foi necessário para te garantir imunidade à Afrodite. Se você preferiu se unir ao lado dela, isso só mostra que não foi o bastante, devia ter quebrado mais seu espírito!
— Não! Não, Adônis! Pelo contrário, funcionou muito bem. Afrodite já não existe desde o dia em que fui largado no mar. Mas o que está feito, está feito; e você precisa pagar!
— Não! Afrodite está morta? Então sua agressão se torna ainda mais inútil e irracional. Você sabe muito bem: se tem algum intuito assassino contra mim, é porque sua cabeça foi mudada quando se tornou um deles. O Ivan de antes, humano, que foi meu amigo por tantos anos, jamais cederia a essa besteira!
— Chega de bobagens, centauro! Você diz que eu não buscaria vingança se não me tornasse um aquático, mas será isso verdade? Algum dos homens que você torturou enquanto viveu com os rebeldes... Algum deles te deu perdão? Algum deles não quis te matar?!
O centauro abandonou o saco que trazia e empunhou a enxada que levava na mão direita. Enquanto se afastava do templo, ordenou que Silvestre não interferisse, o que causou alarido antes da briga se iniciar. Vasto, que descia agora, protestou assim que viu os dois preparados para lutar. Silvestre saltou à mesma altura de Reimi e prendeu o filho de Áries pelos braços.
— Galope! O que significa isto? — Reimi rodeava os dois guerreiros pelo céu.
— Eu não quero nenhum de vocês se intrometendo. Silvestre, pode segurar! — O filho de Leão fez um movimento de corpo que vergou o corpo de Vasto e, com o cotovelo alto, baixou a palma da mão contra o rosto do filho de Áries, chocando a cabeça dele contra Reimi.
— Fica quieto aí ou desacordo você! Pela primeira vez vamos ver uma luta de verdade com gente forte! Isso aqui não vai ser uma daquelas tretas de bar!
— Eles podem se matar, você tem noção disso? — Vasto respondeu, resignado e com o rosto dolorido, enquanto Silvestre se estirava em cima de Reimi para ver melhor a luta, os olhos verdes brilhando.
Embaixo, Ivan levava a melhor, com certa facilidade. A lança tinha alcance maior que a enxada, obviamente, e Adônis só a usava para desviar o curso do golpe. Mesmo com a improvisação, o centauro mostrava que sabia se virar muito bem, embora já tivesse alguns furos e riscos no abdome. Ivan parecia satisfeito, mesmo com a boca firme e o olhar compenetrado; usando cautela, venceria. Após os primeiros acertos no corpo do adversário, precisou ficar na defensiva, para não sofrer os ataques repentinos – Galope desviava a lança para o lado e saltava com todo o peso em cima de Ivan. A luta se manteve sem aparente mudança, e o guardião do templo entendeu que teria de mudar sua estratégia, afinal o seu corpo não era ágil como o de Ivan, que podia se contorcer e rolar para onde bem desejasse. O centauro se afastou e jogou longe a enxada. Passou a rodear Ivan, mantendo uma distância segura.
— O que pretende?
— Acabar com a luta! — Galope cavalgou para longe. Quando se via a sua silhueta escura perto do horizonte, ele fez a volta e começou a cavalgada brusca. Os cascos pressionando a terra lhe conferiam uma velocidade acima da imaginável, digna de todas as lendas e temores. Ivan separou bem as pernas e ergueu a lança acima do ombro, dando passadas laterais indecisas.
— Tem alguma coisa errada... Ele não vem com tudo.
— Será que ele não tem intenção de matar? — Vasto perguntou, observando a corrida.
— Não, ele vai matar sim. Mas essa não é a velocidade máxima. Ele poderia atravessar esta distância em segundos, se viesse com tudo. Olha só o outro, está medindo a posição para virar de lado. Não duvido que consiga se desviar. A não ser... — Vasto não suportou aquela pausa e logo pediu que Silvestre dissesse o que estava pensando. — Pode ser que esta seja uma distração. No caso, ele só vai aumentar a velocidade quando chegar bem perto. Aí não daria chance para esquiva.
— Ivan! Ele vai aumentar a velocidade! — Gritou. “É com isso que estou contando, Vasto”. — Ei, você tem que pular antes! — Vasto não aguentou esperar pela desgraça e saltou de Reimi, buscando avisar Ivan.
— Está maluco?! — Silvestre pulou atrás; conseguiu agarrar Vasto e girar o corpo. Recebeu o peso da queda nas costas, mas felizmente amorteceu o pouso do irmão. Já no chão, não perdeu a chance e voltou a bater nele, e conseguiu rolar, ficando por cima e imobilizando Vasto, que não cessou os gritos de alerta.
— AGORA!
A voz era de Ivan. Galope apareceu com um pulo alto galgando a última subida. Ao pisar no terreno plano, a trovoada começou, ribombando pelo solo até o rosto de Vasto. Ao mesmo tempo, Ivan se premeditara, atirando a lança horizontalmente. A lâmina cortou o ar num assobio efêmero e penetrou o centauro, entrando quase completamente no corpo dele, encimando a ponta da espádua e rasgando tudo até parar na coxa direita. O arremesso foi efetivo, mas deixou Ivan com a guarda exposta.
Galope, não só com a velocidade que já vinha, sustentou ainda o trote estoico e acelerou; atingiu Ivan num átimo. O punho atingiu um pouco abaixo da clavícula, e a destruição causada foi muito maior que a contenção anterior de Silvestre. O homem rolou por muitos metros, sua figura foi atirada para trás e após a primeira quicada no chão, braços e pernas se turvaram em giros impossíveis. Mesmo Vasto, que intentou gritar desesperado, calou-se de perplexidade. Galope seguiu claudicando, colocando o peso do lado esquerdo do corpo, até achar Ivan prostrado no chão, com o corpo em frangalhos.
— O escolhido de Sauza não perderia para o escolhido de Afrodite.
— Se alguém no céu me escolheu, Galope, tenho certeza de que não foi Afrodite.
— Essas são suas últimas palavras? — O centauro ergueu uma pata dianteira.
Com a respiração intermitente e uma certeza pujante de que morreria em instantes, Ivan respondeu com o que era preciso para se salvar:
Quando apenas espíritos vagarem
Existirá uma Lua
Seu brilho perdurará além da costa
A Lua brilhará para todo o sempre
O mundo acaba em estilhaços sob nossos pés
Mas depois de tudo, haverá uma luz na noite mais escura
Fazendo-nos virar para o céu
Existirá uma Lua
Seu brilho perdurará além da costa
A Lua brilhará para todo o sempre
Seguindo as palavras finais de Ivan, o mundo ao redor de Galope mudou, mas de uma maneira familiar. A luz clara e quente do sol desaparecera, dando lugar à claridade melancólica das costas dos filhos do zodíaco. Buscando a fonte da luminescência, grandiosa ao ponto de rivalizar com o brilho do sol, o centauro olhou para o céu e avistou a lua, verde e contemplativa no céu diuturno. Aproveitando o ensejo Ivan ergueu a mão e segurou o cabo da lança dourada; não para fazer cortes internos, pois isso seria impedido pelo reflexo rápido do centauro, mas para servir de apoio. Com verde brilhando nos olhos e a força restaurada por um poder superior, Ivan apoiou outra mão no cilhadouro e ergueu a besta sobre a cabeça.
Galope relutou como pôde, acertando o inimigo com patadas pesadas no ombro e no rosto. Chegou a atingir o queixo inicialmente, mas Ivan não se deixou cair. Com as pernas trêmulas, colou o queixo no pescoço e aguentou os golpes diretamente com a face; após o terceiro, já estava desfigurado e sem um pedaço do nariz. O homem andou uma curta distância com dificuldade até beirar o penhasco. Implacável, arremessou o centauro no mar. Contemplou a fúria marítima, e diante da vastidão azul – agora esverdeada – um único pensamento bradava em sua cabeça, buscando expiar convictamente sua alma: “Desta vida eu parto. Sem arrependimentos”.
Com o templo e a dupla impressionada detrás de si, Ivan pulou no abismo.
III
Sobre o fluxo barulhento de água batendo no paredão e voltando para o oceano insofrido, Vasto percorria o ar rente à imensidão do penhasco, olhos fixos na superfície do mar. O verde já se perdera há tempos, logo após Ivan mergulhar, e a figura da lua deixou de adornar inadequadamente o céu claro do dia. O rapaz não tinha expectativas; queria acreditar que Galope e Ivan se salvariam, mas achava-se assaz tolo por tentar se convencer de tamanha besteira. Os ferimentos causados na briga eram mortíferos, dignos dos dois adversários. “Será que estão tão longe assim de chegar a um consenso?”, pensava, novamente cogitando a salvação dos dois, em demonstração íntima de esperança pueril.
Algum tempo de voo foi o suficiente, e Silvestre apareceu com sua cabeça num ponto mais afastado, fazendo sinal. Vasto entendeu prontamente o recado; estava apontando para um local nas proximidades, indicando que chegaria em breve, mas não nadou pela superfície. O rapaz novo superou a força da água e chegou ao paredão, colocando na costa pedregosa o corpo desacordado de Galope. Sem esperar por Vasto – Reimi ainda se aproximava – ele virou para o horizonte e mergulhou atrás de Ivan; estava mais que capacitado para fazer a busca, uma vez que chegou a pular e nadar diretamente num dos infindáveis redemoinhos do mar de Maciaan, só para se gabar. Quando Reimi chegou, não teve como pousar, então Vasto saltou para a beirada rochosa das águas. O centauro não tinha mais vida.
Condenado pela lança que lhe atravessava o corpo, Adônis encontrou seu fim pela impiedade do oceano, afogado e sem a chance de realizar um último desejo ou proferir palavras de adeus. Com um pé dentro d’água até a canela e outro se equilibrando numa pedra mais alta, Vasto admirou com pesar aquele que fora seu pai, mestre, amigo e guardião. Passou a mão no rosto largo do centauro, afastando os longos e finos fios de cabelo preto, e sentiu um pedaço de si ser arrancado e escondido detrás de dois grandes olhos trancados, um pedaço ao mesmo tempo nostálgico e recente, agora perdido para sempre.
O riso sério, o porte majestoso, a severidade, as broncas guturais, tudo se transformou em memória. O causador da tragédia chegava então, carregado por Silvestre, que segurava o homem graciosamente no colo, apesar da turbulência da corrente.
Vasto foi até Ivan, depositado também entre as pedras pontiagudas mais altas da costa. Por ser meio aquático, não chegou a sofrer por falta de ar, mas seu estado era lastimável, certamente o que emitia era a súplica final. O rosto em frangalhos não se delineava nem com a maior imaginação; as pálpebras fechadas e fundas escondiam olhos arrebentados, o nariz não existia, bem como os dentes. O rosto forte – e até belo – de Ivan estava resumido em um amontoado de pele rasgada e manchada de sangue que persistia em correr pelas aberturas. O suspiro era de uma animosidade sem precedentes e igualmente sem força. Quaisquer pensamentos que pretendia expressar não iam além de lamúrias espaventadas. Num gesto final, Ivan ergueu um braço para o céu azul. A munheca destruída não sustentava a mão, mas tanto Silvestre quanto Vasto sabiam que aquele homem tinha um objetivo bem definido. O que ele via ou pretendia alcançar, no entanto, seria mistério para sempre, pois, após elevar o braço o mais alto que pôde – estirando até o ombro disforme no gesto – ele sorriu. Antes de morrer, o Guerreiro da Lua alcançou o que queria; ou a pessoa que desejava, era o que pensava Vasto, já que ao segurar a mão dele – ato que considerou piedoso e necessário – sentiu que ele apertou de volta, muito embora a impressão que teve foi a de uma terceira pessoa estar ali na cena, também amparando a mão do moribundo.
— Foi culpa sua.
— Minha? Não venha com suposições absurdas, Vasto. Eles que se mataram. De uma forma gloriosa, se posso opinar. Galope teve uma sorte de ouro; eu, pelo contrário, nunca encontrarei um adversário à altura para combater. Você devia estar grato de poder testemunhar uma briga de gigantes.
— Você é muito novo, e pensa como um pirralho ainda. Talvez em algum tempo você abra os olhos e entenda que há meios mais sadios de convivência. — Vasto limpou as lágrimas do rosto.
— Eu sinceramente espero que sim, irmão. Mas há boa chance disso nunca acontecer, Galope mesmo dizia que eu era uma máquina de guerra e nada mais... Vamos leva-los?
— Vamos.
Silvestre ergueu os braços para o alto e Reimi se aproximou delicadamente, pousando com segurança nas mãos do filho de Leão. Ele repassou o bicho para Vasto, que suportou com dificuldade o peso, e foi até Galope. Imaginou o melhor jeito para carregar o centauro, mas não viu outra forma possível: segurou o cabo da lança e o ergueu usando-a como apoio. Quando descarregou acima de Reimi, Vasto desabou. Teria sido esmagado se Reimi, na iminência da queda, não iniciasse o bater de asas e o voo lúgubre que percorreu boa parte da beirada do precipício antes de finalmente despejar o corpo de Adônis próximo ao templo.
Naquela noite, os corpos já tinham recebido seu destino. Após a cremação de ambos, as cinzas foram levadas a locais diferentes. As de Adônis foram levadas por Vasto a um pântano antigo do Cesaro, dito várias vezes ser seu lugar de nascimento. Posicionado em uma terra erma e de difícil acesso, o pântano recebeu de volta a criatura secular que com tanta dedicação protegeu o Cesaro e os filhos do zodíaco. Ao mesmo tempo, as cinzas de Ivan foram levadas para o oceano. Silvestre encarregou-se de se afastar bem da costa mirando o norte, pois era naquela direção que ficava a morada dele, segundo relatos de Galope, e procurou um redemoinho para jogar os restos mortais, voando o caminho de volta em um silêncio taciturno.
A noite caiu como um manto acalentador sobre a tristeza dos caídos do céu; Silvestre, ainda que arrebatado pelo confronto, teve a sensibilidade para se manter calado e respeitar o pesar da situação. Futuramente não hesitaria em contar como o combate se desenrolou, chegando a repetir várias vezes a história do fim de dois grandes guerreiros para as mesmas pessoas. Vasto não escondia seu descontentamento, mas não revelava o motivo para Edgar, que chegou a sentir algo de errado, mas só reagiu com curiosidade muda. Sobre Galope, chegou a perguntar três, quatro vezes, mas após ser ignorando tanto, deixou para lá – mesmo pequeno, ele já conhecia a rotina do Cesaro; às vezes Galope sumia por uns dias, às vezes era Vasto e, às vezes, Silvestre.
Tinham acabado de tomar uma sopa bem sorvida, mas muito rala. Dos três, o único que não reclamou foi Edgar, apesar de ser o único não envolvido com o preparo. Dentro da tenda, iluminados por duas velas acesas e as pedras incrustadas nas costas nuas dos três – Edgar estava pelado – iniciou-se o diálogo para discutir o desejo de Vasto, expressado horas mais cedo.
— Tem certeza de que quer ir?
— Eu não quero ir, eu preciso. É o destino, Silvestre.
— Então Sauza traçou muito mal esta linha do destino, Vasto. Estamos sozinhos, temos a lança, e podemos fazer – adivinha? O que quisermos!
— Pode ser, mas eu não fui avisado todas as noites desde a minha infância para chegar no momento e abandonar meu dever. Eu preciso reunir os filhos do zodíaco e restaurar o equilíbrio de Maciaan.
— Equilíbrio, equilíbrio, lá vem você! Ivan não sabia o que isso significava, Galope não sabia, você não sabe... Ninguém sabe! Vasto, olhe o céu: está no lugar de sempre. O mar também. O chão também. Até Edgar consegue ficar de pé, pular e dançar — o menino saltitou um pouco ao ouvir aquilo, e não prestou atenção em mais nada da conversa — que maldito desequilíbrio é esse que há no mundo? Tudo me parece bem equilibrado. Será que não é você que está se iludindo um pouco com essa missão de mudar o mundo?
— É, porque você não possui espírito de mudança algum, não é? Tudo está sob controle aos olhos do Magnífico Leão do Oeste...
— E está mesmo. Talvez eu não tenha espírito de mudança, e daí? Isso não muda o fato de que não há nada para ser mudado. Não há desequilíbrio em Maciaan!
Estava bem claro que o conflito não se resolveria através de palavras, e Vasto chegou a atribuir culpa à imaturidade de Silvestre, mas logo notou que não era bem daquele jeito. Entre tudo que poderia influenciar a decisão de seguir a missão, o único fator determinante de fato era a fé. Não havia desequilíbrio aparente, exatamente como Silvestre dizia, mas isso garantia o equilíbrio?
— Se ao menos eu pudesse te mostrar a nossa mãe... — queixou-se num sussurro. Silvestre, comovido, resolveu dar uma chance ao irmão. Acreditava plenamente nas visões oníricas de Vasto, até porque já se vira atordoado por elas muitas vezes em seus sonhos; infelizmente, não podia fazer o mesmo e ver o sonho do irmão, logo, não podia presenciar – e ter como prova cabal – a visita e o alerta da mãe como ele vivia proclamando. Num gesto que considerou nobre, deixou este fator de incerteza ser decidido por Vasto, e logo encerrou:
— Vamos fazer o seguinte, Vasto: temos a lança dourada e a liberdade para fazer o que quisermos com ela e com nossas vidas. Está de noite, e mesmo que resolvêssemos agora sair em viagem, descansaríamos por hoje. Então deixemos a solução para ela, nossa mãe. Acredito que ela deve nos ver e ouvir não é? Afinal o céu cobre tudo e todos... Pois o momento chegou. Ela que tanto avisou sobre seu destino, deverá notificar você uma vez mais durante o sonho. Se ela aparecer esta noite e confirmar esta urgência em salvar o equilíbrio do mundo, sairemos amanhã pela manhã eu, você, Edgar e Reimi. Não haverá oposição de minha parte, e juro por Sauza que farei o possível para alcançar o tal equilíbrio misterioso. Que acha? Olha que para mim até o impossível se torna possível!
O filho de Áries sorriu largamente e em dois passos chegou junto a Silvestre com um abraço caloroso e demorado. Não demorou um segundo sequer para ele perceber que a ajuda do irmão vinha de bom grado. Por mais altivo que fosse, a sua arrogância era apenas uma máscara que se encaixava confortavelmente no Leão, não sendo o suficiente para esconder – ainda mais de seu irmão mais próximo – o coração generoso que o filho de Leão conservava desde sempre.
Mais tarde, após insone agonia, Vasto dormiu sem qualquer preocupação, pronto para sonhar.
***
Pela manhã, nenhuma palavra foi dita. Os dois apenas arrumaram o que precisavam para viajar – que não era muita coisa, só juntaram peças de roupa, água, poucos medicamentos, alguma comida e muito dinheiro – e rumaram para o sul do Cesaro. Vasto levantara de ótimo humor, com um semblante radiante, apenas necessitando de uma desculpa para dizer a Silvestre que eles iam partir. O irmão, no entanto, não pretendia dar este prazer a Vasto. Desde a noite anterior, já tinha ido se deitar conformado com a viagem. Afinal, de que adianta a grandiosidade absoluta senão para satisfazer os desejos ordinários das pessoas comuns?
O caminho foi um pouco mais demorado que o de costume, pois Reimi precisava ser levado junto, e alguns dos atalhos da floresta não permitiam a passagem da misteriosa criatura voadora. Em certos momentos precisaram ir até locais afastados, com atalhos compatíveis com Reimi, mas o atraso não chegou a ser substancial, de forma que ainda era céu claro quando os quatro chegaram ao limite da Floresta do Cesaro. Já vendo os Campos de Porocop por entre os últimos troncos de árvore, Vasto parou com Edgar enquanto Silvestre ia à frente, levantando Reimi para o campo aberto, onde suas asas podiam cruzar o céu livremente.
— Vai. Cachorro. Edgar, preste atenção! Cachorro, viu?! Não quero ter que correr atrás de você, tá bom?
O menino assentiu e começou a tirar a roupa. Estava usando apenas uma túnica de manga longa – costurada a partir de uma camisa antiga de Silvestre – e sandálias de couro com tiras presas no calcanhar e entre os dedos. Assim que ficou nu, o menino colocou as mãos no chão, junto aos pés, e seu corpo passou por uma transformação. Partindo das costas, a pele começou a mudar, ganhando pelagem escura, e os membros se converteram em paralelo ao aparecimento de uma cauda peluda. O rosto de criança havia se perdido no meio de pelos e uma cabeça de cachorro tomara o lugar. Em questão de segundos, sem dor ou agonia, o menino se transformara em um cão. O corpo estava um pouco maior, uma vez que Edgar se transformou num cão de serra, de porte avantajado e aparência dócil. Um pouco rústico, o cachorro tinha um olhar expressivo e doce, não só por ser uma forma familiarizada com Vasto, mas pela própria natureza do animal. Como Edgar perdia totalmente a razão durante a transformação, era preciso sempre decidir com clareza a forma que ia tomar, para não causar problemas desnecessários. No Cesaro ele tinha mais liberdade com seu poder, mas fora dali, era fácil acarretar muitas inconveniências, capazes de até levar o filho de Virgem à própria morte. A suspeita sobre a identidade, todavia, era excluída completamente, uma vez que as esmeraldas da constelação de Virgem eram engolidas pelo corpo durante as transformações.
Pulando em Reimi e ganhando altura, o trio final se despediu do Cesaro com olhares contemplativos, carregados por sonhos para longe de casa, e sem previsão de retornar.
IV
— Vamos passar em Caxa!
— Não, eu não acho que... — Vasto tentou argumentar, mas fechou os olhos, resignado, assim que sentiu Reimi se inclinar para descer. Sabia que não seria inteligente deixar Silvestre no comando das asas, mas, ante a exaltação do rapaz por finalmente visitar a capital, preferiu deixar o adolescente curtir a viagem à sua maneira, com a condição de não fazer malabarismos aéreos perigosos ou mesmo irritantes ao ponto de impedir uma soneca.
Silvestre não demonstrou qualquer precaução em esconder Reimi, e quando o grupo pousou no pátio em frente à casa de Cíntia, algumas crianças que correram no encalço da novidade voadora já apareciam animadas no beco que ligava a entrada da casa a uma das ruas principais. Edgar precisou descer para que Reimi pudesse se equilibrar em sua base pontiaguda, mas deitou no chão e voltou a dormir, sem se importar muito. Vasto seguiu para dentro da casa enquanto Ivan já se embarafustara gritando e fazendo alarde. Cíntia estava na cozinha proseando com duas pessoas que trabalhavam e se mantinha sentada perto da porta para escapar do calor do lugar, o que vinha conseguindo com a ajuda de um leque que abanava preguiçosamente.
Foi avistada assim que Vasto surgiu na porta, e o homem foi recebido por um forte abraço da mulher e cumprimentos dos demais. Vasto explicou que viajaria com Edgar e Silvestre para a capital, mas evitou mencionar a morte de Adônis, mesmo quando ela se dispôs a saber sobre ele. Quase chegando aos sessenta anos, Cíntia exibia um cabelo escuro com algum grisalho, mas o olhar continuava forte e o porte bonito, mesmo com um corpo que não se comparava à silhueta de duas décadas atrás. Ela demonstrou grande expectativa para a viagem e encarou com naturalidade a ida de Silvestre – seu último dengo entre os caídos do céu. Ato contínuo, após beijar várias bocas e arreganhar portas assustando clientes e fazendo rir mulheres nuas, Silvestre chegava para se despedir da pessoa que mais merecia, e o fez com todo tipo de palhaçada. Chegou a levantar Cíntia acima da cabeça, preocupando a todos com a sua falta de zelo, mas nada de ruim aconteceu. Enquanto a despedida de mãe para filho acontecia com risadas e abraços carinhosos, Cíntia lembrou Vasto de ver Helena antes de partir.
Helena era o interesse amoroso de Vasto havia muito anos, tendo ele até conseguido a permissão de Cíntia para leva-la como esposa. Infelizmente a garota se negou. Àquela época muito se debateu no Cesaro e na casa de Cíntia sobre a falta de senso de Helena, pois todos sabiam que ela morria de amores por Vasto tanto quanto ele por ela, mas por não se achar merecedora de um homem virtuoso como ele, terminou por desprezar todos os pedidos. Após tantas tentativas, muitos que acompanharam o caso acharam desrespeitosa a decisão dela de aceita-lo somente como cliente, mais uma parte do trabalho – e assim o fez desde então, no entanto nunca cobrou pelo serviço. A despedida foi tão estranha quanto se esperava. Ela estava no quintal, sentada no banco com seus cabelos claríssimos, suas covinhas salientes e uma vareta de madeira que arremessava para um cãozinho de rua catar e trazer de volta. Não quis saber quando voltava ou se voltava, e, por isso, Vasto também não a informou – por pouquíssimo não decidiu fazer um último pedido de casamento quando fitou a tristeza nos olhos dela. Pressurosa, pediu que aguardasse um pouco e foi até dentro de casa, de onde voltou com uma capa extravagante, sem brilho, mas de uma chamativa cor azul.
— Não tem problema, lá em Kelicerata você não vai chamar atenção com ela. Aceite, por favor!
Mesmo descontente com a cor, aceitou de coração e vestiu a capa que era leve e fina. O encontro terminou com um abraço demorado, puxando corações para mais perto; o gesto foi bonito, mas que decepcionou as duas observadoras que espreitavam numa janela da casa e aguardavam um final diferente.
— Vamos embora! — Vasto chamou Silvestre, que já esperava ao lado de Reimi, ainda cercado de crianças de rua – algumas delas coçavam o pelo de Edgar, carinhosamente. Com Edgar no colo de Vasto, os dois pularam em cima de Reimi que ergueu novamente os filhos do zodíaco ao céu límpido.
***
— Vasto! Vem ver isto!
O filho de Áries abriu os olhos vagarosamente para enxergar Silvestre inclinado além das asas de Reimi. Levantou-se com cuidado e foi agachado até o adolescente, usando as costas dele como apoio para se jogar o mais à frente possível com menos risco de queda. Edgar, que agora era um ratinho de pelo cinzento e cauda comprida, correu assim que a sombra dele mudou de lugar, indo para debaixo do lençol que Vasto usava para se proteger do sol – e agora não voava por estar amarrado a uma sacola pesada. Logo abaixo, ainda nos Campos de Porocop, uma comoção chamava atenção pela quantidade de pessoas – de todas as idades – reunidas ao redor de um amplo campo demarcado por estacas fincadas no terreno. Apesar de não se ouvir nada graças à altitude do voo, a animação era notória, e qualquer um percebia que se tratava de algum tipo de festa.
— Vamos descer! — O filho de Leão empurrou Reimi, forçando uma descida. Com uma exclamação repentina, Vasto se atirou no lenço torcido que cobria Edgar. Por pouco o lençol não saiu voando, levando o ratinho consigo. Silvestre entendeu o significado do grito e até atenuou a descida, mas Edgar já estava seguro. — Desculpe...
— Estamos tão perto de Kelicerata, por que não vamos direto e você vem para cá depois? Estamos fedendo, vão pensar que somos desses vagabundos de estrada.
— Não tem problema, eu só quero ver o que é isto. Vamos embora logo em seguida! — Vasto já estava imaginando que teria de fazer estas paradas breves muitas vezes, se o filho de Leão quisesse conhecer tudo da Capital. Resolveu se prevenir:
— Está bem! Vamos ver do que se trata essa algazarra. Mas quando chegarmos na cidade, não quero saber de você me arrastando para ver tudo quanto é novidade. Vamos direto para o castelo!
Silvestre topou e o grupo pousou ali perto. Para dispersar os curiosos, Reimi foi liberado logo após descer, e alçou voo sobre um bando de boquiabertos, sem se afastar demais do local. Os dois caídos do céu se misturaram à multidão, e Vasto entregou Edgar a Silvestre; para não ter que ficar carregando o rato, Silvestre inopinadamente chacoalhou o pequenino – Vasto não notou a malvadeza – até que mudasse de forma. O filho de Virgem, então, se tornou um pequeno mico de pelo escuro que permaneceu comportado no ombro do seu novo guardião.
— O que é isso tudo, meu velho? Estou chegando agora, não conhecia esse festival.
— E por onde tem morado, rapaz? Não conhece a Entrega do Corcel?
Vasto sabia que a população que vivia nos Campos de Porocop era apaixonada por cavalos. Uma boa parte era descendente de antigos rebeldes, opositores do reino que batalharam pelas terras ao sul de Kelicerata muitas décadas atrás. Após a misteriosa transformação do deserto do sul em terras férteis, o governo voltou seus olhos para aquela região e, se aproveitando de uma gama de novas políticas e reformas internas, resolveu encerrar a guerra contra os rebeldes e comprar as novas terras por um bom dinheiro. Os rebeldes anistiados, endinheirados e sem posses territoriais, migraram em sua maioria para a capital, mas uma quantidade considerável se estabeleceu em cidades pequenas, ao longo dos Campos de Porocop. Deles veio a herança passional por cavalos, e – malgrado ser uma inverdade – era costume na região dizer que os cavalos de Porocop eram mais valiosos que os da capital e até que os do sul do país.
Segundo o que o velho contara a Vasto, aquele festival era um evento público de certa tradição na região. O duque cedia, anualmente, o animal mais valioso do seu haras para a Entrega do Corcel. A festa começava cedo, reunindo pessoas de cidades próximas e pelo meio da tarde o cavalo referido era solto no picadeiro; o primeiro a dominar o animal, era seu dono. Após entender o funcionamento do festival, Vasto tornou a olhar a montagem do lugar, e reparou na quantidade de cavalos e cavaleiros por perto. Nada que fosse anormal, sendo o animal uma montaria comum, mas ali os bichos se apresentavam quase como tesouros, alguns até adornados com pedras preciosas – metais vis quase não se viam por ali, mesmo os cavalos mais feios eram enfeitados com verdadeiras preciosidades. Bandeirolas e cartazes sempre referenciavam à montaria, e após se afastar um pouco da multidão, entendeu como funcionava a tal competição: o picadeiro era delimitado por estacas altas, formando uma área circular no chão plano, bem ao centro do local da festa. Para servir de entrada, duas linhas paralelas de estacas formavam um corredor longo e retilíneo que se estendia para longe, até o lugar de exposição do puro-sangue.
Quando reencontrou Silvestre, o rapaz já tinha tomado conhecimento de tudo também, e mais, colocou na cabeça que ia participar da competição.
— Mas Vasto, me disseram que o recorde já tem quase vinte anos! Imagine, meu nome será conhecido em Porocop para sempre!
— Porque ninguém vai bater seu recorde.
— Obviamente!
— Eu vou dizer os três motivos pelos quais será impossível você ganhar a competição. Primeiro: nós não queremos chamar atenção, estamos aqui de passagem, só para ver o movimento. Segundo: porque você nunca foi de dominar cavalo ou qualquer outra coisa — o filho de Leão fez questão de apontar a tolice daquele argumento.
— Posso não ser adestrador ou coisa do tipo, mas alguma vez na vida você me viu ser derrotado por qualquer criatura? Homem, bicho, aquático, minha vida pode ser contada em vitórias que tive nos mais diversos embates. Você realmente acha que um cavalo vai — Vasto pausou a fala do irmão e apontou para a aglomeração agitada que começava a gritar, cerceando as estacas que delimitavam a área do corcel.
— Este é o terceiro motivo, olha só. O cavalo já está correndo.
Edgar até pulou para o rosto de Vasto, se reconfortando no ombro em seguida e admirando com ele o adolescente que correu desembestado para o meio do povo. Após muitos empurrões, chegou até as estacas e se deparou com o animal alto, de silhueta marcante: cabeça pequena, pescoço longo arqueado, espáduas inclinadas e cauda bem alta, com fios sedosos e brilhantes. Os olhos redondos e negros rasgavam a distância com velocidade, passando pela torrente de cordas e laços arremessados sem se deter. Alguns até chegaram a acertar a pontaria, mas o animal puxou com tanta força que a corda se perdeu, arrancando até sangue de mãos insolentes que ousaram segurá-lo. Quando viu que muitos pulavam o cercado para tentar parar o bicho, Silvestre percebeu que era aquilo que devia fazer – não tinha laço preparado, a única opção era usar os braços.
O corcel se aproximou o bastante para ele se lançar na frente e agarrá-lo, o movimento se desenrolou com perfeição na sua cabeça, porém o filho de Leão se esqueceu da multidão afoita ao redor dele, e se tivesse olhado para o rastro do cavalo, notaria que lá a maioria dos homens se atropelava tentando seguir o prêmio. E foi o que aconteceu com ele. Tomado numa corrente de corpos suados, Silvestre viu o animal passar direto, sem ter a chance de pular.
— MALDITOS! — Ele berrou, afastando os concorrentes com violência. O animal já ia longe, e em poucos segundos chegaria ao picadeiro. Lá a tarefa de capturar o puro-sangue seria mais complicada. Não que complicações impedissem a vitória de Silvestre, mas e o recorde? Ele queria terminar aquilo o quanto antes! — Sai!
Derrubou um homem alto e gordo, deixando-o de quatro no meio da confusão. Usando as costas largas para tomar impulso, Silvestre se elevou na multidão – Vasto conseguiu enxergar o irmão a partir dali – e pousou com graciosidade nas estacas, equilibrando o corpo nas duas hastes que usava para ficar em pé. Foi então que descobriu o jeito mais fácil de pegar o cavalo. À sua frente, uma trilha reta, sem barreiras e paralela ao curso que o alvo seguia. A oportunidade ideal para ele, sendo necessário apenas o cuidado de correr pisando exatamente nas extremidades das estacas fincadas no chão. “Uma tarefa simples para o filho de Leão”, ele pensou. E assim foi.
Com a leveza de um cisne, Silvestre não só correu sobre as estacas, como desviou de cordas e conseguiu alcançar o alazão antes deste terminar o caminho reto para o picadeiro. Pulou das estacas para o lombo do animal e o público foi à loucura. Os concorrentes, inclusive, quedaram a olhar a façanha do rapaz.
— Eu não acredito... Vamos, ele ainda tem que dominar o animal! — Disse um expectador próximo a Vasto, chamando-o para mais perto. Por mais resistente que o puro-sangue fosse, Vasto nunca teria uma prova da selvageria, pois quando chegou ao cerco, o que viu foi Silvestre montado num cavalão manso, rodeando o picadeiro e acenando para todos, que gritavam de volta. Muitos perplexos com o feito, outros decepcionados com a rapidez da prova, e muitos mais desapontados por conta da derrota.
— Pronto para ir?
— Sim! Olha aqui, assinado pelo duque. E meu recorde foi registrado. Pelo que me disseram, ninguém vai conseguir dominar outro em menos tempo.
— É, você teve sorte que conseguiu antes dele ir para o espaço aberto. Ali no estreitinho é menos trabalhoso de pegar ele.
— Sorte... Aquele caminho é uma armadilha! Um monte de gente desgovernada querendo pegar ele, eu só consegui porque fui pelo alto.
— É, eu vi. Mas e agora? Para chegarmos em Kelicerata ainda temos que passar pela Floresta dos Troncos Amarelos. Com cavalo vai ser bem mais devagar... — Vasto esperou que Silvestre viesse com a iniciativa, mas precisou ele anunciar que o cavalo deveria ser vendido. — Não adianta argumentar. Ele já pagou.
Um homem de pernas curtas e olhos grandes estava junto a Vasto. Os dedos cobertos de anéis de prata – até faziam barulho quando mexia a mão – acariciaram o pelo do animal com um cuidado quase temerário. Silvestre apeou, descontente por abandonar o prêmio tão pouco depois de lombilhar o mais desejado cavalo do festival. Como em tudo no mundo, as pessoas precisam conquistar o que querem pelos meios que possuem, e foi trocando uma caixa de moedas de ouro que um senhor estranho conseguiu seu sonhado puro-sangue; abraçado a seu mais precioso bem, ele acenou para a dupla que partia em sua curiosa montaria alada rumo ao sul, entre as nuvens pesadas que começavam a esconder as estrelas.
EDGAR
A CRIANÇA CAÇULA
V
— Acho que não vamos mais precisar disto. — Adônis comentou, enquanto terminava de ensacar uma rede de corda trançada. — Desde o primeiro momento você tornou nossas noites imprevisíveis. Eu te embalei num cesto forrado enquanto Vasto corria para Caxa, em busca de uma aia para você. E então tirei os olhos quando começou a dormir. Você não tinha feito escândalo nem quando liberei as pedras da constelação de Virgem das suas costas. “Menino de fibra”, eu te elogiei. Quando vi, dez minutos depois, talvez menos, você tinha sumido do cesto.
O centauro pendurou o saco de linho próximo ao canto da tenda que Silvestre e Vasto usavam para dormir e continuou.
— Procurei em todos os lugares daqui, olhando no chão, mas a minha preocupação era o silêncio. Mesmo que tivesse dado um jeito de sair do cesto, teria caído para o chão, portanto estaria chorando, mas nada! Chequei tudo uma segunda vez, e então fui procurar você do lado de fora, perplexo com essa possibilidade.
— Pé plequis? O que é pé plequis? — Perguntou o menino, mexendo nas orelhas de abano. Não suportava aquela sujeirinha insistente, sempre que voltava de alguma brincadeira tinha que tirar a areia dos cantos mais difíceis do corpo.
— É o mesmo que assustado. Espantado, quando alguém fica surpreso. Logo que pisei do lado de fora, Silvestre me olhou com uma cara de dúvida, e antes que eu perguntasse sobre você, ele me perguntou sobre um gato preto que tinha saído da tenda. Quando eu estava voltando do templo, cruzei com um gato preto, mas tinha sido muito longe da tenda, sem chance dele ter nos seguido até aqui. Achei estranha aquela menção, Edgar, e pedi para ele ir correndo atrás do tal gato preto. Ele achou depressa, o moleque sempre foi muito bom! E com o gato em mãos, descobrimos que você podia mudar o corpo para outros animais. Deixando você suspenso numa rede, ao invés de deitado num cesto, evitamos que saísse de fininho nas madrugadas.
O menino riu sem abrir a boca, só mostrando os dentes num largo sorriso branco. Parecia tímido demais para gargalhar como as outras crianças de mesma idade. Um adejo soou sobre as cabeças, e os dois foram para o lado de fora da tenda.
— Ali, Galope! Olha!
— É, não é Reimi trazendo Silvestre e Vasto. Eles devem voltar só depois, Edgar.
— Eu quero ver de perto!
— Não! Edgar, não! — Mas era tarde. A inquietude do menino o fazia querer ver de perto aquele gavião-imperador. Era um animal raro, mesmo no Cesaro. — Por favor, volte, volte, volte...
O centauro observou, impotente, Edgar bater asas como um azulão de penas vibrantes, menor que uma abocanhada do gavião-imperador. Ciente de que já não era possível convencê-lo com gritos de aviso, afinal a mente do filho de Virgem se perdia quando ele deixava a forma humana, Adônis pediu em silêncio que Sauza protegesse o caçula do Cesaro, e enxugou um fio de suor da testa quando Edgar, antes de se aproximar do gavião-imperador, deu meia volta no céu. Seria preciso um pouco mais de precaução para manter o selvagem filho de Virgem andando na linha.
Capítulo 8: Em Kelicerata, a maior cidade
I
Poucos dias de tédio, sono e viagem sobrevoando a Floresta dos Troncos Amarelos foram suficientes para chegar à Kelicerata, a cidade que perdurou viva através de inúmeras gerações, desde os tempos de Sauza. Com uma população sempre crescente e uma vizinhança arbórea muito densa, a saída da capital foi crescer para o alto, e de cima das nuvens os viajantes puderam observar que a estrutura urbana se diferenciava não só pela quantidade das casas e extensão territorial, mas a própria conjuntura habitacional era esquisita, se comparada ao que se via comumente nos vilarejos do reino. As casas eram construídas muito próximas, a maioria dividindo paredes de pedra entre si e alongavam-se para cima com três, algumas poucas chegando até cinco andares. As ruas apinhadas de gente miúda como formigas, mas com vestes coloridas que permitiam divisar cada cidadão, fazendo Silvestre se deslumbrar com o fluxo ininterrupto.
Vasto guiou Reimi pelo céu um pouco mais do que era necessário, pelo simples deleite de ver a excitação do filho de Leão. O Castelo Henpakihan e o Impacta se sobressaíam, e não havia como ser diferente: as duas maiores construções de todo reino do leste de Maciaan eram arquitetonicamente espetaculares. A área do castelo, protegida nos lados norte, oeste e sul por uma espessa muralha dita ser intransponível, era enorme e se localizava no extremo leste da cidade, dando de fundo com uma parte da floresta que abrigava o templo de Kelicerata – e ainda mais para o leste, dava para as inóspitas cadeias montanhosas. Campos de treinamento de soldados estavam lotados com cavaleiros, reforçando que as paredes cinzentas jamais teriam seus salões e corredores invadidos por inimigos. Vários estandartes se destacavam na construção, e Silvestre não pôde ficar sem fazer um comentário sarcástico sobre toda aquela imponência vazia – desconfiado que, por despeito e atrevimento, o irmão decidisse pular e atacar o Castelo Henpakihan sozinho, Vasto puxou Reimi para outro lado e deixou o castelo para trás. O Impacta, por sua vez, não tinha nenhum grande atrativo além do seu tamanho. A arena de combate era circular, com arquibancadas altas ao redor, que aparentavam comportar o mundo inteiro ali, se as pessoas não se importassem com constantes cotoveladas e pisões no pé. A arena ficava bem mais próxima da região central da cidade, e após o passeio breve, Vasto retornou para os limites da cidade, pousou Reimi na floresta e foi sozinho conseguir um riquixá. Silvestre puxou o veículo contendo o filho de Áries, o filho de Virgem – Edgar tomara forma de jabuti, deixando seus irmãos extremamente confortáveis – e Reimi encolhido. Como ele não precisava se mexer quando não devia, não chegou a chamar atenção, só um ou outro curioso espichava o pescoço para ver do que se tratava; uma dupla de guardas da cidade se aproximou para dar os parabéns pela captura do gavião-imperador e saíram após tocar com a mão em algumas penas, sem perceber do que se tratava realmente.
Silvestre contestou o quanto quis, mas a decisão de ficar numa estalagem se manteve; Vasto já conhecia a capital de outras viagens, e tinha ciência de que não conseguiria passar pelos portões do castelo só com um pedido educado. Procurou por Renan uma vez, e mesmo depois de mostrar que era um filho do zodíaco como o rei, não teve acesso a ele. Desta vez eles não iam sair da cidade sem encontrar com ele, e como Vasto não estava inclinado a aceitar a sugestão de Silvestre de entrar à força no castelo, precisavam se estabelecer em algum canto até conseguir os meios para conversar com o rei. A estalagem escolhida não tinha luxo, mas priorizava o conforto: era grande, arejado, tinha muitos quartos em bom estado e um amplo estábulo que Vasto aproveitou para deixar Reimi, pagando uma boa quantia para o estalajadeiro se fingir de cego.
— A única coisa que peço é que fique longe de brigas, não importa se alguém tentar te esfaquear pelas costas, desvie e fuja. Não revide! Hoje à noite eu te passo tudo que descobrir durante o dia.
— Você deve estar falando com Edgar, porque não consigo imaginar uma razão para me tratar como criança.
— Não precisa imaginar, basta puxar da memória. Será que ele vai continuar um jabuti pelo resto do dia?
— Será? Basta puxar da memória. Eu não dou um minuto para ele virar outra coisa assim que colocarmos os pés para fora daqui. E como já estou liberado, vou conhecer a cidade. Até mais, Edgar!
Vasto esqueceu Silvestre tão logo ele saiu para seu passeio. Sacudindo o réptil, fez ele se transformar em outro animal, desta vez um furão de pelo marrom. Apesar de rápido naquela forma, Edgar não se mostrou propenso a fugir, agarrando-se ao corpo de Vasto e ali permanecendo. “Só preciso me atentar a barulhos altos, se ele continuar como furão”, ele pensou enquanto acomodava o animalzinho no ombro. O filho de Áries precisava entrar no castelo, mas das vezes passadas que tentou, sempre se viu barrado pelos guardas. Foi com o espírito mais otimista que pediu ajuda ao estalajadeiro acerca do seu problema, mas o homem não se dispôs a fazer muito por ele. Indicou, com certa vontade de se livrar de Vasto – mas olhos desmaliciosos – a Taberna do Juanart.
O homem e o furão seguiram para a tal taberna, dividindo o mar de gente das ruas mais ocupadas e seguindo sempre pelo caminho da sombra. Vasto chegou a não acreditar como suou rapidamente, mesmo após o banho gelado que tomou; os ventos abundantes do céu infelizmente não pareciam inclinados a refrescar os cruzamentos da cidade. Quando encontrou a taberna, exuberante com seu letreiro alto e chamativo, de cores raras até – tinha partes pintadas de roxo, uma cor muito difícil de ver fora das pétalas de flores – a primeira coisa que fez foi tirar a capa azul e o chapéu. O interior, mesmo durante o dia claro, estava amontoado de gente. Homens e mulheres das mais variadas estirpes bebiam e falavam alto, embora os grupos não se misturassem muito, dando um ar plural e segregante ao estabelecimento. Vasto evitou as pessoas em pé e sentadas às mesas, indo direto ao balcão. Sentou num banco alto e depositou os pertences junto a si.
— Olá, senhor. O que vai querer? — Uma jovem moça de cabelos escuros e nariz torto surgiu do outro lado do balcão. — Ó, por Sauza! O que é isso? Um furão domesticado, que bonitinho...
A garota passou a mão pelo corpo de Edgar, fazendo carinho e pareceu se perder na brincadeira, ignorando completamente a presença de Vasto. Após notar que o encanto da mulher pelo bichinho não ia passar naturalmente, ele mexeu o ombro, fazendo Edgar se mexer para não cair, indo para o outro ombro. A menina tentou apanhar o furão enquanto ele se movia, mas só conseguiu alcançar as costas de Vasto.
— Desculpe! Doeu? — Vasto respondeu negativamente. — É que eu senti uma coisa presa na sua pele, é um ferimento, não é?
— Não, não é. — Vasto levantou a camisa, revelando a constelação de Áries nas costas. — Eu sou um filho do zodíaco.
Vasto voltou o olhar para o rosto da jovem, buscando o semblante curioso que sempre faziam quando ele mostrava as pedras verdes. Ela chegou a pôr a mão na boca, com espanto, mas Vasto não conseguiu nem rir, pois um grito mais alto que a balburdia eclodiu a poucos metros.
— EI! DE NOVO COM ISSO, FELÍCIA? — Um homenzarrão surgiu com rapidez da porta da cozinha e avançou para a jovem. Foi preciso apenas um empurrão para a mulher cair no chão. Ele ainda deu dois chutes curtos no corpo dela, antes de se virar para Vasto. — Por favor, não se ofenda com o atrevimento dela, senhor. Outro dia a espanquei até ficar azul, mas parece que nem assim aprende a trabalhar sem se meter na vida dos outros. O que vai querer? Temos qualquer bebida que puder imaginar — as prateleiras não o deixavam mentir — e pratos para todos os gostos!
Vasto se perguntou se ele agiria de tal forma atenciosa se ele chegasse sujo e de cabelo engrenhado, mas logo se deu conta que sim. Da queda da moça, Vasto pareceu ser o único no recinto que se importava; e pelo tamanho do homem, com seus braços compridos, mãos peludas e olhos pequenos, não viu surpresa nele ser apreciador da violência.
— Não era para tanto! Ela só percebeu uma coisa nas minhas costas e eu mostrei, veja. Eu sou um caído do céu; do Cesaro. — O homem se esticou no balcão para dar uma boa olhada, até tocou nas pedras e na pele de Vasto, cheio de minúcias.
— Olha só, isto não se vê todo dia! EI, FUNGO, VEM CÁ VER!
De uma mesa afastada, próxima a uma das janelas altas, um homem baixo, curvado e asqueroso se levantou. Não era bem um dos que jogava cartas, estava mais para um pedinte intrometido, que se valia da companhia, mesmo que inoportuna, para exigir esmolas de qualquer valor. O homem se aproximou, com passos tortos, como o cão doente que era, e depositou a caneca de vidro no balcão, contendo apenas um dedo de bebida alcoólica.
— Olha para isso, presta atenção! — Vasto levantou novamente a camisa, um bocado desconfortável. — Ele é fissurado nessa coisa. Vamos, o que você tanto falava que ia fazer quando achasse um filho do zodíaco? Faz agora! — O homem alto gargalhou, zombando de Fungo, que não tinha coragem de fazer nada. O cabelo enorme e impermeável, o nariz pontudo, a verruga na testa, os poucos dentes na boca eram sujos e fedidos; aquela figura repulsiva olhou para Vasto com os lábios tremidos e perguntou, com voz insegura:
— Que constelação é essa?
— Áries. — Vasto não conseguiu dizer mais nada. O grito enlouquecido de Fungo o assustou – e atraiu a atenção de muitos próximos do balcão – mas a figura imunda não fez nada além de pegar a caneca de vidro e sair correndo da taberna, ensandecido e sem dar justificativas.
— Veja só, que criaturinha nojenta. Ele diz que é descendente de um dos seus. Parece que o antepassado dele fez algo tão vergonhoso que lançou a família na miséria, e fugiu largando todos para viver de esmolas enquanto as doenças não os levam de vez. Não faço a mínima ideia sobre a veracidade, se me perguntarem... Bom, é só um louco inofensivo, filho de loucos que treparam em meio aos esgotos da cidade. Mas sem mais interrupções, o que vai querer?
— Eu vim porque disseram que aqui é um bom lugar para arranjar informação. Você que é o Juanart?
— Não, esse aí já morreu faz é tempo, o lugar foi passando de mão em mão e chegou a mim. Meu nome é Luca, qualquer um me conhece por Luca da Taberna. Dependendo da natureza da informação que você quiser, eu posso te levar a um lugar muito útil... Fale baixo, por favor. — O homem se debruçou no balcão, colando o ouvido no rosto de Vasto, que prontamente o afastou.
— Não, não. Eu quero informações simples, não imagino que precise ser algo sigiloso. Eu preciso entrar no Castelo Henpakihan, mas não sei como. É só isso.
— Ora, senhor! E eu estou perdendo tempo com você? Qualquer burocrata de esquina vai te informar uma bobagem dessas, meu caro. Volte aqui quando quiser consumir. Melhor ainda: FELÍCIA, VENHA CÁ! Está vendo seu novo amigo, ele não come nem bebe, mas acho que vai gostar da sua conversa mole sobre o castelo. Veja se pelo menos consegue algum dinheiro com a informação.
— Eu sou historiadora, senhor, no que posso ajudar?
— AGORA NÃO! Você está aqui para trabalhar. Depois de sair, você vai dar sua aulinha para ele.
— E se eu pagar pelo turno dela? Você para de encher o saco? — Vasto deitou quatro moedas de ouro no balcão. O grandalhão voltou com relutância e apanhou o dinheiro. Com um sorriso sonso na cara, passou as moedas nos dedos e disse, com certa chacota:
— Pode ir, senhorita. Informe ao nosso amigo das estrelas tudo que ele desejar. E volte sempre, meu caro!
Vasto levantou e Felícia dava a volta no balcão quando um barulho estaladiço alarmou a todos. A janela da frente da taberna fora arrebentada por uma caneca voadora, que quase acertou Vasto. Do lado de fora, Fungo correu do jeito que pôde com suas pernas bambas.
— AQUELE MALDITO DESGRAÇADO! QUERO VER ELE COLOCAR O PÉ DE NOVO AQUI DENTRO, VAI SAIR EM CARNE VIVA! VOU PEGAR... — O casal saiu enquanto o dono gritava, com o rosto rubro de raiva e a mão espalmando o balcão com estrépito.
II
— É tudo muito burocrático, mas não chego a considerá-la uma tarefa difícil. Claro que não é só se apresentar no portão que vão deixar você entrar. — Felícia ainda tinha a marca vermelha no rosto, e cada vez que Vasto se virava para ela, sentia-se culpado.
— Felícia, eu sinto muito pelo que aconteceu na taberna. Será que você vai me perdoar por isto?
— Não seja idiota! Você não tem culpa nenhuma, ele que é um porco agressivo. Meu irmão fugiu quando era novo e eu fiquei por ser medrosa. Agora tenho que aguentar as consequências da minha decisão.
— Pois não devia. Eu não quero me meter em assuntos familiares, mas ele não é seu pai, é? E você já não é uma garotinha, deve ser capaz de sobreviver fora da casa dele.
— Aí é que você se engana. Sim, não sou filha dele, meus pais morreram e ele é apenas o meu tutor, o primo de segundo grau da minha mãe. Eu gostaria de trabalhar no museu da cidade como orientadora, mas nunca consegui entrar. Se eu sair sem ter um lugar certo para ir, Luca me arrasta de volta à força. Contatos para isso ele tem, e não são poucos. Ser o dono da principal taberna da capital encheu o ego dele, e ele nunca me deixaria sair sem mais nem menos. Tenho planos, mas...
— Não precisa contar se não quiser, eu prometo que não sou delator!
— É que estou concluindo outra formação. Daqui a algum tempo serei matemática, e quando terminar a formação, vou fugir. Quero encontrar o meu irmão. — Os olhos da jovem brilharam e um sorriso pueril clareou seu rosto.
— E por que não foge logo?
— Meu irmão foi para Aman-Can. Não dá para entrar lá de qualquer jeito. Eles são muito rigorosos na política populacional, e se eu entrar de qualquer maneira posso ser confundida com uma escrava. Mas com formação de matemática ou medicina, Aman-Can não me oferece perigo algum. Eles acolhem os profissionais destas áreas como se fossem nobres.
— Interessante, nunca tinha ouvido falar em Aman-Can.
— Não é surpresa, você nem conhece Kelicerata! — Ela riu, deixando Vasto sem jeito.
— Então, senhora historiadora, por que não resgata minha mente das trevas? O que tem para aprender sobre esta nação que nos dá água, comida, sol e lua?
— Aquilo ali — ela apontou para uma praça adiante, e os dois mudaram um pouco o percurso — pelo menos ele você conhece, não é?
Com árvores altas de copas largas e troncos retos, a praça tinha muito espaço verde por onde muita gente andava, conversava, alguns sentavam no chão ou em bancos para mordiscar quitutes. Se as árvores não fossem tão distantes umas das outras, ficaria até difícil perceber que estavam dentro de uma cidade; o local passaria facilmente por um bosque, exceto pelo chamariz central: uma estátua colossal de um soldado esculpida em bronze. O monumento era um tributo a um herói e memorial de guerra. Na placa nomes como Amato, Zuldur, Rei Scorpio e Amadeu, o Imortal de Câncer, apareciam em destaque abaixo de Luca Suines.
— Na grandiosa Guerra de Maciaan, ele foi o único a retornar. Muito se especulou sobre o resultado da guerra após a saída dos exércitos, mas ao longo dos anos, notícias vieram afirmando que Casul havia sido destruído. O reino ruiu, a capital não existia mais, e o único sobrevivente que efetivamente participou do combate era ele. Luca Suines.
Vasto segurou um riso zombeteiro, pois não queria desacreditar a jovem historiadora. O que ele sabia da guerra, entretanto, era muito diferente. Os registros no diário de Tiestes nunca mencionaram esse tal Luca Suines. É claro, o diário se encerra na véspera da guerra, e era possível que o tal Luca fosse do exército, mas Vasto duvidava veementemente da importância que ela atribuía a ele.
— Quase toda história recente de Kelicerata decorre dos fatos da guerra. É sério que você não sabe nada disso? Para um filho do zodíaco, você é bem menos do que se pode esperar. Sem ofensas.
— É que as pessoas falam demais do que não conhecem... Bem, me desculpe por não atender à expectativa. E sobre o rei? O que me diz dele?
— O rei? Por que quer saber dele? Não vai dizer que é ele que você quer encontrar? — Felícia estacou em dúvida, mas desatou a rir do despautério que acabara de dizer. — Não, claro que não. Ninguém fala com o rei, praticamente. Ele é só um velho doente.
— Renan, um velho doente?
— Sim, não é segredo! Quem governa Kelicerata são as quatro Famílias: Antares, Altar, Coroa Astral e Ofiúco. Isso vem do pós-guerra. Não estou surpresa de você não saber.
Enquanto a mulher ria com vontade, aproveitando o passeio mais do que achava que poderia, Vasto demonstrou uma preocupação iniludível. Edgar, ainda um furão, foi logo chamado de volta para seu colo. Quando adentraram o parque, ele soltou o filho de Virgem a pedido de Felícia – cedeu mesmo sendo uma ideia arriscada, dada natureza fugidia do animal que o garoto agora incorporava – para que corresse um pouco no chão da praça. “Renan, um velho doente? Mas ele não deve ter nem trinta ainda!”, o filho de Áries pensava, enquanto a mulher continuava seu falatório sobre o governo da nação do leste.
— Com a morte do Rei Scorpio, e consequente entronização de Luca Suines, a disputa burocrática se instaurou no Castelo Henpakihan. De um lado, Os ministros Alba e Ingrid Monroe reivindicavam o direito ao trono – algo compreensível, já que ocupavam o mais alto posto abaixo do rei – mas Luca já era adorado pelo povo àquela altura. Nunca foi provado, mas dizem que Luca e seus irmãos aceitaram ceder o posto em troca de uma posição confortável e vitalícia. Infelizmente esta resolução abriu outra discussão: Regina, a esposa do ministro morto na guerra, tinha um filho; sendo o ministro hierarquicamente equivalente a Ingrid e Alba e tendo um herdeiro, a opinião popular acatou a ideia de que Regina deveria ocupar o trono e passar para seu filho.
— Nós estamos muito longe? — Os dois já estavam de volta à azáfama das ruas.
— Não muito. E vamos justamente encontrar a Coroa Astral, a Família que se originou em Regina. Quando ela estava para ser anunciada como Rainha Regente, Alba surgiu com o anúncio de uma gravidez, abrindo novamente a discussão. Olha que loucura: Alba disse que o filho dela seria o herdeiro do trono por direito, pois a criança que carregava no ventre era não outra senão fruto de relações que tinha com o Rei Scorpio. O escândalo foi tal que Ingrid tirou a própria vida, envergonhado. Toda a altercação parecia ter chegado ao fim, garantindo a Alba o trono de Kelicerata, mas, espaventando todos, da corte à mais baixa estirpe de plebeus, inúmeros homens reivindicaram a paternidade do filho de Alba, muitos com argumentações convincentes e até testemunhas para corroborar suas histórias. A situação ficou insustentável. Não havia mais Conselho para governar até o retorno do filho de Escorpião e a briga pelo trono já tinha se tornado demasiada confusa; foi então que o maior potentado da época, chamado Bartolomeu, sugeriu uma reestruturação dos poderes. Muitos encararam aquilo com desconfiança, já que a presença do filho de Escorpião como governante fora uma incumbência do próprio Sauza, sendo assim, irrevogável. Bartolomeu, no entanto, propôs a manutenção do posto mais alto do rei, enquanto a máquina burocrática serviente sofreria reformas. Conselhos e Ministérios foram abolidos, Famílias foram criadas. Bartolomeu inaugurou Antares – que é a mais poderosa do reino – para cuidar dos assuntos fazendários, Regina, pelo seu apelo popular e origem humilde, inaugurou a Família Coroa Astral, encarregada de assuntos urbanos e de demanda popular. As duas Famílias restantes foram inauguradas por Alba Monroe e Luca Suines, mas hoje em dia quase não tem relevância: Ofiúco, para cuidar da administração territorial e rural, e Altar, para gerir assuntos internos do governo. Como o seu assunto é um apelo popular, você precisa ir até a Família Coroa Astral. Olhe, é aquela casa!
Felícia se despediu de Vasto ao chegarem próximos à última esquina, deixando o amigo com um convite para vê-la num futuro próximo e um sorriso cordial – que Vasto considerou assaz inspirador, vindo de uma pessoa com tantos sofrimentos a sustentar diariamente. Sem demorar, ele galgou o último trecho até entrar na casa da Família Coroa Astral. A construção não era alta, mas ocupava quase o quarteirão inteiro. Além da porta larga na entrada, inúmeras janelas idênticas e paralelas formavam a fachada pintada de branco. No alto da entrada um brasão em dourado identificava o local com o símbolo da casa: o desenho de várias setas reversas.
Ao entrar, firmando os pés no piso vermelho, Vasto sentiu-se desorientado com o que encontrou. Pessoas saindo com pressa, algumas entrando depois dele, todas preenchendo o único caminho a seguir, estreito e com pé direito altíssimo. Uma porta foi indicada por uma mulher de vermelho; todos que entravam, destinavam-se para lá, e talvez a lerdeza de Vasto tenha despertado na mulher o desejo de indicar alguma direção ao homem perdido. Adiantando-se, o filho de Áries entrou num grande pátio a céu aberto, onde viu o aglomerado de cidadãos se repartindo e juntando novamente em grupos menores, aparentemente necessitando de soluções para problemas semelhantes, pois cada membro dos pequenos grupos parecia ter uma reivindicação que culminava numa vontade conciliadora unificando o grupo em indignação e pressa. Vasto não tinha intenção de se compadecer com problemas alheios, nem o caso dele poderia ser semelhante ao de outro ali presente, então se absteve de formar ligações. Ao contrário, buscou conhecimento diretamente por um funcionário – àquela altura já havia percebido que a vestimenta longa e vermelha era um uniforme de trabalho, e facilmente alcançou alguém para lhe ajudar.
— Preciso saber de tudo isto — o funcionário apontou um papel com discriminações que não atingiam Vasto. Eram, em grande parte, designações relacionadas à cidade: moradia, atividade exercida, família a que pertencia. Vasto deixou de lado o papel e falou objetivamente o que pretendia, e demonstrou seu desejo de resolver logo a pendência. — Tudo bem, espere aqui por um minuto.
O homem, inicialmente aborrecido com a falta de cooperação de Vasto, se tornou disposto e até empolgado ao encarar a constelação de Áries por debaixo da capa azul e da camisa do filho do zodíaco. Sem muita demora, voltou apontando para ele, deixando a responsabilidade para uma senhora de ar cansado, com o rosto mais jovial que a sua postura.
— Olá, rapaz. Meu nome é Madalena, eu sou uma das trabalhadoras da Coroa Astral e estou muito feliz em servi-lo. Seu nome é Vasto? Fiquei sabendo que é um caído do céu, é verdade? Não que eu esteja desconfiada, mas é que morei na juventude lá para os lados do Cesaro, bem ao norte de Porocop. Posso dar uma olhada nas suas marcas? Hum, Áries, você disse? Interessante! Eu não sei se posso te ajudar com o seu pedido de falar com o rei, mas sendo você um caído do céu como ele, acho que não terá dificuldade em convencê-lo para uma audiência, mesmo no estado que ele se encontra. Veja só, mesmo nós, que temos acesso ao castelo, raramente o vemos; o estado de saúde dele exige um cuidado incessante. Certa vez eu estava num aposento que receberia o Rei Renan, e não que eu seja enxerida, mas, estando lá, qual seria o problema de ficar um pouco mais só para vê-lo? Pois não é que me tiraram de lá antes do homem chegar? Logicamente não precisaram me tirar a pulso, longe disso, mas ainda assim, que mal poderia haver em uma mulher quieta num canto do salão? Outro dia, quando comentei sobre o incidente, me disseram que talvez a doença do rei pudesse ser contagiosa, e a minha retirada era só uma medida para preservar minha própria saúde, mas vá lá! Fosse a tal doença tão contagiosa, Orion não manteria o enfermo morando na casa dele! — A senhora parecia inconformada só de lembrar o acontecido, ainda que tudo aquilo fosse irrelevante para o momento. — Venha cá, meu jovem, você foi requerido pelo Mestre Ina. É uma das maiores autoridades de Kelicerata, por favor, se comporte na presença dele!
Vasto não entendia muito bem o significado de tudo aquilo, porém era claro que seu problema estava sendo considerado, ainda que a solução não viesse tão rapidamente o quanto ele gostaria. Acompanhou Madalena pelos corredores de piso vermelho e paredes brancas, deixando no pátio todos os cidadãos esperando por ajuda da Coroa Astral. Depois de virar em algumas curvas e espiar por inúmeras portas cheias de escriturários e cidadãos sendo atendidos – alguns revoltados, é verdade – Vasto chegou ao seu destino. A sala em questão era maior que as outras que observara. Comprida em extensão, as laterais abarrotadas de livros e arquivos, o aposento revelava no fundo, além das fileiras de cadeiras estofadas, um atril de madeira. Debruçado sobre ele, um senhor de traços finos, corpo gordo e cabelo volumoso fechava um livro e levantava as vistas para os recém-chegados.
— Aqui está ele, Mestre Ina! O homem do norte de Porocop, e é um filho do zodíaco, eu verifiquei! Precisa de mais alguma coisa, Ina? — Ela tocou o ombro dele, solícita.
— Não, muito obrigado, Madalena. Gostaria apenas de fazer umas perguntas, e depois retomo meus afazeres. Por favor, sente-se, jovem!
Vasto acatou o pedido e Edgar, que havia se mantido quieto, correu dele e foi até a janela. Como estava fechada e o furão continuava comportado, Vasto decidiu não fazer nada, apenas aconselhou Madalena a não tocá-lo. A mulher hesitou um pouco, mas aceitou a permanência do animal na janela, saindo em seguida e deixando os dois a sós. Frente a frente, Vasto sentiu uma estranha familiaridade no rosto de Mestre Ina, não um lapso nostálgico, mas algo que o lembrava de um rosto bem recente. Sem saber se devia iniciar a conversa expondo seu problema, ele esperou que o anfitrião o fizesse.
— Vasto! Como é bom ver alguém de tão longe por aqui. Diga-me uma coisa, rapaz, quando olha para mim, consegue ver alguém? Lembrar-se de alguma pessoa, uma mulher? Não estranhe, por obséquio, eu não sou tão excêntrico como pode estar parecendo — o homem se escarrapachou na cadeira — entenda, Vasto: eu tenho minhas raízes naquele lado também! Não nasci tão ao norte quanto você, claro, mas minha mãe é de uma das cidades mais longínquas. Caxa, já ouviu falar? Bom, estou deduzindo que você conheça, mesmo não sabendo nada sobre sua vida, mas é que não consigo deixar a excitação de lado. Sabe — ele continuava a falar antes mesmo de receber uma resposta de Vasto, um costume que o rapaz já vinha percebendo ser comum na capital — eu sempre fui criado aqui na capital, meu pai foi muito rígido com minha educação. Por conta disso, nunca pude conhecer minha mãe. Diga-me logo, rapaz! Já foi ou não na tal Caxa? Conhece alguma Natália de lá?
— Não, senhor. Até já fui na vila, mas não criei laços ao ponto de chamar os moradores por nomes próprios. Desculpe por não ter serventia; mas quanto a meu problema...
— Entendo. É, acho que fui verdadeiramente esperançoso neste assunto, ora veja só! Um homem com meu tamanho, tão empolgado como um pirralho. Desculpe, estou sendo sincero; é que esta dúvida me acompanha desde minha tenra idade. Meu desejo de encontrar minha mãe é algo que não consigo controlar, apesar de haver um tanto de hipocrisia no que digo, afinal nunca me dispus a correr mundo afora atrás dela. Uma vez tentei, na adolescência, mas fui impedido pelo meu pai. Acredito que ele nunca desejou que eu fosse até ela, já que certamente é uma plebeia, mas sabe como funciona o coração de um filho, não é? Oh! Desculpe, veja só que asneira estou falando para um filho do zodíaco! Espero que não tenha se ofendido. Sim, sim, seu problema: fui informado que você quer uma audiência com o rei, estou certo? Desejo perigoso, garoto... Sabe que o Renan vive indisposto, não é? Para dizer a verdade, ele quase não surge no castelo, ele vive recluso na casa de Orion, o chefe da Família Antares. Quem sabe, talvez sua origem facilite as coisas. Posso te entregar um passe de entrada para o castelo, mas lá você precisa se virar sozinho. Pode não parecer, mas eu sou o chefe da Família Coroa Astral. Sem muito glamour aqui, não acha? Lá dentro é muito diferente.
— O que quero é justamente um meio de entrar no Castelo Henpakihan, se conseguir isto para mim, já será uma grande ajuda!
— Bem, então fico feliz de ser útil a um cidadão, este é o papel da Coroa Astral! Recomendo novamente: tenha cautela! Orion não é dado a visitas. Faça o que tem de fazer, mas se achar muita dificuldade em ver o rei, por favor, não insista. Os Antares são uma Família de grande influência, eles têm representantes em todos os cantos da cidade, aborrecer o chefe não é uma coisa muito inteligente. — Mestre Ina catou uma insígnia dourada com o símbolo da Coroa Astral de uma gaveta próxima e entregou-a. — Que Sauza lhe guie. E lembre-se: nada é muito alto para se almejar, quando achar que está sem esperanças, lembre que um compatriota plebeu nascido em Caxa chegou a ser um burocrata de alto nível.
A despedida pareceu um tanto exagerada, mas Vasto aproveitou a conversa com Mestre Ina. Definitivamente aquele era um homem bom, e não pretendia desperdiçar a ajuda fornecida. Saiu apressadamente da sala, e quando trespassou o vão da porta, o burocrata já estava compenetrado em sua leitura, o que o impediu de avistar o mesmo que Vasto. Madalena, arqueada sobre a porta, tinha ouvido toda conversa. O caído do céu olhou novamente para Mestre Ina, totalmente alheio ao que se passava fora das páginas, e intentou expressar algum tipo de exclamação, ainda que não soubesse realmente do que aquilo se tratava. Os olhos de Madalena, entretanto, se encarregaram de petrificar Vasto, e o rapaz não conseguiu nada além de pasmar perante um semblante tão emocionado. A mulher estava chorando, com um quê satisfeito, talvez carente, mas não triste. Ela não esboçou qualquer gesto para se explicar, pelo contrário, catou de dentro das vestes um objeto achatado, entregou na mão do visitante e correu, desajeitada como os anos lhe permitiam correr. Ele olhou para a insígnia, tornou a olhar uma última vez para Mestre Ina, e resolveu sair do prédio, sem entender realmente o que tinha acabado de presenciar. Iluminado pela luz diurna, ao pôr os pés do lado de fora, já nem se sentia incomodado com o paradeiro da velha mulher, apesar de ter parado por alguns segundos no pátio, efemeramente sequioso por alguma explicação de Madalena, que não foi encontrada.
III
A capital era uma cidade para homens, não para meninos sonhadores e camponeses sem ambição, Silvestre já havia notado. Seu passeio se mostrava mais divertido que o esperado, e ele vinha cultivando a expectativa há muito tempo, já. O cenário não era nada de extraordinário, nem os afazeres das pessoas tão diferentes do normal, mas a quantidade, ah! O filho de Leão chegou a parar algumas vezes, só para deixar o fluxo correr ao redor de si. Pessoas cansadas, alegres, crianças, velhos rabugentos, senhoras curiosas, cavaleiros e soldados, comerciantes e desocupados. Era muita gente, era muita gente. Silvestre nunca se deixou abater pela tristeza; quem notasse seu deslumbramento em Kelicerata poderia pensar que os anos que viveu isolado no Cesaro com frequentes visitas a vilarejos não muito populosos marcaram uma época de frustração e descontentamento, mas não era verdade. O Leão era autossuficiente, ele era o bastante. Talvez nem a tristeza fosse páreo para ele. Mas alguém que conquistou a felicidade já não possui a plenitude? Qual seria o próximo objetivo, a próxima busca? Certamente esse tipo de questionamento não amarrava os pensamentos de Silvestre. Ele estava ali e estava animado. Em Kelicerata, a maior cidade do mundo.
— Seu vagabundo trapaceiro! — O grito alertou quem estava do lado de fora. Um homem quebrou os vidros da janela e provavelmente alguns ossos quando foi jogado para fora do lugar. Tinha caído de lado, por cima do braço já na rua de pedra e ali ficou sentido dores e pedindo ajuda. É claro que ninguém se atreveu a levantar o ferido, especialmente quando um brutamonte vestindo calças e botas saiu pela porta, enrubescido e com olhos fixos no homem caído. Todos se afastaram, formando um círculo ao redor do coitado e um caminho para o agressor passar. Silvestre se aproximou, e foi até o limite da precaução, ficando de lado com os mais curiosos. Seguindo o homenzarrão, outros saíram do que ele pensou ser um armazém. Entre os tais agitadores, apareceu uma mulher baixa, bonita, de traços alongados que estranhamente combinavam com a pequena estatura. Ela foi a primeira a chamar a atenção de Silvestre, pelo contraste que imprimia à cena. Atrás dela, outros impressionaram mais: dois soldados, paramentados com suas vestes e lâminas embainhadas.
Muitos dos que presenciavam a surra no meio da rua achavam que os soldados interviriam o quanto antes, mas eles continuaram quietos, como se a ordem urbana não lhes fosse responsabilidade. Silvestre notou, porém, quando um deles agarrou a mulher bonita pelo braço, puxando-a para longe da briga – que ele nem se preocupava mais em ver, estava muito chata. “Espera, quero ver mais um pouco”, ele conseguiu entender dos lábios da mulher, antes que ela fosse arrastada para a multidão.
Um apertão no antebraço, uma pisada no tornozelo e um empurrão súbito na região cervical foi o que Silvestre precisou para derrubar o homem e livrar o braço dela. Ele caiu sem nem ver quem tinha atacado. Mais uma rodinha de medrosos se abriu para ser delimitada pelos curiosos, desta vez com Silvestre no centro.
— Eu acho que não tem nada demais em olhar mais um pouco aquela surra, embora eu ache que está quase acabando. Ela mirou o rosto alto de Silvestre, tão assustada quanto o soldado caído. — De qualquer forma, não acho que ele tenha te tratado cordialmente e mereceu o que levou.
— Corre! Procure outros Antares, eu vou cuidar dele! — O segundo soldado gritou, novamente sendo muito rude com a mulher bonita. Para a surpresa de Silvestre, ela obedeceu. A mulher se chocou contra a parede de curiosos e abriu seu caminho de fuga. “Além de tudo, é mal agradecida”, pensou o Leão, analisando o soldado que se colocava à sua frente. Era forte, parecia bem treinado com a espada e tinha um olhar compenetrado no rosto enquanto apontava a lâmina para o adversário. O segundo estava se levantando, mas foi tolo em não empunhar logo a sua espada. Silvestre o agarrou como se fosse um boneco de palha e arremessou contra o outro. Uma briga esquisita, alguns acharam engraçada, mas foi o necessário para derrubar os dois e dar tempo para Silvestre arrancar a espada da mão do inimigo e dar as costas aos dois. Virado para os curiosos, ele ergueu a ponta da lâmina e agitou, fazendo o caminho se abrir para ele. Quando o filho do zodíaco já estava além do muro de gente, os dois soldados vieram na retaguarda, afoitos e ofendidos. Atacariam pelas costas sem pestanejar; infelizmente para eles, Silvestre já estava de volta ao fluxo, e correu na direção da mulher bonita.
Era uma corrida injusta. Silvestre já era muito mais alto que a maioria das pessoas, e suas pernas longas tinham velocidade inigualável. A mulher de cabelos escuros e esvoaçantes, aparentemente leve, porém carregando o peso de dez anos a mais que seu perseguidor, era pequena e cansava facilmente. Tentou virar o máximo que pôde, mas o truque não enganou Silvestre, que já podia tê-la alcançado segundos após disparar. Preferiu brincar de caçador. Quanto tempo seria necessário para ela cansar, ele não tinha ideia, mas manteve um ritmo condizente com ela, chegando até a ficar entediado na terceira curva.
Ela parecia rendida à canseira após um largo cruzamento, e olhou para trás, quase se apoiando nos joelhos. Quando viu o jovem sorridente chegando perto, se pôs ereta novamente e entrou num portal alto de pedra. Silvestre olhou para o lugar e era muito alto. Altíssimo. A entrada usada por ela também estava abarrotada de gente, o que o fez parar a corrida na hora de entrar. Ao passar pela entrada arqueada, notou que aquilo era um verdadeiro túnel com transeuntes que iam e vinham carregados de emoção. Lá no fim, perto da luz, viu a mulher bonita estender um objeto para um soldado, o porteiro.
Ele carregava uma lança. No ponto médio do túnel ainda segurava firme no cabo da lança, mesmo após desmaiar com o soco do filho do zodíaco. Tinha sido tão fácil quanto o esperado e Silvestre se encaminhava despreocupadamente para o portão desprotegido. A luz do túnel se abriu com gritos e êxtase, bebida jogada para o alto e pernas saltitantes nas enormes arquibancadas. A arena amarelada estendeu seu chão banhado pela luz à frente de Silvestre, com todo resplendor de...
— Ai! Está louca?! — A mulher bonita era esperta. Desistiu de fugir para emboscar quem corria no seu encalço. O plano deu certo: ela subiu os primeiros degraus, arranjou algo para golpear – o banco de madeira que duas crianças usavam para sentar e ela escandalosamente emprestou, afastando as crianças com um empurrão – e aguardou pelo seu algoz; quando ele apareceu, a madeira desceu com força na nuca do loiro. Infelizmente, havia algo de incomum nele, e o máximo que fez foi expressar um pouco de dor e chama-la de louca.
No chão, ela se viu ofegante e indefesa contra aquele homem que tinha se provado inatacável. Olhando nos olhos verdes, percebeu só um menino, e teve medo do que ele poderia fazer com ela. “Quanto mais jovens os homens, menos razoáveis são.”, ela pensou. E corretamente, pois o que Silvestre fez após olhar a mulher caída foi voltar à contemplação da arena, chegando a se aproximar do parapeito que delimitava o terreno de combate.
— Ei! O que está fazendo? — A mulher levantou, ajeitando o cabelo. — Ei!
— Ele não é grande coisa.
— Hã? — Silvestre apontou para o homem que combatia na arena. De armadura reluzente, um homem alto de barba afeitada e cabelos escuros e curtos lutava contra três inimigos. Um já estava encaminhado para a morte, com boa parte dos trapos que vestia já empapados de sangue e mal se mantendo sobre as duas pernas. O homem de armadura lutava com duas espadas curtas, e demonstrava uma perícia rara em seus movimentos. — Ah, aquele ali? Não é grande coisa mesmo! O nome dele é Bartolomeu, não passa de um exibido que não tem nenhuma serventia real. Mas você poderia se explicar, moleque? Meu coração ainda está acelerado de tanto que tive que correr de você, e agora vai ficar por isso mesmo? Por que nocauteou os soldados? Quem é você, afinal de contas?
— Eu sou Silvestre.
O último guerreiro caiu no chão, degolado. A multidão aplaudiu o combate, enaltecendo a performance de Bartolomeu, que agradeceu com mesuras no centro da arena. Um soldado surgiu na entrada da arena, conduzindo uma biga.
— Eu quero lutar com ele. Ele não pode sair achando que é tão bom, ele não é nada!
— O que é que você está dizendo, garoto? Silvestre! — Bartolomeu tomava as rédeas da biga, enquanto o soldado cobria suas costas com uma capa feita de enormes penas alvinegras. O soldado desceu, deixando Bartolomeu sozinho, e ele guiou três voltas, tão exaltado quanto seus fãs, antes de virar para o portão de acesso à arena. Silvestre correu por boa parte da arquibancada procurando algum modo de chegar até a arena; quando viu que seu oponente – era assim que já o encarava – estava prestes a sumir do local, ele recorreu ao último recurso: saltou da arquibancada até o chão de areia e correu com velocidade atrás da biga, causando furor e expressões perplexas nos rostos de vários expectadores. A luz do sol se perdeu quando ele entrou em outro túnel, e mesmo a armadura reluzente de Bartolomeu era difícil de esquadrinhar. Seguiu o trote dos cavalos até o fim, e sua presença ali só não surpreendeu mais que o que disse quando foi avistado.
— Lute comigo!
— Quem é este? — Um velho de pele muito negra perguntou a Bartolomeu, que retirava sua capa.
— Nunca vi, mas parece que gosta de falar bobeiras. Como entrou aqui? É algum tipo de palhaço?
— Ele tem porte de lutador, Bartolomeu. Pode até gostar de fazer palhaçadas, mas certamente é um palhaço espadaúdo.
Bartolomeu tomava um longo gole de água fria enquanto desafivelava parte da armadura, quando Silvestre falou novamente:
— Eu assisti a sua luta. Você não é nada de mais, mas age como se fosse perito em combate. Eu quero lutar com você. Quero mostrar que sou melhor para aquelas pessoas.
A gargalhada de Bartolomeu ecoou no lugar. Era um local insalubre, abafado e mal iluminado – a pouca luz de sol que entrava por estreitos buracos retangulares na parte alta da parede auxiliava a luz das velas. Era um tipo de galpão de depósito. Muitas armas amontoadas no que parecia ser uma arrumação preguiçosa. O homem de pele negra saiu para cuidar dos cavalos e da biga, deixando os dois se desentendendo com privacidade.
— Garoto, pelo visto não sabe que os desafios hebdomadários só ocorrem à noite e mediante carta formal; essas lutas diárias são apenas meu passatempo pessoal. E mesmo assim, eu só luto contra os detentos mais bem treinados, não pense que pode render alguma luta só por ter nascido com um pouco de altura.
— Eu não me importo com o que você acha de mim, quero então marcar nosso duelo para a próxima noite, ou pode ser qualquer dia durante seu passatempo, eu apenas quero te vencer na frente de todos. Não gosto dessa glória infundada que dirigem a você, não é honesto com o propósito do combate. — Mais uma gargalhada.
— Propósito do combate? E que propósito seria esse? Esclareça minha ignorância, e, por favor, seja indulgente com minha atitude inadequada! — Zombou.
— O propósito do combate é um, apenas: ser o melhor. Ou melhor dizendo, ser tão bom quanto eu. Qualquer guerreiro treinado precisa ter isso em mente, ou não passa de um engodo.
As palavras alcançaram Bartolomeu, que atirou o copo e a jarra com água para o lado. Avançou para Silvestre, empurrando e agitando o rapaz. O caído do céu não se fez de rogado, defendeu todos os ataques, chegando a contra-atacar com um soco no rosto de Bartolomeu, que cambaleou. O sangue ferveu com aquele desplante, e com dentes rangendo ele avançou para a bancada, onde havia acabado de depositar suas duas espadas curtas. O homem negro pediu controle, mas nada podia ser feito àquela altura. Silvestre se viu acuado e, para deslumbramento dos outros dois, defendeu os golpes com as mãos nuas, espalmando o lado das lâminas com intrepidez vexatória. Já não se podia evitar o combate mortal, tal era a ofensa que Bartolomeu carregava após a sequência de golpes ter sido avacalhada. Bartolomeu não podia engolir tais melindres, e avançou com tudo, inclusive com descuido. Um, dois, três e quatro golpes inúteis contra uma pessoa desarmada. No quinto golpe, o contragolpe veio rápido demais, e não tinha como ser diferente: o local era pequeno, a luta era um corpo-a-corpo ágil e espontâneo, sem muito o que premeditar. O homem negro suspirou quando encarou o punho de Bartolomeu se virar contra ele mesmo, rasgando o tronco e perfurando a pele na altura do pulmão. Como um desconhecido aparece da escuridão do nada e funesta um dos maiores guerreiros do reino com tamanha facilidade?
— Socorro! Ajuda!
Não precisava ter chegado a este ponto, e Silvestre sabia. Tanto sabia que preferiu ficar no local, junto a Bartolomeu. Quando o homem voltou, trouxe um séquito muito bem paramentado, e Silvestre se deixou prender, mas não o levaram para masmorras ou prisões, jogaram-no em uma jaula ali mesmo, no depósito. O castigo era merecido, ele sabia e passou boas horas pensando no que tinha feito.
— Vasto não vai gostar nem um pouco quando descobrir...
Ele fechou os olhos, pois parecia o certo a se fazer na escuridão.
IV
— Foi este menino? Olhe só para ele!
— Por Sauza, senhor! Sabe muito bem que eu nunca menti para o senhor. Jamais me atreveria. Ele pode parecer imaturo, mas o porte dele evidencia bem que é um lutador nato.
— Mais do que isso, se ele realmente fez o que você me contou... É estranho, não é? — Houve um breve silêncio. — Todo o poder que eu tenho, todos os servos da minha casa não serviram de nada quando um sem brio resolveu aparecer e matar o meu filho mais amado. E por quê? Por nada... Por ego. — Outro silêncio, um pouco mais breve. — Vamos logo terminar com isso.
Um soldado passou um pedaço de madeira pelas grades e cutucou Silvestre. Ele estava acordado, ouviu tudo, mas agora que algo o fizera abrir os olhos, era a hora de sair daquela jaula. Como é engraçado o filho de Leão; enquanto gente de todo tipo vive no eterno conflito entre vontade e possibilidade, Silvestre estava acima de tudo. Para ele, a vontade era tudo e a eventual impossibilidade, nada - no máximo, pode-se dizer que era um obstáculo que ele transporia se quisesse. Pôs-se de pé e, agora que tinha aberto os olhos, sua vontade era de sair – que originalidade, que outro tipo no mundo relacionaria essas duas coisas? O que restava saber era se abririam caminho, ou se ele teria que arrebentar a jaula e matar cada um que entrasse na sua frente.
Abriram a porta da jaula, e um homem velho de olhar cansado, boca miúda e ralos cabelos escuros se colocou diante dele. Olhos altivos se cruzaram.
— Você quer lutar na arena, não é verdade?
— Sim.
— Matou um grande homem, um símbolo em Kelicerata, só para isso?
— Matei porque ele foi imbecil. Eu o persegui até cá buscando um meio de mostrar a ele o seu lugar, a glória que caía sobre ele era indevida, uma ofensa a Sauza. Ele me atacou e eu reagi. Sei agora que meu desejo é apenas ser alvo da mesma glória, mas naquele instante me pareceu genuína a ideia de punir um farsante.
— Ele quer se mostrar, e buscou um duelo com meu filho para servir de pretexto. Ele matou Bartolomeu e agora não tem mais o pretexto para se aparecer. É um idiota, no final das contas! — O velho virou-se para os soldados que o acompanhavam, e nenhum deles riu do tom debochado. Orion achou satisfatório; demoraria para que ele próprio achasse graça em alguma coisa. A ironia contida em suas palavras emanava de muito ódio e nenhum escárnio. — Pode ir, Cristal. Obrigado.
Uma figura suspeita misturada aos soldados se virou para sair do local. Dois dos soldados a escoltaram. Não seguraram Cristal, sequer olharam feio para que ela andasse mais rápido. Pareciam até respeitosos, receosos. Não tivesse captado isto, Silvestre avançaria novamente para salvar a mulher bonita, agora com parte da face coberta por um capuz escuro.
Quando Cristal desapareceu de vista, o chefe da Família Antares voltou seus olhos ferinos para o semblante jactoso de Silvestre.
— Eu sei que meu filho atacou primeiro. Não pense que vim aqui para tirar sua cabeça, ou coisas do tipo, longe disso, aliás! Ele era um bom homem e a cidade o amava; foi uma perda grande não só para a família. É por isso que amanhã, excepcionalmente, realizaremos um grande evento no Impacta, para servir de homenagem à imagem de um líder tão benquisto. Eu quero que saiba que temos em mente o maior espetáculo já montado em Maciaan! Os desafios que honrarão meu filho só poderão ser superados pelo maior de todos os guerreiros. Este guerreiro, se não era ele, só pode ser aquele que o matou. — A boca pequena fez uma pausa, e os olhos cansados se avivaram, similarmente àqueles momentos de valentia sublime em que só os homens de coração severo conseguem segurar as lágrimas, e somente os de igual condição percebem tamanho autocontrole.
Os rostos continuaram se visando, impassíveis.
— Diga seu nome, estranho.
— Se sou estranho a alguém, é meramente uma situação passageira, porque eu sou o que veio para ser conhecido. Meu nome é Silvestre, sou o filho de Leão, o homem mais fantástico que já pisou em Maciaan.
— Então, Silvestre. Devo acreditar que você comparecerá amanhã nesta arena e vencerá todos os desafios?
— Se não acreditar, certamente é muito tolo ou muito desconfiado.
Finalmente a expressão de Orion mudou. Chocado com aquela resposta, ele chegou a se virar de costas, confuso, quase que procurando alguma coisa – ou alguém, mais especificamente – nos lados por onde Cristal, a bela mulher de cabelos pretos tinha desaparecido. Sem encontrar nada, ele retornou uma última vez para Silvestre, visivelmente irritado:
— Pois bem, até amanhã à noite, garoto silvestre! — O chefe da Família Antares saiu, seguido pelos seus soldados, deixando o caído do céu para trás. Quando Silvestre saiu do Impacta notou que já era noite, e que alguns soldados, visivelmente Antares, o seguiam de longe. Não se preocupou com eles e foi direto para a estalagem, onde encontrou Vasto.
***
Edgar, para a sorte de todos, permaneceu pacato por todo fim do dia graças a uma garotinha hospedada no local, que brincou e alimentou o animal enquanto os dois estavam fora. A menina estava tão afeiçoada ao furão que pediu encarecidamente para ficar com ele, sem saber a verdadeira natureza de Edgar. Vasto permitiu que ela brincasse um pouco mais naquela noite, até que a responsável por ela a chamasse para dormir, e naquele ínterim, ele contou tudo que fez durante o dia a Silvestre.
— Então nem a tal insígnia da Coroa Astral te deu acesso ao rei?
— Eu consegui andar bastante pelo castelo, mas a todo o momento um guarda vinha conferir a insígnia e alegava que eu não tinha permissão para estar em certos pavilhões. Quase cheguei a usar a insígnia de Antares, mas não sei... O jeito que a recebi foi muito suspeito. De qualquer maneira, é a única opção que tenho. Amanhã voltarei lá no Castelo Henpakihan e vou andar em tudo quanto é lugar com ela, até achar Renan.
— Talvez você não precise se esforçar tanto... — Silvestre olhou desajeitado, e o filho de Áries soube que ele havia feito algo de errado. — Não precisa me olhar assim! Eu, bem... Meio que fui convocado para me apresentar no Impacta amanhã à noite...
— E o que tem a ver? Você acha que o rei comparece a todas as lutas que acontecem lá? É uma forma de atrair a atenção do povo, distrair a população urbana. Eles têm mais o que fazer, Silvestre.
— Não, neste caso eles vão sim. E eu encontrei a Cristal, também — ele completou, encabulado.
— COMO É? ACHOU CRISTAL E DEIXOU ELA IR EMBORA? Cada novidade que você conta me convence que trazer você fodeu com todo o plano!
— Não precisa se exaltar desse jeito, nervosinho! Amanhã você encontra Renan e ele traz ela para a gente. Não vai ser difícil, ela faz parte da corte também!
— Seu idiota, não entende que o caminho inverso é muito mais coerente? ELA PODE NOS LEVAR A RENAN MUITO MAIS FACILMENTE!
— Podia, Vasto. Podia. Amanhã tudo se resolve.
— Não. Eu quero saber exatamente o que aconteceu, não estou mais afim de nenhuma surpresinha que você tenha guardado. O que aconteceu? Em detalhes, temos a noite toda.
Silvestre explicou todo o ocorrido desde o momento em que saiu da estalagem, e o que encontrou após a fala foi um irmão muito preocupado.
— Você sabe que não pode se distrair, não é? Eles vão montar o circo inteiro só para te matar, Silvestre. É, eu sei, mas mesmo assim, se precaver nunca é demais. E se chegar a acontecer o pior, por favor, tente minimizar os danos. Vai ser melhor se Reimi estiver por perto. Vou deixar ele sobrevoando o céu acima do Impacta, só no caso de precisarmos.
— É uma boa ideia. Aonde vai?
Vasto ficou de pé e foi até a janela do cômodo.
— Estão aí fora. Podem estar esperando para te matar na frente da cidade inteira, mas se tentar fugir antes do tempo, não vão hesitar em arrancar o seu couro agorinha num beco escuro. Então vamos seguir esta nova linha: esperamos até o evento e lá agimos. Por favor, não crie confusão com esses soldados que estão te seguindo.
— Pode deixar, Vasto. Eu nunca faço nada de errado.
Os irmãos se prepararam para dormir, mas antes de pegar no sono ainda conversaram bastante. Silvestre contou sobre Cristal, e os dois adormeceram sem descobrir o papel dela naquilo tudo.
VASTO
SONHOS E REALIZAÇÕES
V
O grupo de cinco chegou eufórico a Caxa, um pouco depois do anoitecer, cantarolando versos sobre a vida de vaqueiro, embora só um deles se diferenciasse dos demais, com sua indumentária característica de ruralista vulgar. Os viajantes cumprimentavam com vigor cada um que lhes mostrava a cara na rua, e recebiam mensagens de apoio e demonstrações de afeto em resposta; se não fossem nativos, eram conhecidos do lugar. Sem fazer alarde, Vasto se separou do grupo, virando-se para uma rua estreita, mas logo foi denunciado publicamente pelo vaqueiro.
— Já vai tão cedo, Vasto? Por que não bebe um pouco conosco?!
— É que no caso dele, tem que recitar poemas e se inteirar das novidades, ou Helena faz de conta que não o conhece! Há, há! — Outro gritou, espremendo beiços num beijo cômico enquanto o vaqueiro colocava o laço ao redor do pescoço e ria junto.
— Pois nem precisam beber, já estão engraçadinhos demais! — Vasto retrucou, finalmente dando as costas aos quatro companheiros e entrando no beco que o levaria a Helena. Apeou no pátio e prendeu a montaria; quando parou em frente à porta, seus dedos estavam suados e ele gostaria de ter um presente, nem que fosse só um ramalhete de flores do campo – quando adentrou a casa de Cíntia, lembrou-se de ver um senhor vendendo lírios na entrada da cidadezinha e ficou ainda mais nervoso com sua falta de tato.
Cumprimentou quem foi aparecendo, na maioria dos casos com abraços efusivos, mas a pessoa que ele procurava estava no salão, indicaram. Ele não gostou nada disso. O cheiro de fumo e perfume cobria seu corpo enquanto ele entrava mais e mais pelo corredor principal, e quando chegou ao salão, mal sentia o próprio suor exalado pela pele. Não havia música, pois o pianista estava prestes a chegar, mas quem conversava o fazia exageradamente, cortando o silêncio pudico que habitava aquela casa profana na maior parte do tempo.
Seis mesas ocupadas, de, no mínimo, quinze. Em cima, bebidas e cartas de baralho jogadas de modo frouxo. Embaixo, apertões e dedos inquietos buscavam a carne mais macia, pelo calor – como mosquitos, ziguezagueando. Duas mesas adiante ele encontrou Helena, e ela ergueu o queixo e abriu um sorriso sincero na direção dos olhos dele. Despediu-se do homem e da colega que estavam à mesa – Vasto apreciou que ela não fez mais que tocá-lo no ombro ao sair – e deu passos saltitantes de alegria até ele.
Antes que ela retirasse o rosto da camisa suada, ele reclamou:
— Eu arranjo uma casa de campo para nós por três dias, e quando venho te buscar vejo você aqui no salão? — Ele não queria ser tão rabugento com ela, mas o jeito que falou soou como um resmungo. Helena não deu importância.
— Mas eu não estou trabalhando, veja! — Ela se afastou um passo, mostrando a roupa simples e nem um pouco provocante que vestia. — Estou liberada, só vim porque queria passar o tempo conversando, só estava esperando você chegar, meu amor.
— Vasto, menino! Não fala mais comigo? Tem gente aqui, além dela! — Cíntia chamou a atenção. Estava sentada tão perto que podia dar-lhe um beliscão, mas Vasto a atendeu cheio de mesuras – só após dar a segunda olhadela na mesa onde Helena estivera sentada, e o homem ainda olhava para ela, interessado.
A dona da casa matou a saudade do filho de Áries e apresentou o homem que estava conversando com ela. Segundo o cliente, salteadores planejavam atacar o vilarejo no amanhecer do dia seguinte. Tinha escutado o plano algumas horas antes, na margem de um regato que passava ao norte de Caxa.
— Acredita nisso? E Silvestre estava aqui até esta manhã... Podíamos entrar em contato com alguém que está de partida, se mandarmos uma mensagem escrita, quem sabe o Duque não manda alguns soldados cá, só para assustar os bandidos...
Vasto não suportava bandos de salteadores. Achava o norte de Porocop tão melhor que o sul justamente por não haver tantos desta laia perambulando pelas cidades. E sabia que o Duque não se mobilizaria para proteger Caxa de um ataque, ao menos não um desimportante como aquele parecia ser. Provavelmente não eram assassinos ou coisa do tipo, só alguns bandidinhos de meia tigela em busca de comida e algum dinheiro. “Eu posso dar conta disso”, ele pensou.
— Mas que bobagem é essa, meu filho? Silvestre deixou Reimi lá no quintal dos fundos, por que não pega e vai atrás dele? Não precisa se arriscar!
— É, amor. Vamos embora para a casa de campo, não temos nada a ver com isso, Cíntia vai cuidar das coisas aqui da casa.
— Não. Eu POSSO resolver este problema. Deixem de se preocupar comigo por um minuto, por favor. Silvestre deixou Reimi para mim? Melhor ainda. Helena, vamos dormir. Amanhã vocês nem vão ver a cor desses bandidos, tudo que precisam fazer é se certificar que eu acorde antes do raiar do sol.
— Eu vou me aprontar enquanto você banha, então. — Disse Helena, visivelmente empolgada com o que viria a seguir.
— Não, Helena, não precisa se aprontar, eu vou só dormir depois do banho. Só dormir. — Ele levantou e saiu do salão
— Paciência nunca foi uma virtude desse menino... Vá logo, minha filha, e veja se não brigam. Aconteça o que acontecer amanhã, da nossa casa eu sei cuidar. — Cíntia deu um beijo na testa de Helena e a viu sumir pelo corredor principal.
Os dois dormiram no quartinho dela, algo muito diferente do que haviam planejado para aquela noite, mas Vasto ainda ficou feliz por sentir o aroma dos cabelos e a maciez da pele de Helena. Sensações agradáveis afetam o corpo e a mente mesmo durante o sono, facilitando o trabalho de Vasto.
O entressonho assume cores e aspectos diferentes, a depender da condição do filho de Áries, e naquela noite trouxe espaços amplos, sem cima e baixo, orientado apenas por estradas de vento, que Vasto soube direcionar com primor e facilidade. Longe dos numerosos sonhos enevoados de Caxa, ele descobriu os sonhos dos salteadores. Costurou as brumas e premeu o montante com a palma das mãos, formando uma fumaceira torpe e inquieta. Mergulhou na massa cinzenta.
Dentro, a imaginação de cada um já havia feito um belo trabalho. Relâmpagos sucessivos e ventos insistentes assolavam o grupo de bandidos. Vasto só precisou pintar as casas de Caxa um pouco antes do horizonte e acender, de leve, a luz do sol nascente. Puxando de dentro da manga, ele retirou uma longa penugem escura de ambas axilas, e com poucas batidas, as asas se estiraram em largos metros.
Abanou aqui e ali, e as penas caídas cobriram o corpo de Vasto e um pedregulho grande que ele encontrou. Perfurou a pedra com a ponta dos dedos e abriu um espaço para a cabeça, que se ajustou no primeiro encaixe. Daquele jeito, era fácil se camuflar àquele pesadelo.
Deixou o farfalhar assustar mais os salteadores, e cada abrigo que eles arranjavam, Vasto se encarregava de apagar com uma lufada de penas escuras. Atiçou bem os medos até que só lhes restasse o revide em desespero. Espadas, lanças e flechas surgidas do pavor inconsciente foram arremessadas contra o pássaro negro. Quando achou propício, Vasto derrubou a cabeça do pássaro no chão, e todos pensaram ter vencido a ameaça. Entretanto, o pássaro maldito continuou atacando, e o temor finalmente chegou ao grau do despertar.
Vasto não permitiria uma fuga tão conveniente. Para que seu plano funcionasse, a experiência deveria ser traumática. Por isso ele matou um por um. O último bandoleiro a acordar estava com as calças cheias de urina, relutando para entender como sua cabeça ainda estava presa ao corpo.
Horas após aquele pesadelo, Vasto subiu em Reimi e patrulhou os céus de Caxa por alguns minutos. Tendo visto o par de asas sem cabeça no céu mal amanhecido, os dois salteadores que não fugiram na madrugada desistiram da tramoia. Sem erguer um músculo para empunhar sua espada, Vasto salvou a cidade com um bocado de inteligência, um pouco de pressa e um tantinho bem minúsculo de ciúme que restou após uma noite bem dormida. Mais tarde, na casa de campo, ele desapareceria por completo.
Capítulo 9: Reviravoltas urbanas
I
O dia do evento correu tranquilo. A temperatura estava amena graças ao vento, a correria da cidade era semelhante ao dia anterior, e ao anterior a ele, e ao que viera antes também. A diferença principal era que as conversas todas giravam sobre o mesmo assunto. A morte de Bartolomeu, da Família Antares. Sofreu um ataque cardíaco fulminante enquanto dormia. A essa informação divulgada ampla e rapidamente, já se assomavam cochichos e ponderações. "Ele chegou a subir, arrastando-se por vários lances de escada, em busca de ajuda, mas não encontrou ninguém, tão tarde da madrugada", alguns diziam. "Ele venceu o duelo do Impacta na tarde de ontem. Chamou tantos jovens e concubinas para comemorar a vitória que não teve fôlego para dar conta", outros explicavam, com ares de inveja ou orgulho. Silvestre esteve fora o dia inteiro, e mesmo a par dos olhos vigilantes, teve a cautela de não se deixar abalar. Vasto passou a segunda metade da tarde com Edgar na estalagem, tentando fazer com que ele se transformasse num animal mais conveniente. Pretendia algo como um lagarto miúdo, mas acabou se conformando com um mico de pelo avermelhado; era leve e parecia decidido a não soltar o pescoço do filho de Áries, então aquela forma vinha a calhar. Antes da noite cair, a garotinha veio perguntar sobre o furão e ficou triste quando soube que havia sido vendido. Vasto, que disse ser um vendedor de animais, agora estava encarregado de levar aquele macaquinho para uma cidade no norte. "Ele também é bonitinho", a menina disse ao acariciar as costas de Edgar.
Os soldados – todos eram Antares – executaram o primeiro movimento assim que a luz do sol sumiu por completo. Adentraram a estalagem e escoltaram Silvestre para a rua. Não houve discussões. Silvestre aceitou e acompanhou os homens, sem levar armas ou proteções.
— Te vejo entre os rostos emocionados, Vasto!
Vasto esperou um pouco mais e foi até o Impacta com Reimi. Ao contrário do irmão, estava vestido para lutar – ainda que a proteção não fosse nada próxima a uma armadura. O elmo era simples, cobrindo apenas a parte superior do crânio, e estava preso no queixo. A lança dourada e duas adagas eram as armas de que dispunha. Do alto do céu negro, ele vislumbrou janelas e as ruas alaranjadas da enorme cidade. O chão das avenidas principais estava muito sujo, devido ao grande cortejo fúnebre que moveu boa parte do centro durante o dia. A grande massa escura era de casas vazias, silenciosas; guardavam apenas problemas, preocupações cotidianas, obrigações que não tinham lugar no maior palco de Maciaan. Mesmo de noite, era fácil para um pedestre encontrar o Impacta. Fogaréu e ruído estavam ali para mostrar que a capital ainda existia, e mesmo o barulho do vento, forte e ininterrupto no ouvido de Vasto, era engolido com facilidade. O caído do céu desceu duas ruas além da entrada do anfiteatro, mas se certificou de ver Reimi sobrevoar a área em círculos, para só então tomar a direção da massa que ainda adentrava, incessante, a estrutura colossal.
A ida pelos corredores se mostrou uma verdadeira contenda, Vasto só se sentiu mais confortável quando avistou três soldados enveredando por uma sala contígua, que ele teve acesso garantido após mostrar a insígnia da Família Antares. Tudo era tão fácil com aquela coisinha, precisava agradecer à velha estranha, se houvesse a oportunidade de reencontrá-la. “Madalena da Coroa Astral”, lembrou-se. Finalmente na arquibancada, sua pele esquentou e seus ouvidos se ajustaram à quantidade de gente. As conversas chegavam de todos os lados, a maioria acompanhada de empurrões e respingos de bebida. Crianças também estavam presentes, e no momento eram quase exclusivamente delas a atenção roubada pelos artistas. No meio da arena, homens e mulheres de magreza pernóstica realizavam coreografias garbosas que abusavam dos movimentos das mãos, dedos e quadris, mas sem sair muito do chão. Tudo bem ritmado, seguindo os tambores dos percussionistas que os rodeavam. Entre a roda de dança e a beirada da arquibancada, o espaço, que não era pequeno, estava parcamente preenchido com malabaristas – nenhum deles com o porte airoso dos dançarinos, mas igualmente alegres com o número que apresentavam.
Entre tanta excitação, finalmente os membros da corte apareceram na arquibancada, chegando por um caminho separado e tomando os lugares exclusivos; já havia gente por aqueles lados, provavelmente aristocratas menores, mas a importância dos que chegavam agora era evidente. O fator principal que pesou na descoberta de Vasto foi a presença de Mestre Ina entre eles, mas o grupo inteiro carregava uma austeridade inexcedível, ainda que os semblantes lúgubres destoassem um pouco das figuras portentosas – Bartolomeu deveria, certamente, ser muito íntimo deles. Os representantes das Famílias ostentavam riqueza nos mínimos detalhes de suas vestes, desde coroas de prata reluzentes a coletes bordados em ouro, e acompanhando os aristocratas, figuras brutas, mas igualmente altivas se evidenciavam por conta da capa que utilizavam: coberta em toda a extensão por penas enormes, como as de Reimi, mas alvinegras. Esses homens e mulheres – via-se que eram guerreiros – trajavam armaduras completas, extremamente bem acabadas e com detalhes estéticos que apontavam a sua iniludível inutilidade em batalha. “Lindos trajes de festa.”, Vasto murmurou, cada vez se aproximando mais da área dos nobres. Cansado de esbarrar nos espectadores, o filho de Áries foi até a beirada da arquibancada e seguiu contornando-a, pois ali poucos se instalavam, por não haver cadeiras. Infelizmente era também o lugar com mais soldados – muitos mais que o imaginado – porém nenhum deles fez mais do que olhar com desconfiança para Vasto.
Quando estava alcançando a divisória que separava a seção dos nobres – uma grade alta de aço e uma parede de soldados do lado interno – Vasto encarou a última pessoa a chegar ao local reservado. Era de se esperar que a pessoa deixada para trás fosse pouco relevante, mesmo que o grupo inteiro fosse formado por pessoas de extraordinária importância, mas neste caso era a mais prodigiosa figura de toda cidade. Entrando pela porta seguinte, uma mulher de porte dissonante, cuja altura era desarmoniosa com a própria espécie humana! Usando escarpes, grevas, cinturão, guantes e avambraços, todos dourados, as únicas coisas que a cobriam eram faixas brancas de tecido que a envolviam dos pés ao pescoço. Nas costas, a capa com as penas de gavião-imperador assinalavam que era um general. O cabelo era volumoso e não chegava aos ombros, combinava com o olhar impávido e com a pele queimada de sol. A mulher se acomodou entre as principais figuras e sentou-se num local adequado para seu tamanho.
— Ei! O que está fazendo aí tão perto?! — O soldado se aproximou, segurando a espada ainda embainhada.
— Calma, calma! — Vasto se apressou em tirar a insígnia de Antares e mostra-la para o homem desconfiado, que não ficou muito contente de ver aquilo. — Veja! — Insistiu. Ele não era o único homem armado na arquibancada, mas com certeza não passava despercebido carregando uma lança tão próximo dos cabeças das famílias abaixo do rei.
— Vasto! Vasto! — Uma voz feminina chegou até os dois que se encaravam. Edgar, que se manteve acuado no ombro do irmão desde que desceram de Reimi, saltou ligeiro para o meio do povo, atraindo a atenção do soldado que pressionava Vasto. Os olhos seguiram e o mico escalou o corpo de Felícia, que acenava sorridentemente para eles.
— Eu tenho que ir, amigo, estava procurando por ela.
O soldado não ficou muito satisfeito, mas quando viu Vasto subir pelas escadas para longe da beirada, não viu motivos para detê-lo – a grade impediria qualquer interesse dele em ir para o outro lado com aquela lança dourada.
— Vasto, como é bom te ver! — Felícia cumprimentou com animação. Edgar estava agarrado ao ombro dela, mastigando um pão seco, mas logo o filho de Áries o recolheu. — Por que você está vestido deste jeito? Vai lutar na arena?
— Espero que não.
— Que pena, eu gostei da capa. Não é uma cor muito comum nas vestes de um guerreiro. E para que tudo isto, se não vai lutar?
— Eu ainda não tenho certeza disso, Felícia. Vocês estão gostando da apresentação?
Enquanto a garota apresentava seus amigos a Vasto e dizia trivialidades, o caído do céu percebeu – quando tentava avistar as asas de Reimi no céu preto – um par de asas menores, negras. Era um corvo. O pássaro amestrado voou até perto de onde ele estava e pousou num lugar próximo e alto: a mão da mulher gigante.
— Felícia, você pode me ajudar com uma coisa? Eu nunca assisti um evento desses, e é a primeira vez que vejo tanta gente da corte. Poderia me dizer quem são, cada um deles, por favor? — Ele não se fez de rogado e perguntou primeiramente sobre o Rei Renan.
No lado dos nobres, a mulher gigante entregou o bilhete trazido pelo corvo para Orion, respeitosamente. “Ela está longe. Pode iniciar!”, Orion sinalizou para o animador do Impacta, que fez soar um gongo, diminuindo consideravelmente a gritaria que vinha da arquibancada. Próximo da beirada, ele estufou o peito e começou o discurso:
— Respeitáveis cidadãos! Hoje é um dia triste. Perdemos, infelizmente, o maior guerreiro que já pisara neste picadeiro. E não só isso! Um expoente de dignidade, compaixão e governança! Bartolomeu, o Magnífico, partiu, nos deixando com lágrimas nos rostos e uma dor presa na garganta que exprimiria tanto clamor por justiça fosse possível de dentro dos nossos corações, se ainda houvesse uma chance de tê-lo novamente aqui, no centro do Impacta, nas ruas de Kelicerata, lado a lado com cada um de nós. Este abandono, mesmo que inesperado, não impediu que a cidade preparasse uma despedida gloriosa, o que só reforça o apelo popular que tinha o bravo homem, apesar da juventude. E é por isso que estamos aqui, neste momento! A tristeza ficará eternamente marcada na lembrança, mas a alegria também surge, pois a esta altura, ele já se encontrou com Sauza; e quem melhor que Bartolomeu, para representar esta nação de homens dignos e mulheres valorosas? Eu mesmo, incontáveis vezes, presenciei com olhos arregalados, desse mesmo lugar...
— O rei não está ali. Ele não faz aparições públicas, Vasto, achei que já soubesse disso, hein... — A garota apontava um por um, nomeando cada membro das Famílias Altar, Ofiúco, Coroa Astral e Antares. A Abigail Duralma é uma caída do céu, como você!
— Qual constelação?
— Não sei dizer... Mas ela é linda, não é? Dizem que além do gigantismo, ela é capaz de controlar os elementos da natureza. “Libra, então.”, pensou Vasto. Cristal, e agora Isabel; aos poucos ele estava encontrando todos os seus irmãos. Já não bastasse ela ser o braço direito de Orion da Família Antares, era também a maior autoridade militar de Maciaan!
— Você não conhece Cristal? É uma filha do zodíaco também, e faz parte da Antares.
— Cristal? Não, nunca ouvi falar. Nossa, eles colecionam os caídos do céu, não é? Há, há. Vai dizer que você vai se juntar também, Senhor Áries? — Ela gracejou; entrando na brincadeira, Vasto revelou a insígnia de Antares, surpreendendo a menina.
— Tenham certeza, caros expectadores! Ele não deixará este dia passar como uma sombra qualquer nas nossas memórias! Eu apresento, para honrar a história do melhor de todos, outro formidável combatente: Silvestre, o filho de Leão!
— Nossa, quem é ele?
— Eu também nunca ouvi falar.
— Ele vai lutar daquele jeito? Quem será o oponente?
— Onde está Sigmund? Não acredito que esse aí seja melhor que... Olha, lá vem ele, mais atrás!
— Nas costas! São as pedras dos filhos do zodíaco! — Felícia destacou, quase pedindo uma explicação para Vasto. — O que é isso? Reunião dos filhos do zodíaco? Bartolomeu tinha tanto prestígio até no extremo norte do país?
Enquanto o animador apresentava cada um que comparecia na arena, Vasto buscava a presença de Felícia, que já estava envolvida demais e não podia deixar de lado o que se desenrolava no picadeiro. Quase desprotegido, Silvestre se valia de duas espadas e peitilho, uma verdadeira afronta aos escudos quadrados e circulares, punhais, tridente, chicote, espadas e lanças que o cercavam. Todas as armas ávidas pelo sangue do desafiante insolente, empunhadas por guerreiros bem treinados, mestres no combate individual. Entre os nove, apenas dois eram mais altos que Silvestre, mas nenhum inspirava tranquilidade. Mesmo Hilda, que era a menor, sustentava o mais sanguinário dos olhares sob o elmo.
— Felícia, sobre o rei, eu ainda...
— Ele disse que o homem estava preparado para morrer, e até me pareceu nobre, mas isto é um massacre. Ele é um cordeiro rodeado de predadores! — O gongo soou mais uma vez.
— Preciso me encontrar com ele. Veja, eu imaginei que ele compareceria aqui hoje, e...
— Vasto, eles começaram! Não está preocupado com ele? Vocês são irmãos, não são?
Nos primeiros minutos, mais silenciosos que os que transcorreram entre as batidas do gongo, um caiu desacordado. Era o mais equipado e mais lento, mas nem a sua cota de malha serviu de proteção. Silvestre precisou abandonar uma das espadas para lhe esmurrar a cabeça, e o elmo metálico perfurou o crânio após o primeiro golpe. Como retirariam o elmo deformado sem rasgar o rosto do guerreiro morto, era um mistério. Só depois da segunda morte o barulho voltou a tomar conta do Impacta. Maioria esmagadora pedia a cabeça daquele desconhecido.
— Ludus morreu! Ludus morreu! Não! Ludus morreu!
Vasto vasculhava emoções nos lugares privilegiados da arquibancada, reservados aos nobres, mas todos permaneciam tristes, mesmo após a quinta morte. Um ou outro ficava de queixo caído na ocasião de alguma morte, mas nada ia além. Isabel, a Abigail, se mantinha fria, mas interessada. Grande parte tomava cada morte como um desacato pessoal. Tanta pompa não era para ver Silvestre triunfar, e cada lábio mordido era um ressentimento que se acumulava. “Eles já queriam a sua cabeça, e você ainda os afronta, Silvestre?”, Vasto pensou.
— Sigmund não! — Foi Felícia. — Ele conversou comigo. Dois dias atrás, lá na taberna! — A menina torceu o rosto tentando segurar o choro. Os berros engoliam qualquer soluço. Vasto se sentiu mal, principalmente por saber que todos aqueles guerreiros morreriam contra Silvestre. Um sentimento de culpa brotou, por mais deslocado que aquilo parecesse. Mas ele tinha razão. Tudo era um teatro. Dois caídos do céu estavam enganando milhares. Quando percebeu, já havia tantos torcendo por Silvestre que os contrários chegavam a se envergonhar de bradar contra ele. Na arena, Silvestre encarou a guerreira e sorriu. Alguns segundos de silêncio decorreram, nas arquibancadas e na arena, quando ele desafivelou o peitilho. Ela aceitou o desafio, e teve a cabeça decepada. Foi rápido demais.
Vasto sentiu que era mais justo correr até o picadeiro e gritar: “Parem tudo! É uma farsa, ele já veio sabendo que venceria!”, mas não era uma farsa, apesar da vitória certa. Felícia continuava chorando, e ele tentou tirar a cabeça dela da luta, falando de seu problema, mas ela não queria ouvir.
— EU NÃO SEI DO REI! Ele não está aqui, Vasto! Maldição, ele provavelmente é O ÚNICO que não está aqui. Pare de falar nele! Pare de falar! — Ela virou-se para os amigos, que a abraçaram. Ela ia chorar ainda, por muito tempo.
— Quem será esse cara? Eu nunca ouvi falar nele — um soldado comentou quando Vasto chegou perto para tomar uma concha de vinho. Pegou também um pão seco do cesto e entregou a Edgar.
— Mas vai ouvir falar muito. — O último caiu morto, e o silêncio voltou, recebendo a morte com uma ansiedade inequivocamente solene. Um sinal de mão foi feito e os portões se abriram novamente. Cavaleiros surgiram, rápidos e preparados. Eram dois e tinham ordens de matar a qualquer custo. A ansiedade muda permaneceu, mais enfática. O primeiro caiu do cavalo morto. O caído do céu acertou o inimigo com a lança que ergueu da areia, sem precisar de muito tempo para mirar. O primeiro combate durou algo próximo de uma hora, e apenas porque Silvestre estava feliz com o espetáculo. Era aquilo que ele buscava. A grandeza de um vitorioso. O segundo acabaria antes dos sete minutos. Ele catou o tridente do chão. Quem caiu foi o cavalo, sofrido e com pernas inquietas, características de quem sabe que está morrendo.
Pela primeira vez naquela noite, os expectadores puderam decidir se o perdedor merecia viver ou morrer. Silvestre, por conta própria, estacou diante do homem estatelado no chão, provavelmente com dores no corpo devido à queda, mas de olhos pulsantes e temerosos grudados na ponta da espada do inimigo invencível. Voltou o rosto para o público. Não os chefes das famílias, mas o povo de Kelicerata. “Deixe-o viver!”, “Já basta!”. Para surpresa de Vasto, Silvestre acatou; quando o cavaleiro derrotado se ergueu do chão, os aplausos ecoaram pelas paredes curvas do Impacta. ”Silvestre, o Benevolente!”. Apenas um lado não se ergueu; Vasto prestou bastante atenção, e não se surpreendeu ao ver que ninguém daquele local prestou respeitos a Silvestre. Nem Isabel, apesar do sorriso, que ela não conseguia esconder muito bem.
— Ó público, majestoso e fulgural! — O animador lutava para se fazer ouvir, mas as palmas e gritos não cessavam. — A peleja foi digna e despertou em nossos corações faíscas de paixão por este guerreiro inigualável! — O animador tremeu ao dizer aquelas últimas palavras, certamente apreensivo pelo que viria mais tarde por proferi-las. — Mas Silvestre nos prometeu mais! Ele disse que tentaria o impossível para honrar Bartolomeu. Por favor, respeitem a segurança, não cheguem à beirada, pois o inimigo que virá agora será um risco a todos nós! ABRAM OS PORTÕES!
II
Mesmo a céu aberto, naquela noite Silvestre sentia muito calor. De peito nu e costas que brilhavam no formato do Leão, ele se revirava de orgulho por dentro. Antes de pisar na areia, avisaram que ele precisaria combater os maiores campeões do Impacta, e chegou até a ser inculcado pelos guardas de como seria mais rápido para morrer sem dor. Como foram ingênuos, falaram tantas bobagens sem saber que surgiria uma nova lenda do Impacta, e as glórias insuperáveis em breve seriam imputadas àquele rapaz novo e alto, de cabelos loiros e olhar régio. Apanhou a espada que trouxe para a arena e encarou o portão que se abria, abstrusamente. Ainda escuro, o túnel indicou qual seria o desafio através do som, algo rouco, mas grave e exasperado. Quem primeiro saiu da escuridão foi um soldado carregando uma vara; seguindo ele, saíram mais cinco. Todos atoleimados, cobertos de inefável amedrontamento, a razão veio logo após: contido por correntes, um leão preto. A fera era quase quatro vezes maior que os leões comuns, e sua imponência, inolvidável. Quando a focinheira metálica foi retirada, com muita precaução, por um dos guardas manuseando vara, o rugido fez muita gente desistir de ver o combate.
As lutas contra feras estavam entre as preferidas, mas raramente aconteciam. Desde o sumiço do Rei Scorpio começou-se a encorajar tal forma de entretenimento, o que era até viável, já que a parte da floresta que era privativa do rei ainda tinha alguns animais selvagens. Sem a presença de Scorpio, entretanto, os bichos tornaram a sumir. Dispersaram-se, quase como conscientes da morte do mestre, e a cada novo ano era mais difícil achar criaturas aptas para protagonizar um bom desafio na arena. Quando apareciam, eram sempre ursos ou onças – jacarés ainda viviam em abundância na região, mas tentar captura-los era muito arriscado, ninguém estava disposto a pagar uma fortuna por um bicho que seria morto em uma noite. O leão preto era de Orion, uma fera particular e certamente dileta. Não aparecia em combates, malgrado sua capacidade de vencer e render um bom dinheiro em apostas; Orion apenas o preferia como troféu. A origem do animal também impedia que ele se desfizesse, tinha sido um presente do Bui de Aman-Can – o único em toda Maciaan capaz de instilar medo em Orion. De forma que, se a fera de pelos escuros como a noite adentrava aquele círculo, é porque a morte de Silvestre importava mais para Orion que sua própria segurança.
Quando o último guarda desprendeu as correntes do leão preto, o bravio estava livre para matar. A pressa dos guardas em sair pelas portinholas serviu de alerta para muitos expetadores, que se assomaram aos medrosos que já estavam quase do lado de fora. No lado dos nobres ninguém ousou sair, mas a maioria se acuou na parte mais alta da arquibancada, e não se pode fazer mau julgamento de ninguém, pois era evidente que o felino, pela sua altura, pularia com facilidade o muro da arena. A balbúrdia de outrora fora calada completamente pelos rugidos, e ninguém entre os corajosos se atrevia a falar uma vogal. Mesmo Vasto, que não temia por Silvestre, estava hirto, sem possibilidade de relaxar os músculos. Quem também estava tenso era o filho de Leão. Ele não tinha medo – nem sabia o que era – mas entendia que alguns adversários merecem mais atenção que outros. Com a musculatura tensionada, ele montou uma base e esperou o ataque. Todos esperaram.
O avanço foi silencioso e ágil, mas, para a sorte de Silvestre, o peso não deixou que fosse ágil suficiente. Rolou para o lado, sendo acertado apenas pela areia levantada pelo agarrão, e depois se esquivou da patada que veio em seguida. Ato contínuo, Silvestre rasgou a pata do leão, e o chão amarelo foi respingado de vermelho.
Aquilo foi suficiente para arrefecer o nervosismo de Vasto; para ele, a força já tinha sido medida e o vitorioso declarado. Sempre acreditou que alguém capaz de vencer Silvestre em combate seria tão poderoso e brilhante que o faria no primeiro golpe. Até fazia brincadeira com as crianças que aprendiam a contar. Sempre pedia para dizerem um número mais alto. Quando falava três, respondiam cinco; quando falava dez, respondiam vinte; quando falava mil, respondiam dois mil; as crianças nem notavam que os números não eram só maiores, eram muito maiores. Era tal maneira de escalar que ele usava para julgar o poder de Silvestre. Quisesse ele dizer que o poder do filho de Leão pudesse ser representado por valor numérico, certamente o que lhe vinha à cabeça seria um milhão, e alguém mais forte? Dois milhões. Uma diferença enorme, apesar do alto patamar de Silvestre. Enquanto se perdia naquele pensamento trivial, voltou o olhar para trás e notou que Felícia e amigos já tinham ido embora. “Será que ela me viu aqui e nem me chamou para ir junto?”, pensou. Ao contrário de Vasto, o resto do Impacta não tinha cabeça para se perder em pensamentos, eles queriam saber o que estava para ocorrer na arena – pois algo ia acontecer, essa era a maior das certezas! Os temores do público se intensificaram quando o guerreiro acertou mais um golpe de espada no leão preto, que rugiu, sequioso por sangue.
— Isso não está adiantando. Mesmo que eu aplique toda a força, a lâmina não vai mudar de tamanho, e só pode cortar a mesma área... Vou ter que dar um jeito em você com outro tipo de ataque, grandão. — Silvestre largou a espada na areia, e alguns suspiros pulularam no mar de olhos esbugalhados.
Um novo agarrão, e Silvestre dançou entre as patas ligeiras do animal, se valendo da abertura para escalar o bicho. E lá foi ele, trepando feito um macaco na juba escura, que o engoliu por completo. O verde das costas serviu de guia e todos acompanharam o trajeto daquele lutador peculiar, mas formidável. Chegou ao topo da cabeça, mas estava sem armas para golpear, todos receavam.
— Então era isso, não é... Eles te maltrataram bastante, não foi? Calma que tudo vai passar. Será rápido, eu prometo. — Enquanto subia, Silvestre notou furos escoriações pelo corpo do animal. Aquelas varas que usam para trazer o leão preto não eram suficientes para conter. Nem podia ser assim, tal era a força do monstro frente a alguns poucos guardas miúdos sustentando hastes de metal. O segredo era a ponta das varas, eram afiadas como lanças, e as perfurações causadas por elas eram o que mantinham o feroz contido. “Coitado, foi espetado tantas vezes, e a culpa foi minha”. O fim da briga veio rápido e certeiro, com a força de mil homens concentrada em um só punho. A fera tombou de olhos fechados, e ninguém acreditou quando Silvestre se ergueu, ileso.
Palmas crescentes precederam uma torcida tomada de perplexidade e admiração. Mesmo a pouca compostura dos bêbados já não estava presente, e inúmeros se amontoavam nas costas dos vizinhos, num frenesi coletivo. No meio de tanta euforia, ninguém percebeu quando Orion deu a ordem. Os soldados que cuidavam da segurança se alinharam ao redor da arena – a maioria já estava na beirada, de forma que só precisaram trocar a sua vigia dos expectadores para o homem solitário no meio do Impacta. O espírito da maioria tinha sido tocado, como de todos que viram a luta, e preferiam não ter que dar cabo daquele guerreiro exemplar; mas era o dever deles, e boa parte não estaria sendo verdadeiro ao dizer que não se sentiram bem, apontando suas bestas para Silvestre. Eram superiores, no fim das contas, àquele cuja performance na arena seria a mais lembrada de todos os tempos.
Da mesma forma, pisando na areia, Silvestre se achava além dos seus novos adversários, no entanto ele – diferente dos demais – não possuía incertezas sobre sua superioridade. Foi sem delírios de grandeza que firmou o olhar em Orion e apanhou duas espadas do chão e as sacudiu, as mesmas que trouxe quando entrou para lutar. Lutaria de novo. Malgrado serem numerosos, aqueles insultos pontiagudos disfarçados de ameaça cairiam, como tudo antes deles, perante o poder do Leão.
A plateia não se conformou. Alguns ousaram esmurrar as grades, exigindo explicações, mas a corte não deu ouvidos a eles. Os chefes das Famílias Ofiúco, Altar e Coroa Astral pesarosamente responderam com olhares, mas aquilo não serviu para desculpá-los. Orion, que apesar de tudo não conseguia ver triunfo em sua vingança, estava sozinho, e contaria apenas com o alívio da sua justiça. Lidaria com os anseios da plebe nos dias posteriores, com a mente apaziguada e auxílio do passar do tempo. Sem poder chegar aos nobres, os admiradores do Leão ficaram restritos a assistir ao assassinato; mesmo o mais cativado dos expectadores não enfrentaria a lança dos soldados para tentar impedir um ou dois de dispararem as setas negras. Mas Vasto não era um mero admirador.
A lança dourada deslizou iluminada pelos archotes da arquibancada e transpôs a defesa do guardião, levando-o ao chão. Sem ser avisado do ataque, um dos besteiros foi perfurado pelas costas, e o adjacente, que notou o ataque, foi atingido na testa por uma das adagas arremessadas. A outra perfurou o peito do seguinte. O grito do terceiro caído ecoou pela arquibancada, e as pessoas avançaram, loucas e destemidas contra os soldados, seus medos engolidos por uma chama de fúria.
— FUJA! — Vasto alertou, e partiu para o ponto mais alto da arquibancada, assoviando. Orion percebeu a revolta dos cidadãos e deu o sinal.
Setas negras riscaram o círculo amarelo em direção ao centro, onde um homem loiro levantou os braços e girou os pulsos e girou o corpo no ar, em uma dança esquisita e desarmoniosa, bailada ao som dissonante de metal sobre metal, uma dança efêmera, uma dança perfeita.
III
Ter o rosto colado ao chão é visto, com razão, como algo desonroso, até humilhante, mas até a lua parecia se curvar diante do homem que se colocava de pé, limpando a areia da cara, cercado por setas escuras, caídas em seu insucesso.
GRANKILL! GRANKILL! GRANKILL!
O coro emanava do povo, mas não ele todo. Uma porção dos presentes, ainda que não unificada, repetia com furor aquele nome. Muitos sequer sabiam o significado, mas aquelas pessoas, que espirituosamente se destacavam dos demais por usar chapéus coloridos e extravagantes, erguiam a voz com convicção. Conquanto não soubessem o motivo daquele clamor das pessoas de chapéu – e eram somente os chapéus que as diferenciava, em todo o resto eram plebeus como os demais – o restante dos expectadores manifestaram seu apoio, ainda que não pudessem fazê-lo organizadamente como aqueles que seguiam algum tipo de tradição familiar: foram gritos, palmas, pulos e flores jogadas para o alto. Os que ainda se agarravam aos soldados eram separados aos poucos e uma pessoa em especial ainda era alvo dos agentes da ordem. Vasto, encurralado no ponto mais alto da arquibancada, mas impedido por uma parede alta de pular para fora do Impacta, esperou até que os soldados vingativos chegassem ao degrau abaixo de si.
— É ele, vamo... Ei! Ai!
— Um gavião-imperador!
Os dois perseguidores precisaram se abaixar, imitando todos que estavam perto, quando o farfalhar de asas gigantes desceu para buscar o filho de Áries. Pela primeira vez em bastante tempo, a atenção não estava voltada para Silvestre; ele mesmo deixou de encarar Orion por alguns instantes para vislumbrar a descida desordeira de Reimi. A salvo, Vasto fez uma curva fechada logo acima da construção, jogando rajadas de vento sobre a cabeça do povo, e foi até o meio da arena. Uma voz cansada ordenou, com esforço e ardência:
— Antares! Todos da Família Antares! Eu, Orion, ordeno que qualquer um que tenha sido aceito na MINHA FAMÍLIA ataque imediatamente estes dois criminosos. Eu darei uma recompensa vultosa, além de um título de nobreza, a quem quer que seja responsável por captura-los, vivos ou mortos!
“Ele não tem cabeça!”, “Não tem pata também, olha lá!”, ainda era o que se comentava na arquibancada, até que o primeiro soldado saltou para dentro da arena, e muitos outros seguiram o exemplo. Pouquíssimos guardas não obedeceram a ordem, o que evidenciava o tamanho da Família Antares.
— Eles não aprendem mesmo! Vou ter que dar um fim no próprio velho! — Ele gritou para Vasto, que encimava sua cabeça.
— Não! Não reaja, Silvestre! Você já provou o que queria, o povo te adora. Por Sauza, não mate mais ninguém. Fuja, despiste quem aparecer no seu caminho e se esconda, mais tarde nos encontraremos. Eu vou no castelo, Renan deve estar sozinho, será mais fácil chegar até ele. Silvestre! Não lute! Aquela mulher gigante — Abigail Duralma se levantava de seu assento e, como alguns mais daquele lado da arquibancada, se adiantava para lutar com Silvestre — é a Isabel. Não confronte ela! Depois acharemos um jeito de conversar a sós com ela. Vá!
Vasto tomou o rumo do céu e Silvestre começou sua corrida, no instante em que os pés de Abigail pisaram no picadeiro. Ainda um pouco preocupado, Vasto observou Silvestre arrebentar a tranca do portão e sumir no corredor escuro; Isabel acompanhou, sem pressa, o rastro dos numerosos perseguidores, desaparecendo também ao sair da arena. A meta dele era outra, precisava se infiltrar no castelo, e com Reimi para auxiliar a tarefa não seria muito trabalhosa. Ocultos pelo manto negro da noite, Reimi, Edgar e Vasto chegaram a uma janela aberta, estrategicamente escolhida pelo filho de Áries por estar no pavilhão principal do castelo. Abandonado na beirada obtusa, Reimi tomou o caminho do céu novamente e os dois caídos do céu começaram a investigação.
O lugar estava deserto, apesar de iluminado pelos archotes, e o clima taciturno era reforçado pela tapeçaria alongada e quadros altos que enfeitavam os corredores silenciosos. Cauteloso, Vasto correu pelas imediações do castelo com seu irmão caçula agarrado no ombro. Cada esquina era um desafio de coragem, o risco de topar com algum guarda era constante, mas Vasto precisava tomar proveito da perseguição a Silvestre. Seguiu valente entre as paredes de pedra.
Ainda sem achar a porta certa, Vasto ouviu vozes mais adiante. Só tinha encontrado salas e quartos vazios, mas logo suspeitou que a próxima porta seria a correta. As vozes eram de soldados, mas não estavam de patrulha nem andando a esmo. Os dois que conversavam estavam parados, guardando uma entrada bem específica. Eram baixos, mas pareciam estar em boa forma física. Vasto pretendia não matar ninguém, mas naquela situação, não havia maneira de entrar sem neutralizar os dois. Ou seria possível?
Resolveu apelar para a sorte.
A distância que estava da entrada era considerável, então avançar com tudo denunciaria sua intenção e ainda deixaria tempo para os dois montarem uma defesa. Era melhor seguir com calma e sem pressa, ver a reação deles e só atacar quando já tivesse galgado boa parte do corredor. E foi dando certo. Os homens viram o estranho e assumiram uma postura mais séria, mas nada disseram.
Já não estava tão longe da porta.
— Quem vem? Identifique-se! — Um exclamou, engrossando a voz. Os dedos rodearam as espadas embainhadas. Vasto não respondeu. A capa azul, presente de Helena, encobria qualquer feixe de luz verde que porventura poderia sair pelas folgas da camisa. Estava perfeitamente disfarçado.
Mais próximo da porta.
— Ei, não ouviu? Se identifique agora! — As mãos apertaram a empunhadura, prestes a erguer a arma.
A três passos da porta. A mão deslizou pela lança dourada, era o momento de atacar.
— Ah, é um Antares! — As espadas balançaram, largadas na bainha novamente. Vasto hesitou, mas logo entendeu o que estava acontecendo. Inquieto no seu ombro, o pequeno mico exibia a insígnia para os soldados. Edgar merecia um prêmio! E um castigo, por ter roubado a marca dos Antares. — O que houve? Por que não está no Impacta? Provavelmente é o único que deixou de ir.
— Na verdade eu estava lá até agora a pouco. E vocês? Estão de guarda aqui por quê? — Palavras tão soltas e mal calculadas, Vasto teve vontade de se esmurrar. Torceu para não soar suspeito.
— Estamos tomando conta da princesinha. O pior trabalho que existe, não é? — O calado respondeu.
— Princesa?
— A Cristal! A protegida do chefe. Se ela ainda deixasse a gente se divertir um pouquinho com ela, eu não reclamaria — o guarda apalpou o pênis por cima da calça — mas nem para isso ela serve. Temos que ficar aqui mandando e recebendo a porcaria do corvo. — Passos apressados ecoaram no corredor atrás de Vasto, e ele ficou mais alerta.
De volta na esquina, um soldado parou enquanto outros dois passaram direto. Avistou os três de pé e logo ordenou:
— Vocês! Vamos, chamado geral! Qualquer um que estiver de guarda precisa atender!
— Estamos cuidando de uma coisa, já!
— Calem a boca! — Era claramente de uma patente maior. Aproximou-se e entendeu o que ocorria. — Ah, estão com ela? Não interessa, três é demais para isso. Dois venham comigo, estamos com um problema grande lá no Impacta. A ordem é para todos irem.
— Eu não sou soldado. — Vasto protestou, quase envergonhado.
— Mas o que é isto?
— Ele é um Antares. Nós vimos agorinha, não é guarda aqui do castelo.
— Filho, você consegue atirar uma flecha?
— Sim, mas estou só com a minha lança.
— Hum... Qual o seu nome? Vasto. Certo, já sei de quem vou arrancar a cabeça se algo acontecer com a garota. Você fica de guarda, é só manter ela no quarto, quando o corvo chegar com a mensagem, você leva ela para o local designado. Vocês dois, vamos andando, e preparem os arcos, parece que o filho de uma puta que estão caçando está fugindo no lombo de um corvo-imperador. — Antes de virar no final do corredor, ele alertou: — Lembre-se da cabeça, Vasto!
— É, Edgar, parece que quem tem a benção de Sauza pode até dormir pelado na rua que acorda ileso. Só espero que Silvestre também esteja sendo agraciado como nós — ele acariciou a cabeça do mico, que retribuiu com um sorriso branco. Após respirar fundo, o filho de Áries girou a maçaneta metálica e a porta de madeira se abriu, revelando mais uma dos caídos do céu.
O quarto com pouca mobília tinha certo requinte; a cama coberta com lençol de cetim e a mesa de canto abarrotada com vidros perfumados denunciavam um refinamento separado da extravagância costumeira da corte. Amplamente iluminado por velas, as poucas sombras tremulantes se agitavam no teto e nos cantos do aposento, quase que pedindo atenção para o visitante, que estava totalmente compenetrado na figura escarrapachada com um livro e uma taça nas mãos. Ela não fez menção de se levantar, mas encarou Vasto longamente com um semblante inquisitório. Até que Edgar saltou do ombro e correu pelo chão do quarto.
Um grito agudo e assustado precedeu uma histeria cômica. Puxou os pés para junto de si e jogou a taça no mico, que escapou ligeiro com um salto para a cama, deixando para trás o chão com cacos de vidro e vinho esparramado – respingou no tapete branco, infelizmente. Outro grito, e Cristal ficou de pé no sofá. Desta vez foi o livreto a ser arremessado, mas só quicou no colchão, e longe ainda de Edgar, que acelerou para o travesseiro, agora seu escudo.
— Calma, Cristal! Antes de tudo, eu gostaria que você... — Ela virou-se para Vasto na porta e a parede de pedra atrás de si se iluminou levemente com o verde celestial dos caídos do céu. “Quem é você?”, a voz foi rápida e imperativa. — Vasto! Se acalme um pouco para que eu possa... — “E o que quer? De onde veio?” — Quero falar com Rei Renan e recrutar os caídos do céu. Vim do Cesaro, como você. Esclarecer o motivo da minha invasão; ei, o que é isto? O que você está fazendo... — “Você tem alguma intenção de me machucar?” — Lógico que não. Comigo? Hã, você fez de novo! O que foi isto?
De chofre a mulher resgatou seu olhar altivo e desafiador de antes. Desceu do sofá com uma pose orgulhosa, realmente acreditando que aquele minuto de medo e exaltação nervosa não tinha ocorrido. Caminhou até ele, passando a vista na cama para se assegurar que o animalzinho estava longe e não era um perigo.
— Então, você é Vasto... Cresceu bastante, hein. Está tão bonito! — Ela levantou a capa azul para conferir os feixes de luz verde por dentro da camisa. — Ah, seus olhos! Eu tinha me esquecido deles. Como não me lembrar desta cor violeta tão marcante? E então, Vasto, o que faz por aqui? Nossa, já são quantos anos desde a última vez? Acho que quinze, não? Que saudade!
Após o abraço carinhoso e inesperadamente sincero, Vasto precisava de algumas explicações, até para se situar sobre que loucura era aquela que estava acontecendo. A mulher vestia um vestido preto que combinava com a cor de seus olhos expressivos e seu cabelo longo, mas simples demais para uma nobre.
— Cristal, é ótimo ver você também. Mas o que foi isto? Por que eu respondi a suas perguntas? Eu nem me dei conta, parecia um sonho maluco.
— É o meu poder, Vasto! Mas é óbvio que você não saberia, não é? Só tomamos conhecimento dele aqui na capital. Adônis achava que eu causava caos aonde fosse, mas não é bem assim. — A mulher mexeu no cabelo preto e sorriu maldosamente, se exibindo e tirando sarro do desconhecimento de Vasto. Ali ele já percebeu, pelo comportamento espontâneo e volátil, que Cristal se transformara numa mulher de absoluta originalidade “Vai ser engraçado ver ela e Silvestre no mesmo grupo”, pensou. — Eu evoco a verdade, Vasto. Ninguém consegue mentir perto de mim. É por isso que tanta gente brigava perto de mim. E por falar nele, como está Adônis? Quanta saudade!
— Cristal, Adônis morreu — os olhos da mulher se umedeceram instantaneamente ao ouvir a notícia — porém este não é o melhor mo... — “Como pode? Como isso aconteceu?”, ela murmurou, já com voz de choro. — Numa luta contra Ivan, ele morreu também no combate. Mento para discutirmos isso. PARA DE PERGUNTAR!
A baixinha pulou de susto.
— Desculpe, Cristal, é que agora estou sendo caçado, literalmente! Preciso encontrar logo Renan e, juro por Sauza, não tenho tempo para discussões. — Aquilo soou extremamente frio e descortês, mas não era como se Vasto pudesse controlar o que ia dizer, então ele mesmo se isentou da culpa de qualquer provável ofensa. E Cristal se ofendeu. Com o humor inconstante, ela resolveu levantar a voz também.
— Não tem tempo para discussão? A MINHA VIDA É UMA DISCUSSÃO ETERNA, SEU MOLEQUE! — Do nada, o punho fechou e acertou Vasto no rosto. Cristal era pequena, baixa e magra, o soco nem chegou a doer, mas a atitude inesperada fez Vasto tomar medidas mais enérgicas. Avançou em cima da mulher e a levantou por cima do ombro.
— Vamos, Edgar!
Cristal era uma boa pessoa, mas fazê-la mudar de ideia e cooperar levaria um pouco de tempo, o que ele não tinha naquele momento.
— O que está fazendo?! Me solte, Vasto! Socorro! Alguém me ajude! — Estrebuchar e chorar não adiantaria, a resistência da filha de Aquário era tão eficaz contra Vasto quanto a de uma criança pequena.
— Cristal, vamos, fale de uma vez por todas: onde está Renan?
— Ele não está aqui! Ninguém pode ver ele!
— Ele está doente, eu já sei, mas prometo que serei breve...
— Ele não está doente, ele é prisioneiro de Orion. EI! Socorro! — Dois homens ouviram o brado de Cristal. Apesar de soar mais nervosa que assustada, os homens entenderam que ela precisava de ajuda. Vasto colocou a mulher no chão, decepcionado com o que ela fizera.
— Prisioneiro? E você dorme em lençóis macios e bebe vinho?
Cristal apontou o dedo na cara dele:
— Você não pode me julgar, Vasto. — Começou a chorar. — Não pode! — Então deu um beijo no rosto do filho de Áries e saiu correndo na direção dos guardas que vinham. — Desculpe, Vasto. Ainda dá tempo de fugir, vá!
Amplamente indignado, ele não se moveu. Enfrentaria os guardas e iria atrás dela. “Por Sauza! Como pode uma mulher dessas ser normal? Não cheguei a levantar o braço contra ela e o que ela faz? Chama dois soldados para me cortarem a cabeça!”. Os homens não eram propriamente uma ameaça. Um era gordo e desajeitado, mal sustentava uma postura de ataque eficiente. O segundo era magro e tinha movimentos enganosos, mas não era exatamente um lutador de categoria; exalou um cheio podre da boca quando exclamou:
— É, se levarmos ele poderemos até ser Antares! Que é isso?! — O magro levantou a perna, assustado.
— É só um macaquinho.
Vasto deu alguns passos para trás, mantendo a lança preparada para defesa. Edgar, nas costas dos atacantes, mudava sua forma amigável de símio para algo escuro e perigoso. As patas velozes agarraram o gordo sem que ele percebesse. Uma pantera negra cravou as presas no lombo fofo e o gordo, em prantos, desmaiou com o choque. O magricela, ao ver a quantidade de sangue no chão, se encolheu no chão e pediu clemência, com voz tiritante e calças borradas.
— Vamos, Edgar.
Na virada do corredor, a pequena mulher de olhos grandes e pretos observava, assustada e aliviada. Vasto foi até a sacada de um quarto próximo com Edgar e sentaram no parapeito, juntos. “A queda é alta, você não vai ter muito tempo para pensar, amigo”, ele hesitou. Estava presente no dia que o pequeno havia avistado o animal majestoso, inclusive já presenciara uma transformação, mas com tantos metros separando seus pés do chão, cogitou desistir. Olhou para a pantera e teve certeza de que o olhar compreensivo não era sua imaginação; segurou com força as patas dianteiras do felino e se jogou:
— Eu confio em você, amigo! — Vasto guardou apenas duas sensações da queda: a total perda de peso e incapacidade decorrente, e a mudança grotesca que ocorreu naquilo que segurava. Ossos partiram-se e combinaram-se com fluidos viscosos, o pelo macio da pantera sulcou, e antes do chão chegar com força nos pés de Vasto, ele já segurava firmemente as patas duras do maior e mais perigoso predador de Maciaan. Edgar conseguiu se transformar no fabuloso gavião-imperador.
A ave gigante drapejou suas asas e percorreu o céu escuro. Ao ver novamente a maior cidade de Maciaan dividida entre luz e trevas, Vasto descobriu uma beleza muito peculiar naquele lugar; Kelicerata provocava uma perplexidade formidável, tal qual o Cesaro e sua natureza plenamente virgem. Dois opostos igualmente louváveis.
IV
Edgar pousou numa das ruas escuras e se transformou em um adorável cachorro do mato de pelagem escura. Vasto ficou tão satisfeito com a atuação do caçula que não poupou carícias, deliberadamente se expondo no meio da rua estreita; ele merecia. Apesar da solidão urbana, o barulho ainda existia e era constante, vindo das regiões mais centrais. Era premente sair de vista, e os dois logo se encaminharam para os becos ainda mais estreitos e desabitados, escapando da curiosidade de qualquer pessoa que estivesse voltando do Impacta ou de outra boemia. Por minutos estacou contra uma parede, considerando se seria boa ideia se misturar disfarçadamente na multidão para obter novidades sobre Silvestre, mas toda essa cautela não foi suficiente para ele notar uma figura atenta e mal-ajambrada numa sarjeta próxima.
Ele tinha notado tudo, desde o pouso. Demorou até tomar a pouca coragem que imaginava possuir e se manifestar.
— Psiu! — A ponta da lança dourada mirou o vagabundo. — Não precisa se preocupar, sou eu. — O mau hálito indicava a fonte de coragem do mendigo. Era Fungo, Vasto jamais confundiria aquela figurinha asquerosa, degradante até para mendigos. — Você também está fugindo, senhor?
— Por quê? Viu alguém fugindo por aqui?
— Aqui não, só chegam nessa área os medrosos e que não valem a pena correr atrás — Fungo iniciou uma risada breve, rematada por tosse e catarro — o fugitivo que eu vi tava se divertindo demais. Corria feliz igual barata na carne podre.
— Você deve saber muito sobre baratas. — Vasto já não estava preocupado em atacar o coitado. Era um traste, uma escória vil e repugnante cujo surgimento só se deu nas piores condições humanas. Passou a acreditar que, como ouvira alguém dizer horas antes, tinha nascido do cruzamento entre irmãos de uma família de excluídos, filhos também de relações familiares; chegava a tanto a odiosidade provocada pela presença de Fungo, era verdadeiramente um inoportuno acidente da natureza.
— E sei muito de lugar pra se esconder também. Não é o que você tá querendo?
— E desde quando você se importa com o que eu quero?
— É que as pessoas pagam quando querem coisas. — A resposta diminuiu a preocupação de Vasto. Tendo meramente dinheiro como interesse, Fungo não merecia desconfiança. Lembrou como o pobre era tratado pelos demais, uma piada ambulante abastecida com rum e ofensas gratuitas. Por um momento, o caído do céu considerou ser indulgente com o vagabundo, mas friamente pensando, não era para tanto. Podia ser que Fungo fosse inofensivo, mas havia algo nele que impedia qualquer possibilidade de compaixão, algo ruim e persistente, que transbordava pelos olhos macilentos.
— Eu te dou o dinheiro. Mostre o caminho; e, por favor, vá bem à frente, eu seguirei no meu passo.
Fungo fez uma mesura exagerada, claramente provocativa, e saiu pelos becos da cidade, soltando risadinhas contidas de exasperação.
Quase trinta minutos depois, já afastados da região mais populosa da cidade, os três chegaram ao esconderijo. Não era nem de longe um lugar sem suspeitas, mas também não parecia atrair a atenção de ninguém; próximo do leito de um riacho, um casebre decadente sem trancas ou móveis inteiros era o tal lugar prometido. Na outra margem do rio havia uma pequena região lodosa cujos odores da decomposição eram remetidos ao vento, que entrava profusamente pelas janelas quebradas.
— É sem comida, sem água e sem luz, mas tem segurança. É o que basta pra você, né? — Vasto odiava aquele risinho maléfico que o homenzinho deformado sempre usava para concluir as falas. — Eu garanto pra você que ninguém entra aqui, todos têm medo de desabar na cabeça deles.
— Ah, então é realmente seguro! — Ele não tinha gostado nada daquele lugar, mas era uma situação de emergência; o estalajadeiro conhecido já sabia do seu envolvimento com Silvestre, era bem possível que o local estivesse sendo vigiado. Mesmo que o dono do estabelecimento fosse surpreendentemente discreto, ainda era muito arriscado ir para ser delatado por outro hóspede. Vasto resolveu deitar ali e sair logo com o raiar do sol, ao menos Edgar já estava bem confortável, encolhido num canto próximo da janela. — Tome! Amanhã antes de ir embora, pago três vezes isto aí, e se você não conseguir chegar a tempo, deixo enterrado ali no pé da árvore. Agora saia daqui, que preciso descansar.
— Cheio de ironia, Fungo catou suas moedas e, após uma reverência, correu pela porta, quase dando a impressão de estar fugindo.
— Então, Renan é prisioneiro de Orion... Não vai ter outro jeito, se eu não posso contar com Cristal, terei que convencer Isabel a me ajudar. — Vasto olhou ostensivamente para o céu através do buraco na parede dos fundos, esperando que os sonhos daquela noite fossem agradáveis, perfumados e demorados.
A porta da casa, já torcida ao extremo, foi arregaçada além da conta quando três soldados a colocaram abaixo, com ferrolho e tudo. Vasto acordou imediatamente com o estrondo, e Edgar até saltou de tão assustado, a cauda rija e o coração acelerado. Ainda estremunhado, o filho de Áries não teve como reagir, e logo após o arrombamento, já estava preso sob a custódia dos soldados. Do lado de fora, após os olhos se acostumarem com a luz matutina, o novo prisioneiro conseguiu vislumbrar seus captores. Um general e seu séquito. Com sua capa de penas de gavião-imperador e sua armadura reluzente, o homem apenas apontava o dedo para comandar os soldados, sem se dar ao trabalho de abrir a boca ou apear do cavalo. Junto ao grupo, a imagem asquerosa que deu com a língua nos dentes: Fungo ria, desembuchado. Deu pulinhos de alegria até Vasto e disse, com a voz baixa e atrevida:
— E agora você vai ser empalado e exposto em praça pública, seu porco! — Vasto queria, mas era impossível ter pena daquela criatura, era indubitavelmente o mais desprezível ser de Maciaan.
— Por que você fez isso? Não ia ganhar seu dinheiro? Você é tão torpe que se recusa a ajudar uma pessoa em perigo, mesmo lucrando com isso? — O homenzinho se aproximou mais, apertando o rosto de Vasto com os dedos tortos.
— É a minha vingança, contra você, bonitinho de Áries. Se não fosse você, eu não era uma piada! Se não fosse você, minha família não era chamada de lixo por mais de cem anos! EU TE ODEIO! — O soco no rosto foi débil, mas carregado de cólera, e um dos soldados que levava Vasto tratou de afastar o agressor com pontapés.
— Basta! Você já recebeu seu dinheiro, não diz respeito a você nada daqui para frente, assim sendo, queira sumir das nossas vistas, criatura mefítica! — Fungo acatou a ordem do general e saiu coxeando e bufando de raiva e felicidade.
— Senhor, eu não o conheço, não sei a que família pertence, mas não vou pedir que me deixe ir embora. Eu só gostaria de soltar meu cãozinho, ele está lá dentro da casa, amarrado. — O homem perguntou se era verdade, e um dos soldados logo veio dizer que era um cachorro pequeno, não servia de ameaça a ninguém.
— Vá e solte seu cão de uma vez. É uma pena que o único que se importa com você não pode nem se despedir — o cavaleiro riu e foi acompanhado pelos soldados — mas apresse-se!
Vasto retornou para dentro do casebre, acompanhado por dois soldados. Uma rajada de vento passou, permeando o grupo com um cheiro acre e despertando impaciência no general. Quando abriu a boca para ordenar a saída dos homens, um ruído impensável surgiu de dentro do local. Um relincho alto, seguido dos gritos de dois homens. A parede lateral da casa foi estraçalhada pelo corpanzil de um cavalo branco bruto e de peito largo. Trotou para os fundos da casa, deixando dois aleijados no interior do casebre e um bocado de gente estupefata do lado de fora.
— Vão!
O grupo correu, mas o animal era rápido demais. O general era o único capaz de acompanhar o fugitivo, e munido de seu arco preparou a mira para acertar uma seta no animal que corria veloz pela margem do riacho. Uma flecha disparada, um acerto na anca. Mais uma disparada, um acerto na garganta. Vasto veio abaixo imediatamente, e Edgar também caiu, incapacitado.
Após a dispersão das ondas, a superfície retomou sua estabilidade, com a corrente fraca, mas ninguém apareceu. Nem o cavalo, que deveria estar exposto, podia ser avistado. Confusos, os soldados estacaram na margem, aguardando algo acontecer. E logo aconteceu: já depois do meio do riacho, Vasto se levantou para tomar ar. Terceira flecha disparada. Acertou inutilmente o casco de um cágado, que o fugitivo usava como escudo.
— Não deixem ele escapar! Vão logo! — O general preferiu esperar fora d’água, e seu séquito seguiu pelo leito fofo do riacho enquanto Vasto e o cágado já corriam pelo outro lado.
— Venha, rápido! — O caído do céu largou o cágado no chão, e ele logo se transformou em um cão novamente. O corpo ileso, obviamente, pois na transformação qualquer corpo externo era expelido e os ferimentos eram engolidos durante a metamorfose, sendo completamente regenerados na forma seguinte. Com ampla vantagem na corrida, Vasto assobiou o máximo que pôde. Pouco tempo depois, uma mancha apareceu no céu, rodeando as nuvens e chegando mais perto do solo.
As penas escuras de Reimi se misturaram ao manto alvinegro das penas de gavião-imperador quando ele desceu trazendo uma pessoa muito diferente. Com as asas acomodadas perfeitamente por baixo das axilas, o corpo dobrado pela cintura e a ponta traseira adequadamente torcida para trás, se encaixando entre as pernas de Abigail Duralma, Reimi desceu até Vasto. A mulher-pássaro plantou os pés no chão com segurança e desfez o abraço de Reimi; com a ponta do corpo novamente rígida e reta, Reimi foi fincado no chão mole.
“E agora, Sauza?”, Vasto pensou, sem nutrir muita esperança. Olhou Isabel, mas não brandiu a lança dourada contra o general, precisava convencê-la ali e sem rodeios.
— Abigail! Eu sei quem você é. Isabel, filha de Libra. Por favor, não se afobe, eu sei que eu sou fugitivo, mas foi tudo um mal-entendido. Nós viemos para cá procurar vocês, caídos do céu, por favor, me entenda!
— Eu vim aqui para prender você. — Seca, a gigante sustentou o olhar impassível, ainda que não demonstrasse violência ou obstinação naquelas palavras. Novamente usando escarpes, grevas, cinturão, guantes e avambraços de ouro, o resto do corpo era comodamente envolto por tiras de algodão, delineando seu corpo torneado e musculoso. Não fosse a altura intimidadora e anômala, a mulher despertaria desejos em qualquer tipo de homem.
— Mas esse é o problema! Não deviam estar querendo nos prender. Não fizemos nada de errado, o Bartolomeu lutou contra alguém mais forte e morreu, não é justo que tenhamos que pagar por isso! Por favor, Isabel, eu lhe imploro! Se me levar para Orion vai estar me sentenciando à morte, ele só procura uma vingança louca! Entenda, seja mais que um cão de guarda! Somos mais que isso! Por amor a Sauza, não faça isto!
A mulher não cedeu. Seu olhar pétreo não tremeu nem quando o vento puxou seus cabelos para o lado, e Vasto entendeu que teria que fugir. Jamais faria mal a uma filha do zodíaco, mas uma luta branda de contenção não era opção contra um Elemental.
— Vamos, Edgar! — Lá iam novamente, o homem e o cão, fugindo para lugar nenhum, humilhados pela própria incapacidade da dupla em se fazer entender. Apesar do terreno, galgaram uma boa porção e a mulher permaneceu quieta, com os grandes pés firmes, enterrados até o tornozelo, acariciando o cinturão dourado. Vasto não sabia se ela tinha entendido suas razões ou se estava só dando tempo de vantagem para seguir depois com Reimi, mas o fato é que a gigante não vinha atrás. Chegou a sentir algum alívio, mas terminou caindo no lodo. Não, não escorregou, muito menos se desequilibrou por conta do terreno, Vasto caiu porque o chão estava tremendo. Sem ruído ou sinal antecedente, o chão de repente chacoalhou. De quatro, como Edgar ao lado, Vasto observou a terra revolver em sua frente, e seu corpo ser engolfado pela terra molhada. Por baixo da onda fedida um paredão de rocha se ergueu das maiores profundezas do solo, impedindo sua passagem naquela direção. — Esta rocha... Ela não é Isabel. Ela é Janela!
Por cima do rastro deixado por Vasto e Edgar veio Abigail Duralma, a filha de Touro, vestindo Reimi no corpo e resoluta em capturar aqueles dois fora da lei.
CRISTAL
O QUE FAZER COM A VERDADE NAS MÃOS?
V
— E por essas cores escuras nos seus olhos, eu me vejo mais atraído que pelo brilho da lua cheia. Há dias em que me sinto um criminoso por querer fechá-los... Com um beijo em sua boca. — O homem de sobrancelhas alongadas molhou os lábios finos e fitou a reação de Cristal.
— Você não perde o charme, mesmo após sua insistência ter virado incomodadora. Não leve por brincadeira, me aconselharam a nunca tomar por verdade algo que um pretendente teima em dizer por muito tempo, mas contigo é inevitável! Tenho muitos, do mais impudente aos românticos de vozes macias, mas você é o único que ainda surge em meus pensamentos quando estou à toa passeando pelas ruas, ou até antes de dormir... Se ao menos eu pudesse abrir seu coração, vasculhar as particularidades das suas dores e alegrias, ah, descobriria se tudo o que diz sobre mim é verdade!
— Mas... Cristal, eu juro por Sauza que minha... — Um barulho alto de mesa sendo virada interrompeu a perseverança do pretendente. Enquanto os dois se aprumavam no banco esculpido em pedra, do outro lado de um canteiro, uma disputa tomava ares violentos. O Antares que estava de guarda ali perto se apressou com o olhar intimidador, e a filha de Aquário precisou sair de imediato do local, deixando o rapaz entristecido.
— Essa rapariga eu conheço! Anda com o Antares para lá e cá. Trouxas como você sempre correm na sombra dela, mas ela enxota todo mundo como vira-latas.
— É o segurança dela, seu gordo fedido! — O rapaz respondeu ao homem sentado no banco adiante, mas sabia que ele não tinha dito mentiras. Cristal, por mais relutante que fosse, gostava dele, tinha certeza! Qual seria a razão de não se render? Mulher nenhuma sustentaria tantos rodeios; a não ser que houvesse interesses políticos por trás da vida conjugal – e ela era uma Antares, então tal possibilidade era alta.
O gordo fedido quase se engasgou com o gole d’água quando o rapaz se ergueu do banco ao lado, abruptamente e dizendo em voz alta:
— JÁ SEI O QUE FAZER!
Dois dias depois, o jovem apaixonado já tinha entregado boa parte de suas economias ao governo e sustentava no peito uma insígnia de Antares. Imaginou que o título só acrescentaria uma indumentária a mais ao seu vestuário do dia-a-dia, porém ele deu azar. Mal fora admitido na Família Antares, seu nome entrou para uma lista que correu de mão em mão entre alguns de posto mais alto, e logo ele precisou se apresentar ao próprio Orion, junto a vários outros novatos. Era uma solenidade simples, não precisou fazer muito além de parar com as costas retas e os olhos sérios enquanto era avaliado pelo chefe da Família e dois generais – a mulher gigante era um – e depois foi encaminhado à sala de armas.
Em vez de ouvir boatos e reportar no fim do dia, iria para uma missão de combate, sem nem passar pelo treinamento básico. Ele se arrependeu amargamente enquanto se armava, mas se tudo terminasse bem, já teria uma história de valentia para impressionar Cristal.
Enquanto se encaminhava à sala de armas, alguém lutou pela sua segurança. Abigail Duralma reconheceu o pretendente de Cristal assim que o viu chegar ao saguão para a inspeção. Não sabia muito da vida dele, nem o porquê de ter entrado na Família Antares, se outrora fora informada de que ele era um grande pacifista, mas ali ele estava, o interesse amoroso correspondido – Cristal confessara à Abigail – pronto para ser sacrificado numa investida burra de um general inepto. A filha de Touro tentou impedir:
— Não devíamos arriscar, mandando aqueles novatos. Já que falam tanto da perícia desse tal Ludus, por que não me encarregar de detê-lo? — Abigail aconselhou. O outro general foi ligeiro na resposta, livrando Orion de contrariar seu braço direito.
— Desnecessário é, dentre todas as opções, arriscar a pedra preciosa da nossa família. Que os novatos provem o seu valor! Se a gana deles for demais, eu estarei lá para coordená-los. Abigail Duralma, estando você no mais alto grau de comando, seria um insulto deixa-la tomar meu lugar nesta ação. Andam falando muito do tal Ludus? Claro, é um bandido que fez seu nome; e eu mesmo fiquei assustado quando soube dele estar sequestrando gente do Duque e pedindo resgate. Porém é apenas um criminoso esperto. Não urge usar um talento da dimensão do seu. E prometo aqui, diante do estimado Orion, que não só capturarei o tal malfeitor; o trarei em condições para que ainda se torne uma atração do Impacta!
Orion aplaudiu a veemência do general, com um riso espremido numa boca cheia de uvas doces. Abigail nada disse, mas sentiu dó de Cristal, pois não era a primeira vez que aquele homem peçonhento planejava levar homens fracos em missão, meramente para sacrificá-los numa estratégia eficaz, porém covarde. Desejou que Cristal nunca a chamasse para dizer que sentia falta dele, pois aquela verdade seria difícil de evitar revelar.
Capítulo 10: Os incríveis novos rumos
I
Já tinha um bom tempo que Vasto só ouvia risos. Quando conseguiu quebrar a inércia, levantou da cama dura de madeira e foi até a janelinha gradeada. Do lado de fora, na ponta de um galho um anu-preto olhava para o caído do céu aprisionado, e ria, como ria! O canto estava demasiadamente alongado e ritmado, o passarinho estava se divertindo à beça com a miséria do homem enjaulado. E a inércia voltou, pois não era fraca como o sono de Vasto; era dura, forte e duradoura, como barras de ferro e paredes – que também zombavam, descolando a argamassa e revelando os tijolos de barro, cheios de poros observadores. O homem capaz de sonhar além de qualquer fronteira estava contido por uma alvenaria de quinta.
Era o quarto dia de encarceramento. Apesar da restrição da liberdade, ninguém falou em execução, as quatro refeições eram servidas pelo carcereiro e podia tomar um banho por dia. Quatro dias com aquele homem alto, gordo e provavelmente mudo, e agora um anu-preto espirituoso se juntava à turma.
— Xô! Sai daqui! — Agitou o braço pela grade da janela, como quem já está bem acostumado com a cadeia. O trio se desfez, e Vasto perdeu o único integrante com ânimo para dizer alguma coisa. Voltou a se deitar na cama. Precisava encontrar Silvestre, pedir ajuda, mas não o achava em canto algum. Como pode alguém não dormir por quatro dias seguidos? Vasto vasculhou milhares de cabeças em Kelicerata, tomando a precaução – e até sendo perspicaz – para se focar nos maiores sonhos, mas ainda assim eram muitos; a capital era terra de gente sonhadora. E nenhum deles era Silvestre. “Enquanto não me levarem para o patíbulo, vou continuar sonhando até achar o desgraçado”, ele se motivou enquanto voltava a fechar os olhos. O coitado tinha dormido tanto nos últimos dias que o som da própria respiração era capaz de despertá-lo.
Ainda não dormiria tão imediatamente, pois ouviu passos. O grandalhão chegou, abriu a cela de juntas enferrujadas, pegou o balde, deixou outro no lugar e foi embora. Silêncio. Vasto sabia que estava faltando alguma coisa... Virou-se de costas com rapidez, quase incrédulo da suspeita que tinha, mas era verdade: não houve rangido da porta fechando. Estava sozinho na cela, e a porta estava aberta. Escancarada, convidativa. Definitivamente não do jeito que um carcereiro a deixaria. Algo estranho estava acontecendo, mas, fosse o que fosse, a porta estava aberta, e mesmo que não ventasse, a liberdade tocou Vasto como uma brisa confortável de fim de tarde.
Braços juntos ao tronco, passos cuidadosos e uma coluna mais ereta que uma vara. Vasto foi se esgueirando pelo vão de celas vazias, com os ouvidos muito atentos. Demorou quase um minuto parado no umbral da entrada, imaginando o local da sala em que o carcereiro estaria, distraído. Adentrou mesmo sem saber. Vazio também.
Abriu um sorriso tão sincero que até se sentiu bobo. Trespassou a porta da rua concentrado, pronto para correr; a prisão era uma casinha simples no meio da floresta, nunca que um homem daquele tamanho ia acompanhar a velocidade do filho de Áries. Pisou fora, olhou para um lado e para o outro e correu mirando as árvores mais próximas; se pegasse um ângulo favorável, os troncos de imbuia esconderiam sua fuga do olhar vigilante que estava por ali, em algum lugar oculto. Os metros voaram sob seus pés, a primeira árvore já estava bem próxima, mas outra coisa passou mais rápida. Era grande, enorme! E violenta.
Um pedregulho passou voando por Vasto e atropelou as árvores à sua frente, caindo em terra logo depois, perdendo algumas lascas para o impacto com o chão. Arrepiado com o poder, o caído do céu retornou vista para a prisão e encontrou, sem surpresa, Abigail Duralma. Estava sentada a uma mesa longa, ao lado da construção. O carcereiro servia chá e algumas travessas de pão e tiras de carne frita – conhecia bem porque era a única coisa que vinha comendo nos últimos dias – ao lado dela, também sentada, Cristal estava animada. Levantou o braço esticado, chamando por Vasto como uma criança contente.
Vasto deu um riso alto por ver uma cena tão irreal, e foi ao encontro para a refeição matutina.
— Vista-se e venha comer — Abigail mandou, apontando para os pertences de Vasto numa mesa menor — Achávamos que ia demorar mais para sair.
Riu de novo, mas sem exagero, e foi trocar de roupa. Estava atônito demais para falar alguma coisa. A roupa não era a mesma que ele usava quando foi capturado, mas nem tudo era novo: a escandalosa capa azul estava de volta, e o dinheiro também! Vasto sentou-se para comer e passou os olhos demoradamente nas mulheres. Abigail estava muito mais amigável sem a indumentária de general, mas notou que, debaixo da camisa folgada e da calça de tecido, ela ainda tinha o corpo enrolado pela faixa de pano branco e o cinturão de ouro ainda estava preso a ela. Cristal era a mesma. Linda, pequena, com movimentos honestos e rosto cativante, vestia uma calça larga e escura presa na cintura pelo cinto, e uma camisa de pano com mangas até o cotovelo. Parecia tudo, menos uma nobre da Família Antares.
— Então, queridas conterrâneas, vejo que entraram em um acordo sobre minha presença não ser ameaça a Orion? Que bom que agora podemos sentar e conversar de maneira ordeira.
— Não acordamos sobre nada, eu preciso falar com você e ela veio para eu me certificar que não vai mentir.
— Calma, Abigail. Vasto, eu vim porque eu quis! Não sabe como estou feliz de revê-lo, espero que não guarde mágoa do nosso último encontro, mas você deve entender, não é? Se há alguma culpa naquela situação toda, certamente é sua, ainda que só tenha agido de acordo com os fatos desenrolados no Impacta e no castelo.
— Pelo visto vocês conversaram bastante sobre mim. Espero que tenham chegado a conclusões positivas.
— Você queria conversar. Agora estamos aqui, sem pontas ou lâminas nas mãos — Vasto estava cortando uma fatia de pão com a faca, na verdade — será a melhor oportunidade para você explicar tudo que quiser. Mas primeiro eu tenho duas perguntas. Como você conseguiu esta insígnia de Antares? — Ela tirou de um bolso a marca usada por Vasto na invasão ao Castelo Henpakihan. — Uma fraude desse tipo é um crime muito grave, a pena é capital, sabia?
— Eu não furtei. Conheço o uso das insígnias aqui na capital, Abigail. Evitei ao máximo usar, mas também não obtive de maneira ilícita. Foi uma senhora da Família Coroa Astral quem me deu.
— Mas que bobagem, era ela então a ladra. Como pode um membro da Coroa Astral ter uma insígnia de Antares?
— Pode sim, Cristal. Eu dei uma a Natália.
— Não, o nome dela era Madalena.
— Pois é, ela mesma. Mas agora a segunda pergunta: Galope está morto?
— Sim. — Vasto se surpreendeu com a resposta. Pretendeu ironizar a pergunta dizendo que anteriormente tinha feito a revelação diante do poder da verdade de Cristal, mas acabou respondendo de forma direta o questionamento. Foi então que percebeu que a habilidade de Cristal era absoluta e sua influência era imperceptível. De qualquer forma, achou que aquilo fora até benéfico, pois a morte de Galope não deveria ser algo a se ironizar. — Um mestiço apareceu no Cesaro e os dois lutaram até a morte. Você conhecia Ivan, não?
— Sim, ele me criou. Morávamos todos juntos no Cesaro. É uma pena, mas não chega a ser extraordinário. Nós já imaginávamos que ele voltaria para se vingar de Galope... As coisas já estavam muito complicadas quando eu deixei o Cesaro.
— É isso que me intriga. Eu não imaginava que você fosse Janela. Todos esses anos eu acreditava que você, Bato e Enzo estavam mortos. Adônis nunca parou de se preocupar. O que realmente aconteceu quando vocês fugiram?
A filha de Touro franziu o cenho e crispou os lábios com firmeza.
— Ela não fala sobre o período de antes de ela vir para cá. É melhor não insistir na pergunta, principalmente quando estou presente. — Foi então que Vasto percebeu que o poder de Cristal apenas transformava a fala em verdade, não obrigava ninguém a falar. Uma habilidade mais complexa que o seu mero poder de viajar entre sonhos.
— Tudo bem, então mudemos de assunto. O que aconteceu com Silvestre e Edgar? O filho de Leão e o animal que muda de forma?
—Ah! O espírito animal! Ele é tão lindinho, estava com a gente até agora.
— Como assim? Vocês não podem deixar ele solto! Ele é o novo guardião do templo, quando sai do Cesaro perde completamente a consciência! E se ele se perdeu?
— Nós não sabíamos disso. Ele estava aqui não faz muito tempo. Cristal, vá procurar!
— Edgar! Edgar! — Vasto gritou, mas não viu nada por perto. — E agora? Ele pode ter virado um rato e entrado em qualquer buraco nesse mato todo!
Abigail já se preparava para pedir perdão pelo erro e Cristal estava de pé para procurar, quando uma pequena sombra preta desceu da luz matutina e pousou na mesa. Ciscando o pão, o pequeno anu-preto não deu a mínima para os três. Vasto estendeu o braço para perto e chamou com um sussurro. O passarinho se transformou num furão de pelo amarelado e subiu, se enroscando no corpo do amigo.
— Ele é tão gracioso! — Cristal foi fazer carinho.
— Todos ficaram impressionados com ele, é realmente muito curioso. Disseram até que pode virar um gavião-imperador, é verdade? Já que ele não consegue manter a consciência, é mais seguro deixa-lo no Cesaro, Vasto.
— Ele é muito novo, tem pouco mais que quatro anos. Não podia deixar ele sozinho. E enquanto ele não vira pássaro, é bem tranquilo de tomar conta. É capaz de se transformar em qualquer animal, desde que o corpo tenha volume o bastante para conter as esmeraldas que formam a constelação de Virgem. — “As pedras celestiais.”, Abigail pensou. — E Silvestre?
— Ah, o Leão... Não tenho boas notícias sobre ele. Quando saiu do Impacta, só desembestou a correr sem parar. De início eu e outros generais fomos atrás dele, perseguimos muito mesmo. O rapaz não parava com nada, e era mais veloz que qualquer coisa! Ontem eu soube que um dia após a fuga dele no Impacta, ele já estava no litoral, e correu pela Ponte dos Mundos até sumir de vista. Eu fiquei realmente impressionada. Nenhuma montaria, mesmo seguindo pelas estradas, chegaria lá em menos de onze dias.
— Ele é mais rápido que Galope.
As duas arregalaram os olhos, perplexas.
— Eu não fui atrás dele porque não há veículo que me leve sem dispender grande parte do esforço carregando o meu peso. Por isso preferi ficar na cidade e pegar Reimi. Vocês dois deram muito trabalho, sabia? Normalmente os generais das Famílias restringem o esforço físico ao treinamento físico diário, mas nesses últimos dias todos desenferrujaram as armaduras para caçar vocês.
— Abigail, desculpe perguntar, mas... Por que você não usa armadura? Esta faixa enrolada tem algum significado?
— Não. É um segredo que Ivan me ensinou ainda na infância. As mulheres da ilha em que ele morava se enrolam com essas faixas de tecido, é uma maneira de cobrir o corpo que tensiona os músculos, melhora a circulação e garante melhor flexibilidade. Quando se luta, é uma mão na roda, mas eu acabei me acostumando e uso diariamente. Não é como se fosse fácil ir numa costureira e encontrar um modelo para o meu tamanho, não é? — Cristal e Vasto riram, e o caído do céu percebeu que o clima fraterno presente era tudo que ele desejava desde que chegou à cidade. — Que bom que já nos entendemos, acho que já posso dizer que não vou manter você em cativeiro. Orion quer a cabeça do filho de Leão, mas ele já está fora de alcance. Este é um dos vários cativeiros da Família Antares, não se preocupe que, além de mim, quase ninguém sabe que você veio para cá. Vou dar uma desculpa qualquer, mas é imperativo que você saia da cidade. Quando quiser ir, vá naquela direção. Deixei Reimi e a lança dourada fincados no chão.
Vasto agradeceu por tudo, mas ainda não era hora de ir. Ele precisava explicar a razão de ter ido atrás delas e Renan, e naquele momento, tinha certeza de que conseguiria convencer as duas a segui-lo.
II
Durante boa parte da manhã Cristal e Abigail Duralma ouviram a história de vida de Vasto. Cristal estava a par de muita coisa, é verdade, mas buscou não interromper a narrativa, pois sabia que era importante para o filho de Áries que Abigail ouvisse tudo com ela por perto – a filha de Touro já não carregava desconfianças, mas para Vasto era imprescindível garantir a sua sinceridade. O homem explicou seu poder de caído do céu e a possibilidade de conversar com a mãe através dos sonhos. Pela boca dela ele soube seu destino de herdar a lança dourada e reestabelecer o equilíbrio em Maciaan.
— E Ivan realmente deu um fim a Afrodite? — Abigail quis saber.
— Tudo indica que sim. Ele me disse que o equilíbrio de poder estava restaurado, pois já havia destruído umas dádivas...
— As dádivas do mundo. Ele nos contava que essas constelações nas nossas costas são formadas por pedaços de uma delas. — “Equilíbrio de poder... Muito estranho ele usar exatamente estas palavras. Mas acho melhor não dizer nada.”, Abigail pensou.
— Exato! Ele até sugeriu que o fim da missão seria exterminar os filhos do zodíaco, e por isto eu precisaria me encontrar com todos para mata-los e destruir a última dádiva. Mas não posso acreditar que seja verdade. Nossa mãe jamais desejaria a morte de um de nós; se ao menos eu pudesse mostra-la a vocês, compreenderiam que não há qualquer intenção maligna no desejo dela... É uma pena que longe do Cesaro seja tão difícil vê-la. Consigo acessar e mudar os sonhos das outras pessoas, mas ela eu nunca mais encontrei – nem mesmo nos meus.
— Você pode tentar no templo do leste, Vasto — Abigail sugeriu — muita gente desconhece porque esta floresta em que estamos era restrita ao Rei Scorpio, muito tempo atrás. Era abarrotada de animais selvagens, quase ninguém se arriscava a entrar. Depois que a Família Antares empossou as terras, a maioria das feras foi exterminada, é um lugar tranquilo, só utilizado para abrigar as prisões especiais e o casarão da família. Na verdade os únicos perigos que temos aqui são soldados da família, como eu. — Abigail apontou para o lado sul, afirmando que o templo ficava após poucos dias de viagem.
— Que coragem dele, morar tão perto de prisões que guardam inimigos...
— Não é perigo nenhum, a casa é fortemente guardada; a Família Antares é a mais numerosa das quatro. E o risco não é tão grande, também. A maioria das prisões está vazia, e normalmente são ocupadas por alguma razão especial, que raramente está ligada à periculosidade do detido.
— Entendo, como eu e Renan, não é?
— Sim. Mas não adianta me olhar desse jeito, eu não sei qual a prisão que abriga o rei nem tenho pretensões de descobrir. Mas, se você está tão interessado, tem uma pessoa que sabe... — Abigail olhou para a filha de Aquário. Com o rosto corado, Cristal entrou na conversa:
— É verdade, eu conheço o lugar, e vou lá com certa regularidade! Não deve ser difícil concluir que o meu poder me dá acesso a muitas coisas que de outra forma seriam proibidas ou até impossíveis. Não quero me gabar, mas dentre tantos guerreiros poderosos, matemáticos brilhantes e personalidades de grande poder sob seu comando, eu sou a pessoa mais valorizada da família. Sim, eu preciso estar constantemente acompanhada, e não raro devo comparecer forçadamente – ou deixar de comparecer – a certas reuniões e eventos, mas até que tenho um grau de liberdade considerável, até invejado por algumas pessoas do mais alto ranque. Posso dizer que me arranjei bem na vida, não acham? E mesmo assim cá estou, considerando fugir do bem bom para ajudar meu irmãozinho a realizar seu sonho...
— Sauza deu a essa aí uma língua e tanto, hein?
— Até que ela não é das piores. Devia ver os que nascem dentro do castelo, aos dez anos de idade conseguem falar por horas a fio sobre a função do proselitismo na oratória, demonstrando por vias práticas que o ensino foi bem erigido. Tem coragem mesmo de trair Orion, Cristal?
— Não estou tão certa. — A mulher mordeu o lábio inferior. — É que minha vontade de colaborar é tão grande, e Vasto me causa um sentimento estranho de nostalgia e brandura, eu simplesmente não consigo me manter impassível. É um aluimento enternecedor, não sei bem como me expressar sobre isto, ainda mais vendo que ele não é exatamente um primor em originalidade.
— Você sabe que, numa eventual fuga, eu serei obrigada a te caçar e te trazer de volta, não é? — Vasto sentiu que tinha alcançado a familiaridade necessária com as duas. Já não se sentia apreensivo com nada, pelo contrário, observava o diálogo com atenção ostensiva. Abigail, com seu porte físico avantajado e semblante sisudo, não aparentava ter seus quarenta anos – mas certamente tinha esta idade, pois já tinha mais de dez quando Cristal chegara junto com Renan. Cristal, por outro lado, não teve o esforço físico diário necessário para ajudar a manter a juventude, mas era um daqueles casos raros em que a jovialidade se prende de tal forma ao rosto e corpo que leva dúvidas a qualquer lugar que passe; chegava a aparentar ser da idade de Silvestre, mais velha só um pouco. O rosto bonito e o tamanho dela garantiriam o aspecto conservado ainda por muitos anos, até Vasto custava a acreditar que ela estava chegando aos trinta.
— Abigail, você não precisa caçar ninguém. Não há nada que a prenda aqui, sabe disso, mas parece não querer considerar a opção de vir conosco.
— Vasto, eu já tenho minha vida aqui, não posso mudar só porque você quer.
— Mas pode mudar porque VOCÊ quer! Por que não ir atrás de uma nova vida, com novas pessoas? De qualquer ângulo que se analise, a única coisa que impede a sua saída daqui é você não querer.
— Não, eu não posso. — Abigail Duralma sabia que a vida que ela almejava não dependia só dela querer; era preciso que outra pessoa quisesse também. Preferiu se calar a dar com a língua nos dentes sobre um assunto que nem Cristal sabia.
— E Guiara? Ela mora aqui perto de Kelicerata! Devíamos ir buscar ela para nossa aventura! — A excitação de Cristal levou Abigail à gargalhada.
— Vasto, pelo visto você já arranjou mais uma companheira de loucuras, então vamos combinar o seguinte: se você conseguir reunir os onze filhos do zodíaco, eu prometo, em nome da graça de Sauza, que me uno a você na busca por este destino misterioso. Eu não estou brincando — ela quis assegurar a sua sinceridade apesar da presença de Cristal, pois ainda estava rindo bastante do entusiasmo da irmã mais nova — mas confesso que acho impossível a sua vitória. Para você ter ideia, seu amigo Silvestre pode estar em qualquer lugar de Maciaan a esta altura, julgando pela velocidade dele. Isabel é outra que ninguém nunca ouviu falar no paradeiro, sem contar os outros. Reúna todos e terá minha ajuda incondicional!
— Não ligue para ela, Vasto! Guiara é muito fácil de encontrar, e acho que ela conhece a localização de Dolga. Chamamos eles e vamos para Aman-Can, lá acharemos Enzo e Bato!
— Boa sorte em convencer estes dois. Já ficamos tempo demais aqui conversando. Vasto, vou ali dentro ordenar que meu subordinado esqueça sua estadia, aproveite para sumir das minhas vistas. Cristal, você é livre para fazer o que quiser, mas se for fugir, é melhor ir para bem longe. Edgar, pequenino, foi um prazer conhecer você. Até mais, meus amigos, que Sauza guie os seus caminhos!
— Ela é sempre assim, tão decidida?
— Desde que eu a vi pela primeira vez. Vamos indo, Vasto?! Que emocionante!
— Vamos, ela disse que a lança e Reimi estão daquele lado.
III
Demorou trinta minutos até acharem Reimi e a lança. Cristal, apesar de passar quase diariamente pela floresta, era acostumada a seguir pelas estradas; com o chão coberto de folhas amareladas, ela andava com passos curtos e calculados, quase que passando a vista em todas as folhas antes de avançar. “Pode ter alguma cobra embaixo delas!”, afirmava. Só para pregar um susto, Vasto afastou-se dela com uma desculpa qualquer. A filha de Aquário continuou seguindo devagar, tateando o mato à frente com um galho seco e prosseguindo, até que foi agarrada por um bicho no tornozelo. Gritou, caiu dura feito jaca e começou a espernear. O esquilo voou da sua perna e rolou no chão próximo, fazendo-a sentir um pouco de vergonha pelo escândalo desnecessário. Quando o animal correu para Vasto e subiu para o ombro dele, ela deixou-se levar pela raiva e partiu ofendida para cima do filho de Áries. Ele ria a plenos pulmões da reação dela, exaltada sem conhecer limites, mas tomou uma postura mais séria quando a mulher chegou perto e empurrou com força o seu peito.
Vasto não reagiu ao empurrão nem chegou a responder às ofensas. Agora que conhecia o poder de Cristal, evitaria falar sempre que houvesse algum risco de discussão mais enérgica. Mesmo com razão, dizer que uma coisa não era nada demais pode ser deveras ofensivo, quando não se tem controle das palavras. Ela tirou o cabelo da frente do rosto, catou Edgar do ombro de Vasto e passou a leva-lo consigo, com a cara emburrada, até encontrar Reimi e a lança.
— Segure-se com força. — Vasto posicionou a mão dela na frontaria de Reimi e fez o mesmo. Lembrando-se dos anos em que via Reimi diariamente, a mulher se impressionou com o quanto ele continuava crescendo. Ambos escoraram-se no couro inclinado do bicho e ele abriu suas asas enormes. — Pronta?
Ela sorriu e Reimi subiu com velocidade, batendo as asas contra o vento forte. Já estabilizados, ela se ajoelhou e admirou a vastidão verdejante que se estendia até o horizonte. Do lado leste, montanhas apagadas despontavam com picos agudos, e a noroeste era possível ver a longínqua capital de Kelicerata.
— Que saudade! Eu já tinha me esquecido o quanto voar é maravilhoso! Vamos chegar tão rápido à casa de Guiara com isso!
— Mas não vamos ver Guiara ainda. Estamos reunindo os caídos do céu, lembra? Tem mais um que precisamos visitar...
— Vasto, se ele sumir, Orion vai mandar Abigail atrás de nós, eu não acho que seja muito inteligente libertar Renan agora. Imagine só, ela até sabe qual o nosso objetivo, vai nos achar em um piscar de olhos!
— Cristal, ela virá atrás de nós de um jeito ou de outro! Quando libertarmos Renan e ele retomar o reino, é possível que Orion amanheça na cadeia, você sabe disso. Você o teme porque está sob a influência dele há muitos anos, mas confie em mim, você só precisa me mostrar a direção de Renan.
— Está bem, mas fique avisado de que Orion precisa de mim, já você... Será degolado na primeira oportunidade.
— Não tem problema. Eu consigo ser bem convincente, se ele gosta de informação, podemos trabalhar em turnos. Você consegue durante o dia, e eu consigo durante a noite. Vai dizer que ele não ia gostar de um espião que se infiltra em sonhos alheios? — Vasto riu, diminuindo a preocupação de Cristal, que mudou o curso de Reimi ainda achando que aquela era uma má ideia.
***
Vasto reparou que a casa que prendia Renan era muito menor que a anterior, e bem mais escondida também. Era claramente uma construção feita para conter apenas uma pessoa, e montada dentro da mata fechada para dificultar ao extremo a sua descoberta. Como na prisão anterior, apenas uma pessoa era encarregada de tomar conta, e neste caso o carcereiro foi tranquilizado com apenas uma frase:
— Não tem problema, ele é um Antares, Igor. — O homem troncudo e baixinho anuiu, voltando a atenção dos seus zarolhos para o livreto que segurava nas mãos, sem sequer levantar da poltrona.
— O que foi isso? — Sussurrou.
— O quê? Quem não pode mentir são os que me rodeiam, eu posso mentir à vontade! — A baixinha seguiu triunfante, deixando Vasto estacado de surpresa.
A cela era idêntica à de Vasto. Um espaço minúsculo com uma janela pequena gradeada, por onde o frio da noite entrava apologeticamente, arrastado pelo vento da floresta. No chão uma jarra vazia e um balde pequeno que encafuava três varejeiras. Na cama, o rei estava virado para a parede, desbriado, abstruso em seu mundo vazio, soturno e decadente sabe-se lá por quantos anos.
— Renan, olhe só quem veio ver você! — A mulher bateu duas vezes com o anel de prata na porta da cela.
— Hoje estou de mau humor, Cristal. — Resmungou, com a voz rouca de quem não fala há muito tempo. Quero dormir, estou fedido e sem paciência. Deixou algum livro com Igor? Ultimamente ele não os traz para mim de propósito, só para me torturar e passar o tempo; acho melhor que jogue aqui no chão para eu pegar.
— Livro? Mas que audácia! É só vivendo com você para presenciar um despautério desses; como pode um prisioneiro, isolado de tudo e de todos, reclamar de uma visita? Nunca vi tamanha sandice, coisa de quem já não bate bem da cabeça, se é que posso ser franca. E pensar que vim com o maior prazer e ansiedade, pressurosa para trazer a ti uma luz nesta vida porca e sombria cuja maior distração é o piado das corujas. Eu já estou quase arrependida, Vasto.
— Calma, não vamos brigar sem motivos. Renan... — O filho de Escorpião levantou logo da menção a outra pessoa. Gordo, com cabelos e barba crespos cobrindo toda a figura, Renan exibia um olhar aparvalhado, tosco e de profunda tristeza. Sentado na cama, parecia uma caricatura; envergonhado, mas demonstrando um tanto de curiosidade, o caído do céu mais se assemelhava a um mendigo urbano muito bem alimentado.
— O que foi que houve com vocês dois? Viemos aqui soltar você, Renan! Vamos logo, Vasto, dê um jeito nisto aqui — a mulher tentava forçar a porta metálica com seus braços finos.
— Tenho que voltar lá e derrubar o carcereiro. Pegar a chave e...
— Não tem chave. — Renan afirmou com voz gutural, cavernosa e perdida no escuro do rosto.
— Como não tem chave?
— Esta porta nunca se abriu desde que eu fui jogado aqui. Igor já pediu a chave a Orion e mesmo com a condição de uma escolta permanente, ele se negou a entregar. — Apesar do tom de pele claro, mais branco que a maioria, e do cabelo muito preto, Vasto não viu muitas convergências físicas entre ele e Cristal. Mesmo gordo, era perceptível que tinha certa musculatura, e era até mais alto que o filho de Áries, em contraste com a pequenez da filha de Aquário.
— Não tem problema, vamos arrombar.
O caído do céu premeu a ponta da lança dourada na fechadura metálica e fez força. “Vai partir a ponta da lança.”, Cristal apontou, mas Vasto lembrou-a da indestrutibilidade da lança dourada, e a pequena se atirou de chofre no cabo. Com o peso dela e o puxão de Vasto, como um braço de alavanca a arma arrebentou a porta da cela. O filho de Escorpião chorou silenciosamente quando viu a porta se arrastar com um rangido. Fedido e mal-ajambrado, o rei de Kelicerata pisou do lado de fora da sua cela, com seus pés descalços, pela primeira vez em muitos anos.
— Que barulho foi esse? O que vocês estão fazendo? — Igor apareceu no corredor curto, com a cara estremunhada. Logo despertou quando viu Renan do lado de fora. Sumiu de vista por um segundo e reapareceu na extremidade do corredor, portando uma adaga na mão direita e um molho de chaves na esquerda. — Eu sinto muito, Cristal, mas ele vai ter que voltar. Não posso deixar ele sair daqui, ou meu pescoço já era!
Cristal tentou argumentar qualquer coisa, mas antes disso houve um efêmero espaço de tempo infinito, sem cadeia, sem Cristal, sem Vasto, sem Igor, apenas chaves. Chaves penduradas, balançantes, mirando o solo, envergonhadas. Uma era pequena e escura, parecia apropriada para trancar gavetas. A terceira era mais comum, típica de fechaduras usadas em portas normais, mas a segunda, a que estava no meio e sacudia, de um lado para o outro, empurrada pelas irmãs inocentes, ela servia um propósito muito diferente. Era uma chave grande, de um metálico fosco e com o poder de trazer muita felicidade.
— Igor, você precisa sab...
Um furacão calou Cristal e uma fúria veloz levou Renan para frente, aturdindo Vasto e Cristal por segundos. Foi instantâneo, em um momento Renan estava ali, no outro havia sumido com Igor, porta afora.
— Vamos! — Vasto correu para a floresta, seguido por Cristal, ambos com o coração acelerado dentro do corpo, quase fora. — Onde ele está?
— Não sei!
Os dois olharam para o alto. Era o mais lógico a se fazer, Renan voava! Um ponto negro no céu azul continuou existindo por alguns segundos até sumir na imensidão celeste.
— E agora?
— Não sei, devíamos ter conversado com ele antes de abrir a cela. Fique aqui um pouco, vou tentar chegar até ele com Reimi, se bem que na velocidade que ele saiu daqui...
— Eu vou junto! Eu consigo convencer ele! — Mal Cristal fechara a boca, um grito crescente cortou a selva. Vasto esquadrinhou a região, mas o que ocorreu foi muito rápido para que ele tomasse qualquer providência. O corpo caiu e nem os galhos robustos conseguiram diminuir o peso da queda, só o chão feneceu, para sempre, o grito de socorro de Igor.
Cristal não se conteve e correu, quase aos prantos, para o lugar da queda de Igor; ao se aproximar, entretanto, se negou a chegar junto ao corpo. Ajoelhou-se com pesar e levou a mão à boca, assustada com o estado do corpo à sua frente, entrevendo pelas folhagens agitadas o cadáver ensanguentado do carcereiro. Vasto veio em seu encalço, mas não parou por pesar, apenas checou o rosto da filha de Aquário e, após constatar que ela não sofria nenhum choque, deu uns passos além, erguendo o olhar para a copa das árvores, de onde descia a figura soturna de um homem esmigalhado. Gargalhando e chorando ao mesmo tempo, o gordo filho de Escorpião descia leve e constante, como os feixes de luz que fendiam o verde e clareavam o chão da floresta. Quando tocou os pés na terra, Vasto já estava junto a ele, de braços abertos e coração apertado, nitidamente emocionado. Os dois se abraçaram longamente, e após encerrar sua oração, Cristal se uniu a eles. Edgar pela primeira vez se revelou a Renan, e já sem choro na voz, o grandalhão perguntou:
— Por que você anda com um tatu dentro da camisa?
Após algumas risadas – muito mais de compaixão que de divertimento – e uma breve explicação sobre o filho de Virgem, Vasto fez o apelo que precisava, já disposto a receber um não, pois Renan, naquele estado, poderia fazer o que quisesse e ele seria o último a desagravar suas motivações.
— Renan, meu irmão, sei que muita coisa deve estar se passando na sua cabeça. Eu senti, quando vi você sair voando pela porta, a tempestade de sentimentos ruins que correm pela sua mente. Mas por favor, me ouça, dê um crédito a quem só lhe quer o bem. Precisamos de você conosco e fora da capital. Claro, se você tiver que negar e voltar para a capital, eu compreendo e...
— Vasto, Vasto! Ah, pequeno Vasto dos olhos brilhantes... Você cresceu, se tornou um homem; e me tirou de uma tortura sem fim! Eu farei, de bom grado, o que vocês quiserem, PELO O RESTO DA MINHA VIDA!
Cada um recebeu um profuso abraço de Renan e logo a nova direção de viagem tinha sido determinada. Buscariam pelo paradeiro de Guiara, a filha de Câncer, ao sul daquela região. De ânimos restaurados, o grupo viajou pelo céu, e até as nuvens se contagiavam com a gritaria feliz de Cristal quando ela saltava de Reimi para o vazio.
— Ei, não acha que isto é um pouco demais da conta? — Vasto questionou quando ela foi arremessada novamente ao lombo de Reimi por Renan. Antes de pular de novo para uma queda segura, ela retrucou com seus olhos escuros cheios de brilho:
— Não seja rabugento, Vasto. Este é o momento mais propício de nossas vidas para celebrar, e sendo uma virgem, não posso evitar este tipo de sentimentalismo. Estamos juntos de novo! — E ela se foi para ser apanhada pelos braços do homem voador.
Com um largo sorriso no rosto, o filho de Áries afagava a barriga de Edgar – agora transformado num pequeno felino – enquanto desejava que tudo desse certo, mas com uma pontinha de preocupação por não ter Silvestre por perto para conter as eventuais contingências. E o pensamento de que elas apareceriam nunca abandonava completamente a mente do herdeiro da lança dourada.
IV
Diferente de Vasto, que se encantava com a vista panorâmica dos voos em Reimi – em especial adorava o nascer do Sol; “A beleza fulgural da luz solar queimando as primeiras camadas de nuvens é inigualável. Assim como a visão do sol nascente é diferente no mar e na terra, no céu há algo de singular, e singularmente austero. Gostaria tanto que todas as pessoas pudessem voar como agora faço, pois, quando vislumbrassem a cena que vejo sobre o mar de nuvens, certamente entenderiam o que quero dizer.”, ele uma vez pensou – o filho de Escorpião era mais preocupado com o que podia ver abaixo do seu percurso. Ele chamava aquilo de curiosidade, mas havia algo de especial que sempre puxava seu interesse para os transtornos subjacentes. Talvez isso fosse um sinal da sua nobreza verdadeira, uma preocupação genuína com seus súditos? Ele nunca parou para pensar profundamente sobre, mas nos três dias de viagem que se passaram, ele olhou para baixo muito mais que Vasto e Cristal.
— E então, Cristal? Não tem ideia de onde ela mora?
— Já disse desde a primeira vez que não sei exatamente o local! Quero que pare já com esta cobrança por indicações atiladas, pois estou com minha consciência limpa quanto a isso.
Renan pousou junto a eles e sugeriu:
— Nós passamos por um povoado, olhem lá embaixo. Por que não descemos para perguntar? Aqui na área rural todos devem saber uns dos outros, seria mais fácil buscar o paradeiro de Guiara perguntando.
— Nada disso! Quanto menos gente colocar o olho em nós, melhor. Vamos manter a direção e ver se Cristal se lembra de mais alguma coisa, se avistarmos alguém solitário, podemos até descer e perguntar, mas nada de aparições públicas.
— Eu vou.
— Ei! Renan! Eu falei não! — Mas era tarde e o caído do céu já tinha pulado.
— Vasto, deixe ele. Os banhos no riacho podem ter ajudado um pouco, mas ele ainda não tem nada de proeminente, com certeza vão pensar que é um vagabundo qualquer de rua, longe de alguém liga-lo à figura de um rei.
Vasto puxou ar para explicar que não seria por um rei que os asseclas de Orion estariam buscando, ou ao menos não diriam abertamente que se tratava de um, mas a mente volátil de Cristal já tinha se virado para outra coisa, e ela empenou Reimi, buscando pousar.
— Veja só, uma criancinha! Que melhor jeito de arranjar informações sem deixar rastros?
Desta vez Vasto não cogitou repreender Cristal. A criança estava andando à toa e sozinha, e com certeza tinha menos de dez anos, a faixa etária em que nem a certeza absoluta e comprovada sobre um assunto garante credibilidade. Quando Reimi mergulhou e pousou próximo a ele, o menino perguntou um pouco espantado:
— O que é isso?
— Garotinho, como você é bonito! Como você se chama? Você mora por aqui? Já ouviu falar de uma mulher chamada Guiara? E sabe onde ela mora?
O menino, que se identificou como Otávio e vinha respondendo tudo só com a cabeça, falou com um berro:
— Sei! E quem é você?
— Nós somos velhos amigos dela — Cristal continuou — você bem que podia ser educado e nos mostrar o caminho, não é? — Vasto logo reparou na burrada. “Para que lado fica a casa?” ou “Como chegamos à casa dela?” deveriam ter sido as perguntas, pois o poder da filha de Aquário bastaria para fornecer as respostas exatas que eles precisavam, e vendo a perda da oportunidade, ele tirou alguns caramelos e ofertou como agradecimento pela cordialidade do menino. Mas o menino surpreendeu os dois, e de repente o jeitinho tímido se findou quando ele viu os doces na mão estendida de Vasto.
— Não! — Os olhos ainda arregalados se viraram e a criança começou a correr pela trilha por onde tinha vindo.
— Que menino mais imprevisível! Que será que deu nele? De qualquer jeito, ele tem as informações que precisamos, vamos catar ele de uma vez por todas que eu tiro as respostas, rapidinho. — Ela puxou Reimi, mas antes de levantar voo, o filho de Áries a impediu.
— Calma, Cristal. O menino está assustado; não sei por que motivo, mas ele com certeza está amedrontado. Vamos deixar que ele nos leve ao seu lugar seguro, com sorte a vila em que ele mora é a mesma que abriga a casa de Guiara. Eu vou aqui por baixo, não ouse fazer nada contra o moleque, apenas vá por cima me acompanhando.
Vasto foi sagaz, manteve uma velocidade baixa o bastante para que o menino o avistasse quando olhasse para trás, mas permitindo que ele pudesse se afastar um pouco quando acelerasse, assim acharia que sua fuga estava dando certo. Em dado ponto, ele desviou da trilha e enveredou por um pasto, cortando por entre o gado. Vasto hesitou, pois não conhecia os bichos. Quando o menino já pulava a cerca do outro lado, Guiara surgiu ao lado do caído do céu prevenindo que a perseguição continuasse.
— Não tem nada daquele lado, nada de povoado ou vila. Só tem aquela casinha. — A casa azul logo após o cercado, para onde o menino rumava.
— Olhe, apareceu alguém, deve ser a mãe. Fique aqui quieta e não deixe Reimi nem abrir as asas, vou fazer a volta e perguntar a ela, com certeza vai nos ajudar.
— Não precisa, seu bobo. Vem! Você pode não lembrar porque era muito novo, mas não precisamos mais procurar. Aquela com Otávio no colo é ela. Achamos Guiara.
SILVESTRE
UM MITO ENCARNADO
V
A disputa vexatória terminou duas horas após a saída dos limites de Kelicerata. Setas cruzaram o céu escuro e nem invisíveis acertaram o corpo de Silvestre. Para proteger Vasto, ele se conteve e preferiu seguir adiante com a fuga, mesmo quando boa parte da multidão se cansou e deixou a tarefa por conta da cavalaria.
O filho de Leão manteve o passo, às vezes deixando os cavaleiros se aproximarem um pouco, mas o general que liderava a perseguição era experiente para saber quando estava fazendo papel de trouxa. Ordenou mais uma saraivada de flechas e segurou a cavalaria; os homens acariciaram suas montarias ofegantes, alguns cuspiram em revolta, mas o general não se desapontou. Era melhor que aquele monstro se perdesse na correria, ou sumisse de vez, contanto que fosse para longe da cidade.
— Há coisas que é melhor ficar sem conhecer. — Ele sussurrou, antes de recolher a tropa.
Tão longe da capital, lhe acometeu a única ideia plausível. Vasto e Edgar eram queridos e necessitados de sua ajuda, mas ele tinha outra missão na vida; era dever do filho de Leão reinar sobre as terras do oeste de Maciaan, um dever garrido, que exigia o que de maior havia em força e honra, mas, principalmente, era um direito legítimo e suposto do caído do céu escolhido a dedo por Sauza.
Vasto tinha sua missão, e Silvestre o ajudaria quando chegasse a hora em que o destino os reunisse, mas a missão do Leão era, em princípio, inatacável. Casul, perdida há anos, reclamou aos céus por um renascimento, e de tal súplica surgiu o homem mais forte do mundo no Cesaro. Com quase dezoito anos, Silvestre nunca havia saído do seu recanto no norte de Kelicerata. O leão fora domado, mas a ferocidade pulsa nas veias, e não seriam lições de moral ou chantagens emocionais os grilhões capazes de conter o poder da reencarnação de Sauza.
“Reencarnação de Sauza”, ele pensou novamente. Acelerou a corrida, mesmo sem ter mais ninguém correndo atrás dele, e seu corpo se dobrou contra o vento, as luzes celestes se alongaram em terror e o céu se curvou perante o homem que abrigava a força de mil estrelas dentro de si. Não percebeu mais o chão sob seus pés, apesar de ainda estar correndo, e pela primeira vez, Silvestre sentiu que estava correndo mais rápido, que estava no seu limite.
Ele subiu a mão pela testa e adentrou o cabelo com os dedos, enxugando o suor; resvalou a palma da mão no chão, para secar os dedos na grama, mas também para sentir o chão, a terra daquele mundo que ele acreditava não ser o bastante para seu poder. Após algumas colinas, ele reparou numa cidade iluminada próxima à Ponte dos Mundos. Era hora de se provar como superior. Não aos outros, mas a si mesmo; e a Rupert Grankill.
Com um salto ele alcançou as ruas da cidade, e teve a impressão de ter caído devagar demais. Os transeuntes assustaram-se com o pouso do garoto de cabelos loiros, mas não esboçaram reagir contra ele. Apesar de se vestirem com bom gosto, não pareciam gente muito inteligente, e Silvestre não os deu atenção.
Seguiu para a ponte construída por Sauza, reparando em como era tudo muito iluminado, mesmo tão tarde da noite, graças à ostensiva iluminação pública. As consecutivas lamparinas a óleo clareavam o caminho de pedras elegantemente delineado. Era capricho de gente rica ter aquele nível de detalhe com algo frívolo como uma rua de passeio, mas, novamente, ele não estava ali para se deter por coisas sem importância. Foi até a Ponte dos Mundos, onde brutamontes se ocupavam em trabalho braçal, e ignorou todos eles, rumando para a pedra branca e, olhando o céu pontilhado de estrelas encimando o escuro mar revolto, se preparou para correr.
— Quer morrer, otário?
— Eu vou correr até o outro lado.
— Mas é bobo. Vem vindo um carro amanhã. Vai te pegar quando você já tiver voltando arrependido.
— Eu pulo por cima dele.
Silvestre partiu; começou correndo devagar, mas mais rápido que qualquer alazão. O filho de Leão correu por oito dias e sete noites sem parar para comer ou descansar e chegou ao outro extremo da Ponte dos Mundos. Com a terra nova diante de si, ele prometeu que retomaria Casul e uniria o continente sob seu comando. Precisou de apenas vinte e sete dias.
Capítulo 11: Reencontros e soluções
I
A recepção não poderia ser mais calorosa. No breve voo de Reimi por cima do pasto, a visão do menino choroso no colo da mãe mudou, e pousaram em frente à casa azul recebendo o abraço de Guiara. Otávio, ainda encolhido próximo à casa, tinha encerrado o seu medo e a cada gesto ia abandonando a desconfiança. “Não precisa ter medo, bobo. É a família da mamãe. Você não queria conhecer todo mundo? Vamos, enxugue essas lágrimas.”, disse ela antes de colocar o menino sob o alpendre e correr com um sorriso no rosto.
O abraço entre Guiara e Cristal demorou-se mais por ser daqueles que evocam boas memórias quanto maior o aperto, adequado a elas, que tinham um elo fraterno mais forte graças à criação dedicada de Cíntia. Guiara lembrava-se de Vasto também, mas com ele convivera pouco, antes de seguir Dolga na fuga para a capital. E por conviver pouco foi que o homem não estava preparado para encontrar alguém com tanta beleza. Ela era bem mais velha que Cristal, e também não tinha os dentes meticulosamente alinhados e a jovialidade ilusória da filha de Aquário, porém tinha uma figura requintada, de destaque entre o comum, mas sem sair dele. As sardas e sinais que viu nos ombros existiam também no rosto, fracamente, devido à pele ser mais queimada ali. Os cabelos ondeados e castanhos se alongavam lateralmente e os olhos cor de lagoa eram excepcionalmente atrativos. Chegou a contemplar aquelas pedras preciosas em silêncio, sem ouvir as breves palavras de boas-vindas de Guiara, mas respondendo-as mesmo assim.
— Quanto tempo, é tão bom ver vocês! Vasto, quando eu saí de lá você ainda era pititico! Que homem bonito se tornou! — Ela acenou para Otávio, que se aproximou e segurou na mão da mãe. — Otávio, conheça Vasto e Cristal, você pode dizer a todos os seus amigos que são seus tios, está vendo? Não era mentira do Luca!
— Luca está aqui? — Cristal perguntou, animada. Precisaram explicar a Vasto, que não fazia ideia da existência de um filho mais velho. Luca tinha dezessete anos e era o primogênito de Guiara; nascera um ano após o aparecimento de Silvestre, e como ela já tinha fugido de Caxa nessa época, era natural que Vasto não soubesse. Ficou bastante preocupado com aquela informação, pois era um bom motivo para Guiara negar participação na viagem louca em que vinham empregando esforços. O nome também não agradou: “Luca”, o tal herói falso; logo Guiara, uma filha do zodíaco, desprezando a verdadeira história da Guerra de Maciaan, contada no diário de Tiestes – mas Vasto não estava sendo justo, pois a filha de Câncer tinha sido criada por Cíntia, não por Adônis; por sorte ele não precisou abrir a boca para falar sobre o nome do rapaz na presença de Cristal.
— Que maravilha! Viu só, como foi simples, Vasto? Já que Luca trabalha com Dolga no povoado, podemos ir agora mesmo e chamar ele também. Oh! Mas e Renan? Por Sauza, e agora? Maldito trapalhão, separou-se de nós e agora está nos dando trabalho extra...
— Chamar para quê? O que têm em mente? Acho que preciso falar umas coisas sobre Dolga, por que não entram para tomar um chá? Eu não vou a lugar algum, e ainda tenho muito tempo para tomar conta desta boiada aqui.
— Sim, é melhor que nos acalmemos um pouco, Cristal. Tenho que explicar tudo a Guiara — a mulher de profundos olhos azuis notou que aquela visita não pretendia apenas matar a saudade — e é melhor que sejamos claros na exposição dos fatos.
De acordo, os três entraram na casinha azul para conversar. Reimi foi solto para voar pelas redondezas, de forma a atrair a vista de Renan quando ele voltasse ao céu, e Edgar foi devidamente apresentado e entregue ao menino Otávio após se transformar num cachorro de porte amigável. Os dois passaram a brincar do lado de fora da casa, enquanto os adultos se acertavam entre goles de chá de camomila e mordidas de bolo de trigo.
O filho de Áries recontou novamente seu propósito com a peregrinação em Maciaan, desta vez com calma e podendo se ater a detalhes que antes nunca mencionara. Era fácil entender o motivo: Guiara não viveu no Cesaro, portanto estava alheia a Ivan e sua missão de vida; da mesma maneira, não conviveu muito com Vasto, então ele pôde destrinchar seus sonhos de anos a fio, tergiversando sem se preocupar – e sem incomodar, pois Guiara se excitava a cada informação apresentada.
Após concatenar o que podia entre o intuito de Ivan e o que ele acreditava ser seu motivo de viver, ele narrou a morte de Galope e Ivan e a consequente jornada que o levou até ali. Exasperada com a história, mas com pesares modestos sobre as perdas que Vasto comunicou – ficou especialmente transtornada com o que soube sobre a vida de Renan – Guiara sentiu-se na obrigação de dar esclarecimentos específicos que afetavam diretamente a missão que a misteriosa mulher dos sonhos havia dado a Vasto. A primeira não era novidade: tal qual Abigail, preferiria ficar esperando que todos se unissem para, só então, ela tomar parte na restauração do equilíbrio de poder em Maciaan.
— Fiquei com garganta seca, as vistas turvas e as mãos trêmulas — Cristal começou — de saber uma coisa dessas, irmã! E pensar que vir até você foi ideia minha, como vou conseguir viajar ao lado de Vasto depois desta desfeita? Mas também, sempre fui muito pueril; devia ter levado em conta seu temperamento coriáceo, como fui tonta!
— Não diga uma coisa dessas, Cristal. Ela está mais que correta em pensar na família que tem aqui. E se demos a opção a Abigail, não há motivo para não levarmos em conta a situação de Guiara. Ela já prometeu nos ajudar quando reunirmos os demais, e ainda nos mostrou onde se encontra Dolga, já é mais ajuda que a participação inteira de Silvestre!
— Cristal, Vasto, sobre Dolga... A outra coisa importante que tenho a dizer é sobre ele. — As sobrancelhas da filha de Câncer tornaram-se rijas sobre olhos solenes, e Vasto previu algo de ruim. — Ele não pode andar. Ficou aleijado pouco tempo depois de fugirmos de Caxa.
A condição do filho de Gêmeos pegou ambos de surpresa. Ouvir aquilo agravou o mal-estar de Cristal – chegando a tornar a sua aflição verdadeira, não só teatro – e arrefeceu a convicção de Vasto. Imaginava alguma dificuldade por parte do gênio de Dolga, dito ser muito problemático por Cíntia, mas aleijado? Aquilo era impensável!
— Mas... Guiara, o aleijamento não tinha ocorrido na infância? Não foi curando as pernas dele que finalmente descobriram seu poder? Como pode ele estar inválido ainda?
— Não, não — Guiara baixou o rosto e sua voz mudou com a respiração — daquela vez ele estava curado, eu consegui reverter os danos por completo. Mas depois, quando já estávamos mais velhos, eu não consegui curá-lo a tempo. Eu tinha dezessete anos e agi sem pensar...
Vasto e Cristal não quiseram ouvir o resto quando a primeira lágrima caiu em cima da mesa, mas Guiara contou, com soluços e estrito arrependimento, o que houve com Dolga. Ocorreu que na fuga definitiva para a capital, os irmãos se valiam do poder de cura de Guiara para dar asas a seus deslumbramentos, quase nunca medindo consequência dos atos. As personalidades não colaboravam. Dolga prepotente por natureza, não pensou duas vezes sobre fustigar o ego dos comuns numa ocasião da Entrega do Corcel. Entrou na competição e, valendo-se de sua agilidade sobrenatural, conseguiu marcar seu nome na história com um recorde invencível. Mas não parou por aí, teve que provocar, humilhar e por fim desprezar os participantes pelo simples fato de serem camponeses. Para Dolga, qualquer coisa abaixo da imagem que ele fazia de nobres e majestosos cortesãos da capital causava asco.
Guiara tinha caráter edificante, nunca fazia pouco dos outros e prezava pelo bem dos menos favorecidos, era evidente a discrepância das duas cabeças, mas ela não negava suas paixões. A filha de Câncer era emotiva, carinhosa, protetora; e calculista, suscetível e explosiva! Suas percepções emocionais sempre excediam o extremo, e na Entrega do Corcel, em meio à multidão, ela conheceu Gian. Os dois eram almas gêmeas – se deram conta no primeiro olhar – e a emoção fez o seu papel. Ambos esqueceram o evento e passaram o dia sendo um do outro, e o dia seguinte, e o posterior... Quando menos se esperava, Gian já estava na capital buscando serviço como cuteleiro, de mãos dadas com a realizada Guiara. E ele conseguiu trabalho, pois sabia do ofício, e a emoção de Guiara novamente falou mais alto, era hora de casar de uma vez, pois ela era dele e ele era dela. Mas era certo fazer aquilo daquele jeito? Não, a caída do céu finalmente experimentou uma pontada negativa do seu espectro emocional, que vinha sendo anulado diariamente pela presença de Gian. “Dolga! Por Sauza, será que ele está aqui na capital? Ele sabe se cuidar, mas não estou me sentindo bem, o que acha de procurarmos ele?”, as dúvidas continuavam dia após dia. Gian aprovou a busca, mas Kelicerata era enorme; decidiu-se que ele tentaria achar Dolga através dos contatos recém firmados pelo seu bom trabalho, e Guiara, que pouco fazia durante o dia, passaria pelas imediações da capital, tentando rastrear o filho do zodíaco – sendo exibido como Dolga era, aquela era a maneira exata de procurar por ele.
Quando souberam do homem com a constelação de Gêmeos nas costas muitas semanas já tinham corrido, e o paradeiro era, de certa forma, lógico. Além da Floresta dos Troncos Amarelos, numa vila pequena, um jovem caído do céu tinha sido fisgado por mulheres de boas proporções e levado direto para uma emboscada. Há quem diga que foi o pior tipo de gente que se uniu para dar cabo dele, mas a verdade é que Dolga havia provocado até o mais pacífico dos moradores da região – mas de que importa a índole que levanta a marreta, se no final das contas o tornozelo se achata, os joelhos se partem, a canela torce e a coxa se rasga em vermelho? Pela segunda vez na vida Dolga sentiu suas pernas se esmigalharem, mas na noite não surgiu uma menina de olhos azuis para curar suas feridas com o poder de Sauza. Ele esperou, foi acolhido por um morador mais indulgente, e com o passar do tempo, se recuperou. Das dores, pelo menos, pois as pernas ficaram muito mal ajustadas. “É assim ou vamos amputar!”, disse o senhor, e Dolga aceitou. Era melhor ainda ter as pernas quando Guiara chegasse, assim ela poderia curá-lo de novo, como fizera quando ainda eram pequenos. Quando os dois irmãos se reencontraram, o horror de Guiara foi tão avassalador quanto o êxtase de Dolga. “Minhas pernas!”, ele gritava; “Suas pernas!”, ela gritava. Ela arregaçou as mangas antes de falar sobre Kelicerata, sobre Gian, sobre qualquer coisa; passou minutos, chegou a ficar mais de uma hora curando o que não havia para curar, pois as pernas de Dolga já estavam curadas, só não do jeito que ele queria.
Foram tempos tristes para Dolga, Guiara e Gian, que acolheu Dolga em sua nova casa. Aos poucos eles foram embora, mormente porque Luca era muito enérgico e sempre enchia a casa de alegria; mas para Dolga aquela alegria – e qualquer outra – só desanuviava uma noite de eterna escuridão.
II
Como o dia estava muito claro, Renan fez uma queda brusca nas imediações mais arborizadas do povoado visando não ser avistado ao pousar, e a tática foi efetiva. Pisou nas sombras de um ipê-amarelo que o incutiu uma vontade enorme de visitar a Floresta dos Troncos Amarelos, mas não alongou o devaneio e foi direto para a rua do lugar, chegando a pé poucos minutos depois.
O lugar era minúsculo; além de cinco casas de construção mais firme, com estruturas de madeira e paredes de pau-a-pique revestido com argamassa, só barracões completavam a via daquilo que era só um arremedo de vilarejo. Uma das construções era uma pousada e as demais eram casas de comércio, tudo formando um pequeno ponto de apoio para quem saía da capital e seguia pela estrada na direção sul do país. Chegou a parar o passo, e então ouviu a voz de uma senhora:
— Vem, vem! Vem logo! — A mulher de barriga grande e pernas inchadas acenou. Usava uma túnica larga debruada de fitas pastéis, mais confortável do que o rosto enrugado indicava ser o adequado. Renan foi, inconscientemente impelido pelo desejo de nunca mais estar sozinho. — Mas que horror, você não pode ficar assim por aqui não, rapaz! Ru! Ru, venha cá!
— Pois não, senhora? — Um menino magro de cabelos desarrumados e pescoço comprido apareceu. O olho castanho claro, apesar de bonito, passava batido com frequência por conta da figura inexpressiva que falava sempre mostrando os dentes num sorriso carente.
— Olha pra isso, leva lá e ranca essa barba, depois eu dou um jeito no resto. Vai, vai com ele! Senão amanhã já sumiu e não vai ter ninguém pra ouvir seu choro.
Novamente por inércia, Renan se deixou levar para uma salinha dentro de uma das casas. Sentou na maior das três cadeiras de madeira e aguardou Ru, que veio em seguida e catou na prateleira da sala uma navalha usada. O filho de Escorpião aproveitou que o garoto estava compenetrado no afiar da navalha e observou o que mais havia na prateleira: nada de excepcional, um rolo de fita para medição, um pedaço de espelho bem limpo e conservado, um copo de vidro ao lado de uma garrafa de destilado e uma bacia pequena com água e esponja.
— Vamos tirar essa barba, senhor?
Renan pulou da cadeira com impulso tal que Ru achou que ele tivesse voado; tão surpreso ficou que não conseguiu esquivar das mãos do barbudo, e teve a navalha tomada.
— Deixa que eu mesmo faço isso, moleque. — Não mentiu. Pegou o pedaço pequeno de espelho, passou a esponja ensaboada no rosto e começou a raspar o pelo. — E que preocupação é esta com meu rosto? A velha obriga todos aqui a ter um rostinho igual ao seu?
— Não, nada do tipo. Mas ela se preocupa muito com as pessoas que moram aqui na região, sabe que tem tido muitos desaparecimentos, não sabe?
— Não estou sabendo, cheguei hoje.
— São os homens de Aman-Can... Durante a noite eles raptam bêbados e mendigos que vagam pela estrada, tem gente que diz que eles até conseguem pegar algumas crianças, se estiverem sozinhas.
— Homens de Aman-Can? — Renan ouvira por alto Cristal e Vasto falarem sobre essa terra ao sul de Kelicerata, mas não sabia nada além disso.
— Não conhece Aman-Can, senhor? Vem de Porocop, com certeza. É o país que faz fronteira com Kelicerata. Fica bem longe daqui, mas parece que estão construindo alguma coisa na fronteira, então muitos de lá aparecem por estas bandas. Sempre são soldados buscando mão-de-obra escrava, mas como aqui quase não tem, eles acabam levando pessoas contra a vontade. Os fazendeiros da região têm muito medo deles por conta dos animais.
— Mas e os soldados de Kelicerata? Por que não estão aqui resolvendo o problema?
— De onde o senhor veio? O Bui de Aman-Can é o homem mais poderoso de Maciaan! Kelicerata perdeu dezenas de batalhas contra o exército dele e dizem que ele só não conquistou esta terra toda porque Orion da Família Antares conseguiu entrar em termos de paz.
Saber aquelas coisas fez Renan paralisar de choque; enquanto olhava o reflexo de seu rosto limpo, se deu conta do quanto já estava velho, e o quanto deixou de fazer por aquele povo. Entregou a navalha ao menino e agradeceu, sem entender como pôde pensar que aquela criança seria capaz de mata-lo. Ao contrário, não só foi atencioso fazendo companhia como ainda respondeu tudo que foi perguntado de maneira respeitosa e sem tirar o sorriso da cara.
— Terminaram? Então vem cá! Aqui nos fundos eu coloquei água quente na banheira, vá logo banhar e vista algo mais limpo, por Sauza!
Renan aquiesceu com muito custo; chegou a insistir que não tomaria o banho nem aceitaria as roupas sem pagar, mas deu o braço a torcer quando Ru chegou perto e sussurrou no ouvido:
— Ela perdeu o irmão e o sobrinho para os homens de Aman-Can, não consegue deixar ninguém que pareça vulnerável sair daqui da loja sem passar a noite em claro, doida de preocupação.
— Tudo bem, vamos lá! — Renan andou até a parte dos fundos da loja. Roupas novas seriam um bom presente, mas ele ia voltar ali para pagar por tudo após pegar dinheiro com Vasto.
***
A rua do povoado era larga e poeirenta, não se distinguia em nada dos outros trechos da estrada. Vasto roçou a sola da bota no chão, arrastando um pouco de pó antes de passar pelo amplo vão de entrada de uma das lojas.
— Boa tarde. — O homem que registrava papéis à mesa lateral não fez nada além de lançar um olhar enfezado, e o rapaz que estava de costas empilhando caixas no alto de um armário não teve como se virar e responder. — Luca?! — Desta vez o rapaz reagiu.
— Pois não? — O garoto desceu do banquinho e limpou as mãos com uma flanela, tentando lembrar-se de onde o cliente o conhecia.
— Não precisa parar o seu trabalho, minha conversa é com ele. Mas você parece ser um bom garoto. — O menino não entendeu muito bem. Tentou achar resposta no homem dos papéis, mas só recebeu um olhar revirado, então voltou ao seu serviço com as caixas.
— Não anda fazendo nada de empolgante da vida, hein, Dolga?
Dolga ergueu o rosto após esquadrinhar cada detalhe daquele visitante, e terminou sem saber de quem se tratava. Não gostava disso.
— Sempre ao meio dia servimos comida, o resto do tempo damos bebida a quem bebe e qualquer outra dessas coisas a quem tiver dinheiro para pagar. Como, em nome de Sauza, eu não acharia minha vida empolgante? — O homem de cabelos crespos e amarelados largou os seus documentos bufando e, com gestos bruscos, deslizou para longe da mesa e arrodeou o móvel, ficando lado a lado com Vasto.
O filho de Áries não teve como conter a surpresa ao ver aquela engenhoca que transportava Dolga. Uma cadeira de madeira com estofamento nas costas e no assento era suportada por um eixo metálico conectado a dois aros grandes em contato com o chão e um braço curvado que passava no entre pernas se conectava a um aro menor sobre o solo, um pouco à frente da cadeira. Vendo os olhos arregalados do homem, Dolga fisgou a memória faltante. Aquele não era um dos muitos que ele odiava nem um dos milhares que apareciam esporadicamente na loja, era alguém muito mais antigo, alguém que, diferente de qualquer outro, tinha olhos da cor violeta.
— Aí alguém que eu nunca ia esperar ver de novo na minha vida. Ru, olha só, este também é do Cesaro.
— Mais um?! O que está acontecendo por aqui hoje? — O rapaz desceu mais uma vez do banquinho e dos fundos da loja chegaram dois perfumando todo o ambiente com alfazema. A dona do estabelecimento e o renovado filho de Escorpião, Renan.
— Isto, sim, se encaixa na figura de um rei! — A mulher anunciou. A roupa não tinha nada demais. Calça e camisa claras de tecido fino e botões de osso, sapatos de couro no tamanho exato e uma capa longa branca – um exagero, segundo a mulher, mas Renan insistiu, pois precisava de algo para cobrir o corpo da luz do sol durante os voos. A identidade se revelou no momento do banho, uma vez que Renan não teve a percepção de esconder as pedras nas costas. Imediatamente a mulher exclamou e os dois empregados vieram apurar o ocorrido. “Foi Sauza que nos uniu!”, Renan declarou após o empregado da cadeira deslizante se apresentar como filho de Gêmeos e Ru Luca, o assistente da loja dizer que era o primogênito da filha de Câncer.
Bastante decepcionado ao ver que Renan tinha acabado com o disfarce de mendicante, mas feliz pelo contingente de novos amigos do rei serem tão poucos, Vasto esvoaçou sua capa azul e chamou todos para uma conversa franca, até mesmo a mulher que nada tinha a ver com a situação. Já cansado do repeteco, Vasto contou sua história a Dolga, contando com os ouvidos atentos dos demais. Acrescentou, após tomar um grande gole de rum, que Guiara demandava a estadia deles na casa dela, mas que um dos dois precisaria ficar na pousada do povoado, devido à falta de leito.
— Na pousada coisa nenhuma! Renan, vou aprontar um lugar maravilhoso para você dormir, você não vai nem sentir falta dos lençóis da capital — a mulher falou, ainda empolgada com o ilustre convidado.
Com a questão dos quartos resolvida, faltava só a concordância de Dolga em se unir ao grupo, e Vasto tinha dado como certa a adesão dele, depois de ver que ele tinha uma maneira própria de se locomover, mas a resposta foi categórica:
— Eu não vou.
III
Olhando para o forro do teto de madeira, Vasto sentiu falta das estrelas. O quarto que usava para dormir era arrumado e tinha um cheiro gostoso de limpeza que não se achava em pousada nenhuma. A cama – como todos os móveis da casa – estava conservada e destacava a preocupação de Gian e Guiara em ter bens de boa procedência. Era natural, já que os dois tinham uma fonte de renda segura e abastada; o tamanho da casinha enganava a quem não experimentasse dos confortos internos. E mesmo assim Vasto queria dormir do lado de fora.
Não esperava Dolga ser tão irredutível em sua decisão. Guiara explicou o quanto ele tinha se tornado taciturno, mas na cabeça de Vasto era tudo em função da perda da mobilidade – algo que era nele excepcional em essência, sendo a agilidade o dom dado por Gêmeos. Só no regresso à noitinha Guiara pôde esmiuçar a personalidade do filho de Gêmeos; um garoto com sonhos de grandeza e força de vontade para conquistar o mundo que se viu restrito a uma condição de dependência integral – e pior, de gente que outrora ele não hesitaria em olhar de soslaio. Quanto mais tempo passava, maior era a raiva dele por se considerar um quase incapaz. Enfaticamente quase, só porque tinha se tornado tão severo consigo quanto era com os demais: alguns anos depois de ser resgatado veio com a invenção da cadeira móvel, o que lhe garantiu certa autonomia. Foi através da inteligência, que não era pouca, que ele acabou galgando conquistas mais significativas na infindável busca da independência.
Vasto surpreendeu-se ao saber que ele vivia sozinho no povoado, morando num casebre que comprara trabalhando na loja; Guiara apontou, além disso, outros tantos feitos de Dolga. Mas cada vitória que ele alcançava e ajudava a contornar as dificuldades da sua deficiência recrudescia a revolta dentro do peito. Como lidar com alguém que busca incessantemente ajeitar os cacos do que se quebrou por fora, sem empregar esforços para curar as mágoas de um coração ressentido? Vasto não tinha ideia. Era por isso que desejava as estrelas. No Cesaro conseguia respostas após uma boa noite de sono debaixo do céu noturno, mas ali ele não tinha certeza de que ela apareceria. Virou o rosto e admirou a luz amarela inconstante da vela no corredor – deixavam acesa para Otávio pegar no sono – até dormir.
— Será que devemos acordá-lo? Ele está suando muito. — Sussurrou.
— Não, que ideia boba! Sempre foi de dizer que no terreno dos sonhos ele é um artista, um guerreiro e um professor; se está neste estado é porque algo muito emocionante ocorre. Não que eu saiba alguma coisa sobre o que acontece nos sonhos dele, mas nesses dias todos que estivemos viajando juntos, nunca vi coisa parecida, por isso julgo que algo de sensacional vai sair daí!
— E Furiae, quem é? — Guiara sussurrou novamente, com a intenção de fazer Cristal imitá-la, mas que não deu em nada.
— Não faço a mínima ideia, mas se ele não para de falar o nome dela, vamos ter que descobrir, não é? Quem diria, nosso irmãozinho morrendo de amores mesmo enquanto dorme, acho até que isso pode ser visto como ofensa! Quer dizer, há tempos que estou com ele, e desde o primeiro dia de viagem meu coração esteve sempre escancarado, não admito que ele me esconda uma coisa tão profunda!
— Cristal, pare de dizer bobagens. Não pergunte a ele nada, se ele quiser falar alguma coisa, podemos ouvir e, quem sabe, ajudar. Mas que tudo parta da vontade dele, estou falando sério!
— Bom, se vamos deixar ele dormindo, então vou voltar para minha cama! Se precisarem levantar ele para algum lugar, me chamem. — Gian disse antes de se retirar do quarto. O homem era Ru Luca sem tirar nem pôr, ou melhor, pondo uns anos de idade e efeitos do trabalho, nada mais – olhos cansados e pelos por todo corpo destacavam o pai do filho.
— Aqui, me ajude a abrir a janela, vamos ver se o vento ajuda um pouco.
— Ora, quando era eu querendo abrir a janela para refrescar o quarto, você disse que não!
— Cristal, não quero mosquitos infestando a casa. Aliás, vá fechar a porta do quarto do Otávio, senão o menino vai ficar se coçando o dia todo. Vai, vai! — Na volta, Cristal apagou a vela do corredor, e o sono ofegante de Vasto desapareceu. Com o quarto iluminado pelo céu noturno e as pedras das constelações de Câncer e Aquário, a noite dentro da casinha azul voltou a ser silenciosa, e todos voltaram a suas camas para descansar pelo resto da madrugada.
***
— Eu sabia que ela não ia me decepcionar! Eu sabia! — Vasto falava com voz alta e olhos mais que despertos entre uma mordida e outra. — Não estou dizendo que não concordo com sua decisão de esperar, Guiara, mas a resposta veio tão claramente ontem à noite, espero que pelo menos este pedido você possa realizar... Ru, encha de novo com café, por favor! — Vasto se recusava a chamar o rapaz pelo nome mais comum.
— Sim, claro! — Antes de servir o café pela terceira fez a Vasto, o rapaz pegou o bule e simulou derramar na xícara de Otávio, fazendo o menino gritar, temendo pelo seu delicioso leite puro e quente, o que fez Gian torcer o olhar para o filho mais velho, que mesmo assim riu do caçula.
— Acho que não tem problema. Amor?
— Não, por enquanto você ganha uma folguinha. Já que o rebanho de ontem só tinha inflamação nas patas de novo, acho que é melhor o dono levar em alguém para vacinar, pois com certeza é alguma doença. Não vai adiantar nós levarmos eles com músculos curados só para o problema aparecer uma terceira vez.
— Decidido! Vamos hoje mesmo, então. Eu só vou no povoado avisar Renan do que ele tem que fazer e volto para partirmos. Acho que se formos a toda com Reimi, levaremos dois dias, no máximo três.
— Eu posso ir? — Ru Luca olhou para o pai, mas recebeu um cenho franzido em resposta.
— Eu vou com o Edgar! — Otávio gritou à mesa, e acabou sendo repreendido verbalmente pelo pai. A ideia de levar os filhos do zodíaco até o templo do leste era interessante, mas Gian não achava que mudaria alguma coisa, especialmente por ser uma solução surgida de um sonho. Da parte dele, continuariam juntos e firmes no local, não cogitava sair em aventuras loucas sozinho, quanto mais levando a família; deixar Guiara ir sem ele? Impossível.
Após a refeição, Vasto voou até o povoado para ter com Renan, que havia passado a noite muito bem, paparicado além da conta pela dona da residência. Houve uma gritaria no meio da noite, mas foi tão rápida e sem propósito que os moradores ouviram o trote de fuga tão logo acenderam as velas e colocaram as cabeças nas janelas para ver do que se tratava, e acabou que ninguém ligou para o evento.
— Ela disse para voltarmos?
— Não, disse que temos que ir até o templo do leste. Acredito que se chegarmos lá, algo pode acontecer e mudar a decisão de Guiara e Dolga. Faz todo sentido! Como o Cesaro está muito longe, nada melhor que outro lugar sagrado para reavivar o espírito dos dois. Você acha que leva quanto tempo para chegar lá?
— A toda velocidade, acho que quatro horas...
— Só isso?! Carregando uma pessoa, faz nesse tempo?
— Não, com mais alguém diminui bastante a velocidade. Nem é pela carga, é o corpo mesmo que não aguenta, mas acho que em oito, nove horas no máximo consigo levar alguém. Você quer levar Guiara ou Dolga?
— Todos! Ela foi bem específica quando disse que eu tenho que levar todos nós. Não, isso não vai ser motivo de preocupação. Já pensei em tudo: Partimos agora pela manhã, eu, Guiara e Edgar com Reimi. Amanhã você leva Cristal até as proximidades da capital.
— Hã? E o que isso traz de bom?
— Ela vai se infiltrar no Castelo Henpakihan e pedir ajuda a Abigail. É o nome que Janela está usando agora. Precisamos do suporte dela para podermos usar o templo, pelo que sei, fica no território de Orion.
— E não podia ser outra pessoa? Se pegarem ela...
— Ela é a pessoa menos e mais indicada, eu sei. Mas estou disposto a correr o risco, e ela concordou.
— Certo, e Dolga?
— Aí é que vem a parte que você pode não gostar muito... No dia seguinte Reimi já estará chegando na região do templo, Abigail e Cristal terão assegurado a região, e precisaremos de Dolga conosco. Você vai ter que levar ele à força.
Foi a vez de Renan dizer não. Como ele poderia sequestrar uma pessoa? E aleijada, ainda por cima! Jamais ele faria algo do tipo. Mas Vasto insistiu um pouco, e o filho de Escorpião cedeu. Como poderia dizer não a alguém? Depois de tudo que viveu, Renan não conseguia sustentar um olhar a alguém sem transbordar empatia. Vasto, que temia tanto não ser capaz de convencer os outros da sua fé, tinha encontrado em Renan alguém cuja força motriz era justamente a fé alheia. O rei daquela terra precisava do contato humano, das emoções, da cumplicidade entre irmãos, de tudo aquilo que lhe tinha sido arrancado por Orion. Orion... Ele merecia morrer. Renan evitava pensar em vingança a todo custo e estava se saindo bem. Quanto mais longe da capital, menor era a sede de sangue. Mas o ódio é um sentimento complexo, e a sombra da represália sempre voltava aos pensamentos dele.
— Que maravilha! Sabia que podia contar com você, Renan. Venha, vamos nos despedir do pessoal e ir até a casa de Guiara. — Vasto esvoaçou sua capa azul num gesto triunfante, e a jornada parecia ter ganhado ares renovados.
IV
Na preparação da viagem, uma coisa inesperada foi o corte de cabelo de Cristal. Sendo conhecida desde sempre por manter o cabelo preto bem longo, Vasto e Renan foram recebidos por uma moça de penteado jovial, com as pontas um pouco acima dos ombros. Para ela, que tinha cara de menina, caiu como uma luva; comum seria alguém olhar e dar por uma adolescente. “Vai me ajudar no disfarce.”, ela disse antes de explicar que Guiara a tinha ajudado na tarefa. Apesar de não querer comentar, Vasto acabou soltando:
— Você continua bonita, Cristal, mas não acho que cortar o cabelo vai fazer o povo do castelo não te reconhecer...
Ela prendeu o cabelo num rabo de cavalo, enrolou-se num manto comprido, cobriu a cabeça com um véu e puxou sua malinha junto ao corpo, colocando-se à disposição de Renan para irem voando, ignorando o reencontro de Renan com Guiara.
— Ah, não tem problema. Depois vocês se falam, vamos ter tempo para isso. E não adianta olhar de esguelha, Guiara, quem estragou o clima da manhã foi Vasto, falando o que não devia. Vamos, vamos, não quero perder mais tempo aqui, Renan.
Ele a segurou no colo e sustentou o rosto cheio de satisfação e obediência aos demais. Guiara sorrindo se fez entender; se lembrava de como os dois eram briguentos na infância, mas desde sempre enxergava nas atitudes deles uma cumplicidade verdadeira, aquele amor parental que nem todas as famílias possuem. Despediu-se dos gêmeos, indicando a Renan que não havia problema em conversar em uma hora futura. Ele partiu, rápido como um relâmpago pelo azul duro da manhã.
— Agora é a nossa vez. Traga ele, Otávio!
O menino acompanhou Edgar em sua forma canina que Vasto gostava tanto. Era fácil de vigiar, de alimentar e até de conversar; podia olhar nos olhos e falar sobre o que quer que fosse enquanto fazia carinho nas orelhas, quase achando que o menino estava de volta, ouvindo atentamente e entendendo tudo. Depois de depositá-lo em Reimi, correu para dar um abraço na mãe, que terminava de se despedir de Ru Luca.
— Mamãe, deixa eu ir, prometo não fazer barulho e me comportar! Por favor! — Ele apertou o abraço, prendendo a cintura da mãe com as pernas. Ela retribuiu o carinho, mas logo desceu o menino que, com seus sete anos, já era pesado para ficar se pendurando no colo de alguém como Guiara.
— Vai ser bem rápido, você nem vai sentir a minha falta, meu amor. O Vasto está insistindo tanto para eu ir, vai ser muito ruim se eu negar o pedido dele, que eu não via desde que ele era do seu tamanho. — Ela colocou o menino no chão, e ele segurou a mão do irmão mais velho, demonstrando bom comportamento. — Não esqueça de obedecer, Luca vai me contar todas as suas malcriações!
— Em três ou quatro dias nos vemos de novo, meninos! — Vasto, Guiara e Edgar se ergueram ao drapejar das asas de Reimi, deixando para trás a casinha de capo azulada, os dois irmãos e o pasto da propriedade, que tinha sido esvaziado na hora anterior por Gian. Rumo ao templo do leste, rumo à solução dos problemas.
Antes do sol se pôr, Cristal pisou no chão da capital. Elogiou a viagem, agradeceu o cuidado do filho de Escorpião com um beijo no rosto e saiu cheia de falsa cautela, cobrindo o rosto com o véu enquanto passeava pelo calçamento de pedras das ruas de Kelicerata. Assim que achou Abigail Duralma, todavia, terminou por ser contida no ato; sem força e coragem para se desvencilhar da captura, só tinha sua língua faladeira para persuadir a filha de Touro a soltá-la e limpar o caminho para Vasto e os outros. Renan, que não se preocupou em ir embora imediatamente, não teve como saber do fracasso da irmã-gêmea, ficando ele a perder tempo entre as nuvens que cobriam a cidade, bisbilhotando de longe a vida daquela cidade que um dia voltaria a ser sua.
No segundo dia de viagem, o filho de Escorpião chegou a se encontrar com os que viajavam na velocidade de Reimi, e não por acaso: fizera o caminho de volta bem mais pelo alto e com vigilância apurada. Os três se moviam com o esforço máximo de Reimi, sempre se mantendo mais a leste, de forma que as montanhas do leste mostravam seus contornos quando a luz do dia favorecia. Percorreu algumas horas com eles, e quando pousaram para comer e dormir, ele aceitou o convite e permaneceu. No terceiro dia, Renan retomou a direção sul e os demais foram para o norte, com o caminho atilado para o destino final, segundo instruções de Renan.
No trecho final, pela falta de variação de altitude, a vegetação heterogênea acabava se combinando num grande cobertor verde no que um dia fora chamado de floresta privativa pelo Rei Scorpio. E foi descomplicado ver uma singela abertura naquela floresta, quase que um sinal natural, desejando ser descoberta pelos filhos do zodíaco. Era um lago, encafuado no meio da mata densa, e no seu centro havia uma ilhota notável pela geometria das pedras que abrigava. O templo do Cesaro tinha suas pedras altas erguidas como peças alinhadas, mas ali o acaso da disposição das rochas passava algo de selvagem. Eram angulosas, quase tombadas, mas de superfície muito lisa, quase que trabalhadas à mão. Do alto Guiara achou o desenho da ilha com as pedras parecido com uma tulipa de pétalas achatadas. Esperando por eles, as filhas de Touro e Aquário.
Cristal subiu numa das pedras para acenar, cheia de contentamento, mas Abigail – paramentada como general – estava nervosa, e se pudesse arrancaria Vasto do céu; teve que esperar Reimi pousar.
— Oi, Abigail! Como você está?! — A voz de Guiara foi cortada com o avançar brusco da filha de Touro. Edgar pulou como cão para o chão da ilhota e Vasto teve o pescoço agarrado e tombou, sem tempo para pedir explicação.
— O que foi que você falou, Cristal? — Ele se esforçou para perguntar. A mulher saltitou pelas pedras longas até chegar no campo de visão dele, já deitado com as costas no chão.
— Vasto, todos estão me procurando! Mas pensam que fui com você para o Cesaro, por isso não topamos com nenhum problema, a atenção de todo mundo está no norte de Kelicerata. Imagina que tudo sairia tão conveniente? Acho que Sauza está olhan...
— Cala a boca, Cristal! Vasto, diga a verdade, o que você está buscando? Reunindo os doze filhos do zodíaco, falando em equilíbrio de poder em Maciaan... Eu tinha segurado Cristal e não pretendia soltá-la até que ela disse que você passou a noite suando e chamando por Furiae. POR FURIAE! Eu juro por Sauza, Vasto, se você não contar realmente o que sabe e o que pretende, eu quebro o seu pescoço agora mesmo!
Cristal pediu civilidade e controle e Guiara começava a chorar de medo e susto. As duas pediram que Abigail se acalmasse e explicasse o porquê de tudo aquilo, mas estava irredutível e decidida a saber qual era a ligação entre Vasto e Furiae.
— Ela é a minha mãe! Ela é a nossa mãe! — Aproveitava qualquer soltura na garganta para dizer com clareza. — É a mulher que contei, a que aparece nos meus sonhos! — Os olhos de Guiara se umedeciam à luz esverdeada que transluzia mais forte que a luz do sol quase ido. Uma vida sofrida voltava a sua mente em memórias borradas. Guiara passou a gritar por ajuda. No alto, em socorro, Renan chegou, trazendo Dolga nos braços.
— Guiara, você tem que voltar! — O filho de Gêmeos falou, empurrando os braços de Renan, que buscava coloca-lo no chão com cuidado. Vasto sentiu uma leve tontura; a visão começava a nublar. Seria aquela a hora da sua morte? Sufocado por alguém que ele percorreu mundos para encontrar? Ao fundo ele ouviu Dolga entre a mudez escura. — Os lacaios de Bui Uezo atacaram Gian!
Abigail se levantou, largando o pescoço de Vasto. A enorme mulher iluminava de verde todas as manchas que o filho de Áries conseguia enxergar. Com o ar de volta aos pulmões, era de se esperar uma melhora, mas a visão se turvava mais, e a gigante caiu desmaiada, quase por cima dele. Sem saber a razão da queda, mas pronto para agradecer quem a tivesse nocauteado, Vasto reuniu as últimas forças e se apoiou na lança dourada para erguer a cabeça.
— Todos caídos? Por q...
Por fim, refestelou-se na pedra ao seu lado e foi o sétimo a cair, deixando rolar uma lágrima antes de fechar os olhos e encarar o escuro.
***
— Abigail! Aonde é que está indo? Não saia deste jeito!
— Vasto. Acorde, Vasto. — Renan chacoalhou o ombro dele até que acordasse. Estremunhado ele levantou, averiguou o lugar e quem ainda estava na ilha. Abigail nadava no preto da água, revelada apenas pelas ondas que riscavam reflexos da luz verde emitida pelas costas da filha de Touro. No chão, Cristal gritava pela amiga, Renan já estava recuperado totalmente do desmaio, Guiara conversava com Dolga sentado no chão e Edgar ainda dormia com as patas para o alto; Vasto o acordou com um aperto na barriga.
— O que aconteceu aqui? Que horas são?
— Deve estar perto de amanhecer. Não sabemos o que aconteceu, mas pelo visto tivemos o mesmo sonho. Foi obra sua, Vasto? — Renan perguntou, parecia o único disposto a colaborar.
— Sonho? Não, eu... — E Vasto recordou-se do que tinha acontecido em seu próprio sonho. Furiae tinha aparecido! — Ela apareceu para vocês também? Furiae?
— Não, nada do tipo, rapaz. Foi uma cena bem esquisita, e não pude me libertar da sensação de tudo ser um pressentimento, algo futuro. — Cristal desistira de convencer Abigail. — Eu lembro claramente, o sol nascia com uma proximidade absurda e repentina, a luz era tão intensa que achei que ficaria cega! E foi tão real, acordei até com certo calor no corpo, foi por isso que supus que tinha sido obra sua; convencida fiquei quando acordei Guiara e ela disse que tinha visto a mesma coisa.
— Eu não vi o sol nascer, Cristal. Vasto, eu sonhei com o sol muito próximo de mim, mas não tenho certeza se ele estava nascendo ou se pondo, mas era numa praia ou deserto...
— Era deserto! Eu vi o sol um pouco de longe, do alto. Era uma imensidão de areia, não tinha mar — Renan alegou.
— O Edgar não vai poder nos dizer o que sonhou; e você, Dolga? Viu o sol também? — Vasto quis saber antes de revelar o seu sonho.
— Eu não vi sol nenhum — o filho de Gêmeos grunhiu, pois não era aquilo que ele queria ter dito. Fez carão para Cristal e emendou — não interessa o que eu sonhei, só quero que saiba que vou com vocês na viagem.
— Olha só, mas era de se esperar de gente tão rabugenta! Abigail fez o mesmo segredo quando a acordei — Cristal omitiu que Abigail Duralma estava acordada quando foi até ela, e chorava silenciosamente deitada entre as pedras do templo — não explicou nada do que tentou fazer mais cedo nem disse o que viu no sonho, só se jogou na água, espinoteada igual criança. Deixe de evadir, Vasto, o mestre dos sonhos aqui é você, fale logo o que isso significa e em poucas palavras, pois estou com o coração bífido de curiosidade!
— Vasto, eu não quero fazer pouco da sua explicação, mas preciso ir para casa. Meu esposo... Dolga disse que houve um ataque, e...
— Guiara, a sua volta é prioridade! Renan, você leve ela o mais rápido que for possível, mas primeiro deixem que eu traga as novidades, serei breve, não se aflija, Guiara.
— Eu a encontrei. Mais nítida e viva do que nunca, apesar do estranho aspecto luminoso da pele dela perdurar. Ela sempre foi muito ofuscante no breu dos sonhos, mas estranhamente, neste sonho eu pude esquadrinhar até os contornos dos olhos dela, ah, como são belos! Mas o visual é o que menos importa, gente, a mensagem é que vale! Confesso que fiquei um pouco enfatuado no começo... “Sem você eles não vão conseguir, Vasto. Nunca deixe de apoiar os outros caídos do céu.”, ela me disse. Estou coberto de certeza: vir aqui foi o maior avanço em toda a missão, consegui perguntar com clareza sobre o que devíamos fazer a seguir, e ela me respondeu com três frases. Não são tão exatas quanto gostaria, mas acho que juntos chegaremos à resposta do enigma.
— E que frases foram essas, Vasto? — Guiara perguntou.
— É, adiante com o falatório, não vê que ela quer sair neste instante e você insiste numa demora que de jocosa não tem nada! Vai, vai, fala, homem!
Um pouco decepcionado com a rudeza de Cristal, ele revelou:
— A primeira frase: para restaurar o equilíbrio de poder em Maciaan é preciso alcançar o que sempre viaja mas nunca deixa rastro. — Todos se entreolharam, confusos. — Segunda frase: disse que precisamos de algo que seja invencível. — Olhares confusos ainda rodeavam Vasto, mas Dolga, o que mais se eximia dos interesses do grupo, levou o dedo à testa, demonstrando clara disposição em resolver o mistério. — Por fim, disse que devemos alcançar aquele que nunca chega em segundo. Este último eu acho que sei. Silvestre tinha mania de dizer que era sempre o primeiro em tudo, a figura dele me veio à mente instantaneamente, mas não sei como relacioná-lo com as outras coisas.
— Talvez não precisemos relacioná-lo. — O grupo se voltou para Dolga. Sequiosos pela resposta do enigma, o sol nasceu com sua vagareza e iluminou com baixos raios de luz a natureza ambiente. — Pode ser que a resposta para os enigmas seja uma coisa só, mas eu não acho. Se o que fala sobre esse tal Silvestre for verdade, o resto se encaixa perfeitamente. A primeira frase se refere ao filho de Peixes. É sabido de todos que Adônis o levou para o mundo submarino, então ele passou a vida inteira viajando, mas sem deixar rastros; e pela mesma lógica, o segredo da segunda frase se torna a mais fácil de deslindar. Só uma coisa é invencível. Um Elemental, ou como alguns de vocês conhecem, a filha de Libra, Isabel.
Abigail alcançou a margem do lago e emergiu seu corpo enorme da superfície.
— Então não teve nada de novo, Vasto. Quando me convenceu de viajar contigo, havia me especificado com todas as letras que sua missão era reunir os doze caídos do céu. Ela só repetiu a missão, por amor a Sauza!
— Mas podemos estar errados, se a resposta fosse reunir os doze caídos do céu, ainda faltaria procurar dois: o filho de Capricórnio e o de Sagitário.
— Não falta. Eles não estão sumidos nem se escondendo, vivem em Aman-Can. Pelo menos era o que Abigail sempre me dizia. Abigail!
A filha de Touro virou-se para a ilha, encarando o olhar sentencioso de cada um. A encharcada capa forrada com penas de gavião-imperador rutilava, banhada pela luz amarela do sol nascente, como se fabricada com pedras de brilhante.
— Vasto! Eu não estou abandonando a sua comitiva. Tive muitas dúvidas sobre seus objetivos, e quando Cristal citou o nome de Furiae, eu logo pensei mal sobre suas intenções. Mas o que sonhei hoje mudou minha conduta. Por favor, perdoe minha atitude; resvalei por não entender que tinha diante de mim um homem bom. Peço perdão e que me aceite de volta no grupo! — Vasto sorriu e Cristal exasperou sua alegria. “Nade de volta, una-se a nós!”, ele disse. — Em breve. Sigam em frente pelo céu, meu veículo é um pouco diferente, mas logo os alcançarei rumo ao sul!
Apesar do sentimento de vitória que todos sentiram – uns mais, outros menos – Vasto não esqueceu a perturbação de Guiara.
— Renan, leve Guiara para a casa dela. — Chegou a sussurrar no ouvido dele, sem que a filha de Câncer pudesse ouvir: — Ela pode estar atormentada e querendo chegar logo em casa, mas faça uma parada rápida no caminho para que ela se alimente. Pegue este dinheiro e vá rápido!
— Ei, mas e o sol que nós vimos? Ainda não descobrimos do que se trata! Dolga e Abigail parecem ter sonhado com outra coisa – mais interessante, vale ressaltar – mas ficam com esse segredo, nos fazendo de bobos.
— Eu não sei, Cristal, mas quem sabe, daqui a uns dias vocês mesmos podem se lembrar de algo do sonho que não atinam agora. O importante é que estamos com Dolga e Abigail do nosso lado. Hum, talvez tenhamos que repensar a maneira de viajar. Abigail é muito grande; se fosse normal, caberíamos juntos em Reimi, mas daquele tamanho não vai dar para viajar voando.
Antes que os quatro restantes partissem no lombo de Reimi, partilharam as fatias de melão e as quatro peras que Cristal tinha levado para comer no dia anterior – Edgar só aceitou sua porção após mudar de cachorro para muriqui de pelagem parda, e agradeceu com muitos abraços o agrado.
V
— Gian! Gian! — Várias pancadas na porta. A casinha azul estava com portas e janelas fechadas, abandonada pelo dia bonito que trazia calores amenos nas regiões sombreadas. De dentro apareceu a face arroxeada do esposo, triste por conta da feiura, porque se dependesse da expressão dos olhos inchados, não daria para saber. — Pelo amor de Sauza! As crianças?!
O olhar da mulher, premente e pronto para se tornar acusatório, moderou-se quando ele respondeu que estavam bem. Ela correu até o quarto dos meninos e seu coração voltou a ser sentido no peito quando viu que nada tinha ocorrido com eles; as mãos tremeram de leve, relaxadas. O abraço de Ru Luca não teve a inocência do de Otávio, mas ela ordenou que ele ficasse no quarto com o caçula enquanto ia conversar com o pai.
— Foi na mesma manhã que vocês viajaram. Os malditos atacaram sem razão. Soltaram os bois, mataram alguns com as lanças e chicotearam o resto até que debandasse. Foi então que me pegaram. — Gian estava deitado com a cabeça no colo de Guiara, e relatava enquanto a esposa pressionava os dedos contra os machucados. Renan testemunhava pela primeira vez a maravilhosa habilidade de cura da filha de Câncer, a que tinha sido descoberta por acaso, aos seis anos, quando ela achou Dolga arrebentado na beira da estrada. A recuperação era instantânea. Em poucos minutos a cara dobrada de Gian tinha voltado ao normal, mantendo apenas uma palidez que sumiria com a normalização da circulação sanguínea no rosto. Um incisivo lateral arrancado na surra não teve como ser recuperado, mas ele não sentia a dor que latejava na gengiva minutos antes.
— Tem certeza de que foram os homens de Aman-Can?
— Absoluta! Trajes militares e tudo. Queriam saber sobre escravos que tinham fugido para o norte, mas eu não tinha ideia do que eles estavam falando. Quando cansaram de bater, voltaram a cavalgar e eu fiquei sem o gado. Não, não precisa se preocupar. O dono ficou nervoso, era capaz até de mandar um capataz me espancar mais. Só que ele ficou contente quando eu disse que ia pagar a perda dos animais em dobro. Nós não temos dinheiro nenhum, aliás! — Gian sentiu mais vergonha ao dizer as últimas palavras do que quando abriu a porta e Guiara viu seu rosto desfigurado. Os dois viveram com alguns apertos na capital com seu salário de cuteleiro, e a ideia de mudar para o campo tinha sido dele. Não fora uma má ideia: usar o poder de cura de Guiara para tratar animais rendia bastante, e o trabalho pesado que ele fazia na capital era substituído pela rotina tranquila da vida de pegureiro. E por falha dele, agora estavam desditosos. Ao menos a pequena propriedade ainda se salvara, mas havia um problema maior, que ele hesitou, desviou o rosto, coçou a garganta e enxugou o suor das mãos, mas acabou revelando. — Mais tarde eu fiquei sabendo que eles passaram pelo povoado perguntando. Souberam que Luca era meu filho assim que viram, e disseram que voltariam com os escravos fugitivos e mais uma vaga para ele, pois tinha se tornado órfão. Você precisava ver como ele veio correndo para casa, preocupado comigo. Tão valente, meu menino.
Gian prendeu o ar, e de olhos fechados deixou tudo sair num soluço. Chorou contido, mas seu sentimento paterno tinha sido compreendido por Guiara e Renan.
— Eu estou prendendo eles aqui desde então. Não posso deixar eles saírem para depois da porta, Guiara, não até sairmos de vez daqui. Eu não vou continuar sendo ameaçado deste jeito! Juro por Sauza que só estava esperando você para irmos embora.
Renan e Guiara se entreolharam. Ela tinha um receio grande sobre mudar para o norte, especialmente com a informação que receberam de Cristal, que os Antares estavam revirando o país na busca por ela e Renan. Ser uma caída do céu era perigoso naqueles dias. Gian, em contrapartida, teve logo uma nova solução: ir para Aman-Can. Ele era um homem responsável, marido de valor e tinha corpo forte, mas não era um guerreiro; Guiara sabia e nunca tentou se enganar. Ter sido esfolado pelo grupo havia deixado uma marca grande na mente dele, e ela via sentado ao seu lado um homem curado das feridas do corpo, mas extremamente ressabiado. Faria qualquer coisa para aquela história ser apagada das memórias dele, mas tinha muitas ressalvas para com Aman-Can.
— Não, meu amor. Você não precisa se preocupar com nada. Não dizem que médicos e matemáticos são tratados com o maior respeito em Aman-Can? Você trabalhará como médica, se topar, o Dolga pode vir conosco, ele tem conhecimentos matemáticos! Não precisaremos nos preocupar com nada. Otávio pode estudar para ser matemático também, Dolga já falou que ele tem muita aptidão...
— Mas e o que falam de Bui Uezo?
Renan estacou, muito interessado. Tinha ouvido pouco sobre o tal Bui de Aman-Can, sempre com a impressão de um medo público muito forte sobre tudo que se diz a respeito dele. “Não vai ser motivo de problema.”, Gian afirmou, mas mesmo a voz dele, que tentava encorajar a esposa, estava melada com uma fobia indelével.
— Quem é esse Bui Uezo, afinal?
— Aman-Can, o país do sul, é comandado por ele. Nós não sabemos muito, porque é pouco que dizem sobre ele, mas nunca é bom. Falam que é um governante militar muito agressivo e impiedoso, e construiu o país do sul com mão de ferro. Abigail vivia com Enzo e Bato no sul durante a expansão de Aman-Can, e foi graças a Orion que ela conseguiu chegar em segurança a Kelicerata, mas ela não revelou mais, pelo menos não para mim. Não tem guerra aqui no sul, mesmo sendo fronteira com Aman-Can, mas sempre que chegam refugiados no povoado, só dizem coisas horríveis! Parece que ainda há rebeldes que lutam com bravura para libertar o povo da tirania de Bui Uezo, mas...
— Mas, mas nada! A briga dos escravos é uma que não precisaremos travar, minha querida. Falam horrores de Orion, e Abigail serve ele há quanto tempo? Ela foi esperta, parou de arriscar o pescoço todo dia no país do sul e está desfrutando desde então. Nós faremos a mesma coisa! Você será uma médica de Aman-Can, perigo é a última coisa que vai cair sobre nós! Confie em mim — as mãos trêmulas de Gian seguraram o rosto de Guiara, e ela viu nos úmidos olhos castanhos dele a imagem dos filhos que ela tanto amava — por favor, acredite em mim, Guiara...
***
Demorou seis dias até que o segundo grupo chegasse, pois a rapidez de Remi acabou sendo freada pelo passo da dupla que viajava pelo chão – que não era lento como viajantes comuns. À noite todos acampavam juntos e durante o dia Cristal, Vasto e Dolga iam pelo céu enquanto Abigail corria pela estrada em sua quadriga. Causou um belo susto no pessoal, aparecendo com seu carro adaptado para o tamanho dela e com quatro cavalos fortes e bem tratados como puxadores; Edgar, por sua vez, se transformou em cavalo durante a maior parte do trajeto, e acompanhou Abigail Duralma sem se desviar muito nem ficar para trás.
No momento do reencontro muita coisa estava arranjada: a propriedade de Gian e Guiara já tinha comprador, a família tinha se despedido dos amigos, Otávio e Ru Luca não reclamavam mais da decisão dos pais. Entre os filhos do zodíaco, ponderações diversas se abrasaram em debate – não poderia ser diferente com Cristal participando – mas em geral as intenções convergiam. Isentaram-se de opinar: Abigail Duralma, a filha de Touro, e Renan, filho de Escorpião. Edgar, o filho de Virgem, não teve voz, como de costume. Ao pedido de escolta pela fronteira até o território de Aman-Can, Vasto não teve como dizer não, todavia quis convencer o casal a somar permanentemente a peregrinação dos dois, e chegou a ser apoiado e interpelado pela boa lábia de Cristal, mas não teve quem dobrasse a decisão de Gian; Guiara resignou-se à vontade do marido, e nesse quesito não houve muito que articular – Ru, entretanto, ficou assaz animado com a possibilidade de correr mundo afora procurando os caídos do céu restantes, só para ter o coração gretado pela negativa categórica do pai.
Dolga, que surpreendeu Gian e Ru Luca com sua vontade injustificada de acompanhar Vasto, reforçou o perigo que seria partir para o norte, uma vez que Guiara, mesmo sendo filha de Câncer, poderia ser visada pelos homens de Orion. Com pormenores ajustados, o aleijado pediu que Renan o levasse de volta a sua casa para que pudesse pegar a cadeira móvel e demais utensílios que precisava para viajar. A adaptação que tinha imaginado um dia antes para a quadriga de Abigail não foi implementada, pois, com o dinheiro da venda da terra, Gian só providenciou uma carroça grande com cavalos. Era bom, pois Abigail não estava muito contente em acoplar um carro à sua quadriga, cuja melhor característica era a velocidade.
Todos prontos, o grupo de dez irrompeu rumo ao extremo sul de Kelicerata. Não era grande para ser chamado de caravana, mas certamente alertaria outros viajantes, que seriam inocentes se não os taxassem de ladrões e malfeitores. A viagem durou vinte e um dias, dos quais os quatro iniciais não contaram com a presença de Renan – Cristal julgou que ele estava vagando sem objetivo pelo céu, como sempre fizera na adolescência, e foi exatamente o que todos concordaram, quando ele simplesmente apareceu de novo no céu acima do grupo – e então algo pitoresco surgiu no caminho.
O sul de Kelicerata não tinha vegetação robusta como o resto do país, mormente porque em tempos passados aquela região levava a um inóspito deserto, mas não deixava de ser um cenário aprazível de se admirar. Tirando três dias de chuva grossa, os viajantes percorreram a larga estrada sem contratempos, conhecendo as estranhas árvores de caule retorcido que nasciam muito longe uma da outra, como que reivindicando cada uma a sua região de grama baixa. Otávio, Ru, Renan e Gian viram pela primeira vez um gavião-imperador, e os quatro fizeram questão de subir e voar ao lado da ave gigante, com Renan sendo ousado ao ponto de pousar no corpo do animal e voltar com algumas penas – Otávio fez questão de compará-las com as da capa de Abigail.
No clima ameno da viagem, quando o grupo subiu um trecho escarpado de terra viva e vermelha, uma construção deu nas vistas: sua forma era nova, mas era evidente que ainda estava em andamento. Uma enorme elevação cilíndrica escura fazia as vezes de torre, e ao seu redor, trabalhadores e escravos erguiam um colossal zigurate.
— Vamos continuar na estrada, nada de olhar mais perto — Gian asseverou. Vasto, que normalmente dava as ordens aos demais junto com Dolga, concordou.
A permanência na estrada não impediu que todos espiassem com olhos apertados, tentando enxergar à distância a comoção no zigurate. A base estava completamente erguida com seus tijolinhos na parte externa, atuando como suporte e fixador da alta torre de parede escura e diâmetro muito curto. O grupo se perguntava qual a função daquele elemento esquisito, e a suposição mais acertada – de se tratar de um elemento estrutural central – foi logo descartada por Renan. O filho de Escorpião se valeu do escurecimento do céu para fazer sua própria inspeção pelo ar, mesmo com Dolga expressando seu descontentamento e sendo apoiado por alguns.
— É uma espécie de tubo. Não consegui ver mais porque daria muito na vista. Talvez mais tarde.
— Nem mais tarde nem mais cedo! Já estamos tendo a sorte deles ficarem lá com a obrigação deles, do jeito que são abusados, eu achava até que alguém viria aqui exigir alguma coisa em troca da nossa passagem. — Dolga reclamou com os braços inquietos, cheio de animosidade. Otávio ficara especialmente afetado por ver as maneiras dele; conhecia muito bem o seu lado rabugento, mas Dolga era a maior parte do tempo só um resmungão solipso, pela primeira vez se mostrava explosivo na frente do pequeno.
— Eram escravos mesmo, senhor Renan? — Luca perguntou o que Guiara não queria ouvir. Enquanto Renan fazia sua investigação, o rapazola chegou a apontar as chicotadas que os trabalhadores recebiam; imediatamente seus pais argumentaram que não eram chicotadas, mas o que saiu na primeira frase do casal foi a confirmação do trabalho forçado, graças à presença de Cristal. Com o talento natural dos pais para o disfarce, eles se calaram e voltaram seus olhos acusatórios para Cristal, que entendeu o recado e mentiu para Luca, enquanto os pais permaneceram calados até que a questão sumisse a cabeça do jovem.
“O menino é cheio de imaginação, hein?! Quem diria que uma simplória de cabecinha avoada como Guiara ia gerar um filho com ilações fantasiosas; ou será que é o cansaço da viagem? É melhor pararmos aqui pela beira da estrada para acampar, ou então Luca vai enxergar dioramas nas estrelas do céu. Não, por favor, erga a cabeça, Luca! Não tive intenção de menosprezá-lo, essa minha zombaria é coisa de nascimento, jamais faria por mal! É que você provavelmente ouviu muita murmuração naquela loja onde trabalhou, e misturou a vista cansada com a cabeça quente, pronto. Passou a ver gente sofrendo em lugar que não existe.”, ela disse até ver que o garoto não tinha mais vontade de falar sobre os escravos. Renan, porém, foi pego de surpresa, e fez Guiara morder os lábios de raiva:
— São sim! E pelo visto não passam de uma semana. Vi uns coitados com o lombo em carne viva e ainda levando chibatada. O que foi?
A raspança que Renan levou dos olhos dos adultos foi quase uma chicotada também. Guiara abraçou os filhos – sentados ao lado dela na carroça – e desejou que Sauza retirasse qualquer imagem assustadora da mente deles. Abigail saiu da retaguarda e emparelhou a quadriga à carroça, Reimi imóvel e encolhido atrás dela.
— Renan, conseguiu ver o que tem na área escavada? — Ela se referia ao enorme espaço retangular escavado ao lado do zigurate.
— É de onde retiram a terra para a construção, pelo que identifiquei, estão fazendo a segunda rampa. Ah, o buraco serve também como depósito, tem milhares de blocos de pedra, cortados e empilhados no buraco. O pior de tudo é que tem muita gente ainda lá para morrer, presos em jaulas como animais. Deve ser por isso que açoitam sem dó, morre um, eles trazem outro da jaula. Notei uma cheia de crianças.
— RENAN! — Guiara se enfezou com a falta de senso do futuro rei de Kelicerata.
— Eu vou fazer o quê? Com Cristal aqui eu não consigo planejar as palavras! A culpa é do Luca, ele perguntou prime...
— Chega! Todo mundo quieto! Abigail, acha que podemos acampar aqui? Como está Edgar?
— No melhor sono de todos. Pelo menos para os meus pés, que estão quentinhos. Não acha melhor nos afastarmos um pouco mais? Vamos ter que fazer uma fogueira antes de comer, isso pode atrair os soldados, Vasto.
— Não quero me afastar demais. Eu vou descer no buraco durante a madrugada e libertar as crianças.
— Como assim? De onde saiu isso? Ficou louco, Vasto? — Dolga retrucou. A declaração havia surpreendido a todos, mas mesmo Gian e Cristal, que acharam uma má ideia, não quiseram contestar. Crianças não deveriam ser submetidas a trabalhos forçados, mesmo as escravas.
— Eu não vou discutir com você, Dolga. Nós vamos viajar mais duas horas, acamparemos como temos feito todos os dias e eu volto com Reimi para soltar as crianças. Largamos elas na próxima cidade. — Vasto estava decidido e contente com o plano. Há tempo queria mostrar que era um bom guerreiro; não se sentia à vontade ouvindo dia após dia as façanhas dos caídos do céu, e quando chegava a sua vez de dizer algo, era sobre Silvestre. A partir daquela noite sua liderança seria mais valiosa para o grupo – é claro que havia bastante vaidade no modo de pensar, mas o plano de libertar crianças era legítimo e virtuoso, o que contava no final, para ele e os demais.
VI
Muitas horas após o escurecer do céu, Vasto levantou e apagou a fogueira. Abigail desarmou a cobertura de lona que improvisaram para esconder o fogo dos olhares distantes e Renan, que tinha ficado boa parte da noite deitado ante Cristal e ouvindo suas histórias – parecia ser o único que aguentava ouvir tudo até o fim – se espreguiçou demoradamente e sacudiu a poeira da calça.
— Como ficou resolvido?
— Não deixa de ser uma péssima ideia, mas achamos uma maneira de diminuir os riscos. Para início de conversa, vá tirar essa roupa branca! Você vai servir de vigilância, não adianta muito um espião voador que qualquer inimigo consiga enxergar só de olhar para o alto. — Renan tirou a roupa clara e vestiu uma casaca longa escura, que ficou um pouco justa na cintura. Dolga continuou: — Abigail não pode ir ao mesmo passo sem fazer barulho, então ela vai mais devagar com a quadriga. Você vai na frente e quando Vasto chegar em Reimi, auxilie no que for preciso. A missão é libertar as crianças, coloca-las na quadriga e em Reimi e voltar, se possível sem alertar nenhum soldado.
Sem esperar concordância de ninguém, o filho de Gêmeos fez a curva com sua cadeira e foi para seu leito sem desejar boa sorte aos três que partiam. Gian e Guiara já estavam recolhidos na barraca deles, e os filhos estavam deitados a trinta metros, num espaço que Ru havia limpado para colocar as esteiras de palha – Otávio fez birra e só aceitou dormir ali, perto do tronco da árvore que Edgar trepou para se enrolar e dormir, logo após encher a barriga de frutas; como quati, dificilmente desceria do topo da árvore antes do amanhecer, o que deixou a criança bem decepcionada. Cristal levantou e deu um beijo no rosto de cada um, antes da ida.
Vasto gostava de voar à noite, pois o cheiro era úmido e a ventania quase sempre refrescante. Quando Reimi subia demais, tudo no chão perdia forma para o preto, e ele quase acreditava que estava dentro de um sonho; o brilho das estrelas acima, entretanto, era a âncora sempre presente que olhava de volta e dizia: “Não adianta enganar os sentidos, você ainda está preso no seu mundinho”.
Não precisou de vinte minutos para chegar ao sítio, e foi recebido por um Renan muito eufórico.
— Com os escravos presos, eles quase não deixam gente montando guarda! Tem três no zigurate, os outros estão no acampamento, quase todos dormindo!
— Acha que consegue dar cabo dos três em silêncio? — Vasto inclinou Reimi para descer.
— Mas é lógico! — O filho de Escorpião abriu um sorriso largo e desceu com a casaca esvoaçando no escuro, após indicar as jaulas com as crianças. Vasto não gostou de pousar próximo às jaulas; o lugar escavado estava com a terra toda revirada, contrastando demais com a plumagem escura de Reimi. Sem perder tempo foi até a porta gradeada e ciciou até que alguém atendesse. Estremunhados, os primeiros a acordar ganiram como animais, mas não podiam fazer muito além de se amontoar no lado oposto à porta.
“Que coisa horrorosa fizeram com eles.”, Vasto pensou, ajeitando a ponta da lança para romper o cadeado com alguns puxões. Com o som metálico da quebra, precisou erguer-se e vistoriar as redondezas. Muita sorte, nada de errado por perto! No zigurate, relanceou Renan asfixiando um dos homens com os braços. Eles passeavam distraidamente, sem olhar para o alto, talvez nem fosse necessário mandar Renan se livrar deles...
— Aproveita que está soltando todo mundo e ajuda esse seguidor de Sauza, Encapuzado! — Vasto quase pulou de susto! Agachou-se novamente num átimo para procurar o dono da voz, e após agrupar todas as crianças fora da jaula, entreviu pela grade uma figura distinta. Pendurado por correntes nos pulsos, os dedos dos pés esticados relando na terra seca, um homem nu balançava a cabeça, procurando um jeito para levantá-la sem que a dor provocasse um grito.
Não precisou se esforçar tanto. Vasto pediu quietude às crianças e foi até o prisioneiro – não deu dez passos. Enquanto centenas dormiam amontoados nas jaulas, esgotados de trabalhar durante o dia, alguns mortos desde que se deitaram no chão, aquele homem estava suspenso feito um animal, a pele em carne viva. O que teria ele feito de tão grave? Era uma ótima pergunta, mas o filho de Áries se encarregou de soltá-lo primeiro, rompendo um dos elos da corrente com a lança dourada. O barulho dele chocando-se ao chão foi o mesmo de uma pedra caída.
— Ei, rapaz, acorde! — O escravo se contorceu de dor com o toque de Vasto em sua pele. Era um rapaz jovem, talvez mais novo que Vasto, via-se pela estrutura do corpo.
— Eles vão te caçar. Vão caçar nós dois até o fim do mundo...
— Não fale besteira! Venha, vamos sair daqui, já deve estar chegando uma carruagem para nos levar.
— Há, há, há! — A gargalhada foi bem alta, mas breve. Vasto não tapou a boca dele por conta das feridas que podiam gerar gritos maiores, e quando ele calou a boca quase teve vontade de rematá-lo de uma vez. — Eu não vou a lugar algum, camarada. Olhe meu estado. — Tossiu sangue no ombro coberto de equimoses. Olhou a sombra do capuz de Vasto o mais sério que pôde, mas seria necessária a habilidade de Guiara ali para dar aquela face um aspecto não sofrido. — Eu preciso de uma faca, você tem aí? Não aguento outro dia aqui, não aguento, preciso morrer, faça isso por mim, camarada!
— Não, você não entende. Se eu leva-lo ao meu grupo, poderemos curar você.
— Olhe-me nos olhos, Encapuzado. — Vasto descobriu o rosto, revelando a cor violeta. — Eu quero me curar da vida. Se não vai fazer por mim, deixe que eu mesmo faça. Sei que tem uma arma, empreste-me por um segundo...
— Falo sério, essas feridas podem ser curadas, a filha de Aquário pode fazer, ela está comig... — Mesmo com o rosto desfigurado, ele ainda conseguia chorar, e Vasto sentiu a misericórdia de que ele tanto precisava. Retirou um punhal e colocou na mão trêmula do jovem. Não o mataria, pois sabia que aquela pessoa destruída podia ser salva por Guiara, mas entendia que alguns caminhos não têm volta. Aprendera muito bem com a morte de Adônis. — Eu sinto muito.
— As crianças. Se precisar de ajuda com elas, na capital minha irmã pode prover. Minha família é dona de um grande negócio — tossiu mais sangue — mas meu tio é um crápula. Busque minha irmã e ela o ajudará, ela é a pessoa mais maravilhosa que conheci em toda a vida. O nome dela é Felícia Nobu.
Um arrepio subiu pela espinha dorsal do caído do céu. Tremeu quando se lembrou da vontade de Felícia em seguir os passos do irmão.
— Ei! Rapaz! Não se preocupe, eu vou cuidar das crianças. Mas por favor, me diga, essas coisas existem em Aman-Can? Este sofrimento, essa abominação?! — Ele fez, apontando para o zigurate. Na impossibilidade da ironia, o jovem deu um riso, o punhal riscando o próprio peito.
— Eles são o de menos, camarada. Mil zigurates não fariam o mesmo mal que o Bui de Aman-Can sozinho! Essas obras são meros caprichos dele, ele as coleciona por todo o país do sul.
Um calor imediato aflorou pelo corpo do filho de Áries, seus músculos enrijeceram e ele voltou novamente o olhar para a enorme torre negra que se confundia com a noite.
— Vou destruir esta coisa.
O riso do moribundo se multiplicou em desespero, e novamente seus olhos se umedeceram, não sendo possível distinguir a causa, se a morte próxima ou simples e inevitável loucura.
— Vá, camarada! Suba os degraus, antes da primeira rampa existem grandes caixotes de madeira, quebre o que há ali dentro e vai dar muito trabalho a eles. MELHOR: VÁ ATÉ O INTERIOR DA TORRE! Quebre as paredes internas e eles levarão um ano, no mínimo, até retomar a construção deste túmulo de milhares de corpos. Faça por mim. Eu só posso FAZER ISTO! — O rapaz desceu o punhal no peito e cuspiu o último sangue.
Pairando no alto, Renan tinha notícias. Após se encarregar dos vigias do zigurate, voou até a quadriga para saber sua posição, como Vasto havia pedido desde o começo.
— Abigail está chegando daqui a pouco. Já posso ver o carro daqui, mas há um problema. — Ele pousou ao lado de Vasto, que terminava de limpar o punhal. — Luca está com ela. Eu também falei isso, mas ela falou que só notou muito depois da partida.
— Menino idiota! Quer caçar aventuras irresponsáveis, que vá sozinho; agora é uma razão a mais para me preocupar! — As crianças permaneciam junto à jaula delas, algumas sentadas no chão de terra. Então Vasto viu uma oportunidade.
— Quer que eu leve ele de volta? Vou demorar só um pouco.
— Não, Renan, não vai precisar. Ele vai me ajudar muito, na verdade. — A raiva desaparecida do semblante.
— Como? Qual a sua ideia?
— Vasto! — A voz de Abigail chegou até eles, da borda do terreno escavado. Ru Luca estava ao lado dela, com um sorriso idiota, merecendo bons tabefes.
O grupo foi até o barranco e Renan carregou os corpos frágeis e gelados das crianças até Abigail.
— Ru, você vai levar todos na quadriga. Abigail vai ficar aqui para nos ajudar a destruir tudo.
— Mas eu poss... — A mão do filho de Áries bateu com força no rosto, e o rapaz logo ficou mudo, sabendo o porquê daquilo e com uma vontade forte segurando o choro causado pela pancada – mas não só por ela, também pela decepção de sua desobediência corajosa não ter sido aplaudida.
— Calado! Vai ficar bem apertado, mas se todos forem em pé, vai dar para encaixar. Ande, moleque, suba logo.
Muito sorrateira, a quadriga sumiu na noite, sem emitir o choro de ninguém.
— Abigail, venha comigo. Vamos abrir todas as jaulas e libertar os escravos. Renan, tem umas caixas com algo precioso na rampa do zigurate. Preciso que você vá e destrua o que estiver dentro delas.
Ato contínuo, o líder se jogou novamente no buraco, descendo a encosta de terra sem muitos tropeços. A gigante seguiu o exemplo, e Renan tomou um impulso até a rampa da construção, achando sem muitos problemas as tais caixas. “Como é que vou destruir isso?”, ele pensou ao ver que elas eram muito compridas, apesar de finas. Abrir uma por uma estava fora de cogitação, pois estavam muito bem pregadas, então o filho de Escorpião usou o que achava ser o método mais eficiente; abraçou a borda da primeira caixa da pilha e decolou, bem devagar.
Apesar do pequeno volume, a caixa era muito pesada, e ele profusamente escorou o objeto entre os braços e o lado da barriga, evitando ao máximo o deslize. Um pouco desengonçado, ele subiu abraçado com a primeira caixa com sucesso, mas em determinada altura aconteceu uma coisa que ele não tinha cogitado: o conteúdo, fosse o que fosse, era o que dava peso, e todo o cuidado de Renan não era bastante para dar forças aos pregos que prendiam o lado virado para baixo. O caixote subitamente se tornou leve, e Renan voou mais rápido e alto por um breve instante. Um instante seguido de uma enorme barulheira.
O som de vidro estilhaçando ecoou por toda área, e alertas de vozes grosseiras goelaram na sequência: “Ataque! Invasão! A postos, iluminem o perímetro!”.
— Mas que raio foi isso? — Vasto perguntou para Abigail, que arrebentava um dos cadeados.
— Ele quebrou as lentes, eu acho. — Encarando o alto, a filha de Touro soube que não era mais hora de ter cautela. O dealbar dos archotes evidenciava o perigo iminente, e os escravos já não queriam saber de instruções, mesmo enervados correram desordenadamente até a escadaria para fora do buraco, com a fuga sendo a única preocupação.
“Estão fugindo!” alguém gritou, e logo o primeiro soldado apareceu segurando uma chama que revelou a operação de Vasto.
— Eu vou destruir o tubo! Você se vira com eles?
— É claro, menino! — Ela respondeu antes de correr e sair do buraco pela lateral, sem muito resvalo.
Um sibilo breve e Reimi desceu do preto para catar o caído do céu. No tempo de subida até a extremidade da torre escura, Vasto vislumbrou as dezenas de luzes acesas e os montes de soldados se armando que as rodeavam. Alguns já perseguiam os fugitivos; Renan não estava em canto algum. Sem precisar adejar, ele se debruçou na beirada da torre com um pulo.
A superfície da estrutura era muito dura, e apertou tanto abaixo das costelas que Vasto não hesitou em se jogar para o lado de dentro. Premendo com pés e mãos as paredes, ele ainda não tinha ideia da função daquela coisa, mas o caminho de descida ainda era longo, embora não achasse que corria perigo. Começou a descer devagar, atentando para a superfície inacreditavelmente lisa do interior do tubo. No quarto passo, uma luz revelou o que era a escuridão sem rugosidade.
Centenas de imagens cercavam Vasto. Todos homens de cabelo escuro e volumoso, e com olhos de cor violeta, tantos que pareceu até uma cor comum. O que era aquilo, ele ainda não sabia, mas a parede interna da torre refletia com mais nitidez que prata polida, e a sua superfície era tão lisa quanto vidro. Uma infinidade de planos reflexivos com extremidades chanfradas estavam sobrepostos, formando uma altíssima parede tubular de espelhos, que agora refletiam a figura impressionada do filho de Áries por todo seu corpo.
— Ei, o que foi? Por que não acendeu ainda? — Alguém perguntou logo abaixo.
— Olhe! — O homem com a tocha na mão apontou para a parede de espelhos em frente a si, e o outro soldado viu também a imagem de um rapaz de capa azul, com pernas e braços abertos.
— Ele está ali em cima! É mais um invasor, não perca tempo, Europa está se desfazendo! Se não sairmos daqui vamos ser soterrados! Deixe ele aí!
Vasto se contorceu para entender o que acontecia abaixo dele, mas não tinha como se debater sem provocar uma queda direta até o chão. Embaixo, o segundo homem derrubava vasos de uma terra preta que tilintava quando chegava ao chão da torre – que era metálico, o barulho denunciava. “Vamos, é o suficiente! Temos que sair logo daqui!”. O primeiro homem largou a tocha no vão da torre antes de correr, imitando o outro. Vasto não precisou mais se esforçar para ver o que acontecia na base da torre, a partir daquele instante. Uma centelha estelar irradiou sua luz por todo o corpo dele.
“É uma fogueira! Isso é uma chaminé?”, o filho de Áries pensava, fechando os olhos. As pedras inflamadas na base queimavam como o próprio Sol, e mesmo as pálpebras de Vasto não conseguiam impedir a tremenda luz branca. Agarrou a lança dourada com uma mão e bateu contra a parede, inquieto. Ela se rompeu como estilhaço de vidro, então ele continuou a bater mais e mais, quebrando tudo que estava ao alcance. E uma trinca se alastrou até o espelho que apoiava sua mão. Por reflexo, ele retirou a mão do corte e suas costas escorregaram, mais rápido do que era possível imaginar.
— Ahhhh! — Gritou, com a ponta da lança quebrando toda a parede interna enquanto caía! Um estilhaço maior passou mais rápido, cortando o braço; estava correndo sério risco de vida. Assobiou desesperadamente, com o rosto virado para baixo, sem se dar conta que Reimi nunca conseguiria entrar na torre. Abriu os olhos e viu entre as pernas a luz mais ofuscante que o sol. Branca, viva, faminta!
Mais inesperado que tudo aquilo, Vasto sentiu um movimento carregando todo seu corpo para trás. A torre estava desabando. Amparado pela inclinação da parede, ele soltou a lança, fazendo-a cair sobre os joelhos dobrados e usou as duas mãos para finalmente encerrar o deslizamento. Estava salvo, e só depois de estabilizar o corpo, foi que notou o frio da noite ainda perdurando, mesmo na torre. Aquela explosão de luz, por mais irreal que parecesse, não emitia calor.
Vasto gritou; olhou para o alto, gritou; viu o branco sendo refletido nos incontáveis espelhos vítreos que ainda estavam inteiros, gritou. Como uma aparição digna de sua arte onírica, ele encontrou a salvação, surgida do branco como todas as sombras aparecem: do nada absoluto. A figura gorda de Renan quebrou a infinidade alva, e, por um segundo, Vasto se assustou com aquele peso todo caindo em sua direção. Mas não era queda, e Renan parou com os pés na frente de Vasto.
Ele se agarrou como pôde e o filho de Escorpião subiu. Vasto aproveitou para quebrar todo o resto da parede que conseguiu, a lança dourada deixando uma borrasca de luz para apenas o fogo ofuscante contemplar. A ventania anunciou o topo da torre, e Vasto conseguiu abrir novamente os olhos por completo: na primeira curva de Renan no ar, ele precisava virar o rosto para ver a engenhoca que quase o matara. O zigurate estava se desfazendo, pedras e terra sendo puxadas pelo ar e novamente se aglutinando em um enorme ídolo rochoso que pisoteava o largo acampamento dos soldados de Aman-Can. A parede escura da torre quase a escondia na noite, se não fosse o enorme jato de luz que saía de sua extremidade, alongando a torre negra em uma torre branca de pura luz, cujo topo alcançava o próprio céu. Mas a torre branca era a mesma torre negra, e ambas caíam, ao passo que o ídolo crescia.
“O canhão de luz desmoronou!”, todos gritavam no solo.
— Abigail, vamos embora! — Renan gritou, circundando o tronco rochoso. De prontidão, ela assobiou; Reimi esvoaçou um pouco e a recebeu com um abraço, fechando-se ao redor do corpo dela e subindo mais alto que Renan. O ídolo de Abigail Duralma perdeu sua força e despencou sobre o resto do acampamento, levantando terra e causando um tremor que chegou às nuvens.
— E os prisioneiros?
— Alguns morreram na fuga, outros conseguiram escapar, devem estar correndo ainda. — Renan respondeu, sem entender o alívio que enchia o peito de Vasto ao ver aquela obra de horror tombando. Europa era seu nome, e seu primeiro raio de luz foi também o último.
***
Ao chegar, encontraram Gian, Guiara, Dolga e Cristal, afobados. Não sabiam, todavia, que Ru Luca estava com eles, e uma discussão tomou conta logo da chegada do grupo, mas o principal precisou ser explicado antes que pudessem voltar a dormir: o que, em nome de Sauza, tinha sido aquela luz clara que fendeu o céu. A filha de Aquário, única que permaneceu acordada, surpreendeu-se quando viu o risco no céu e acordou todos; estavam discutindo o significado daquilo desde então, atordoados ao ponto de não acender um fogo sequer, com medo.
Guiara curou os ferimentos do grupo – Vasto foi dormir com o braço intacto – e todos combinaram de deixar as crianças no povoado mais próximo. Assim foi feito, logo cedo. Dolga foi contundente ao explicar a condição delas à família de fazendeiros que aceitou acolher as crianças durante uns dias, mormente porque sentia que ainda não estavam completamente safos, nem elas nem o grupo dos caídos do céu. Partiram rumo ao sul com a promessa de que em pouco tempo o dono da fazenda levaria os pequenos para a capital e procuraria por Felícia Nobu. A carta que Vasto escreveu reproduzia tudo que ele explicaria a ela nos dias seguintes – no campo dos sonhos – e deveria ser entregue também.
Embora a angústia dos viajantes tivesse se dissipado quanto ao destino das crianças – com o poder de Cristal atuando, era evidente que a família de fazendeiros tinha sido sincera – Dolga não conseguiu se tranquilizar, ele sentia que algo de ruim estava para acontecer muito em breve. Não fosse a natureza desconfiada do filho de Gêmeos ou o tempo vivido num local de passagem de viajantes, ouvindo constantemente histórias horríveis sobre o terror causado pelo exército de Aman-Can, os outros poderiam dar ouvidos a ele; infelizmente, quatro dias depois, a confirmação dos pressentimentos chegou de uma forma que só Abigail Duralma era capaz de imaginar.
— Parem, parem! — Ela ordenou à carroça.
— O que houve, Abigail? — Compenetrada, ela não tirou os olhos do horizonte. Começou a gritar por Renan, que voava ali pelas redondezas.
Pousando para atender à solicitação, Renan encontrou todos os demais com olhos atiçados, pescoços espichados e semblantes confusos, tentando decifrar a preocupação de Abigail. Na direção do olhar, Reimi voava carregando Guiara e os dois filhos, ziguezagueando o céu alegremente; muito mais distante, um ponto escuro na linha final estava parado. O terreno, como já vinha sendo há muitos dias, tinha poucas árvores, e aquela figura, apesar de longínqua, destoava do cenário. Era grande, e sem saber explicar como, os caídos do céu tremeram ao notar que a pequena sombra assistia ao voo de Reimi.
— Voltem, rápido! Corram para o mais longe que puderem! — Ela assobiou para Reimi, mas os três olharam e acenaram apenas, os rostos risonhos sem saber o que se passava no chão. Abigail desceu da quadriga e correu para longe das carruagens. — Eu mandei correr! Vasto, Dolga! Obedeçam!
Ela ativou o Coração do Ídolo.
— Eu não vou embora sem minha família!
— Abigail, o que está acontecendo? Responda, por favor! — Vasto desceu da carroça e foi em direção a ela.
— Vasto, comigo aqui ela vai ser obrigada a falar a verdade, mas pela cara dela, acho que não vai gostar nem um pouco de revelar o que você quer saber. Vasto? Ei, olhos bonitos! Você não está me ouvindo?!
Ele não estava. Vasto, perscrutando aquela sombra no fim das vistas, sentiu as pernas gelarem e os joelhos tremeram. Ele sentia que aquele, quem quer que fosse, estava olhando para ele.
— FUJAM! — A filha de Touro gritou, peremptoriamente. Como que reagindo à fúria dela, a sombra mudou. Foi engolida por fogo.
— FOGO! Abigail, é ela? Ou é ele? — Dolga perguntou, aflito. Queria já estar longe dali. — É ele! Está vindo em nossa direção!
— Vocês não podem com Bui Uezo! Ignis é capaz de matar todos em um instante! RENAN, O QUE ESTÁ ESPERANDO? Vá chamar os demais!
O ídolo ainda recolhia pedras circunvizinhas para montar seu corpo, só as pernas, até então, se estruturando com o que puxava do solo.
— Vasto, o que está esperando? — Gian clamou em vão. Fez a volta assim que viu Renan falando com Guiara e acelerou a carroça, sem dó dos cavalos. Quase que num gesto consciente, Edgar pulou da carroça como cão e pisou no solo transformado em cavalo. Foi até Vasto, solícito, mas só ganhou um afago no pescoço.
— É ele. É Enzo, o filho de Capricórnio. — A distância já tinha se reduzido bastante, e era possível ver uma sombra aterradora no meio das chamas. Um corpo escuro e de porte descomunal trotava de maneira elegante, mas igualmente feroz – algo que ele só vira antes em Galope. — Eu conheço esse golpe. É um truque... Abigail! É UM TRUQUE!
Ela ouviu, mas não podia fazer muito além de esperar o ídolo se formar. Infelizmente o terreno tinha poucas pedras, e ia demorar um pouco. Pernas alinhadas, Abigail permanecia de pé acima das rochas, cercada por pedaços flutuantes quase prontos para se fecharem em um tronco rígido que serviria de escudo. Só mais algumas pedras...
— Abigail! Ele vai acelerar no último trecho, eu conheço esse golp...
Trovões. O céu limpo não ameaçou ninguém. O barulho, o tremido, a força avassaladora vinha do chão, trovões nascidos não da luz efêmera dos relâmpagos, mas do destrutivo poder do espírito animal que protegia Enzo. Ignis acelerou e cruzou o trecho restante em um átimo. Vasto não soube dizer se o escudo da filha de Touro tinha se formado, só ouviu o estrondo do golpe.
RENAN
JUSTIÇA ÀS ESCONDIDAS
VII
Foi um dia e uma noite de voo livre, solto. Feliz. O filho de Escorpião recorreu à caridade de moradores rurais para se alimentar enquanto fazia a viagem de volta à capital, mas quando estava prestes a ir embora, pagava pela comida, assumindo a identidade de caído do céu e rei de Kelicerata. Para ele, saber que seu povo era generoso era o mais importante. E, encerrando cada despedida, ele subia com a capa branca esvoaçando, voltando o corpo para seus benfeitores e dizendo em voz alta:
— Não temam, que a vida há de melhorar em Kelicerata!
As palavras saíam altas da garganta, porque eram de coração.
Cristal estava em segurança, sob os cuidados de Vasto, Abigail e todos os outros que rumavam para Aman-Can. Em breve ele voltaria com eles, mas não podia ir embora sem acertar as contas com Orion. “Sem fazer com que ele pague pelo que me fez!”, ele constantemente pensava, malgrado preferir chamar seu desejo de consequência inevitável da imposição da justiça.
Ninguém se oporia àquela maneira de ver as coisas, mas Renan escolheu não dizer nada, e apenas se afastou das vistas quando pararam de olhar. Nas primeiras horas de voo receou que alguém viesse atrás dele com Reimi, mas isso não aconteceu. Estava desimpedido.
Foi na tarde do segundo dia que chegou até a casa de Orion. Um palacete protegido pela mata virgem. Uma construção rígida, bela e extraordinariamente bem guardada, especialmente naqueles dias de sumiço dos filhos de Escorpião, Touro e Cristal. Sim, certamente que as ações de Vasto e Silvestre no Impacta estavam entre as preocupações de Orion, mas perder os seus três trunfos com certeza fez o chefe da Família Antares passar noites sem dormir, inquieto de tanta preocupação. Talvez soubesse que as duas coisas estavam relacionadas. Provavelmente. “Pelo que Cristal disse, havia um homem de guarda na prisão de Vasto, ele com certeza foi dobrado pelos Antares.”, Renan pensou, cheio de segurança, afinal Orion não contava mais com as facilidades de Cristal, tendo que apelar para métodos de investigação rudimentares. Métodos truculentos.
Um pouco ao norte da casa alta, antes do fechamento da mata, havia o coreto e um grande alojamento, que eram comumente usados como espaço de lazer e leito de serviçais, respectivamente. O alojamento foi adaptado às pressas e já aboletava a quase centena de soldados que circundava a área, todos mostrando certa insatisfação no rosto. Algo compreensível, afinal os Antares eram famosos pelos seus costumes urbanos. A maioria residia na capital.
Renan deu voltas e mais voltas, observando a moradia. Sem se preocupar demais, afinal a arquitetura da casa o favorecia, com aquelas amplas janelas abertas, mas hesitou por muito tempo, trocando de nuvens no céu até perceber o sinal que o chamava.
O toque de flauta, instrumento famoso por ser apreciado pelo chefe da Família Antares e tocado com maestria pela filha dele, chegou ao céu de Renan. Ele vasculhou o coreto, mas a melodia confortante não vinha de lá, ela vinha de dentro da casa, do pequeno forte dos Antares. Renan riu tão alto que tapou a boca com as palmas das mãos, cheio de si porque ia matar o maldito Orion e, talvez, empolgado demais para se expressar com lágrimas.
— RÁ! — Gritou quando terminou de rir, e se jogou nuvem abaixo. Pouco antes de entrar pela janela grande da frente da casa, o avistaram e ele mesmo fez questão de gritar. Um grito de guerra em meio aos anúncios dos soldados, preocupados. O sopro da flauta cessou, mas quando ele adentrou a sala de música, a mulher ainda tinha os lábios presos na aresta de argila. Renan passou a vista nos quatro presentes, não tão magnânimos quando viram a segurança do lar quebrada com tanta facilidade.
— Ele ia me prender, você sabia de tudo! E escolheu não me contar!
A mulher manteve o dedilhado firme no instrumento, entretanto quando abriu a boca para falar algo, faltou-lhe ar.
— É VOCÊ QUE EU QUERO!
Renan não pensou além da conta, voou mais rápido que a queda da entrada e puxou Orion pelo pescoço. Pesado, ele precisou se agarrar no corpo do caído do céu para não sofrer um choque, e os dois subiram por uma das janelas laterais da casa, sob gritaria nervosa dos soldados lá embaixo.
Com a cara já vermelha, Orion ia morrer asfixiado, então Renan teve de se despedir com poucas palavras:
— Eu não precisava vir. Mas eu vim, porque você foi ruim. Muito ruim.
Olhos espremidos, Orion tentou falar alguma coisa, mas a garganta presa não deixou. Renan folgou as mãos, ato que ele mesmo não esperava fazer. E Orion ergueu a mão; acertou com a palma no rosto do filho de Escorpião.
Todos sabiam o que decorreria. O homem da capa branca esvoaçante soltou o homem mais poderoso do leste de Maciaan, e ele caiu veloz até o chão. Só que Renan caiu mais rápido que ele, e deu um soco e uma risada da cara de Orion. Ninguém que viu a cena entendeu muito bem porque aquele último golpe; a maioria não atentou para o fato, afinal foi tudo tão rápido! Mas no chacoalhar seguinte das folhas das árvores, o assassino voador já estava fora do alcance dos melhores arqueiros.
A Família Antares teria que preparar mais um funeral...
Capítulo 12: Sofrimentos e o caminho salvador
I
O corpo de Abigail Duralma quicou quatro vezes no chão antes de parar. Rodou tão rápido no ar que não foi possível contar os giros. Bateu de formas tão estranhas na terra que parecia não ter esqueleto debaixo da pele. O grupo na carroça supôs de imediato que ela tinha morrido. O ídolo, ao menos, ruiu como simples pedregulho após a passagem da sombra. A sombra que Vasto observou de perto.
O corpo de Bui Uezo, assustadoramente veloz no último trecho, chocou-se diretamente contra o tronco do ídolo rochoso, estourando uma nuvem de poeira e pedra lascada das costas dele, de onde a filha de Touro tinha sido cuspida. Ignis, o monstro vermelho, virou fumaça no instante anterior ao choque e surgiu, nesse mesmo instante, do outro lado, materializando-se a partir de fogo furioso, alguns metros à frente, só o bastante para Bui pousar exatamente em sua corcunda. O arreio inacreditavelmente era preso ao corpo do homem por fivelas e tiras de couro, e logo após cair no corpo de Ignis, ele enlaçou uma corrente de argolas metálicas sem muito esforço no animal e a prendeu com fivelas de aço, servindo de barrigueira. Ato contínuo, puxou uma rédea ao redor do pescoço do espírito animal, que fez força de volta e, em questão de segundos, Bui Uezo estava ajustado novamente à sua montaria.
— Janela! Como é maravilhoso ver que você sobreviveu até hoje, mesmo com sua visão inocente da vida e do mundo! — Ele falou, a voz rouca turvando seu tom zombeteiro.
A pele era queimada como a de Abigail, porém mais escura, e a fisionomia tinha passado pelo mesmo processo por qual passou a filha de Touro, pois ele era, como ela, um gigante. Os cabelos longos muito puxados para trás estavam amarrados em um coque bem feito, os braços nus apertavam anéis de ouro contra a musculatura definida e o pouco que cobria a pele era feito de tecido cor de barro e couro trançado. O tamanho das mãos o tornava capaz de esmagar ossos humanos, e Vasto suou frio quando Ignis deu passos em direção à mulher imóvel no chão.
O espírito animal surpreendeu também, pois não era o íbex belo de pelagem cor de brasa que o filho de Áries esperava encontrar. A figura chamejante era, com muita imaginação, associável a um alce de proporções bestiais, com pelos cor de sangue debaixo da camada de fogo inesgotável. Ignis parou próximo a ela.
— Quando o pilar de luz de Europa foi ativado, todos em Io ficaram loucos — ele começou a dizer, indiferente à imobilidade de Abigail, que parecia desmaiada aos olhos de Vasto — no dia seguinte todas as lentes de lá estavam apontadas para o lado de cá. Eu custei a acreditar quando recebi a mensagem dizendo que a construção desabou. Orion não tem poder nem ousadia para isso. Na verdade eu só acreditei porque ao final diziam ter avistado um homem voador perto do local.
Vasto segurou o cabo de um punhal que tinha consigo. Sentiu o suor escorrer dos lados dos dedos para a arma e lamentou em silêncio pela lança ter ficado na carroça. Não fez nenhum movimento, no entanto, continuou ouvindo a voz grave, ainda sem identificar se havia ironia ou não naquelas palavras.
— Pensei que fosse Ivan com Reimi, mas disseram que era um homem no ar, passando pelas nuvens como se nadasse, sem asas de qualquer tipo... E então lembrei que havia um caído do céu capaz de fazer isso. Despachei a tropa de averiguação e resolvi vir pessoalmente, mas nunca imaginava encontra-la. Imagine se fosse Bato a vir no meu lugar? Há. Furiae tem um humor e tanto... Ele está em Calisto, não sai muito de lá, na realidade. Creio que mudaria de conduta se soubesse que você tentou entrar em Aman-Can. Não acha?
Ela não respondeu, mas seus dedos revolveram terra, cheios de raiva. Os do braço bom, que não tinha sido dobrado e torcido durante a queda. O rosto ainda estava enterrado no barro seco.
— Eles são os outros filhos do zodíaco? — Abigail não podia ver que Bui Uezo mirava a carroça que já ia longe, mas Vasto notou. — Vou precisar dar cabo deles, ou matar você já resolve meu problema?
As chamas das patas de Ignis ameaçaram explodir, e o calor repentino provocou reações nos dois caídos do céu mais próximos. Edgar mudou de cavalo para andorinha e sumiu no céu; Vasto, que não podia se transformar em nada, teve que correr. Mas não para longe. Ele não fugiu. Ergueu o punhal e avançou contra Bui Uezo, na atitude mais estúpida de toda sua vida.
— Pare, Enzo! Eu não vou hesitar em atacar! — A cinco passos de distância ele parou, apontando a arma na direção do filho de Capricórnio. Bui virou o rosto com olhos despreocupados, e só então pareceu se dar conta da presença dele.
— Vasto, mexa-se! Fuja! Se não fizer nada, você vai morrer! — Ela gritou, com a cara ainda no chão. Provavelmente não era capaz de mexer o pescoço. Bui não se mexeu, o olhar indiferente congelado em Vasto.
— Eu me lembro de você. É o filho de Áries, nasceu alguns dias antes de irmos para as montanhas do leste. Por que o espanto? Olhos dessa cor não são fáceis de esquecer, moleque. Eu não sei qual é o seu poder, mas acha mesmo que pode lutar contra mim?
— Eu não tenho poderes, infelizmente sou desses caídos do céu que descem só para passar vergonha, entende? — Os joelhos tremiam bem de leve. — Mas eu tenho um problema, sabe? Não consigo ficar parado quando vejo ameaçarem alguém indefeso!
— Vasto! Não lute com ele! — O gosto sujo de terra já se esfregava na língua dela, mas Abigail não ligava, se conseguisse convencer Vasto a correr dali. — Você não vai conseguir nada contra ele! Enzo se distanciou demais das pessoas, Furiae o cegou!
A menção ao nome fez Bui Uezo se mover, e Ignis virou, ficando de frente para Vasto. A estrela do caos prestes a se chocar com a estrela do destino. O gigante riu desmedidamente.
— Furiae me cegou? Eu sou o único em Maciaan que enxerga as coisas como elas são!
— Furiae também fala comigo! — Vasto revelou, e Bui Uezo torceu o rosto. O calor aumentou.
Ele levantou o queixo e apontou para o céu. Perguntou em seguida para Vasto:
— Me diga, filho de Áries, o que está vendo?
Vasto não sabia o que fazer. Tinha certeza de que era uma distração, mas o semblante do inimigo era tão duro que não admitiria disfarces. Arriscou, com bastante medo, olhar para cima. E não havia nada lá. O céu azul, claro e sem nuvens. Como sempre.
— Você não vê nada, não é? Há, há! Você não passa de um folião! — O ar arrefeceu. — Que seja, não lutarei com você. Se quiser me atacar, fique à vontade. Não reagirei.
Bui Uezo largou as rédeas e cruzou os braços. Não podia ser verdade.
— Não vai descer?
— Acha que eu desceria para lutar com alguém feito você? Não há homem vivo que me force a desmontar para combater! — Ele riu alto e retomou as rédeas de Ignis. — Áries, olhe bem para Janela. Esse é o destino dos que se deixam levar pelas emoções. Aprenda a sua lição, pois viverá para ver o sol de amanhã, mas não ouse pisar em Aman-Can, ou vou fazer mais que destruir as suas esperanças. Vou transformá-las em desespero.
Ignis explodiu. O fogo cobriu o chão, o ar, Abigail e Vasto. Quando a chama virou fumaça e foi levada pelo vento, o filho de Áries se encontrava caído, com olhos arregalados de medo e boca trêmula. O fogo não queimou nada, mas ele quis que tivesse queimado quando ouviu a risada pedante do filho de Capricórnio.
— Janela, não quero ver sua cara nunca mais! E lembre-se disto: se o mundo não estiver em minhas mãos em pouco tempo... Estará nas mãos de Drago! Eu sou o único capaz de trazer o equilíbrio para Maciaan!
Bui Uezo partiu mais satisfeito do que esperava. Não correu, não olhou para trás, até riu alto em um momento. Sua silhueta sumiu quando a vista ondulava próxima ao chão longínquo. Os outros, humilhados, permaneceram quietos até que os demais chegassem na carroça para socorrê-los.
“Equilíbrio para Maciaan. Furiae. Drago?”, Vasto tinha muito o que perguntar para Abigail, e ali, ainda com o suor frio escorrendo pelo corpo, não era capaz de separar a raiva da frustração. Especialmente porque obteve a certeza de que ela sempre soubera muito mais do que tinha revelado.
II
Apesar do corpo esbelto e da força natural, o processo de cura em Abigail Duralma foi bastante demorado. Com toda a eficácia de cura de Guiara, a recuperação só se dava mediante ao contato direto de suas mãos com a área ferida, e até a filha de Câncer restaurar todos os enormes ossos quebrados, os demais já haviam montado uma tenda ao redor, e aguardavam pela recuperação da companheira, preocupados com o que viria depois. Cristal, como não podia deixar de ser, não saiu do lado da filha de Touro nem por um segundo. Gian, Ru Luca, Otávio, Renan e Edgar – que apareceu depois na forma de cachorro, cheio de sede – permaneceram ao redor de uma fogueira pequena montada às pressas ao lado da tenda. Vasto, visivelmente irritado com sua impotência, isolou-se para depois ser abordado por Dolga, que procurou saber os detalhes do ocorrido.
Logo antes do laranja do pôr-do-sol, antes mesmo do violeta que o precede, enquanto o céu ainda mantinha a indecisão arroxeada, tudo parecia já estar normalizado com Abigail. Os mais próximos já tinham ido ter com ela, mas só estavam na tenda as três mulheres do grupo quando Vasto entrou, impetuoso e falando alto para a gigante acamada.
“Se alguém reclamar, eu ponho a culpa em Cristal”, Vasto pensou quando estava prestes a entrar na tenda, mas ele só estava se enganando. A irritação era profunda e verdadeira, e mesmo se alguém o questionasse quanto aos modos, ele não seria capaz de mentir e colocar a culpa em Cristal, justamente por Cristal estar ali. Mas ele não ligou nem um pouco.
— VOCÊ É RETARDADA? Desde o primeiro dia, desde o primeiro minuto, você sempre soube que Enzo era Bui Uezo! Preferiu ficar calada quando o mencionávamos, preferiu omitir qualquer desgraça que tenha ocorrido e por causa da sua imaturidade de não falar honestamente com as pessoas mais próximas de você, quase fomos todos mortos!
Guiara se sobressaltou com o susto, mas se recuperou no mesmo instante e foi conter o filho de Áries, que não se permitiu deter e continuou:
— Se você tivesse um pouquinho de inteligência nessa sua cabeça enorme, teria nos alertado! Em primeiro lugar nós não teríamos viajado até o fim do mundo às cegas se soubéssemos que o inimigo ia ser um filho de uma puta com um espírito animal a seu dispor! De verdade, Abigail! Eu não consigo acreditar que você tenha nos jogado dentro de uma armadilha feito essa, não creio mesmo! Você só precisava dizer uma coisa, eu não estou nem aí para o seu passado com ele, bastava dizer: é o Enzo! Pronto, era bastante para montarmos uma estratégia contra ele — o olhar severo de Abigail prevaleceu, e Vasto se calou. Talvez os presentes não tenham se dado conta em tão pouco tempo, mas a filha de Touro já estava completamente recuperada, e se ela não levantou e reagiu contra aquela investida, foi unicamente porque não quis. Por maior que fosse a raiva contra aquela aproximação de Vasto, a tristeza em seu corpo ainda era mais densa, como água suja que não escorre quando presa em uma esponja suspensa.
O rosto expressivo se torceu a cada palavra dita, não deixando dúvidas quanto à seriedade.
— A única pessoa louca aqui é você, Vasto, se acha realmente que inventaria uma maneira de lutar contra Enzo. Você acredita mesmo que o outro lado das montanhas só fez a gente crescer de tamanho? O nosso poder cresceu de uma forma que nem seus sonhos mais imaginativos seriam capazes de demonstrar. Especialmente o poder de Ignis, está num patamar que você nunca vai chegar, nem você nem nenhum de nós! Olhe para o grupo! Crianças, um aleijado, uma curandeira... Acha mesmo que existe uma mínima chance de vencer?
— Não, por favor, não me venha com isso. O meu trabalho, a minha missão é trazer o maldito equilíbrio a Maciaan, o que nem eu sei direito o que é, mas Bui Uezo falou exatamente a mesma coisa! USOU AS MESMAS PALAVRAS! Ele sabe o que é esse equilíbrio, e você também deve saber, mas é só mais uma das coisas que você preferiu omitir. Abigail, não precisaríamos montar uma estratégia contra ele, não precisaríamos porque queremos a mesma coisa, mas que caralho!
— Se você e Enzo buscam a mesma coisa, ele com certeza é o mais apto a realizar. É só isso que quero que entenda. Não é seu papel, é o dele.
— Ivan falou a mim. Diretamente a mim: só com os doze o equilíbrio vai voltar. Quer contrariar seu mestre, que ouviu do homem sem signo em pessoa?! Até onde vai sua negação? Vai questionar Sauza em seguida?
— Você está se comparando a Amato e Sauza? Você não é nada, Vasto!
Ele deu um soco no rosto dela. Cristal exasperou, e todos se mexeram para acudir. Ele conseguiu dar mais dois socos na gigante deitada, então Renan apareceu com uma lufada de vento e segurou o braço do filho de Áries. Agarrou o caído do céu e o prendeu, com a força de seu peso, junto ao corpo. Nem por um segundo Abigail pretendeu reagir à agressão, e quando ela se ergueu da cama improvisada, parou sentada com olhos vagos, sem perspectiva.
— Ainda bem que ele parou a tempo. Imagina o quanto ia levar para espancar uma mulher deste tamanho. — Gian, enojado com o comentário de Dolga, saiu da tenda. Cristal foi em seguida.
Do lado de fora, o marido de Guiara voltou-se para Vasto, ainda seguro por Renan:
— Você perdeu a cabeça? Tenha um pouco de juízo; por Sauza! Querendo ou não, você foi quem liderou este grupo até agora. As pessoas acreditaram em seu sonho maluco e de repente você faz uma dessas? Aprenda a se controlar, homem!
Vasto se debateu uma vez e, ainda preso, não evitou o tom agressivo:
— Me controlar? Mais do que já venho fazendo? Mas que cara de pau a sua de chegar falando que eu tenho que seguir meu papel de líder. Por que não olha para dentro da sua casa? Guiara tem um poder capaz de mudar o mundo para melhor, salvar milhares de vida e VOCÊ faz ela ficar em casa curando pata de boi. Você é o maior canalha daqui, Gian!
A reação foi rápida. Gian ergueu uma faquinha, de olho injetado. Quando viu o brilho da lâmina na mão, Renan foi ligeiro em subir, só dois metros acima, deixando Vasto a salvo.
— Parem! A culpa é minha! — A voz era de Cristal, e a única razão para ter falado tão brevemente era o choro que ela não aguentava mais segurar. O sonho de viajar com os irmãos queridos estava se transformando em pesadelo, e ela só podia culpar a si e ao seu poder, ainda que a situação fosse insustentável com ou sem a sua influência. Ela correu, desajeitadamente e com a garganta travada pelos soluços, e se arremessou sobre o corpo de Reimi, fincado ali próximo. Como que ciente da confusão, ele abriu as asas e voou verticalmente para longe, e se perdeu entre as estrelas que já pontilhavam o céu escurecido.
De volta ao chão, os olhares acalorados se mantinham. Renan declarou que não desceria antes dos dois se acertarem.
— Desculpe. Eu não tinha intenção de falar aquelas coisas sobre você. Foi errado. É que... Meu sonho está ruindo, está tudo indo por água abaixo tão rápido, e... — Renan podia sentir a raiva ainda pulsando nas veias de Vasto.
Gian sabia que era tudo mentira, pois Cristal estava muito longe; mas reconheceu a maturidade de Vasto para reconhecer seu erro e pedir desculpas. Ele o perdoou. Gian era velho o bastante para aceitar um véu de mentiras conscientes e responsáveis, ainda que por debaixo se escondesse um coração enfurecido.
Na tenda, a conversa entre as duas amigas continuava. De pé, Guiara segurava o rosto de Abigail com as mãos, tão pequenas ao lado daquelas maçãs do rosto cor de areia molhada.
— Você precisa dizer tudo de uma vez. Todos aqui só querem o seu bem, Abigail.
— É que... Não é tão simples, Guiara. Vocês não tem noção do que é o lado de lá. E o pior de tudo é Drago... Enzo é o único com poder para detê-lo, mas ele perdeu toda a noção do que é fazer o bem. Eu tive que destruir cidades, eu matei tanta gente inocente, minha irmã... Em Aman-Can o sangue de muitos mortos por Bui ainda mancha a parede de centenas de casas; e eu matei também outros tantos! Eu me arrependo todos os dias, Sauza sabe que falo a verdade! Ele me obrigou, ele me convenceu a fazer aquelas coisas, mas eu nunca acreditei que fosse o certo. Bato... Bato concordava comigo, mas ele nunca vai contrariar Enzo. Ele idolatra Enzo! — Ela voltou a chorar, e a filha de Câncer enxugou seu rosto novamente. — Quando eu resolvi parar, eles me abandonaram, Guiara. BATO ME ABANDONOU!
A dor desenfreou o choro, e ela não conseguiu dizer mais nada. Guiara acolheu aquele desabafo com amor maternal, porém algumas coisas não saíram da sua cabeça. Quem seria Drago? O que, de fato, existe além das montanhas? O que, em nome de Sauza, Janela, Bato e Enzo fizeram de tão horrível enquanto construíam Aman-Can?
III
O resto da noite foi silencioso como o faiscar das estrelas. Mesmo antes da inquietação de Cristal diminuir e ela julgar seguro retornar, ninguém ousou abrir a boca para puxar conversa – exceto pelos dois irmãos, mas eles só conversaram entre si e aos sussurros. E foi o pai deles o único a fazer – secretamente para a esposa – menção de se separarem o grupo, ideia logo abandonada por Guiara, que alegou numerosos argumentos pelos quais deveria passar a noite com Abigail. Era tudo invenção, mas ele conhecia sua mulher há tanto tempo, sabia quando ela tergiversava querendo simplesmente dizer “eu não quero”.
Pela manhã, antes do desjejum, Dolga foi o primeiro a mencionar o destino do grupo.
— Quanto mais eu penso, só consigo me convencer mais de que o fracasso de ontem aconteceu exatamente como deveria. — Ele coçou a cabeleira crespa, que já vinha se enroscando há bons dias, sem um enxágue bem feito. — Mas é verdade! Pensem comigo: as mensagens que Furiae enviou a Vasto faziam referência a Isabel, Silvestre e o filho de Peixes. Nunca foi dito nada sobre Bato ou Enzo. Furiae nunca quis que os procurássemos!
— Tão cedo e já com as conjecturas, Dolga? Nem vou dizer que você deveria parar com isso, afinal este seu tamanho de testa tem que servir para alguma coisa, não é? Mas tomar decisões precipitadas é algo que eu jamais me coadunarei. Imaginamos, na ocasião, que não havia menção no sonho de Vasto porque a localização deles era parcialmente conhecida, e os outros três não, por iss...
— Ei, espere aí! Imaginamos coisa nenhuma! Foi você que deduziu isto! Inclusive me lembro de você ter desvendado — Dolga gesticulou ironicamente ao pronunciar a palavra — isso bem precipitadamente! Por favor, fique calada e deixe-me terminar, Cristal. Acho que juntei todas as peças do quebra-cabeça! Furiae, Vasto, ela apareceu no seu sonho e avisou para procurarmos os três caídos do céu que estão no lado oeste de Maciaan. Ela não citou os dois que vivem no sul precisamente porque sabia que eles não se uniriam a nós! Se a sua tarefa é reunir os doze caídos do céu, e dois deles estão estritamente resolvidos a negar qualquer tipo de colaboração, a alternativa...
Dolga esperou que alguém corroborasse seu pensamento, mas ninguém disse nada. De fato, sequer cogitaram o que ele falou em seguida, encerrando o pensamento:
— A alternativa é matarmos Capricórnio e Sagitário! Quando eles se forem, dois novos nascerão, e finalmente teremos doze harmonizados.
Olhos correram para os lados, tentando se entender e responder àquela suposição, mas cada um tinha sua visão própria sobre os fatos e, intimamente, nenhum deles queria abolir a missão de Vasto, que agora era de todos. O filho de Áries tomou a frente.
— É preciso pensar bem, antes de agir. Para começar, Furiae; ela pode entrar em contato comigo e mandar mensagens, mas Bui Uezo também tem alguma relação com ela, não sabemos do que se trata. Devemos atentar também para o fato do suposto equilíbrio de Maciaan, que Ivan afirmou só ser possível com os doze filhos do zodíaco, ser também um mistério. Bui Uezo também se mostrou favorável ao equilíbrio, mas ele pretende chegar lá sem a nossa ajuda. E por fim tem o tal Drago; parece ser o único inimigo de Bui Uezo, para ele nós não significamos nada, o oponente é outro. Algum de vocês o conhece?
— Eu lembro! — Guiara apareceu na abertura da tenda. — Não consegui dormir até me lembrar de onde conhecia tal nome. Drago é uma figura da terra de Ivan. Era um dos filhos da Ligeia. Não sei dos detalhes, era muito nova quando ouvi a história, mas tenho certeza de que Drago era o nome de um personagem da lenda.
— É verdade — Abigail saiu da tenda, era a primeira vez que se levantava desde o ataque — O equilíbrio que vocês buscam só pode ser estabelecido com o fim de Drago. Na história de Ivan, ele era um dos deuses que criaram as dádivas do mundo, as pedras que causaram o desequilíbrio, há centenas de anos. As dádivas se foram, mas Drago permanece vivo. A missão de Bui Uezo é matar Drago, e acho que deveria ser a nossa também.
— Hum... Se tudo remonta às dádivas do mundo — Dolga pressionou o dedo contra a têmpora, tentando puxar algo da infância — então agora tudo se encaixa: nossas pedras são a dádiva mais poderosa, a pedra celestial! É por isso que precisamos de doze para vencer. A pedra precisa ser reconstituída!
— Isso nos leva ao dilema anterior. — Renan apontou. — Só teremos a pedra celestial unificada após matarmos os dissidentes e novos caídos do céu aparecerem no lugar.
— Então matamos. É o certo a se fazer! — Abigail exclamou. De todos, era quem menos Vasto esperava contar com a cooperação. Ele redarguiu.
— Ontem mesmo você disse ser impossível vencer Bui Uezo! Mudou de ideia de repente, Abigail?
— Eu disse que nosso grupo não pode vencer Enzo. Não menti em nenhum momento. — Cristal levantou a mão, mostrando-se presente, e tirando uma risada gostosa de Otávio. — Não disse que não há outro que não possa vencer.
O estalo se deu em Dolga e Vasto, era visível pela expressão de ambos.
“Silvestre!” e “Isabel!”. Foram os gritos que cada um deles deu.
— Eu estava pensando em Bato. — Abigail completou.
— Não vem com essa, Abigail! Mas Silvestre, ao menos pelo que ouvi dele, parece um candidato apto. Isabel, igualmente. Se quisermos mudar o plano, agora é a hora de decidir: vamos buscar os filhos de Leão e Libra para fazer o trabalho sujo por nós? — Guiara perguntou, estranhamente sincera e tranquila ao falar de matança. A maioria não acreditou que aquilo saiu da boca dela. Mas todos quiseram dizer que sim.
— Então está tudo acertado. Vocês acham Libra e Leão, matam Capricórnio e Sagitário, e depois de tudo, quando estiverem em segurança, voltam que minha esposa vai estar esperando, em segurança, aqui em Kelicerata. E tenho dito! Não vou mais me arriscar. Prefiro ir pessoalmente até Orion, explicar tudo, clamar por misericórdia e viver com privações a ter que continuar viajando e correndo os riscos pelos quais passamos. Eu não quero ouvir uma palavra sua, Guiara!
— Quanto a isso... Acho que preciso contar uma coisa para vocês. — Renan foi até o centro do grupo, com seus cabelos pretos desalinhados e contou o que aconteceu nos primeiros dias da viagem. Contou que tinha assassinado Orion.
IV
Era de se esperar uma nova briga de ânimos exaltados, certezas para todo lado e sangue pulsante dentro das veias; mas não foi o que aconteceu. Gian teve suas estruturas abaladas, e quedou em silêncio por um bom tempo antes de dizer algo. Os demais se entregaram à perplexidade. Matar Orion era irresponsável; perigoso acima de tudo. Mas ninguém se sentia no direito de julgar o filho de Escorpião, muito pelo contrário, um senso de justiça realizada substituiu aquela pontinha de pena que sentiam dele.
Sem a chance de fugir para Aman-Can ou o norte de Kelicerata, Gian se viu proibido também de ir até a capital. Estava encurralado. Quando olhava nos olhos dos companheiros, sabia que precisava manter-se junto a eles até chegar a Casul, mas seu coração doía ao voltar seu olhar para seus filhos. Perguntar o que gostariam estava fora de cogitação, com certeza assumiriam a braveza dos imaturos para convencê-lo de que não havia problemas em viajar um pouco mais. Guiara caminhou até seu marido, ajoelhou-se e, olhando nos olhos dele, contagiou-se com a tristeza. Mesmo sem a sua cura, ela conhecia uma maneira de apaziguar as aflições de um coração, e abraçou Gian. E ele a abraçou de volta.
O grupo, então, permaneceu unido. Coisa do destino. Ele nunca dá muita liberdade a quem segue vivendo.
***
As semanas de viagem rumo ao norte foram tranquilas. Vasto supunha que o melhor jeito de ir para Casul seria através do mar, portanto seu primeiro pensamento foi contratar serviço de transporte com aquáticos, mesmo sabendo dos riscos que isso implicaria, mas Abigail conhecia uma rota mais rápida e segura, que tinha sido estabelecida com sucesso há uns bons anos: a Ponte dos Mundos.
O governo de Kelicerata nunca proibiu a atuação dos aquáticos unicamente porque era vantajoso para a Família Antares que os barcos cruzassem o mar entre os dois países, mas desde que alguém apareceu com ousadia para acelerar a travessia da ponte, logo as vistas grossas desapareceram. O suporte financeiro foi cortado para as cidades costeiras, e a Família Antares até parou de nomear autoridades portuárias assim que a empreitada inovadora tinha se mostrado lucrativa. As caravanas, que já eram controladas por eles, agora percorriam a Ponte dos Mundos em menos da metade do tempo, e a quantidade de pontos de abastecimento se reduziu drasticamente, sobrando apenas alguns pontos de inspeção e descanso.
Sem outras ideias, Vasto liderou o grupo de volta ao norte, seguindo pelo litoral de Kelicerata. O plano era ir direto para a Ponte dos Mundos, lá no extremo oeste dos Campos de Porocop, mas ele tinha uma pequena esperança de que, ao se manter junto ao mar, a vontade de Sauza prevaleceria e numa coincidência o filho de Peixes apareceria. Logicamente isso não ocorreu, e após a longa viagem, num finalzinho de tarde fria, eles chegaram ao ponto mais oeste de Kelicerata, a cidadela criada à frente da Ponte dos Mundos, Elísio.
— Juro para vocês! Eu deixei de comparecer à loja por conta do pesar, que já tinha crescido demais àquela altura. Mas eu tive boas risadas com ele, coitadinho, mesmo quando achou que havia um espírito ruim preso na loja, eu permaneci achando graça, até passei uma indicação de quem pudesse ajuda-lo a derrubar as paredes!
— Parem com a risadaria! Isso foi horrível, Cristal! Seu poder é abominável. — Disse Guiara. — Agora entendo porque falam que Caxa quase ruiu por sua culpa!
— Não admito lições, mesmo de minha queridíssima irmã mais velha! Se bem quisesse, a capital inteira já teria ruído, essas coisas eu fazia esporadicamente, e com gente que fosse jocosa. Ulteriormente, eu evitava os tais, para que eles pudessem resolver suas vidas pacificamente. E os Antares que me escoltavam estavam sempre de olho, não me deixariam ser estouvada além da conta; para ser sincera plenamente em minhas palavras, acho que eles eram os que mais se divertiam com as trapalhadas surgidas por conta dos meus poderes, e quando se davam por satisfeitos, eram os primeiros a puxar meus braços e mudar de rua.
— Ei! Já avistei o lugar.
Os estalos dos galhos e o gostoso som do chacoalhar das folhas precedeu Renan, que não ficou muito tempo. Disse que menos de uma hora bastava para chegar a Elísio, se continuassem naquele passo. Sumiu de novo em meio à folhagem.
— Eu vou à frente com ele. Lembrem-se de cobrir as costas, com certeza tem gente caçando filhos do zodíaco por aqui. Cristal, vem comigo.
Ru Luca fez sinal com os braços para Abigail se aproximar. Logo que a quadriga emparelhou, os filhos de Áries e Aquário pularam e se seguraram em Reimi, que ali estava, bem quietinho. Vasto aproveitou e catou Edgar, todo enrolado no próprio pelo de felino entre as pernas da filha de Touro. Quando não estava voando sob a supervisão de Renan ou cavalgando próximo ao carroção, era onde ele normalmente ficava, sempre tirando um cochilo.
— Quer que eu espere aqui no bosque?
— Não precisa, Abigail. Quando vocês chegarem, já espero ter tudo esclarecido. Só se não tiver jeito mesmo, aí precisaremos que você se esconda, mas não se preocupe, eu mando Renan te avisar, se for o caso. — E voaram. Antes da copa das árvores acariciarem suas costas, Vasto se reconfortou em ver todos no carroção ao lado de Abigail na quadriga. Tinha sido um retorno silencioso, de início, mas as complicações foram acobertadas pelo tempo e, principalmente, pela compreensão que cada um tinha dos outros. Finalmente eles deixaram de ser um grupo; agora eram família.
— Vamos direto para a ponte. — Vasto indicou, e Renan o seguiu, sobrevoando as iluminadíssimas ruas de Elísio. Pousaram numa área afastada, próximo ao paredão rochoso que descia até a água. Ouvir as ondas se chocarem com as pedras lá embaixo trouxe a Vasto calafrios; a sensação de nostalgia existia, sim, mas nunca olharia para uma costa alta sem sentir a perda de Galope.
Perto de onde pousaram, o cenário era diferente do centro da cidade. Maquinaria pesada, especialmente guindastes de tração animal, ao estilo portuário, garantiam movimentação ao cenário e ressoavam batidas de metal e raspagens de cabos e cordas. Como num porto, as pessoas ali pareciam compenetradas em carregamentos e descarregamentos, mas não havia embarcações. Caixas empilhadas e tapumes altos pululavam naquela operação logística que cercava o início de uma das relíquias deixadas por Sauza. Renan foi até o estivador que descansava num banco próximo. As costas escoradas numa parede de tijolos sem pintura e o olhar desinteressado combinavam com a voz rasgada do homem de barriga e coxas largas.
— Só daqui a dois dias. Cê acha que é só chegar e pular no carro? Tem que agendar, senhor.
— E onde fazemos o agendamento? Por que estão fazendo esses carregamentos, se o carro só vai depois?
— Isso aí é os mantimentos. São quatro viagens por semana, duas de entrega, duas de mantimento, uma semana daqui pra lá, a seguinte de lá pra cá. Mantimentos vai daqui a pouco, por isso tamo carregando, mas passageiro e mercadoria só daqui a dois dias. E agendado, é tudo feito lá na capital, na casa de comércio, mas tem vez que uns perdido chega aí na cidade e consegue encaixar uma coisinha. Mas tem que pagar caro...
— E não creio que seja com você que a gente vai fazer esta... negociação de ultima hora.
— Só com o grandão. Eliseu tá sempre recebendo gente nova, se for gente com dinheiro pra pagar o preço que ele cobra, ele vira seu melhor amigo. Vai lá na galeria central, e vai logo. No comecinho da noite ainda dá pra ver ele por lá porque as dançarina ainda tão se apresentando. Quando acaba a dança, ele leva tudo embora, se já não tiver caído de bebo.
Vasto agradeceu e voltou-se para Renan e Cristal. Era hora de fazer uma visita à galeria central e conversar com o tal Eliseu. A claridade das ruas era tal que Cristal confessou já ter visto ruas da capital mais escuras, mesmo durante o dia.
— Dias nublados. — Ela consertou, após olhares duvidosos de Renan e Vasto, mas voltou-se para os olhos caninos de Edgar cheia de afetação, genuinamente indignada por ter sido desacreditada. O filho de Virgem levantou as orelhas para dar apoio a ela – ou talvez num reflexo vulgar de cachorro ao ser inquirido por qualquer coisa. — Ei, vocês viram aquilo?
Cristal apontou para uma charrete que se arrastava pela rua de baixo. Puxada pelos bois, uma enorme gaiola continha uma ave de tamanho inconfundível: era um gavião-imperador. Agitado, o animal se debatia em vão contra as paredes, e mesmo Cristal sabia que aquela não era a maneira correta de restringir a ave. O coração dela, cheio de inocência ainda àquela altura, não suportou ver aqueles maus tratos.
— Não temos tempo para isso, Cristal. Como assim envolver com toalha? Que tipo de toalha poderia cobrir um bichão desses?
— Está louca? Precisamos de você junto a nós, para termos certeza de que não seremos tapeados.
Ela não desistiu de argumentar. Era verdade que o alcance de seus poderes se faria presente na galeria central, afinal Elísio era uma cidade pequena; ela precisaria correr muito ou voar alto com Reimi para que sua influência desaparecesse, mas só a chance de se desencontrarem era preocupante para Vasto.
— Certo! Certo! Aqui, segure! — Vasto tirou Edgar do chão e o colocou nos braços da filha de Aquário. — Vá, dê seu sermão, tente convencer o tratador a usar seus métodos, e quando ele cansar da sua ladainha, vá direto para a ponte, nos reencontraremos lá, combinado? DIRETO PARA A PONTE!
— Que grossura, quando fala com este tipo de atitude eu penso até que não conhece meus encantos. Sou dona de um poder de persuasão sem igual, vocês sabem, mas insistem em teimar, como se eu fosse desvairada e impulsiva.
— Você convence as pessoas porque elas querem que você pare de falar! Aliás, é por isso que eu estou aprovando que você vá admoestar o dono do gavião-imperador, eu até estou desejando que você vá logo e deixe a gente resolver o problema de uma vez. E eu coloquei Edgar no seu colo por um motivo, não largue ele. Se houver algum agravante e alguém partir para briga, só precisa segurar ele pelas costelas e dar um apertão, ele vira um tigre na mesma hora. É infalível. Agora vai!
Virando os olhos, ela saiu, um pouco ofendida, mas mal deu dois passos e Renan saltou como uma pluma para ela. Cobriu a pequena com seu corpo largo e deu um gostoso abraço, prolongado, terminando com um beijo no lado do rosto. “Não liga para ele”, ele disse baixinho, e ela piscou um olho e retribuiu o abraço apertado antes de se separarem.
O caminho que Cristal percorreu era simples e direto. Pelas calçadas de pedrinhas alinhadas e postes consecutivos, a maior dificuldade era carregar o peso de Edgar na sua forma de cão – e não, incrivelmente não passou pela cabeça dela largar o peso, ia seguir à risca a determinação de Vasto. Após cinco minutos de corrida sem perder a charrete de vista, ela alcançou o veículo, que tinha acabado de parar numa área de terra batida com grama rasteira mais ao longe. As casas haviam ficado para trás, e o que ela viu no terreno aberto a aterrorizou.
Um grupo de sete aves, todas gigantes, estavam emparelhadas, acorrentadas nas patas e contidas pelo dorso por lonas de couro. Vidraças de cor azulada estavam posicionadas à frente das lamparinas nos postes, de maneira a forçar a luz azul nos olhos das aves, e uma esteira movida por tração animal provocava a raspagem de longas placas de metal, gerando um ruído ensurdecedor. Aqueles bichos estavam sendo torturados a céu aberto, nas imediações da cidade, e aparentemente sem qualquer pudor. Ah, aquele não era um mal-estar que Cristal conseguiria deixar passar e fingir que nunca havia presenciado.
A filha de Aquário largou Edgar e se aproximou com passos ligeiros. O homem da charrete já tinha descido e conversava com o outro impudente, na maior tranquilidade do mundo. Cheia de si, mas ciente de que não podia fazer movimentos errados, Cristal se moveu soturnamente até a gaiola recém-chegada sem ser notada, e se abrigou no lado contrário ao dos malfeitores. Passou os dedos pela tranca, tentou forçar com muito cuidado, mas foi em vão. Precisaria da chave para abrir.
Cristal não era cogitada para agir nos momentos de risco; ela não tinha habilidades especiais nem aptidão para combate, de forma que ela sempre tivera quem agisse por ela, mas a covardia passava longe da cabeça dela. Ousada, era capaz de cometer idiotices perigosas só para se mostrar ativa. Tinha demonstrado isso quando Silvestre a perseguiu, e estava prestes a fazer de novo. Apanhou uma rocha do chão e, sentindo as batidas do coração acelerado à medida que os dedos da mão ficavam mais suados, ela esperou o homem da charrete voltar. Era troncudo, mas tinha cara de bobo e não parecia ter reações muito rápidas. O outro, de corpo esguio, parecia oferecer algum risco, porém ela não quis medir nada ainda; ele estava longe e já tinha se virado novamente para as outras aves gigantes.
O homem chegou a pegar o molho de chaves. A pancada com a pedra foi certeira na nuca, fazendo-o cair desmaiado com certo barulho, que foi encoberto pela agitação da ave e pelo estrondo de metal em metal. Cristal e Edgar vibraram com o sucesso do golpe, e ela teve medo dele latir, tamanha era a inquietação da cauda.
— Xiu! Ainda tem aquele outro. Vamos lá! — Ela puxou um pedaço da lona de couro dobrada no chão e cobriu o corpo do homem desacordado antes de apanhar sua arma fatal e correr em direção ao outro. Ele se virou quando ela ainda estava a meio caminho. Edgar latiu amigavelmente, mas pode ter sido só zombaria com a cara de Cristal.
— Quem é você? E onde est...
— Ele saiu! Acho que foi se aliviar no meio do mato. Você quer que eu vá embora? — Com seus olhar mais faceiro, ela ajeitou os ombros e esperou ele se desculpar.
— Não, nada disso! É que eu nunca vi você pela cidade, na verdade... — Ele era tímido, não conseguiu dizer o que queria. Mas não era bobo, se aproximou de mansinho, sem saber que a graciosa menina da aparição repentina reservava para ele um pedregulho de eficácia comprovada. — É que temos que adiantar o serviço para logo mais. — Ele estufou o peito e levantou o braço para demonstrar os pássaros gigantes.
— É mesmo? E o que vocês fazem aqui? — Cristal perguntou sem verdadeiro interesse, só esperando um deslize para cravar a ponta da pedra naqueles cabelos ralos. Edgar matinha seu rabo balançando, com o olhar contente de cachorro bem amado.
— Nós só preparamos as aves para o transporte, você sabe... Alimentamos, depois temos que provocar stress para que a saída deles seja rápida. Nada pior que um gavião-imperador que não engrena voo na hora certa. E eu preciso aplicar o unguento ainda, para não infeccionar as patas no meio da viagem. Ei, o que é aquilo?
A botina do desmaiado ficara descoberta, e o companheiro conseguiu vislumbrar o pé saindo da lona devido à boa iluminação do lugar. Tão perplexo ficou, que deu as costas à doce mulher de rosto encantador.
Edgar deu um pulo para trás, assustado com a queda súbita do segundo homem e, ato contínuo, seguiu a filha de Aquário, que já ajudava as aves.
Sem altura ou acurácia para acertar uma pedra nas vidraças azuladas, a saída de Cristal foi vasculhar o corpo do guia da charrete até achar o molho de chaves e libertar os animais. O primeiro foi o que ainda se encontrava preso na gaiola, saiu furioso e soltando penas por todos os lados até acertar o caminho da porta; era normal e esperado, tal comportamento, porém Edgar, um simples cão, reagiu à braveza da ave: latiu alto e precisou ser silenciado por Cristal. Por sorte, nenhum dos dois homens chegou a despertar.
Ela então correu para as outras. A chave abria o cadeado das correntes, quanto a isso não havia mistério, entretanto ela se manteve por um bom tempo agachada junto aos animais porque, não obstante sua impulsividade e ataques de irresponsabilidade, Cristal era uma mulher cheia de zelo. Ao tocar as patas das aves, presas pelas correntes de ferro, ela viu – e era impossível não notar, tamanha a gravidade das reentrâncias – enormes feridas laterais nas patas. Por um instante ela tirou a mão, com medo de se ferir com algum gancho ou ponta afiada, mas ali nada havia. Eram correntes normais, e as feridas procediam de outro tipo de castigo.
Liberadas as correntes, ainda era preciso ajudar as aves a se libertar das lonas de couro, que constringiam as asas. Nada muito complicado, mas que exigiu muito tempo, por falta de cooperação dos bichos sequiosos de liberdade. Tempo que ela não tinha.
Ainda faltando liberar as asas de uma das aves, o de corpo esguio retomou a consciência, e estava furioso! Não pediu explicações, já sabia que deveria dar cabo daquela praga quando abriu os olhos e deu por falta dos animais.
— Sua vagabunda! — Ele correu, de braços abertos para apanhá-la.
— Edgar! Tigre! Vira tigre! — O cachorro nada fez, e Cristal deu-lhe um chute preciso entre duas costelas. O ganido de Edgar foi interrompido antes da dor causar arrependimento em Cristal, pois a transformação tomou lugar, e sob as incômodas luzes azuis do local, o cachorro se transformou em um urso pardo.
— Mas o qu...
O homem estacou. De medo ou de surpresa, tanto faz. Ela aproveitou a chance e correu! Nos primeiros passos da corrida agarrou uma ponta da lona que ainda cobria a última ave e puxou com toda a força. Não sabia se aquilo ajudaria o pássaro a se soltar – acreditava que não – mas pareceu o certo a se fazer, já que tinha libertado todos os outros. Era o mínimo que devia a ele, pois parar e soltá-lo por inteiro não era plausível, combater o homem desperto, menos ainda.
— Vem, Edgar! — Gritou sem olhar para o filho de Virgem, mais preocupada em se afastar ao máximo do homem.
Enquanto o ato heroico da, talvez, dupla mais indefesa dos filhos do zodíaco se desenrolava, no centro de Elísio outra disputa era travada.
— Eliseu? Precisamos conversar. — Vasto e Renan interromperam a risadaria que engolfava, junto com o cheiro de álcool e ervas, a mesa do líder da cidade.
V
A galeria central era fácil de encontrar, mormente por ser um símbolo da cidade, mas era também um local popular. A primeira pessoa perguntada foi capaz de explicar o caminho sem muitos rodeios; Elísio era, afinal, uma cidade pequena. O prédio fechado tinha três andares com largas janelas no andar do topo. A alvenaria, como quase tudo feito na cidade, era da mais alta qualidade e ao entrar pelo portão da frente, Vasto chegou a se deter e conferir a disposição das pedras na parede: todas justapostas com um esmero que não tinha sido barato, não havia uma linha fragmentada.
A população frequentando a construção impressionava e tornava aquele lugar palaciano numa verdadeira singularidade; pessoas simples, a maioria era visivelmente sem instrução, falando alto, bebendo e dançando. Nas inúmeras mesas dispostas, gente de toda sorte celebrava o dia comum. “O que vemos como normal é só gente boêmia frequentando tabernas depois que a noite chega, mas aqui isso parece ser apenas mais uma atividade cotidiana... Definitivamente, ter dinheiro muda a vida das pessoas.”, Vasto pensou.
Renan solicitou ajuda e a primeira pessoa indicou quem era Eliseu. De barba e cabelos crespos muito brancos, face queimada e envelhecida e ébrios olhos pequenos, ele era um dos que tinham mais companhia; sentava numa poltrona maior, que Vasto não soube dizer se era por conta da importância dele ou para suportar o enorme peso. A mesa farta, mas também coberta de restos, ficava num lado mais afastado do portão de entrada, e mais adiante dela, uma das escadarias para o piso superior estava trancada. Todas estavam, de fato, com seus portões de madeira fechados na tranca; aparentemente os andares superiores eram para comércio que não de comida e bebida, portanto, com suas atividades encerradas. Os dois foram à mesa.
— Conversar? Perdoe se for a bebida já chegando na cabeça, mas eu não lembro dos rostos dos senhores. — Ele soltou fumaça por entre os dentes amarelos. O fornilho do cachimbo era forrado a ouro. — Tenho certeza de que estão aqui a negócios, e eu sou o melhor negociante que poderiam encontrar! Mas tem hora para tudo, meus queridos. A hora de trabalho, essa já passou não é?! — Ele passou o braço nas costas da prostituta sentada à esquerda. Ela gracejou, mas nem por um segundo parou de mexer o braço que descia para dentro do saiote de Eliseu. Ele ficou com o rosto gordo vermelho e lambeu o rosto dela em agradecimento.
— Sim, estamos aqui a negócios, mas acho que não é do tipo que você gostaria de adiar. Nossa necessidade é urgente! — Vasto estava gritando para ser ouvido, e para deixar bem claro o que tinha em mente, despejou uma carteira entre os pratos. Com o cordão solto, ela se abriu levemente, e seu interior abriu os olhos de muita gente que estava na mesa.
O que a carteira continha não era dinheiro em moedas cunhadas – o que Vasto também portava – mas algo mais precioso: joias que ele trouxera do Cesaro e ainda não tinha vendido. O valor de joias preciosas era inestimável, pois seu comércio era restrito; apenas gente com título de nobreza podia usar as mais valiosas e a extração era feita exclusivamente pelo governo de Kelicerata. O comércio ilícito daquele tipo de mercadoria enchia os olhos de gente com poder para operá-lo. A avareza de Eliseu era notória, e meios de ação para ele não faltavam, uma vez que era – embora secretamente – membro da Família Antares.
— Sentem-se, por favor! — O braço de Eliseu chacoalhou na medida em que ele indicava cadeiras para eles se sentarem e gesticulava algo com dedos e olhares para os homens que deram os lugares. Prostitutas arrastaram seus bancos e se ajustaram aos corpos de Renan e Vasto, e seus corpos perfumados quebraram um pouco o cheiro ruim do ambiente. Renan esqueceu que precisava inventar um nome, e só lhe veio à cabeça se apresentar como Dolga. De qualquer modo, a influência de Cristal chegava até ali, e acabaram dando seus nomes verdadeiros.
— Precisamos de uma coisa que só você pode nos dar, Eliseu. Ou assim nos foi dito.
— Há muitas coisas que apenas eu forneço, Vasto, e isto aqui — ele catou uma alexandrita e girou-a com os dedos — é uma delas. Não é possível extrair aqui em Kelicerata, mas muita gente que vem pela ponte traz essas belezinhas e precisa se livrar delas para não passar o resto dos dias cagando num balde sujo. E, modéstia à parte, sou bastante generoso com elas. Diga qual o seu desejo, e eu prometo que tentarei realiza-lo.
— Precisamos partir para Casul. Na próxima viagem. Hoje à noite. — Renan estava confiante após ver a reação de Eliseu às joias. Acreditava piamente que não precisariam contar sobre os caídos do céu e suborna-lo com mais dinheiro.
Eliseu se afastou da mesa e, escarrapachado no sofá, coçou a barba, passou os dedos nos lábios e novamente soltou a fumaça do cachimbo, o olhar preocupado.
— Amigos... Eu posso arranjar lugares especiais para vocês na próxima viagem para o oeste de Maciaan. Casul? Quem ainda fala isso? Há, há. Vocês devem vir de muito longe, mas conversam como gente daqui de Porocop... Bom, o que acontece é que hoje à noite o carro que vai sair é o de reposição de insumos. Não levamos ninguém neste tipo de viagem, entende? Ela só reabastece os pontos de descanso e...
Vasto não gostou da resposta, mas ainda estava animado. Mesquinho daquele jeito, seria fácil convencê-lo a manter os filhos do zodíaco secretamente na cidade até a próxima viagem de passageiros. Até pensou em colocar um dinheiro na mesa depois que Eliseu terminasse com sua bajulação justificatória, mas alguém o interrompeu antes. Vasto não percebeu, mas era um dos homens que tinha cedido lugar à mesa, e agora portava uma espada na cintura. Ele disse algo no ouvido de Eliseu, que inicialmente pareceu ofendido, mas o olhar ferino de negociante se transformou após o recado, e agora ele sustentava um sorriso estranho, de iniludível soberba.
— Vasto. Renan. Vocês sabem o que me deu a ideia para melhorar a travessia da ponte? — Os dois não entenderam a repentina mudança de assunto, mas não contrariaram. — Muitos anos atrás eu era um ninguém. Passava fome, até. Precisei aceitar o trabalho mais injusto de Maciaan, servindo nos postos ao longo da Ponte dos Mundos. Muita gente morria durante esse trabalho, a maioria se matava, mas era o que tinha para mim. Um dia, como outro qualquer naquela maldita ponte, eu ouvi trovões, todavia o céu estava limpo. O barulho vinha da ponte, era o trote de um monstro. Na ocasião, achei que ia morrer, e quase chegou a isso — ele segurou o braço da prostituta e imprimiu mais velocidade; ela precisou se debruçar sobre a barriga dele para mantê-la — mas como pode ver, eu ainda estou muito vivo! Quando voltei à terra firme, algo não saía de minha cabeça: como pode uma monstruosidade correr em tão pouco tempo o que levávamos meses com nossos cavalos? Foi então que me dei conta que o tempo de travessia seria encurtado se usássemos outro tipo de condução. Nada de cavalos! Eu queria usar centauros! Mas como convencer alguém disso? Pois é, não dava. Centauros não existem, os poucos que viram são chamados de malucos, porém há outro animal fantástico que todos conhecem muito bem, e que eu avistei num dos meus dias de reflexão. Os gaviões-imperadores. São rápidos e já havia maneiras de captura-los. Não foi difícil montar um método de transporte após esta... Revelação. Eu fui até Kelicerata e apresentei minha ideia à Família Antares, que era quem já dominava a ponte. E aconteceu. Eu fui incorporado à ela e minha ideia foi um sucesso. Hoje eu sou um dos homens mais ricos de Maciaan. E — ele abraçou a prostituta deitada sobre seu corpo e fechou os olhos em regozijo, salivando por onde segurava a piteira — um dos Antares mais ricos.
Ele abriu um sorriso sardônico, largo e vitorioso, e com um movimento de cabeça fez homens agarrarem Vasto e Renan.
— Caídos do céu aqui na minha cidade?! Era tudo que eu precisava para me tornara o líder da Família Antares! — Renan voou, levando um guarda pendurado em cada braço. — Não larguem esse filho da puta!
Ao primeiro comando, um serviçal trouxe uma bandeja para Eliseu, com um tubo comprido e algumas setas. Vasto não conhecia, pois era uma arma pouco usada em Kelicerata, mas a zarabatana era uma arma tradicional de caça em outros lugares. Não sabia o que esperar quando Eliseu ajeitou o tubo na boca, mirando calmamente enquanto Renan socava os guardas contra o teto da galeria. A balbúrdia da bebedeira se misturou com a balbúrdia do perigo, e todos vibraram na galeria quando a seta perfurou o peito de Renan.
Sentindo uma pontada, ele não desistiu e bateu um guarda novamente contra o teto. Mais uma pontada, agora na barriga.
— Ainda bem que ele é fácil de acertar, isso aqui derruba até cavalos com a primeira dose. — Ele comentou, cheio de escárnio. Vasto estava impotente, seguro pelos braços. — Só tenho mais dois, vou ter que mandar pegarem mais!
Ele mirou novamente em Renan, mas não foi preciso soprar, o gorducho homem de branco começou a descer do ar, a cabeça tonta e os braços já sem força.
— Como você descobriu? Nós não dissemos nada sobre quem somos! — Vasto perguntou, e o que lhe veio à mente foi que a culpa era de Cristal.
— Foi isso nas suas costas. — Vasto olhou por cima do ombro. Não era possível ver a luz da Pedra Celestial, a capa cobria tudo. — Não sei se você sabe, mas o homem da capa azul se tornou conhecido até aqui na nossa cidadezinha, Vasto. Talvez você devesse ter trocado de capa depois de todo o circo que aprontou no Castelo Henpakihan. — Eliseu curvou a ponta da zarabatana de Renan, que já dormia no chão, para Vasto e soprou.
***
Os pensamentos desconexos faziam a cabeça doer, mas Vasto tinha retomado a consciência. Uma tontura pesada, sofrida e movida à luz de velas restava na cabeça do filho de Áries e ele se deu conta de que estava sendo seguro pelo peito, agarrado com força por alguém muito maior que ele.
As luzes das velas foram se apagando, e sobrou na visão as efêmeras manchas disformes. No primeiro puxão que deu, adivinhou corretamente quem era.
— Fica quietinho, desgraçado! — Eliseu reagiu, apertando mais o caído do céu e pressionando uma ponta na garganta dele. — Ele está vindo!
Ainda com dor, mas com a visão plena, Vasto reparou que a galeria central tinha sido esvaziada. Os dois estavam escorados contra uma parede e apenas cinco guardas cercavam o portão principal, apreensivos. Renan ainda estava desacordado no chão e o os pequenos saltos de uma ânfora sobre a mesa mais próxima alertaram Vasto sobre o que estava acontecendo. Ele apurou o ouvido; batidas fortes contra o chão chegavam mais perto, e cada uma delas fazia Eliseu se tremer mais.
“Ele acha que isso é Galope?”, pensou.
E pensar foi a única coisa que teve tempo de fazer, pois o estrondo seguinte fez tremer a parede das lojas da frente. Ato contínuo, as pedras extraordinariamente bem alinhadas desconstruíram a arte da alvenaria. Soltaram-se ao mesmo tempo, girando no ar e revelando o ídolo de pedra do lado de fora, sendo incorporadas ao corpo após algumas poucas voltas ao redor dele. O monstro arremessou todos os guardas com um soco, e apanhou Renan do chão antes de retornar o braço.
Eliseu apertou Vasto com tudo que tinha, e o caído do céu não tinha mais certeza se aquilo era ameaça ou súplica. A barriga do ídolo se desfez, rolando suas entranhas numa escada até o chão, que Abigail Duralma percorreu até a metade, já sendo possível dali ver todo o interior da galeria.
— Devo imaginar que é por isso que ele não foi nos avisar, Vasto? — Ela disse, apontando para Renan pendurado na mão do ídolo. A filha de Touro levantou a mão e a arma de Eliseu voou até ela num átimo. — Não devia ter usado uma adaga esculpida em pedra, Eliseu. — Ela riu, admirando o magnífico entalhe feito na arma. As gravuras a tornavam um belo artigo de decoração, e talvez fosse uma arma eficaz, se o oponente não fosse Abigail Duralma.
O velho gordo soltou Vasto e ele trepidou antes de conseguir ficar ereto no chão; efeito da droga. E foi por falta dos reflexos rápidos de Vasto que Eliseu conseguiu puxar a zarabatana e soprar um dardo contra Abigail. Acertou – algo simples de fazer, com uma mulher daquele tamanho.
— O que é isso? — Ela retirou o dardo do ombro, mas Vasto já tinha deixado o inimigo inconsciente com um gancho no queixo certo.
— É uma droga. Talvez você durma um pouco, talvez não. Precisou de duas dessa coisinha para deitar o Renan, e você é bem maior que ele, então...
— E nossa viagem?
— O plano era pedir autorização. Agora, acho tomar um carro só será mais um item na nossa lista de crimes. Os outros estão bem?
— Sim, estão chegando, já.
— Então vamos para a ponte. Um carro está prestes a sair, e é nele que nós vamos. — Vasto subiu pela escada até a barriga do ídolo e saltou para o braço que sustentava Renan, se ajeitando por ali pelas pedras.
— Tão rápido? Acho que este resgate bateu os recordes. — Ela riu, ao entrar no abdome do ídolo.
— É que a esta altura já não podemos ficar enrolando! Oi, gente! Virem aqui, é só seguir reto por essa rua.
— Tem certeza de que não quer descer? Ele caminha bem devagar, será mais rápido eu ir com a quadriga.
— Não, deste jeito nós colocaremos medo no pessoal dos carros. Eles têm cara de durões, se chegarmos numa carroça vão achar que podem nos contrariar.
E o grupo foi direto para a ponte. Dos olhares que os receberam, apenas os de Cristal e Edgar não estavam arregalados. A abordagem foi rápida e incisiva, Vasto gostou de agir como bandoleiro, dando ordens aqui e acolá, e os estivadores abriram espaço solicitamente para o grupo entre as provisões do carro principal, até acorrentaram a quadriga de Abigail ao fundo carro. Precisaram ajustar muito bem um ao outro, pois não havia como a quadriga se prender ao chão, como era o carro de transporte – ele corria por trilhos riscados na pedra da ponte, e cabos férreos passados por debaixo da ponte impediam o veículo de ser erguido pelo ar.
— Muito bem! E os pássaros que puxam o carro? — Vasto questionou, quando Renan já estava acomodado no carro e Abigail, que começava a sentir um sono insistente, sentava na quadriga.
Cristal tomou a frente e disse, antes do estivador:
— Vasto, você não vai gostar do que estou para lhe contar, mas se ouvir tudo do começo, tenho certeza de que não só endossará minha atitude, como me parabenizará! Sei que é um amante dos animais, seus tratos com Edgar podem enganar alguém desconhecido, por achar que você está cuidando somente do seu irmão menor, mas eu já vi várias vezes seu zelo com bichos selvagens. Foi movida por essa responsabilidade com os animais – devo ter aprendido com você – que acabei por me precipitar...
— CRISTAL! Em nome de Sauza, se você não falar de uma vez o que fez, eu vou...
— Eu soltei os gaviões-imperadores. — Acanhada, ela esperou ser rechaçada pela fúria de Vasto, mas ele não se alterou.
— Não tem problema. Usaremos Edgar. — Vasto apontou para o cão ao lado dela. Todos já o tinham visto se transformar em uma ave gigante.
— Não! Vasto, eu não soltei os bichos à toa! Eles torturam os animais, as patas das aves estavam cheias de feridas.
— O ferimento das patas é necessário pra manter o carro nos trilhos — o estivador voltou a falar — se a gente não prender as patas com os grilhão, o pássaro vai voar pra qualquer lado. A gente ajusta com o serrilhado na lateral, aí o bichão só pode voar pra frente, se ele virar pro lado ou pro outro as cunhas entram furando tudo. É o jeito de manter eles em linha reta.
Aquele era um entrave muito sério. Em última instância, Vasto recorreria aos poderes de Guiara para curar os ferimentos em Edgar, mas apostava que os poderes de transformação seriam suficientes para recuperar os cortes; de qualquer forma, se sentia mal em usar Edgar em algo que o machucaria. Pensou em ir até o carro e pedir ajuda a Dolga, mas a solução veio do céu. Sem atender ao chamado de ninguém, Reimi desceu do escuro celeste e se aprumou na carroça. Ela e os cavalos já tinha sido abandonados, pois não poderiam ser carregados ao longo da ponte, mas Reimi era um membro do grupo, e o mais importante: voava como um gavião-imperador sem precisar se alimentar ou descansar.
Com sorrisos largos, Cristal e Vasto foram até a carroça, ordenando três estivadores para que ajudassem. Prenderam Reimi a correntes, sem furar ou rasgar canto algum, e finalmente estavam prontos para partir.
— Desculpem se ameaçamos vocês. Eu agradeço demais a ajuda! Se entrarem em apuros por nossa conta, eu acho que...
— Tem problema não! Elísio não tem soldados, ninguém vai descontar na gente ou em ninguém mais da cidade por obedecer as ordens de bandidos. Talvez Eliseu tenha que tomar um esporro, mas ele se vira. — O estivador respondeu, quase que torcendo pelo grupo.
— Boa sorte! — Outro disse, balançando os braços para a imensidão escura. Com a quadriga balançando ao fundo, o veículo dos caídos do céu percorreu a Ponte dos Mundos. Dividindo espaço com enormes caixotes de mantimentos, eles não reclamaram, pois sabiam que a viagem convencional de passageiros não seria mais confortável; e porque o que os movia era maior que o desconforto. Os que sonharam com o misterioso sol no templo do leste não ligavam mais para o seu significado, eram movidos pela aparição de Furiae no sonho de Vasto, dizendo para buscarem Isabel, Silvestre e o filho de Peixes. Os sonhos de Dolga e Abigail ainda eram mistérios, mas Guiara tinha certeza de que o desta última era algo relacionado com Bato. Mesmo o viajante com menos fé, Gian, sabia que o caminho a ser trilhado era aquele para Casul, e não teria volta. Bui Uezo já aterrorizava a fronteira com Kelicerata, construindo seu zigurate, e decerto não desistiria por conta de adversários que ele já provou ser capaz de sobrepujar; era urgente a chegada de um campeão que fizesse frente ao poder do filho de Capricórnio. Alguns achando que seria o Silvestre de Leão, outros que seria Isabel de Libra e Abigail com certeza de que seria Bato.
O que antes era um grupo controverso, agora era uma família. Ainda controversa, mas qual família não é? A aventura ainda estava começando, pois a luta deles era pela sobrevivência, e basta se manter vivo para estar preso aos desígnios do destino.
JANELA
BONECA INFELIZ
VI
O estrondo de pedra sacudida cortava todo o barulho do lado de fora do ídolo, e Janela ficava feliz por ser assim. Não, não se assustava com o brado de guerreiros que disparavam flechas ou lascavam pontas de lanças em seus ataques, muito menos se importava com o ruído de casas esmagadas. Eram os gritos de gente queimada que ela não queria ouvir. O choro de quem via seus parentes e amigos se desfazendo nas chamas de Ignis já deixava Janela com boca seca e olhar apreensivo; ela preferia não sentir os arrepios de ter gente sendo queimada perto de si, porque eles sempre voltavam de madrugada.
Entre as frestas das pedras que formavam o tórax do ídolo, ela observava suas cercanias e decidia o que e como atacar, naquele momento, um castelinho de dois andares, casa do líder da cidade. Um soco derrubou a torre solitária no lado norte da construção; ato contínuo, ela puxou as pedras do teto e da fachada para recompor o braço, e o interior do castelinho se abriu para Janela. Numa sala de visitas, o carpete branco, empoeirado como todo o resto do aposento destelhado, se tingiu com o sangue de um homem morto. Ao canto, um homem se encolhia, agarrando para perto do corpo uma menina de seis, talvez oito anos de idade. A boca secou mais, e a menina olhou para o monstro de pedra e, pelas falhas incertas e imprevisíveis feito ondas num lago, ela avistou na altura da barriga um olhar como o dela. Janela não iria fazer aquilo, não mataria uma criança olhando no olho dela.
O homem implorou por misericórdia quando viu a mão enorme se aproximando, mas suas palavras não chegaram aos ouvidos da filha de Touro; o estalar de pedras não deixava. E a mão parou estendida, aberta. Demorou até que ele tomasse uma atitude, mas acabou entendendo que ele não o machucaria. Ergueu a pequenina e depois subiu na mão. Os dois foram carregados pelo alto, por onde puderam ver flechas rasgando o céu e fumaça subindo para se misturar com nuvens brancas. O dia tinha amanhecido tão bonito para o povo daquela cidadezinha... Os piores dias começam como qualquer outro.
— Corra para o norte. Antes do fim do dia você avistará um novo povoado. Se continuar seguindo para o norte, estará em segurança, só subiremos depois de conquistar esta região.
— Por que fizeram isto? Eu não entendo como vocês três podem sitiar cidade após cidade, sem nenhum motivo aparente! Eu estava aqui para negociar as terras da região, porque todos já têm medo de vocês. Não há modo de vocês negociarem também? Tanta gente precisa morrer?
— Não temos tempo para isso. Só atacamos as cidades que não se submetem ao comando de Bui Uezo... É pelo o bem de todos. — A voz tremeu ao dizer tais palavras. Não só por duvidar que aquilo estivesse trazendo algum bem, mas porque a garotinha começou a chorar. O pai tentou consolá-la em vão.
— A Abigail vai queimar!
— Por favor, eu imploro! Considerem negociar, ou no mínimo exponham seus planos, para que pelo menos haja tempo hábil para retirarmos os moradores das cidades! Eu chefio a maior Família de Kelicerata, qualquer acordo firmado comigo será cumprido à risca por todos! Não há quem supere minha autoridade, apenas o rei, mas ele ainda não surgiu para reclamar o trono; e eu tenho buscado incessantemente por ele!
Janela não deu atenção às palavras do homem, mas ajoelhou-se perante a menina e perguntou sobre Abigail, sem saber como dizer para alguém daquela idade que provavelmente Abigail já estava morta. Ela contou que Abigail era, na realidade, uma boneca, mas o alívio não impediu a gigante de lacrimejar.
— Você pode assegurar a evacuação das cidades?
— Se tiver como conter Bui Uezo antes de tudo ir pelos ares, sim!
— E se eu quiser ir com você? Haverá algum problema? — Era uma pergunta perigosa, e exigia uma coragem que Janela buscava há tempos. Surgiu um brilho no olhar do pai da menina, mas ele não mudou sua postura servil ou seus gestos solícitos. Era, realmente, um homem de negócios.
— De modo algum! Se vier para nosso lado, todo o povo de Kelicerata vai se animar. Será um raio de esperança no mar de medo que Bui Uezo vem alastrando. Eu posso ver que você não é como ele, você se importa com as pessoas, com o bem-estar dos inocentes, alguém assim será recebido com pompa nas nossas cidades. Eu posso toma-la como minha protegida, não haverá problemas de ordem alguma!
Janela quis perguntar se ela poderia aprender a ler e escrever sob a tutela dele, mas teve vergonha. Não era hora de fazer esse questionamento. Ela levantou e retornou para o interior do ídolo.
— Vá para o norte! Eu preciso chamar uma pessoa, antes. Te encontrarei em breve.
— Procure por Orion! Deixarei mensageiros e sentinelas a postos. Muito obrigado! Como devo chama-la? Nunca soube seu nome...
— Eu não tenho nome.
— Ei! Será que não dá para pegar a Abigail? — Ele disse, disfarçando.
— Não abuse da sorte, Orion.
Pai e filha se afastaram do limite urbano e o gigante de pedra retornou ao furor da cidade em batalha. Três dias depois, eles se reencontraram mais ao norte, mas Janela estava sozinha. Bato escolheu ficar ao lado de Enzo.
A dor da separação apertava o coração de Janela, mas não tanto quanto faria no futuro. A maioria das pessoas não acredita em almas gêmeas, e quando elas se cruzam, é possível – e até normal – que não se reconheçam. Para Bato, o amor de Janela floresceu muito cedo e para Janela, o amor de Bato foi percebido tarde demais. A força para unir este amor desencontrado, a partir daquele dia, era vã.
Daniel Monteiro
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