Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Aventuras do Capitão Hatteras
Volume II
O DESERTO DE GELO
O INVENTÁRIO DO DOUTOR
Hatteras concebera, na realidade, um arrojado plano quando imaginara subir até ao ponto extremo do norte, reservando assim para a Inglaterra, sua pátria, a glória de descobrir o pólo boreal do mundo. Para conseguir realizá-lo, acabava o audacioso marinheiro de fazer tudo quanto cabe em forças humanas. Depois de lutar, por espaço de nove meses, contra correntes e tempestades; depois de ter aberto e quebrado montanhas e montes de gelo; depois de ter arrostado com os rigores de um Inverno sem precedente nas regiões hiperbóreas; depois de ter resumido na sua expedição toda a obra dos seus predecessores, verificado e repetido, por assim dizer, a história completa das descobertas polares; depois de ter levado o seu brigue Forward além dos mares conhecidos; depois, enfim, de ter cumprido metade da tarefa que a si próprio impusera ? vira os seus grandiosos planos aniquilados! A traição, ou, antes, o desânimo da sua tripulação, cansada de tantas provas, e a criminosa loucura de alguns cabeças de motim tinham-no deixado numa situação verdadeiramente temerosa. De dezassete homens, que com ele haviam embarcado a bordo do brigue, restavam apenas quatro e esses quatro abandonados, sem recursos, sem navio, e a mais de duas mil e quinhentas milhas da sua pátria!
A explosão do "Forward", que pouco antes voara pelos ares diante deles, roubara-lhes os últimos meios de existência.
O ânimo de Hatteras, todavia, não dobrou nem mesmo em presença daquela terrível catástrofe. Os marinheiros com que ficara eram os melhores de toda a tripulação: eram homens verdadeiramente heróicos; e ele tinha apelado para a energia e para a ciência do Dr. Clawbonny, para a dedicação de Johnson e de Bell, e para a própria fé na empresa. Só ele ousaria falar de esperança no meio daquela situação verdadeiramente desesperada; e o mais é que lhe deram ouvidos os valentes camaradas, homens resolutos, cujo passado era segura garantia da sua futura coragem.
O doutor, depois das enérgicas palavras do capitão, quis por si próprio formar exacta ideia da situação e, deixando os companheiros parados a quinhentos passos do barco, encaminhou-se para o teatro da catástrofe.
Do Forward, daquele navio construído com tantos cuidados, daquele brigue tão caro, nada restava. Gelos convulsionados, despojos informes, enegrecidos, calcinados, barras de ferro torcidas, pedaços de cabo ainda a arder, quais morrões de peça de artilharia, e, ao longe, algumas espirais de fumo, rastejando aqui e ali pelos ice-fields, davam segura prova da violência da explosão. O rodízio de proa fora arremessado a distância de muitas toesas e descansava sobre um pedaço de gelo, que parecia um reparo. O solo estava juncado de fragmentos de toda a espécie num raio de cem toesas; a quilha do brigue jazia debaixo de um montão de pedregulhos de gelo; os icebergues, em parte derretidos pelo calor do incêndio, tinham já recuperado a primitiva dureza de granito.
O doutor pôs-se então a pensar no seu camarote devastado, nas suas colecções perdidas, nos seus preciosos instrumentos feitos bocados e nos seus livros lacerados e reduzidos a cinzas. Tantas riquezas aniquiladas! E contemplava com os olhos humedecidos aquele imenso desastre, cuidando, não do futuro, mas daquela desgraça irreparável, que tão de perto lhe tocava.
Dali a pouco acercou-se dele Johnson, em cujo rosto se viam ainda vestígios dos transes por que ultimamente passara, quando tivera de lutar contra os companheiros revoltados, para defender o navio confiado à sua guarda.
O doutor estendeu-lhe a mão e o mestre apertou-lha com tristeza.
- Que será de nós, meu amigo? - interrogou o doutor.
- Quem pode prevê-lo?
- Antes de tudo - prosseguiu o doutor - o que é necessário é que nos não entreguemos ao desespero e que saibamos ser homens!
- É verdade, Sr. Clawbonny - aprovou o velho marinheiro -, tendes razão. Para os grandes desastres é que são as grandes resoluções; estamos numa situação nada boa; tratemos de ver como dela havemos de sair.
- Pobre navio! - disse, suspirando, o doutor. - Eu, que já lhe dedicava imensa afeição, que lhe tinha amor como ao meu lar doméstico, como à casa em que se passou a vida inteira, vejo agora que não resta dele um pedaço sequer por onde se conheça o que foi!
- Quem havia de pensar, Sr. Clawbonny, que um ajuntamento de traves e de pranchas pudesse lançar-nos tão fundas raízes no coração!
- E a chalupa? - continuou o doutor, relanceando em volta um olhar indagador. - Pois nem essa escapou à destruição?
- Escapou, escapou, Sr. Clawbonny, mas levaram-na Shandon e os seus, quando nos abandonaram!
- E a piroga?
- Essa está feita em mil bocados! Vede o que dela resta: algumas chapas de folha de ferro ainda quentes.
- Nesse caso estamos reduzidos ao halkett-boat?(1)
- É verdade, e esse mesmo graças à ideia de o levardes na vossa excursão.
- É bem pouco - disse o doutor.
- Miseráveis traidores que fugiram! - exclamou Johnson. - Oxalá que Deus os castigue como eles merecem!
- Johnson - acudiu compassivo o doutor ? - não devemos esquecer que esses desgraçados passaram duras provas e cruéis sofrimentos!
*1. Canoa de cauchu, feita em forma de capote, que se enche de ar quando é necessário.
Só os melhores é que sabem conservar-se bons na desgraça, que faz sucumbir os fracos! Tenhamos compaixão dos nossos companheiros de infortúnio, não os amaldiçoemos!
Proferidas estas palavras, o doutor ficou por alguns momentos silencioso e relanceou olhares inquietos por aquela região.
- E o trenó, que é feito dele? - perguntou Johnson.
- Ficou a uma milha daqui.
- Guardado por Simpson?
- Não, amigo! Simpson, o pobre Simpson, sucumbiu a tantas fadigas!
- Morreu! - exclamou o mestre.
- Morreu! - afirmou o doutor.
- Desgraçado! - disse Johnson. - Afinal quem sabe se deveríamos invejar-lhe a sorte!
- Mas se lá deixámos um morto - continuou o doutor -, trouxemos em troca um moribundo.
- Um moribundo?
- Sim! O capitão Altamont.
E o doutor, em poucas palavras, pôs o mestre ao facto de todo o acontecido.
- Um americano!-disse Johnson, reflectindo.
- Sim, tudo nos leva a crer que esse homem é cidadão dos Estados Unidos. Mas que espécie de navio seria o tal «Porpoise», que é evidente que naufragou, que viria ele fazer a estas regiões?
- Vinha para cá ficar - respondeu Johnson - ; arrastava a sua tripulação a uma morte certa, como todos aqueles que a sua audácia tem conduzido a estes climas! Mas o resultado que esperáveis da vossa excursão, ao menos conseguiu-se? Não, Sr. Clawbonny?
- Achar o tal jazigo de carvão!?
- Sim.
O doutor abanou tristemente a cabeça.
- Então, nada? - perguntou o velho marinheiro.
- Nada! Escassearam-nos os víveres e o cansaço obrigou-nos a ficar no caminho! Nem mesmo chegámos à costa indicada por Edward Belcher!
- Assim - prosseguiu o velho marinheiro -, a respeito de combustível, nada?
- Nada!
- E a respeito de víveres, o mesmo?
- Exactamente!
- E nem sequer temos navio para regressar a Inglaterra!
E com esta se calaram Johnson e o doutor. Já era necessário ter coragem para encarar de frente aquela terrível situação.
- Enfim - continuou o mestre -, a nossa posição, ao menos, é definida! Sabemos bem com que contar! Mas tratemos do mais urgente. Está uma temperatura glacial; é necessário construir uma casa de neve.
- É verdade - aprovou o doutor - ; e isso, com o auxílio de Bell, é coisa fácil. Depois vai-se buscar o trenó, traz-se o americano e combinamos com Hatteras o que há a fazer.
- Pobre capitão! - disse Johnson, que no meio da própria desdita ainda achava maneira de se esquecer a si. -Como ele deve sofrer!
E o doutor e o mestre voltaram para junto dos seus companheiros.
Hatteras estava de pé, imóvel, de braços cruzados, segundo o seu costume, silencioso e contemplando no espaço o futuro. O seu semblante tinha readquirido toda a serenidade habitual. Em que pensaria aquele homem extraordinário? Qual seria a coisa que mais o preocuparia? A situação desesperada ou os seus planos aniquilados? Pensaria, porventura, afinal, em voltar para trás, visto que os homens, elementos, tudo enfim, se conspirava contra a realização da sua tentativa?
Ninguém podia adivinhar-lhe os pensamentos, que se não denunciavam por nenhuma manifestação exterior. Junto dele conservava-se o fiel «Duck», arrostando a seu lado uma temperatura que descera a 32 graus abaixo de zero ( - 36 graus centígrados).
Bell estava deitado no gelo, sem fazer movimento algum. Parecia inanimado. Aquela insensibilidade podia ele pagá-la com a vida, porque corria risco de ficar gelado de vez.
Johnson, sacudindo-o vigorosamente, esfregou-o com a neve e assim conseguiu, não sem custo, tirá-lo daquele torpor.
- Vamos, Bell, coragem!-recomendou Johnson.- Nada de esmorecer; levanta-te, que temos de conversar acerca da situação e precisamos de um abrigo! Então já te esqueceste de como se faz uma casa de neve? Vem ajudar-me, Bell! Olha aqui um icebergue, que está mesmo a pedir faca! Trabalhar! Trabalhar! Que o trabalho nos dará outra vez o que aqui não deve faltar: ânimo e coragem.
Bell, que recuperara algum ânimo com estas palavras, deixou-se dirigir pelo velho marinheiro.
- Enquanto nós vamos fazendo a casa - continuou este -dar-se-á o Sr. Clawbonny ao incómodo de ir aonde está o trenó e de o trazer, assim como os cães.
- Estou pronto a partir - volveu o doutor -, e dentro de uma hora estarei de volta.
- Acompanhai-lo, capitão? - acrescentou Johnson, dirigindo-se a Hatteras.
Este, apesar de imerso nas suas reflexões, ouvira a proposta do mestre, porque lhe respondeu com voz branda:
- Não, meu amigo. Isto, claro, se o doutor se presta a encarregar-se ele só desse trabalho... Antes do fim do dia deve ficar tomada uma resolução definitiva e eu tenho necessidade de ficar só para reflectir. Quanto ao presente, fazei o que vos parecer razoável, que eu pensarei no futuro.
Johnson voltou para junto do doutor e disse-lhe:
- É notável: o capitão parece que esqueceu de todo a sua cólera. Nunca o ouvi falar com tanta afabilidade.
- Bem! - respondeu o doutor. - É sinal de que recuperou de todo a presença de espírito. Acreditai-me, Johnson, aquele homem ainda é capaz de nos salvar!
E, ditas estas palavras, o doutor embrulhou a cabeça no capuz o melhor que pôde, e, de pau ferrado na mão, meteu-se a caminho para onde estava o trenó, através daquela bruma, que a Lua tornava então quase luminosa.
Johnson e Bell meteram logo mãos à obra. O velho marinheiro excitava com as suas palavras o carpinteiro, que trabalhava silencioso. O caso ali não era edificar, mas simplesmente escavar uma grande penha. O gelo, por sua grande dureza, tornava incómodo o emprego da faca; em compensação, porém, aquela mesma dureza era garantia da solidez da guarida. Dentro em pouco Johnson e Bell puderam trabalhar a coberto dentro da escavação já feita, arremessando cá para fora o material que iam arrancando à massa compacta.
De vez em quando Hatteras dava um passeio, mas de repente estacava. Evidentemente não queria ir até ao lugar onde estivera o desgraçado brigue.
O doutor voltou dali a pouco, como prometera, trazendo consigo Altamont, estendido em cima do trenó e embrulhado nos panos da barraca. Os cães gronelandeses, magros, extenuados, esfomeados, mal podiam puxar e até roíam os arreios. Era tempo de que todo aquele rancho, tanto homens como animais, tivesse alimento e descanso.
Enquanto se fazia mais profunda a escavação que havia de servir de casa, o doutor, esquadrinhando por todos os lados, teve a felicidade de encontrar um fogão pequeno que tinha escapado quase intacto da explosão, e cuja chaminé, deformada, facilmente se endireitou. Trouxe o doutor o seu achado aos companheiros, com ar triunfante. Dali a três horas estava a casa de gelo habitável. Instalou-se o fogão, que se acendeu com estilhaços de madeira, e dali a pouco crepitava o lume, espalhando benéfico calor.
O americano foi introduzido na improvisada guarida e deitado ao fundo, sobre cobertores; os quatro ingleses sentaram-se à volta do lume e reconfortaram-se, como lhes foi possível, com o resto das provisões do trenó, uma pouca de bolacha e chá a ferver. Hatteras permanecia calado e todos respeitavam o seu silêncio.
Acabada a refeição, o doutor fez sinal a Johnson para que saísse com ele, e cá fora disse-lhe:
- Agora, toca a fazer inventário do que nos resta. É necessário que saibamos com exactidão o estado das nossas riquezas, que estão por aí dispersas por todos os lados; o caso é juntá-las, que dum momento para outro pode cair neve e depois é que seria impossível dar com o mais insignificante resto do nosso navio.
- Então nada de perder tempo - concordou Johnson. - Mantimentos e lenha é o que mais importa agora.
- Pois procure cada um por seu lado - disse o doutor -, por forma que se percorra toda a área da explosão. Comecemos pelo centro e daí seguiremos para a circunferência.
E os dois companheiros encaminharam-se imediatamente para o leito de gelo que o «Forward» ocupara, examinando cada um deles, à luz indecisa da Lua, os destroços com que ia topando. Foi uma verdadeira caçada, e o doutor entregou-se àquele exercício com toda a paixão, para não dizermos com todo o prazer de um caçador. O coração pulsava-lhe com força quando descobria alguma caixa quase intacta; a maior parte, porém, estavam vazias, e quase só de destroços delas é que se encontrava semeado o campo de gelo.
A violência da explosão fora enorme. Muitos objectos estavam literalmente reduzidos a cinza e pó. As peças grandes da máquina jaziam aqui e acolá, torcidas ou quebradas; os braços partidos da hélice, arremessados a vinte toesas do navio, haviam-se cravado profundamente na neve endurecida; os cilindros tinham aberto e a explosão arrancara-os dos seus munhões; a chaminé, fendida de alto a baixo, e da qual pendiam ainda uns bocados de cadeias, aparecia meio esmagada debaixo de enorme penha de gelo; pregos, ganchos, cachorros, ferragens do leme, folhas do forro, tudo, enfim, que no brigue era de metal tinha-se espalhado ao longe como verdadeira metralha.
Aquele ferro, porém, que teria enriquecido uma tribo inteira de esquimós, nenhuma utilidade oferecia nas circunstâncias actuais; o que, de preferência a tudo, se tornava necessário procurar eram víveres, e neste sentido poucos achados fazia o doutor.
- Isto vai mal - murmurava ele consigo. - É evidente que a arrecadação das provisões, que estava próximo do paiol da pólvora, foi completamente aniquilada pela explosão, e o que não ardeu deve estar feito em migalhas. O caso é grave. Se Johnson não fez melhor caçada do que eu, nem quero imaginar o que será de nós.
Contudo, o doutor, alargando um pouco mais o círculo da sua busca, conseguiu apanhar alguns restos de pemmican(1),
*1. Preparação de carne condensada.
proximamente umas quinze libras dele, e quatro botijas de barro que, tendo sido arremessadas de longe para cima da neve, ainda mole, haviam escapado à destruição e continham cinco ou seis canadas de aguardente.
Um pouco mais adiante, apanhou também o doutor dois pacotes de semente de cocleária, que vieram muito a propósito para compensar a perda do lime-juice(1), tão próprio para debelar o escorbuto.
Passadas duas horas encontraram-se Johnson e o doutor. Deram-se parte das respectivas descobertas que, infelizmente, quanto a mantimentos, eram de pouca importância: apenas alguns bocados de carne salgada, umas cinquenta libras de pemmican, três sacos de bolacha, uma pequena reserva de chocolate, aguardente e duas libras de café, pouco mais ou menos, apanhado grão a grão no gelo.
Cobertores, macas, roupas, não se encontrou nada. Evidentemente, tudo quanto havia neste género fora pasto das chamas.
Em suma, o doutor e o mestre colheram mantimentos para três semanas, reduzindo-se ao mais estritamente necessário. Era pouco para refazer de forças aquela pobre gente exausta. E desta maneira, por força de circunstâncias desastrosas, Hatteras, que já se vira sem um bago de carvão, via-se agora também em vésperas de não ter nenhuma espécie de alimentos.
O combustível que podia tirar-se dos destroços do navio, isto é, alguns pedaços da mastreação e da querena, podia durar mais ou menos três semanas. O doutor, porém, antes de o deixar gastar em aquecer a casa de gelo, sempre quis saber de Johnson se com aqueles destroços informes se poderia reconstruir um pequeno barco, ou, quanto mais não fosse, uma chalupa.
- Não, Sr. Clawbonny - respondeu o mestre -, nem pensar nisso é bom! Não há ali uma só peça de madeira intacta
*1. Sumo de limão.
que se possa aproveitar. Tudo aquilo o mais para que serve é para nos aquecer por alguns dias, e depois...
- E depois?
- Será o que Deus quiser! - concluiu o bravo marinheiro.
Terminado o inventário, o doutor e Johnson voltaram a buscar o trenó, a que foram atrelados, com vontade ou sem ela, os pobres cães fatigados, e regressaram ao teatro da explosão, onde carregaram o carro com aqueles restos da carga do navio, tão raros, mas tão preciosos, que assim trouxeram para junto da casa de gelo. Depois deitaram-se, meio gelados, ao pé dos seus companheiros de infortúnio.
PRIMEIRAS PALAVRAS DE ALTAMONT
Por volta das oito da noite começou o céu a limpar, por instantes, daquelas brumas de neve, e as constelações brilharam com vivo fulgor numa atmosfera mais fria.
Hatteras aproveitou esta mudança para ir tomar a altura de algumas estrelas, para o que saiu sem dizer palavra, levando os seus instrumentos. Queria ele demarcar exactamente aquela posição e saber assim se o ice-field tinha ou não abatido.
Dali por meia hora voltou, deitou-se a um canto da casa e ficou imerso em profunda imobilidade, que não devia ser a do sono.
No dia seguinte recomeçou a cair neve com grande abundância. O doutor por certo se felicitou a si próprio por ter empreendido de véspera as suas buscas, porque dali a pouco todo o campo de gelo estava coberto por um lençol branco e tinham desaparecido completamente todos os vestígios da explosão debaixo de uma camada de neve de três pés de espessura.
No decurso de todo aquele dia não foi possível pôr pé fora da casa. Por fortuna, a habitação era confortável, ou, pelo menos, parecia tal aos pobres viajantes extenuados. O fogãozito funcionava bem, a não ser quando uma rajada violenta repelia o fumo para o interior. Demais a mais, o calor do lume proporcionava também bebidas a escaldar, chá ou café, cuja influência tão maravilhosa é naquelas temperaturas excessivamente baixas.
Os náufragos, que bem lhes cabe este nome, experimentavam um bem-estar a que de há muito não estavam habituados, e por consequência não cuidavam senão no presente, naquele calor benéfico, naquele passageiro repouso, esquecendo e quase que desafiando o futuro, que os ameaçava de morte tão próxima e iminente.
O americano parecia sofrer menos e, a pouco e pouco, ia voltando à vida; já podia abrir os olhos, mas ainda não falava. Tinha os lábios no estado característico do escorbuto, por forma que não podia formular som algum; contudo, como ouvia, puseram-no ao facto da situação. Moveu a cabeça em sinal de agradecimento.
Estava salvo de ficar enterrado debaixo da neve e o doutor teve o bom senso de lhe não dizer quanto era curto o intervalo de tempo por que lhe fora retardada a morte; que, afinal de contas, a verdade era que, dali a quinze dias ou, quando muito, três semanas, devia haver carência absoluta de víveres.
Por volta do meio-dia saiu Hatteras da sua imobilidade e aproximou-se do doutor, de Johnson e de Bell, para lhes dizer:
- Amigos meus, vamos todos juntos tomar uma resolução definitiva acerca do que nos resta fazer. Antes, porém, de resolver, peço a Johnson que me diga em que circunstâncias se realizou o acto de traição de que somos vítimas.
- E para que serve saber isso? - retorquiu o doutor. - O facto, desgraçadamente, é certo; o melhor é não pensar mais nele.
- Quanto a mim, é o contrário - respondeu Hatteras -, agora é que eu penso nele; mas depois da narração de Johnson, nunca mais pensarei em tal.
- Pois, então, eis como o caso sucedeu - declarou o mestre. - Fiz quanto em mim cabia para impedir o crime...
- Disso estou eu certo, Johnson, e acrescentarei também que o facto era plano de há muito concebido por certas cabeças.
- É também a minha opinião - afirmou o doutor.
- E a minha também - continuou Johnson -, porque quase logo depois da vossa partida, capitão, no dia seguinte, Shandon, exasperado contra vós, Shandon que se tornara malvado e que, além disso, se sentia com as costas quentes, assumiu o comando do navio, apesar da minha inútil resistência. A partir de então, cada um fez pouco mais ou menos quanto quis. Shandon deixava correr porque queria assim mostrar à tripulação que o tempo das fadigas e das privações tinha passado. Por consequência, economias já se não faziam de espécie alguma; no fogão acendeu-se um lume enorme, e o brigue deitava-se aos pedaços à fogueira, sem conta nem medida. As provisões de boca foram postas à discrição dos tripulantes e os líquidos da mesma maneira. Ora isto, com gente de há tanto tempo privada de bebidas espirituosas, imaginem se abusariam ou não. E assim continuou tudo desde 7 até 15 de Janeiro...
- Com que então - interrompeu Hatteras com voz grave - foi Shandon que induziu a tripulação a revoltar-se?
- É verdade, capitão.
- Não quero mais ouvir falar nele. Continuai, Johnson.
- Em 24 ou 25 de Janeiro é que se combinou o plano de abandonar o navio. Resolveram os amotinados ganhar a costa ocidental do mar de Baffin, e daí navegar na chalupa em busca de navios baleeiros, ou ainda alcançar os estabelecimentos gronelandeses da costa oriental. As provisões abundavam; os enfermos, excitados pela esperança do regresso, iam melhorando. Por consequência, os preparativos de partida começaram. Construiu-se um trenó próprio para transportar os mantimentos, o combustível e a chalupa, e que havia de ser puxado pelos próprios amotinados. Tudo isto levou até 15 de Fevereiro. Eu estava sempre com a esperança de vos ver chegar, capitão, mas ao mesmo tempo receava a vossa presença, porque nada teríeis obtido da tripulação e vos arriscaríeis a ser assassinado se os quisésseis compelir a ficar a bordo. Estavam todos como que atacados de uma espécie de loucura de liberdade. Eu, por mim, chamei sucessivamente de parte cada um dos meus companheiros, falei-lhes, exortei-os, tentei fazer-lhes compreender os perigos de semelhante expedição e também a cobardia que havia em abandonar-vos! Nada pude conseguir, mesmo dos melhores! Fixaram a partida para o dia 22 de Fevereiro. Shandon estava impaciente. No trenó e na chalupa acumulou-se, quanto a provisões e licores, tudo o que podiam conter. De madeira para lenha fez-se também um carregamento tão considerável que a amurada de estibordo ficou deitada abaixo até à linha de água. O último dia, enfim, foi um dia de completa orgia: todos roubaram e saquearam o que puderam, e Pen, com mais dois ou três, depois de completamente embriagados, puseram fogo ao navio. Lutei, bati-me com todos eles, mas, afinal, maltrataram-me e deitaram-me por terra; depois, aqueles miseráveis, levando à frente Shandon, encaminharam-se para leste, até que os perdi de vista! Fiquei só. Que podia eu fazer contra aquele incêndio voraz, que a pouco e pouco se ia apossando de todo o navio? O poço aberto no gelo estava obstruído, nem uma gota de água tinha. Assim, o «Forward» estorceu-se no meio das chamas por espaço de dois dias. O resto, todos nós o sabemos.
Terminada esta narração, reinou na casa de gelo um prolongado silêncio. O sombrio quadro do incêndio do navio, a perda daquele tão precioso brigue, apresentaram-se então com mais vivacidade à imaginação dos náufragos. Conheceram que estavam em frente do impossível, e o impossível era o regresso a Inglaterra. Não se atreviam a olhar uns para os outros, porque cada um receava surpreender no semblante de algum dos companheiros sinais de absoluta desesperança. Apenas se ouvia a respiração ofegante do americano.
Afinal, Hatteras interrompeu o silêncio, dizendo: - Obrigado, Johnson, fizestes quanto estava ao vosso alcance para me salvar o navio, mas, sozinho, não vos era possível resistir. Ainda mais uma vez, agradeço-vos, e não falemos mais em semelhante catástrofe. Empenhemos todos os nossos esforços para a salvação comum. Estamos aqui quatro companheiros, quatro amigos, a vida de um vale a vida de outro. Por consequência, dêem todos a sua opinião acerca do que é conveniente fazer.
- Interrogai-nos, Hatteras - respondeu o doutor. -. Todos nós vos somos inteiramente dedicados e o que vos dissermos será o que o coração nos ditar: mas, em primeiro lugar, falai vós, se é que vos ocorre alguma ideia.
- Sem a vossa cooperação não posso nem devo formular o que penso - volveu Hatteras com tristeza. - A minha opinião poderia parecer interessada. Por conseguinte, antes de tudo, desejo ouvir o vosso conselho.
- Capitão - disse Johnson -, antes de nos pronunciarmos em tão graves circunstâncias, devo fazer-vos uma pergunta importante.
- Dizei, Johnson.
- Da observação que ontem fizestes que concluís: o campo de gelo continuou a abater ou está ainda na mesma situação?
- Não se mexeu - informou Hatteras. - A observação deu-me exactamente o mesmo que antes da nossa partida: oitenta graus e quinze minutos de latitude por noventa e sete graus e trinta e cinco minutos de longitude.
- E a que distância estamos do mar mais próximo para a parte de oeste? - inquiriu Johnson.
- A seiscentas milhas(1), pouco mais ou menos - elucidou Hatteras.
- E esse mar, é...?
- O estreito de Smith.
- O mesmo que nós não pudemos navegar em Abril próximo passado?
- Esse mesmo.
- Bem, capitão, agora ao menos a nossa situação é clara e definida e podemos tomar uma resolução com conhecimento de causa.
- Dizei então - convidou Hatteras, deixando pender a cabeça e encostando-a às duas mãos.
Assim podia ele ouvir os companheiros sem para eles olhar.
- Vamos, Bell - disse o doutor -, segundo a vossa opinião, qual é a resolução mais acertada?
*1. A milha inglesa equivale a 1609 metros, portanto cerca de duzentas e quarenta e duas léguas (de quatro quilómetros).
- Não é caso para grandes reflexões, creio eu. O melhor é voltarmos para trás, sem perda de um só dia, de uma só hora, seja pelo sul ou pelo oeste, e ganhar a costa mais próxima... ainda que devêssemos gastar dois meses nessa viagem!
- Temos mantimentos apenas para três semanas - advertiu Hatteras, sem levantar a cabeça.
- Pois, nesse caso - replicou Johnson -, é em três semanas que a tal jornada tem de ser feita, visto ser ela a nossa única tábua de salvação. Ainda que nas proximidades da costa tivéssemos de andar de joelhos, é preciso partir e chegar lá em vinte e cinco dias.
- Essa parte do continente não é conhecida - contrapôs Hatteras. - Quem sabe se encontraremos obstáculos, montanhas ou galerias, que nos tolham completamente o passo!?
- Nisso não vejo razão suficiente para não tentar a viagem - observou o doutor. - Padeceremos, e muito, isso é evidente; temos de restringir a nossa alimentação ao estritamente necessário, a não ser que os azares da caça...
- Já não temos senão meia libra de pólvora - objectou Hatteras.
- Ora vamos, Hatteras - continuou o doutor -, eu bem conheço todo o valor das vossas objecções e não me deixo embalar por esperanças vãs. Parece-me, porém, que vos estou a ler no pensamento: tendes porventura algum plano exequível?
- Não - respondeu o capitão, depois de hesitar por alguns momentos.
- Decerto não duvidais da nossa coragem - insistiu o doutor. - Bem sabeis que somos homens para vos seguir até ao fim, mas, nas actuais circunstâncias, não será uma necessidade fatal abandonarmos toda a esperança de nos elevarmos ao pólo? A traição é que destruiu todos os nossos planos; contra os obstáculos da Natureza pudestes vós lutar e até derribá-los, mas contra a pérfida e a fraqueza dos homens, não. Fizestes tudo quanto era humanamente possível fazer-se e estou que teríeis colhido feliz êxito. Na situação actual, porém, não será absolutamente forçoso adiar a execução dos vossos projectos, e não tentareis regressar a Inglaterra, quando, por outra razão não seja, para poder um dia tentar de novo realizá-los?
- Então, capitão?! - perguntou Johnson a Hatteras, que ficou por muito tempo sem dar palavra.
Por fim, o capitão levantou a cabeça e disse com voz constrangida:
- Com que então, mortos de cansaço como estais, e quase sem ter que comer, julgais coisa certa e segura alcançar a costa do estreito?
- Isso não - volveu o doutor -, mas a costa é que por certo não vem ter connosco, e é necessário ir em demanda dela. Mais para o sul talvez encontremos alguma tribo de esquimós com que facilmente possamos entabular relações.
- E, demais - continuou Johnson -, não é possível que encontremos no estreito algum navio obrigado a invernar?
- E se for necessário -insistiu o doutor -, visto estar o estreito coalhado, acaso não poderemos atravessá-lo, e alcançar assim a costa ocidental da Gronelândia, e daí, partindo ou da terra de Prudhoe ou do cabo Iorque, ganhar algum estabelecimento dinamarquês? Enfim, Hatteras, onde não temos nada disto é aqui no campo de gelo! A derrota para Inglaterra é por além, pelo sul, e não por aqui, pelo norte!
- Sim - pronunciou-se Bell -, o Sr. Clawbonny tem razão: é necessário partir, e partir sem demora. Até agora temo-nos esquecido, e até de mais, da nossa pátria e daqueles que nos são caros!
- É também essa a vossa opinião, Johnson? - perguntou mais uma vez Hatteras.
- É, capitão.
- E a vossa, doutor?
- Também, Hatteras.
Hatteras permanecia ainda em silêncio; no semblante reproduziam-se-lhe, involuntariamente, as agitações que lhe iam lá por dentro. É que, na resolução que ia tomar-se, jogava ele, numa cartada, a sua vida inteira. Se voltasse para trás, podia definitivamente dizer adeus aos seus ousados projectos, pois era impossível conceber sequer esperanças de renovar quarta tentativa daquele género.
O doutor, vendo que o capitão continuava calado, insistiu pela seguinte forma:
- Acrescentarei ao que já disse, Hatteras, que não devemos perder um só instante. É preciso carregar o trenó com todas as nossas provisões e levar quanta lenha for possível. Nas condições presentes, seiscentas milhas de caminho é duro, não há dúvida, mas não é coisa impossível transpô-las. Podemos, ou antes, deveremos andar vinte milhas(1) por dia, e assim, num mês, estamos na costa, aí por 26 de Março...
- Mas não será possível esperar alguns dias? - sugeriu Hatteras.
- Mas à espera de quê? - perguntou Johnson.
- Que sei eu? Quem pode prever o futuro? Concedam-me mais alguns dias! Demais a mais, será apenas o tempo necessário para refazer as vossas forças exaustas! No estado em que estais, depois de dois dias de marcha, caireis mortos de cansaço, sem ter sequer uma casa de neve que vos sirva de abrigo.
- Mas aqui que nos espera? Uma morte horrível! - exclamou Bell.
- Meus amigos - tornou Hatteras, com voz quase suplicante -, desesperais antes de tempo! Se agora vos propusesse buscar no norte o caminho da salvação, recusaríeis acompanhar-me. Pois nas proximidades do pólo não existem porventura tribos de esquimós como no estreito de Smith? O tal mar livre, cuja existência ninguém decerto contestará, deve forçosamente banhar continentes. A Natureza é lógica em tudo quanto faz, não é verdade? Então forçoso é crer que, onde cessam os grandes frios, readquire o seu império a vegetação. Não será o que nos espera, ao norte, uma terra prometida, de que quereis fugir para sempre?
Hatteras, à medida que falava, ia-se animando; o seu espírito sobreexcitado evocava quadros encantadores naquelas regiões de existência tão problemática.
- Mais um dia - repetia ele -, mais uma hora só!
*1. 8,045 léguas.
O Dr. Clawbonny, com o seu carácter aventuroso e a sua imaginação ardente, sentia-se já comover pouco a pouco. Estava quase a ceder, quando Johnson, mais sensato e mais frio, o chamou à razão e ao dever.
- Anda, Bell - bradou -, ao trenó!
- Vamos! - anuiu Bell.
E os dois marinheiros encaminharam-se para a abertura da casa de neve.
- Oh! Johnson! Vós! Vós!-exclamou Hatteras.- Pois bem! Parti, ficarei eu, ficarei eu!
- Capitão! - disse Johnson, parando involuntariamente.
- Ficarei, disse e repito! Parti. Abandonai-me como os outros! Parti... Vem, «Duck», ficaremos nós dois!
O valente cão chegou-se para o dono, ladrando. Johnson olhou para o doutor. Este não sabia que havia de fazer e parecia-lhe que o melhor era sossegar Hatteras, sacrificando um dia às ideias dele.
Ia o doutor resolver-se a este sacrifício, quando sentiu que lhe tocavam no braço.
Voltou-se e viu o americano, que se levantara de entre os cobertores, arrastar-se pelo chão, erguer-se a custo sobre os joelhos, e soltar, através dos lábios chagados e inchados, alguns sons inarticulados.
O doutor, pasmado, quase assustado, olhava para ele em silêncio. Hatteras, porém, aproximou-se do americano e examinou-o com atenção, tentando surpreender as palavras que o desgraçado não podia pronunciar. Afinal, depois de cinco minutos de esforços baldados, Altamont conseguiu fazer ouvir distintamente uma palavra: Por-poise.
- O «Porpoise»! - exclamou o capitão.
O americano respondeu-lhe com um sinal afirmativo.
- Nestes mares? - perguntou Hatteras com o coração palpitante.
O enfermo fez outro sinal idêntico.
- Para a parte do norte?
- Sim! - conseguiu pronunciar o desgraçado.
- E conheceis a sua posição?
- Sim.
- Exacta?
- Sim! - disse ainda outra vez Altamont.
Houve então um instante de silêncio. Todos os espectadores daquela cena imprevista estavam ansiosos.
- Ouvi-me bem - disse Hatteras, por fim, ao desgraçado enfermo -, é essencial para nós conhecer a situação desse navio! Vou, portanto, contar em voz alta, e quando eu chegar ao número de graus exactos, advertir-me-eis por meio de um sinal.
O americano respondeu, fazendo com a cabeça um sinal de assentimento.
- Vejamos - começou Hatteras -, está sabido que se trata de graus de longitude. Cento e cinco? Não. Cento e seis? Cento e sete? Cento e oito. Longitude oeste, não?
- Sim - deu a entender o americano.
- Continuemos. Cento e nove? Cento e dez? Cento e doze? Cento e catorze? Cento e dezasseis? Cento e dezoito? Cento e dezanove? Cento e vinte?...
- Sim - significou o americano.
- Cento e vinte graus de longitude? Bem - disse Hatteras. - E a respeito de minutos? Eu conto...
Hatteras começou a contar desde um; quando chegou a quinze, Altamont fez-lhe sinal que parasse.
- Bem! - disse Hatteras. - Passemos à latitude. Ouvis-me? Oitenta? Oitenta e um? Oitenta e dois? Oitenta e três?
O americano suspendeu a contagem com um gesto.
- Bem! E minutos? Cinco? Dez? Quinze? Vinte? Vinte e cinco? Trinta? Trinta e cinco?
Altamonte fez novo sinal e até se sorriu.
- Assim - concluiu Hatteras com voz grave -, o «Porpoise» está arrumado a cento e vinte graus e quinze minutos de longitude, por oitenta e três graus e trinta e cinco minutos de latitude?
- Sim! - disse ainda mais uma vez o americano, e caiu inanimado nos braços do doutor.
O esforço que acabava de fazer tinha-o prostrado completamente.
- Amigos - exclamou Hatteras -, bem vedes que ao norte é que está a salvação; para o norte sempre, e seremos salvos!
Hatteras, porém, mal pronunciara aquelas primeiras palavras de alegria, pareceu de súbito possuído de uma ideia terrível. As feições transformaram-se-lhe; sentira-se mordido no coração pela serpente do ciúme!
Alguém havia, um americano, que, na derrota para o pólo, tinha ido três graus além dele, Hatteras! E porquê? Com que fim?
DEZASSETE DIAS DE MARCHA
Aquele incidente novo, aquelas primeiras palavras pronunciadas por Altamont, tinham mudado completamente a situação dos náufragos. Antes, estavam fora de alcance de qualquer socorro possível, sem esperança séria de alcançar o mar de Baffin, ameaçados de falta de víveres, num caminho demasiadamente extenso para os seus corpos extenuados; agora, tinham, a menos de quatrocentas milhas(1) da casa de neve em que estavam acolhidos, um navio que lhes prometia vastos recursos e até talvez meios de continuar a sua marcha para o Pólo Norte.
Hatteras, o doutor, Johnson e Bell, todos se puseram de novo a conceber esperanças, depois de terem estado tão próximo do desespero. Foi uma verdadeira alegria, quase um delírio.
As indicações de Altamont, porém, ainda eram incompletas, e o doutor, depois de o ter deixado descansar alguns minutos, tornou a entabular com ele a preciosa conversação interrompida, fazendo-lhe diferentes perguntas, debaixo de uma forma que não exigia outra resposta mais do que um leve aceno de cabeça ou um relancear de olhos.
Dali a pouco sabia já que o «Porpoise» era um navio americano, de três mastros, de Nova Iorque, que naufragara no meio de gelos, levando mantimentos e combustível em grande quantidade; soube mais que o navio,
*1. 160,9 léguas (de quatro quilómetros).
ainda que deitado sobre o costado, devia ter resistido, assim como deveria ser possível salvar a carga.
Altamont e a sua tripulação tinham abandonado o «Porpoise» havia dois meses, levando consigo a chalupa num trenó. O intento que tinham era alcançar o estreito de Smith e encontrar algum baleeiro que os volvesse à pátria, à América. A pouco e pouco, porém, as fadigas e as enfermidades atacaram aqueles desgraçados, que foram ficando, um a um, pelo caminho. Restavam afinal o capitão e dois homens, apenas, de uma tripulação de trinta homens, e se ele, Altamont, sobrevivera, era isso um verdadeiro milagre da Providência.
Hatteras quis indagar do americano a razão por que o «Porpoise» se achara colhido, navegando em latitudes tão elevadas.
Altamont deu a entender que fora arrastado pelos gelos, sem poder resistir-lhes.
Hatteras, cheio de ansiedade, interrogou-o então acerca do fim da sua viagem.
Altamont afirmou-lhe que esse fim era tentar transpor a passagem do noroeste.
Hatteras não insistiu mais, nem tornou a fazer-lhe perguntas daquele género.
O doutor então tomou a palavra e ponderou:
- Todos os nossos esforços agora devem tender a encontrar o «Porpoise». Em vez de nos aventurarmos para o lado do mar de Baffin, podemos, seguindo caminho menos arriscado e um terço mais curto, alcançar um navio que nos oferecerá todos os recursos necessários para uma invernada.
- E é o melhor que temos a fazer - apoiou Bell.
- E acrescentarei - disse o mestre - que não devemos perder um instante. A duração da nossa viagem deve ter por base o tempo que podem durar os nossos mantimentos, que é o contrário do que geralmente se faz; portanto, a caminho e quanto antes.
- Tendes razão, Johnson - declarou o doutor. - Se partirmos amanhã, que são 26 de Fevereiro, temos de chegar, sob pena de morrermos de fome, ao «Porpoise» até 15 de Março. Qual é a vossa opinião sobre o caso, Hatteras?
- Que façamos os nossos preparativos imediatamente - disse o capitão -, e que partamos. Talvez que a jornada seja mais comprida do que imaginamos.
- E por que razão? - indagou o doutor. - Esse homem parece estar perfeitamente seguro da situação do seu navio.
- E - sugeriu Hatteras - se o «Porpoise» abateu com o seu campo de gelo, como sucedeu ao «Forward»?
- Efectivamente - disse o doutor -, é possível, é! Johnson e Bell nada tiveram que objectar à hipótese
de um abatimento semelhante ao que eles próprios tinham sido vítimas.
Altamont, porém, que escutara atento toda aquela conversação, fez compreender ao doutor que desejava falar. Prestou-se Clawbonny, de boamente, aos desejos do americano e, depois de um bom quarto de hora de circunlóquios e hesitações, adquiriu a certeza de que o «Porpoise» dera à costa junto da praia, sendo impossível que tivesse saído do leito de rochedos em que ficara encalhado.
Esta nova informação tornou a trazer a tranquilidade ao ânimo dos quatro ingleses, apesar de lhes roubar inteiramente a esperança de terem navio para regressar à Europa, a não ser que Bell fosse capaz de construir um navio mais pequeno com os restos do «Porpoise». Fosse como fosse, o que mais urgia era ir mesmo ao lugar do naufrágio.
O doutor ainda fez uma última pergunta ao americano, indagando dele se debaixo daquela latitude de oitenta e três graus encontrara o mar livre.
Altamont respondeu que não.
E por ali ficou a conversa. Começaram todos desde logo a tratar dos preparativos da viagem. Bell e Johnson ocuparam-se em primeiro lugar do trenó, que demandava reparações de vulto, e, como não faltava madeira, assentaram-se-lhe uns montantes mais sólidos, tirando assim proveito da experiência adquirida durante a excursão ao sul. Ali haviam os viajantes aprendido a conhecer o lado fraco daquele modo de transporte, e, como tinham seguramente que contar com neves abundantes e espessas, acrescentaram em altura os caixilhos de escorregamento.
No interior do trenó arranjou Bell uma espécie de cama coberta com as telas da barraca e destinada para o americano. Os mantimentos, desgraçadamente pouco consideráveis, decerto não haviam de aumentar muito o peso do trenó; em compensação, porém, completou-se a carga com toda a lenha que foi possível levar.
O doutor, à medida que ia arranjando as provisões, tratou de as inventariar, com a mais escrupulosa exactidão, e dos seus cálculos resultou que cada viajante devia reduzir-se a três quartos de ração, supondo que a viagem durasse três semanas. Para os quatro cães de tiro reservou-se ração completa, assim como para «Duck», no caso que puxasse ao carro com eles.
Estes preparativos foram interrompidos pela necessidade de dormir e descansar, que por volta das sete da noite se fez sentir imperiosamente. Os náufragos, porém, antes de se deitarem, juntaram-se em volta do fogão, no qual se não poupava então o combustível. Aquela pobre gente entregou-se, pois, a um luxo de calor a que de há muito não estava habituada. Com um pouco de pemmican, alguma bolacha e muitas chávenas de café, dali a pouco estavam todos de bom humor, para o que influía também sensivelmente a esperança que tão depressa e de tão longe lhes voltara.
Às sete da manhã recomeçaram os trabalhos, que por volta das três da tarde estavam inteiramente terminados.
Àquela hora começava já a escurecer. O Sol, que a partir de 31 de Janeiro reaparecera acima do horizonte, não dava ainda então mais que uma luz fraca e de curta duração; a Lua, felizmente, havia de nascer às seis e meia, e naquele céu puríssimo os raios do astro nocturno deveriam ser suficientemente intensos para alumiar o caminho. A temperatura, que havia alguns dias baixara sensivelmente, chegou afinal a 33 graus abaixo de zero (-37 graus centígrados).
O momento da partida chegou por fim. Altamont acolheu com alegria a ideia de se pôr a caminho, apesar dos solavancos do carro lhe deverem agravar os sofrimentos. Fizera ele já compreender ao doutor que, a bordo do «Porpoise», encontraria os antiescorbúticos que tão necessários eram para a sua cura.
Por consequência, transportaram-no para o trenó, onde foi instalado com toda a comodidade possível. Atrelaram-se os cães, inclusivamente «Duck», e os viajantes relancearam um derradeiro olhar sobre aquele leito de gelo onde descansara o «Forward».
No rosto de Hatteras transluziu, por instantes, um pensamento de violenta cólera, mas dali a pouco estava senhor de si e o pequeno rancho meteu-se pelas brumas do nor-noroeste com um tempo muito seco.
Cada um dos viajantes tomou o seu lugar habitual. Bell ia na frente e indicava o caminho, o doutor e o mestre aos lados do trenó, vigiando e ajudando os cães quando era preciso, Hatteras à retaguarda, rectificando o caminho, para se manterem na linha marcada por Bell.
A marcha era bastante rápida; com aquela temperatura extremamente baixa, o gelo apresentava uma dureza e um polido muito favoráveis para o escorregamento do trenó; os cinco cães puxavam à vontade aquela carga, que não pesava mais de novecentas libras. No entanto, tanto os homens como os cães ao cabo de poucos passos estavam esfalfados e tinham de parar muitas vezes para tomar a respiração.
Pelas sete da noite emergiu das brumas do horizonte o disco avermelhado da Lua. Os límpidos raios do astro atravessaram a atmosfera e lançaram por sobre aquele vasto plaino alguns fulgores, que os gelos reflectiam com pureza. Para a parte do noroeste apresentava o ice-field o aspecto de uma planura - imensa e branca, de perfeita horizontalidade. Nem um só palck, nem um hummock sequer. Aquela parte do mar parecia ter gelado sossegadamente, qual tranquilo lago.
Era um deserto imenso, chato e monótono.
Foi esta a impressão que aquele espectáculo produziu no espírito do doutor, que a comunicou ao companheiro.
- É verdade, Sr. Clawbonny - concordou Johnson. - É um deserto é, mas não há perigo de cá morrer de sede!
- Evidente vantagem - retorquiu o doutor - ; no entanto esta imensidade prova-me uma coisa, e é que devemos estar a grande distância das terras. Em geral, a proximidade das costas é indicada por uma multidão de montanhas de gelo e aqui, em volta de nós, nem um só icebergue temos à vista.
- Não admira, porque as brumas encurtam muito o horizonte - volveu Johnson.
- Com certeza, mas desde que partimos temos vindo a pisar sempre um campo chato, que ameaça ser interminável.
- Já reflectiu, Sr. Clawbonny, que este nosso passeio é bem perigoso? Vai-se a gente habituando, vai andando sem pensar em tal, mas, afinal de contas, esta superfície gelada, que vamos percorrendo, encobre abismos sem fundo!
- Assim é, amigo, mas não há razão para recear ser engolido por tais abismos. A resistência desta crusta branca, fazendo, como agora faz, um frio de trinta e três graus, é considerável! E observai que tende a aumentar cada vez mais, porque, nestas latitudes, em cada dez dias há nove em que cai neve, mesmo em Abril, ainda em Maio e até em Junho, e, segundo os meus cálculos, a espessura do gelo agora aqui não deve andar longe de trinta a quarenta pés.
- Isso sempre tranquiliza - respondeu Johnson.
- Aqui não estamos no caso dos patinadores de Serpentine River(1), que a cada instante receiam sentir o frágil solo faltar-lhes debaixo dos pés. Perigos dessa ordem não os temos nós a temer.
- E a força da resistência do gelo é conhecida? - perguntou o velho marinheiro, sempre ávido de instruir-se na companhia do doutor.
- Perfeitamente - respondeu este - ; e o que é que actualmente se ignora, de tudo quanto neste mundo se pode medir, salvo a ambição humana! Não será ela que nos arroja para esse pólo boreal, que o homem quer afinal conhecer? Voltando, porém, à questão, eis o que posso responder: o gelo de duas polegadas de espessura aguenta com o peso de um homem; quando tem de espessura três polegadas e meia, com um cavalo e o respectivo cavaleiro; quando tem cinco, com uma peça de oito; às oito polegadas, com artilharia de campanha com animais de tiro e tudo,
*1. Rio de Hyde-Park, em Londres.
e, enfim, com dez polegadas, aguenta até com um exército, ou uma multidão inumerável! No sítio por onde nós vamos andando agora podia levantar-se um edifício como o da alfândega de Liverpul ou o Parlamento de Londres.
- Custa a conceber uma resistência de tal ordem - comentou Johnson. - Há pouco, porém, Sr. Clawbonny, faláveis do facto de nestas regiões cair neve durante nove dias por cada dez, em média. O facto em si é evidente e eu não o contesto; mas desejaria saber de onde vem toda essa neve, porque, estando estes mares coalhados, não vejo muito claramente como podem dar origem a essa imensa quantidade de vapores que formam as nuvens.
- Tem todo o fundamento a vossa observação, Johnson. Segundo creio, a maior parte da neve e da chuva que cai nestas regiões polares é feita de água das zonas temperadas. Há por aqui frocozinho de neve que já foi simples gota de água de algum rio da Europa, que depois se elevou aos ares sob a forma de vapor, fez parte de alguma nuvem, e veio afinal condensar-se nestas regiões; por consequência, é muito possível que nós, quando bebemos essa neve, estejamos a matar a sede nos próprios rios da nossa pátria.
- Valha-nos ao menos isso.
Naquele momento fez-se ouvir a voz de Hatteras, que, rectificando os erros do caminho, interrompeu a conversa. O nevoeiro ia-se fazendo cada vez mais denso, tornando assim mais difícil manterem-se na linha recta.
Finalmente o pequeno grupo, por volta das oito da noite, parou, tendo andado naquele dia umas quinze milhas. O tempo continuava seco. Armou-se a barraca, acendeu-se o fogão, ceou-se, e o resto da noite decorreu em sossego.
O tempo realmente favorecia Hatteras e os seus companheiros, cuja viagem nos dias seguintes se fez sem dificuldades, apesar de se tornar tão violento o frio que o mercúrio se conservou gelado no reservatório do termómetro. Outro tanto não teria sucedido se houvesse vento, porque, nesse caso, nenhum dos viajantes poderia aguentar aquela temperatura. Por esta ocasião verificou o doutor a exactidão das observações feitas por Parry, na excursão que fez à ilha Melville.
Conta este célebre homem de mar que um homem convenientemente vestido pode passear impunemente ao ar livre pelos maiores frios, contanto que a atmosfera esteja tranquila; mas, desde que sopra a mais ligeira aragem, começa logo a sentir no rosto uma sensação acremente dolorosa, acompanhada de dores de cabeça extremamente violentas, a que em curto espaço se segue a morte. Em vista disto, fácil é de crer que o doutor estivesse inquieto, porque à menor rajada de vento ficavam todos gelados até à medula dos ossos.
No dia 5 de Março presenciou Clawbonny um fenómeno peculiar daquelas latitudes, que foi cair neve em densos frocos, estando o céu perfeitamente sereno, brilhante de estrelas e limpo de nuvens; as constelações resplandeciam fulgurantes, através dos frocos de neve, que caíam no campo de gelo com elegante regularidade. A nevada durou pouco mais ou menos duas horas, e parou afinal, sem que o doutor lograsse achar explicação aceitável daquele fenómeno.
O último quarto de Lua já então desaparecera; a obscuridade era profunda durante dezassete horas em cada vinte e quatro. Os viajantes, para se não perderem, tiveram de se ligar uns aos outros por meio de uma comprida corda. Era quase impossível marchar em linha recta.
Entretanto, aqueles homens corajosos, ainda que sustentados por vontade de ferro, começavam a sentir-se cansados; as paragens eram cada vez mais frequentes, apesar da necessidade de não perder nem uma hora, proveniente da diminuição sensível das provisões.
Hatteras marcava frequentemente a posição por meio de observações lunares e estelares. Vendo, porém, que os dias se iam sucedendo uns aos outros e que o termo da viagem fugia indefinidamente, chegava por vezes a perguntar a si próprio se o «Porpoise» realmente existiria, se o americano teria o cérebro desorganizado por tantos sofrimentos, ou ainda se, por ódio aos ingleses, vendo-se perdido sem recurso, teria querido arrastá-los consigo a uma morte certa.
Comunicou estas suposições ao doutor, que as rejeitou absolutamente, mas que daí tirou, como consequência, existir já entre o capitão americano e o capitão inglês uma rivalidade terrível, e disse consigo:
- Não há-de ser fácil manter boas relações entre estes dois.
A 14 de Março, depois de dezasseis dias de marcha, os viajantes encontravam-se a oitenta e dois graus de latitude. Estavam já exaustos de forças e ainda a cem milhas do navio, e, para cúmulo do sofrimento, foi forçoso reduzir os homens a um quarto de ração, para conservar aos cães a ração inteira.
Desgraçadamente nem com o recurso da caça se podia contar, porque apenas restavam sete cargas de pólvora e seis balas; e mais, já debalde se tinham atirado alguns tiros a lebres brancas e raposas, sem que nenhum destes animais caísse.
Na sexta-feira, 15, todavia, teve o doutor a felicidade de surpreender uma foca estendida no gelo, e feriu-a com alguns tiros. Como o animal se não podia escapar pela abertura do gelo, que lhe tinham antecipadamente tapado, dali a pouco estava apanhado e morto. O anfíbio era de grandes dimensões, e Johnson esquartejou-o com grande habilidade, mas a magreza extrema do animal pouco proveito permitia que tirassem dele os viajantes, que não podiam resolver-se a beber-lhe o óleo à maneira dos esquimós.
O doutor, apesar de tudo, ainda tentou absorver aquele viscoso líquido, mas, não obstante toda a sua boa vontade, não o conseguiu.
Sem mesmo saber para quê, talvez por simples instinto de caçador, foi guardando a pele do animal e deitou-a para o trenó.
No dia seguinte, 16, avistaram-se alguns icebergues e montículos de gelo no horizonte.
Seria indício de proximidade de costa, ou apenas algum acidente do ice-field? Não era fácil sabê-lo ao certo.
Os viajantes, logo que chegaram a um daqueles hummocks, trataram de o aproveitar, abrindo nele uma guarida mais cómoda que a barraca, por meio da faca de cortar gelo. Ao cabo de três horas de trabalho aturado, puderam afinal deitar-se à volta do fogão aceso.
A ÚLTIMA CARGA DE PÓLVORA.
Johnson teve de dar asilo, dentro da casa de gelo, aos cães extenuados de cansaço. Quando cai neve em abundância, ela mesma serve, por assim dizer, de cobertor aos animais, cujo calor natural conserva. Ao ar livre, porém, por aqueles frios secos de quarenta graus, os pobres cães dentro em pouco estariam gelados.
Johnson, que era um excelente dog-driver(1), tentou alimentar os cães com aquela carne negra de foca, que os viajantes não tinham podido comer, e, com grande espanto dele, os cães entraram com ela, que fazia gosto vê-los. O velho marinheiro foi logo, todo satisfeito, contar esta particularidade ao doutor.
Este não se admirou muito do caso, porque sabia que no Norte da América os cavalos comem quase exclusivamente peixe, e pensava, por consequência, que o que era alimento bastante para um cavalo herbívoro com mais razão devia contentar um cão, que é omnívoro.
Antes de adormecer e apesar de ser o sono uma necessidade imperiosa para quem se tinha arrastado no espaço de quinze milhas pelos gelos, quis o doutor conversar com os companheiros acerca da situação actual, sem lhe atenuar a gravidade, e falou-lhes nos seguintes termos:
- Lembrem-se de que estamos apenas no octogésimo segundo paralelo e já quase sem víveres!
- Isso só é razão para que não percamos um instante,
*1. Educador de cães.
- redarguiu Hatteras. - É necessário andar! Os mais fortes que ajudem os mais fracos...
- Se ao menos tivéssemos a certeza de encontrar um navio qualquer no lugar indicado?!-disse Bell, involuntariamente esmorecido com as fadigas do caminho.
- E que razão há para pôr o facto em dúvida? - volveu Johnson. - Pois a salvação do americano não responde pela nossa?
O doutor, para maior segurança, quis interrogar novamente Altamont. Falava este já com bastante facilidade, ainda que em voz débil, e confirmou todos os pormenores precedentemente dados, repetindo que o seu navio, que naufragara sobre as rochas de granito, devia estar ainda no mesmo lugar, a 120 graus 15 minutos de longitude por 83 graus 35 minutos de latitude.
- Não podemos duvidar desta afirmação - declarou então o doutor. - O difícil agora não é encontrar o «Porpoise»: é lá chegar.
- E a respeito de víveres, que nos resta? - quis saber Hatteras.
- Resta-nos com que viver, quando muito, três dias
- elucidou o doutor.
- Pois então é necessário que lá cheguemos em três dias! -disse energicamente o capitão.
- É necessário, é - confirmou o doutor -, e, se o conseguirmos, não teremos razão de queixa, porque nos tem valido um tempo excepcionalmente favorável. A neve deixou-nos quinze dias em paz e o trenó no gelo duro pôde escorregar com toda a facilidade. Ah! Que se lá trouxéssemos duzentas libras, ao menos, de alimentos! Pelos cães não era a dúvida, que podiam com eles. Mas, visto que não sucede assim, que lhe havemos de fazer?
- Não seria possível, com algum jeito e boa fortuna, tirar proveito das poucas cargas de pólvora que ainda nos restam? Se caísse em nosso poder um urso, ficávamos com provisões de boca para todo o resto da viagem.
- É certo, é - concordou o doutor -, mas esses animais são raros e fugidiços; e, depois, basta a gente pensar na importância que nestas circunstâncias tem um tiro para logo se lhe perturbar a vista e lhe tremer a mão.
- Pois vós sois um hábil atirador - lembrou Bell.
- Sim, mas não quando o jantar de quatro pessoas está dependente da minha habilidade; no entanto, venha a ocasião, que eu hei-de fazer o melhor que me for possível. E enquanto ela não vem, amigos, contentemo-nos com esta parca ceia de migalhas de pemmican, tratemos de dormir, e logo que amanhecer ponhamo-nos a caminho.
Dali a alguns instantes, o excesso da fadiga vencera todas as preocupações, e Hatteras e os companheiros mergulharam num profundo sono.
No sábado, muito cedo, Johnson acordou os companheiros, e logo se atrelaram os cães ao trenó, que continuou a sua marcha para o norte.
O céu estava magnífico, a atmosfera extremamente límpida e a temperatura muito baixa; o Sol, quando apareceu acima do horizonte, apresentava a forma de uma elipse alongada; o seu diâmetro horizontal parecia, em virtude da refracção, ser duplo do vertical; o astro lançava os seus feixes de raios claros, mas frios, por sobre a imensa planura gelada.
A reaparição da luz, ainda que desacompanhada de calor, causava prazer.
O doutor distanciou-se dos companheiros uma ou duas milhas, de espingarda na mão, afrontando o frio e a solidão; antes, porém, de se afastar, verificara exactamente as munições que lhes restavam e que montariam apenas a quatro cargas de pólvora e três balas, não mais. Pouco era na realidade, se considerarmos que um animal forte e vivaz, como o urso do pólo, não cai às vezes senão ao décimo ou duodécimo tiro.
Também as ambições do estimável doutor não chegavam à altura de procurar tão terrível caça. Algumas lebres, duas ou três raposas talvez, eram o bastante, não só para o contentar, mas também para ministrar um acréscimo de provisões muito suficiente.
Durante todo aquele dia, porém, sempre que avistou algum animal daquela espécie, ou não conseguiu aproximar-se dele, ou, iludido pela refracção, errou o tiro. Gastou assim inutilmente durante o dia uma carga de pólvora e uma bala.
Os companheiros, que tinham estremecido de esperança quando ouviram a detonação da espingarda, viram-no regressar de cabeça baixa, mas nada disseram. À noite, todos se deitaram como de costume, depois de se terem apartado os dois quartos de ração reservados para os dois dias seguintes.
Na manhã do dia imediato partiram. A marcha tornava-se cada vez mais penosa. Aquilo já não era andar, era arrastar-se; os cães até já tinham devorado as entranhas da foca e começavam de novo a roer os arreios.
Passaram ao largo do trenó algumas raposas, e o doutor, que, em perseguição delas, tornou a perder outro tiro, não ousou arriscar a última bala e a penúltima carga de pólvora. Logo que chegou a noite fez-se alto, mais cedo que de costume. Os viajantes já não podiam dar um passo e tiveram de parar, apesar de terem o caminho iluminado por uma aurora boreal magnífica.
Aquela última refeição, feita no domingo à noite, debaixo da barraca gelada, foi tristíssima. Aqueles desgraçados, se o céu lhes não acudisse, estavam perdidos.
Hatteras não proferia palavra, Bell nem já pensava, Johnson reflectia em silêncio, mas o doutor ainda não tinha perdido de todo a esperança.
Lembrou-se Johnson de armar, durante a noite, algumas armadilhas de alçapão, mas, como não tinha isca para lá pôr dentro, contava pouco com o êxito da sua invenção, e com razão, porque, quando de manhã foi examiná-las, viu, é verdade, vestígios de raposas, mas nem uma só tinha caído no laço.
Voltava, por consequência, muito desanimado, quando avistou um urso de corporatura colossal que, a menos de cinquenta toesas, farejava as emanações do trenó.
Pensou então o velho marinheiro que era a Providência quem lhe enviava aquela inesperada peça de caça, para que ele a matasse, e, sem acordar os companheiros, lançou mão à espingarda do doutor e caminhou para onde estava o urso.
Logo que chegou a distância razoável fez-lhe pontaria; mas, no momento em que ia puxar o gatilho, sentiu que lhe tremia o braço; incomodavam-no as grossas luvas de peles que trazia; tirou-as, portanto, com rapidez, e agarrou na espingarda com mão mais firme.
De súbito, escapou-lhe um grito de dor.
A pele dos dedos, queimada pelo frio do metal, ficou pegada ao cano da arma e esta caiu-lhe no chão e disparou-se na queda, lançando para o espaço a última bala.
O doutor acudiu logo ao ruído da detonação e compreendeu tudo quando viu o animal, que fugia com todo o sossego.
Johnson estava tão desesperado que nem pensava nos próprios sofrimentos.
- Sou uma verdadeira menina! - exclamou ele. - Uma criança que nem sabe suportar uma dor! Eu! Eu! Na minha idade!
- Ora vamos, Johnson, para dentro de casa - aconselhou o doutor -, senão ficais gelado. Ora vede: já tendes as mãos brancas. Vinde! Vinde!
- Não sou digno dos vossos cuidados, Sr. Clawbonny! - respondia o mestre. - Deixai-me!
- Vinde, vinde, teimoso! Senão, daqui a pouco é tarde!
E o doutor, arrastando o velho marinheiro para dentro da barraca, fez-lhe meter as mãos numa tigela cheia de água, que o calor do fogão mantivera no estado líquido, ainda que fria; mas, apenas as mãos de Johnson mergulharam na água, esta, com o contacto, congelou-se imediatamente.
- Bem vedes que era tempo de vir para casa - acentuou o doutor-; de contrário, haveria amputação certa.
Graças a estes cuidados, no fim de uma hora tinha desaparecido o perigo de todo, mas não sem trabalho, porque foram necessárias repetidas fricções para restabelecer a circulação do sangue nos dedos do velho marinheiro. Recomendou-lhe o doutor, sobretudo, que não aproximasse as mãos do fogão, cujo calor podia produzir acidentes graves.
Naquela manhã não houve mais remédio senão ficarem sem almoço, porque do pemmican e da carne salgada nada restava; de bolacha, também nem uma migalha; havia apenas uma meia libra de café. Assim, forçoso foi contentarem-se com aquela bebida a escaldar e porem-se de novo a caminho.
- Foi-se o último recurso! - disse Bell a Johnson, com indizível acento de desespero.
- Haja confiança em Deus - volveu o velho marinheiro -, que é quem tudo pode para nos salvar!
- Ai! Esse capitão Hatteras! - continuou Bell. - Das suas primeiras expedições pôde ele voltar, insensato! Mas desta não volta decerto; e o pior é que também nós não tornaremos a ver a nossa pátria!
- Coragem, Bell! Não há dúvida de que o capitão é um homem audaz, mas ao pé dele está outro homem hábil e fértil em expedientes.
- O Dr. Clawbonny?
- Esse mesmo.
- Mas que pode o doutor fazer numa situação destas? - replicou Bell, erguendo os ombros. - Pode ele acaso mudar estas penhas de gelo em bocados de carne? É algum Deus para fazer milagres?
- Quem sabe! - respondeu o mestre às dúvidas do companheiro. - Eu cá por mim tenho confiança nele.
Bell meneou a cabeça e tornou a engolfar-se naquele mutismo completo, durante o qual nem sequer pensava.
Naquele dia andaram-se apenas três milhas. À noite ninguém comeu; os cães pareciam querer devorar-se uns aos outros; os homens sentiam com violência as dores da fome.
Não se avistou em todo o dia um só animal. E também para quê? À faca não era possível caçar. No entanto, a Johnson pareceu-lhe que divisava, à distância de uma milha a sotavento, o gigantesco urso que seguia o desgraçado grupo.
- Espreita-nos! - dizia ele consigo. - Vê em nós uma presa segura!
Johnson, todavia, nada disse aos companheiros. À noite fez-se a paragem habitual e a ceia compôs-se apenas de café. Os desditosos viajantes sentiam que a vista se lhes desvairava, que se lhes entorpecia o cérebro. Torturados pela fome, não logravam conciliar uma hora de sono; apoderavam-se-lhes do espírito sonhos estranhos e dolorosos.
Debaixo daquelas latitudes, onde o corpo exige imperiosamente reconfortar-se, os desgraçados havia trinta e seis horas que nada comiam, quando chegou a manhã de terça-feira. Entretanto, animados de coragem e vontade sobre-humanas, puseram-se de novo a caminho, empurrando o trenó, que já não podiam puxar.
Ao cabo de duas horas caíram todos extenuados. Hatteras queria ir ainda mais avante e, enérgico como sempre, empregou, para decidir os companheiros a levantarem-se, toda a casta de súplicas e exortações, mas era pedir um impossível!
Auxiliado então por Johnson, tratou o capitão de escavar num icebergue uma casa de gelo. Aqueles dois homens, assim a trabalhar, pareciam estar cavando a própria sepultura.
- De fome não me importa morrer - dizia Hatteras -, mas de frio, isso não!
Depois de cruéis fadigas ficou afinal a casa pronta, e todos se refugiaram lá dentro.
E assim se passou o dia. À noite, e enquanto os companheiros permaneciam imóveis, Johnson teve uma espécie de alucinação, sonhando com ursos gigantescos.
A palavra «urso», muitas vezes repetida por ele, atraiu a atenção do doutor, que, saindo por isso do torpor em que estava mergulhado, perguntou ao velho marinheiro por que razão falava em ursos e de que urso se tratava.
- Do urso que vem atrás de nós - respondeu Johnson.
- Do urso que vem atrás de nós? - repetiu o doutor.
- Sim, há dois dias!
- Há dois dias! E tende-lo visto?
- Tenho, anda uma milha a sotavento.
- E não me preveniste, Johnson.
- Para quê?
- Tendes razão - disse o doutor - ; nem uma bala temos para lhe mandar.
- Nem uma barra de metal, nem um pedaço de ferro, ou um prego ao menos! - acrescentou o velho marinheiro.
O doutor ficou calado e pôs-se a cogitar. Daí a pouco perguntou ao mestre:
- Estais certo de que o animal vem atrás de nós?
- Estou, Sr. Clawbonny. Se ele conta com uma refeição de carne humana! Se sabe que lhe não podemos escapar!
- Johnson! - interrompeu o doutor, comovido pelo acento desesperado do companheiro.
- Ele é que tem a sua alimentação segura, lá isso tem! - continuou o desditoso, que o delírio começava a atacar. - E, depois, ele deve estar esfomeado e não sei por que razão o havemos de fazer estar à espera.
- Tranquilizai-vos, Johnson.
- Nada, Sr. Clawbonny. Visto que sempre temos de passar por esse transe, para que prolongar os sofrimentos do animal? Pois ele não está passando fome, tal qual como nós? Não tem focas para devorar, o céu manda-lhes homens! Pois bem, tanto melhor para ele!
O velho Johnson parecia ter enlouquecido. Queria abandonar a casa de neve e custou ao doutor a contê-lo, e se afinal o conseguiu, foi menos pela força do que por pronunciar com acento de profunda convicção as seguintes palavras:
- Amanhã matarei esse urso!
- Amanhã! - exclamou Johnson, parecendo acordar de um pesadelo.
- Amanhã!
- E bala?!
- Faz-se!
- Mas sem chumbo?
- Não há chumbo, mas há mercúrio!
E, dito isto, o doutor pegou no termómetro, que marcava, dentro da casa, 50 graus acima de zero (+10 graus centígrados), saiu, colocou o instrumento sobre um pedregulho de gelo e dali a pouco voltou. A temperatura exterior era de 50 graus abaixo de zero (-47 graus centígrados).
- Até amanhã - disse então o doutor ao velho marinheiro. - É dormir e esperar pelo nascer do Sol.
A noite passou-se no meio dos tormentos da fome. Só o mestre e o doutor é que puderam mitigá-la com algumas esperanças.
No dia seguinte, aos primeiros arrebóis da manhã, o doutor, acompanhado por Johnson, correu para fora de casa a examinar o termómetro. O mercúrio refugiara-se todo no reservatório, formando uma massa cilíndrica compacta. O doutor quebrou o instrumento, e com os dedos, prudentemente cobertos, tirou de dentro um verdadeiro pedaço de metal sólido, muito pouco maleável e de grande dureza.
- Ah! Sr. Clawbonny - exclamou o mestre -, isto é realmente maravilhoso! Sois na realidade um homem extraordinário!
- Não, amigo - respondeu o doutor -; sou apenas um homem dotado de boa memória e que tem lido muito.
- Que quereis dizer com isso?
- Que me recordei, a propósito, de um facto referido pelo capitão Ross na sua narrativa da viagem. Conta o capitão que furou uma prancha de uma polegada de espessura com uma espingarda carregada com bala de mercúrio gelado. Se tivesse à minha disposição óleo, era quase a mesma coisa, porque o capitão conta também que uma bala de óleo de amêndoas doces, atirada de encontro a um poste, fendeu este e ricocheteou para o chão sem se partir.
- É incrível!
- Mas é assim, Johnson. Este pedaço de metal pode salvar-nos a vida. Enquanto nos não servirmos dele deixemo-lo ficar ao ar livre, e vamos a ver se o urso ainda nos segue.
Naquele momento Hatteras saiu de casa. O doutor mostrou-lhe o lingote metálico e deu-lhe parte do seu projecto, ao que o capitão respondeu com um aperto de mão, e os três caçadores puseram-se a observar o horizonte.
O tempo estava extremamente claro. Hatteras, que caminhava adiante dos companheiros, avistou o urso a menos de seiscentas toesas.
O animal, sentado sobre o traseiro, balouçava pausadamente a cabeça, aspirando as emanações daqueles hóspedes singulares.
- Ei-lo! - exclamou o capitão.
- Caluda! - recomendou o doutor.
O enorme quadrúpede, porém, quando avistou os caçadores, nem se moveu. Olhou para eles sem susto nem cólera. No entanto, aproximarem-se dele não devia ser coisa fácil.
- Amigos - advertiu Hatteras -, aqui não se trata de um prazer vão, mas de salvar a existência de nós todos. Procedamos, pois, como homens prudentes.
- É verdade - aprovou o doutor. - Não temos ao nosso dispor senão um tiro único; por consequência, é forçoso não errar o animal. Se foge, fica para nós completamente perdido, que a correr é ele capaz de passar adiante de um galgo.
- Pois então é ir direito a ele - respondeu Johnson. - Arrisca a gente a vida! Que importa isso! Peço para ser eu quem corra esse risco.
- Hei-de ser eu! - exclamou o doutor.
- Eu! - declarou simplesmente Hatteras.
- E não sereis vós - exclamou Johnson - mais útil para a salvação de todos nós do que um homem velho e gasto como eu?
- Não, Johnson - insistiu o capitão -, deixai-me fazer o que imagino, que não arriscarei a vida mais do que for necessário; e, demais, é até possível que vos chame em meu auxílio.
- Hatteras - perguntou o doutor -, então vós ides avançar para esse urso?
- Se tivesse a certeza de que o matava, fazia-o, ainda que ele me abrisse o crânio, doutor, mas, se eu me aproximo dele, provavelmente foge. O urso é um animal muito astucioso; tratemos de ter mais astúcia do que ele.
- Que contais fazer?
- Avançar até à distância de dez passos dele sem que sequer suspeite da minha presença.
- Mas como?
- O meu meio é arriscado, mas simples. Guardastes a pele da foca que matastes?
- Vai no trenó.
- Bem! Então voltemos nós dois para a casa de gelo, e fique Johnson aqui de observação.
O mestre meteu-se por detrás de um hummock, que o ocultava completamente à vista do urso.
O animal permanecia no mesmo lugar e continuava com os seus balanços singulares, aspirando o ar com ruído.
A FOCA E O URSO
Hatteras e o doutor entraram para casa e o capitão disse:
- Não ignorais que os ursos do pólo dão caça às focas, de cuja carne fazem o seu principal sustento. Espreitam-nas à borda dos buracos do gelo às vezes dias inteiros, e, logo que elas aparecem à superfície, esganam-nas, com as patas. Por conseguinte, a presença de uma foca não é caso para assustar um urso. Pelo contrário...
- Começo a perceber o vosso plano - afirmou o doutor -, mas parece perigoso.
- Sim, mas oferece probabilidade de bom êxito - respondeu o capitão -, e tanto basta para que o levemos por diante. Por consequência, vou-me vestir com a pele da foca e meter-me ao campo de gelo. Não percamos tempo. Carregai a vossa espingarda e dai-ma.
O doutor nada tinha que objectar, porque ele próprio era capaz de fazer o que o companheiro ia tentar. Saiu, por isso, de casa, levando dois machados, um para Johnson, outro para ele, e em seguida dirigiu-se para o trenó em companhia de Hatteras.
Chegados ali, Hatteras envergou a pele da foca, que lhe cobria quase todo o corpo.
Entretanto, o doutor ia metendo na espingarda a última carga de pólvora, e acabava de a carregar com o cilindro do mercúrio, que tinha a dureza do ferro e o peso do chumbo. Feito isto, entregou a arma a Hatteras, que a escondeu, unida ao corpo, debaixo da pele de foca.
- Vamos - disse então o capitão ao doutor -, ide ter com Johnson, que eu esperarei ainda alguns instantes para melhor enganar o adversário.
- Coragem, Hatteras! - recomendou o doutor.
- Podeis estar descansados, mas nada de aparecer antes de ouvir o tiro.
O doutor chegou rapidamente ao hummock, atrás do qual estava Johnson, a quem declarou:
- Então, esperemos! Hatteras vai arriscar a vida para nos salvar.
O doutor estava verdadeiramente comovido; olhou para o urso, que dava então sinais da mais violenta agitação, como se sentira iminente a ameaça de um perigo sério.
Dali a um quarto de hora via-se a foca a arrastar-se pelo campo de gelo. Provinha esta demora de que o capitão, para mais facilmente enganar o urso, tinha dado volta por detrás de uns grandes penhascos de gelo.
Naquele momento estava a foca a cinquenta toesas do urso. Este, logo que a avistou, encolheu-se todo, procurando por assim dizer ocultar-se.
Hatteras imitava com tão extraordinária habilidade os movimentos de uma foca, que o doutor, se não estivesse prevenido, também cairia no logro.
- É tal qual! É exactamente assim! - afirmava Johnson.
O anfíbio ia aproximando-se do urso sem parecer vê-lo, e fingia buscar no gelo alguma abertura por onde pudesse mergulhar no seu elemento.
Por sua parte, o urso, depois de ter dado volta por detrás dos penhascos de gelo, dirigia-se para a foca com extrema prudência. Os seus olhos, inflamados, respiravam a mais ardente cobiça. Jejuava havia um mês, havia dois meses talvez, e o acaso enviava-lhe uma segura presa!
Dali a pouco estava a foca a dez passos, se tanto, do seu inimigo. Este levantou-se de repente, deu um pulo gigantesco, mas, estupefacto, aterrado, estacou a três passos de Hatteras, que arrojara de si a pele de foca, pusera joelho em terra, e fazia pontaria ao urso, direita ao coração.
A arma disparou e o urso caiu, rolando pelo gelo.
- Avante! Avante! - exclamou o doutor.
E, seguido de Johnson, correu para o lugar do combate.
A enorme fera levantara-se, agitando no ar uma das patas, enquanto com a outra arrancava um punhado de neve com que tapava a ferida.
Hatteras nem bulira. Esperava o ataque de faca em punho. A pontaria, porém, fora bem feita e a bala ferira com segurança, dirigida por mão que não tremia. Antes que os companheiros chegassem, já o capitão tinha enterrado a faca até ao cabo na garganta do animal, que tornou então a cair para não mais se levantar.
- Vitória! - clamou Johnson.
- Hurra, Hatteras! Hurra! - bradou o doutor. Hatteras, de braços cruzados e sem a menor aparência
de comoção, olhava para o corpo gigantesco estendido a seus pés.
- Agora toca-me a mim trabalhar - declarou Johnson. - Ter morto esta peça de caça é muito bom, contanto que se não espere que o frio a ponha tão dura como pedra, que depois não havia dentes nem faca que entrassem com ela.
E Johnson tratou logo de esfolar a monstruosa fera, cujas dimensões eram quase iguais às de um boi: media nove pés de comprido por seis de circunferência. Das gengivas saíam-lhe dois enormes dentes recurvados, de três polegadas de comprimento.
Em seguida, Johnson abriu o animal. No estômago não lhe achou senão água. Evidentemente o animal havia muito que não comia, apesar de que estava muito gordo e pesava mais de mil e quinhentas libras. Dividiram-no em quatro quartos, cada um dos quais deu duzentas libras de carne. Os caçadores tudo levaram para a casa de neve, não esquecendo o coração do urso, que três horas depois ainda palpitava com força.
Os companheiros do doutor de bom grado se teriam deitado àquela carne mesmo crua. Ele, porém, conteve-os, e pediu-lhes que lhe dessem tempo para a assar na grelha.
Clawbonny, quando entrou na casa, ficou admirado de fazer lá dentro tanto frio. Aproximou-se do fogão e achou-o completamente apagado.
As ocupações daquela manhã, ou as comoções talvez, tinham feito esquecer a Johnson o seu habitual encargo de tratar do fogão.
O doutor quis então acender o lume, mas já não encontrou entre as cinzas nem uma só brasa ou faúlha.
- Vamos, haja paciência! - disse consigo.
Voltou ao trenó, a buscar a isca, e pediu a Johnson o seu fuzil, dizendo-lhe que o fogão estava apagado.
- A culpa foi minha - afirmou Johnson.
E tratou de procurar o fuzil na algibeira, onde tinha por costume guardá-lo, ficando admirado de o não encontrar lá.
Apalpou as outras algibeiras sem melhor resultado; voltou à casa de neve, virou por todos os lados o cobertor, envolvido no qual passara a noite, e também não foi mais feliz.
- Então? - gritava de longe o doutor.
Johnson chegou-se, olhou para os companheiros e perguntou:
- Não tendes o fuzil, Sr. Clawbonny?
- Eu não, Johnson.
- Nem vós, capitão?
- Também não.
- Esteve sempre em vosso poder - tornou o doutor.
- Pois o caso é que não o tenho agora... - murmurou o velho marinheiro, empalidecendo.
- Ora essa! - balbuciou o doutor, que não pôde conter um estremecimento, lembrando-se de que não havia outro fuzil e que a perda daquele podia trazer consequências terríveis.
- Procurai bem, Johnson - insistiu o doutor.
O marinheiro correu para a penha de gelo, ao abrigo da qual espreitara o urso, depois para o lugar mesmo do combate, onde o esquartejaram, mas não achou nada. Voltou, pois, desesperado. Hatteras olhou para ele, mas não lhe dirigiu uma única palavra de exprobração.
- O caso é sério - disse o capitão ao doutor.
- É, é.
- Nem ao menos temos um instrumento qualquer, uma luneta por exemplo, de que se pudesse tirar a lente para arranjar lume...
- Bem sei - volveu o doutor -, e é pena, porque os raios do Sol tinham agora força bastante para incendiar a isca.
- Enfim! - disse Hatteras. - Não há remédio senão matar a fome com esta carne mesmo assim crua, e, depois, pôr-nos-emos de novo a caminho e procuraremos chegar ao navio.
- Sim! - murmurava o doutor, mergulhado nas suas reflexões. - Sim, a coisa em rigor seria possível. E porque não? E, demais, pode-se experimentar...
- Em que estais a pensar? - perguntou Hatteras.
- Ocorre-me uma ideia...
- Uma ideia! - exclamou Johnson. - Uma ideia vossa! Então estamos salvos!
- E terá ela bom resultado? - tornou o doutor. - Essa é que é a questão!
- Que plano é o vosso? - inquiriu Hatteras.
- Fazer uma lente, visto que não a temos.
- Mas como? - quis saber Johnson.
- Trabalhando-a num bocado de gelo.
- Quê? Pois pensais?...
- Porque não? O que é necessário é fazer convergir os raios do Sol para um foco comum, e para isso tão bem serve o gelo como o melhor cristal.
- É possível? - exclamou Johnson.
- Possível é, mas, no entanto, preferia gelo de água doce ao de água salgada, porque aquele é mais duro e mais transparente.
- Se não me engano - acudiu Johnson, apontando para um hummock que estaria a uns cem passos -, aquela penha de aspecto quase negro e aquela cor verde indicam...
- Tendes razão. Vinde, amigos! Trazei o machado, Johnson!
E os três homens encaminharam-se para a indicada penha, que era efectivamente formada de gelo de água doce. O doutor fez arrancar um pedaço de gelo de um pé de diâmetro e começou a desbastá-lo grosseiramente com o machado; depois amaciou-lhe um pouco a superfície com a faca, poliu-o afinal a pouco e pouco com a mão, e obteve, por fim, uma lente tão transparente como se fora feita do mais puro cristal.
Voltou então à entrada da casa de neve, onde pegou num pedaço de isca, e deu princípio à experiência que projectara. O Sol brilhava naquele momento com vivo fulgor. O doutor expôs a lente de gelo aos raios solares, que fez concentrar sobre a isca, e esta dali a poucos segundos inflamou-se.
- Hurra! Hurra! - exclamou Johnson, que duvidava do testemunho dos próprios olhos. - Ah, Sr. Clawbonny!
O velho marinheiro não cabia em si de contente. Não parava, parecia louco...
O doutor voltara para dentro de casa. Minutos depois já o fogão crepitava, e dali a pouco um suculento cheiro de carne grelhada tirava Bell do torpor em que estava mergulhado.
É fácil de adivinhar que festa fariam os viajantes àquela refeição. O doutor, no entanto, deu de conselho aos companheiros que fossem moderados, e acompanhou a prédica com o exemplo. Ao mesmo tempo que ia comendo, falou-lhes nos seguintes termos:
- Hoje é para nós um dia feliz. Temos seguras provisões para todo o resto da viagem. Apesar disso, não devemos adormecer nas delícias de Cápua, e o melhor é pormo-nos a caminho quanto antes.
- Não devemos estar a mais de quarenta e oito horas do «Porpoise» - declarou Altamont, que já então falava quase sem dificuldade.
- Espero que ao menos lá havemos de achar com que acender o lume - disse sorrindo o doutor.
- Decerto que sim - confirmou o americano.
- E digo isto porque, se a minha lente de gelo agora serviu, nos dias em que não houver sol, e esses não hão-de ser poucos a menos de quatro graus do pólo, pouco préstimo poderá ter!
- E é verdade - respondeu Altamont, suspirando -, a menos de quatro graus! O meu navio foi onde nunca embarcação alguma ousara jamais aventurar-se.
- A caminho! - comandou Hatteras com voz breve.
- A caminho! - repetiu o doutor, relanceando para os dois capitães um olhar inquieto.
Os viajantes em pouco tempo tinham-se refeito de forças; aos cães coubera boa ração dos despojos do urso. Por consequência todo o rancho marchou com passo rápido pelo caminho do norte.
Durante a marcha quis o doutor ver se tirava de Altamont algum esclarecimento acerca dos motivos que o tinham levado tão longe, mas o americano respondia sempre com evasivas.
- Dois homens que é preciso vigiar - comunicou o doutor ao ouvido do velho mestre.
- Sim! Sim! - concordou Johnson.
- Hatteras nunca dirige a palavra ao americano, e este também pouco disposto parece a mostrar-se grato! Felizmente cá estou eu!
- A verdade, Sr. Clawbonny - confidenciou Johnson -, é que desde que o americano vai indo melhor de saúde, não me agrada lá muito a fisionomia dele.
- Ou eu estou muito enganado - disse o doutor -, ou ele deve já ter concebido suspeitas acerca dos projectos de Hatteras!
- E julgais então que os planos desse americano fossem os mesmos que os do capitão?
- Quem sabe, Johnson? Os americanos são atrevidos e audazes; o que um inglês quis fazer, também um americano pode ter tentado realizá-lo!
- Quê?! Pensais que Altamont?...
- Não penso em nada - declarou o doutor -, mas a situação do navio do seu comando no caminho do pólo é matéria para reflexões.
- Altamont, porém, diz que foi para ali arrastado contra sua vontade!
- É verdade que o diz é, mas pareceu-me que quando o dizia lhe pairava nos lábios um sorriso singular.
- Diabo! Sr. Clawbonny, essa circunstância de uma rivalidade entre dois homens de semelhante têmpera seria, agora mais que nunca, bem desagradável.
- Oxalá que eu me engane, Johnson, porque uma situação assim podia trazer complicações graves, senão uma catástrofe!
- Tenho esperança de que Altamont não se esquecerá de que lhe salvámos a vida!
- E ele não vai, por seu turno, salvar as nossas? Confesso que sem nós decerto já ele não existia, mas também se não fosse ele e o seu navio, e os recursos que nos promete, que seria de nós?
- Enfim, Sr. Clawbonny, como vós ides connosco, espero que com a vossa assistência tudo correrá pelo melhor.
- Também eu nutro a mesma esperança, Johnson.
A viagem prosseguiu sem incidente. A carne de urso
abundava e com ela se faziam copiosas refeições. Reinava até no pequeno grupo, graças aos ditos do doutor e à sua filosofia, um certo bom humor: o estimável Clawbonny, no seu alforge de homem de ciência, encontrava sempre meio de tirar dos factos e das coisas útil ensinamento. A sua saúde continuava boa; nem tinha sensivelmente emagrecido, apesar de tantas fadigas e privações, e os seus amigos de Liverpul tê-lo-iam reconhecido à primeira, principalmente pelo seu inalterável bom humor.
No decurso da manhã de sábado foi-se modificando sensivelmente a natureza da imensa planura gelada. As muitas penhas de gelo irregularmente dispostas, a frequência dos packs e a acumulação de hummocks eram segura prova de que o ice-field sofria nas proximidades enorme pressão. Aquela desordem devia evidentemente ter sido produzida por algum continente ignorado, por alguma ilha nova, cujo encontro tivesse feito estreitar os canais do campo de gelo. As grandes penhas de gelo de água doce, agora mais frequentes e de maiores dimensões, eram também indício certo da proximidade de alguma costa.
Era, pois, coisa demonstrada que a pequena distância dali existia alguma terra ignota, e o doutor ardia já em desejos de enriquecer com a inserção dela os mapas do hemisfério boreal. Ninguém imagina que prazer é avistar uma costa desconhecida e delinear-lhe o traçado à ponta de lápis. Este era o fim do doutor, assim como o de Hatteras era pôr o pé mesmo no pólo. O doutor já antecipadamente se regozijava só em pensar nos nomes com que havia de baptizar os mares, os estreitos, as baías e até as mais insignificantes sinuosidades daqueles novos continentes. É certo que, naquela gloriosa nomenclatura, não omitia ele companheiros nem amigos, nem «Sua Majestade», nem a Real Família, mas também se não esquecia de si, antes lobrigava já com legítima satisfação um certo «cabo Clawbonny».
Nestes pensamentos se ocupou o estimável doutor o dia inteiro. À noite organizou-se, como de costume, o acampamento, velando cada um por turnos durante toda aquela noite, passada a tão curta distância de terras desconhecidas.
No dia seguinte, domingo, depois de um suculento almoço, composto das patas do urso, aliás excelentes, os viajantes dirigiram-se para o norte, inclinando um pouco para oeste. O caminho era cada vez mais áspero, e no entanto a marcha era mais rápida.
Altamont, de pé em cima do trenó, observava o horizonte com atenção febril; os companheiros sentiam-se todos dominados por involuntária inquietação. As últimas observações solares tinham dado a latitude exacta de 83 graus 35 minutos por 120 graus 15 minutos de longitude; e era esta justamente a situação indicada do navio americano. Por consequência, naquele mesmo dia a grande questão de vida ou de morte ia ter definitiva solução.
Afinal, pelas duas da tarde, Altamont ergueu-se nas pontas dos pés, fez parar os companheiros com um grito atroador, apontou com o dedo uma mole branca, que a vista de qualquer outro teria confundido com os icebergues circundantes, e clamou com voz forte:
- O «Porpoise»!
O «PORPOISE»
A 24 de Março caía naquele ano a grande festa de Domingo de Ramos, dia em que as ruas das aldeias, vilas e cidades da Europa estão juncadas de flores e folhagem; dia em que os sinos atroam os ares e em que a atmosfera rescende penetrantes perfumes.
Ali, porém, naquela região desolada, que tristeza! Que silêncio! O vento soprava triste e pungitivo, e nem uma folha seca, nem um bocadinho de erva sequer!
Aquele domingo, todavia, era também para os viajantes um dia de regozijo, porque iam, afinal, encontrar os recursos de que tanto careciam, pois a privação deles condená-los-ia irremissivelmente a uma morte próxima.
Apressaram todos o passo; os cães puxaram com maior energia, «Duck» ladrou de satisfação, e dali a pouco todo o grupo chegava ao navio americano.
O «Porpoise» estava completamente enterrado debaixo da neve. Não tinha um só mastro, uma só verga, um só cabo; todo o aparelho do navio se despedaçara por ocasião do naufrágio.
O casco estava entalado num leito de rochedos, então completamente invisíveis. O «Porpoise», arrojado sobre o flanco pela violência do choque e com o costado entreaberto, parecia inabitável.
E foi justamente do que o capitão, o doutor e Johnson se convenceram, depois de penetrarem, não sem trabalho, no interior do navio. Para chegarem à escotilha grande foi-lhes necessário tirar mais de quinze pés de gelo.
Reconheceu-se, no entanto, com geral satisfação, que os animais, cujas pegadas aliás abundavam no campo de gelo, tinham respeitado o precioso depósito de provisões.
- Combustível e provisões de boca temos nós aqui certos, mas o casco é que não parece habitável.
- Pois então toca a construir uma casa de neve - respondeu Hatteras - e a instalarmo-nos o melhor que for possível no continente.
- Certamente - aprovou o doutor -, mas não haja pressa e façam-se as coisas em termos. Em rigor, a gente sempre se pode acomodar, ao menos provisoriamente, no navio, e entretanto iremos construindo uma casa sólida e capaz de nos proteger contra o frio e contra os animais. Eu me encarrego de ser o arquitecto dela, e vereis como me saio da empresa!
- Não duvido das vossas habilidades, Sr. Clawbonny - afirmou Johnson. - Instalemo-nos aqui o melhor que pudermos, e assim iremos fazendo o inventário do que o navio contém. Desgraçadamente não vejo nem chalupa nem bote, e estes restos encontram-se num tal estado que decerto não será possível fazer deles uma embarcação.
- Quem sabe! - respondeu o doutor. - Com reflexão e tempo muita coisa se faz. A questão agora não é navegar: é construir uma habitação sedentária. Por consequência, proponho que se não trate de outros projectos e que se faça cada coisa em tempo oportuno.
- Isso é que é o razoável - apoiou Hatteras. - Comecemos pelo que é de mais pressa.
Os três companheiros deixaram o navio, voltaram ao trenó e deram parte das ideias que lhes tinham ocorrido a Bell e ao americano. Bell declarou logo que estava pronto para trabalhar; o americano meneou a cabeça quando lhe foi dito que nada podia fazer-se do seu navio; mas, como naquele momento qualquer discussão a tal respeito seria perfeitamente ociosa, concordaram todos no projecto de se refugiarem por algum tempo no «Porpoise», enquanto se não construísse na costa uma habitação ampla e cómoda.
Às quatro horas da tarde estavam os cinco viajantes instalados, melhor ou pior, na segunda coberta.
Bell arranjara, por meio de tábuas e de pedaços de mastros, um soalho quase horizontal, onde se colocaram os colchões endurecidos pela nevada e que o calor de um fogão dentro em pouco restituiu ao seu estado natural. Altamont pôde, encostado ao doutor, caminhar sem grande custo até ao canto que lhe fora reservado. E logo que pôs pé no seu navio deixou escapar um suspiro de satisfação, que ao mestre se não afigurou de muito bom agouro.
«Conhece que está em sua casa», pensou o velho marinheiro, «dir-se-ia que nos está convidando a entrar!»
O resto daquele dia foi consagrado ao repouso. O tempo ameaçava variar, pela influência de rajadas de vento oeste; o termómetro externo marcou 26 graus (-32 graus centígrados).
O «Porpoise», em suma, estava varado além do pólo do frio e debaixo de uma latitude relativamente menos glacial, apesar de mais próxima do Pólo Norte.
Naquele dia acabaram de se comer os restos do urso, com alguma bolacha encontrada nas despensas do navio e algumas chávenas de chá. O cansaço venceu, afinal, e adormeceram todos, mergulhados em profundo sono.
Na manhã seguinte, Hatteras e os companheiros acordaram um pouco tarde. O espírito de todos estava voltado para as ideias novas, e, como a incerteza do dia de amanhã já os não preocupava, trataram só de se instalar comodamente. Os náufragos consideravam-se como colonos que tivessem chegado ao respectivo destino, e, já esquecidos dos sofrimentos da viagem, de nada mais cuidavam senão de criar um futuro tolerável.
- Uf! - exclamou o doutor, estirando os braços. - É bem boa coisa a gente saber ao certo onde há-de dormir à noite e o que há-de comer no dia seguinte.
- Vamos ao inventário do navio - propôs Johnson.
O «Porpoise» fora perfeitamente tripulado e aprovisionado para uma viagem longínqua.
O inventário deu as seguintes quantidades de provisões: de farinha, de gordura e passas para os pudins, seis mil cento e cinquenta libras; de carnes de vaca e de porco salgadas, duas mil libras; de pemmican, mil e quinhentas libras; de açúcar, setecentas libras; de chocolate, outro tanto; de chá, caixa e meia, em peso noventa e seis libras; quinhentas libras de arroz; muitas barricas de frutos e legumes de conserva; lime-juice em abundância, pacotes de sementes de cocleária, de azedas e de agriões; trezentos galões de rum e aguardente. No paiol estava grande quantidade de pólvora, de balas e de chumbo em barra; carvão e lenha não faltavam. Encontrou também o doutor, e guardou com todo o cuidado, alguns instrumentos de física e de navegação, e até uma forte pilha de Bunsen, que fora trazida certamente com o intuito de fazer algumas experiências eléctricas.
As provisões de toda a espécie, em suma, eram bastantes para cinco homens, a ração inteira, para mais de dois anos. Por conseguinte, qualquer receio de morrer de frio ou de fome desapareceu completamente.
- A existência temos nós aqui certa - disse o doutor ao capitão. - Agora é que nada nos impedirá de ir até ao pólo.
- Até ao pólo! - respondeu Hatteras, estremecendo.
- Decerto - continuou o doutor. - Nos meses de Estio, o que é que nos há-de impedir de tentar uma excursão por essas terras dentro?
- Por terra, sim! Mas por mar?
- Pois não poderá construir-se uma chalupa com alguns lanchões do «Porpoise»?
- Uma chalupa americana, não é verdade? - redarguiu Hatteras com visível desdém - e comandada talvez por esse americano.
O doutor compreendeu a repugnância do capitão e não julgou conveniente ir mais adiante em tal assunto. Por isso, mudou de conversa.
- Agora, que já sabemos com o que podemos contar a respeito de provisões - continuou -, é necessário construir armazéns para elas e uma casa para nós. Materiais não faltam, e podemos instalar-nos com toda a comodidade. Bell - disse o doutor, dirigindo-se ao carpinteiro -, espero que nos haveis de mostrar outra vez quanto valeis, amigo; e, demais, eu sempre vos hei-de dar algum bom conselho.
- Pronto, Sr. Clawbonny - respondeu Bell. - Com estas penhas de gelo, se necessário fosse, era até capaz de construir uma cidade inteira com casas e ruas...
- Não é necessário tanto. Sigamos o exemplo dos agentes da Companhia da Baía de Hudson, que edificam fortes que os colocam ao abrigo dos animais ferozes e dos índios. É quanto nos basta. Entrincheiremo-nos o melhor que pudermos; de um lado a casa de habitação, do outro os armazéns, com uma espécie de cortina e dois bastiões que nos cubram. Para este caso eu tratarei de me recordar dos meus conhecimentos de castrametação.
- Por minha fé, Sr. Clawbonny - declarou Johnson -, que, debaixo da vossa direcção, não tenho a menor dúvida de que havemos de fazer uma bela obra.
- Pois bem, amigos, a primeira coisa a fazer é escolher o sítio. Um bom engenheiro, antes de tudo, deve reconhecer o terreno. Quereis vir, Hatteras?
- Fio-me de vós, doutor - respondeu o capitão. - Escolhei o terreno como vos parecer conveniente, enquanto eu vou fazer um reconhecimento por esta costa acima.
Altamont, que estava ainda muito fraco para tomar parte nos trabalhos, foi deixado a bordo do seu navio, e os ingleses saltaram em terra.
O tempo estava borrascoso e escuro; ao meio-dia marcava o termómetro 11 graus abaixo de zero (-23 graus centígrados); porém, como não soprava vento, a temperatura continuava tolerável.
A julgar pela disposição da praia, estendia-se a partir daquela costa, a perder de vista para a parte do oeste, um mar considerável, inteiramente coalhado; a leste era este mar limitado por uma costa arredondada, cortada por estuários profundos, e que a duzentas jardas da praia ressaltava em bruscas elevações; e assim formava uma vasta baía, cheia de rochedos perigosos, onde o «Porpoise» naufragara. Ao longe, no interior das terras, erguia-se uma montanha, cuja altitude o doutor avaliou em proximamente quinhentas toesas. Para a parte do norte vinha morrer junto do mar, depois de cobrir parte da baía, um promontório elevado. Do campo de gelo, a coisa de três milhas da costa, emergia uma ilha, ou, para melhor dizer, uma ilhota, aonde, se não fora a dificuldade de entrar a barra, se poderia buscar ancoradouro seguro e abrigado. Havia até, num dos recortes da praia, uma pequena abra, extremamente acessível aos navios, já se vê na hipótese de que o desgelo chegasse alguma vez a desimpedir aquela parte do oceano Árctico. E, segundo as narrativas de Belcher e de Parry, nos meses de Estio todo aquele mar devia estar livre.
A meia altura da vertente da costa, notou o doutor uma espécie de planalto circular, de pouco mais ou menos duzentos pés de diâmetro. Esta elevação dominava a baía por três dos seus lados, e pelo quarto estava fechada por uma muralha, a prumo, de cento e vinte toesas de altura. Não se podia lá subir senão por meio de degraus escavados no gelo. Este local parecia adequado para assentar uma construção sólida, e era fácil de fortificar. Os primeiros trabalhos estavam já feitos pela Natureza; bastava, pois, que o homem soubesse aproveitar-se da disposição dos lugares.
O doutor, Bell e Johnson conseguiram subir ao indicado planalto, talhando a machado as penhas de gelo; o planalto era perfeitamente plano. O doutor, depois de reconhecer a excelência do local, resolveu desobstruí-lo dos dez pés de neve endurecida que o cobriam; e, na verdade, a casa de habitação e os armazéns deviam ser construídos sobre uma base sólida.
Na segunda, terça e quarta-feira, trabalhou-se sem descanso. Por fim, o solo apareceu, sendo formado de granito extremamente duro e de contextura apertada, cujas arestas vivas tinham o cortante do vidro. Na massa granítica continham-se também granates e cristais de feldspato, que o alvião destacava dela por vezes.
O doutor ministrou então o plano e dimensões da snow-house(1), que devia ter quarenta pés de comprimento por vinte de largura, e dez pés de altura; a casa tinha três divisões, uma sala, um quarto de cama e uma cozinha. Mais, também, era desnecessário. À esquerda era a cozinha, à direita o quarto das camas e a sala no meio.
Por espaço de cinco dias trabalharam com assiduidade. Materiais sobravam até. As muralhas de gelo deviam ter espessura bastante para resistirem mesmo ao desgelo,
*1. Casa de neve.
porque aos náufragos não convinha correr o risco de se acharem sem abrigo, ainda mesmo no Estio.
A casa, à medida que se ia levantando, apresentava uma bela aparência, com as suas quatro janelas de frente, duas da sala, uma da cozinha e outra do quarto das camas; os vidros eram feitos de magníficas lâminas de gelo, à moda dos esquimós, e deixavam passar uma luz suave como o vidro despolido.
À frente da sala, entre as duas janelas, estendia-se um comprido corredor, que era a entrada da casa, e que estava hermeticamente fechado no topo por uma porta sólida, que tinha sido arrancada da câmara do «Porpoise».
Terminada a casa, o doutor ficou encantado com a própria obra. Seria difícil dizer a que estilo arquitectónico aquela habitação pertencia, apesar de que o arquitecto confessara a sua preferência pelo gótico saxónio, tão vulgar em Inglaterra. Ali, porém, o essencial era a solidez, e por consequência o doutor limitou-se a revestir a fachada de contrafortes robustos e refeitos como pilares romanos. O telhado tinha uma inclinação muito pronunciada e apoiava-se à muralha de granito, que também servia de encosto às chaminés dos fogões, que conduziam para fora o fumo.
Logo que a obra mais grossa ficou concluída, tratou-se da instalação interna. Para o quarto das camas transportaram-se os catres do «Porpoise», que foram dispostos circularmente em roda de um grande fogão. A sala, que servia também de casa de jantar, encheu-se de cadeiras, de poltronas, mesas e armários; a cozinha, finalmente, recebeu as fornalhas do navio com todos os utensílios respectivos. Os tapetes e os reposteiros das portas interiores, que não tinham outro fecho, eram feitos das velas do navio.
As paredes da casa tinham em média cinco pés de espessura, e os vãos das janelas pareciam portinholas de peças.
Toda a construção era de solidez extrema. O que se podia exigir mais?
Ah! Se dessem ouvidos ao doutor, que não teria ele feito por meio do gelo e da neve, que tão facilmente se prestam a todas as combinações!
Todo o dia andava ele a ruminar mil planos soberbos, que nem mesmo pensava realizar, mas amenizava assim o trabalho comum com os recursos do seu espírito.
Demais a mais, o doutor, na sua qualidade de bibliófilo, lera um livro muito raro de M. Kraft, que tem por título: ((Descrição minuciosa da casa de gelo construída em São Petersburgo, em Janeiro de 1740, e de todos os objectos que ela continha». A recordação desta leitura ainda mais lhe sobreexcitava o espírito inventivo. Uma certa noite chegou mesmo a contar aos companheiros as maravilhas daquele palácio de gelo.
- O que se fez em São Petersburgo não podemos nós, porventura, fazê-lo aqui? - dizia ele. - Que nos falta? Nada, nem mesmo a imaginação!
- Era então muito lindo? - perguntou Johnson.
- Obra de fadas, meu amigo! A casa, construída por ordem da imperatriz Ana e em que ela fez realizar as núpcias de um dos seus bobos, em 1740, tinha pouco mais ou menos as dimensões da nossa; em frente da fachada, porém, estavam recostados nos seus reparos seis canhões, também de gelo, com os quais se deram muitos tiros de pólvora e bala, sem que eles rebentassem. Havia também morteiros talhados para bombas de sessenta libras. Já vêem que, em caso de necessidade, também nós podíamos aqui assestar uma artilharia formidável. O bronze com que havíamos de fabricar não está longe: cai do céu. Mas onde o gosto e a arte tiveram um triunfo completo foi no frontão do palácio, que era ornado de estátuas de gelo de surpreendente beleza. O patamar apresentava à vista vasos com flores e com laranjeiras, tudo feito também de gelo; à direita erguia-se um elefante, de cuja tromba jorrava de dia água e de noite nafta inflamada. Hem! Que colecção de animalejos nós podíamos fazer aqui se nisso tivéssemos grande empenho!
- Lá a respeito de animais - interrompeu Johnson -, creio que nos não hão-de faltar, e por não serem de gelo não serão menos interessantes!
- Não tem dúvida - volveu o belicoso doutor - de que nós havemos de saber defender-nos contra os ataques deles. Mas, voltando à minha casa de São Petersburgo, direi mais que lá havia mesas, toilettes, espelhos, candelabros, velas, leitos, colchões, travesseiros, cortinas, relógios, cadeiras, cartas de jogar, armários, um serviço completo de louça, tudo de gelo cinzelado, lavrado, esculpido e torneado, enfim, uma mobília completa.
- Era então um verdadeiro palácio? - disse Bell.
- Um palácio, mas esplêndido, digno de uma soberana! Ai, o gelo! Que grande bem foi a Providência inventá-lo, já que a tantas maravilhas se presta e tamanho bem-estar pode fornecer aos náufragos!
O arranjo interno da casa de neve levou até ao dia 31 de Março, que era Domingo de Páscoa e que foi consagrado ao repouso. Passou-se todo este dia na sala, onde se fez a leitura do ofício divino, e todos então puderam apreciar a boa disposição da snow-house.
No dia seguinte tratou-se da construção dos armazéns e do paiol da pólvora, o que foi negócio ainda para uns oito dias, compreendendo nestes o tempo necessário para a completa descarga do «Porpoise», que se não fez sem trabalho, porque a temperatura, então muito baixa, não permitia trabalhar por muito tempo a descoberto. Enfim, a 8 de Abril, provisões, combustível e munições, tudo estava em terra firme e perfeitamente abrigado. Os armazéns ficaram situados ao norte do planalto, o paiol da pólvora ao sul, pouco mais ou menos a sessenta pés dos dois extremos da casa. Construiu-se, junto dos armazéns, uma espécie de casa de cães, exclusivamente destinada para o tiro de gronelandeses, que o doutor honrou com o nome de Dogs Palace. «Duck» compartilhava da habitação em comum.
Depois disto passou o doutor aos meios de defender a praça. Debaixo da direcção dele, foi o planalto cercado de uma verdadeira fortificação de gelo, que o punha ao abrigo de qualquer invasão. A sua própria altura constituía uma escarpa natural, e, como não apresentava ângulos reentrantes nem salientes, estava igualmente fortificada por todas as faces. O doutor, a organizar aquele sistema de defesa, recordava invencivelmente ao espírito o digno tio Tobias de Sterne, cuja suave bondade e constância de bom humor possuía. Fazia gozo vê-lo a calcular o declive do seu talude interior, a inclinação do terrapleno e a largura da banqueta. Todos aqueles trabalhos se faziam com tanta felicidade, com aquela neve complacente, que era um gosto, e o amável engenheiro pôde dar à sua muralha de gelo uma espessura de sete pés. Demais a mais, como o planalto dominava a baía, não houve necessidade de construir nem contra-escarpa, nem talude exterior, nem esplanada. O parapeito de neve seguia primeiro todos os contornos do planalto, dava volta em frente do muro de rochedos e vinha depois ligar com os dois lados da casa.
Todos estes trabalhos de castrametação ficaram terminados em 15 de Abril. O forte estava completo e o doutor todo ancho com a sua obra.
E, na realidade, aquele recinto fortificado era capaz de ser defendido por muito tempo até contra os esquimós, se tal espécie de inimigos pudesse jamais encontrar-se debaixo daquela latitude. Naquela costa, porém, nem vestígios havia de seres humanos. Hatteras, quando andara levantando o plano da configuração da baía, não vira uma única ruína de choça, das que vulgarmente se encontram nas paragens frequentadas pelas tribos gronelandesas. Os náufragos do «Forward» e do «Porpoise», ao que parecia, eram os primeiros seres humanos que pisavam aquele solo desconhecido.
Se nada todavia tinham os viajantes a recear dos homens, outro tanto não podia dizer-se dos animais ferozes, e o forte, assim defendido, oferecia à sua pequena guarnição abrigo seguro contra qualquer ataque.
UMA DISCUSSÃO CARTOLÓGICA
Enquanto se faziam estes preparativos para a invernada, recuperara Altamont inteiramente as forças e a saúde, podendo até empregar-se na descarga do navio. A sua constituição vigorosa vencera afinal, e a sua palidez não pudera resistir por muito tempo ao natural vigor do seu sangue.
Via-se renascer nele o indivíduo robusto e sanguíneo dos Estados Unidos, o homem enérgico e inteligente, dotado de um carácter resoluto, o americano empreendedor, audacioso e pronto para tudo. Era Altamont natural de Nova Iorque e afeito a navegar desde a infância, segundo ele próprio contou aos seus novos companheiros. O «Porpoise», navio do seu comando, fora equipado e lançado ao mar por uma sociedade de ricos negociantes da União, à testa da qual estava o famoso M. Grinnel.
Entre Hatteras e Altamont existiam certas analogias de carácter, mas não simpatias. Aquela semelhança não era de natureza tal que fizesse, daqueles dois homens, dois amigos; pelo contrário. E, demais, um bom observador, verdadeiramente perspicaz, em pouco tempo acabaria por descobrir que havia entre os dois fundas discrepân-cias. Assim, Altamont, com mais franqueza aparente, era na realidade menos franco do que Hatteras; era de génio mais fácil, mas menos leal; o seu carácter lhano não inspirava tanta confiança como o temperamento sombrio do capitão inglês. Este afirmava de vez a sua ideia sem mais manifestações exteriores; o americano falava muito, mas por vezes não dizia nada.
Foi isto o que o doutor reconheceu, pouco a pouco, do carácter do americano, e por isso tinha sobeja razão para presumir inimizade futura, se não ódio, entre os dois capitães do «Porpoise» e do «Forward».
E o caso era, que daqueles dois comandantes, um só teria de comandar. Não havia dúvida de que Hatteras tinha todos os direitos à obediência do americano, direitos de prioridade e direitos de força. Porém, se um dos capitães estava à frente dos seus, o outro estava a bordo do seu navio. E bem o davam ambos a entender.
A princípio, Altamont, por política ou por instinto, sentiu-se logo inclinado para o doutor. Devia-lhe a vida, é verdade. Por simpatia, porém, é que se sentia impelido para o estimável Clawbonny, ainda mais que por gratidão. Tal era o efeito inevitável do carácter do digno doutor; nasciam em volta dele os amigos, como os trigos ao sol. Conta-se de gente que se levantava às cinco horas da manhã para arranjar inimigos; pois o doutor, ainda que às quatro se levantasse, não era capaz de arranjar um só.
Clawbonny resolveu-se a tirar partido da amizade de Altamont para conhecer o verdadeiro motivo da presença da «Porpoise» nos mares do pólo. O americano, porém, com todo o seu palavreado, respondia sem responder, insistindo sempre no tema já costumado da passagem do noroeste.
Suspeitava o doutor que a expedição americana tivera outro motivo, exactamente o mesmo que Hatteras receava. Resolveu, por consequência, não mais trazer à discussão entre os dois adversários semelhante assunto; mas nem sempre o conseguiu. Nas mais simples conversações aparecia logo o risco de se desviarem contra vontade dele, doutor, e cada palavra podia ser a faísca do choque de interesses rivais.
E o caso em breve se deu, na realidade. Quando se acabou a casa, resolveu o doutor inaugurá-la com um jantar esplêndido. Era uma boa ideia esta de Clawbonny, que queria assim trazer para aquele continente ignoto os hábitos e os prazeres da vida europeia. Por coincidência, Bell tinha morto naquele dia alguns ptarmigans e uma lebre branca, mensageiro precursor da nova Primavera.
O festim realizou-se a 14 de Abril, no segundo domingo do Quasimodo, por um belo tempo muito seco. O frio, porém, não se atrevia a penetrar na casa de gelo, que os fogões crepitavam prontos a vencê-lo sem custo.
Jantou-se bem. A carne fresca foi uma agradável diversão em relação ao pemrnican e às carnes salgadas. Um pudim maravilhoso, feito pelas próprias mãos do doutor, mereceu as honras de bis: todos quiseram provar dele segunda vez. O sapiente mestre cozinheiro, de avental à cinta e faca na cintura, não teria envergonhado as cozinhas do grande chanceler de Inglaterra.
À sobremesa apareceram os licores. O americano, que não estava submetido ao regime dos ingleses teetotalers(1) não tinha motivo algum para se privar de um copo de gin ou de brandy. Os outros convivas, gente de ordinário sóbria, podiam sem o menor inconveniente permitir-se esta infracção à sua regra habitual; por consequência, para obedecer à receita do médico, todos brindaram no fim daquele alegre jantar. Quando se fizeram toasts à União, Hatteras limitou-se a permanecer calado.
Nesta ocasião trouxe o doutor à tela do debate uma questão interessante, dizendo:
- Meus amigos, ter transposto estreitos, bancos e campos de gelo, e ter chegado aqui, ainda não basta: resta-nos mais alguma coisa a fazer. Por esta razão venho eu agora propor-vos que demos nomes a esta terra hospitaleira, onde encontrámos a salvação e o repouso. É esta a prática seguida por todos os navegadores do mundo; nem um só de entre eles deixou de cumprir tal preceito em circunstâncias como as nossas. É necessário que, quando regressarmos à pátria, levemos, além da configuração hidrográfica das costas, os nomes dos cabos, das baías, das pontas e dos promontórios que as distinguem. É de absoluta necessidade.
- Isto é que é falar! - exclamou Johnson. - E demais, quando a gente pode indicar cada terra por seu nome especial, toma a coisa assim um ar sério,
*1. Abstémios.
e já ninguém tem direito a considerar-se como abandonado num continente desconhecido.
- Não contando mesmo - reforçou Bell - com a simplificação e facilidade que daí resulta em viagem para dar instruções e executar ordens. Por exemplo, podemos ser forçados a separar-nos durante alguma expedição, ou durante uma caçada, e não há nada para a gente se não perder no caminho como saber o nome aos lugares.
- Pois bem - disse o doutor -, visto estarmos todos de acordo a tal respeito, tratemos agora de nos entender acerca dos nomes a dar, e não esqueçamos nem a pátria nem os amigos em tal nomenclatura. Cá por mim, quando lanço os olhos para um mapa, nada me dá mais gosto que encontrar o nome de algum compatriota no extremo de um cabo, ao lado de uma ilha, ou no meio de um mar. É como que uma encantadora intervenção da amizade na geografia.
- Tendes razão, doutor - apoiou o americano -, e, demais a mais, dizeis as coisas de uma maneira que lhes dá ainda mais valor.
- Ora vamos - tornou o doutor -, procedamos com ordem.
Hatteras não tomara até ali parte na conversação; estava cogitando. No entanto, como sobre ele se fixassem os olhares de todos os companheiros, levantou-se e disse:
- Salvo melhor conselho, e ninguém aqui me há-de contradizer, penso eu - neste momento Hatteras olhava para Altamont -, parece-me conveniente dar à nossa habitação o nome do seu hábil arquitecto, do melhor de nós todos, e chamar-lhe Doctor's House.
- Exactamente - aplaudiu Bell.
- Muito bem! - exclamou Johnson. - A Casa do Doutor!
- Não se podia imaginar melhor denominação - declarou Altamont. - Hurra pelo Dr. Clawbonny!
Todos, de comum acordo, soltaram um tríplice hurra, a que «Duck» correspondeu com latidos de aprovação.
- Por consequência - prosseguiu Hatteras -, chame-se assim esta casa, até que a descoberta de uma terra nova nos permita honrar melhor o nome do nosso amigo.
- Ai! - exclamou o velho Johnson. - Se o paraíso
terrestre ainda não tivesse nome, o de Clawbonny caía-lhe às mil maravilhas!
O doutor, extremamente comovido, quis ainda opor-se por modéstia; mas não houve meio. Foi necessário sujeitar-se. Por consequência, ficou definitivamente assente e estabelecido que aquela alegre refeição se tinha realizado na grande sala da Doctor's House, e finalmente que todos se iriam deitar contentes no quarto das camas da Doctor's House.
- Agora - continuou o doutor, depois de meditar por algum tempo -, passemos a alguns pontos mais importantes das nossas descobertas.
- Por exemplo, este mar imenso que nos rodeia, cujas ondas nenhum navio sulcou até hoje - lembrou Hatteras.
- Nenhum navio! Todavia - observou Altamont -, parece-me que o «Porpoise» não é de esquecer, a não ser que pensem que veio aqui por terra - acrescentou ele com ar de mofa.
- Era crível, era - replicou Hatteras -, a julgar pelos rochedos sobre que ele neste momento navega.
- Sim!? Hatteras - disse Altamont com ar pouco satisfeito -, parece-me que em todo o caso vale mais isso do que desfazer-se nos ares, como aconteceu ao «Forward»!
Ia Hatteras replicar com vivacidade, quando o doutor interveio, dizendo:
- Amigos meus, os navios não entram em questão. Do que se trata aqui agora é de um mar novo...
- Não só é novo - respondeu Altamont -, como até já tem nome em todos os mapas do pólo. Chama-se o oceano Boreal, e não me parece que seja oportuno mudar-lhe o nome. Se mais tarde descobrirmos que não passa de um estreito ou de um golfo, veremos então o que convirá fazer.
- Seja - aquiesceu Hatteras.
- Assim fica entendido - rematou o doutor, quase arrependido de ter levantado uma discussão prenhe de rivalidades nacionais.
- Vamos então à terra que estamos pisando - insistiu Hatteras. - Não sei que tenha nome mesmo nas cartas mais recentes!
E, quando assim falava, fixava o olhar sobre Altamont, que, sem baixar os olhos, redarguiu:
- É possível que ainda mais uma vez estejais enganado, Hatteras.
- Enganado eu! Pois quê? Esta terra desconhecida, este solo novo...
- Já tem nome - respondeu tranquilamente o americano.
Hatteras calou-se. Tinha os lábios a tremer.
- E que nome é esse? - perguntou o doutor, um tanto admirado da asserção do americano.
- Meu caro Clawbonny - volveu Altamont -, é prática, para não dizer direito, de todos os navegadores impor nome ao continente a que abicam primeiro que qualquer outro. Por consequência, parece-me que numa ocasião semelhante pude eu, devi até, fazer uso desse direito incontestável...
- Todavia... - objectou Johnson, a quem desagradava o sangue-frio empertigado de Altamont.
- Parece-me difícil que alguém tente afirmar que o «Porpoise» não veio abicar nesta costa, porque, ainda que se queira admitir que veio por terra - acrescentou, dirigindo-se a Hatteras -, essa não é a questão.
- Essas pretensões não posso eu admiti-las - replicou Hatteras com gravidade e contendo-se quanto pôde. - Para ter o direito de impor nome é necessário, pelo menos, descobrir, e é exactamente isso que eu suponho que não fizestes. E demais, senhor, sem nós, onde estaríeis vós, vós que vindes impor-nos condições? A vinte pés debaixo da neve!
- E sem mim, senhor - retorquiu com vivacidade o americano -, sem o meu navio, que seria de vós todos neste momento? Teríeis morrido de fome e de frio!
- Amigos meus - acudiu o doutor, intervindo da maneira que lhe pareceu mais conveniente -, ora vamos, sossegai um pouco, que tudo se pode conciliar. Ora escutai-me.
- Este senhor - continuou Altamont, designando o capitão - poderá impor os nomes que quiser a todas as outras terras que descobrir, se descobrir alguma, mas a este continente, não, que me pertence!
Nem mesmo a pretensão de que esta terra tivesse dois nomes, como a terra de Grinnel, também chamada terra do Príncipe Alberto, porque um inglês e um americano a descobriram quase ao mesmo tempo, eu poderia admitir. Aqui, o caso é outro; os meus direitos de prioridade são incontestáveis. Antes do meu, nenhum outro navio rasou esta costa com a sua amurada. Antes de mim, nenhum ser humano pôs o pé neste continente. Ora eu impus-lhe um nome; por consequência há-de conservá-lo.
- E que nome é esse? - inquiriu o doutor.
- Nova América - respondeu Altamont. Hatteras cerrou os punhos por debaixo da mesa. Mas, fazendo sobre si mesmo violento esforço, logrou conter-se.
- Podeis porventura provar-me que algum inglês pisou este solo, antes de mim, americano?
Johnson e Bell estavam calados, apesar de não ser neles menor do que no capitão a irritação causada pelo imperioso desembaraço do antagonista. Mas, com respeito a esta questão, nada havia que responder.
Passados alguns instantes de penoso silêncio, o doutor acudiu de novo, nos seguintes termos:
- Meus amigos, a primeira lei humana é a lei da justiça, que as contém todas em si. Por conseguinte, sejamos justos e não nos deixemos levar de maus sentimentos. A prioridade de Altamont parece-me incontestável, nem creio que tenha discussão; mais tarde teremos a nossa desforra. A Inglaterra há-de ter bom quinhão nas nossas futuras descobertas. Deixemos pois a esta terra o nome de Nova América. Altamont, porém, quando assim a apelidou, não dispôs, imagino eu, de todas as baías, cabos, promontórios e pontas que nela existem, e não vejo que haja impedimento a que chamemos a esta baía, por exemplo, baía Vitória?
- Nenhum - respondeu Altamont -, se o cabo que se estende além pelo mar dentro tiver o nome de cabo Washington.
- Senhor - exclamou Hatteras, fora de si -, bem podíeis ter escolhido algum nome menos desagradável para um ouvido inglês.
- Mas não mais caro a um ouvido americano - replicou Altamont com grande altivez.
- Ora vamos! Vamos - tornou o doutor, que tinha menos mau trabalho para manter a paz naquela pequena sociedade. - Nada de discussões a tal respeito! Seja permitido a um americano ter orgulho dos seus grandes homens! Honremos o génio onde quer que ele se encontre, e já que Altamont fez a sua escolha, falemos agora por nós e pelos nossos. O nosso capitão, que...
- Doutor - interrompeu Hatteras -, como esta terra é uma terra americana, desejo que o meu nome não figure na nomenclatura dela.
- Essa decisão é irrevogável? - perguntou o doutor... - Absolutamente.
O doutor não insistiu, mas dirigindo-se ao velho marinheiro e ao carpinteiro, disse:
- Pois então, agora nós. Deixemos aqui algum vestígio da nossa passagem. Proponho que a ilha, que se avista a três milhas ao largo, se chame ilha Johnson, em honra do nosso mestre.
- Oh! - disse este, um pouco confuso -, Sr. Clawbohny!
- Quanto àquela montanha, que reconhecemos a oeste dar-lhe-emos o nome de Bell-Mount, se o nosso carpinteiro a isso não se opuser!
- É demasiada honra para mim - declarou Bell.
- É somente justiça - afirmou o doutor.
- Está tudo o melhor possível - aprovou Altamont.
- Por consequência, só nos resta baptizar o nosso forte; e a esse respeito não haverá decerto discussão. Não é nem a Sua Graciosa Majestade a Rainha Vitória, nem a Washington que nós devemos o estar neste momento abrigados por ele, mas somente a Deus, que nos reuniu para nos salvar a todos. Por conseguinte, seja o nome deste forte o de Forte Providência!
- É muito bem imaginado - apoiou Altamont.
- O Forte Providência - repetiu Johnson -, e o nome até soa bem! Assim, quando voltarmos das nossas excursões ao norte, tomaremos pelo cabo Washington, para chegar à baía Vitória, e daí ao Forte Providência, onde encontraremos repouso e alimento na Doctor's House!
- Assim fica entendido - rematou o doutor. - Mais tarde, à medida que formos fazendo novas descobertas, teremos mais nomes a dar, que não hão-de ser origem de discussões, espero eu; porque, meus amigos, aqui é preciso que nos amemos e que nos ajudemos uns aos outros. Neste pedaço de costa somos nós os representantes da humanidade inteira; não nos entreguemos, pois, a essas paixões detestáveis que corroem as sociedades; reunamo-nos por forma que sejamos fortes e inabaláveis contra a adversidade. Quem sabe os perigos, os sofrimentos que o céu nos reserva ainda e que teremos de passar antes de tornar a ver a pátria! Sejamos, pois, cinco num só, e ponhamos de parte rivalidades, que nunca têm razão de ser, e aqui menos que em qualquer outro ponto. Ouvis-me, Altamont? E vós também, Hatteras?
Nenhum dos dois respondeu, mas o doutor fez de conta que ambos tinham respondido.
Depois falou-se de outros assuntos. Tratou-se das caçadas que convinha organizar para renovar e variar as provisões de carnes. Com a Primavera iam chegar as lebres, as perdizes, e até as raposas e os ursos também. Resolveu-se, pois, não deixar passar um dia propício sem tentar algum reconhecimento pela terra da Nova América.
EXCURSÃO AO NORTE DA BAÍA VITÓRIA
No dia seguinte, aos primeiros raios do Sol, Clawbonny trepou pelas rampas bastante íngremes da muralha de rochedos a que se encostava Doctor's House. Terminava esta muralha bruscamente numa espécie de cone truncado. O doutor conseguiu, não sem trabalho, chegar ao cume, e dali alargou a vista por sobre uma vasta extensão de terreno acidentado, que parecia ser resultado de alguma comoção vulcânica; o mar e o continente estavam em comum cobertos por um imenso lençol branco. Era impossível distingui-los um do outro.
Quando o doutor reconheceu que aquele ponto culminante dominava todas as planícies circundantes, teve logo uma ideia, o que, para quem como nós o conhece, não é para admirar.
E esta ideia tratou ele de a amadurecer, de a combinar, de a profundar, até que, quando entrou na casa de neve, estava já completamente senhor dela e pôde comunicá-la aos companheiros, nos seguintes termos:
- Passou-me pela cabeça estabelecer um farol no vértice desse cone que se ergue por cima das nossas cabeças.
- Um farol? - exclamaram todos.
- Sim, um farol, que terá a dupla vantagem de nos servir de guia durante as noites, quando regressarmos de alguma excursão longínqua, e de alumiar o planalto durante os nossos oito meses de Inverno.
- Por certo que um aparelho desses era coisa útil
- aprovou Altamont -, mas como estabelecê-lo?
- Com um dos fanais do «Porpoise».
- De acordo; mas com que haveis de alimentar a lâmpada do farol? Com óleo de foca?
- Decerto que não, que a luz produzida por tal óleo não tem poder iluminante suficiente; mal poderia ver-se através do nevoeiro.
- Pretendeis, porventura, tirar da hulha, que aí temos, o hidrogénio que nela se contém, e fabricar gás de iluminação?
- Ora! Essa luz seria ainda insuficiente e tinha o grave inconveniente de nos consumir parte do combustível.
- Por essa forma - disse Altamont -, não imagino...
- Cá pela minha parte - interveio Johnson -, depois do caso da bala de mercúrio e do da lente de gelo, depois da construção do Forte Providência, julgo o Sr. Clawbonny capaz de tudo.
- Então - tornou Altamont - dir-nos-eis, afinal, que espécie de farol pretendeis estabelecer?
- É muito simples - declarou o doutor -, é um farol eléctrico.
- Um farol eléctrico!
- Sem dúvida. Pois não tínheis a bordo do «Porpoise» uma pilha de Bunsen em óptimo estado?
- Tinha - confirmou o americano.
- Quando a trouxestes é evidente que tínheis em vista alguma experiência, porque lhe não falta nada, nem fios condutores, perfeitamente isolados, nem o ácido necessário para pôr os elementos em actividade. Por consequência, fácil é obter luz eléctrica. Vê-se assim melhor, sem custar nada.
- Tudo isso é muito bom - aplaudiu o mestre -, e quanto menos tempo perdermos...
- Pois, como não faltam materiais - continuou o doutor -, daqui a uma hora podemos ter construído uma coluna de gelo de dez pés de altura, o que me parece muito suficiente.
O doutor saiu e os companheiros seguiram-no até ao vértice do cone. A coluna dali a pouco estava erguida e logo depois encimada por um dos fanais do «Porpoise».
O doutor adaptou-lhe então os fios condutores que partiam da pilha; esta ficou na sala da casa de gelo, abrigada da geada pelo calor dos fogões. Dali é que os fios subiam até à lanterna do farol.
Tudo aquilo se instalou com grande rapidez, e ainda foi preciso esperar pelo pôr do Sol para lhe gozar de todo o efeito. À noite, as duas pontas de carvão, mantidas na lanterna a conveniente distância, foram aproximadas, e do farol jorraram então feixes de intensa luz, que o vento não podia moderar nem apagar. Era um espectáculo maravilhoso o daqueles raios cintilantes, cujo fulgor, rivalizando com a brancura das planícies, desenhava nitidamente a sombra de todas as saliências circundantes. Johnson não pôde conter-se que não desse logo palmas, dizendo:
- Olhem o Sr. Clawbonny, que até agora faz sol!
- É uma necessidade a gente fazer um pouco de tudo - respondeu modestamente o doutor.
O frio pôs ponto final à admiração geral, e cada um se foi enroscar entre os cobertores.
Dali em diante organizou-se a vida regularmente. Nos dias que se seguiram, de 15 a 20 de Abril, o tempo esteve muito variável, a temperatura dava saltos repentinos de vinte e mais graus, e a atmosfera experimentava variações imprevistas: agora impregnada de neve e agitada pelos turbilhões, logo fria e seca a ponto de se não poder pôr pé fora de casa sem precauções.
No sábado, todavia, caiu o vento de todo. Esta circunstância tornava possível uma excursão. Resolveu-se por conseguinte consagrar um dia ao exercício da caça, para renovar provisões.
Logo pela manhã, Altamont, o doutor e Bell, cada um armado da sua espingarda de dois canos e de munições bastantes, de uma machadinha e de uma faca de cortar neve, para o caso de vir a ser necessário arranjar um abrigo, partiram por um tempo encoberto.
Enquanto estavam ausentes, devia Hatteras reconhecer a costa e levantar algum plano. Não se esqueceu o doutor de pôr o farol em actividade. Os raios dele lutaram com vantagem com os do astro radiante. Efectivamente, a luz eléctrica, equivalente à de três mil velas esteáricas ou à de trezentos bicos de gás, é a única que pode sustentar comparação com o brilho do Sol.
Fazia um frio penetrante, mas a atmosfera estava seca e tranquila. Os caçadores dirigiram-se para o cabo Washington; a neve endurecida favorecia-lhes a marcha. Em meia hora transpuseram eles as três milhas que separavam o cabo do Forte Providência. «Duck» ia aos saltos e às corridas em volta deles.
A costa inflectia-se para leste, e as altas cumeadas da baía Vitória tendiam a abaixar-se para a parte do norte. Estes factos faziam supor que a Nova América podia muito bem ser apenas uma ilha. Naquele momento, porém, não se tratava de lhe determinar a configuração.
Os caçadores tomaram pelo caminho à borda do mar e avançaram rapidamente. Não viram vestígios de habitação, nem restos de choças; certamente pisavam um solo virgem de passos humanos.
Assim andaram, durante as primeiras três horas, umas quinze milhas, comendo sem parar. A caçada, porém, ameaçava ser infrutífera, porque efectivamente mal viram alguns rastos de lebres, de raposas ou de lobos. No entanto, alguns snowbirds(1), que esvoaçavam por aqui e por acolá, anunciavam já a volta da Primavera e dos animais árcticos.
Os três companheiros tinham sido forçados a internar-se pelas terras dentro, para tornear profundas ravinas e rochas a prumo, que vinham prender a Bell-Mount; porém, com alguma demora, conseguiram voltar à praia. Os gelos ainda não estavam separados. Bem longe disso. O mar continuava coalhado; contudo, os vestígios das focas anunciavam as primeiras visitas daqueles anfíbios, que vinham já respirar à superfície do ice-field. Alguns rastos de maiores dimensões e o gelo partido de fresco em alguns pontos tornavam evidente que muitos daqueles animais tinham vindo recentemente a terra.
As focas são muito ávidas de raios de sol e de bom grado se estendem nas praias, a deixarem-se penetrar pelo benéfico calor do astro.
O doutor fez notar todas estas particularidades aos companheiros.
- Notemos este lugar com todo o cuidado - recomendou o doutor.
*1. Aves de neve.
- É muito possível que, quando vier o Verão, encontremos aqui focas aos centos; nas paragens pouco frequentadas pelos homens deixam elas com facilidade que as pessoas se lhes aproximem, e então fácil é apanhá-las. Mas deve haver toda a cautela em não as assustar, porque, de contrário, desaparecem como por encanto, e ninguém mais lhes põe a vista em cima. É por isso que alguns pescadores desastrados, que, em lugar de as matar uma por uma, quiseram atacá-las em massa, com ruído e vociferações, perderam ou arriscaram o carregamento.
- E estes animais caçam-se só para se lhes aproveitar a pele e o óleo? - perguntou Bell.
- Os europeus assim fazem, mas os esquimós, esses, comem-nas, e disso vivem; todavia, os pedaços de carne de foca que eles misturam com sangue e com gordura, nada têm de apetitoso! No fim de contas, de tudo se pode tirar proveito. Eu cá era capaz de tirar de uma foca excelentes costeletas, que não seriam para desprezar para quem se habituasse à sua cor um pouco escura.
- Ver-nos-emos com a mão na massa - respondeu Bell. - Eu comprometo-me, desde já, sem mais reflexão, a comer carne de foca, quanta vos for agradável. Ouvis-me, Sr. Clawbonny?
- Meu caro Bell, por mais que façais, nunca chegareis a igualar a voracidade do gronelandês, que chega a consumir num dia dez a quinze libras de carne de foca.
- Quinze libras! - exclamou Bell. - Que estômagos!
- Estômagos polares - continuou o doutor -, estômagos prodigiosos, que se dilatam à vontade dos donos e que se contraem pela mesma forma e, acrescentarei, feitos para aguentar a fome como a abundância. O esquimó quando começa a jantar é magro, mas no fim está tão gordo que ninguém o conhece pelo mesmo! É verdade que o tal jantar às vezes dura um dia inteiro.
- Essa voracidade - disse Altamont - é evidentemente peculiar dos países frios?
- Assim o creio - volveu o doutor -, nas regiões árcticas é necessário comer muito; e é esta uma das condições não somente da força, mas até da existência. É por essa razão que a Companhia da Baía de Hudson atribui a cada homem, que emprega, oito libras de carne ou doze de peixe, ou duas de pemmican por dia.
- E é um regime reconfortante esse, é - afirmou o carpinteiro.
- Mas não tanto como vos parece, meu amigo, e a prova é que um índio assim atafulhado não dá quantidade de trabalho superior à que dá um inglês alimentado com a sua libra de vaca e a sua canada de cerveja.
- Assim, Sr. Clawbonny, está tudo o melhor possível.
- Sem dúvida; no entanto, uma refeição de esquimó é coisa para com justo fundamento nos admirarmos. E, efectivamente, Sir John Ross, quando invernou na terra de Boothia, todos os dias se admirava da voracidade dos seus guias. Conta este navegador, não sei em que ponto das suas narrações de viagem, que dois homens - olhem bem que eram dois - devoraram numa só manhã um quarto de boi almiscarado. Cortavam a carne em tiras, introduziam-nas nas goelas, e depois cada um cortava rente do nariz o que lhe não cabia na boca e passava-o ao companheiro. Outras vezes, aqueles glutões deixavam pender até ao chão aquelas tiras de carne e iam-nas engolindo a pouco e pouco, à maneira de jibóia quando digere um boi, e também estendidos ao comprido, no chão, como ela!
- Irra! - exclamou Bell. - Que repugnantes brutos!
- Então! Cada qual tem lá a sua maneira de comer
- comentou filosoficamente o americano.
- Por fortuna nossa! - replicou o doutor.
- À vista disso - continuou Altamont -, já que a necessidade de alimento é tão imperiosa nestas latitudes, já me não admira que nas narrações dos viajantes árcticos se fale a cada passo em comer.
- Tendes razão - concordou o doutor -, também eu já tinha feito a mesma observação; e o facto decerto vem não só da absoluta necessidade de uma alimentação abundante, mas da frequente e grande dificuldade de a arranjar. Em tais casos, pensa-se sempre no mesmo assunto, e por consequência fala-se nele sem cessar.
- Todavia - observou Altamont -, se bem me recordo, nas regiões mais frias da Noruega, os homens do campo não têm essa necessidade de alimentação tão substancial. Contentam-se com alguns lacticínios, ovos, pão de casca de vidoeiro, às vezes salmão; carne, isso nunca; e nem por isso deixam de ser homenzarrões de uma constituição sólida.
- É questão de organização - declarou o doutor -, que eu não me encarrego de explicar. No entanto, creio que os noruegueses, transportados para a Gronelândia, à segunda ou terceira geração haviam de acabar por comer como os gronelandeses. E até nós mesmos, amigos meus, se ficássemos por aqui muito tempo, nesta bem-aventurada região, dávamos também com certeza em viver como esquimós, para não dizer como glutões encartados.
- Esta conversa faz-me fome, Sr. Clawbonny - afirmou ironicamente Bell.
- Pois a mim não - disse Altamont -, antes seria caso para me fazer tomar horror à carne de foca. Ora olhem, parece-me que vamos ter ocasião de pôr os estômagos à prova. Ou eu me engano muito, ou aquele vulto que avisto além, estendido no gelo, é coisa viva.
- É uma vaca-marinha! - exclamou o doutor. - Silêncio e avante!
Efectivamente, a umas duzentas jardas dos viajantes, andava brincando no gelo um anfíbio dos de maiores dimensões. O animal, sob o influxo dos pálidos raios do Sol, estendia-se e rolava-se no gelo com a maior voluptuosidade.
Os três caçadores dispuseram-se por forma que fizessem cerco à foca para lhe cortar a retirada. Nesta ordem foram caminhando até chegarem a poucas toesas dela, escondendo-se sempre por detrás dos hummocks, e fizeram fogo.
A vaca-marinha virou-se de ventre para o ar, mas ainda cheia de vigor, esmagando os pedregulhos de gelo e tentando fugir. Altamont, porém, atacou-a a golpes de machado e conseguiu cortar-lhe as barbatanas dorsais. O animal tentou ainda defender-se como desesperado, mas alguns tiros mais que recebeu acabaram de dar cabo dele, deixando-o estendido e exânime sobre o ice-field, que o seu sangue tingira de vermelho.
Era um animal de belas dimensões; da ponta do focinho à extremidade da cauda, media quinze pés de comprimento, e, se extraíssem óleo dele, dava por certo um bom par de barricas.
O doutor, porém, limitou-se a tirar-lhe as partes mais saborosas da carne, e deixou o cadáver à mercê de alguns corvos, que naquela época do ano por ali pairavam já.
A noite ia-se aproximando, e por isso todos se lembraram de se ir chegando ao Forte Providência. O céu estava já então perfeitamente limpo e puro e, enquanto não vinham os raios próximos da Lua, magnificamente iluminado pela claridade das estrelas.
- Vamos, a caminho, que se faz tarde - disse o doutor. - A nossa caçada, em suma, não foi das mais felizes, mas, enfim, um caçador que traz de cear para casa não tem de que se queixar. Tomemos, contudo, pelo caminho mais curto e tratemos de nos não perder; as estrelas aí estão para nos guiar.
No entanto, naquelas regiões onde a Polar brilha mesmo por cima da cabeça do viajante, não é das coisas mais fáceis servir-se dela como guia. Efectivamente, quando o norte está exactamente no ponto culminante da abóbada celeste, é difícil determinar os outros pontos cardeais. Por fortuna, a Lua e as outras constelações vieram coadjuvar o doutor na marcação da derrota.
Resolveu Clawbonny, para encurtar caminho, evitar as sinuosidades da praia e cortar a direito através das terras; era caminho mais directo, mas menos seguro; e por isso, dentro de algumas horas de marcha, o pequeno rancho estava completamente desencaminhado.
Aventou-se a opinião de passar a noite numa casa de gelo, de aí repousar, e de esperar pelo dia para se orientarem, ainda que então houvesse necessidade de voltar à praia para seguir pelo ice-field. O doutor, porém, receando dar cuidado a Hatteras e a Johnson, insistiu para que se continuasse a marcha.
- «Duck» é que nos guia - disse ele -, e «Duck» nunca se engana, pois é dotado de tal instinto que não precisa de bússola nem de estrela. Por consequência, é caminhar atrás dele.
«Duck», efectivamente, caminhava à frente e todos se fiaram na inteligência dele. E com razão, porque dali a pouco avistou-se ao longe, no horizonte, um clarão que não era lícito confundir com a luz de uma estrela, que não poderia emergir de brumas tão baixas.
- Acolá está o nosso farol! - exclamou o doutor.
- Será ele, Sr. Clawbonny? - duvidou o carpinteiro.
- É com certeza. Toca a marchar.
Ao passo que os viajantes se aproximavam, a claridade tornava-se cada vez mais intensa, e dali a pouco estavam envolvidos numa esteira de poeira luminosa; marchavam como que dentro de um raio de luz, e atrás estendiam-se, desmesuradas e nitidamente recortadas no tapete de neve, as suas gigantescas sombras.
Dobraram o passo e dali a meia hora trepavam o talude do Forte Providência.
O FRIO E O CALOR
Hatteras e Johnson esperavam já os três caçadores com certa inquietação; e estes ficaram satisfeitíssimos por encontrarem um abrigo quente e cómodo. Com a vinda da noite, a temperatura baixara notavelmente, a ponto de o termómetro externo marcar 73 graus abaixo de zero (-31 graus centígrados).
Os caminhantes, extenuados de cansaço e quase gelados, já não podiam consigo. Felizmente os fogões funcionavam bem e a fornalha estava somente à espera dos produtos da caça. O doutor transformou-se num instante em cozinheiro e pôs-se a assar na grelha algumas costeletas de vaca-marinha. Às nove da noite abancavam os cinco convivas em frente de uma ceia reconfortante.
- Por minha fé - declarou Bell -, que, mesmo correndo risco de passar por esquimó, não posso deixar de dizer que o comer é o grande problema de qualquer invernada; e quando a gente chega a tê-lo à mão, não é para estar com cerimónias!
Nenhum dos convivas, porque todos tinham já a boca cheia, pôde responder de pronto ao carpinteiro. O doutor, porém, indicou-lhe por sinais que lhe achava toda a razão.
As costeletas de vaca-marinha foram declaradas excelentes, ou, se a declaração se não chegou a fazer, o facto é que foram devoradas até à última, o que valia mais que todas as declarações do mundo.
À sobremesa, o doutor preparou o café, segundo o costume, porque a ninguém confiava o cuidado de destilar aquela excelente bebida.
Fazia-o ele mesmo à mesa, numa máquina de espírito de vinho, e servia-o a ferver; que para ele, logo que lhe não escaldasse a língua, já o não achava digno de lhe entrar na goela. Naquela noite absorveu o doutor o seu café a uma temperatura tão elevada que os companheiros não puderam imitá-lo.
- Mas isso, doutor, é caso para ficar queimado - advertiu Altamont.
- Não há perigo - respondeu ele.
- Só se tendes o céu da boca forrado de cobre - observou Johnson.
- Nada, amigos, e até vos aconselho a que sigais o meu exemplo. Há pessoas, e eu sou desse número, que bebem o café à temperatura de 131 graus ( +55 graus centígrados).
- Cento e trinta e um graus! - exclamou Altamont. - Nem na mão se aguenta um calor desses!
- Claro está, Altamont, visto que nas mãos ninguém pode tolerar temperatura superior a 122 graus (+50 graus centígrados) dentro de água; mas o céu da boca e a língua são menos sensíveis que a mão, e resistem ao que esta não poderia aguentar.
- Admira-me isso - disse Altamont.
- Pois bem, vou convencer-vos.
E o doutor, pegando no termómetro da sala, mergulhou o reservatório na sua chávena de café a escaldar; i esperou que o instrumento marcasse cento e trinta graus, e engoliu o benéfico licor com evidente satisfação. Bell quis imitá-lo com toda a valentia, mas queimou-se a ponto de se pôr a gritar.
- É falta de hábito apenas - afirmou o doutor.
- Clawbonny - prosseguiu Altamont -, podeis acaso dizer-me quais são as temperaturas mais elevadas que o corpo humano pode aguentar?
- É fácil - volveu o doutor. - É caso já experimentado, e há até a este respeito factos muito curiosos. Lembro-me agora de um ou dois, que vos hão-de provar que a tudo a gente se acostuma, mesmo a não ficar assado onde o ficaria um bife. Conta-se, por exemplo, que as raparigas que trabalhavam no forno senhorial da cidade de La Rochefoucauld, em França, podiam permanecer dez minutos dentro do forno, a uma temperatura de 300 graus (+132 graus centígrados), isto é, superior oitenta e nove graus à da água a ferver, ao passo que, em roda delas, batatas e até carne se assavam que era um gosto.
- Que moças! - exclamou Altamont.
- Ora, ouvi ainda outro exemplo, de que não é lícito duvidar. Em 1774, oito compatriotas nossos, Fordyce, Banks, Solander, Blagdin, Home, Nooth, Lord Seaforth e o capitão Philips, aguentaram uma temperatura de 295 graus (+128 graus centígrados), ao passo que perto deles se estavam cozendo ovos e assando um rosbife!
- E eram ingleses!-disse Bell com um certo sentimento de altivez.
- É verdade, Bell - confirmou o doutor.
- Oh! Se fossem americanos, ainda eram capazes de mais - asseverou Altamont.
- Deixavam-se assar - comentou o doutor sorrindo.
- E porque não? - tornou o americano.
- O caso é que não o tentaram. Por consequência, fico-me no exemplo dos meus compatriotas. E contarei ainda mais um facto, que seria incrível se fosse lícito duvidar da veracidade das testemunhas. O duque de Ragusa e o doutor Jung, um francês e outro austríaco, viram um turco meter-se num banho em que o termómetro marcava 170 graus (+78 graus centígrados).
- Mas parece-me que esse caso não chega nem ao das moças do forno banal, nem ao dos nossos compatriotas! - acudiu Johnson.
- Engano - respondeu o doutor. - Entre o facto de se mergulhar na água quente ou no ar quente, há uma diferença imensa. O ar quente produz uma transpiração que resguarda as carnes, e dentro da água quente não se transpira, é-se queimado; por isso, o limite superior de temperatura marcado para os banhos é, em geral, apenas de 107 graus (+42 graus centígrados). Era, pois, necessário que o tal turco fosse um homem fora do vulgar para aguentar semelhante calor.
- Ó Sr. Clawbonny, qual é então a temperatura habitual dos seres animados?
- Varia segundo a natureza de cada um - esclareceu o doutor. - Assim, as aves são os animais cuja temperatura é mais elevada, e entre elas tornam-se ainda notáveis o pato e a galinha, cujo calor corporal excede 110 graus (+43 graus centígrados), ao passo que o da coruja, por exemplo, é apenas de 104 (+40 graus centígrados). Seguem-se em segundo lugar os mamíferos, especialmente o homem; a temperatura do inglês é geralmente de 101 graus (+37 graus centígrados).
- Aposto que o Sr. Altamont vai reclamar em favor dos Americanos - observou Johnson, sorrindo.
- Por minha fé, que os deve haver quentíssimos - declarou Altamont -; mas como nunca lhes mergulhei o termómetro no tórax ou debaixo da língua, não posso emitir opinião segura a tal respeito.
- Ora! -disse o doutor. - Também a diferença entre homens, ainda que de raças diversas, mas colocados em idênticas circunstâncias e qualquer que seja o seu género de alimentação, nem sequer é sensível. Direi mais: a temperatura humana é quase a mesma tanto no equador como no pólo.
- Com que então - ajuntou Altamont - o nosso calor próprio é o mesmo aqui que em Inglaterra?
- Com pequeníssima diferença - afirmou o doutor. - Quanto aos outros mamíferos, a temperatura deles é um pouco superior à do homem. Aproximam-se muito dele, debaixo deste ponto de vista, o cavalo, a lebre, o elefante, o golfinho e o tigre; mas o gato, o esquilo, o rato, a paritera, o carneiro, o boi, o cão, o macaco, o bode e a cabra chegam a 103 graus e, enfim, o mais favorecido de todos, o porco, excede 104 graus (+40 graus centígrados).
- É caso para nos considerarmos humilhados - disse Altamont.
- Vem em seguida os anfíbios e os peixes, cuja temperatura varia segundo a da água. A serpente tem apenas 86 graus (+30 graus centígrados), a rã, 70 (+25 graus centígrados) e o tubarão outro tanto, num meio inferior em grau e meio. Por fim vêm os insectos, que, pelo que parece, têm a mesma temperatura que o ar ou que a água em que vivem.
- Tudo isso é muito bom - disse Hatteras, que até aí ainda não tinha entrado na conversa -, e até agradeço ao doutor o ter posto à nossa disposição a sua ciência; mas quem nos ouvisse havia de pensar que nos estávamos preparando para afrontar calores tórridos. Pois não seria mais oportuno tomar por assunto de conversa o frio, sabendo assim a que estamos expostos e quais têm sido as temperaturas mais baixas até hoje observadas?
- É exacto, é - apoiou Johnson.
- É fácil satisfazer-vos - prosseguiu o doutor -, e a esse respeito posso eu elucidar-vos perfeitamente.
- Não me custa crê-lo - afirmou Johnson. - Como sabeis tudo...
- Meus amigos, nada mais sei do que o que outros me ensinaram e, depois de me ouvirdes, sabereis tanto como eu. Ora aí vai o que posso dizer-vos acerca do frio e das baixas temperaturas que se têm verificado na Europa. Conta-se grande número de Invernos memoráveis, e parece até que os mais rigorosos estão submetidos a uma lei de regresso periódico todos os quarenta e um anos, pouco mais ou menos, regresso que coincide com a aparição de maior número de manchas no Sol. Citarei, por exemplo, o Inverno de 1364, em que gelou o Ródano até Arles; o de 1408, em que gelou todo o curso do Danúbio e em que os lobos atravessaram o Categate a pé enxuto; o de 1509, em que o Adriático e o Mediterrâneo se solidificaram em frente de Veneza, de Ceuta e de Marselha, e em que o Báltico esteve coalhado até 10 de Abril; o de 1608, em que se viu em Inglaterra morrer tudo quanto eram gados; o de 1789, em que o Tamisa gelou até Gravesend, a seis léguas abaixo de Londres; o de 1813, de que os Franceses conservam tão terríveis recordações; e, enfim, o de 1829, que foi o mais precoce e o mais comprido de todos os Invernos do século xix. Pelo que diz respeito à Europa, é o que sei.
- Mas aqui, para além do círculo polar, a que mínimo grau poderá chegar a temperatura? - perguntou Altamont.
- Por minha fé - respondeu o doutor -, creio que experimentámos os maiores frios de que há memória, porque o termómetro do álcool chegou um dia a marcar 72 graus abaixo de zero (-58 graus centígrados) e, se me não falha a memória, as mais baixas temperaturas, até hoje observadas pelos viajantes árcticos, foram, apenas, uma de 61 graus na ilha Melville, uma de 65 graus no porto Félix e outra de 70 graus no Forte Reliance (-56 graus centígrados).
- É verdade, fomos detidos por um Inverno bem rude e que veio bem fora de propósito!
- Fostes detidos? - estranhou Altamont, olhando fixo para o capitão.
- Na nossa viagem para oeste, sim - apressou-se a explicar o doutor.
- Assim - tornou Altamont, voltando a entabular a conversação -, a máxima e a mínima de temperatura, que o homem pode aguentar, distam entre si, pouco mais ou menos, duzentos graus?
-Sim - confirmou o doutor. - Um termómetro exposto ao ar livre e abrigado de toda a reverberação, nunca se eleva a mais de 135 graus acima de zero (+57 graus centígrados), assim como também pelos maiores frios nunca desce abaixo de 72 graus (-58 graus centígrados). Por consequência, claro está que podemos viver sem receio.
- Entretanto - lembrou Johnson -, se o Sol se apagasse de repente, porventura não sofreria a Terra um frio mais considerável?
- O Sol não se há-de apagar - afirmou o doutor -, mas ainda que ele viesse a apagar-se, é provável que a temperatura não descesse abaixo do que vos acabei de indicar.
- Essa é curiosa!
- Oh! Bem sei que outrora era doutrina corrente que os espaços para além da atmosfera estavam a uma temperatura de milhares de graus abaixo de zero; mas, depois das experiências do sábio francês Fourier, não houve mais remédio senão abater alguns grauzitos, porque este sábio provou que, se a Terra estivesse situada num meio inteiramente desprovido de calor, a intensidade do frio, que observamos no pólo, seria muito mais considerável e que entre o dia e a noite existiriam diferenças de temperatura formidáveis. Por conseguinte, amigos, a alguns milhares de léguas daqui não faz mais frio do que aqui mesmo.
- Ora dizei-me, doutor - inquiriu Altamont -, não é verdade que a temperatura da América é mais baixa que a dos outros países do mundo?
- É, certamente, mas não seja isso caso donde tireis vaidade - respondeu sorrindo o doutor.
- E como se explica esse fenómeno?
- Tem-se tentado dar explicação dele, mas por forma, a meu ver, pouco satisfatória. Neste intuito, imaginou Halley que a Terra sofrera outrora o choque oblíquo de algum cometa, que lhe mudara a posição do eixo de rotação, isto é, dos pólos. Segundo ele pensava, o Pólo Norte fora outrora situado na baía de Hudson, sendo deslocado pelo choque mais para leste. Assim, as regiões do antigo pólo, por tanto tempo geladas, teriam conservado um frio mais considerável, que nem longos séculos de sol tivessem podido ainda aquecer.
- E vós admitis tal teoria?
- Por forma alguma, porque o que é verdadeiro para a costa oriental da América não o é para a costa ocidental, cuja temperatura é mais elevada. Nada! O que é verdade demonstrada é que as linhas isotérmicas são diferentes dos paralelos terrestres, nada mais.
- Ora quereis saber o que me está parecendo, Sr. Clawbonny? - disse Johnson. - É que é muito agradável falar do frio nas circunstâncias em que nos achamos.
- Exactamente, meu velho Johnson. Estamos no caso de chamar a prática em auxílio da teoria. Estas regiões são um vasto laboratório, onde podem fazer-se experiências muito curiosas acerca das temperaturas baixas; entretanto, bom é andar sempre com prudência e atenção. Se vos gelar alguma parte do corpo, é esfregá-la logo com neve para restabelecer a circulação do sangue; e quando se volta para o pé do lume é preciso cuidado, senão pode-se ficar com as mãos e os pés queimados sem o sentir. Isso então era caso para amputações, e a gente de que deve principalmente aqui tratar é de não deixar ficar nenhum bocado cá pelas regiões boreais. E com esta, amigos, creio que será tempo de ir pedir ao sono algumas horas de repouso.
- Da melhor vontade - concordaram os companheiros do doutor.
- Quem está de guarda ao fogão?
- Eu - respondeu Bell.
- Pois bem, amigo, trata de não deixar esmorecer o lume, que faz esta noite um frio dos diabos.
- Podeis ficar descansado, Sr. Clawbonny. O frio está de rachar, está, e, no entanto, vejam! O céu está todo afogueado.
- É verdade - declarou o doutor, aproximando-se da janela -, é uma aurora boreal lindíssima! Que magnífico espectáculo! Em verdade que me não canso de o contemplar!
E, efectivamente, o doutor admirava sempre aqueles fenómenos cósmicos, a que os companheiros não prestavam grande atenção; demais, o doutor notara que a aparição das auroras boreais era sempre precedida de perturbações da agulha magnética, e acerca desta coincidência estava ele preparando observações destinadas ao «Weather Book»(1).
Dali a pouco, todos, à excepção de Bell, que estava de guarda ao fogão, adormeceram tranquilamente deitados nas respectivas camas.
*1. Livro do tempo do almirante Fitz-Roy, onde estão registados todos os factos meteorológicos.
Avida no pólo é de uma triste uniformidade. Ali, o homem encontra-se inteiramente submetido aos caprichos da atmosfera, que ora traz tempestades, ora intensos frios, mas sempre com desesperadora monotonia. A maior parte das vezes é impossível pôr pé fora de casa, sendo forçoso permanecer encerrado nas choças de gelo. Assim se passam compridos meses, que fazem aos hibernantes uma verdadeira existência de toupeira.
No dia seguinte, o termómetro baixou ainda alguns graus e o ambiente encheu-se de turbilhões de neve, que absorveram toda a claridade do dia. Por consequência, o doutor ficou forçadamente pregado em casa, de braços cruzados. Nada mais havia a fazer do que destapar, ao menos uma vez por hora, o corredor de entrada, que de contrário poderia obstruir-se, e repolir as paredes de gelo, que o calor intenso tornava húmidas. A snow-house, porém, fora construída com grande solidez e os turbilhões de neve vinham ainda acrescentar-lhe a força de resistência, aumentando-lhe a espessura das paredes.
Os armazéns também se aguentavam bem. Todos os objectos que se tinham tirado do navio estavam arrumados na maior ordem naquelas «docas de mercadorias», como lhes chamava o doutor. E, apesar de os armazéns estarem situados apenas a sessenta metros da casa, havia certos dias de drifts em que era quase impossível lá ir. Era por isso necessário ter sempre de reserva, na cozinha, uma certa quantidade de provisões para ocorrer às necessidades de cada dia.
A precaução de descarregar o «Porpoise» fora oportuna. O navio sofria uma pressão lenta, insensível, mas irresistível, que pouco a pouco o esmagava. Claro estava que nada poderia tirar-se dos restos dele. O doutor, no entanto, ainda esperava arranjar uma chalupa qualquer, para regressar a Inglaterra. Não tinha, porém, chegado ainda o momento oportuno de tratar da construção dela.
Nestes termos, a maior parte do tempo os cinco hibernadores estavam em profunda ociosidade. Hatteras cogitava, estendido na cama; Altamont bebia ou dormia, e o doutor guardava-se com todo o cuidado de os arrancar daquela sonolência, porque receava a todo o momento alguma questão desagradável. Os dois capitães, também, raras vezes dirigiam a palavra um ao outro.
Por estas razões, o prudente Clawbonny, à mesa, tinha sempre o maior cuidado em guiar a conversação e em dirigi-la por forma que se evitassem colisões de amor-próprio; mas não tinha pouco que fazer para não deixar disputar aquelas susceptibilidades sobreexcitadas. Procurava quanto possível instruir, distrair ou interessar os companheiros. Quando não estava pondo em ordem os seus apontamentos de viagem, expunha em voz alta algum assunto de história, de geografia ou de meteorologia, que a própria situação tornava mais a propósito; apresentava sempre as coisas de maneira agradável e filosófica, tirando dos menores incidentes lição salutar. A sua memória inesgotável nunca lhe falhava. Fazia aplicação das suas doutrinas às pessoas presentes e, lembrando-lhes um ou outro facto que ocorrera em determinadas circunstâncias, completava sempre as suas teorias com a força de argumentos pessoais.
Pode dizer-se daquele homem estimável que era ele a alma da pequena sociedade, e uma alma de que irradiavam sempre sentimentos de franqueza e de justiça. Os companheiros tinham nele absoluta confiança. Impunha respeito até ao próprio capitão Hatteras, que aliás era amigo dele e deveras. O doutor fazia tanto com as suas palavras, com as suas maneiras e com os seus hábitos, que aquela existência de cinco homens, abandonados a seis graus do pólo, chegava a parecer perfeitamente natural; quando o doutor falava, todos diriam que o estavam ouvindo no seu gabinete de Liverpul.
E, no entanto, que grande diferença entre aquela situação e a desses náufragos arrojados a alguma ilha do Pacífico, desses Robinsons, cuja história interessante faz quase sempre inveja aos leitores! Com efeito, ali, o solo pródigo, a Natureza opulenta, ofereciam mil recursos variados; naquelas belas regiões, com uma pouca de imaginação e algum trabalho, qualquer alcançaria a felicidade material. A Natureza antecipava-se ao homem: a caça e a pesca davam o bastante para satisfazer-lhe todas as necessidades; as árvores vegetavam para ele, as cavernas abriam-se para o abrigar, os regatos corriam para lhe matar a sede; contra os ardores do sol defendiam-no sombras magníficas e naqueles Invernos moderados nunca vinha ameaçá-lo o terrível frio; qualquer semente, lançada negligentemente à terra fecunda, rendia poucos meses depois uma seara inteira. Aquela vida era a felicidade completa, mas fora da sociedade. E, depois, aquelas ilhas encantadas, aquelas terras benéficas, estavam na derrota ordinária dos navios; o náufrago podia sempre alimentar a esperança de ser encontrado, e esperava com paciência que alguém viesse arrancá-lo à sua aventurosa existência.
Ali, porém, naquela costa da Nova América, que diferença!
Esta comparação fazia-a o doutor algumas vezes, mas claro está que a guardava só para si; mas o que sobretudo o fazia desesperar, e até praguejar, era a ociosidade forçada.
Clawbonny desejava, pois, ardentemente, a época do desgelo para recomeçar as suas excursões, e contudo não via sem receio aproximar-se aquele momento, porque previa cenas graves entre Hatteras e Altamont. E se porventura fossem até ao pólo, a que ponto chegaria a rivalidade daqueles dois homens?
Em vista destas reflexões, força era precaver-se para todos os acontecimentos, trazer pouco a pouco aqueles rivais a uma boa harmonia sincera, a uma comunhão franca de ideias; mas reconciliar um americano com um inglês, dois homens que a sua origem comum tornava mais inimigos ainda, um penetrado de toda a arrogância insular, outro do espírito especulador, audacioso e brutal da nação a que pertencia, era tarefa eriçada de sérias dificuldades!
O doutor, quando reflectia na implacável concorrência dos homens e na rivalidade das nacionalidades, se não encolhia os ombros em sinal de desprezo, que era coisa que nunca fazia, pelo menos não podia deixar de olhar com tristeza para as fraquezas humanas.
Por vezes conversara ele acerca deste mesmo assunto com Johnson, que com o velho marinheiro se entendia ele bem a todos os respeitos. Perguntavam então um ao outro qual seria o melhor caminho a seguir, ou por que meios e atenuantes haviam de chegar a seus fins, mas o que entreviam no futuro eram só complicações.
Entretanto o mau tempo ia continuando; não se podia pensar em sair do Forte Providência nem por uma hora sequer. Dia e noite era forçoso permanecer dentro da casa de neve. Todos se aborreciam, excepto o doutor, que achava sempre meio de estar ocupado.
- Com que então não há maneira possível de a gente se distrair? - queixou-se um dia Altamont. - Isto na verdade nem é viver: estarmos nós aqui, como répteis metidos na toca, um Inverno inteiro!
- É verdade - respondeu o doutor -, e desgraçadamente nem sequer estamos em número suficiente para organizar um sistema qualquer de distracções!
- Porquê? - continuou o americano. - Pensais que, se fôssemos mais numerosos, teríamos menos dificuldade em combater a ociosidade?
- Decerto que sim, e a prova é que as tripulações completas que passaram Invernos nas regiões boreais sempre acharam meios de se não aborrecerem.
- Verdade? - estranhou Altamont. - Pois sempre tinha curiosidade de saber o que elas faziam para o conseguir. É preciso que entre elas houvesse espíritos bem engenhosos para que extraíssem alegria de uma situação destas. Quero supor que se não entretinham em inventar e adivinhar charadas.
- Não, mas por pouco - volveu o doutor -, o que elas introduziram nestas regiões hiperbóreas foram as duas grandes fontes de distracção: imprensa e teatro.
- Quê? Pois tinham um jornal? - retorquiu o americano.
- E também representavam? - perguntou Bell.
- Decerto, e encontravam nisso verdadeiro prazer. Por exemplo, o capitão Parry, na sua invernada na ilha Melville, propôs à tripulação estes dois géneros de divertimentos e a proposta teve uma aceitação imensa.
- Para falar com franqueza - disse Johnson -, desejava lá estar; o caso devia ser curioso.
- Curioso e divertido, meu caro Johnson. O tenente Beechey foi arvorado em director do teatro e o capitão Sabine em redactor principal da Crónica de Inverno, ou Gazeta da Jórgia do Norte.
- Bonitos títulos - disse Altamont.
- O jornal apareceu todas as segundas-feiras, desde o dia 1 de Novembro de 1819 até 20 de Março de 1820. Referia todos os incidentes da invernada, caçadas, factos diversos, acidentes, meteorologia e temperatura; continha correspondências mais ou menos chistosas; decerto que não se encontrava ali nem o espírito de Sterne, nem os encantadores artigos do Daily Telegraph, mas, enfim, lá se iam arranjando e distraindo. Os leitores nem eram difíceis de satisfazer, nem tinham o paladar estragado; nunca o ofício de jornalista foi tão agradável de exercer.
- Na verdade - disse Altamont -, tinha curiosidade de conhecer alguns extractos dessa gazeta, caro doutor. Parece-me que os artigos dela deviam ser frios como gelo, desde a primeira até à última palavra.
- Não é assim, não - assegurou o doutor -, mas em todo o caso aquilo que à Sociedade Filosófica de Liverpul pareceria talvez um tanto singelo, era muito suficiente para tripulações enterradas debaixo da neve. Quereis apreciar por vós mesmos?
- Como! Pois para tanto é a vossa memória...
- Não, mas a bordo do «Porpoise» tínheis as viagens de Parry e, portanto, não tenho mais do que ler-vos a narração feita por ele próprio.
- Com muito gosto! - exclamaram os companheiros
do doutor.
- Nada mais fácil.
O doutor foi buscar ao armário da sala a obra citada, e encontrou sem dificuldade a passagem a que se referira.
- Ora ouçam alguns extractos da Gazeta da Jórgia do Norte. Começarei por uma carta dirigida ao redactor principal:
«É com verdadeira satisfação que entre nós foram acolhidas as vossas propostas para fundar um jornal. É convicção minha que, sendo ele por vós dirigido, nos há-de proporcionar bastantes diversões e aliviar consideravelmente o peso dos nossos cem dias de trevas.
Pela minha parte, o interesse que tomo pelo assunto fez com que observasse o efeito do vosso anúncio no conjunto da nossa sociedade, e posso assegurar-vos, servindo-me das expressões consagradas na imprensa de Londres, que esse anúncio produziu profunda sensação no público.
No dia seguinte ao da aparição do vosso prospecto, houve a bordo um pedido de tinta de escrever inteiramente desusado e sem precedentes. Os panos verdes das nossas mesas viram-se de súbito cobertos por um dilúvio de aparos e penas, com grande prejuízo de um dos nossos criados, que ao sacudi-los meteu um entre a unha e o sabugo.
Enfim, sei de boa fonte que o sargento Martinho teve de amolar nada menos de nove canivetes.
As nossas mesas podem ver-se, todas gemendo debaixo do desacostumado peso das carteiras e pastas, que havia dois meses não viam a luz do dia; diz-se até que as profundezas do porão se abriram, mais de uma vez, para dar saída a muita resma de papel, que decerto não esperava sair tão cedo do seu repouso.
Não quero esquecer-me de vos dizer que tenho algumas suspeitas de que alguém tentará meter-vos na caixa artigos que, por falta de carácter de originalidade completa, não podem convir ao vosso plano. Posso afirmar-vos que ontem à noite, não antes, foi visto um certo autor, curvado sobre a sua carteira, tendo numa das mãos um volume aberto do Espectador e com a outra fazendo descongelar a tinta à luz de um candeeiro! Inútil será recomendar-vos que estejais precavido contra semelhantes artifícios; não convém que vejamos reproduzido na Crónica de Inverno o que os nossos avós liam ao almoço, há mais de um século."
- Bem, bem - comentou Altamont, depois de o doutor ter concluído a sua leitura -, há um certo bom humor em tudo isso, há; o autor da carta devia ser um rapaz esperto.
- Esperto, sim, é o termo próprio - respondeu o doutor. - Ora ouçam agora um anúncio que tem a sua graça:
"Deseja-se encontrar uma mulher de meia-idade e de boa conduta, para ajudar na sua toilette as damas da companhia do Teatro Real da Jórgia Setentrional. Dá-se salário razoável e chá e cerveja à discrição. Resposta à comissão do teatro. - N. B. Prefere-se viúva."
- Olhem que não pediam mal, os tais nossos compatriotas, não - disse Johnson.
- E a viúva apareceu? - perguntou Bell.
- Quase que se acredita que sim - respondeu o doutor -, lendo a seguinte resposta, que foi dirigida à comissão administrativa do teatro:
"Senhores: Sou viúva, tenho vinte e seis anos e posso apresentar, em abono dos meus costumes, comportamento e talentos, testemunhos irrecusáveis. Antes, porém, de me encarregar da toilette das actrizes do vosso teatro, desejo saber se elas tencionam conservar vestidas as ceroulas e se me serão fornecidos alguns marinheiros robustos para lhes atacar e apertar convenientemente os espartilhos. Sendo como digo, senhores, podeis contar com a vossa serva. - A. B.
- Ah! Bravo! - exclamou Altamont. - Estou mesmo a ver essas criaturas de dentro a atacar espartilhos a cabrestantes. Mas o caso é que estavam alegres e satisfeitos os tais companheiros do capitão Parry.
- Como todos os que alcançaram os seus fins - respondeu Hatteras.
Hatteras lançara esta observação no meio da conversa e depois recaíra no seu silêncio habitual. O doutor, que não queria insistir no assunto, deu-se pressa em continuar a sua leitura.
- Ora eis aqui agora - disse ele - um quadro das atribulações árcticas. Podia variar-se de infinitos modos. Algumas das seguintes observações, porém, têm todo o fundamento. Ora julgai:
((Sair de manhã para tomar ar e, ao pôr o pé fora do navio, apanhar um banho frio no poço do cozinheiro.
Partir para uma caçada, aproximar-se de um rangífero soberbo, meter a arma à cara, tentar atirar-lhe e experimentar o horrível desengano de a espingarda errar fogo por causa da humidade.
Meter-se a caminho com um bocado de pão mole na algibeira e, quando o apetite se vai fazendo sentir, achar o pão por tal forma endurecido pelo gelo que pode muito bem partir os dentes, mas não ser partido por eles.
Largar precipitadamente da mesa ao ouvir que vai passando um lobo à vista do navio e à volta achar o jantar comido pelo gato.
Voltar do passeio, entregue a profundas e úteis meditações, e ser de súbito arrancado a esse doce cogitar pelos abraços de um urso."
- Como vedes, amigos - acrescentou o doutor -, não havíamos de ter muita dificuldade em imaginar alguns outros dissabores polares. Desde o momento, porém, em que é forçoso sofrer estas misérias, é até um prazer narrá-las.
- Por minha fé - respondeu Altamont - que é um jornal bem divertido a tal Crónica de Inverno. Pena é que nós não possamos ser assinantes dele.
- E se nós tentássemos também fundar um? - sugeriu Johnson.
- Só nós cinco! - disse Clawbonny. - Mal chegávamos para compor a redacção e não ficavam leitores em número suficiente.
- Tantos como espectadores, se na cabeça se nos metesse representar comédias - acrescentou Altamont.
- A propósito, Sr. Clawbonny, dizei-nos alguma coisa do teatro do capitão Parry. Levavam lá peças novas?
- Decerto. A princípio contribuíram para o divertimento dois volumes que tinham vindo a bordo do "Hecla", e havia representações todos os quinze dias; mas dentro em pouco aquele pequeno repertório estava mesmo no fim. Foi então que alguns autores improvisados meteram mãos à obra e até o próprio Parry compôs, para as festas do Natal, uma comédia toda de ocasião, que teve um êxito imenso, e tinha por título: A Passagem do Noroeste ou o Fim da Viagem.
- Era um título famoso, era - declarou Altamont - mas confesso que, se tivesse de escrever sobre tal assunto, havia de ver-me aflito com o desenlace.
- E com razão - afirmou Bell. - Quem sabe como isto acabará?
- Ora! - exclamou o doutor. - Para que há-de a gente estar a pensar no último acto, quando os primeiros correm bem? Deixemos alguma coisa à Providência, amigos. Represente cada um seu papel o melhor que puder e, já que o desenlace pertence ao autor de todas as coisas, tenhamos confiança no talento dEle; tirar-nos de dificuldades pode Ele.
- Ora vamos sonhar com tudo isso - disse Johnson. - É tarde e, visto que já são horas de dormir, toca para a cama.
- Que pressa, meu velho amigo!
- Ora, Sr. Clawbonny, pois se eu me sinto tão bem na minha caminha! E, demais, como tenho por costume ter sonhos agradáveis, sonho com regiões quentes! De maneira que, a falar a verdade, metade da minha vida passa-se no equador e a outra metade no pólo.
- Diacho - gracejou Altamont -, isso é que é uma organização feliz.
- É como dizeis - respondeu o mestre.
- Pois, nesse caso - tornou o doutor -, seria uma crueldade fazer demorar mais tempo o estimável Johnson. Espera por ele o sol dos Trópicos. Vamo-nos deitar.
RASTOS QUE DÃO CUIDADO
Durante a noite de 26 para 27 de Abril o tempo mudou; o termómetro desceu sensivelmente, do que os habitantes de Doctor's House se aperceberam pelo frio que penetrava até debaixo dos cobertores. Altamont, que estava de guarda ao fogão, empregou todo o seu cuidado em não deixar esmorecer o lume, que teve de alimentar abundantemente, para que a temperatura interna se mantivesse a 50 graus acima de zero (+10 graus centígrados).
Este resfriamento era anúncio do fim da tempestade, com o que muito se regozijava o doutor, porque em breve iam recomeçar as ocupações habituais, como a caça, pesca e reconhecimentos de território, o que poria termo àquela solidão ociosa, que acabaria por azedar os génios mais pacíficos.
No dia seguinte, pela manhã, o doutor levantou-se da cama cedo, e abriu caminho através dos gelos amontoados até ao cone do farol.
O vento saltara para norte; a atmosfera estava pura. Os pés encontravam um piso resistente, formado de vastos lençóis brancos.
Dali a pouco os cinco companheiros de invernada tinham saído todos de Doctor's House, e a primeira coisa de que trataram foi de desembaraçar a casa das grandes massas de gelo que a obstruíam. O planalto tinha mudado completamente de aparência; era impossível descobrir ali vestígios sequer de uma habitação. A tempestade enchera as desigualdades do terreno e tudo nivelara; o solo subira quinze pés, pelo menos.
Em primeiro lugar foi necessário proceder ao desaterro das neves, depois dar ao novo edifício uma forma mais arquitectónica, pôr-lhe a descoberto as linhas soterradas e restabelecer-lhe o equilíbrio. Este trabalho, também, não foi muito difícil; varridos os gelos, bastaram alguns golpes de faca de cortar neve para dar de novo às paredes a sua espessura normal.
Ao cabo de duas horas de trabalho aturado, apareceu o fundo de granito, e a entrada dos armazéns de víveres e a do paiol da pólvora tornaram-se praticáveis.
Mas como, naqueles climas vários, podia de um dia para o outro reproduzir-se o mesmo estado de coisas, fez-se nova provisão de comestíveis, que se arrecadaram na cozinha. A necessidade de carne fresca ia-se fazendo sentir nos estômagos sobreexcitados pelo uso permanente dos alimentos salgados. Em consequência do que os caçadores, encarregados de modificar aquele sistema de alimentação excitante, se preparavam para partir.
No entanto, apesar de se estar no fim de Abril, a Primavera polar não chegava; a hora da renovação não soara ainda: faltavam seis semanas, pelo menos. Os raios do Sol, ainda muito fracos, não podiam penetrar as planícies geladas e fazer brotar do solo os enfezados produtos da flora boreal. Nestes termos, era muito para recear que os animais, aves ou quadrúpedes, fossem ainda muito raros. E, todavia, uma lebre, alguns casais de ptarmigans, ou mesmo uma raposinha nova, figurariam com honra à mesa de Doctor's House, e por isso os caçadores resolveram atirar à má cara a tudo quanto lhes passasse ao alcance de tiro.
O doutor, Altamont e Bell encarregaram-se de explorar o terreno. Altamont, a julgar pelos seus hábitos, devia ser caçador destro e destemido, atirador maravilhoso, ainda que um tanto gabarola. Por isso, fez parte do grupo, assim como "Duck", que no seu género não lhe ficava a dever nada, e tinha, além disso, a vantagem de ser menos bazófio.
Os três companheiros de aventuras subiram pelo cone de leste e meteram através daquelas imensas planícies brancas, mas não tiveram que andar muito, porque, a menos de duas milhas do forte, viram logo grande número de rastos, que dali desciam até à praia da baía Vitória, parecendo rodear o Forte Providência de círculos concêntricos.
Os caçadores, depois de terem seguido com grande curiosidade aquelas pegadas, olharam uns para os outros.
- E então!? -disse o doutor. - O caso para mim é muito claro.
- Até de mais - respondeu Bell.- São rastos de urso.
- Excelente caça - declarou Altamont -, mas que hoje, pelo que me parece, peca por uma qualidade.
- Qual? - perguntou o doutor.
- Pela abundância - respondeu o americano.
- Que quer isso dizer? - tornou Bell.
- Quer dizer que há aí rastos, perfeitamente distintos, de cinco ursos, o que é de mais para cinco homens!
- Estais seguro do que afirmais? - inquiriu o doutor.
- Vede e julgai por vós mesmo: aqui está um rasto que nada se parece com aquele além; as garras destas pegadas são muito mais afastadas do que as daquelas ali. Aqui estão pegadas de outro urso muito mais pequeno. Comparai bem e achareis num espaço restrito rastos de cinco animais.
- É evidente - concordou Bell, depois de ter examinado com toda a atenção.
- Nesse caso - aconselhou o doutor -, nada de bravuras inúteis; pelo contrário, haja toda a cautela. Esses animais, no fim de um Inverno rigoroso, devem estar muito esfomeados e podem ser extremamente perigosos. Ora, visto não ser possível duvidar do número deles...
- Nem das intenções - acrescentou o americano.
- Pensais - acudiu o doutor - que descobriram a nossa presença nesta costa?
- Com toda a certeza, a não ser que nós viéssemos cair mesmo no rasto de algum bando de ursos; mas, se assim fosse, porque é que estas pegadas se haviam de alastrar em círculos, em vez de se afastarem a perder de vista? Ora olhem! Estes animais vieram do lado de sueste, pararam aqui, e daqui começaram a reconhecer o terreno.
- Tendes razão - aprovou o doutor -, e até se pode afirmar que vieram esta noite.
- E nas outras noites também, provavelmente; a neve, porém, cobriu as pegadas mais antigas.
- Nada - discordou o doutor -, o que é mais provável é que os ursos esperassem pelo fim da tempestade. Impelidos pela fome vieram para o lado da baía, na intenção de surpreender algumas focas, e foi então que, pelo faro, pressentiram a nossa presença.
- Havia de ser isso mesmo - admitiu Altamont. - Também não é difícil saber se eles voltam esta noite.
- Como? - perguntou Bell.
- Apagando-lhes as pegadas em parte do caminho que seguem. Assim, se amanhã encontrarmos rastos frescos, ficará provado à evidência que o Forte Providência é o alvo a que tendem esses animais.
- De acordo - volveu o doutor -, assim, ao menos, saberemos com que temos de contar.
Em presença de tão conceituoso alvitre, os três caçadores meteram mãos à obra e, raspando a neve, conseguiram em pouco tempo fazer desaparecer as pegadas numa extensão de pouco mais ou menos cem toesas.
- Apesar de tudo - tornou Bell -, ainda me parece singular que essas feras pudessem farejar a nossa presença a semelhante distância. Nós não queimámos nenhuma substância gordurenta de que lhes pudesse dar o cheiro.
- Oh! Não admira - respondeu o doutor -, que os ursos são dotados de uma vista penetrante e de um olfacto muito subtil; além disso, são muito inteligentes, para não dizer os mais inteligentes de todos os animais. Por isso farejaram logo por aqui alguma coisa fora do costume.
- E, demais - acrescentou Bell -, quem nos diz que eles durante a tempestade não viessem ao planalto?
- Se assim fora, porque haviam eles esta noite de ter parado neste limite?
- Sim, isso não tem resposta - declarou o doutor -, e o que devemos crer é que eles hão-de ir apertando, pouco a pouco, o círculo das suas indagações em volta do Forte Providência.
- Ver-se-á - concluiu Altamont.
- Agora toca a continuar a marcha - decidiu o doutor -, mas olho aberto sempre!
Os caçadores velaram com toda a atenção, porque podia recear-se que por detrás de algum montículo de gelo estivesse de emboscada algum urso; por vezes até tomaram penhas gigantescas pelo animal cuja alvura e dimensões a penha efectivamente possuía. Mas, por fim de contas, com grande satisfação de todos, estes sustos não passaram de ilusões.
Afinal desceram de novo a meia vertente do cone e alargaram debalde a vista desde o cabo Washington até à ilha Johnson.
Nada viram. Tudo estava imóvel e branco; nem um só ruído, nem um estalido. Regressaram à casa de neve.
Comunicaram-se as diferentes ocorrências que relatámos a Hatteras e a Johnson e assentou-se em vigiar com a mais escrupulosa atenção. Veio a noite e nada perturbou a esplêndida calmaria, nada se fez ouvir que pudesse ser indício da aproximação de um perigo.
No dia seguinte, logo ao romper da manhã, Hatteras e os companheiros, bem armados, marcharam a reconhecer o estado da neve. Encontraram rastos idênticos aos da véspera, mas a menor distância. Era evidente que o inimigo tomava as suas disposições para sitiar o Forte Providência.
- Abriram a segunda paralela - disse o doutor.
- E até fizeram uma incursão mais para a frente - acrescentou Altamont. - Olhem-me estes passos, que se adiantam cá para o lado do planalto e são de um animal possante!
- É verdade, os tais ursos vão-se aproximando de nós pouco a pouco - disse Johnson. - Está claro que têm tenção de nos atacar.
- Isso já não é caso de dúvida - afirmou o doutor. - Evitemos, porém, ser vistos, que não estamos em força para combater com bom resultado.
- Mas onde poderão estar metidos esses malditos ursos? - exclamou Bell.
- Por detrás de algumas penhas de gelo a leste, donde provavelmente nos estão espreitando. Cuidado, não vamos nós aventurar-nos imprudentemente!
- E a caçada? - lembrou Altamont.
- Adiemo-la para daqui a alguns dias - respondeu o doutor. - Apaguemos novamente os rastos mais próximos e amanhã, pela manhã, veremos se estão renovados. Deste modo estaremos sempre ao facto das manobras dos nossos inimigos.
Seguiu-se o conselho do doutor e todos voltaram logo a aquartelar-se no forte; a presença das temíveis feras era obstáculo a toda e qualquer excursão. Os arredores da baía Vitória foram vigiados com cuidado. Deitou-se abaixo o farol, que, não tendo então utilidade alguma, podia ter o inconveniente de atrair a atenção dos animais; guardaram-se em casa a lanterna e os fios eléctricos. E em seguida, cada um por seu turno, fez sentinela no planalto superior.
Novos aborrecimentos, outra vez a solidão! Mas que remédio! Como proceder de outro modo? Não era possível arriscarem-se a uma luta tão desigual, porque a vida de cada um era em extremo preciosa para ser imprudentemente jogada. E daí talvez que os ursos, não vendo nada, perdessem a pista e se apresentassem isoladamente durante alguma excursão, podendo então ser atacados com probabilidades de bom êxito.
Aquela inacção, contudo, era temperada por um interesse novo: era necessário estar de vigia, e a verdade é que ninguém desgostava de estar um pouco alerta.
O dia 28 de Abril passou-se sem que o inimigo desse sinal de existência. No dia seguinte tratou-se de reconhecer os rastos com vivo sentimento de curiosidade, seguido de exclamações de espanto.
Na neve, que ao longe desenrolava o seu branco tapete intacto, não se via uma só pegada.
- Bem! - exclamou Altamont. - Os ursos sempre perderam a pista! Não souberam ter perseverança! E agora vamos à caça!
- Eu sei lá! - replicou o doutor. - Para mais segurança, amigos, peço ainda mais um dia de vigilância. Certo é que o inimigo esta noite não voltou, ao menos por este lado...
- Façamos uma inspecção em toda a roda do planalto, - propôs Altamont -, que assim ficaremos sabendo ao certo o que há de novo.
- Com muito gosto - concordou o doutor.
Mas, por mais que se examinasse com o maior cuidado toda a área compreendida num raio de duas milhas, não foi possível encontrar o menor vestígio dos animais.
- Então? Vamos à caça ou não? - insistiu o impaciente Altamont.
- Esperemos sempre para amanhã - respondeu o doutor.
- Pois seja para amanhã - anuiu Altamont, a quem custava a resignação.
Voltaram todos para o forte. Apesar de tudo, como na véspera, cada um teve, por espaço de uma hora, de ocupar o posto de observação.
Quando chegou a vez de Altamont, foi este substituir Bell no cume do cone.
Logo que o americano saiu, Hatteras chamou os companheiros para o pé de si. O doutor largou o seu caderno de apontamentos e Johnson as suas fornalhas.
Era de crer que Hatteras iria falar dos perigos da situação, mas nem de tal se lembrou.
- Amigos - começou ele -, aproveitemos a ausência desse americano para falarmos dos nossos negócios. Coisas há com que ele nada tem e em que eu não admitiria que ele se metesse.
Os interlocutores do capitão entreolharam-se, como quem não sabia aonde ele queria chegar.
- Desejo - continuou Hatteras - entender-me convosco acerca dos nossos planos de futuro.
- Bem, bem - respondeu o doutor -, visto que estamos sós, conversemos.
- Dentro de um mês, ou, o mais tardar, dentro de seis semanas - prosseguiu o capitão -, voltará o tempo próprio das grandes excursões. Já pensastes no que convirá que tentemos durante o Estio?
- E vós, capitão? - perguntou Johnson.
- Eu, por mim, posso dizer que não se passa uma só hora da minha vida que me não encontre em frente da minha ideia. Suponho que nenhum de nós tem tenção de voltar para trás?...
Esta insinuação não teve resposta imediata.
- Pela minha parte - tornou Hatteras -, ainda que vá só, hei-de ir até ao Pólo Norte. Estamos a trezentas e cinquenta milhas dele, quando muito. Nunca homem algum esteve tão próximo desse lugar desejado e eu não hei-de perder uma ocasião destas sem ter tentado tudo, até o impossível. Quais são os vossos projectos a este respeito?
- Os mesmos que os vossos - retorquiu com vivacidade o doutor.
- E os vossos, Johnson?
- Os do doutor - respondeu o mestre.
- Pertence-vos agora a vós falar, Bell?
- Capitão - pronunciou-se o carpinteiro -, nós não temos família à nossa espera em Inglaterra, é verdade, mas, enfim, a pátria sempre é a pátria! Pois ainda não pensais em lá regressar?
- O regresso tão bem se há-de fazer depois da descoberta do pólo como antes. Melhor até. As dificuldades não hão-de ter aumentado, porque, à medida que subirmos para o norte, ir-nos-emos afastando dos pontos mais frios do Globo. Provisões e combustível temos nós ainda para muito tempo. Por consequência, nada há que nos possa deter e seria até um crime não ir até ao fim.
- Pois bem - respondeu Bell-, somos todos da vossa opinião, capitão.
- Bem, prosseguiu Hatteras. - Também nunca duvidei de vós. Havemos de colher feliz resultado, amigos, e à Inglaterra caberá toda a glória dos nossos sucessos.
- Mas entre nós está um americano - lembrou Johnson.
Hatteras, ao ouvir esta observação, não pôde conter um grito de cólera.
- De mais o sei - disse, com voz grave.
- Não podemos abandoná-lo aqui - tornou o doutor.
- Não! Não podemos! - declarou maquinalmente Hatteras.
- E há-de ir connosco, decerto!
- Há-de ir! Há-de ir! Mas quem comandará?
- Vós, capitão.
- E se vós me obedecerdes, amigos, esse ianque recusar-se-á porventura a obedecer?
- Cuido que não - respondeu Johnson -, mas, enfim, suponhamos que ele não queira submeter-se às vossas ordens?
- Nesse caso, o negócio será entre mim e ele.
Os três ingleses calaram-se e olharam para Hatteras. O doutor é que tornou a entabular a conversação, perguntando:
- E como viajaremos nós?
- Seguindo, quanto possível, a costa - explicou Hatteras.
- E se encontrarmos o mar livre, como é aliás provável?
- Passa-se.
- Mas como? Se não temos embarcação... Hatteras não respondeu. Era visível que estava embaraçado.
- Talvez se pudesse construir uma chalupa com os destroços do "Porpoise" - sugeriu Bell.
- Isso nunca! - exclamou Hatteras com violência.
- Nunca! - acompanhou Johnson.
O doutor meneava a cabeça, mas compreendia a repugnância do capitão.
- Nunca - tornou este a dizer. - Uma chalupa feita de madeira de um navio americano seria americana!...
- Mas, capitão... - ia Johnson a dizer.
O doutor, porém, fez sinal ao velho mestre para que não insistisse naquele momento. Aquele assunto devia ficar reservado para ocasião mais oportuna. O doutor compreendia todas as repugnâncias de Hatteras, mas não as partilhava, e, por consequência, logo formou tenção de fazer com que o seu amigo revogasse aquela decisão tão absoluta.
Neste intuito começou a falar de outros assuntos, tais como da possibilidade de remontar directamente pela costa até ao norte, e desse ponto ignoto do Globo que se chama pólo boreal.
Em suma, do que ele tratou foi de se escapar aos pontos perigosos da conversação, até ao momento em que esta terminou de súbito com a entrada de Altamont.
O americano nada vira que merecesse dar sinal.
E assim terminou o dia; a noite passou-se tranquilamente. Era evidente que os ursos tinham desaparecido.
A PRISÃO DE GELO
No dia seguinte pensou-se em organizar uma caçada em que deviam tomar parte Hatteras, Altamont e o carpinteiro. Os rastos assustadores não tinham reaparecido e os ursos, decididamente, haviam desistido do seu projecto de ataque, quer por medo daqueles inimigos desconhecidos, quer porque alguma coisa nova lhes tivesse revelado a presença de seres animados dentro daquela mole de neve.
O doutor ficou encarregado de, durante a ausência dos três caçadores, tentar uma avançada até à ilha Johnson, para reconhecer o estado dos gelos e levantar alguns planos hidrográficos. O frio era então extremamente agudo. Os hibernadores, porém, já o aguentavam bem, porque traziam a epiderme acostumada àquelas temperaturas exageradas.
O mestre devia ficar em Doctor's House; numa palavra, ficava encarregado de guardar a casa.
Os três caçadores fizeram os seus preparativos para partir; armou-se cada um deles com uma espingarda de dois canos raiados e balas cónicas. Levaram uma pequena provisão de pemmican, para o caso de serem surpreendidos pela noite antes de terminada a excursão. Não lhes esqueceu também a inseparável faca de cortar neve, que é o utensílio mais indispensável daquelas regiões, e da cinta da japona de pele de gamo de cada um deles pendia uma machadinha.
Assim equipados, vestidos e armados, podiam ir longe, e, destros e audaciosos como eram, deviam ter como certo o bom resultado da caçada.
Às oito da manhã estavam prontos e partiam. "Duck" ia na frente do grupo, aos pulos. Subiram a colina de leste, deram volta por detrás do cone do farol e meteram através das planícies do sul limitadas por Bell-Mount.
O doutor, por sua parte, depois de ter combinado com Johnson um sinal de alarme em caso de perigo, desceu à praia, dirigindo-se para as penhas de gelo multiformes de que estava coalhada a baía Vitória.
O mestre ficou no Forte Providência só, mas não ocioso. Começou por dar a liberdade aos cães gronelandeses, que estavam inquietos em Dog's Palace; os animais mostraram-se muito satisfeitos e foram logo rebolar-se pela neve. Em seguida ocupou-se Johnson das complicadas minudências do arranjo interior.
Havia necessidade de renovar combustível e provisões, de pôr em ordem os armazéns, de consertar muito utensílio quebrado, de dar passagem em muitos cobertores rasgados, de fazer mais calçado para as longas excursões do Estio. Não faltava que fazer e o mestre em tudo trabalhava com aquela habilidade de marinheiro a que nenhuma espécie de ofício manual é completamente estranha.
Enquanto estava trabalhando, ia Johnson reflectindo na conversa da véspera. Pensava no capitão e sobretudo na obstinação, aliás muito heróica e muito honrosa, com que ele se opunha a que um americano, ou mesmo uma chalupa americana, alcançasse antes dele ou com ele o pólo do mundo.
- Lá passar o oceano sem barco é que não será fácil - dizia ele para consigo - e se em frente de nós encontrarmos o mar largo não haverá mais remédio senão navegar. A nado é que ninguém pode andar trezentas milhas, ainda que seja o melhor inglês deste mundo. O patriotismo tem limites. Enfim, veremos. Ainda temos tempo diante de nós e o Sr. Clawbonny ainda não disse tudo quanto tinha a dizer acerca do assunto. E ele tem habilidade; é homem até para fazer com que o capitão desista da sua. Era capaz de apostar que na sua excursão para a banda da ilha sempre há-de dar uma vista de olhos aos destroços do "Porpoise", para ficar sabendo ao certo o que deles se pode fazer.
Estava Johnson nesta altura das suas reflexões, e haveria meia hora que os caçadores tinham saído do forte, quando, a duas ou três milhas a sotavento, retumbou uma detonação forte e bem distinta.
- Bom - disse consigo o velho marinheiro. - Os homens encontraram alguma coisa e não foram longe, que os tiros ouvem-se distintamente. E daí, quem sabe, a atmosfera está tão pura!
Segunda detonação e logo terceira repetiram-se uma atrás da outra.
- Vamos lá - continuou Johnson -, que parece que a deram em cheio.
Ouviram-se mais tiros e a menor distância.
- Seis tiros! - exclamou. - Agora têm eles todas as armas descarregadas. O negócio foi rijo! Querem ver que?...
E tal foi o pensamento que lhe ocorreu que Johnson mudou de cor. Num momento saiu de casa e trepou com rapidez a encosta até ao cume do cone. O que ali viu fê-lo estremecer e exclamou:
- Os ursos!
Os três caçadores regressavam, seguidos de "Duck", correndo a bom correr, perseguidos por cinco animais gigantescos, que as seis balas não tinham logrado derribar; os ursos corriam mais velozes que os homens. Hatteras, que ia na retaguarda, para conseguir manter a distância entre eles e os animais, arremessava-lhes pouco a pouco o barrete, a machadinha e até a espingarda. Os ursos, segundo o seu costume, paravam para cheirar o objecto que lhes lançavam para lhes iludir a curiosidade, e perdiam um pouco aquele terreno sobre o qual seriam capazes de passar adiante ao cavalo mais veloz.
Hatteras, Altamont e Bell conseguiram chegar, por aquele meio, ainda que ofegantes de tão rápida corrida, junto de Johnson; do alto do talude deixaram-se todos escorregar até à casa de neve.
Os cinco ursos vinham mesmo em cima deles. O capitão teve até de aparar com a faca um golpe de garra, que um dos animais lhe atirou com violência.
Hatteras e os companheiros fecharam-se dentro da casa num abrir e fechar de olhos. Os animais tinham parado no planalto superior formado pela truncatura do cone.
- Enfim! - exclamou Hatteras. -Aqui, e cinco contra cinco, sempre nos poderemos defender com mais vantagem!
- Quatro contra cinco! - exclamou Johnson com voz de aterrado.
- Como assim?
- Falta o doutor! - respondeu Johnson, mostrando a sala vazia.
- E onde está?!
- Para as bandas da ilha!
- Desgraçado! - exclamou Bell.
- Não podemos abandoná-lo assim - disse Altamont.
- Corramos!-bradou Hatteras.
E abriu logo a porta, mas mal teve tempo de a fechar, que lhe ia um urso esmagando o crânio com as garras.
- Estão aqui! -exclamou o capitão.
- Todos? - perguntou Bell.
- Sim, todos!
Altamont correu logo a encher os vãos das janelas com pedregulhos de gelo arrancados das paredes da casa. Todos os companheiros lhe seguiram o exemplo sem dar palavra. O silêncio era apenas interrompido pelo latir surdo de "Duck".
Força é, porém, que se diga que aqueles homens não tinham senão um único pensamento; esqueciam o próprio perigo, não pensavam senão no doutor. Dele, não de si próprios, cuidavam. Pobre Clawbonny! Tão bondoso, tão dedicado, ele que era a alma daquela pequena colónia! Era a primeira vez que se viam sem ele; e aguardavam-no talvez gravíssimos perigos, uma morte horrorosa, porque, terminada que fosse a excursão que empreendera, o doutor havia de regressar tranquilo ao Forte Providência, onde se acharia em presença daqueles ferocíssimos animais. E não havia meio de o prevenir!
- No entanto - opinou Johnson -, ou eu estou muito enganado, ou o doutor deve estar de sobreaviso; porque tantos tiros seguidos devem forçosamente tê-lo advertido de que ocorreu algum acontecimento extraordinário.
- E se ele nessa ocasião estava longe - sugeriu Altamont -, e se porventura não compreendeu? Em suma, há oito probabilidades a favor contra duas de que regressará sem suspeitar sequer do perigo! Os ursos estão encobertos pela escarpa do forte; nem ao menos pode avistá-los a distância!
- Pois então é forçoso que nos desfaçamos dessas perigosas feras, antes que o doutor volte - respondeu Hatteras.
- Mas como? - acudiu Bell.
A resposta a esta pergunta não era fácil. Tentar uma surtida parecia coisa impraticável. Apesar do cuidado que houvera em obstruir de barricadas o corredor de entrada, os ursos, se disso se lembrassem, facilmente podiam vencer esses obstáculos; e as feras, não só estavam perfeitamente conhecedoras da força e do número de adversários que iam encontrar, como tinham toda a facilidade de ir ter com eles.
Os prisioneiros haviam-se distribuído por todas as casas de Doctor's House com o intuito de vigiar qualquer tentativa de invasão; aplicando o ouvido às paredes, ouviam os ursos a andar para um e outro lado, grunhindo surdamente, e raspando com as enormes patas as paredes de neve.
E, no entanto, era forçoso fazer coisa que valesse, que o tempo apertava. Altamont resolveu abrir uma seteira para por ela atirar aos assaltantes. Poucos minutos lhe foram necessários para escavar na parede de gelo uma espécie de buraco, por onde introduziu a espingarda; porém, mal a arma tinha passado para a parte de fora, foi-lhe arrancada das mãos com incrível violência, sem que tivesse tempo sequer para disparar.
- Diabo! - exclamou ele. - Dificilmente levaremos a melhor.
E tratou logo de tapar a seteira.
Durava aquela situação havia já uma comprida hora, sem que coisa alguma fizesse presumir que haveria de ter um termo. Tornaram a discutir-se os riscos da surtida, que, não se podendo combater os ursos um a um, eram evidentemente gravíssimos. Hatteras e os companheiros, com pressa de pôr termo àquela situação, e, força é dizê-lo, envergonhadíssimos da sua posição de prisioneiros de feras, estavam para tentar um ataque directo quando o capitão imaginou um novo meio de defesa.
Pegou no poker(1) de que Johnson se servia para atiçar o lume das fornalhas e meteu-o no braseiro do fogão; em seguida fez uma escavação na parede de neve, mas sem a furar completamente, por forma que conservasse pelo lado de fora uma delgada camada de gelo.
Os companheiros estavam a ver o que ele fazia. Quando o poker chegou ao rubro branco, Hatteras explicou-lhes:
- Esta vara incandescente vai servir-me para repelir os ursos, porque lhe não podem pegar, e neste meio tempo é fácil pela seteira dar-lhes uma descarga cerrada, sem que eles nos possam arrancar as armas.
- Bem imaginado! - exclamou Bell, postando-se junto de Altamont.
Hatteras então tirou o poker do lume e enterrou-o rapidamente na parede. A neve, com o contacto do ferro em brasa, evaporou-se com um silvo de ensurdecer. Vieram logo dois ursos, que se agarraram à barra incandescente, e que soltaram terríveis uivos no momento em que retumbavam umas sobre outras quatro detonações.
- Apanharam! - exclamou o americano.
- Apanharam! - repetiu Bell.
- Outra vez - recomendou Hatteras, tapando momentaneamente a abertura.
Meteu-se o poker na fornalha; ao cabo de poucos minutos estava outra vez em brasa.
Altamont e Bell retornaram para o seu lugar, já com as armas carregadas; Hatteras tornou a abrir a escavação e por ela cravou de novo o poker incandescente.
O poker, porém, encontrou, desta vez, impenetrável obstáculo.
- Maldição! - exclamou o americano.
- Que há? - perguntou Johnson.
- O que há?! Há que esses animais malditos acumulam penhas sobre penhas de gelo,
*1. Vara de ferro que serve para atiçar o lume.
para nos entaiparem dentro de casa e nos enterrarem vivos!
- Não é possível!
- Ora vede se o poker pode atravessar a grossura da parede! Isto por fim acaba até por ser ridículo!
Pior que ridículo, era o caso assustador. A situação ia cada vez a pior. Os ursos, como animais extremamente inteligentes que são, empregavam aquele meio para dar cabo da suspirada presa por sufocação, e amontoavam penhas sobre penhas de gelo, para que qualquer tentativa de fuga fosse irrealizável.
- É duro! - disse o velho Johnson, com ar extremamente mortificado. - Ser assim tratado por homens, vá, com mil diabos, mas por ursos!
Depois desta reflexão, duas horas decorreram sem que se realizasse mudança na situação dos prisioneiros. O projecto de surtida era então impraticável; as paredes, mais espessas agora, impediam que lá dentro se ouvisse quaisquer ruído exterior. Altamont passeava agitado, como todo o homem audacioso que se exaspera quando encontra um perigo superior à sua coragem.
Hatteras pensava com terror no doutor e nos graves perigos que o aguardavam quando regressasse.
- Ai! - exclamou Johnson. - Se o Sr. Clawbonny aqui estivesse!...
- E então?! Que havia de fazer? - inquiriu Altamont.
- Oh! Ele alguma coisa havia de inventar para nos tirar desta.
- Mas como? - insistiu o americano, zangado.
- Se eu soubesse como - respondeu Johnson -, não precisava dele cá. No entanto, parece-me que adivinho o conselho que ele nos daria neste momento.
- Qual?
- Que comêssemos alguma coisa! O que decerto nos não faria mal. Pelo contrário. Que dizeis a isto, Sr. Altamont?
- Pois comamos se isso vos dá gosto. Mas a situação realmente é estúpida, para não dizer humilhante.
- Aposto que depois de jantar havemos de encontrar meio de sair dela.
Ninguém respondeu ao mestre, mas todos se puseram à mesa.
Johnson, que tinha a escola do doutor, tentou mostrar-se filósofo, mas não deu rego; as chalaças ficavam-lhe atravessadas na garganta. Demais a mais, os prisioneiros começavam então a sentir-se todos incomodados; o ar, dentro daquela casa hermeticamente fechada, ia-se tornando cada vez mais denso; o ambiente não podia refazer-se pelas chaminés das fornalhas, que tinham má tiragem, e fácil era de prever que, dentro de um espaço de tempo muito limitado, se havia de apagar o lume. Em breve o oxigénio absorvido pelos pulmões e pelo foco calorífico estaria substituído pelo ácido carbónico, cuja influência mortal é conhecida.
Hatteras foi o primeiro a quem ocorreu este novo perigo e não quis ocultá-lo aos companheiros.
- Nesse caso é necessário sair daqui, custe o que custar! - respondeu Altamont.
- Sim - concordou Hatteras -, mas esperemos pela noite. Faz-se então uma abertura no tecto, por onde se renovará a nossa provisão de ar. Um de nós fica de sentinela à abertura e por ela faz fogo sobre os ursos.
- É a única coisa que há a fazer - aprovou o americano.
Combinado isto, esperou-se a ocasião de tentar a aventura. Durante as horas que se seguiram, Altamont desatou numa série de imprecações contra um estado de coisas em que, segundo ele dizia, dados alguns ursos e outros tantos homens, não eram os segundos, mas sim os primeiros, que desempenhavam melhor papel.
A MINA
Caiu a noite. A lâmpada da sala começava já a empalidecer naquele ambiente pobre de oxigénio. Às oito horas fizeram-se os últimos preparativos. Carregaram-se as armas com todo o cuidado e tratou-se de fazer a abertura no tecto da snow-house.
Durava já este trabalho havia alguns minutos e desempenhava-se dele com toda a destreza o carpinteiro, quando Johnson, saindo do quarto das camas, em que estava de observação, veio à pressa ter com os companheiros.
O velho marinheiro parecia inquieto.
- Que tendes? - perguntou-lhe o capitão.
- Que tenho? Nada - respondeu Johnson, hesitando -, e no entanto...
- Mas, enfim, que há? - interrogou Altamont.
- Caluda! Pois não ouvis um ruído singular?
- De que lado?
- Dali. Na parede do quarto decerto há novidade.
Bell suspendeu o trabalho e todos se puseram à escuta.
Efectivamente ouvia-se um ruído distante, que parecia produzido na parede lateral. Era evidente que alguém fazia uma abertura no gelo.
- Estão escavando! - afirmou Johnson.
- Não há a menor dúvida - respondeu Altamont.
- Serão os ursos? - disse Bell.
- São os ursos, são! - declarou o americano.
- É que mudaram de táctica - tornou o velho marinheiro. - Desistiram de nos asfixiar.
- Ou porque já nos julgam asfixiados! - rugiu Altamont, inteiramente dominado pela cólera.
- Não tarda que sejamos atacados - disse Bell.
- Pois que venham - respondeu Hatteras -, que lutaremos braço a braço.
- Antes isso! Com um milheiro de diabos! - exclamou Altamont. - Que já estou mais que farto desses inimigos invisíveis! Ver-nos-emos e lutaremos.
- Sim - volveu Johnson -, mas não a tiro: que neste espaço tão apertado não é possível.
- Pois será a machado ou à faca!
O ruído ia aumentando; ouvia-se já distintamente o arranhar das garras. Os ursos tinham escolhido, para atacar a parede, justamente o canto em que ela ligava com o talude de neve que encostava ao rochedo.
- O animal que está escavando - informou Johnson -, encontra-se agora a menos de seis pés de nós.
- Tendes razão, Johnson - disse o americano -, mas temos ainda tempo de sobra para nos preparar para o receber!
Altamont, com o machado numa das mãos e a faca na outra, firmando-se no pé direito e com o corpo inclinado para trás, estava já em posição de ataque. Hatteras e Bell imitaram-no. Johnson preparou a espingarda para o caso de lhe ser necessário fazer uso da arma de fogo.
O ruído era cada vez mais intenso; o gelo arrancado estalava com a valente incisão das garras de aço.
Por fim só uma delgada crusta separava o assaltante dos adversários; de repente fendeu esta crusta como o papel tendido no arco pelo esforço do clown, e na se-miobscuridade da casa surgiu um corpo negro, enorme.
Altamont levantou logo o braço armado, para ferir.
- Suspendei, por Deus! - gritou uma voz bem conhecida.
- É o doutor! O doutor! - exclamou Johnson.
E efectivamente era o doutor, que, arrastado pelo próprio peso, veio rebolando até ao meio da casa.
- Ora vivam, meus caros amigos! -cumprimentou o recém-chegado, levantando-se num ápice.
Os companheiros ouviram-no estupefactos. À estupefacção, porém, sucedeu a alegria; todos queriam apertar nos braços o estimável Clawbonny. Hatteras estava extremamente comovido e por muito tempo o conservou unido ao peito em apertado abraço; o doutor respondeu-lhe com um cordial aperto de mão.
- Como foi isto! Vós aqui, Sr. Clawbonny!-exclamou o mestre.
- Eu mesmo, Johnson, e estava decerto com mais cuidado na vossa sorte do que vós poderíeis estar na minha.
- Mas como soubestes que estávamos sendo assaltados por um bando de ursos? - perguntou Altamont. - O que nós mais receávamos era que voltásseis com todo o descanso para o Forte Providência, sem suspeitar sequer do perigo.
- Nada! Eu tinha visto tudo - esclareceu o doutor. - Os tiros que destes puseram-me de sobreaviso. Nessa ocasião estava junto dos destroços do "Porpoise"; trepei logo a um hummock e vi os cinco ursos que corriam já muito perto de vós. Ai! Que medo tive por vossa causa! Mas, afinal, o vosso pulo do alto da colina e a hesitação dos animais deram-me alento, ao menos momentaneamente, porque compreendi que tínheis tido tempo para vos entrincheirardes dentro da casa. Foi então que me fui a pouco e pouco aproximando, ora de rastos, ora esgueirando-me por entre as penhas de gelo, e assim cheguei, afinal, junto do forte, onde vi as enormes feras trabalhando como grandes castores, revolvendo a neve, amontoando penhas sobre penhas, enfim, tratando de vos entaipar vivos. E ainda assim foi uma felicidade que eles se não lembrassem de soltar penhas de gelo do cimo do cone, senão é que ficáveis esmagados sem mais remédio...
- E vós - interrompeu Bell -, Sr. Clawbonny, porventura estáveis em segurança? Pois eles não podiam abandonar a empresa e voltar-se contra vós?
- Ora! Nem em tal pensavam! Os cães gronelandeses, que Johnson tinha soltado, vieram muitas vezes a pequena distância, e eles nem se lembravam de lhes dar caça. Nada, julgavam ter segura mais saborosa presa.
- Muito obrigado pelo cumprimento - disse Altamont, sorrindo.
- Oh! Não há razão para se ufanar. Logo que eu percebi a táctica dos ursos, resolvi vir juntar-me convosco. Por prudência, era forçoso esperar pela noite; por consequência, logo ao cair das primeiras sombras do crepúsculo, fui-me esgueirando até ao talude, para a banda do paiol da pólvora. Quando escolhi este ponto, cá tinha a minha ideia, que era abrir dali uma galeria. Por isso, meti logo mãos à obra e ataquei o gelo com a minha faca de cortar neve, famoso instrumento, na verdade! Por espaço de três horas furei, cavei, trabalhei, e eis-me aqui cheio de fome, extenuado, mas junto de vós...
- Para partilhar a nossa sorte?
- Para salvar a todos; mas dai-me uma pouca de bolacha e um pedaço de carne, senão caio de inanição.
Dali a um instante já o doutor estava roendo com os seus brancos dentes num belo pedaço de carne salgada. Mas, ao passo que ia comendo, mostrava-se disposto a responder à multidão de perguntas que lhe dirigiam.
- Salvar-nos! -dissera Bell.
- Certamente - assegurou o doutor, abrindo saída à sua resposta com um esforço vigoroso dos músculos estafilinos.
- Efectivamente - admitiu Bell -, visto que o Sr. Clawbonny cá veio ter, também nós nos podemos ir pelo mesmo caminho.
- Ora essa! - discordou o doutor. - E deixar o campo livre a essa maldita canalha, que acabaria por descobrir os nossos armazéns e saqueá-los!
- Não há remédio senão permanecer aqui - afirmou Hatteras.
- Com certeza - respondeu o doutor -, mas não é menos necessário desembaraçar-nos desses animais.
- Então há algum meio? - perguntou Bell.
- E um meio seguro - volveu o doutor.
- Bem o dizia eu - exclamou Johnson esfregando as mãos. - Com o Sr. Clawbonny não há situações desesperadas; no seu alforge de sábio há sempre alguma invenção.
- Oh! Oh! O meu pobre alforge está bem vazio, mas, enfim, esquadrinhando bem...
- Doutor - lembrou Altamont -, não poderão os ursos penetrar por essa galeria que escavastes?
Altamont teve a fortuna de caçar um búfalo
- Não, porque eu tive o cuidado de lhe tapar a abertura exterior com toda a segurança. Nós é que podemos agora ir daqui ao paiol da pólvora sem que eles sequer suspeitem disso.
- Bem! E agora dir-nos-eis, afinal, de que meios contais servir-vos para nos livrar dessas perigosas visitas?
- De um meio bem simples e para o qual está já feita parte do trabalho.
- Como assim?
- Vê-lo-eis. Mas já me ia esquecendo de que não vim para aqui sozinho.
- Que quereis dizer com isso? - perguntou Johnson.
- Que trago ali um companheiro, que desejo apresentar-vos.
E, assim falando, o doutor tirou da galeria o cadáver de uma raposa morta recentemente.
- Uma raposa! - exclamou Bell.
- Foi o que pude apanhar esta manhã - disse o doutor -, e vereis que nunca se matou raposa mais a propósito.
- Mas, enfim, quais são os vossos desígnios? - insistiu Altamont.
- Meteu-se-me em cabeça - elucidou o doutor - fazer voar pelos ares os ursos todos, por meio de cem libras de pólvora.
Olharam todos para o doutor, surpreendidos.
- E a pólvora? - perguntaram alguns.
- Está no armazém.
- E o armazém?
- Vai-se lá por este canal. Quando eu me dei ao trabalho de escavar uma galeria de dez toesas de comprido, não foi sem motivo. Bem podia eu atacar o parapeito a menor distância da casa, mas se o não fiz é porque cá tinha a minha ideia.
- Mas, enfim, essa mina, onde pretendeis estabelecê-la? - perguntou o americano.
- Em frente mesmo do nosso talude, isto é, no ponto que está mais afastado da casa, do paiol e dos armazéns.
- E como atrair lá os ursos todos a um tempo?
- Isso corre por minha conta - afirmou o doutor. - Basta de palavreado, mãos à obra. Temos uns cem pés de galeria a abrir esta noite; o trabalho é de estafar, mas entre nós cinco, revezando-nos, havemos de chegar ao fim. Bell que comece, que enquanto ele for trabalhando descansaremos nós um bocado.
- Por Deus! - exclamou Johnson. - Quando mais reflicto no meio proposto pelo Sr. Clawbonny, mais excelente se me afigura.
- Seguro é ele - garantiu o doutor.
- Oh! Desde o momento em que vós o afirmais, considero os ursos como mortos. Parece-me até que estou já a sentir as peles deles às costas.
- Pois então, mãos à obra!
O doutor meteu-se pela escura galeria dentro e Bell acompanhou-o. Onde passasse o doutor estavam os companheiros seguros de estar à larga. Os dois mineiros chegaram ao paiol da pólvora e foram dar ao meio dos barris, arrumados em boa ordem. O doutor deu a Bell todas as indicações necessárias. O carpinteiro atacou a parede oposta a que o talude encostava, e o companheiro voltou para casa.
Bell trabalhou por espaço de meia hora e abriu um canal de pouco mais ou menos dez pés de comprido, pelo qual se podia caminhar de rastos. Ao cabo deste tempo foi substituí-lo Altamont, que ao mesmo tempo fez obra aproximadamente igual. A neve que se tirava da galeria era transportada para a cozinha, onde o doutor a fazia derreter ao lume para ocupar menos lugar.
Ao americano seguiu-se o capitão, depois Johnson. Em dez horas, isto é, até às oito da manhã, a galeria estava completamente aberta.
Às primeiras claridades da aurora, o doutor foi espreitar os ursos por uma fresta, que abriu na parede do armazém da pólvora. Os pacientes animais não tinham ainda largado o lugar. Ali estavam, passeando ora para um, ora para outro lado, grunhindo sempre, mas, em suma, fazendo a sua sentinela com exemplar perseverança, em roda da casa, que desaparecera debaixo das penhas de gelo amontoadas. Chegou, porém, um momento em que os animais deram mostras de se lhes ter gasto de todo a paciência, porque o doutor viu-os em acção de levantarem as penhas de gelo que tinham acumulado.
- E esta! - disse ele ao capitão, que então estava junto dele. - Estão com ares de quem quer demolir a própria obra e chegar até nós. Mas esperem lá um bocadinho! Que antes disso daremos cabo deles. Em todo o caso, o que não se pode é perder um só instante.
O doutor, então, arrastou-se até ao ponto onde devia abrir-se a mina, e fez ampliar ali a galeria até atingir toda a largura e toda a altura do talude. Dali a pouco só restava, na parte superior, uma crusta de gelo de um pé de espessura, quando muito. Até foi necessário especá-la para que não aluísse!
Serviu de espeque uma estaca bem firmada no solo de granito; no topo desta amarrou-se o cadáver da raposa e, à sua parte inferior, uma comprida corda, que se desenrolava através da galeria até ao paiol.
Os companheiros do doutor obedeciam-lhe às ordens, apesar de lhes não perceberem inteiramente o alcance.
- Aqui está a isca - disse Clawbonny, mostrando-lhes a raposa.
E fazendo rolar para junto da estaca uma barrica que poderia conter umas cem libras de pólvora:
- E aqui está a mina - acrescentou então.
- E nós - perguntou Hatteras -, não iremos também pelos ares juntamente com os ursos?
- Não! Porque estaremos a boa distância do lugar da explosão; e, demais, a nossa casa é sólida. Se por acaso aluir alguma coisa, o mais que teremos a fazer será reedificá-la.
- Bem - respondeu Altamont - e agora como pretendeis operar?
- Eu explico: puxando por esta corda cai o espeque que aguenta a crusta de gelo por cima da mina; aparece de súbito o cadáver da raposa fora do talude e, nesta hipótese, sem dificuldade admitireis que, animais esfomeados por um prolongado jejum, não hesitarão em se arremessar sobre esta presa.
- De acordo.
- Pois bem, nós podemos deitar fogo à mina quando nos convier, instantaneamente e sem perigo.
- Hurra! - exclamou Johnson.
- Hurra! - repetiram os companheiros, sem se importarem que os ouvissem ou não os inimigos.
Desenrolaram-se imediatamente os fios eléctricos pela galeria, desde a casa até à câmara da mina. Uma das extremidades de cada fio estava enrolada na pilha, a outra ia mergulhar no centro da barrica de pólvora, onde os dois extremos dos fios ficaram a pequena distância.
Às nove da manhã estava tudo concluído; e era tempo, porque os ursos já se entregavam com fúria à sanha da demolição.
O doutor entendeu que era chegado o momento. Mandou Johnson para o paiol da pólvora e encarregou-o de puxar a corda que prendia ao espeque. O mestre foi logo para o seu posto, dizendo:
- Se é preciso um homem de boa vontade, ofereço-me eu, e do coração.
- É inútil, meu estimável amigo - respondeu o doutor, estendendo a mão ao velho mestre -, as nossas cinco existências são todas preciosas e todas serão poupadas, graças a Deus.
- Nesse caso - disse o americano - desisto de adivinhar.
- Ora digam-me cá - tornou o doutor, sorrindo -, se a gente não soubesse sair de uma entaladela destas, de que nos servia ter estudado física?
- Ah! Sim! - disse Johnson, com ar de júbilo. - Física!
- Física, sim! Pois não está aí uma pilha eléctrica, com fios condutores de comprimento bastante, esses mesmos que serviram para o farol?
- E então?!
- E então, no momento oportuno, dá-se fogo à mina e fazem-se ir a um tempo pelos ares os convivas e o festim.
- Bem! Bem! - exclamou Johnson, que escutava a conversa com vivo interesse.
Hatteras, que depositava absoluta confiança no seu amigo, não pedia explicações de qualidade alguma. Esperava. Altamont, porém, queria que lhe explicassem tudo em pormenor.
- Ó doutor - tornou ele - e como calculeis a duração da mecha com precisão tal que a explosão rebente exactamente no momento oportuno?
- Muito simplesmente - respondeu o doutor -, nada calculando.
- Então, tendes alguma mecha de cem pés de comprido?
- Não.
- Fareis então simplesmente um rastilho de pólvora?
- Nada! Que podia errar fogo.
- Então será necessário que alguém se sacrifique a ir lançar fogo à mina?!
- Agora - disse o doutor aos companheiros - é preparar as armas para o caso em que os assaltantes não caiam mortos à primeira, e postarem-se todos junto de Johnson. Logo que rebente a explosão, saia tudo para fora.
- Está dito - respondeu o americano.
- E agora fizemos tudo quanto homens podem fazer! Ajudámo-nos! Deus nos ajudará.
Hatteras, Altamont e Bell encaminharam-se para o paiol. O doutor ficou só junto da pilha.
Dali a pouco ouviu-se à distância a voz de Johnson, que gritava:
- Atenção!
- Tudo vai bem - respondeu-lhe Clawbonny. Johnson então puxou pela corda com força; a corda cedeu, arrastando consigo a estaca; imediatamente depois o velho marinheiro correu à fresta e olhou para fora.
A superfície do talude abatera e o corpo da raposa aparecia superior aos destroços de gelo. Os ursos, a princípio surpreendidos, não tardaram a arremessar-se em grupo compacto sobre aquela nova presa.
- Fogo! - exclamou Johnson.
O doutor estabeleceu imediatamente a corrente eléctrica entre os fios; de súbito rebentou uma explosão formidável. A casa oscilou como se houvera um tremor de terra; as paredes racharam. Hatteras, Altamont e Bell precipitaram-se para fora do armazém da pólvora, prontos a fazer fogo.
As armas, porém, eram inúteis: dos cinco ursos, quatro, apanhados pela explosão, caíram por diferentes pontos, feitos em bocados, completamente desfigurados, mutilados e carbonizados; o quinto, meio assado, fugia a bom fugir. - Hurra! Hurra! Hurra! - clamaram os companheiros de Clawbonny, que se lhes lançou, sorrindo, nos braços.
A PRIMAVERA POLAR
Os prisioneiros estavam livres. A sua alegria manifestou-se por cordiais demonstrações e vivos agradecimentos ao doutor.
O velho Johnson teve imensa pena de se perderem as peles dos ursos, pois elas haviam ficado queimadas e impróprias para qualquer serviço. Este ponto negro, porém, não influiu sensivelmente sobre o bom humor do velho marinheiro.
Passou-se o dia a restaurar a casa de neve, que muito se tinha ressentido da explosão. Desentulharam-na das penhas de gelo, acumuladas pelos animais, e repararam-lhe as paredes. O trabalho fez-se com rapidez, à voz do mestre, que cantava canções tão bonitas que era um gosto ouvi-lo.
No dia seguinte, a temperatura melhorou notavelmente, o termómetro, em virtude de um salto repentino do vento, subiu a 15 graus acima de zero (-9 graus centígrados). Tanto os homens como as coisas sentiram vivamente aquela diferença tão considerável.
A brisa do sul trouxe consigo os primeiros indícios da Primavera polar.
Aquele calor relativamente grande persistiu por espaço de muitos dias; o termómetro, abrigado do vento, chegou até a marcar 31 graus acima de zero (-1 grau centígrado); começaram a manifestar-se alguns sintomas de desgelo.
O gelo começava a fender; aqui e ali rebentavam jorros de água salgada, semelhantes aos repuxos de um parque inglês.
Poucos dias depois, choveu com grande abundância.
Das neves elevava-se um vapor intenso; era sinal de bom agouro, que pressagiava o próximo derretimento daquelas moles imensas. O pálido disco do Sol tendia a colorir-se cada vez mais e traçava espirais mais alongadas acima do horizonte; a noite durava então três horas apenas.
Outro sintoma, não menos significativo, era virem chegando, aos bandos, ptarmigans, gansos boreais, tarambolas e galinholas: o ar ia-se, pouco a pouco, enchendo dos mesmos gritos atroadores de que ainda se recordavam os navegadores da última Primavera. Fizeram também a sua aparição, nas praias da baía, muitas lebres, a que se deu caça com bom resultado, e ratos árcticos, cujas pequenas tocas formavam um sistema de alvéolos regulares.
O doutor fez notar aos companheiros que a quase todos aqueles animais começava a cair a pelagem ou a pena branca do Inverno, para se revestirem com as suas toilettes de Verão; "primaverizam-se" a olhos vistos, ao passo que a Natureza deixava que começasse a brotar o alimento deles debaixo da forma de musgos, papoulas, saxífragas e gazão anão. Sentia-se que, por debaixo daquelas neves em decomposição, brotava já uma nova e completa existência.
Com os animais inofensivos, porém, vieram também os famintos inimigos destes. Raposas e lobos acudiam em cata de presas, e durante a curta obscuridade das noites ressoavam lúgubres uivos.
O lobo daquelas regiões é parente muito chegado do cão; ladra como ele e até por vezes de modo que engana o ouvido mais fino, o da raça canina, por exemplo. Conta-se até que os lobos árcticos usam daquele estratagema para atrair os cães e devorá-los. Este facto foi observado nas terras da Baía de Hudson, e o doutor pôde verificar a exactidão dele na Nova América. Johnson teve o cuidado de não dar plena liberdade aos cães de tiro, que podiam muito bem deixar-se cair no laço.
"Duck", esse era mestre e fino de mais para que se fosse meter na boca do lobo.
Durante quinze dias caçou-se muito; as provisões de carnes frescas foram sempre abundantes; mataram-se perdizes, ptarmigans e hortulanas de neve, que proporcionavam um alimento delicioso. Os caçadores pouco se afastaram do Forte Providência. Pode dizer-se que a caça miúda vinha por si própria oferecer-se aos tiros e pela sua presença dava grande vida àquelas silenciosas plagas. A baía Vitória apresentava um aspecto desusado, que alegrava a vista.
Nos quinze dias que se seguiram ao grande caso dos ursos, empregou-se o tempo nestas diferentes ocupações. O desgelo fazia já visíveis progressos; o termómetro subiu de novo a 32 graus acima de zero (0 graus centígrados); as torrentes começaram a mugir nas ravinas, e nas vertentes das colinas surgiram mil improvisadas catadupas.
O doutor desobstruiu e limpou um acre de terreno e lançou-lhe sementes de agriões, de azedas e de cocleária, plantas cuja influência antiescorbútica é excelente. Estava ele já a ver sair da terra pequenas folhas verdejantes, quando, de repente e com inconcebível rapidez, reapareceu o frio, como rei e senhor no seu império.
Numa só noite, por efeito de uma fresca brisa de norte, o termómetro baixou perto de quarenta graus, ficando assim a 8 graus abaixo de zero (-22 graus centígrados). Tudo gelou. Aves, quadrúpedes e anfíbios desapareceram como que por encanto; os buracos das focas fecharam-se, as fendas da superfície gelada desapareceram, o gelo readquiriu a sua dureza granítica e as catadupas, apanhadas pelo frio na queda, coalharam em longos pendículos de cristal.
Foi esta uma verdadeira cena de visualidade mágica, que se realizou na noite de 11 para 12 de Maio. A coisa chegou a ponto que, quando Bell, de manhã cedo, deitou o nariz de fora, por aquela gelada fulminante, ia-o lá deixando.
- Oh, natureza boreal - exclamou o doutor, um tanto mortificado -, que assim fazes das tuas! E, daí, o mal não é grande! Tenho de fazer de novo as minhas sementeiras.
Hatteras tomava as coisas com menos filosofia, tanta era a pressa que tinha de tornar a empreender as suas explorações. Era, porém, forçoso resignar-se.
- Durará muito tempo esta temperatura? - perguntou Johnson.
- Não, meu amigo, não - respondeu Clawbonny -, isto é o último golpe do frio! Bem deveis compreender que, estando ele aqui em sua casa, não se deixa pôr fora sem resistência.
- E defende-se bem - afirmou Bell, esfregando a cara.
- É verdade! Mas eu é que já devia esperar por esta - replicou o doutor -, e não sacrificar as minhas sementes como qualquer ignorante, e com tanta mais razão que, em rigor, podia muito bem fazê-las nascer junto das fornalhas da cozinha.
- Ora essa - interveio Altamont -, pois vós devíeis prever esta mudança de temperatura?
- Certamente, e mesmo sem ser feiticeiro! Tinha obrigação de entregar as minhas sementes à protecção imediata de São Mamede, de São Pancrácio e de São Sérvio, cujos dias são a 11, 12 e 13 deste mês.
- Ora essa, doutor! - exclamou Altamont. - Sempre hei-de querer que me digais que influência podem ter esses três santos na temperatura?
- Têm-na e até muito grande, se dermos crédito aos horticultores, que lhes chamam "os três santos de gelo".
- E porquê, se me fazeis favor?
- Porque, geralmente, no mês de Maio realiza-se um resfriamento periódico, cujo mínimo de temperatura cai quase sempre entre 11 e 13 deste mês. É um facto, o caso é esse.
- E, na verdade, bem curioso. E tem explicação? - perguntou ainda Altamont.
- Tem duas até. Explica-se pela interposição de uma grande quantidade de asteróides, nesta época do ano, entre a Terra e o Sol, ou simplesmente pela dissolução das neves que, ao derreterem-se, necessariamente absorvem grande quantidade de calor. Ambas estas causas são plausíveis; mas deverão elas ser admitidas absolutamente? Não sei; mas, por não estar seguro acerca do valor da explicação, nem por isso o deveria estar menos da autenticidade do facto e não devia esquecê-lo, nem arriscar as minhas plantações.
O doutor dizia bem. Ou por uma ou por outra razão, o frio foi extremamente intenso durante o resto do mês de Maio; foi forçoso interromper as caçadas, não tanto por causa do rigor da temperatura, como por causa da ausência completa de caça. Por fortuna, a reserva de carne fresca não estava esgotada, nem coisa que com isso se parecesse.
Os hibernadores ficaram, por consequência, condenados mais uma vez à inactividade. Por espaço de quinze dias, desde 11 a 25 de Maio, o monótono viver dos viajantes foi apenas assinalado por um único incidente: uma doença grave, uma angina membranosa, que inopinadamente prostrou na cama o carpinteiro. O doutor, à vista das amígdalas inchadíssimas e cobertas de falsas membranas do enfermo, não teve a menor dúvida acerca da natureza da terrível enfermidade; ali, porém, estava ele no seu elemento, e a doença, que por certo não contara com tal adversário, foi prontamente debelada. O tratamento que Bell seguiu foi muito simples e a farmácia não estava longe. Contentou-se o doutor em mandar meter na boca do doente alguns pedacitos de gelo; dali a poucas horas a inchação começou a declinar e as falsas membranas desapareceram. Vinte e quatro horas depois, já Bell estava de pé. Como todos se maravilhassem da medicação do doutor, este explicou:
- Aqui é a terra das anginas, e então bom é que o remédio esteja perto do mal.
- O remédio, e principalmente o médico - acrescentou Johnson, em cujo espírito o doutor ia assumindo proporções colossais.
Enquanto duraram estes novos ócios, resolveu Clawbonny ter com Hatteras uma conversação importante, no intuito de o fazer reconsiderar acerca da resolução de meter-se de novo a caminho para o norte sem levar uma chalupa, um barco, um lenho ao menos, enfim uma coisa qualquer em que se transpusesse os braços de mar e os estreitos. O capitão, tão absoluto nas suas ideias, pronunciara-se formalmente contra o emprego de uma embarcação feita dos destroços do navio americano.
O doutor ainda não sabia como havia de entrar no assunto, apesar de ser de importância que aquele ponto fosse decidido prontamente, porque dali a pouco, com o mês de Junho, vinha a época própria das grandes excursões. Afinal, e depois de pausada reflexão, Clawbonny, um dia, chamou Hatteras de parte e, com o seu ar de doce bondade, perguntou-lhe:
- - Tendes-me por amigo verdadeiro, Hatteras?
- Decerto - respondeu com vivacidade o capitão -, até pelo melhor, e mesmo pelo único.
- E se eu vos der um conselho - continuou o doutor -, conselho aliás não pedido, tê-lo-eis por desinteressado?
- Sim, porque sei que o interesse pessoal nunca foi o vosso guia; mas aonde quereis chegar com esses rodeios, doutor?
- Já lá vamos, Hatteras. Quero ainda fazer-vos uma pergunta mais. Tendes-me ou não na conta de um bom inglês, como vós, e de ambicioso de glória para a minha pátria?
Hatteras olhou fixo para o doutor, com ar de surpresa, e respondeu:
- Tenho - ao passo que com o olhar inquiria o fim de tanta pergunta.
- Pois bem; querendo vós ir até ao Pólo Norte - prosseguiu o doutor -, ambição que perfeitamente concebo e partilho até, entendo que para chegar aos vossos fins é forçoso empregar os meios necessários.
- E então? Porventura não tenho até hoje sacrificado tudo ao bom resultado da minha tentativa?
- Não, Hatteras, porque ainda lhe não sacrificastes as vossas repugnâncias pessoais, e até, neste mesmo momento, vos estou vendo prestes a recusar os meios indispensáveis para ir até ao pólo.
- Ah! Entendo! - volveu Hatteras. - Quereis falar dessa chalupa, desse homem...
- Ora atendei, Hatteras, discutamos sem paixão, com toda a frieza. Examinemos a questão por todos os lados. A costa em que hibernamos pode muito bem não ser contínua; nada nos demonstra que ela se prolongue ainda para o norte numa extensão de seis graus. Se as indicações que nos trouxeram até aqui têm fundamento, nos meses de Estio devemos encontrar uma vasta extensão de mar livre.
Ora, em presença do oceano Árctico, desobstruído de gelos e propício a uma fácil navegação, que havemos de fazer, se nos faltarem meios de o atravessar? Hatteras não respondeu.
- Quereis, porventura, achar-vos a algumas milhas do Pólo Norte sem poder lá chegar?
Hatteras encostara a cabeça às mãos.
- Examinemos agora a questão pelo lado moral - continuou o doutor. - Compreendo que um inglês sacrifique vida e fazenda para dar à Inglaterra uma glória mais! Mas porque um batel feito de meia dúzia de pranchas arrancadas a um navio americano, a uma embarcação naufragada e sem valor, abicou à nova costa ou percorreu o oceano desconhecido, será isso razão que ofusque ou diminua a honra e glória do descobridor? Pois se tivésseis encontrado vós mesmo, nestas plagas, o casco de um navio abandonado, hesitaríeis, porventura, em fazer uso dele? E, demais, perguntarei eu agora: uma chalupa construída por quatro ingleses, tripulada por quatro ingleses, não será inglesa, desde a quilha até à amurada?
Hatteras permanecia silencioso.
- Nada - disse Clawbonny -, franqueza, franqueza, o que mais vos preocupa não é a chalupa, não; é o homem.
- Sim, doutor, é verdade - confessou o capitão. - Esse americano, odeio-o, com todo o ódio com que um inglês é capaz de odiar, esse homem que a fatalidade arremessou ao meu caminho...
- Para vos salvar!
- Para me perder! Estou sempre imaginando que está a escarnecer de mim, que fala aqui como quem manda, que cuida ter na mão os meus destinos e que adivinhou os meus projectos. Porventura não se descobriu ele inteiramente quando se tratou de pôr nomes a estas terras novas? Confessou ele já o que viera fazer a estas latitudes? Nem vós, nem pessoa alguma é capaz de me tirar da cabeça uma ideia que me mata: é que esse homem é o chefe de uma expedição de descoberta organizada pelo Governo da União.
- Mas ainda que assim fosse, Hatteras, o que é que nos prova que essa expedição tinha por fim ir até ao pólo? Não pode a América tentar, como a Inglaterra, a passagem do noroeste? Em todo o caso, o que é positivo é que Altamont ignora absolutamente os vossos projectos, porque nem Johnson, nem Bell, nem vós, nem eu, dissemos a tal respeito uma única palavra diante dele.
- Pois bem, que continue a ignorá-los hoje e sempre!
- Mas necessariamente há-de acabar por conhecê-los, pois que o não podemos deixar aqui só.
- E porquê? - perguntou o capitão com certa violência. - Porventura não pode ele ficar no Forte Providência?
- Nisso não consentia ele, Hatteras; e, depois, abandonarmos esse homem, sem a certeza de o encontrarmos quando voltássemos, seria mais que imprudência, seria falta de humanidade. Altamont há-de ir connosco, é forçoso que vá! Porém, como é inútil, por agora, despertar-lhe ideias que lhe não ocorrem, não se diz nada e constrói-se uma chalupa aparentemente destinada a reconhecer essas plagas novas.
Hatteras não podia decidir-se a aceder às ideias do doutor, e este continuava esperando uma resposta, que não vinha.
- E se esse homem recusar o seu consentimento para que lhe desmanchemos o navio?
- Neste caso, toda a razão estaria do vosso lado; e, quer ele consentisse quer não, construía-se a chalupa, sem que ele tivesse nada que replicar.
- Ora queira Deus que ele recuse! - exclamou Hatteras.
- Para haver recusa - argumentou o doutor -, é preciso haver primeiro pedido; esse encarrego-me eu de o fazer.
Efectivamente, naquela mesma noite, à ceia, Clawbonny encaminhou a conversa para certos projectos de excursões durante os meses do Estio, destinadas a levantar o plano hidrográfico das costas.
- Suponho que vireis connosco, Altamont? - disse o doutor.
- Decerto - respondeu o americano -, que é necessário que saibamos até onde se estende esta terra da Nova América.
Enquanto o americano assim respondia, Hatteras olhava fixo para o seu rival.
- E para conseguirmos esse fim - continuou Altamont - é necessário dar o melhor destino possível aos destroços do "Porpoise", construindo com eles uma chalupa segura e que nos leve longe.
- Ouviste, Bell? - disse o doutor com vivacidade. - É necessário já amanhã meter mãos à obra.
A PASSAGEM DO NOROESTE
No dia seguinte, Bell, Altamont e o doutor dirigiram-se para onde estava o "Porpoise". Madeira não faltava; a antiga chalupa do navio, apesar de arrombada pelo choque das penhas de gelo, podia ainda fornecer as peças principais da nova embarcação. Por consequência, o carpinteiro meteu imediatamente mãos à obra, para construir, como era necessário, uma embarcação, simultaneamente capaz de aguentar todo o mar e bastante ligeira para poder ser transportada no trenó.
Nos últimos dias de Maio a temperatura elevou-se; o termómetro volveu ao ponto de congelação; a Primavera voltou, e agora de vez, a ponto que os hibernadores tiveram de despir os fatos de Inverno.
As chuvas foram então frequentes e a neve começou a aproveitar os menores declives do terreno para correr em catadupas e cascatas.
Hatteras não pôde conter a sua satisfação ao ver que os campos de gelo davam os primeiros sinais de descongelação. O mar livre representava para ele a liberdade.
Esperava agora saber, ao certo, se os que o haviam precedido naquelas regiões se tinham ou não enganado acerca do grande problema da existência de uma bacia polar, de que dependia inteiramente o bom êxito da sua empresa.
Uma noite, depois de um dia bastante calmoso, em que mais manifestos se tornaram os sintomas de decomposição nos gelos, o capitão trouxe à tela da discussão a interessante questão do mar livre, repetindo a série de argumentos que lhe eram habituais, e encontrando, como sempre, no doutor, um partidário caloroso da sua doutrina. E, também, as conclusões de Hatteras não deixavam de ter algum fundamento. - É evidente - dizia ele - que, se em frente da baía Vitória o oceano se desobstrui de gelos, também a sua parte meridional deve ficar livre até à Nova Cornualha e até ao canal da Rainha. Penny e Belcher assim o viram e decerto viram bem.
- Sou da vossa opinião, Hatteras - respondeu o doutor -, e, demais, nada havia que nos autorizasse a pôr em dúvida a boa fé desses ilustres navegadores; debalde se tentaria dar explicação da descoberta deles por efeito de miragem. Se eles não estivessem certos do facto não o asseverariam com tanta firmeza.
- Sempre assim pensei - declarou Altamont, entrando então na conversa. - A bacia polar não só se estende para oeste, mas também para leste.
- Efectivamente, assim devemos supô-lo - respondeu Hatteras.
- Devemos supô-lo, sim - acrescentou o americano -, porque esse mar livre, que os capitães Penny e Belcher viram perto das costas da terra de Grinnel, também Morton e o capitão Kane o avistaram no estreito que tem o nome deste ousado homem de ciência!
- Como não estamos no mar de Kane - retorquiu Hatteras, com secura -, não podemos verificar o facto.
- Pelo menos é permitido supô-lo verdadeiro.
- Isso decerto - acudiu o doutor, que tratava de evitar discussões inúteis. - O que Altamont pensa deve ser verdade, porque, a não haver disposição particular nos terrenos circundantes, nas mesmas latitudes produzem-se naturalmente os mesmos efeitos. Por consequência, eu creio tanto na existência do mar livre a oeste como a leste.
- Seja como for, pouco nos importa! - disse Hatteras.
- Não é tanto assim; penso eu, Hatteras - tornou o americano, que começava a exaltar-se com a afectada indiferença do capitão -, que a coisa pode vir a ter para nós certa importância! - E em que caso, fareis favor de mo dizer?
- Quando pensarmos em regressar.
- Em regressar! - exclamou Hatteras. - E quem pensa aqui em tal?
- Ninguém - disse Altamont -, mas, enfim, nós sempre havemos de parar em alguma parte, suponho eu.
- Então, onde? - perguntou Hatteras.
Era a primeira vez que tal pergunta era directamente feita ao americano. O doutor daria de bom grado um braço para suspender de repente a discussão.
Como Altamont não respondia, o capitão dirigiu-lhe de novo a mesma pergunta.
- Então, onde? - disse com insistência.
- Onde quer que vamos! - respondeu tranquilamente Altamont.
- E quem sabe onde nós vamos? - inquiriu o doutor, querendo conciliar.
- Em todo o caso - insistiu Altamont -, o que eu afirmo é que, se quisermos aproveitar para o regresso a bacia polar, deveremos tentar alcançar o mar de Kane, que mais directamente nos levará ao mar de Baffin.
- Cuidais isso? - volveu ironicamente o capitão.
- Cuido sim, assim como cuido também que, se algum dia se tornarem praticáveis estes mares boreais, será por esse caminho mais directo que lá se há-de ir. Oh! A descoberta do Dr. Kane foi na realidade uma grande descoberta, não há que duvidar!
- Na verdade! - proferiu Hatteras, mordendo os lábios até deitarem sangue.
- É verdade - afirmou o doutor -, ninguém o pode negar; forçoso é que acatemos o mérito de cada um.
- Devendo demais a mais notar-se - insistiu o teimoso americano - que antes deste célebre navegador ninguém avançara tão profundamente para o norte.
- Dar-me-eis licença que afirme que, ao menos agora, sempre os ingleses lhe levam a palma!
- E os americanos! - acrescentou Altamont.
- Os americanos! - estranhou Hatteras.
- Então que serei eu? - perguntou Altamont com altivez.
- Vós! - exclamou Hatteras com intonação de cólera mal contida. - Vós sois um homem que pretende atribuir ao acaso e à ciência parte igual na glória! O vosso capitão americano penetrou longe para o lado do norte, é verdade; porém, só o acaso...
- O acaso! - exclamou Altamont. - Pois vós ousais dizer que Kane não deveu à sua energia e ao seu grande saber a valiosa descoberta que realizou?
- Digo, e repito - replicou Hatteras - que o nome de Kane nem é nome que se profira num país ilustrado pelos Parry, pelos Franklin, pelos Ross, pelos Belcher e pelos Penny; nestes mares que abriram a passagem do noroeste ao inglês Mac Clure...
- Mac Clure! - triplicou vivamente o americano. - Pois vós citais o nome desse homem e ousais levantar-vos contra os favores do acaso? Pois não seria só o acaso que o favoreceu?
- Não - respondeu Hatteras, exaltando-se -, não! Foi a sua coragem, foi a sua obstinação em passar quatro Invernos no meio dos gelos...
- Forte dúvida! - comentou o americano. - Estava preso, não podia voltar para trás e até acabou por abandonar o seu navio, o "Investigator", para voltar a Inglaterra.
- Amigos meus... - interveio o doutor.
- E demais - continuou Altamont, interrompendo-o -, deixemos o homem e atendamos só ao resultado. Falais da passagem do noroeste, não é verdade? Pois bem, essa passagem ainda está por descobrir!
Hatteras, ao ouvir esta frase, deu um pulo. Nunca questão mais irritante tinha surgido entre duas nacionalidades rivais!
O doutor tentou ainda intervir, e declarou:
- Não tendes razão, Altamont.
- Não é assim! Sustento a minha opinião - insistiu o teimoso. - A passagem do noroeste está ainda por encontrar ou por transpor, se vos agrada mais este termo! Mac Clure nunca navegou essa passagem, e até hoje, ouso afirmá-lo, ainda navio algum saído do estreito de Béringue chegou directamente ao mar de Baffin!
Absolutamente falando, o facto era verdadeiro. Que se poderia responder ao americano?
Hatteras, todavia, levantou-se e afirmou:
- Não posso consentir, não devo consentir que em minha presença se continue a menosprezar a glória de um capitão inglês!
- Não podeis consentir - respondeu o americano, levantando-se também -, mas os factos aí estão, e o vosso poder não vai até ao ponto de os destruir.
- Senhor! - exclamou o capitão Hatteras, branco de cólera.
- Meus amigos - tornou o doutor -, mais algum sossego! Lembrai-vos de que discutimos um ponto científico!
Onde estavam empenhados o ódio de um inglês e de um americano, não queria o bom Clawbonny ver mais que uma discussão de pura ciência.
- Os factos vou eu dizê-los - continuou Hatteras em tom de ameaça, e não querendo ouvir mais nada.
- E eu também hei-de falar! - retorquiu o americano.
Johnson e Bell não sabiam que fazer nem que dizer para apaziguar os ânimos.
- Senhores - interveio de novo o doutor, com vigor -, permiti-me que tome a palavra! Que o quero eu. Os factos conheço-os eu tão bem como vós, melhor que vós, e decerto concordareis comigo que eu ao menos posso falar a tal respeito com imparcialidade.
- Sim! Sim! - acudiram Bell e Johnson, que começavam a estar inquietos com o caminho que a discussão ia tomando, e deram o apoio da maioria ao doutor.
- Falai, Sr. Clawbonny - convidou Johnson. - Estes senhores ouvem e todos ganhamos em instrução.
- Pois muito bem, que fale o doutor! - concedeu Altamont.
Hatteras voltou para o seu lugar, fazendo um sinal de assentimento, e cruzou os braços.
- Vou contar-vos os factos em toda a sua verdade - continuou o doutor -, e podereis avisar-me, amigos, se eu omitir ou alterar a circunstância mais insignificante.
- Conhecemo-vos, Sr. Clawbonny - declarou Bell. - Podeis contar sem receio algum.
- Eis aqui o mapa dos mares do pólo - tornou o doutor, que se levantara para ir buscar os documentos da causa. - É fácil seguir aqui a navegação de Mac Clure e podereis ser juízes com conhecimento do assunto.
O doutor desenrolou em cima da mesa um daqueles mapas publicados por ordem do Almirantado, que contêm as mais modernas descobertas realizadas nas regiões árcticas. Em seguida prosseguiu nos seguintes termos:
- Como sabeis já, em 1848, dois navios, um o "Herald", capitão Kellet, outro o "Plover", comandante Moore, foram mandados ao estreito de Béringue para tratar de encontrar ali vestígios de Franklin. As suas buscas foram completamente infrutuosas. Em 1850 foi encontrar-se com eles Mac Clure, que comandava o "Investigator", navio em que acabava de fazer a campanha de 1849, às ordens de James Ross. Era seguido pelo seu chefe, o capitão Collinson, que navegava a bordo da "Entreprise", mas passou-lhe adiante e, logo que chegou ao estreito de Béringue, declarou que não esperaria mais e que partiria só, debaixo da própria responsabilidade, e, ouvi bem isto, Altamont, que havia de descobrir Franklin ou a passagem.
Altamont não deu sinal de aprovação nem de desaprovação.
- A 5 de Agosto de 1580 - continuou o doutor -, depois de ter comunicado pela última vez com o "Plover", Mac Clure meteu pelos mares de leste dentro, seguindo uma derrota quase desconhecida. Ora vede, nestas latitudes mal estão indicadas algumas terras neste mapa.
«A 30 de Agosto avistava o jovem oficial o cabo Bathurst; a 6 de Setembro descobria a terra de Baring, que depois reconheceu fazer parte da terra de Banks, em seguida a terra do Príncipe Alberto. Tomou então resolutamente por aquele comprido estreito, que separa estas duas grandes ilhas, e a que deu o nome de estreito do Príncipe de Gales. Entremos nele por pensamentos com o valente navegador! Esperava ele ir desembocar na baía de Melville, que nós atravessámos, e tinha razão para o esperar.
Os gelos, porém, na extremidade do estreito, opuseram-lhe insuperável obstáculo. Mac Clure, então, detido na sua marcha, inverna de 1850 para 1851 e, neste meio tempo, corta através do banco de gelo, a certificar-se da comunicação do estreito com a baía de Melville.
- Sim - admitiu Altamont -, mas não o navegou.
- Esperai um pouco - pediu o doutor. - Durante esta invernada percorreram os oficiais de Mac Clure as costas vizinhas, Creswell, a terra de Baring, Haswell. a terra do Príncipe Alberto ao sul, e Wynniat, o cabo Walker ao norte. Em Julho, por ocasião dos primeiros desgelos, Mac Clure tentou pela segunda vez levar o "Investigator" à baía de Melville. Consegue chegar a vinte milhas dela, vinte milhas apenas! Os ventos, porém, arrastam-no ínvencivelmente para o sul, sem que ele possa forçar o obstáculo. Decide-se então a descer novamente o estreito do Príncipe de Gales e a contornar a terra de Banks, para tentar pelo lado do oeste o que não pudera realizar pelo lado de leste. Vira de bordo. Avista, a 18, o cabo Kellet e, a 19, o cabo do Príncipe Alfredo, dois graus mais ao norte. Em seguida, e depois de tremenda luta com os icebergues, fica entaipado na passagem de Banks, à entrada dessa série de estreitos que levam ao mar de Baffin...
- Mas não logrou navegá-los - insistiu Altamont.
- Esperai mais um pouco e com a mesma paciência que teve Mac Clure. A 26 de Setembro escolheu ele as suas posições de Inverno na baía da Mercê, ao norte da terra de Banks, e ali permaneceu até 1852. Chega o mês de Abril. Mac Clure não tinha então provisões para mais de dezoito meses. Apesar disso, não quer ainda regressar; parte, transpõe em trenó o estreito de Banks e chega à ilha Melville. Sigamo-lo. Esperava ele encontrar naquelas costas os navios do comandante Austin, que tinham sido mandados ao encontro dele pelo mar de Baffin e estreito de Lancastre. Toca a 28 de Abril em Winter-Harbour, exactamente no ponto em que Parry invernara trinta e três anos antes, mas a respeito de navios, nada; no entanto, descobre num cairn um documento, de onde deduz que Mac Clintock, tenente às ordens de Austin, passara ali no ano anterior, e tornara a partir.
Com aquele caso, que era para desesperar qualquer outro, ainda Mac Clure não desespera. Mete num cairn, para prevenir qualquer eventualidade, um novo documento, em que anuncia a sua intenção de regressar a Inglaterra pela passagem de noroeste, que descobriu, ganhando o estreito de Lancastre e o mar de Baffin. Se não ouvirem mais falar nele, é porque foi arrastado a norte ou a oeste da ilha Melville. Regressa em seguida, sem perder ânimo, à baía da Mercê, para ali passar terceira invernada, de 1852 a 1853.
- Eu também nunca pus em dúvida a coragem de Mac Clure - observou Altamont -, mas só e unicamente o bom êxito da sua tentativa.
- Continuemos a segui-lo - prosseguiu o doutor. - Em Março, reduzido a dois terços de ração, em consequência de um Inverno extremamente rigoroso, em que não apareceu caça, Mac Clure decidiu-se a mandar para Inglaterra metade da tripulação do seu comando, quer pelo mar de Baffin, quer pelo rio Mackenzie e pela baía Hudson; a outra metade tinha de ficar para trazer à Europa o "Investigator". Escolheu Mac Clure, para regressarem de pronto à pátria, os homens menos válidos e a quem uma quarta invernada podia ser funesta. Tudo estava pronto para a partida, fixada para 15 de Abril, quando no dia 6, Mac Clure, que andava passeando com o tenente, seu imediato, Creswell, pelos gelos, avistou, correndo do lado do norte e gesticulando, um homem, que não era outro senão o tenente Pim, do "Herald", imediato do mesmo capitão Kellet que Mac Clure deixara dois anos antes no estreito de Béringue, como vos disse no começo desta narração. Kellet, tendo chegado a Winter-Harbour, encontrara ali o documento deixado por Mac Clure na previsão de qualquer eventualidade; e, ficando assim sabedor da posição dele na baía da Mercê, enviara o tenente Pim, que lhe servia então de imediato, ao encontro do ousado capitão. Acompanhava o tenente um destacamento de marinheiros do "Herald", entre os quais ia um guarda-marinha francês, M. de Bray, que servia como voluntário no estado-maior do capitão Kellet. Não duvidais deste encontro dos nossos compatriotas?
- Por forma alguma - respondeu Altamont.
- Pois examinemos o que sucedeu deste ponto em diante, para ver se a tal passagem de noroeste foi ou não realmente transposta. E notem mais que, se ligarmos as descobertas de Parry com as de Mac Clure, acharemos que as costas setentrionais da América foram inteiramente contornadas.
- Não por um só navio - sustentou Altamont.
- Mas por um só homem, sim! Senão, vejamos. Mac Clure foi à ilha Melville visitar o capitão Kellet; em doze dias percorreu as cento e setenta milhas que separam a baía da Mercê de Winter-Harbour. Combinou com o comandante do "Herald" mandar-lhes os seus enfermos e regressou a bordo do seu navio. No lugar de Mac Clure qualquer outro julgaria ter feito bastante; o intrépido moço, porém, quis tentar fortuna. Por essa ocasião (e para este ponto solicito eu a vossa atenção), por essa ocasião, repito, Creswell, imediato de Mac Clure, em companhia dos doentes e inválidos do "Investigator", deixou a baía da Mercê, dirigiu-se para Winter-Harbour e daí, depois de uma viagem de quatrocentas e setenta milhas pelos gelos, alcançou, a 2 de Julho, a ilha Beechey, de onde dias depois saiu, com doze homens do seu comando, a bordo do "Phenix"...
- Onde eu servia então - interrompeu Johnson -, sob o comando do capitão Inglefield; e nesse navio regressámos a Inglaterra.
- E a 7 de Outubro de 1853 - continuou o doutor - chegava Creswell a Londres, depois de ter percorrido todo o espaço compreendido entre o estreito de Béringue e o cabo Farewell.
- E, então - fez notar Hatteras -, chegar por um lado, tendo saído pelo outro, chamar-se-á "passar" ou não?
- Sim - admitiu Altamont -, mas andando quatrocentas e setenta milhas por sobre os gelos.
- Isso que importa?
- Importa tudo - sustentou o americano. - Porventura o navio de Mac Clure é que efectuou a travessia?
- Isso não - concordou o doutor -, tanto que, depois de quatro invernadas, Mac Clure teve de o abandonar no meio dos gelos.
- Pois bem, numa viagem marítima, è ao navio e não ao homem que compete passar. Se a travessia do noroeste alguma vez tiver de se tornar praticável, há-de ser por meio de navios, que não de trenós. Para que uma passagem se possa dizer descoberta é necessário que o navio efectue a viagem ou, na falta do navio, a chalupa.
- A chalupa! - exclamou Hatteras, que cuidou perceber clara alusão nestas palavras do americano.
- Altamont - acudiu logo o doutor -, essa distinção é na realidade pueril. Neste ponto nenhum de nós vos dará razão.
- A coisa para vós é fácil, senhores - redarguiu o americano -, sois quatro contra um. Mas isso também não me impedirá de ficar com a minha opinião.
- Pois ficai com ela - exclamou Hatteras -, e por forma tal que ninguém mais o oiça.
- E com que direito me falais assim? - replicou o americano, furioso.
- Com o meu direito de comandante! - respondeu Hatteras, colérico.
- Pois eu estou porventura debaixo das vossas ordens?! - retrucou Altamont.
- Sem a menor dúvida! E desgraçado de vós se...
O doutor, Johnson e Bell intervieram. E era tempo, que os dois inimigos já se mediam com o olhar. O doutor tinha o coração oprimido.
Altamont, todavia, depois de algumas palavras conciliadoras do doutor, foi-se deitar, assobiando a música nacional do Yankee Doodle, e o caso é que, quer dormisse quer não, nem mais uma palavra proferiu.
Hatteras saiu da barraca e foi lá fora passear a passos largos. Demorou-se coisa de uma hora e veio depois deitar-se sem ter pronunciado também uma só palavra.
A ARCÁDIA BOREAL
No dia 29 de Maio deixou o Sol pela primeira vez de ocultar-se abaixo do horizonte; o disco do astro rasou a orla do horizonte; mal tocou esta e tornou logo a subir. Era o começo do período dos dias de vinte e quatro horas. No dia seguinte, o astro radiante apareceu rodeado de um halo magnífico, círculo luminoso, que brilhava com todas as cores do prisma. A aparição extremamente frequente destes fenómenos solicitava sempre a atenção do doutor. Nunca se esquecia de lhes apontar a data, dimensões e aparência. O que naquele dia observou apresentava, pela sua forma elíptica, disposições ainda pouco conhecidas.
Passado pouco tempo reapareceu toda a turba alada e guinchadora. Bandos de abetardas e de gansos do Canadá, que vinham das regiões longínquas da Florida e do Arcansas, voavam para o norte com rapidez pasmosa, trazendo nas suas asas a Primavera. Conseguiu o doutor matar algumas, assim como três ou quatro grous precoces e até uma cegonha solitária.
Entretanto, as neves por toda a parte iam-se derretendo, sob a acção do sol; a água salgada, que jorrava por sobre o ice-field pelas fendas e buracos das focas, apressava a decomposição.
O gelo, misturado com a água do mar, formava uma espécie de massa suja, a que os navegadores árcticos dão o nome de slush. Nas terras vizinhas da baía apareciam extensas poças, e o terreno desobstruído parecia brotar de entre a neve como qualquer produção da Primavera boreal.
O doutor recomeçou então as suas plantações. Sementes não lhe faltavam. Todavia, ficou muito surpreendido de ver uma espécie de azedas brotarem naturalmente, por entre as pedras secas, e admirou aquela força criadora da Natureza, que tão pouco exige para se manifestar. Clawbonny semeou agriões, cujos rebentos, dali a três semanas, tinham já perto de dez linhas de altura.
As urzes começaram também a mostrar timidamente as suas flores de um cor-de-rosa incerto e quase desvanecido, de uma tinta rosada em que mão inábil tivesse deitado água de mais.
A flora da Nova América, em suma, deixava alguma coisa a desejar; no entanto dava gosto ver esta vegetação rara e tímida, que era tudo quanto podiam dar os raios enfraquecidos do Sol, última lembrança da Providência, que não tinha esquecido inteiramente aquelas longínquas regiões.
Afinal veio o calor a sério; a 15 de Junho observou o doutor que o termómetro marcava 57 graus acima de zero (+14 graus centígrados). Clawbonny nem queria acreditar no que via, mas forçoso foi submeter-se à evidência. Entretanto a região transformava-se. De todas as cumeadas beijadas pelo sol caíam inúmeras e estrepitosas catadupas; o gelo desmanchava-se em pedaços e o grande problema do mar livre ia afinal decidir-se. O ar ressoava por toda a parte com o ruído das avalanchas, que se precipitavam do alto das colinas no fundo das ravinas, e o contínuo estalar do ice-field produzia um estrépito de ensurdecer.
Fez-se uma excursão até à ilha Johnson e reconheceu-se que era realmente uma ilhota sem importância, árida e deserta. O velho mestre, porém, nem por isso ficou menos satisfeito em ter dado o seu nome àquela meia dúzia de rochedos perdidos no meio do mar. Quis até gravá-lo num penhasco, em virtude do que ia quebrando a cabeça.
Hatteras, nos passeios que fizera, reconhecera com todo o cuidado as terras circundantes até além do cabo Washington. O derretimento das neves modificara sensivelmente o aspecto daquela região.
Onde dantes o vasto tapete branco do Inverno parecia cobrir planícies informes, apareciam agora barrancos e cômoros.
A casa de habitação e os armazéns ameaçavam dissolver-se, sendo por vezes de necessidade repará-los. Por fortuna, naquelas latitudes, temperaturas de cinquenta e sete graus são raras; a média é apenas superior ao ponto de congelação.
Por volta de 15 de Junho já a chalupa estava muito adiantada e ia tomando bom aspecto. Enquanto Johnson e Bell trabalhavam na construção do barco, tentaram-se algumas grandes caçadas, que deram magníficos resultados, conseguindo-se até matar alguns rangíferos, animais a que aliás é difícil chegar. Para o conseguir aproveitou-se Altamont do método dos índios do seu país. Arrastou-se pelo chão, levando a espingarda e os braços colocados por maneira que figurassem os cornos de um daqueles tímidos quadrúpedes, e, conseguindo por tal forma chegar a pequena distância, pôde enfim atirar-lhes certo de não errar.
A caça por excelência, porém, ao boi almiscarado, que Parry encontrou em numerosas manadas na ilha Melville, parecia não ser frequentadora das plagas da baía Vitória. Resolveu-se por isso tentar uma excursão longínqua, tanto para dar caça àquela preciosa espécie de animais, como para reconhecer as terras orientais. Hatteras não tencionava elevar-se ao pólo por aquele lado do continente; o doutor, porém, sempre tinha seus desejos de colher uma ideia geral da região. Por esse motivo, decidiu-se fazer uma avançada para leste do Forte Providência. Altamont, esse, contava apenas caçar. "Duck" fez também parte da expedição.
Nestes termos, na segunda-feira, 17 de Junho, por um belo tempo, marcando o termómetro 41 graus (+5 graus centígrados), numa atmosfera tranquila e pura, deixaram os três caçadores Doctor's House às seis da manhã, seguidos de "Duck", e cada um armado de uma espingarda de dois canos, de uma machadinha e de uma faca de cortar neve; iam equipados para uma excursão que podia durar dois ou três dias e levavam provisões em consequência.
Às oito da manhã já Hatteras e companheiros haviam transposto uma distância de proximamente sete milhas. Nem um ser vivo tinha obrigado até ali os viajantes a dar um tiro sequer, e a caçada ameaçava transformar-se em simples passeio.
Aquele território novo apresentava vastas planícies, cujos confins iam perder-se além dos limites da vista; sulcavam-no numerosos arroios, ainda na véspera nascidos; vastas poças, imóveis como tanques, espelhavam os oblíquos raios do Sol. Por debaixo das camadas de gelo fundido encontravam os pés um terreno pertencente à grande divisão dos terrenos sedimentários, formados pela acção das águas, e que tão abundantes são à superfície do Globo.
No entanto, viam-se também algumas penhas erráticas, de natureza inteiramente estranha ao solo em que apareciam, e cuja presença ali era difícil de explicar. Os xistos-ardósias, porém, assim como os diversos produtos dos terrenos calcários, encontravam-se em grande abundância, principalmente algumas espécies de cristais curiosos, transparentes, incolores e dotados da retracção particular do espato da Islândia.
O doutor, porém, apesar de se não entregar ao exercício da caça, não tinha tempo para tratar de geologia. Ser sábio à carreira era impossível, e os companheiros marchavam com grande rapidez. Todavia ia sempre estudando o terreno e conversando o mais possível, porque, se não fora ele, reinaria no pequeno grupo um silêncio absoluto. Altamont tinha tanto desejo de falar com o capitão, como este de lhe responder.
Por volta das dez horas da manhã tinham os caçadores avançado uma dúzia de milhas para a parte de leste; o mar estava oculto abaixo do horizonte. O doutor propôs que se fizesse uma paragem para almoçar. Esta refeição fez-se com rapidez, e dali a meia hora recomeçou a marcha.
O solo, naquele sítio, ia-se abaixando por declives suaves; algumas chapadas de gelo, que a inclinação dos penhascos ou a exposição tinham conservado, davam ao solo o aspecto de uma série de vagalhões, rebentando no meio do mar por um tempo de brisa fresca.
Aquela região continuava a apresentar planícies sem vegetação, que ser algum animado parecia ter frequentado.
- Decididamente - observou Altamont ao doutor -, não somos felizes nas nossas caçadas. Concordo em que este território poucos recursos oferece aos animais; a caça das terras boreais, porém, não tem direito de ser má de contentar, e bem podia mostrar-se mais complacente.
- Não desesperemos - respondeu o doutor -, que mal começou o Estio. Se Parry encontrou na ilha Melville tantos e tão diversos animais, nenhuma razão há para que nos não suceda aqui outro tanto.
- Mas nós, segundo me parece, sempre estamos mais ao norte - objectou Hatteras.
- Assim é. O norte, porém, em relação ao assunto de que se trata, não passa de uma palavra. À posição do pólo do frio é que há a atender, isto é, àquela imensidade glacial onde invernámos no "Forward". Ora nós, à medida que vamos remontando para o norte, cada vez nos vamos afastando mais da parte mais fria do Globo; por consequência, para além do pólo do frio, devemos encontrar o mesmo que Parry, Ross e outros navegadores encontraram para aquém do mesmo ponto.
- O facto é - declarou Altamont, suspirando pesaroso - que aqui temos desempenhado mais papel de viajantes do que de caçadores!
- Paciência - aconselhou o doutor. -A região tende pouco a pouco a mudar, e seria caso de pasmar para mim se nos faltasse caça nesses barrancos e ravinas onde a vegetação tiver logrado rebentar.
- É força confessar - replicou o americano - que vamos atravessando uma região bem desabitada e bem inabitável!
- Oh! Inabitável, isso não passa de um palavrão - discordou o doutor. - Eu não creio na existência de regiões inabitáveis. Se existisse um continente assim, o homem, à força de sacrifícios, consumindo geração sobre geração, e com todos os recursos da ciência agrícola, havia de acabar por fertilizá-lo!
- Pensais isso? - disse Altamont.
- Certamente! Se fordes às regiões célebres das primeiras épocas do mundo, aos lugares onde foi Tebas, onde existiu Ninive, onde foi Babilónia, a esses férteis vales de nossos pais, parecer-vos-á impossível que o homem lá tivesse podido viver; até a atmosfera ali se tem viciado desde que de lá desapareceram os seres humanos. É lei geral da Natureza tornarem-se insalubres e infecundas as regiões onde não vivemos, assim como aquelas em que já não vivemos. É preciso que saibais que o homem é quem, por si próprio, faz o país em que vive, pelos seus hábitos, pela sua indústria, e, direi mais, pelo seu hálito. Pouco a pouco modifica as exalações do solo e as condições atmosféricas, e torna salubres os lugares em que respira, só porque lá respira! Por consequência, que existam lugares desabitados, concordo, mas inabitáveis, não sou dessa opinião.
Assim conversando, os caçadores, transformados em naturalistas, continuavam marchando, até que chegaram a uma espécie de vale, inteiramente descoberto, ao fundo do qual serpenteava um rio quase descongelado. A exposição do vale, que era ao meio-dia, dera em resultado que nas margens do rio, a meia encosta, brotara uma certa vegetação.
O solo aparentava ali como que desejos de ser fértil; se estivera coberto de algumas polegadas de terra vegetal, sem dúvida alguma haveria de dar produção. O doutor fez notar aos companheiros estas tendências manifestas.
- Vede - disse. - Porventura, em rigor, não poderiam colonos empreendedores estabelecer-se nesta ravina? Com indústria e perseverança, faziam disto uma coisa inteiramente diferente, não uma campina das zonas temperadas, tanto não direi, mas ao menos uma região apresentável. Olhem! Se me não engano, até ali estão alguns habitantes de quatro pés! E os maganões sabem escolher os lugares, sabem!
- Por minha fé, que são lebres polares - exclamou Altamont, aperrando a arma.
- Esperai - recomendou o doutor -, esperai, caçador exaltado! Que esses animais nem em fugir pensam! Vá, deixai-os em paz, que vêm a correr direitos a nós!
Efectivamente, três ou quatro lebres novas andavam aos pulos por entre as urzes e os musgos recentes, e avançavam para os três homens, de cuja presença nada pareciam recear. Vinham para os caçadores com lindos ares de inocência, que nem por isso logravam desarmar Altamont. Dali a pouco estavam junto ao doutor, que as acariciou com a mão, dizendo:
- Para que se há-de receber a tiro quem vem buscar carícias? A morte destes animaizinhos em coisa alguma nos é útil!
- Tendes toda a razão, doutor - aprovou Hatteras. - Devemos deixá-los viver.
- E esses ptarmigans que voam direitos a nós! - exclamou Altamont. - E esses cavaleiros que avançam gravemente em altas andas!
Direito aos caçadores marchava um exército inteiro de animais de pena, sem suspeitar sequer do perigo que a presença do doutor acabava de conjurar. Até o próprio "Duck" se estava contendo e permanecia como que em admiração.
Era um espectáculo curioso e comovente ver aqueles lindos animais correndo, pulando e volitando sem desconfiança. Pousavam no ombro do bom Clawbonny, deitavam-se a seus pés e vinham por si próprios oferecer-se àquelas desusadas carícias. Pareciam fazer quanto neles cabia para receber em sua casa aqueles hóspedes desconhecidos. As aves, em grande número, soltando gritos de alegria, chamavam-se umas às outras e estabeleciam um contínuo vaivém entre os diversos pontos da ravina. O doutor naquela ocasião parecia um verdadeiro mágico.
Continuavam os caçadores o seu caminho, subindo pelas húmidas margens do rio, seguidos por aquele bando já familiar, quando, numa curva do vale, avistaram uma manada de oito ou dez rangíferos, que tosavam alguns líquenes meio enterrados debaixo da neve, animais de aspecto encantador, graciosos e tranquilos, com a sua cornadura denteada, que a fêmea ergue tão altiva como o macho. O pêlo destes animais, que tem aparências de lã, começava já a trocar a brancura do Inverno pela cor escura, pardacenta, do Estio. Pareciam tão pouco assustados e tão domesticados como as lebres e as aves daquela pacífica região. Assim deviam ser as relações do primeiro homem com os primeiros animais, na primeira idade do mundo.
Os caçadores chegaram ao meio da manada sem que nenhum dos animais desse um passo para fugir. Desta vez é que custou deveras ao doutor a conter os instintos de Altamont. O americano não podia ver em sossego aquela caça magnífica sem lhe subir à cabeça uma espécie de ebriedade de sangue.
Hatteras contemplava com ar comovido aqueles mansos animais, que vinham roçar o focinho pelo fato do doutor, do amigo de todos os seres animados.
- Mas, enfim - insistiu Altamont -, porventura não viemos nós aqui para caçar?
- Para caçar bois almiscarados - respondeu Clawbonny - e não outra coisa! Que havíamos nós de fazer desta espécie de caça? As nossas provisões são suficientes. E então deixai-nos gozar deste espectáculo comovedor do homem a meter-se nos brinquedos destes pacíficos animais, sem lhes inspirar receio algum.
- O que isso prova é que nunca o viram - afirmou Hatteras.
- Evidentemente - respondeu o doutor -, e dessa observação pode tirar-se como ilação o seguinte: que esses animais não são de origem americana.
- E por que razão? - perguntou Altamont.
- Porque, se tivessem nascido em terras da América Setentrional, saberiam o juízo que se deve fazer acerca desse mamífero bípede que se chama homem, e, ao ver-nos, com certeza teriam fugido! Nada, o que é provável é que viessem do norte, que sejam originários dessas ignotas regiões da Ásia, e que tenham atravessado os continentes próximos do pólo. Por consequência, Altamont, nenhum direito tendes a reclamá-los como compatriotas.
- Ora! - retorquiu Altamont. - Um verdadeiro caçador não olha a tais insignificâncias. A caça é sempre do país daquele que a mata!
- Vamos, sossego, meu caro Nemrod! Pela minha parte, era mais fácil desistir de disparar sequer um tiro em todo o resto da minha vida do que infundir terror a essa população encantadora. Ora vede! Até o próprio "Duck" fraterniza com esses lindos animais!
Acreditai o que vos digo: sejamos bons sempre que isso for possível! A bondade também é força!
- Bem! Bem - respondeu Altamont, que pouco compreendia aquela sensibilidade -, sempre queria ver-nos no meio de um bando de ursos ou de lobos, armado unicamente da vossa bondade!
- Oh! - volveu o doutor. - Eu também não pretendo encantar feras; tenho pouca fé nos encantamentos de Orfeu. E, demais, nem ursos nem lobos viriam junto de nós como essas lebres, essas perdizes e esses rangíferos.
- E porque não - objectou Altamont -, se nunca tivessem visto homens?
- Porque esses animais são naturalmente ferozes, e a ferocidade, como a maldade, faz nascer a suspeita. É esta uma observação feita no homem, assim como nos outros animais. Quem diz mau, diz desconfiado, e o receio é fácil àqueles que podem inspirá-lo.
Com esta pequena lição de filosofia natural terminou a conversa.
Passou-se o dia inteiro na ravina, a que o doutor quis pôr o nome de Arcádia Boreal, ao que os companheiros por forma alguma se opuseram. Logo que veio a noite, depois de uma refeição que não custara a vida a nenhum dos habitantes daquela região, os três caçadores adormeceram dentro de uma cavidade aberta num rochedo, que parecia expressamente disposta para lhes ministrar abrigo cómodo.
A DESFORRA DE ALTAMONT
No dia seguinte, o doutor e os seus dois companheiros acordaram, tendo passado a noite no mais perfeito sossego. O frio, sem ser penetrante, havia todavia apertado com eles nas horas próximas da manhã; porém, como estavam todos bem cobertos, dormiam profundamente sob a guarda dos pacíficos animais.
O tempo continuava belo. Resolveram, pois, consagrar mais aquele dia a reconhecer a região e a procurar bois almiscarados. Forçoso era dar a Altamont possibilidade de caçar um pouco, e assim ficou resolvido que, ainda que os tais bois fossem os animais mais simples e inocentes do mundo, o americano teria direito de lhes atirar. A carne desses animais, apesar de fortemente impregnada de almíscar, fornece ainda assim um alimento saboroso, e bem contentes ficariam os caçadores se levassem para o Forte Providência alguns pedaços daquela carne fresca e reconfortante.
Durante as primeiras horas da manhã, a viagem não ofereceu particularidade digna de menção. O território, para a parte de nordeste, começava a mudar de aspecto. Algumas elevações de terreno, primeiras ondulações de uma região montanhosa, eram seguros prenúncios de um solo novo. A terra da Nova América, se não era um continente, pelo menos devia ser uma ilha importante; mas, também, de verificar este ponto geográfico não era que se tratava então.
"Duck" corria a distância, e dali a pouco amarrou a umas pegadas, que pertenciam a uma manada de bois almiscarados; momentos depois partiu a correr para a frente com extrema rapidez, até que desapareceu da vista dos caçadores.
Estes guiaram-se então pelos latidos claros e distintos de "Duck", cuja precipitação lhes fez conhecer que o fiel animal tinha afinal descoberto o objecto de todos cobiçado.
Correram, portanto, para a frente, e, depois de hora e meia de marcha, acharam-se em presença de dois animais de forte corporatura e de aspecto verdadeiramente temeroso. Aqueles singulares quadrúpedes pareciam admirados, mas não assustados, com os ataques de "Duck". Tosavam uma espécie de musgo cor-de-rosa, que aveludava o terreno desprovido de neve. O doutor reconheceu-os logo pela sua estatura mediana, cornadura larga e soldada na base, e sobretudo pela curiosa ausência de focinheira saliente, pela fronte encurvada como a do carneiro e pela cauda curta; o conjunto desta estrutura fez com que os naturalistas dessem a estes animais o nome de "ovibos", palavra composta, que faz lembrar as duas espécies a que se assemelham. A sua pelagem é formada de pêlos espessos e longos e de sedas escuras e finas.
Os dois animais, logo que viram os caçadores, deitaram a fugir, e estes perseguiram-nos, correndo a bom correr.
Alcançá-los, porém, não era fácil a homens que depois de meia hora de corrida estavam ofegantes. Hatteras e os companheiros pararam.
- Cos diabos! - disse Altamont.
- Cos diabos, sim - repetiu o doutor, logo que pôde respirar com desafogo. - Estes ruminantes, sim, estes dou-vo-los eu por americanos, e não parece que tenham formado opinião muito vantajosa dos vossos compatriotas.
- O que isso prova é que somos bons caçadores - respondeu Altamont.
Os bois almiscarados, entretanto, como já se não vissem perseguidos, pararam em postura de espanto. Vencê-los na carreira era evidentemente impossível; por consequência, era preciso fazer-lhes cerco.
O planalto onde os animais estavam parados prestava-se a esta manobra. Os caçadores, deixando "Duck" atiçar os animais com os seus latidos, desceram pelas ravinas próximas, por forma que dessem volta ao planalto. Altamont e o doutor esconderam-se num dos extremos, por detrás das saliências da rocha, ao passo que Hatteras, subindo de improviso pelo extremo oposto, devia bater a caça em direcção aos dois.
Dali a meia hora estava cada um no seu posto.
- Desta vez não vos oporeis a que se recebam a tiro esses quadrúpedes? - disse Altamont.
- Não! Isso é de guerra leal - respondeu o doutor, que, apesar da sua doçura natural, no fundo da alma era caçador.
Conversavam os dois por esta forma, quando viram partir os bois almiscarados. "Duck" vinha-lhes no encalço. Um pouco atrás vinha Hatteras, que, com grande vozearia, os impedia para o lado do doutor e do americano, que correram logo direitos àquela magnífica presa.
Os bois pararam imediatamente e, temendo-se menos de um só inimigo, voltaram-se sobre Hatteras, que os esperou de pé firme, fez pontaria ao mais próximo dos dois quadrúpedes e deu fogo, sem que a bala, apesar de bater em cheio na fronte do animal, lograsse tolher-lhe o passo. O segundo tiro de Hatteras teve por único resultado tornar furiosos os dois animais, que se arrojaram sobre o caçador desarmado, e num instante o derrubaram.
- Está perdido! - exclamou o doutor.
No momento em que Clawbonny proferia estas palavras com a intonação do desespero, Altamont deu um passo para a frente, na intenção de voar em socorro de Hatteras; depois parou, como que lutando consigo mesmo contra os próprios prejuízos.
- Não! - exclamou. - Afinal, seria um acto de cobardia!
E correu com Clawbonny para o teatro do combate.
Não durara meio segundo a hesitação do americano. Porém, se o doutor viu o que se lhe passava na alma, Hatteras, que antes se deixaria matar do que imploraria auxílio do rival, também o percebeu.
Todavia, apenas teve tempo de se aperceber de tudo isto, porque Altamont apareceu logo junto dele.
Hatteras, no meio do chão, tentava aparar as marradas e os coices dos animais, mas não poderia prolongar por muito tempo semelhante luta.
Ia o capitão, inevitavelmente, ser feito em pedaços, quando retumbaram dois tiros. Hatteras sentiu assobiar as balas perto da cabeça.
- Ânimo! - exclamou Altamont, que, arrojando para longe de si a arma descarregada, se arremessou sobre os animais irritados.
Um dos bois, ferido no coração, caíra fulminado; o outro, porém, no auge do furor, ia deitar as tripas de fora ao desgraçado capitão, quando Altamont, apresentando-se repentinamente em frente dele, lhe mergulhou entre as maxilas abertas a mão armada da faca de cortar neve, abrindo-lhe ao mesmo tempo a cabeça com um golpe do machado que trazia na outra mão.
Tudo isto foi feito com tão maravilhosa rapidez que o instantâneo clarão de um relâmpago teria iluminado toda aquela cena. O segundo boi dobrou as curvas e caiu morto.
- Hurra! Hurra! - bradou Clawbonny. Hatteras estava salvo.
Devia, pois, a vida ao homem que no mundo mais detestava! Que se passaria na alma do capitão naquele instante? Que movimento humano se realizaria ali, que nem ele o pôde dominar?
É um desses segredos do coração que escapam a qualquer análise.
Fosse como fosse, Hatteras, sem hesitar, caminhou direito ao seu rival e disse-lhe em voz grave:
- Salvastes-me a vida, Altamont.
- Tínheis-me salvo a minha - respondeu o americano.
Reinou por instantes silêncio; em seguida Altamont acrescentou:
- Estamos quites, Hatteras!
- Não, Altamont - discordou o capitão. - Quando o doutor vos arrancou a um sepulcro de gelo, ignorava eu quem vós éreis, e vós salvastes-me com risco da própria vida, sabendo quem eu sou.
- Ora! Sois meu semelhante - respondeu Altamont - e tanto basta, que um americano em caso algum é cobarde!
- Isso decerto - apoiou o doutor. - Um americano é um homem! Um homem tal como vós, Hatteras!
- E que comigo há-de partilhar da glória que nos está reservada!
- Da glória de ir ao Pólo Norte! - disse Altamont.
- Sim! - confirmou o capitão, com admirável entonação.
- Sempre eu tinha adivinhado! - exclamou o americano. - É então verdade que ousaste conceber um tal plano!? Que ousaste tentar alcançar esse ponto inacessível? Isto é belo! É sublime! Sou eu que vo-lo digo.
- E vós - perguntou Hatteras, com voz rápida -, porventura não navegáveis, como nós, a caminho do pólo?
Altamont pareceu hesitar na resposta.
- Então? - disse o doutor.
- Então, não! - exclamou o americano. - Não! Antes do amor-próprio a verdade! E a verdade é que não! Que não concebi esse grande pensamento que até aqui vos arrojou. O que eu buscava era apenas transpor, com o meu navio, a passagem do noroeste, nada mais!
- Altamont - disse Hatteras, estendendo a mão ao americano -, sede pois nosso companheiro de glória e vinde connosco descobrir o Pólo Norte!
E os dois uniram-se então cordialmente, num franco e leal aperto de mão.
Quando ambos se voltaram para o doutor, este chorava.
- Ai, amigos meus - murmurava, enxugando as lágrimas -, que nem sei como me cabe no coração tanta alegria! Ai, companheiros queridos, sacrificastes afinal, para vos unirdes num êxito comum, essa mesquinha questão de nacionalidade! Convencestes-vos de que Inglaterra ou América nada valem em tudo isto, e que contra os perigos da nossa expedição devíamos unir-nos por estreita simpatia! Se chegarmos a alcançar o Pólo Norte, que importa quem o descobriu? Para que rebaixar-se assim, ufanar-se de ser inglês ou americano, quando todos nos podemos gabar de sermos homens!
E o bom doutor apertava em seus braços os inimigos reconciliados. Não podia acalmar-se, conter a sua alegria, e os dois recentes amigos sentiam-se ainda mais unidos pela amizade que o estimável Clawbonny consagrava a ambos. O doutor, no entanto, continuava, sem se poder conter, falando da vaidade dos antagonistas, da loucura das rivalidades e do acordo tão necessário entre homens abandonados longe da pátria.
Palavras, lágrimas, carinhos, tudo lhe vinha do fundo do coração.
Afinal sempre conseguiu serenar, depois que abraçou pela vigésima vez Hatteras e Altamont.
- E, agora, mãos à obra, mãos à obra! Já que de nada pude servir como caçador, trataremos de utilizar os meus outros talentos.
E pôs-se logo em acção de esquartejar um boi, a que ele chamava "o boi da reconciliação", mas com tanta destreza trabalhava que parecia um cirurgião a fazer uma delicada autópsia.
Os dois companheiros olhavam para ele sorrindo. Ao cabo de poucos minutos, o destro operador tinha tirado do corpo do animal umas cem libras de apetitosa carne. Dividiu-se esta em três cargas iguais, e encaminharam-se logo os três para o Forte Providência.
Às dez da noite os três caçadores, caminhando envolvidos pelos raios oblíquos do Sol, chegaram a Doctor's House, onde Johnson e Bell lhes tinham já preparada uma boa refeição.
O doutor, porém, antes de se assentar à mesa, já havia clamado com voz triunfante, apontando para os dois companheiros de caçada:
- Meu velho Johnson, tinha levado em minha companhia um inglês e um americano, não é verdade?
- É, Sr. Clawbonny.
- Pois trago-vos dois irmãos.
Os dois marinheiros estenderam logo com alegria a mão a Altamont. O doutor contou-lhes então o que o capitão americano fizera pelo capitão inglês, e naquela noite a casa de neve serviu de guarida a cinco homens perfeitamente felizes.
OS ÚLTIMOS PREPARATIVOS
No dia seguinte variou o tempo; o frio voltou, e a neve, a chuva e os turbilhões sucederam-se durante muitos dias.
Bell concluíra a chalupa, que correspondia perfeitamente ao fim a que era destinada. Em parte coberta e de borda alta como era, podia aguentar o mar, ainda debaixo de tempo de borrasca, com traquete e latina. A ligeireza da embarcação permitia também que fosse levada no trenó, sem sobrecarregar demasiadamente a carga dos cães de tiro.
Enfim, também se preparava no estado da bacia polar uma mudança altamente importante para os hibernadores. Os gelos começavam de abalar-se no centro da baía; as mais altas penhas, incessantemente minadas pelos choques, só esperavam pela primeira borrasca, suficientemente rija, para arrancarem da praia e irem formar outros tantos icebergues móveis. Hatteras, todavia, não quis esperar pelo desfazer do campo de gelo para começar a projectada excursão. Visto a viagem ter de fazer-se por terra, pouco lhe importava que o mar estivesse livre ou não; fixou, por consequência, para a partida o dia 25 de Junho, dia até ao qual havia tempo de concluir todos os preparativos. Johnson e Bell trataram logo de pôr o trenó em boas condições, para o que lhe reforçaram os caixilhos e substituíram os patins. Os viajantes contavam aproveitar para a excursão aquelas poucas semanas de bom tempo, que a Natureza concede às regiões hiperbóreas, e durante as quais menos sofrimentos teriam a afrontar e seriam mais fáceis os obstáculos a vencer.
Poucos dias antes do que fora destinado para a partida, a 20 de Junho, os gelos começavam já a deixar entre si alguns canais livres, que foram aproveitados para experimentar a chalupa, num passeio até ao cabo Washington. O mar não estava ainda completamente desobstruído, bem longe disso; mas, enfim, também já não apresentava uma superfície inteiramente sólida, e seria impossível tentar uma excursão pedestre através dos ice-fields partidos.
Este meio dia de navegação deu lugar a que fossem apreciadas as boas qualidades náuticas da chalupa.
Os navegadores, quando regressaram do passeio, foram testemunhas de um incidente curioso. Foi este a caçada de uma foca, realizada por um urso gigantesco, felizmente entretido de mais para ver a chalupa, sem o que decerto lhe teria dado caça. Estava o animal à espreita junto de uma abertura do ice-field, pela qual a foca tinha evidentemente mergulhado. O urso, por conseguinte, esperava a reaparição do anfíbio com uma paciência de caçador ou, antes, de pescador, porque na realidade do que ele tratava era de pescar. Espreitava silencioso; não bulia, nem sinal de vida dava.
De súbito, começou a agitar-se a superfície do buraco: era o anfíbio, que voltava ao campo de gelo para respirar. O urso, então, deitou-se ao comprido no gelo e arredondou as duas patas em volta da abertura.
Momentos depois apareceu a foca, deitando a cabeça fora de água; mas nem teve tempo de mergulhar de novo, que as patas do urso, como que movidas por uma mola, uniram-se de súbito, apertaram o animal com força irresistível, e tiraram-no para fora do seu predilecto elemento.
A luta foi rápida; a foca debateu-se por espaço de alguns segundos e ficou logo sufocada de encontro ao peito do seu gigantesco adversário, que desapareceu com a sua presa, levando-a sem custo, apesar de ser de grandes dimensões, e saltando de uma para outra penha de gelo até à terra firme.
- Boa viagem! - gritou-lhe Johnson. - O tal urso tem patas de mais à sua disposição.
Dentro em pouco a chalupa entrou na pequena enseada que Bell para ela tinha aberto entre os gelos.
Quatro dias separavam ainda Hatteras e companheiros do momento fixado para a partida. Hatteras dava pressa aos últimos preparativos, porque tinha de largar a Nova América, terra que não lhe pertencia e a que não havia posto o nome; não se sentia em sua casa.
A 22 de Junho começou-se a transportar para o trenó o trem de acampamento, a tenda e as provisões. Levavam os viajantes duzentas libras de carne salgada, três caixas de legumes e de carnes de conserva, cinquenta libras de salmoura e de lime-juice, cinco quarters(1) de farinha, alguns pacotes de sementes de agriões e de cocleária, fornecidas pelas plantações do doutor. Acrescentando a isso duzentas libras de pólvora, o peso dos instrumentos, das armas e da bagagem miúda, compreendendo também a chalupa, o halkett-boat e o peso do trenó, a carga era de perto de mil e quinhentas libras, bastante pesada, como se vê, para quatro cães, tanto mais que, em contrário do hábito dos esquimós que não fazem trabalhar um cão mais de quatro dias consecutivos, estes quatro, como não tinham revezadores, deviam trabalhar continuamente. Os viajantes, porém, estavam no firme propósito de os auxiliar em caso de necessidade, e contavam também fazer a marcha em pequenas jornadas, e sendo, como era, a distância da baía Vitória ao pólo dumas trezentas e cinquenta e cinco milhas(2), a doze milhas por dia, um mês era bastante para transpô-la; demais a mais, logo que se encontrasse o mar livre, a chalupa daria meio de se concluir a viagem sem fadiga alguma, nem para os homens nem para os cães.
Todos estavam perfeitamente. A saúde geral era excelente. O Inverno, apesar de rude, terminava em condições suficientes de bem-estar, e todos, por terem dado ouvidos aos conselhos do doutor, lograram escapar às enfermidades inerentes àqueles ásperos climas. Em suma, todos tinham emagrecido um pouco,
*1. 380 libras, ao tempo.
o que era até caso de satisfação para o estimável Clawbonny; porém, todos também se tinham afeito de corpo e alma àquela duríssima existência, e, agora aclimatados, estavam capazes de afrontar as provas mais brutais de fadiga e de frio sem sucumbir.
E, enfim, a marcha agora era direita ao ponto terminal de toda aquela viagem, a esse pólo inacessível, depois do que só se trataria de regressar. A simpatia que unia os cinco membros da expedição devia também auxiliá-los no empenho de colher bom êxito daquela audaciosa viagem, e nem um só deles duvidava do resultado da empresa.
O doutor, prevendo uma excursão longínqua, aconselhara aos companheiros que para isso se preparassem com tempo, habituando, com o maior cuidado, o corpo a todos os exercícios e fadigas a que tinham depois de sujeitá-lo. - Amigos - dizia ele -, não vos peço que imiteis os corredores ingleses, que com dois dias de exercícios preparatórios diminuem, em peso, dezoito libras, e, com cinco, vinte e cinco; mas, enfim, alguma coisa se há-de fazer para se colocar nas melhores condições possíveis de realizar uma longa viagem. Ora, a primeira regra que preside a todos os exercícios preparatórios a que me refiro é suprimir no corredor, como no jóquei, toda a gordura, e isto por meio de purgantes, de transpirações e de exercícios violentos. Os gentlemen a que me refiro sabem ao certo quanto hão-de perder em peso por cada medicamento que engolem; chegam neste ponto a resultados de uma exactidão incrível. Assim, indivíduos há que, não podendo antes dos exercícios preparatórios correr por espaço de uma milha sem perderem a respiração, depois andam facilmente vinte e cinco! Conta-se até de um tal Townsed que andava cem milhas em doze horas, sem parar.
- Bonito resultado! - comentou Johnson. - E apesar de não estarmos muito gordos, se for necessário emagrecer mais...
- É inútil, Johnson; mas, pondo de parte toda a exageração, é inegável que os exercícios preparatórios produzem óptimos efeitos: dão maior resistência aos ossos, mais elasticidade aos músculos, finura ao ouvido, e tornam a vista mais clara, não devemos esquecê-lo.
Afinal, com ou sem exercícios preparatórios, os viajantes estavam prontos no dia 23 de Junho, que, por ser um domingo, foi consagrado a um repouso absoluto.
O momento da partida ia-se aproximando, e os habitantes do Forte Providência não o viam chegar sem certa comoção.
Doía-lhes na verdade o coração por terem de abandonar aquela cabana de neve, que tão bem desempenhara o papel de casa, aquela baía Vitória, plaga hospitaleira onde se tinham passado os últimos meses da invernada. À volta, tornariam porventura a encontrar aquelas construções? Não acabariam os raios do Sol por derreter aquelas frágeis paredes?
Em suma, boas horas se tinham passado ali! À ceia, fez o doutor lembrar aos companheiros aquelas comoventes recordações, não se esquecendo de agradecer a Deus a sua visível protecção.
Enfim, chegou a hora de dormir. Todos se deitaram cedo, para se levantarem ao despontar do dia. E assim decorreu a última noite passada no Forte Providência.
MARCHA PARA O NORTE
No dia seguinte, logo ao romper da alva, deu Hatteras o sinal da partida. Atrelaram-se os cães ao trenó; bem alimentados, bem descansados, depois de um Inverno passado em condições de perfeito conforto, nenhuma razão havia para que não prestassem grandes serviços durante o Estio. Não foi necessário, por consequência, empregar grandes esforços para lhes pôr os arreios de viagem.
Por fim de contas eram bons animais os tais cães gronelandeses. A sua natureza selvagem tinha-se modificado pouco a pouco; haviam perdido a semelhança com o lobo, e aproximavam-se já mais de "Duck", que era perfeito modelo da raça canina; numa palavra, iam-se civilizando.
"Duck" tinha, por certo, direito a reclamar uma parte na educação deles, porque lhes havia dado lições de boas maneiras, acompanhando a prédica com o exemplo. Na sua qualidade de inglês, era todo de pontinhos na questão do cant, e levou tempo, antes que se familiarizasse com cães "que lhe não tinham sido apresentados"; ao princípio até nem lhes falava. Mas, à força de compartilhar dos mesmos perigos, das mesmas privações, da mesma fortuna, aqueles animais de raça diferente foram-se, pouco a pouco, dando uns com os outros. "Duck", que possuía bom coração, deu os primeiros passos, e dentro em pouco todos aqueles animais de quatro patas se transformaram num rancho de amigos.
O doutor acariciava os gronelandeses, sem que "Duck" mostrasse ciúmes dos afagos distribuídos aos seus congéneres.
Os homens não se achavam em pior estado que os animais, e, se estes estavam dispostos a puxar bem, aqueles contavam andar melhor.
Partiram os viajantes pelas seis horas da manhã e com um belo tempo; depois de terem seguido os contornos da baía, até passarem além do cabo Washington, Hatteras marcou a derrota direita ao norte; às sete horas perderam os viajantes de vista, para a parte do sul, o cone do farol do Forte Providência.
Os prenúncios da viagem eram bons, melhores pelo menos que os da expedição empreendida em pleno Inverno em busca de carvão! Então deixava Hatteras atrás de si, a bordo do seu navio, a revolta e o desespero, e ia sem certeza alguma do alvo a que dirigia os passos; abandonava uma tripulação semimorta de frio; partia com companheiros enfraquecidos pela miséria de um Inverno árctico; ele, o homem do norte, voltava então para o sul! Agora, pelo contrário, rodeado de amigos vigorosos e prestadios, sustentado, animado, impelido, marchava para o pólo, para o alvo da sua vida inteira! Nunca homem algum estivera tão perto de adquirir aquela imensa glória para a sua pátria e para si próprio!
Pensaria ele em todas aquelas coisas, tão naturalmente inspiradas pela situação presente? Comprazia-se, pelo menos, o doutor em supô-lo assim, e de tal não podia duvidar sequer, vendo-o tão exaltado. O bom Clawbonny regozijava-se com o que devia regozijar o seu amigo, e depois da reconciliação dos dois capitães, dos seus dois amigos, considerava-se o mais feliz dos homens; ele a quem aquelas ideias de ódio, de inveja, de antagonismo, eram completamente estranhas, ele a melhor das criaturas! Que aconteceria, que resultaria daquela viagem? Ignorava-o Clawbonny; mas, enfim, os princípios eram bons. E já não era pouco.
A costa ocidental da Nova América prolongava-se para oeste, numa série de baías para além do cabo Washington. Os viajantes, para evitarem aquela enorme inflexão, logo que transpuseram os primeiros declives de Bell-Mount, dirigiram-se para o norte, tomando pelos planaltos superiores.
Era uma economia de caminho notável. Queria Hatteras, a não ser que a esse plano se opusesse algum obstáculo imprevisto, braço de mar ou montanha, descrever uma linha recta de trezentas e cinquenta milhas desde o Forte Providência até ao pólo.
A viagem ia-se fazendo com facilidade; as planícies elevadas ofereciam vastos tapetes brancos, em que o trenó, guarnecido de caixilhos enxofrados, escorregava sem custo, e em que os homens, com os seus snow-shoes nos pés, encontravam piso rápido e seguro.
O termómetro marcava 37 graus (+3 graus centígrados). O tempo não estava inteiramente firme: ora claro, ora nublado; mas nem o frio nem os turbilhões teriam detido viajantes tão decididos a caminhar para a frente.
A derrota facilmente se marcava com a agulha, que cada vez se tornava menos preguiçosa, à medida que se ia afastando do pólo magnético: já não hesitava. Verdade é que a bússola, depois que passara para além do pólo magnético, dirigia para ele o pólo da agulha, apontando, por assim dizer, o sul a gente que marchava direita ao norte. Esta inclinação invertida, porém, não dava origem a nenhum cálculo embaraçoso.
Demais a mais, o doutor imaginou um meio de balizar o caminho, extremamente simples, que evitava recorrer constantemente à bússola: uma vez estabelecida a posição, os viajantes, estando o tempo claro, enfiavam um objecto exactamente colocado ao norte e situado a duas ou três milhas em frente; depois marchavam até chegar junto do objecto apontado; escolhiam em seguida outro ponto de referência na mesma direcção, e assim seguidamente. Por esta forma, pouco se podiam afastar do caminho direito.
Nos dois primeiros dias de viagem andaram-se em cada um vinte milhas em doze horas; o resto do tempo era consagrado a comer e a descansar. A barraca era suficiente para resguardar do frio durante as horas do sono.
A temperatura tendia a subir; a neve, segundo os caprichos do solo, derretia-se de todo por partes, conservando noutras a sua brancura imaculada; aqui e ali formavam-se grandes poças de água, por vezes verdadeiras lagoas, que com uma pouca de imaginação se podiam tomar por lagos.
Os viajantes metiam-se às vezes à água até meia perna, do que aliás se riam; o doutor ficava até satisfeitíssimo com aqueles banhos imprevistos.
- Nesta região - dizia ele - não devia a água ter licença de nos molhar, que esse elemento aqui não tem direito a existir senão no estado sólido e no gasoso. Quanto ao estado líquido, é um verdadeiro abuso! Gelo ou vapor, muito bem, mas água, nunca!
Não se esquecia a caça durante a marcha, porque era destinada a ministrar alimento fresco. Por esta razão, Altamont e Bell, sem se afastarem muito, iam batendo as ravinas circundantes, e atiravam a alguns ptarmigans, galinholas, gansos e lebres pardas. Estes animais iam pouco a pouco passando da confiança ao receio, e tornavam-se ariscos e de difícil aproximação. Se não fora "Duck", mais de uma vez os caçadores teriam perdido a pólvora e o tempo. Recomendava-lhes sempre Hatteras que se não afastassem mais de uma milha, porque não se podia perder um dia, nem uma hora sequer, não havendo a contar com mais de três meses de bom tempo.
E, demais, era necessário que cada um estivesse no seu posto, junto do trenó, quando se apresentasse para transpor alguma passagem difícil, alguma garganta estreita, algum planalto muito inclinado. Nestes casos todos puxavam, empurravam ou aguentavam o veículo. Mais de uma vez foi necessário descarregá-lo completamente, sem que isso mesmo fosse bastante para prevenir os choques e, por consequência, as avarias, que Bell reparava logo o melhor que podia.
Ao terceiro dia de viagem, quarta-feira, 26 de Junho, os viajantes encontraram um lago de muitos acres de extensão, ainda inteiramente gelado, em virtude da sua orientação ao abrigo do sol; o gelo estava até suficientemente forte para aguentar com o peso dos viajantes e do trenó. Este gelo parecia datar de um Inverno já distante, porque o lago, em virtude da sua posição, nunca devia descongelar. Era um espelho compacto, em que os Estios árcticos não tinham acção. O que mais parecia confirmar esta opinião era o facto de estarem as margens do lago orladas de neve seca, cujas camadas inferiores decerto pertenciam aos anos anteriores.
A partir daquele ponto, o terreno foi abaixando sensivelmente, donde o doutor concluiu que, para o lado do norte, não podia ter grande extensão, o que aliás vinha confirmar a hipótese muito provável de que a Nova América não passava de uma ilha, que se não estendia até ao pólo. O solo ia-se aplanando pouco a pouco; apenas para oeste apareciam algumas colinas niveladas pela distância e banhadas em azuladas brumas.
Até ali a viagem realizara-se sem fadiga. Os viajantes sofriam apenas da reverberação dos raios solares nas neves, reflexão intensa, que podia produzir-lhes snow-blindness impossíveis de evitar. Em qualquer outra ocasião teriam os viajantes feito as marchas de noite, para fugir àquele inconveniente, mas naquela época não havia noite. Por fortuna, a neve tendia a derreter-se e perdia muito do seu brilho quando estava a ponto de se resolver em água.
A temperatura subiu, no dia 28 de Junho, a 45 graus acima de zero (+7 graus centígrados). Esta subida do termómetro foi acompanhada de chuva abundante, que os viajantes apanharam com estoicismo, com prazer até, porque vinha acelerar a decomposição das neves. Foi necessário voltar às sapatas de pele de gamo e mudar o modo de escorregamento do trenó. Todas estas circunstâncias retardaram por certo a marcha, mas, na ausência de sérios obstáculos, ia-se avançando sempre.
O doutor apanhava, por vezes, no caminho, umas pedras arredondadas ou chatas, semelhantes aos seixos gastos pelo redemoinhar da vaga, e julgava-se então muito perto da bacia polar; a planície, todavia, desdobrava-se sempre a perder de vista.
O terreno não apresentava vestígio algum de habitação, nem choças, nem cairns, nem esconderijos de esquimós. Os nossos viajantes eram evidentemente os primeiros que pisavam aquela região nova; os gronelandeses, cujas tribos frequentam as terras árcticas, nunca tinham decerto avançado tão longe, apesar de naquele continente dever a caça ser frutuosa para aqueles desgraçados, sempre famintos. Muitas vezes viam-se ursos seguindo a sotavento o pequeno grupo, mas sem manifestarem intenção de o atacar; ao longe apareciam numerosas manadas de rangíferos e bois almiscarados.
Bem desejaria o doutor apanhar algum para reforçar o tiro, mas, como eram muito ariscos e fugidiços, era impossível colher às mãos algum vivo.
No dia 29, Bell matou uma raposa, e Altamont teve a fortuna de dar cabo de um boi almiscarado de corpulência mediana, inspirando, por esta ocasião, aos companheiros elevada ideia da sua presença de espírito e destreza; era na realidade um caçador maravilhoso, e o doutor, como conhecedor que era, admirava-o muito. O boi, logo esquartejado, forneceu alimentação fresca e abundante.
Aquelas casuais refeições, boas e suculentas, eram sempre bem recebidas; até os menos gulosos não podiam conter-se que não relanceassem olhares de satisfação para os fatacazes de carne fresca. O doutor ria até de si próprio,! quando se surpreendia em êxtase perante aqueles opulentos bocados.
- Nada de fazer boquinhas - dizia então -, que isto de comer nas expedições polares é caso importante.
- Principalmente - acrescentava Johnson -, quando o alimento está dependente de um tiro mais ou menos certeiro!
- Tendes razão, meu velho Johnson - tornava o doutor. - Quando a gente sabe que tem certa a sua panelinha ao lume todos os dias na fornalha da cozinha, pensa menos em comer.
No dia 30, o terreno, ao contrário do que fora previsto,] tornou-se extremamente acidentado, como se tivera sido levantado por alguma comoção vulcânica. Era uma infinita multiplicidade de cones e de picos, alguns dos quais chegavam a notáveis alturas.
Começou a soprar com violência uma brisa de sueste, que dentro em pouco degenerou em verdadeiro vendaval; o vento engolfava-se por entre os rochedos, coroados de neve, e as montanhas de gelo que, mesmo em plena terra firme, apresentavam ainda formas de hummocks e de icebergues. A presença de montanhas de tal forma naqueles planaltos elevados ficou absolutamente sem explicação, mesmo para o doutor, que habitualmente explicava tudo.
À tempestade sucedeu um tempo quente e húmido, que produziu verdadeiro desgelo; retumbava por todos os lados o estalar das penhas de gelo, de mistura com o estridor mais imponente das avalanchas.
Os viajantes evitavam, com todo o cuidado, seguir ao longo da base das colinas, e até falar alto, porque o ruído da voz podia, agitando o ar, produzir catástrofes. Presenciavam frequentemente terríveis quedas de moles de neve, tão repentinas e imprevistas que seria impossível preveni-las. Efectivamente, o principal carácter das avalanchas polares é uma instantaneidade tremenda, e nisto diferem das da Suíça e da Noruega. Nestes países, a avalancha começa por uma bola que, avolumando-se com as neves e rochedos que encontra no caminho, cai com rapidez crescente, devastando florestas, derrocando aldeias, mas gastando tempo apreciável em despenhar-se. Outro tanto não acontece nas regiões em que impera o frio árctico; ali o deslocamento da gelada mole é inesperado, fulminante; a sua queda é o próprio instante da sua partida, e quem a vir oscilar, estando na sua linha de projecção, ficará inevitavelmente esmagado debaixo dela. A bala de canhão não é mais rápida, nem mais pronto o raio. Arrancar, cair, esmagar, é tudo o mesmo para a avalancha das terras boreais, que tem o formidável ribombar do trovão e estranhas repercussões de ecos mais gemebundos que estrepitosos.
Assim, em presença dos espectadores pasmados, operavam-se por vezes verdadeiras mudanças de cena: a região metamorfoseava-se; a montanha, sob a acção de um repentino desgelo, transformava-se em planície. Quando a água do céu, infiltrada pelas fendas de alguma imensa mole, se solidificava com o frio da noite, rompia todos os obstáculos pela sua irresistível expansão, e, ainda mais poderosa ao transformar-se em gelo que ao passar de líquido a vapor, o fenómeno produzia-se então com temerosa instantaneidade.
Por fortuna, nenhuma catástrofe desta ordem ameaçou o trenó e seus condutores. Com as precauções que se tinham tomado, evitou-se todo o perigo. Demais a mais, a parte da região semeada de cristas, de contrafortes, flancos e icebergues, não tinha grande extensão, e os viajantes, três dias mais tarde, a 3 de Julho, tornaram a encontrar-se em fáceis planícies.
Surpreendeu-lhes então a vista um novo fenómeno, que por espaço de muito tempo excitou as pacientes inquirições dos homens de ciência dos dois mundos. Seguia o pequeno grupo uma cadeia de colinas de cinquenta pés de altura, quando muito, e que parecia prolongar-se em muitas milhas de extensão, quando viu que a vertente oriental da elevação estava coberta de neve, mas de uma neve completamente vermelha.
Eram perfeitamente concebíveis a surpresa dos viajantes, as suas exclamações e até o primeiro efeito, um tanto aterrador, que neles produziu aquela extensa cortina carmesim. Tratou logo o doutor, se não de tranquilizar, ao menos de instruir os companheiros. Conhecia ele já esta particularidade das neves vermelhas e os trabalhos de análise química feitos a tal respeito por Wollaston, de Candolle e Bauer; contou-lhes, por consequência, que aquela espécie de neve tinha já sido encontrada, não só nas regiões árcticas, como também na Suíça, no meio dos Alpes. Em 1760, apanhou De Sausse grande quantidade dela no Breven, e, depois, também os capitães Ross e Sabine e outros navegadores trouxeram alguma das expedições que fizeram às terras boreais.
Altamont interrogou o doutor acerca da natureza daquela substância extraordinária, e este fez-lhe saber que o colorido dela provinha unicamente da presença de corpúsculos orgânicos. Por muito tempo estiveram os químicos em dúvida acerca da natureza vegetal ou animal desses corpúsculos; mas, afinal, reconheceram que pertenciam a uma família de cogumelos microscópicos do género Uredo, para os quais Bauer propôs a denominação de Uredo nivalis.
O doutor, escavando com o pau ferrado a neve, fez ver aos companheiros que a camada escarlate tinha nove pés de profundidade, e desafiou-os a que calculassem quantos cogumelos podia haver naquele espaço de tantas milhas, sabendo que os homens de ciência haviam contado quarenta e três mil em um só centímetro quadrado.
O colorido da neve, segundo a disposição da vertente, devia remontar a uma época muito distante, porque aqueles cogumelos não se decompõem nem pela evaporação, nem pela fusão das neves, e a sua cor também não se altera.
O fenómeno, apesar de explicado, nem por isso era menos singular. A cor vermelha em largas extensões é pouco frequente na natureza. A reverberação dos raios solares, naquele tapiz de púrpura, produzia efeitos extraordinários: dava aos objectos vizinhos, rochedos, homens ou animais, uma cor inflamada, como se estivessem iluminados por um braseiro interior. Quando aquela neve se derretia, parecia que estavam correndo rios de sangue aos pés dos viajantes.
O doutor, que não pudera examinar aquela substância quando a lobrigara sobre os Crimson-cliffs do mar de Baffin, ali apanhou nela à vontade, e guardou-a com extremo cuidado em garrafas.
O solo vermelho, "Campo de Sangue", como Clawbonny lhe chamou, levou umas três horas a atravessar, e dali em diante o terreno apresentou de novo o seu aspecto habitual.
RASTOS NA NEVE
O dia 4 de Julho correu no meio de um densíssimo nevoeiro. Com grande dificuldade se pôde manter a derrota para o norte, sendo a cada instante necessário rectificá-la por meio da agulha. Por fortuna não ocorreu acidente algum enquanto durou a obscuridade; somente Bell é que perdeu os seus snow-shoes, que se partiram de encontro a uma saliência da rocha.
- Por minha fé - dizia Johnson -, cuidava que, depois de a gente ter frequentado o Mersey e o Tamisa, tinha o direito de se mostrar mau de contentar a respeito de nevoeiros, mas reconheço que estava bem enganado!
- O que nós devíamos fazer - respondeu Bell - era acender archotes, como se faz em Liverpul!
- E porque não? - replicou o doutor. - Não é má ideia, não; o caminho pouco alumiado ficava, mas ao menos víamos o guia, e dirigir-nos-íamos mais directamente.
- E como se hão-de arranjar archotes? - perguntou Bell.
- Com torcidas de estopa embebidas em espírito de vinho e pregadas na ponta dos nossos cajados.
- Boa lembrança - apoiou Johnson - e que não há-de custar muito a pôr em prática.
Passado um quarto de hora, já o pequeno grupo estava novamente a caminho à luz dos archotes, no meio da húmida obscuridade.
Caminhava-se mais a direito, é verdade, mas mais depressa não, e os tenebrosos vapores só se dissiparam a 6 de Julho.
Como o solo havia então arrefecido, uma rajada de vento norte varreu todo aquele nevoeiro como farrapos de um lençol espatifado.
O doutor tratou logo de marcar a posição, e verificou que os viajantes, no meio daquelas densas brumas, não tinham avançado, em média, mais de oito milhas diárias.
No dia 7 tratou-se de ressaciar com toda a pressa o tempo perdido, e a partida realizou-se de manhã muito cedo. Altamont e Bell voltaram aos seus lugares de marcha na vanguarda, sondando o terreno e esquadrinhando caça; acompanhava-os "Duck". O tempo, com a sua espantosa mobilidade, volvera a estar muito limpo e seco, e, apesar de os guias marcharem a duas milhas do trenó, o doutor não perdia de vista um só movimento deles.
Ficou por consequência admiradíssimo quando viu que de repente paravam em atitude de estupefacção, parecendo olhar com certa ansiedade para longe, como quem interroga o horizonte.
Em seguida curvavam-se para o chão e examinavam com atenção, levantando-se como surpreendidos. Parecia-lhe até que Bell queria caminhar mais para a frente e que Altamont obstara a isso, segurando-o.
- E esta! Que estarão eles fazendo? - perguntou o doutor a Johnson.
- Também tenho estado a examinar o caso, Sr. Clawbonny, mas não lhes compreendo os gestos.
- É que encontraram rastos de animais - sugeriu Hatteras.
- Nada, não pode ser - discordou o doutor.
- Não pode ser porquê?
- Porque então ladrava "Duck".
- Não sei, mas o que eles estão a observar decerto são rastos.
- Avancemos - decidiu Hatteras -, e já saberemos o que é e o que não é.
Johnson excitou os cães de tiro, que começaram a andar mais depressa.
Ao cabo de uns vinte minutos, os cinco viajantes estavam reunidos, e Hatteras, o doutor e Johnson tão surpreendidos como Bell e Altamont.
E com razão, porque no solo, coberto de neve, viam-se, frescos e recentes, como que feitos na véspera, rastos de homens, perfeitamente visíveis e incontestáveis.
- São de esquimós - afirmou Hatteras.
- É verdade - concordou o doutor -, ali estão pegadas onde se percebe a forma do calçado deles.
- Parece-vos isso? - inquiriu Altamont.
- É positivo.
- E então aquela pegada? - tornou Altamont, apontando para outro rasto, muitas vezes repetido.
- Aquela pegada!?
- Afirmareis, porventura, que é do pé de esquimó?
O doutor olhou então com mais atenção e pasmou, na espessura da neve viam-se, distinta e perfeitamente cravados, rastos de um sapato europeu, com os sinais de pregos, sola e tacão. O caso não era sequer duvidoso: poij ali tinha passado um homem, um estranho.
- Europeus aqui! - exclamou Hatteras.
- É evidente - disse Johnson.
- Todavia - objectou o doutor -, o facto é por tal forma improvável que toda a reflexão é pouca para se decidir.
Nesta ideia, o doutor examinou o rasto, duas, três vezes, mas afinal foi obrigado a reconhecer-lhe a extraordinária origem.
O herói de Daniel Defoe não ficou mais espantado quando se lhe deparou um sinal de pegada na areia da sua ilha; porém, se o sentimento que ele experimentou foi o do receio, aqui, em Hatteras, predominou o do despeito. Um europeu tão perto do pólo!
Continuou-se a marcha para a frente, no intuito de reconhecer os rastos, que se prolongavam por espaço de um quarto de milha, de mistura com outros vestígios de calçado esquimó e de sapatos de andar na neve. A partir dali inflectiam para oeste.
Chegados a este ponto, os viajantes consultaram-se, para decidirem se conviria seguir por mais tempo os rastos.
- Nada - respondeu Hatteras. - Marchemos...
Foi interrompido por uma exclamação do doutor, que acabava de apanhar na neve um objecto ainda mais convincente e acerca de cuja origem não podia haver equívoco possível. Era a objectiva de um óculo de algibeira.
- Desta vez - declarou Clawbonny - é que ninguém poderá negar a presença de um estranho nestas terras!
- Para a frente! - exclamou Hatteras.
E com tanta energia proferiu estas palavras que todos o seguiram. O trenó recomeçou a marcha por momentos interrompida.
Espreitavam todos os horizontes com cuidado, à excepção de Hatteras, que marchava exaltado por uma cólera concentrada, e nada queria ver. No entanto, como houvesse risco de se cair nas mãos de algum destacamento de viajantes, era forçoso tomarem-se precauções. Na verdade, era ser desgraçado de mais ver-se precedido até naqueles caminhos ignotos!
O doutor, sem experimentar a mesma cólera que Hatteras, não podia dominar um certo despeito, apesar de toda a sua filosofia natural. Altamont também parecia pouco satisfeito. Johnson e Bell murmuravam entre dentes palavras de ameaça.
- Vamos - disse por fim o doutor -, tristezas nada produzem. Saibamos resistir com coração alegre a todos os golpes da fortuna.
- Forçoso é confessar - afirmou Johnson, sem que Altamont o ouvisse - que, para achar o lugar já tomado, não valia a pena fazer uma viagem ao pólo.
- E o caso é - respondeu Bell - que não há que duvidar...
- Não, não - concordou o doutor -, por mais voltas que dê à aventura no meu espírito, por mais que diga e repita que é improvável, impossível, não lhe vejo outra saída. O tal sapato não se cravou na neve sem que estivesse na extremidade de uma perna qualquer, e sem que a perna pertencesse a um corpo humano. Se fossem esquimós, vá cos diabos, mas um europeu!
- O facto é que vir a gente ao fim do mundo, e achar as camas tomadas na hospedaria, é de embirra!
- E de grande embirra - acrescentou Altamont.
- Enfim, veremos - concluiu o doutor.
Terminou o dia sem que facto algum novo viesse confirmar a presença de estranhos naquela parte da Nova América, e à noite cada um tomou o seu lugar no acampamento.
Como voltasse ao norte o vento, e soprasse com violência, foi necessário buscar abrigo, para a barraca, no fundo de uma ravina. O céu estava ameaçador; sulcavam o ar, com rapidez, nuvens de forma alongada, que rasavam de perto o solo, e tão velozes que custava segui-las com a vista na desordenada carreira; às vezes alguns farrapos daquelas moles de vapor chegavam a tocar no chão. A barraca aguentava-se a custo contra a violência da tempestade.
- Que má noite vamos ter - disse Johnson depois da ceia.
- Fria não será ela - respondeu o doutor - , mas estrondosa, sim. Não será mau prevenirmo-nos, segurando a barraca com bons pedregulhos.
- E é verdade, Sr. Clawbonny, que, se o furacão nos levasse este abrigo de tela, sabe Deus onde o tornaríamos a apanhar.
Assim, tomaram-se as mais minuciosas precauções para conjurar este perigo, e os viajantes, extremamente fatigados, tentaram dormir.
A coisa, porém, foi impossível. A tempestade desencadeou-se e soprava de sul para norte com incomparável violência; as nuvens corriam dispersas no espaço, como o vapor saído de uma caldeira que acabasse de fazer explosão; caíam, com as rajadas da tempestade, no fundo das ravinas, as últimas avalanchas, e os ecos mandavam em troca as suas surdas repercussões; a atmosfera parecia ser o teatro de um combate desesperado entre o ar e a água, dois elementos formidáveis nas suas cóleras. Faltava só o fogo naquela batalha.
O ouvido sobreexcitado percebia, no meio daquele rugido complexo, ruídos particulares, não o som surdo que acompanha a queda dos corpos pesados, mas o estalido claro dos corpos que se quebram; no meio do prolongado ribombar da tempestade, ouviam-se distintamente estrépitos claros e distintos como os do aço quando se parte.
O surdo ribombo da tempestade explicava-se naturalmente pelas avalanchas envolvidas pelos turbilhões; os outros sons, porém, não sabia o doutor a que atribuí-los.
Aproveitando alguns dos poucos instantes de ansioso silêncio, em que o furacão parecia preparar-se com alentos novos para soprar com mais violência, os viajantes trocavam entre si algumas palavras, aventurando, para explicar o que ouviam, toda a casta de suposições.
- Oiço dali sons - contava o doutor - como que de icebergues e ice-fields batendo uns de encontro aos outros.
- É verdade - confirmava Altamont. - Dir-se-ia que é a crosta terrestre que se está partindo em pedaços. Ouvis?
- Se estivéssemos perto do mar - tornava o doutor -, havia de crer que era uma ruptura de gelos, não vos parece?
- Efectivamente - admitiu Johnson -, este estrépito mal se pode explicar de outro modo.
- Acaso teremos nós já chegado à costa? - sugeriu Hatteras.
- É possível, é - respondeu o doutor. - Ora ouvi - acrescentou, depois de um estrépito extremamente violento -, não parece que são as penhas de gelo a esmagarem-se umas de encontro às outras? Bem pode ser que estejamos agora muito perto do oceano.
- Se assim é - tornou Hatteras - , não hesitarei em lançar-me através dos campos de gelo.
- Oh! - disse o doutor. - Depois de uma tempestade destas, por certo estão em pedaços, e, mais, veremos, amanhã. Em todo o caso, o que digo é que, se algum grupo de homens por aí anda viajando debaixo duma noite destas, de todo o coração os lamento.
A tempestade durou dez horas sem interrupção, e nenhum dos hóspedes da barraca pôde conciliar um momento o sono. A noite passou-se em profunda inquietação.
E, na verdade, em circunstâncias tais qualquer incidente novo, uma tempestade por exemplo, ou uma avalancha, podia produzir séria demora. Bem quereria o doutor ir reconhecer o estado das coisas; como, porém, aventurar-se por entre aqueles vendavais desencadeados?
Por fortuna, logo ao despontar do dia, o furacão acalmou, e os viajantes puderam afinal sair da barraca, que tinha resistido com valentia. O doutor, Hatteras e Johnson encaminharam-se para uma colina de uns trezentos pés de altura, aonde treparam com facilidade.
Dali estenderam a vista por sobre um terreno inteiramente metamorfoseado, feito de rochas vivas, de arestas agudas, e inteiramente desprovido de gelo. Era o Estio, sucedendo sem transição ao Inverno, que a tempestade expulsara.
A neve, varrida pela borrasca como por afiada folha, nem tempo tivera de se resolver em água, e o terreno aparecia em toda a primitiva rudeza.
Os olhos de Hatteras, porém, para onde se dirigiam logo foi para o norte, onde o horizonte lhe pareceu banhado em anegrados vapores.
- Ora aí está o que pode muito bem ser o efeito produzido pelo oceano - disse o doutor.
- É verdade - afirmou Hatteras - , ali deve estar o mar.
- Aquela cor é o que nós chamamos o blink da água livre - explicou Johnson.
- É isso mesmo - tornou o doutor.
- Pois bem, vamos para o trenó! - exclamou Hatteras. - E marchemos para esse oceano novo!
- Isto sim, isto alegra-vos o coração? - disse Clawbonny ao capitão.
- Decerto que sim - volveu este com entusiasmo. - Estamos aqui estamos no pólo. E a vós, doutor, porventura não vos dá contentamento?
- A mim! Eu cá estou sempre contente, e principalmente com a felicidade alheia!
Voltaram os três ingleses à ravina e, preparando o trenó, levantou-se o acampamento. Puseram-se os viajantes logo a caminho; receavam sempre encontrar os rastos da véspera. Durante o resto do caminho, porém, nem um vestígio de passos estranhos ou indígenas apareceu no solo. Três horas depois chegavam os viajantes à costa.
- O mar! O mar! - exclamaram todos numa só voz.
- E o mar livre! - acentuou o capitão. Eram dez horas da manhã.
A tempestade limpara efectivamente a bacia polar; os gelos partidos e despedaçados fugiam em todas as direcções; os mais volumosos, formando icebergues, acabavam de "levantar ferro", segundo a expressão usada pelos marinheiros, e vogavam no mar alto. O campo de gelo sofrera da parte do vento um assalto formidável. Os rochedos circundantes estavam cobertos de uma multidão de delgadas lâminas, de rebarbas de gelo e de gelo pulverizado. O pouco que restava do ice-field, na linha em que este nivelava com a praia, parecia podre; nos rochedos, onde desferiam as vagas, estendiam-se enormes algas marinhas e tufos de limos descorados.
O oceano estendia-se além do alcance da vista, sem que lhe limitasse o horizonte ilha ou terra alguma nova.
A costa, tanto a leste como a oeste, formava dois cabos, que iam perder-se em suave declive no meio das vagas; na extremidade delas vinham quebrar as ondas, arrojando ao ar, nas asas do vento, brancos lençóis de ligeira escuma. O solo da Nova América vinha assim morrer no oceano polar, sem convulsões, por uma pendente tranquila e ligeira; arredondava-se em baía muito aberta e formava uma abra limitada por dois promontórios. No centro dela, uma saliência da rocha formava um pequeno porto natural, abrigado por três lados; este porto metia pela terra dentro, pelo largo leito de um regato, caminho normal das neves derretidas depois do Inverno, e naquele momento torrencial.
Hatteras, logo que acabou de reconhecer a configuração da costa, resolveu fazer naquele mesmo dia todos os preparativos para partir, isto é, lançar a chalupa ao mar, desarmar o trenó e embarcá-lo para quaisquer excursões futuras.
Era trabalho para levar até à noite. Por consequência, armou-se a barraca, e, depois de uma refeição reconfortante, começaram os trabalhos. Neste meio tempo o doutor pegou nos instrumentos, para ir marcar a posição e levantar um esboço hidrográfico de uma parte da baía.
Hatteras dava pressa ao trabalho, porque desejava partir o mais cedo possível. Estava já desejoso de se ver longe da terra firme e de ter tomado a dianteira a qualquer destacamento que chegasse à costa.
Às cinco da tarde já Johnson e Bell estavam de braços cruzados por não terem mais que fazer. A chalupa balouçava-se graciosamente no pequeno porto de abrigo, com o mastro a prumo, a latina arriada e o traquete nos rizes; as provisões e as peças do trenó desarmado já para lá tinham sido transportadas. Restavam apenas, para embarcar no dia seguinte, a barraca e o trem de acampamento.
O doutor, quando voltou, achou tudo isto pronto, e, vendo a chalupa tranquilamente abrigada dos ventos, lembrou-lhe dar um nome ao pequeno porto, e para esse fim propôs o de Altamont.
Não houve a menor oposição: todos acharam a proposta perfeitamente justa.
Em consequência, o porto ficou com o nome de Altamont-Harbour.
Segundo os cálculos do doutor, estava este porto situado a 87 graus 05 minutos de latitude por 118 graus 35 minutos de longitude, ao oriente de Greenwich, isto é, a menos de 3 graus do pólo. Da baía Vitória até ao porto Altamont tinham os viajantes transposto uma distância de duzentas milhas.
O MAR LIVRE
No dia seguinte, Johnson e Bell trataram de embarcar o trem de acampamento. Às oito horas estavam terminados os preparativos da partida. O doutor, no momento de deixar aquela costa, pôs-se a pensar nos viajantes cujo rasto tinham encontrado, caso este que não deixava de lhe causar certa preocupação.
Quereriam aqueles homens ir mais para o norte? Trariam porventura consigo algum meio de navegar o oceano polar? Encontrá-los-iam de novo os viajantes na líquida estrada?
Três dias havia que mais nenhum vestígio denunciara a presença de estranhos e, quem quer que fossem, o certo é que não tinham chegado a Altamont-Harbour, lugar que podia considerar-se virgem de todo o pé humano.
O doutor, todavia, perseguido por tais pensamentos, quis relancear um último olhar pela região, e subiu a um cômoro de uns cem pés de altura, quando muito, de onde podia percorrer com a vista todo o sul do horizonte.
Chegado lá acima, levou o óculo aos olhos. Qual foi, porém, a sua surpresa, não vendo nada, não só ao longe, nas planícies, mas ainda a poucos passos de distância!
O caso pareceu-lhe deveras singular. Olhou de novo, e por fim examinou o óculo. Faltava-lhe a objectiva.
- A objectiva! - exclamou Clawbonny.
É fácil de compreender que súbita revelação iluminou o espírito do doutor, que soltou uma exclamação em voz suficientemente alta para ser ouvida pelos companheiros, cuja ansiedade foi grande quando o viram descer a colina a correr.
- Bom! Que mais haverá de novo? - perguntou Johnson.
O doutor, ofegante, não podia proferir uma só palavra; afinal ouviu-se-lhe o seguinte:
- Os rastos... as pegadas... o destacamento!...
- Então, quê? - disse logo Hatteras. - Temos estranhos por aqui?
- Não!... não! - tornava o doutor. - -Era a objectiva... a objectiva... a objectiva do meu óculo...
E mostrava o instrumento incompleto.
- Ah! - exclamou Altamont. - Tínheis-la perdido?
- Sim!
- Mas então, essas pegadas...
- Eram nossas, eram nossas! - exclamou o doutor. - - Fomos nós que nos perdemos por causa do nevoeiro! Que marchámos em círculo e viemos dar com as nossas próprias pegadas!
- E os sinais de sapatos? - disse Hatteras.
- Eram dos sapatos de Bell, do próprio Bell, que, depois de escangalhar os seus snow-shoes, andou um dia inteiro com os sapatos pela neve.
- É verdade, é - confirmou Bell.
E o erro pareceu então por tal forma evidente que todos desataram às gargalhadas, excepto Hatteras, apesar de ser talvez o que mais contente ficara com a descoberta.
- Em que grande ridículo caímos! - tornou o doutor, logo que acalmou a hilaridade. - E que interessantes suposições que fizemos! Estranhos nesta costa! Esta, só nós! Decididamente não se pode aqui falar sem prévia reflexão. Enfim, visto que se foram os cuidados a tal respeito, nada mais há aqui que fazer. Tratemos de partir.
- A caminho! - ordenou Hatteras.
Dali a um quarto de hora estava cada um no seu lugar, a bordo da chalupa, que, com o pano de traquete desfraldado e a latina ao vento, largou de Altamont-Harbour prontamente.
Começava esta travessia em quarta-feira, 10 de Julho; os navegantes estavam a pequena distância do pólo, cento e setenta e cinco milhas, exactamente(1). Logo que existisse naquele ponto do Globo uma terra qualquer, navegar até lá era obra de pouco tempo.
O vento era fraco, mas favorável. O termómetro marcava 5 graus acima de zero (+10 graus centígrados); fazia realmente calor.
A chalupa não sofrera com a viagem em trenó; encontrava-se em óptimo estado e manobrava com facilidade. Johnson ia ao leme; o doutor, Bell e o americano tinham-se acochado o melhor possível entre o trem de viagem, arrumado, parte em cima da coberta, parte debaixo dela; Hatteras ia à proa, com o olhar fixo nesse ponto misterioso, que o atraía com irresistível poder, como o pólo magnético atrai a agulha magnetizada. Queria ele, caso aparecesse alguma ignota plaga, ser o primeiro a avistá-la. E cabia-lhe realmente aquela honra.
Notava também que a superfície do oceano polar era composta de vagas curtas, tais como habitualmente se apresentam nos mares interiores. Nisto via o capitão indícios de terra próxima e o doutor partilhava, nesta parte, a opinião de Hatteras.
É fácil de compreender o motivo por que Hatteras tão ardentemente desejava encontrar um continente no Pólo Norte. Qual seria o seu desapontamento se, no lugar onde tão necessária era aos seus projectos uma porção de terra, por pequena que fosse, viesse estender-se o mar incerto e inocupável! E, na verdade, como atribuir nome especial a uma porção de oceano indeterminada? Como plantar a bandeira do seu país no meio do mar? Como tomar posse em nome de Sua Graciosa Majestade de uma parte do líquido elemento?
Assim, Hatteras, com o olhar fixo, de bússola em punho, não despregava os olhos do norte.
Até então, porém, nada parecia limitar a extensão da bacia polar até à linha do horizonte, que se confundia ao longe com o puro céu daquelas zonas. Algumas montanhas de gelo, que ao largo fugiam, pareciam abrir passagem aos ousados navegadores.
Pouco mais de 70 léguas.
O aspecto daquela região oferecia singulares caracteres de estranheza. Proviria aquela impressão da disposição de espírito dos viajantes, então extremamente comovidos e ultranervosos? Difícil é dizê-lo ao certo.
O doutor, no entanto, nos seus apontamentos quotidianos, descrevia aquela fisionomia estranha do oceano, falando dela como Penny, segundo o qual o aspecto que apresentam aquelas regiões é "o mais saliente contraste de um mar animado por milhões de seres vivos".
A líquida planura, colorida com os mais incertos matizes do azul de além-mar, apresentava uma transparência estranha e dotada de um poder dispersivo incrível, como se fora composta de carbonato de enxofre. A sua diafaneidade permitia que o olhar a penetrasse até incomensuráveis profundezas; a bacia polar parecia um imenso aquário iluminado por baixo. Por certo que algum fenómeno eléctrico, produzido no fundo dos mares, lhe iluminava as mais fundas camadas. E a chalupa parecia assim suspensa por sobre um abismo sem fundo.
À superfície daquelas águas maravilhosas voavam as aves em bandos imensos, semelhantes às densas nuvens que trazem no seio a tempestade. Aves de arribação, aves ribeirinhas, aves nadadoras. O conjunto apresentava todos os espécimes da grande família aquática, desde o albatroz, tão vulgar nas regiões austrais, até ao pinguim dos mares árcticos, mas com dimensões agigantadas. A gritaria de todas estas aves produzia uma bulha contínua de ensurdecer. De nada valia ao doutor, ao contemplá-las, a sua ciência de naturalista; os nomes daquelas espécies prodigiosas não lhe ocorriam, e por vezes se surpreendia curvando a cabeça, quando aquelas espantosas asas batiam o ar com força indescritível.
Entre estes monstros aéreos havia alguns que mediam vinte pés de ponta a ponta de asa, e que quando voavam por cima da chalupa a cobriam completamente. Havia ali legiões inteiras de aves cuja nomenclatura nunca apareceu no Index Ornithologus, de Londres.
O doutor estava completamente aturdido, mas no entanto muito admirado de achar a ciência em falta.
E depois, quando o seu olhar, deixando as maravilhas do céu relanceava pela superfície do pacífico oceano,
encontrava também produtos não menos espantosos do reino animal, entre outros, medusas com mais de trinta pés de diâmetro, e que serviam à geral alimentação da turba alada, flutuando como verdadeiras ilhotas no meio das algas e dos limos gigantes. Que caso de pasmar! Que diferença entre estas e aquelas medusas microscópicas observadas por Scoresby nos mares da Gronelândia, e cujo número, no espaço de duas milhas quadradas, era, segundo os cálculos deste navegador, superior a vinte e três milhares de triliões oitocentos e oitenta e oito milhares de biliões de milhares de milhões(1)!
Enfim, quando, penetrando além da superfície líquida, o olhar mergulhava naquelas águas transparentes, não era menos sobrenatural o espectáculo daquele elemento sulcado por milhares de peixes de todas as espécies. Estes animais umas vezes mergulhavam rapidamente no mais profundo da massa líquida, e o olhar via-os então pouco a pouco diminuir, decrescer, desaparecer quais espectros fantasmagóricos; outras vezes volviam, crescendo em volume, ao cimo das ondas. Os monstros marinhos não pareciam ter o menor receio da presença da chalupa; antes a acariciavam, quando junto deles passava, com as enormes barbatanas. Num caso daqueles, que era para aterrar, e com justo fundamento, até baleeiros de profissão, os nossos navegantes nem a consciência tinham do perigo que corriam, apesar de alguns daqueles habitantes do mar atingirem proporções formidáveis.
Os jovens vitelos-marinhos brincavam uns com os outros; o narval, fantástico como o unicórnio, com a sua arma defensiva estreita e cónica, maravilhosa ferramenta que lhe serve também para serrar os campos de gelo, perseguia os mais tímidos cetáceos; inúmeras baleias atroavam os ares com um silvo particular, expelindo pelos respiradouros colunas de água e mucilagem; o nord-caper, de delgada cauda e grandes barbatanas caudais, fendia as ondas com incomensurável velocidade, alimentando-se na carreira de animais como ele velozes, ao passo que a baleia branca,
*1. Como este número foge a toda a apreciação intelectual, o baleeiro inglês, para tornar o resultado do seu cálculo mais compreensível, dizia que para o contar levariam três pessoas dias e noites desde a criação do mundo.
mais preguiçosa, engolia tranquilamente moluscos tranquilos e indolentes como ela.
Mais para o fundo, os baleinópteros de focinho pontiagudo, os anarnacks gronelandeses, compridos e escuros, os baleotes gigantes, espécie existente em todos os mares, nadavam no meio de bancos de âmbar pardo, empenhando por vezes combates homéricos, que avermelhavam o oceano na extensão de muitas milhas; os physales cilíndricos, os encorpados tegusicks do Labrador, os golfinhos de dorso recurvado, toda a família das focas e das vacas-marinhas, cães, cavalos e ursos-marinhos, leões e elefantes-do-mar, tudo parecia andar tosando as húmidas pastagens do oceano, e o doutor contemplava e admirava aqueles inumeráveis animais com tanta facilidade como poderia admirar quaisquer crustáceos ou peixes nos tanques de cristal do Zoological Garden.
Que beleza, que variedade, que poder criador da Natureza! Como tudo parecia estranho e prestigioso no seio das regiões circumpolares!
A atmosfera adquiria ali uma pureza sobrenatural; dir-se-ia que estava sobrecarregada de oxigénio. Os nossos navegantes aspiravam com delícia aquele ar, que parecia trazer-lhes uma vida mais ardente. Sem que eles próprios tivessem consciência do facto, eram presa de uma verdadeira combustão, de que não é possível dar ideia ainda que longínqua; as funções afectivas, digestivas e respiratórias exerciam-se neles ali com sobre-humana energia; as ideias, produto daqueles cérebros sobreexcitados, tomavam um desenvolvimento grandioso; em uma hora só, viviam a vida de um dia inteiro.
No meio de tantos espantos e maravilhas, vogava tranquila a chalupa, bafejada pelo sopro de um vento moderado, que os grandes albatrozes activavam por vezes com as enormes asas.
Próximo à noite, Hatteras e os companheiros perderam de vista a costa da Nova América. As horas da noite soavam para as zonas temperadas como para as zonas equinociais. Ali, porém, o Sol, alargando as suas espirais, descrevia um círculo rigorosamente paralelo ao do oceano, e a chalupa, banhada pelos raios oblíquos do astro, não podia largar o centro luminoso que com ela se deslocava.
Os seres animados das regiões hiperbóreas, apesar de tudo, conheceram que tinha chegado a noite como se o astro radiante se tivera escondido por detrás do horizonte. Aves, peixes, cetáceos, tudo desapareceu. Para onde iriam? Para o mais profundo do céu? Para o mais profundo do mar? Quem poderia afirmá-lo?
O facto é que, aos gritos, aos silvos, ao estremecer da vaga agitada pela respiração dos monstros marinhos, sucedeu dentro em pouco a silenciosa imobilidade. O mar adormeceu numa ondulação insensível, e a noite teve toda a sua pacífica influência, ainda ali debaixo do olhar cintilante do Sol.
Desde que os viajantes tinham saído de Altamont-Harbour, ganhara a chalupa bastantes milhas na direcção norte; no dia seguinte nada se avistava ainda no horizonte, nem os altos píncaros que de longe dão sinal da existência das terras, nem aqueles sinais particulares pelos quais o marinheiro pressente a aproximação das ilhas ou dos continentes.
O vento não era forte, mas aguentava-se; o mar chão; o cortejo de aves e de peixes volveu, com o dia, tão numeroso como na véspera. O doutor, curvado para o mar, pôde ver os cetáceos largar das profundas guaridas e subirem, pouco a pouco, à superfície do mar; só um ou outro icebergue, e aqui e além algumas penhas de gelo dispersas quebravam a monotonia do oceano.
Mas, em suma, os gelos eram raros, e não podiam embaraçar a marcha de um barco. Convém notar que a chalupa navegava então a dez graus para além do pólo do frio, facto que, considerado pelo lado da temperatura, era perfeitamente equivalente ao de estar dez graus aquém. Por consequência, não era para admirar que o mar estivesse livre, naquela época, como o devia estar também em frente da baía de Disko, no mar de Baffin. Claro está, pois, que um navio qualquer poderia ali navegar à vontade nos meses de Verão.
Esta observação tem grande importância prática; porque, efectivamente, se alguma vez os baleeiros lograrem subir até à bacia polar, quer pelos mares do norte da América, quer pelo norte da Ásia, têm a segurança de lá completarem rapidamente a carga, porque aquela parte do oceano parece ser o viveiro universal, o reservatório geral das baleias, das focas e de todos os animais marinhos.
Ao meio-dia, ainda a linha de água se confundia com a linha do céu. O doutor começava a ter suas dúvidas acerca da existência de um continente qualquer naquelas elevadas latitudes.
E no entanto, depois de mais alguma reflexão, era forçadamente levado a crer na existência de um continente boreal. Efectivamente, nos primeiros dias do mundo, depois do resfriamento da crusta terrestre, as águas formadas pela condensação dos vapores atmosféricos deveram obedecer à força centrífuga, arrojar-se para as zonas equatoriais e abandonar as extremidades imóveis do Globo. Daí, a necessária emersão das regiões vizinhas ao pólo. E o doutor achava todo este raciocínio perfeitamente fundamentado. Outro tanto sucedia a Hatteras.
Assim, os olhares do capitão tentavam penetrar as brumas do horizonte. Não tirava o óculo dos olhos. Na cor das águas, na forma das vagas, no soprar do vento, em tudo buscava indícios de terra próxima. Inclinava a fronte para a frente, e por forma que, mesmo quem lhe não conhecesse os pensamentos, o havia de admirar, tanta era a força de energia, de desejo e de ansiosa interrogação que lhe transparecia no gesto e no semblante.
AS VIZINHANÇAS DO PÓLO
O tempo ia correndo no meio de tais incertezas. Nada se avistava naquela circunferência tão distintamente recortada. Nem um ponto só que não fosse céu ou mar. Nem sequer à superfície das ondas algum raminho de ervas terrestres, como as que fizeram pulsar mais rápido o coração de Cristóvão Colombo quando navegava à descoberta da América.
Hatteras, porém, continuava a olhar.
Afinal, por volta das seis da tarde, apareceu, acima do nível do mar, uma bruma de forma indecisa, mas de elevação sensível. Dir-se-ia um penacho de fumo. O céu estava perfeitamente puro; por consequência, aquele vapor não podia ser uma nuvem; e, demais, aparecia e desaparecia por instantes como que agitado.
Hatteras foi o primeiro que observou o fenómeno; e meteu rápido aquele ponto indeciso, aquele inexplicável vapor no campo do óculo, examinando-o sem descanso ainda por espaço de uma hora.
De súbito ofereceu-se-lhe à vista algum indício, seguro decerto, porque estendeu o braço para o horizonte e clamou com voz retumbante:
- Terra! Terra!
Ao ouvirem estas palavras, todos se levantaram, como que movidos por um choque eléctrico.
Acima do mar elevava-se sensivelmente uma espécie de fumo.
- Vejo! Vejo! - exclamou o doutor.
- É verdade! Não há dúvida... é... - confirmou Johnson.
- É alguma nuvem - sugeriu Altamont.
- Terra! Terra! - repetiu Hatteras, com inabalável convicção.
E os cinco navegantes tornaram a examinar o caso com
mais atenção.
Porém, como vulgarmente sucede com os objectos que o seu afastamento torna indecisos, o ponto observado parecia ter desaparecido. Por fim, os olhares de todos tornaram novamente a avistá-lo, e ao doutor pareceu-lhe até que surpreendera um rápido clarão a vinte e cinco milhas ao norte.
- É um vulcão! - exclamou Clawbonny.
- Um vulcão! - tornou Altamont.
- Certamente.
- Numa latitude tão elevada!
- E porque não? - volveu o doutor. - Porventura não é a Islândia uma terra vulcânica, e até, por assim dizer, formada de vulcões?
- É verdade! A Islândia... - concordou Altamont. - Porém, aqui, tão perto do pólo!
- E então? Porventura não verificou o nosso ilustre compatriota James Ross, no continente austral, a existência do Erebus e do Terror, duas montanhas ignívomas em plena actividade a cento e setenta graus de longitude por setenta e oito de latitude?! Porque não haviam, pois, de existir vulcões no Pólo Norte?
- Efectivamente, é possível - admitiu Altamont.
- Ah! - exclamou o doutor. - Agora é que eu vejo distintamente. Não há dúvida: é um vulcão!
- Pois seja que não seja - acudiu Hatteras - , corramos direito a ele.
- O vento vai-se fazendo ponteiro - advertiu Johnson.
- Arria o traquete e orça!
Esta manobra, porém, teve como resultado imediato afastar a chalupa do ponto observado, por forma que nem o olhar mais atento lograva avistá-lo.
Ninguém, todavia, já podia duvidar da proximidade da costa. Estava pois ali o alvo da viagem, se não alcançado, ao menos entrevisto, e por certo não decorreriam vinte e quatro horas sem que certo solo novo fosse pisado por pés humanos. A Providência, que permitira que os nossos navegadores dele se aproximassem a tão curta distância, não quereria decerto impedir que os audaciosos marinheiros ali abicassem.
E no entanto, nas circunstâncias actuais, ninguém manifestou a alegria que semelhante descoberta devia produzir; todos se reconcentravam, perguntando cada um a si próprio o que poderia ser aquela terra do pólo. Os animais pareciam fugir dela. À hora do cair da noite, as aves, em vez de lá buscarem guarida, voavam rápidas para o sul.
Aquela terra seria tão inóspita que nem uma gaivota ou um ptarmigan lá pudessem encontrar asilo? Até os próprios peixes e os grandes cetáceos fugiam rapidamente daquela costa através das águas transparentes.
Donde proviria aquele sentimento de repulsão, senão do terror comum a todos os seres animados que frequentavam aquela parte do Globo?
Os navegantes tinham experimentado a impressão geral; deixavam-se dominar pelos sentimentos da própria situação e, pouco a pouco, todos foram sentindo o sono carregar-lhes as pálpebras.
Era a hora de quarto de Hatteras; este deitou mão à cana do leme; o doutor, Altamont, Johnson e Bell adormeceram junto uns dos outros, estendidos nos bancos, e dentro em pouco estavam no mundo dos sonhos.
Hatteras tentou resistir ao sono: não queria perder um só instante daquele tempo precioso; mas o lento balouçar da chalupa embalava-o insensivelmente e o capitão acabou por ceder, mau grado seu, a uma irresistível sonolência.
Entretanto, a embarcação pouco avançava; o vento nem lhe enfunava a vela frouxa. Ao longe, para a parte de oeste, algumas penhas de gelo imóveis reflectiam os raios luminosos, formando chapadas incandescentes no meio do oceano.
Hatteras pôs-se a cismar. O seu pensamento vagueava rápido por todos os acontecimentos da sua vida, remontando-lhe o curso com aquela velocidade peculiar dos sonhos, que nenhum sábio logrou ainda calcular; volveu por pensamentos aos dias já passados, e assim tornou a ver a invernada, a baía Vitória, o Forte Providência, a Doctor's House e o encontro do americano debaixo da neve.
Volveu depois a um passado mais distante ainda: sonhou com o seu navio, com o "Forward" incendiado, com os seus companheiros, com os traidores que o tinham abandonado. Que havia sido feito deles? Lembrou-se de Shandon, de Wall e até do brutal Pen. Onde estariam eles? Teriam porventura conseguido alcançar o mar de Baffin através dos gelos?
Depois, alando-se a imaginação do sonhador ainda a maior altura, Hatteras viu-se no momento da saída de Inglaterra, nas suas precedentes viagens, nas suas infrutuosas tentativas, nas suas desgraças. Esqueceu então a situação presente, o próximo êxito e as suas esperanças quase realizadas. O sonho arrojou-o da alegria para a angústia.
Assim decorreram duas horas; em seguida o pensamento do capitão tomou outro caminho e trouxe-o de novo para o pólo. Hatteras viu-se então, em sonhos, pondo enfim o pé naquele continente inglês, e desfraldando ali a bandeira do Reino Unido.
Enquanto ele assim dormitava, uma enorme nuvem, de cor negra-esverdeada, subia acima do horizonte, ensombrando o mar.
Não se pode imaginar a fulminante rapidez com que os vendavais invadem os mares árcticos. Os vapores gerados naquelas regiões equatoriais vêm condensar-se por cima das imensas geleiras do norte e chamam, com violência irresistível, massas de ar que as substituem. É o que pode explicar a energia das tempestades boreais.
Ao primeiro embate do vento, o capitão e os companheiros tinham-se arrancado ao sono, prontos a manobrar.
O mar levantava-se em vagalhões altos e de pouca base; a chalupa, batida pelo este violento, ora mergulhava em profundos abismos, ora oscilava na ponta de uma aguda vaga, inclinando-se em ângulos de mais de quarenta e cinco graus.
Hatteras lançara de novo mão firme à cana, que jogava chiando na cabeça do leme e que por vezes, apanhada pela força da onda, o repelia e fazia dobrar mau grado seu. Johnson e Bell tratavam sem descanso de vazar a água que a chalupa embarcava nos mergulhos.
- Com uma tempestade destas não contávamos nós - disse Altamont, agarrando-se ao banco.
- Aqui, deve-se esperar tudo - respondeu o doutor. Trocavam-se estas palavras no meio dos silvos do vento
e do ribombar das ondas, que a violência do vendaval reduzia a impalpável pó líquido. Era quase impossível ouvir-se.
Era difícil manter a embarcação no rumo do norte; as densas trevas mal deixavam entrever o mar além de poucas toesas de distância; pontos de referência não os havia.
Aquele repentino vendaval, no momento em que se ia atingir o alvo, parecia conter severa advertência, e aparecia aos espíritos sobreexcitados dos navegantes como uma proibição de ir mais além. Quereria porventura a Natureza vedar o acesso ao pólo? Estaria acaso este ponto do Globo cintado por uma fortificação de vendavais e de borrascas que não permitissem a aproximação dele?
Sem embargo, quem visse o semblante enérgico daqueles navegantes, compreenderia logo que não eram homens que cedessem nem ao vento nem às ondas, antes se mostravam capazes de ir, desse por onde desse, até ao fim.
Assim foram lutando durante todo o dia, afrontando a cada instante a morte, não conseguindo avançar um passo para o norte, mas não recuando um só também, ensopados por uma chuva tépida e alagados pelos golpes do mar, que a tempestade lhes arremessava às faces. Por intervalos ouvia-se o piar sinistro das aves de envolta com o sibilar do vento.
Por volta das seis horas da tarde, porém, mesmo no meio de uma recrudescência de cólera das ondas, o tempo abonançou de súbito. O vento calou-se como por milagre. O mar apresentou-se bonançoso e chão, como se não fosse revolvido pelo marulhar das ondas havia doze horas. Parecia que o vendaval respeitava aquela parte do oceano polar.
Que se passaria ali? Um fenómeno extraordinário, inexplicável, e presenciado também pelo capitão Sabine numa das suas viagens aos mares gronelandeses.
O nevoeiro não se dissipara, mas tornara-se extremamente luminoso.
A chalupa navegava numa zona de luz eléctrica, imenso fogo-de-santelmo resplandecente, mas sem calor. Mastro, vela, aparelho, tudo se desenhava em negros traços, no fundo fosforescente do céu, com incomparável nitidez. Os navegantes permaneciam imersos num banho de raios transparentes e os semblantes coloriam-se-lhes de reflexos inflamados.
A súbita mudança daquela porção do oceano provinha, sem dúvida, do movimento ascendente das colunas de ar, ao passo que a tempestade, que pertencia ao género ciclone(1), girava com rapidez em roda daquele centro tranquilo.
Mas aquela atmosfera abrasada fez acudir um pensamento ao espírito de Hatteras, que exclamou:
- O vulcão!
- Será possível? - acudiu Bell.
- Não! Não! - respondeu o doutor. - Se as chamas do vulcão se estendessem até nós, ficaríamos sufocados.
- Talvez seja o reflexo do vulcão no nevoeiro - lembrou Altamont.
- Também não. Para ser assim era necessário admitir que estivéssemos perto de terra, e nesse caso havíamos de ouvir o estrondo da erupção.
- Mas então?... - perguntou o capitão.
- É um fenómeno cósmico - explicou o doutor - , fenómeno pouco observado até agora!... Se continuarmos o nosso caminho, não tardará que saiamos dessa esfera luminosa para volver à escuridão e à tempestade.
- Seja como for, avante! - decidiu Hatteras.
- Avante! - exclamaram a um tempo todos os companheiros, que nem sequer se lembraram de respirar naquela tranquila bacia.
A vela pendia em dobras de fogo ao longo do mastro fulgurante; os remos mergulhavam nas vagas ardentes,
Tempestade que redemoinha parecendo levantar ondas de centelhas, feitas de gotas de água brilhantemente iluminadas.
Hatteras, de bússola em punho, volveu à derrota do norte. Pouco a pouco o nevoeiro foi perdendo a luz, e depois a transparência, o vento tornou a fazer ouvir os seus rugidos a poucas toesas de distância, e em breve a chalupa, inclinando ao sopro de uma rajada violenta, tornou a entrar na zona da tempestade.
O furacão, porém, girava um quarto para o sul, e a embarcação pôde navegar com vento de popa, direita ao pólo, em risco de soçobrar, mas precipitando-se com insensata velocidade. A cada instante podia surgir das ondas o escolho, rochedo ou penha de gelo, onde a chalupa se faria em pedaços infalivelmente.
Sem embargo, nenhum daqueles homens levantava uma objecção; nenhum fazia ouvir a voz da prudência. Estavam todos atacados da loucura do perigo. Invadira-os a sede do ignoto. Assim iam, não cegos, mas deslumbrados, achando fraca ainda, à medida de seus impacientes desejos, a temerosa rapidez daquela carreira. Hatteras mantinha o timão na mesma direcção, imperturbável, em meio das vagas espumantes, sob o açoite da tempestade.
Entretanto ia-se fazendo sentir a proximidade da costa; havia no ar sintomas extraordinários. De repente, o nevoeiro abriu de alto a baixo, como um véu rasgado pelo vento, e por um lapso de tempo, rápido como um relâmpago, pôde ver-se no horizonte, erguendo-se direito ao céu, um imenso penacho de chamas.
- É o vulcão! O vulcão!...
Foram estas as palavras que se soltaram de todas as bocas. A fantástica visão, porém, desaparecera já. O vento, saltando ao sueste, apanhou a embarcação de través, e forçou-a a fugir daquela terra inacessível.
- Maldição! - clamou Hatteras, ferrando a vela de traquete. - Nem a três milhas estávamos da costa!
Hatteras não podia resistir à violência da tempestade; sem lhe ceder, porém, transigiu com o vento, que então se desencadeava com indescritível fúria. A chalupa, por vezes, inclinava-se sobre o costado, a ponto de fazer recear que a quilha saísse toda fora de água. O barco, no entanto, acabava sempre por se levantar sob a acção do leme, como um corcel cujos jarretes dobram, e que o cavaleiro aguenta com a rédea e com a espora.
Hatteras, desgrenhado, com a mão soldada à cana do leme, parecia a alma daquela barca, com a qual parecia também fazer um corpo único, como o homem e o cavalo nos tempos dos centauros.
De súbito, ofereceu-se aos olhos do capitão um espectáculo aterrador.
A menos de dez toesas de distância, balançava-se, na crista marulhosa das vagas, um penhasco de gelo, que ora descia ora subia, como a chalupa, ameaçando cair sobre ela e esmagá-la à primeira pancada.
Mas com o perigo de ser precipitado no abismo apresentava-se outro não menos terrível: porque aquela penha de gelo, que assim vogava ao sabor das ondas, ia carregada de ursos brancos, apinhados uns junto dos outros, e loucos de terror.
- Ursos! Ursos! - exclamou Bell, com voz demudada.
E todos, aterrados, viram o que ele vira.
A penha de gelo jogava de maneira horrorosa; por vezes inclinava-se, fazendo com o horizonte ângulos tão agudos que os animais rebolavam de envolta uns por cima dos outros, soltando grunhidos que lutavam com os rugidos da tempestade, formando com eles o concerto formidável que saía daquela jaula flutuante.
Se aquela jangada de gelo viesse a virar-se, os ursos por certo se precipitariam direitos à embarcação, e tentariam a abordagem.
Por espaço de um quarto de hora, que pareceu durar um século, a chalupa e a penha de gelo navegaram de conserva, ora a vinte toesas de distância, ora prestes a topar uma com outra; por vezes a penha sobrepujava a chalupa e os monstros não tinham mais a fazer, para se meterem nela, do que deixarem-se cair.
Os cães gronelandeses tremiam de susto. "Duck" mantinha-se imóvel.
Hatteras e os companheiros estavam mudos. A ideia de mudarem de direcção para se afastarem daquela temível vizinhança nem lhes ocorria sequer; a chalupa mantinha-se na derrota com inflexível rigor.
Do cérebro dos viajantes apoderara-se um sentimento vago, que mais podia dizer-se espanto que terror. Admiravam, e aquele espectáculo aterrador vinha como que completar a luta dos elementos.
Afinal, a penha de gelo afastou-se pouco a pouco, impelida pelo vento, a que a chalupa resistia melhor com a vela de traquete ferrada, e desapareceu por entre o nevoeiro, dando de tempos a tempos sinal da sua presença pelo surdo grunhido da sua monstruosa tripulação.
Naquele momento a fúria da tempestade redobrou: foi um desencadear sem nome de ondas atmosféricas, e a embarcação, levantada fora de água, pôs-se a girar com vertiginosa velocidade; o pano de traquete, arrancado, voou nas trevas como uma grande ave branca. No redemoinhar das vagas, formou-se um orifício circular, um novo Maelstrom. Os viajantes, enredados naquele turbilhão, correram com uma rapidez tal que as linhas de água do vórtice lhes pareciam imóveis, apesar da incalculável rapidez com que giravam. A chalupa ia, pouco a pouco, descendo abaixo da superfície do mar. No fundo do pego havia uma aspiração potente, uma sucção irresistível, que os atraía para os engolir vivos.
Todos cinco se tinham levantado e olhavam com ar de susto.
Estavam atacados de vertigem. Estavam como dominados pelo indefinível sentimento do abismo!
Mas, de repente, a chalupa levantou-se a prumo. A proa dominou as linhas do turbilhão, a velocidade de que o barco ia animado arrojou-o para fora do centro de atracção, e escapando-se pela tangente daquela circunferência, que dava mais de mil voltas por segundo, foi arremessado para fora do abismo com a velocidade de uma bala de canhão.
Altamont, o doutor, Johnson e Bell caíram de encontro aos bancos.
Quando se levantaram, não viram Hatteras, que desaparecera.
Eram duas horas da manhã.
O PAVILHÃO INGLÊS
Ao primeiro instante de pasmo seguiu-se um grito, saído a um tempo de quatro peitos.
- Hatteras! - bradou o doutor.
- Desapareceu! - exclamaram Johnson e Bell.
- Perdido!
E olharam em volta de si. No mar agitado nada se via. "Duck" ladrava com intonação de desespero, queria arrojar-se ao meio das ondas. Bell mal podia contê-lo.
- Ide vós ao leme, Altamont - pediu o doutor -, e tentemos quanto seja possível para salvar o nosso desventurado capitão.
Johnson e Bell tornaram a sentar-se nos respectivos bancos. Altamont pegou na cana do leme, e a chalupa, que por momentos vogara ao sabor das ondas, volveu a navegar com o vento.
Johnson e Bell pegaram a remar com vigor. Por espaço de uma hora permaneceu a embarcação no lugar da catástrofe, buscando, mas embalde! O desgraçado Hatteras certamente fora arrastado pelo furacão e estava perdido. Perdido! Tão perto do pólo! Tão perto do alvo que apenas entrevira!
O doutor chamou, gritou, disparou as armas; "Duck" uniu os seus latidos à voz de Clawbonny. Nada, porém, respondeu aos dois maiores amigos do capitão. Apoderou-se então de Clawbonny uma dor profunda. Deixou pender a cabeça nas mãos e os companheiros perceberam que chorava.
E na verdade, àquela distância da terra, sem um remo, sem um pedaço de pau sequer para se aguentar, Hatteras não podia ter chegado vivo à costa. Se alguma coisa dele abicara, enfim, a essa terra tão desejada, fora por certo o seu cadáver inchado e malferido.
Depois de uma hora de infrutuosas buscas, foi forçoso meter de novo a proa ao norte, e lutar contra os últimos furores da tempestade.
Às cinco horas da manhã do dia 11 de Julho, o vento abonançou, o mar foi pouco a pouco caindo, o céu readquiriu a claridade polar e, a menos de três milhas de distância, avistou-se a terra em todo o seu esplendor.
Aquele continente novo era apenas uma ilha, ou antes um vulcão, que se erguia qual farol no pólo boreal do mundo.
A montanha, em plena erupção, vomitava uma mole de pedras ardentes e de pedaços de rochas incandescentes; parecia agitada por abalos reiterados, como uma respiração de gigante. As massas, que projectava, subiam ao ar a grande altura, no meio de jactos de intensa chama; nos flancos do vulcão despenhavam-se caudais de lava em torrentes impetuosas. Aqui estorciam-se abrasadas serpentes por entre as rochas fumegantes; ali caíam, envoltas em vapores de púrpura, cascatas ardentes; mais abaixo corria a lançar-se no mar, numa embocadura em cachão, um rio caudaloso de fogo, formado de mil ígneos ribeiros.
O vulcão parecia não ter mais que uma única cratera, donde surgia a coluna de fogo, listrada de clarões transversais. Dir-se-ia que a electricidade desempenhava também algum papel naquele magnífico fenómeno.
Por sobre as chamas, que jorravam a espaços, ondeava um penacho de fumo, vermelho na base, negro no vértice, que se elevava com incomparável majestade, desenrolando-se em amplas e espessas volutas.
O céu estava revestido até grande altura de uma tinta acinzentada; a obscuridade, durante a tempestade, cuja causa o doutor não lograra adivinhar, provinha evidentemente das colunas de cinzas, que se desdobravam por diante do céu, qual véu impenetrável. Ocorreu então a Clawbonny um facto análogo, sucedido em 1812, na ilha da Barbada, que foi mergulhada à hora do meio-dia em profundas trevas, pela mole de cinzas que a cratera da ilha de São Vicente expelia.
O enorme rochedo ignívomo, nascido por assim dizer do meio do oceano, tinha mil toesas de altura, pouco mais ou menos a mesma do Hecla.
Uma linha, tirada do seu vértice para a sua base, formaria com o horizonte um ângulo de proximamente onze graus.
À medida que a chalupa se aproximava, o cerro vulcânico parecia ir surgindo, pouco a pouco, do meio das ondas. Não apresentava o menor vestígio de vegetação. Nem plaga tinha, que as suas pendentes incidiam a prumo na superfície do mar.
- Poderemos nós abordar? - perguntou o doutor.
- O vento ajuda-nos - respondeu Altamont.
- Mas não vejo ao menos um bocado de praia em que possamos desembarcar!
- Parece assim de longe, parece; mas, em lá chegando, sempre havemos de encontrar onde nos caiba a embarcação, e é quanto basta!
- Pois navega! - volveu tristemente Clawbonny.
O bom do doutor nem já se importava de ver o estranho território que em frente dele surgia. Estava ali a terra do pólo, é verdade, mas faltava aquele que a descobrira!
A quinhentos passos das rochas, o mar refervia em cachões, sob a acção de fogos subterrâneos. A ilha que aquelas águas circundavam podia ter umas oito ou dez milhas de circunferência, não mais, e, segundo a estimativa, estava muito vizinha do pólo, se é que o eixo do mundo por lá não passava exactamente.
Ao aproximarem-se da ilha, notaram os navegantes um pequeno fiorde em miniatura, mas com a amplidão suficiente para abrigar a embarcação. Para lá se dirigiram imediatamente, receando sempre encontrar o corpo do capitão arrojado à costa pela tempestade.
Parecia todavia difícil que ali repousasse um cadáver. Não havia praia; o mar vinha rebentar de encontro à rocha abrupta, cuja superfície estava coberta, para além do alcance das vagas, de uma camada de cinza virgem de todo o vestígio humano.
A chalupa, por fim, conseguiu deslizar por entre dois cachopos ao lume de água, ficando assim perfeitamente ao abrigo da ressaca.
Redobraram então os lamentosos uivos de "Duck". O pobre animal, na sua sentida linguagem, chamava pelo capitão, impetrava-o daqueles mares sem piedade, daqueles rochedos sem eco. Latia, porém, debalde, e continuava o doutor a afagá-lo com a mão, sem conseguir tranquilizá-lo, quando de súbito o fiel animal, como se quisera substituir o dono, armou um salto prodigioso e foi cair, primeiro que ninguém, naqueles rochedos, envolto numa poeira de cinzas, que se levantou como uma nuvem em roda dele.
- "Duck"! Aqui, "Duck!" - gritou o doutor. "Duck", porém, não o ouviu e desapareceu. Tratou-se logo de desembarcar. Clawbonny e os seus três companheiros puseram pé em terra, deixando a chalupa bem segura nas amarras.
Dispunha-se Altamont a trepar a um enorme montão de pedras quando, a pequena distância, retumbaram os latidos de "Duck" com uma energia desusada, parecendo exprimir não cólera, mas dor.
- Escutem! - disse o doutor.
- Algum animal de que o cão achou a pista? - supôs o mestre.
- Não! Não! - respondeu o doutor, estremecendo. - Aquilo são lamentos! São choros! O corpo de Hatteras está ali.
Ao ouvirem estas palavras os quatro homens correram no encalço de "Duck", por entre as cinzas que os cegavam. Chegaram assim ao fundo de um fiorde, a um espaço, de dez pés de diâmetro, em que as vagas vinham morrer insensivelmente.
Ali viram "Duck", gemendo junto de um cadáver envolvido na bandeira inglesa.
- Hatteras! Hatteras! - exclamou o doutor, precipitando-se sobre o corpo do amigo.
E logo soltou uma exclamação impossível de traduzir. Aquele corpo ensanguentado, aparentemente inanimado, acabava ele de senti-lo palpitar debaixo das suas mãos.
- Está vivo! Vivo! - exclamou Clawbonny.
- Sim - respondeu uma voz fraca -, vivo e na terra do pólo, para onde me arrojou a tempestade! Sim, vivo, e na ilha da Rainha!
- Hurra pela Inglaterra! - exclamaram os cinco de comum acordo.
- E pela América! - acrescentou o doutor, estendendo uma das mãos a Hatteras e a outra ao americano.
Até "Duck" gritava hurra, lá a seu modo, que não valia menos que o dos outros.
Nos primeiros momentos, aquela boa gente entregou-se toda à felicidade de tornar a ver o seu capitão; todos sentiam os olhos inundados de lágrimas.
O doutor quis certificar-se do estado de Hatteras, que na verdade não tinha ferimento grave. Arrojara-o o vento até à costa, e ali fora perigosa a abordagem. O ousado marinheiro, porém, mais de uma vez cuspido para o mar largo, lograra, por fim, à força de energia, agarrar-se fortemente a um pedaço de rocha, conseguindo assim içar-se acima das ondas.
Fora então que perdera os sentidos, depois de se embrulhar na bandeira inglesa, voltando à vida somente quando sentia as carícias de "Duck" e o ruído dos seus latidos.
Aplicado o primeiro tratamento, pôde Hatteras levantar-se e encaminhar-se, pelo braço do doutor, para a chalupa.
- O pólo! O Pólo Norte! - repetia ele pelo caminho.
- Vejo-vos feliz! - dizia o doutor.
- Sim, feliz e contente! E vós, amigo, não sentis porventura a felicidade, a alegria de estar afinal neste lugar? Esta terra que vamos pisando é a terra do pólo! Este mar que atravessámos é o mar do pólo! O ar que agora respiramos é o ar do pólo!
E, quando assim falava, Hatteras estava dominado por uma exaltação violenta, por uma espécie de febre, que o doutor tentava debalde acalmar. Os olhos do capitão brilhavam com extraordinário fulgor, os pensamentos referviam-lhe no cérebro.
Clawbonny atribuiu aquele estado de sobreexcitação aos temerosos perigos que o capitão acabava de afrontar.
Hatteras tinha evidentemente necessidade de descanso. Por consequência, tratou-se logo de descobrir um lugar adequado para acampar.
Dali a pouco Altamont havia encontrado uma gruta formada de rochedos que, ao caírem, se tinham casualmente disposto em forma de caverna; Johnson e Bell para lá levaram as provisões e soltaram os cães gronelandeses.
Por volta das onze horas, tudo estava preparado para uma refeição; a tela da barraca fazia as vezes de toalha, e o almoço, composto de pemmican, carne salgada, chá e café, estendia-se no chão, pedindo, por assim dizer, que o comessem.
Hatteras, porém, exigiu que, antes de almoçar, se levantasse um primeiro plano geral da ilha, porque queria saber o que devia pensar ao certo acerca da posição em que se achava.
O doutor e Altamont pegaram logo nos instrumentos, e pelas observações obtiveram, como posição exacta da gruta, 89 graus 59 minutos 15 segundos de latitude. Naquelas alturas, a longitude não tinha importância nenhuma, porque, a alguns centos de pés mais acima, vinham confundir-se todos os meridianos.
Era, pois, facto na realidade averiguado que a ilha se encontrava situada no Pólo Norte, e o nonagésimo grau de latitude estava apenas a quarenta e cinco segundos, exactamente três quartos de milha(1) dali, isto é, no cume do vulcão.
Logo que Hatteras teve conhecimento deste resultado, pediu que dele se lavrasse uma acta em duplicado, um dos exemplares da qual devia ficar na costa, depositado num cairn.
O doutor, por conseguinte, pegou imediatamente na pena e redigiu o seguinte documento, do qual figura actualmente um dos exemplares nos arquivos da Sociedade Real Geográfica de Londres:
«No dia 11 de Julho de 1861, a 89 graus 59 minutos 15 segundos de latitude setentrional,
*1. Pouco mais de 1200 metros.
foi descoberta "a ilha da Rainha", no Pólo Norte, pelo capitão Hatteras, comandante do brigue "Forward". de Liverpul, que a assinou, assim como os seus companheiros.
Pede-se a quem quer que encontre este documento que o faça chegar ao Almirantado.
Assinado: John Hatteras, comandante do "Forward"; Dr. Clawbonny; Altamont, comandante do "Porpoise"; Johnson, mestre da tripulação; Bell, carpinteiro.»
- E agora, amigos, para a mesa! - disse o doutor, cheio de satisfação.
CURSO DE COSMOGRAFIA POLAR
Entendido está que, sentar-se à mesa, queria ali dizer sentar-se no chão.
Mas, dizia Clawbonny, quem não daria todas as mesas e todas as casas de jantar do mundo para jantar a oitenta e nove graus, cinquenta e nove minutos e quinze segundos de latitude boreal!
Efectivamente, referiam-se os pensamentos de todos então à situação presente; os espíritos estavam completamente subjugados pela ideia predominante do Pólo Norte. Perigos afrontados para ali chegar, perigos a correr para de lá voltar, tudo esquecia no meio daquele sucesso sem precedente. O que nem antigos, nem modernos, nem europeus, nem americanos, nem asiáticos tinham logrado realizar até então, acabava de ser realizado.
Por esta razão foi o doutor atentamente escutado pelos companheiros, quando se pôs a narrar tudo quanto a sua ciência e a sua memória inesgotável puderam fornecer-lhe, a propósito da situação actual.
E foi com verdadeiro entusiasmo que Clawbonny propôs que se levantasse em primeiro lugar um brinde ao capitão, exclamando:
- A John Hatteras!
- A John Hatteras! - corresponderam os companheiros una voce.
- Ao Pólo Norte! - respondeu o capitão, com um acento estranho em homem até ali tão frio, tão concentrado, mas agora completamente dominado por uma imperiosa e desconhecida sobreexcitação.
Tocaram-se os copos e os brindes foram seguidos de cordiais apertos de mão.
- É este o facto geográfico mais importante da nossa época! - declarou o doutor. - Quem diria que esta descoberta havia de preceder a do centro da África ou da Austrália! Em verdade, Hatteras, que estais acima dos Stuart e dos Livingstone, dos Burton e dos Barth! Honra vos seja!
- É verdade, doutor - concordou Altamont. - Pelas dificuldades da empresa parece que devia ser o pólo da terra o último ponto a ser descoberto. No dia em que um governo qualquer quisesse absolutamente conhecer o centro da África, decerto o conseguia, o caso estava em não poupar homens nem dinheiro; aqui, porém, nada mais incerto que o bom resultado da empresa, porque podiam apresentar-se obstáculos absolutamente insuperáveis.
- Insuperáveis! - exclamou Hatteras com veemência. - Obstáculos insuperáveis não os há; vontades mais ou menos enérgicas, isso sim, e nada mais!
- Enfim - disse Johnson -, cá estamos; muito bem. Mas, no fim de contas, Sr. Clawbonny, dir-me-eis afinal o que o tal pólo tem de tão notável?
- O que tem de notável, meu caro Johnson, é que é o único ponto do Globo que permanece imóvel, ao passo que os outros pontos giram com extrema rapidez.
- Mas não vejo que estejamos aqui mais imóveis que em Liverpul!
- É que nem aqui nem em Liverpul percebeis o vosso movimento; e vem isso de que, em ambos os casos, a vossa própria pessoa participa do movimento ou do repouso do solo! Mas o facto não deixa por isso de ser certo. A Terra é animada de um movimento de rotação, que se realiza em vinte e quatro horas, e imagina-se que este movimento se efectua em torno de um eixo, cujas extremidades passam pelo Pólo Norte e pelo Pólo Sul. Pois bem! Onde nós estamos é numa das extremidades desse eixo necessariamente imóvel!
- Então - perguntou Bell -, ao passo que os nossos compatriotas vão girando rapidamente, estamos nós em repouso?
- Quase, visto que não estamos exactamente no pólo!
- E é verdade, doutor! - disse Hatteras com tom grave, abanando a cabeça -, faltam-nos ainda quarenta e cinco segundos para termos chegado precisamente a esse ponto!
- Pouco é! - respondeu Altamont. - Podemos considerar-nos como imóveis.
- Sim - volveu o doutor -, ao passo que os habitantes do equador andam cento e noventa e seis léguas por hora!
- E sem com isso se cansarem mais que nós! - observou Bell.
- Nem mais nem menos! - respondeu o doutor.
- Mas - tornou Johnson - a Terra, independentemente desse movimento de rotação, não tem também outro movimento em volta do Sol?
- Tem um movimento de translação, que se completa num ano.
- E é mais rápido esse que o outro?
- Infinitamente mais, e devo dizer-vos que, apesar de estarmos no pólo, esse movimento nos arrasta como a todos os habitantes da Terra. Por consequência, a nossa suposta imobilidade não passa de uma quimera; imóveis em relação aos outros pontos do Globo estamos nós, mas em relação ao Sol, não.
- Ora esta - disse Bell com acento de cómica lástima -, eu que já me julgava tão tranquilo! Renunciemos a esta ilusão! Decididamente não pode haver um momento de repouso neste mundo.
- É como dizes, Bell - apoiou Johnson. - E podereis dizer-nos, Sr. Clawbonny, qual é a velocidade do tal movimento de translação?
- É grande - exclareceu o doutor. - A Terra anda em volta do Sol setenta e seis vezes mais rápida que uma bala de vinte e quatro, que, no entanto, anda as suas noventa e cinco toesas por segundo. A sua velocidade de translação é, pois, de sete léguas e seis décimos por segundo. Como vedes, é coisa muito superior ao deslocamento dos pontos do equador.
- Diabo! - ponderou Bell. - É caso para duvidar da vossa palavra, Sr. Clawbonny! Mais de sete léguas por segundo, quando, se Deus quisesse, tão fácil era ficar imóvel!
- Ora essa! Bell! - acudiu Altamont. - Se assim fora, adeus dia e noite, adeus Primavera, adeus Estio, adeus Outono e adeus Inverno.
- Afora um outro resultado simplesmente temeroso! - acrescentou o doutor.
- Então qual? - quis saber Johnson.
- É que tínhamos caído no Sol.
- Caído no Sol?! - repetiu Bell com surpresa.
- Certamente. Se o movimento de translação viesse a parar, a Terra seria precipitada para o Sol, aonde iria cair em sessenta e quatro dias e meio.
- Uma quedazinha de sessenta e quatro dias, hem! - replicou Johnson.
- Nem mais nem menos - respondeu com toda a convicção o doutor -, que o espaço a percorrer é de trinta e oito milhões de léguas.
- E qual será o peso do globo terrestre? - inquiriu Altamont.
- É de cinco mil oitocentos e oitenta e um quatriliões de toneladas.
- Ora! - disse Johnson. - Números desses não dizem nada ao ouvido, já se lhes não compreende a significação.
- Por isso, meu estimável Johnson, vou ministrar-vos termos de comparação, que vos hão-de impressionar o espírito. Lembrem-se de que seriam necessárias setenta e cinco Luas para dar um peso igual ao da Terra, e trezentas e cinquenta mil Terras para dar o peso do Sol.
- Tudo isso é de esmagar!
- De esmagar, é o termo próprio - aprovou o doutor -, mas voltemos ao pólo, que nunca lição de cosmografia acerca deste ponto da Terra terá sido mais oportuna, se é que o assunto vos não causa aborrecimento.
- Continuai, doutor, continuai - pediu Altamont -, que a vossa lição é muito instrutiva.
- Já vos disse - continuou o doutor, que tinha tanto prazer em ensinar como os companheiros em se instruírem -, já vos disse que o pólo é um ponto imóvel em relação aos outros pontos da Terra. Pois bem, a asserção não é absolutamente verdadeira.
- Como assim - estranhou Bell -, pois nem isso?
- É verdade, Bell, nem isso, porque o pólo não ocupa sempre exactamente o mesmo lugar. A Estrela Polar esteve outrora mais afastada do pólo celeste do que está hoje. Por consequência, o nosso pólo é dotado de um certo movimento: descreve um círculo em vinte e seis mil anos, proximamente. Provém este facto da precessão dos equinócios, de que adiante falarei.
- E não poderia acontecer - lembrou Altamont - que o pólo um dia se deslocasse de um espaço maior?
- Ah! meu caro Altamont - respondeu o doutor -, que acabais de pôr o dedo num grande problema, que os homens de ciência por muito tempo debateram, em consequência de uma descoberta singular.
- Qual foi?
- Eu conto. Em 1771 descobriu-se nas praias do mar Glacial o cadáver de um rinoceronte, e em 1799 o de um elefante nas costas da Sibéria. Como e porquê se achavam aqueles quadrúpedes dos países quentes em tais latitudes? Deste facto nasceu grande rumor entre os geólogos, que não eram tão sábios como foi depois um francês, M. Elie de Beaumont, que demonstrou que aqueles animais viviam em latitudes já bastante altas e que as torrentes e os rios lhes tinham muito simplesmente levado os cadáveres para os lugares onde foram encontrados. Mas como esta explicação não fora ainda emitida, adivinhem o que inventaria a imaginação dos homens de ciência para explicar o caso?
- Os homens de ciência são capazes de tudo - declarou Altamont, sorrindo.
- Sim, de tudo são capazes para dar explicação de um facto; e foi assim que, para explicar este, supuseram que o pólo da Terra estivera outrora no equador, e o equador passara pelo pólo.
- Ora essa!
- É como vo-lo digo, e muito a sério. Ora, se assim fora, como a Terra é achatada no pólo de mais de cinco léguas, os mares, transportados ao equador pela força centrífuga, teriam coberto montanhas do dobro da altura do Himalaia; todos os territórios vizinhos do círculo polar, Suécia, Noruega, Rússia, Sibéria, Gronelândia e Nova Bretanha, teriam ficado sepultados debaixo de cinco léguas de água, ao passo que as regiões equatoriais, arrojadas para o pólo, teriam formado planaltos de cinco léguas de altura!
- Que mudança! - disse Johnson.
- Oh! Isso não era coisa que assustasse os sábios.
- E como explicavam eles esse geral transtorno? - perguntou Altamont.
- Pelo choque de um cometa. O cometa é o "Deus ex-machina". Toda a vez que aparece em cosmografia caso embaraçoso, chama-se em socorro um cometa. É o astro mais complacente que se conhece; ao menor sinal de um sábio qualquer, está sempre pronto a incomodar-se para vir acomodar tudo!
- É então opinião vossa, Sr. Clawbonny - perguntou ainda Johnson -, que esse transtorno geral é impossível?
- Impossível, sim!
- E se acontecesse?
- Se acontecesse, gelava o equador em vinte e quatro horas!
- Ora esta! E, se o caso agora sucedesse, não eram capazes de dizer que não viemos ao pólo!
- Não tenhas medo, Bell. Voltando, porém, à imobilidade do eixo terrestre, resulta de tudo isto o seguinte: que se estivéssemos neste lugar no Inverno, veríamos as estrelas descrever em volta de nós um círculo perfeito. O Sol, esse, no equinócio da Primavera, a 23 de Março, oferecer-se-nos-ia (não atendendo à refracção) exactamente cortado ao meio pela linha do horizonte, e elevar-se-ia, pouco a pouco, descrevendo curvas muito alongadas. Dá-se aqui o facto notável de que o astro do dia aparece e não torna a ocultar-se, por espaço de seis meses, em que permanece visível; passados estes, o seu disco vem de novo rasar o horizonte no equinócio do Outono, a 22 de Setembro, e, uma vez ocultado, não torna a aparecer até ao fim do Inverno.
- Faláveis há pouco de achatamento da Terra nos pólos, - recordou Johnson. - Tende a bondade de me explicar isso, Sr. Clawbonny.
- Eu explico, Johnson. Compreendeis decerto que, estando a Terra fluida nos primeiros dias do mundo, o seu movimento de rotação deveu nessa época repelir uma parte da sua massa móvel para o equador, onde a força centrífuga se fazia sentir mais intensa. Se a Terra estivesse imóvel, permaneceria sob a forma de uma esfera perfeita. Em virtude, porém, do fenómeno que acabo de descrever-vos, apresenta a Terra uma forma elipsoidal, e os pontos do pólo estão mais próximos do centro dela que os pontos do equador, pouco mais ou menos cinco léguas e um terço.
- De maneira que, se o nosso capitão nos quisesse levar daqui ao centro da Terra, tínhamos menos cinco léguas que andar para lá chegar?
- É como dizeis, amigo.
- Nesse caso, capitão, são cinco léguas de caminho andado! Eis uma ocasião que convém aproveitar...
Hatteras não respondeu. Evidentemente, estava alheio à conversação, ou escutava-a sem a ouvir.
- Por minha fé! - volveu o doutor. - Se déssemos crédito a certos sábios, talvez fosse agora o caso de tentar essa expedição.
- Ah! Pois na verdade! - disse Johnson.
- Mas deixai-me concluir - prosseguiu o doutor. - Mais tarde vos contarei isso. Quero antes explicar-vos como é que o achatamento nos pólos é causa da precessão dos equinócios, isto é, por que razão todos os anos o equinócio da Primavera vem um dia mais cedo do que viria se a Terra fosse perfeitamente redonda. Provém este facto simplesmente de que a atracção do Sol actua de maneira diferente na parte mais grossa do Globo, situada no equador, que experimenta assim um movimento retrógrado. É, subsequentemente, o que desloca um pouco o pólo, como atrás disse. Mas, independentemente deste efeito, o achatamento deveria produzir outro ainda mais curioso e mais pessoal, que nós perceberíamos se fôssemos dotados de sensibilidade matemática.
- Que quereis dizer com isso, Sr. Clawbonny? - perguntou Bell.
- Quero dizer que somos aqui mais pesados que em Liverpul.
- Mais pesados?!
- Sim, mais pesados: nós, os nossos cães, as nossas armas, os nossos instrumentos! Enfim, tudo o que para aqui trouxemos.
- Será possível?
- Decerto que é, e por duas razões: a primeira é que estamos mais próximos do centro do Globo, que por consequência nos atrai muito intensamente; e essa força atractiva não é outra senão a gravidade. A segunda é que, sendo a força de rotação nula no pólo e muito intensa no equador, os objectos têm ali tendência para afastar-se da Terra, e por consequência são ali menos pesados.
- Como assim! - exclamou Johnson. - Pois isso é sério? Nós não temos o mesmo peso em toda a parte?
- Não, Johnson; os corpos, segundo a lei de Newton, atraem-se na razão directa das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Peso mais aqui porque estou mais perto do centro de atracção, e noutro qualquer planeta pesaria mais ou menos, segundo a massa do planeta.
- Pois quê - acudiu Bell. - Na Lua?...
- Na Lua, o meu peso, que em Liverpul era de duzentas libras, seria apenas de trinta e duas.
- E no Sol?
- Oh! No Sol pesava eu mais de cinco mil libras!
- Deus grande!- - exclamou Bell. - Era necessário um guindaste para levantar a perna?
- Provavelmente! - respondeu o doutor, rindo do espanto de Bell. - Aqui, porém, a diferença não se torna sensível, e com igual esforço dos músculos da perna saltará Bell aqui à mesma altura que no cais do Mersey.
- Sim! Sim! Mas no Sol... - repetia Bell, que não podia esquecer o caso.
- A consequência de tudo isto, amigo, é que estamos bem onde estamos, e que é inútil correr outros mundos.
- Dizíeis há pouco - tornou Altamont - que talvez fosse esta a ocasião oportuna de tentar uma excursão ao centro da Terra! Porventura houve já alguém que pensasse em empreender semelhante viagem?
- Houve, e a narração desses factos terminará o que tenho a dizer-vos acerca do pólo. Não há ponto algum no mundo que tenha dado ocasião a mais hipóteses e quimeras. Os antigos, muito ignorantes em cosmografia, punham no pólo o jardim das Hespérides. Na Idade Média supôs-se que a Terra era aguentada por quícios colocados nos pólos e sobre os quais girava; mas quando se viu que os cometas se moviam livremente nas regiões circumpolares, forçoso foi renunciar a tal género de sustentáculo. Mais tarde apareceu um astrónomo francês, Bailly, que sustentou que o povo civilizado e perdido de que fala Platão, os Atlântides, vivia aqui mesmo. Enfim, nos nossos dias, alguém pretendeu que existia nos pólos uma imensa abertura, donde saía a luz das auroras boreais e pela qual era possível penetrar no interior do Globo. Depois, dentro da esfera oca, imaginou-se que existiam dois planetas: Plutão e Prosérpina, e uma atmosfera que a forte pressão que sofria tornava luminosa.
- Pois tudo isso se disse? - perguntou Altamont.
- E se escreveu, e muito a sério. O capitão Synness, nosso compatriota, até propôs a Humphry Davy, Humboldt e Arago tentar a viagem. Estes sábios, porém, recusaram.
- E fizeram bem.
- Assim o creio. Seja, porém, como for, vedes, amigos, que a imaginação humana teve livre curso acerca do pólo, e que mais tarde ou mais cedo força é volver à simples realidade.
- De resto, nós veremos - observou Johnson, que não abandonava a sua ideia.
- Nesse caso, ficam para amanhã as excursões - concluiu o doutor, sorrindo de ver o velho marinheiro pouco convencido -, e se houver alguma abertura especial para ir ao centro da Terra, iremos juntos!
O MONTE HATTERAS
Depois desta substanciosa conversação, todos se foram acochando o melhor que puderam na gruta, até que conciliaram o sono.
Todos, excepto Hatteras. Porque não dormia aquele homem extraordinário?
Não tinha, porventura, atingido o alvo de toda a sua vida? Não havia realizado os ousados planos em que lhe ia a existência? Porque não sucederia a tranquilidade à agitação naquela alma ardente?
Pois não era de crer que, realizados os seus projectos, Hatteras caísse numa espécie de abatimento? Que os seus nervos distendidos aspirassem ao repouso? Depois do sucesso, parecia até natural que fosse atacado do sentimento de tristeza que se segue sempre aos desejos satisfeitos.
Mas não. Cada vez se mostrava mais exaltado. No entanto, aquela primeira noite passada no pólo do mundo foi pura e sossegada. A ilha era absolutamente desabitada. Nem uma ave na sua atmosfera inflamada, nem um animal no seu solo de cinzas, nem um peixe nas suas águas férvidas. Somente ao longe, surdo rugir da montanha, em cuja fronte se descabelavam penachos de fumo incandescente.
Quando Bell, Johnson, Altamont e o doutor acordaram, já não acharam Hatteras junto deles. Saíram então da gruta, inquietos, e avistaram o capitão, de pé, em cima de um rochedo. Os seus olhares fixavam-se invariavelmente no cume do vulcão.
Tinha na mão os seus instrumentos náuticos. Era evidente que acabava de marcar a posição exacta da montanha.
O doutor encaminhou-se para onde ele estava e teve de dirigir-lhe por muitas vezes a palavra, antes de o tirar daquela muda contemplação. Afinal, o capitão pareceu compreendê-lo.
- A caminho! - lhe disse o doutor, examinando-o com olhar atento. - A caminho! Vamos dar uma volta à roda da nossa ilha; estamos prontos para esta última excursão.
- Última - repetiu Hatteras, com a intonação de voz peculiar das pessoas que sonham alto. - Sim, é verdade, última. Mas também - acrescentou com grande animação - a mais maravilhosa!
E, quando assim falava, passava as duas mãos pela fronte, como para acalmar-lhe o referver interior.
Naquele momento, Altamont, Johnson e Bell chegaram junto dos dois. Hatteras pareceu então sair do seu estado de alucinação.
- Amigos - disse ele com voz comovida -, obrigado pela vossa coragem, obrigado pela vossa perseverança, obrigado pelos vossos esforços sobre-humanos, que nos permitiram pôr os pés nesta terra!
- Capitão - disse Johnson -, nós não fizemos mais que obedecer, a vós somente cabe toda a honra do que praticámos.
- Não! Não! - continuou Hatteras com violenta efusão. - A vós tanto como a mim! A Altamont como a todos nós! Como ao próprio doutor! Oh! Deixai que o meu coração, que já não pode conter tanta gratidão e alegria, estale nas vossas mãos!
E Hatteras apertava nas suas as mãos dos valentes companheiros que o rodeavam. Andava de um para outro lado. Não parecia ser já senhor de si.
- Não fizemos mais que o nosso dever de ingleses - afirmava Bell.
- O nosso dever de amigos - acrescentava o doutor.
- Sim - tornou Hatteras -, mas esse dever nem todos souberam cumpri-lo. Sucumbiram alguns. Devemos, porém, perdoar a todos, aos que traíram como aos que se deixaram arrastar para a traição!
Pobre gente! Perdoo-lhes. Ouvis-me, doutor?
- Ouço - respondeu o doutor, a quem a exaltação de Hatteras começava a inquietar seriamente.
- E assim - continuou o capitão - essa pequena fortuna, que eles tinham vindo buscar tão longe, não quero eu que a percam. Não! Nada será mudado nas minhas disposições. Serão ricos... se tornarem alguma vez a ver a Inglaterra!
Era difícil não se sentir comovido com o acento com que Hatteras pronunciava aquelas palavras.
- Mas, capitão - observou Johnson, tentando alegrar o caso -, dir-se-ia que estais ditando o vosso testamento.
- E talvez - respondeu Hatteras com gravidade.
- Todavia, ao que parece, tendes diante de vós uma longa existência de glória - tornou o velho marinheiro.
- Quem sabe? - volveu Hatteras.
A estas palavras seguiu-se um silêncio bastante prolongado. O doutor não ousava interpretar o sentido das últimas palavras do capitão.
Hatteras, porém, logo se explicou com maior clareza, porque, com voz precipitada, que mal podia conter, prosseguiu assim:
- Escutai-me, amigos. Muito fizemos até aqui, e contudo resta ainda muito que fazer.
Os companheiros do capitão entreolharam-se com profundo espanto.
- Sim, estamos na terra do pólo, mas não estamos rigorosamente no pólo!
- Como assim? - disse Altamont.
- Ora essa - exclamou o doutor, receando adivinhar.
- Sim! - tornou Hatteras com energia. - Disse eu que um inglês havia de pôr o pé no pólo do mundo. Disse-o e assim há-de ser!
- Quê?... - pronunciou o doutor.
- Estamos ainda a quarenta e cinco segundos do ponto ignoto - acrescentou Hatteras, com animação crescente - e, onde quer que ele esteja, hei-de lá ir!
- Mas está mesmo no cume do vulcão! - advertiu o doutor.
- Hei-de ir!
- É um cone inacessível!
- Hei-de ir!
- É uma cratera boquiaberta, inflamada!
- Hei-de ir!
A enérgica convicção com que Hatteras proferiu as últimas palavras não pode traduzir-se. Os seus amigos estavam pasmados e contemplavam com terror a montanha, que balouçava no ar o seu penacho de chamas.
Tornou então o doutor a tomar a palavra. Insistiu e apertou com Hatteras para que desistisse do seu projecto. Disse tudo quanto o seu coração soube imaginar, desde as mais humildes súplicas até às ameaças amigáveis. Nada, porém, obteve da alma nervosa do capitão, atacado de uma espécie de loucura, que poderia chamar-se "loucura polar".
Não havia já outro meio senão recorrer à violência para deter aquele insensato, que corria à sua perda. O doutor, porém, prevendo que o emprego deste recurso poderia trazer consigo desordens graves, não quis recorrer a ele senão em último extremo.
De resto, Clawbonny esperava que algumas impossibilidades físicas, algum insuperável obstáculo, detivessem Hatteras na execução do seu projecto.
- Visto que assim tem de ser - declarou então -, acompanhar-vos-emos.
- Sim - respondeu o capitão -, até meia encosta da montanha! Mais longe, não, que é necessário que haja quem leve a Inglaterra o duplicado da acta que atesta a nossa descoberta, no caso...
- Mas...
- Está decidido - retorquiu Hatteras em tom inabalável -, e já que as súplicas do amigo não bastam, manda o capitão.
O doutor não quis insistir mais e, instantes depois, o pequeno grupo, equipado para uma ascensão difícil e precedido de "Duck", pôs-se a caminho.
O céu estava resplandecente. O termómetro marcava 52 graus (+11 graus centígrados). A atmosfera impregnava-se largamente da claridade particular das altas latitudes. Eram oito horas da manhã.
Hatteras tomou a dianteira com o valente animal; Bell e Altamont, Johnson e o doutor seguiam-nos de perto.
- Tenho medo - disse Johnson.
- Não, não, não há nada a temer - assegurou o doutor -, que vamos nós aqui.
Que singular ilhota! Como descrever-lhe a particular fisionomia, que era o imprevisto, a novidade, a mocidade! O vulcão não parecia ser antigo, e os geólogos decerto atribuiriam uma data recente à sua formação.
Os rochedos, seguros uns nos outros, só se mantinham por um milagre de equilíbrio.
A montanha, a falar a verdade, não era mais que um montão de pedras caídas do alto. Nada de terra! Nem o mais insignificante musgo, nem o mais enfezado líquen, nem vestígios sequer de vegetação. O ácido carbónico expelido pela cratera não tivera ainda tempo para se unir com o hidrogénio da água, ou com o amoníaco das nuvens, para formar, sob a acção da luz, algumas matérias organizadas.
Aquela ilha, perdida no meio do mar, era apenas o produto da agregação sucessiva das emanações de um vulcão. Assim se formaram muitas montanhas do nosso globo; o que elas próprias lançaram do seu seio bastou para as construir. Tal é o Etna, que tem vomitado já um volume de lava mais considerável que a sua própria massa; tal é também o Monte Nuovo, junto de Nápoles, gerado pelas escórias no curto espaço de quarenta e oito horas.
O montão de rochedos de que se compunha a ilha da Rainha tinha evidentemente saído das entranhas da Terra e apresentava no mais alto grau o carácter plutónico. Aquele mesmo lugar fora outrora coberto pelo mar imenso, formado, desde os primeiros tempos, pela condensação dos vapores de água sobre o Globo arrefecido. À medida, porém, que se foram apagando, ou antes entupindo, os vulcões do antigo e novo mundo, outras crateras ignívomas deviam vir substituí-los.
Efectivamente, a Terra pode comparar-se a uma enorme caldeira esferoidal. No seu seio, e sob a influência do calor central, geram-se quantidades imensas de vapores oprimidos sob uma tensão de milhares de atmosferas, que fariam voar pelos espaços, feito bocados, o globo terrestre, se não fossem as válvulas de segurança que a previdente Natureza reservou.
Estas válvulas são os vulcões; quando se fecha um, abre-se outro, e, no lugar dos pólos, onde por certo, em virtude do achatamento, é menos espessa a crusta terrestre, não é para admirar que se formasse inopinadamente um vulcão, pelo levantamento da crusta sólida acima das águas.
O doutor, à medida que ia seguindo Hatteras, notava estas particularidades estranhas, pisando um tufo vulcânico e depósitos semelhantes à pedra-pomos, feitos de escórias, de cinzas, de rochas eruptivas, semelhantes às sienites e aos granitos da Islândia.
A razão, porém, por que ele atribuía à ilhota uma origem moderna, era porque não houvera ainda tempo de se formar ali o terreno sedimentar.
Também lá não havia água. E, se a ilha da Rainha contasse muitos séculos de existência, haviam de ter brotado do seu seio fontes de águas termais, como sucede sempre nas proximidades de um vulcão. Ora, não só não havia ali uma única molécula líquida, mas até os vapores que se levantavam das torrentes de lava pareciam ser absolutamente anidros.
Por consequência, a ilha era de formação recente e, assim como aparecera num dia, podia desaparecer noutro qualquer, imergindo novamente no seio das águas. À medida que os nossos viajantes iam subindo, a ascensão tornava-se cada vez mais difícil; as pendentes da montanha iam-se aproximando da perpendicular, sendo forçoso usar de grandes precauções para evitar os esboroamentos. Frequentes vezes vinham colunas de cinzas contorcer-se em torno dos viajantes, ameaçando asfixiá-los, ou torrentes de lava vedar-lhes a passagem. Nalgumas superfícies horizontais, a lava corria, refervendo em caudais por debaixo de uma crusta sólida, formada na sua parte superior pelo resfriamento. Por isso, forçoso era preceder cada passo de prévias sondagens, para evitar o risco de se ser de repente mergulhado naquelas matérias em fusão.
De espaço a espaço, a cratera vomitava enormes fragmentos de rocha
elevados à temperatura rubra no seio dos gases inflamados; algumas daquelas moles rebentavam nos ares, quais bombas, e os estilhaços iam cair em todas as direcções a enormes distâncias.
Compreende-se, pois, de que inúmeros perigos era acompanhada a ascensão da montanha, e qual o grau de loucura necessário para a tentar.
Hatteras, todavia, trepava por ali acima com uma agilidade pasmosa, e, desdenhando apelar para o auxílio do seu pau ferrado, subia sem hesitação os mais íngremes declives.
Dentro em pouco chegou a um rochedo circular, espécie de planalto de pouco mais ou menos dez pés de diâmetro; rodeava-o por todos os lados uma torrente de lava incandescente, que se bifurcara na aresta de um penhasco superior, deixando apenas estreita passagem, por onde Hatteras meteu com audácia.
Chegado ali, parou, e os companheiros puderam alcançá-lo. Pareceu então medir com os olhos o intervalo que lhe faltava transpor. Horizontalmente não estava a mais de cem toesas da cratera, isto é, do ponto matemático do pólo; verticalmente, porém, havia ainda a subir mais de mil e quinhentos pés.
A ascensão durava já umas boas três horas. Hatteras nem fatigado parecia estar; os companheiros, porém, sentiam-se extenuados.
O cume do vulcão parecia ser inacessível. O doutor resolveu impedir a todo o custo que Hatteras subisse mais. Primeiro tentou levá-lo por bons modos, mas a exaltação do capitão chegava até ao delírio. Já durante o caminho ele apresentara todos os sinais de uma loucura crescente, do que não deve por certo admirar-se quem o conheceu e seguiu nas fases diversas da sua existência. À medida que Hatteras se ia elevando acima do nível do oceano, aquela sobreexcitação ia aumentando; o capitão já não vivia na região dos homens. Quanto mais alta lhe parecia a montanha, maior se imaginava.
- Basta! Hatteras - suplicou então o doutor -, que nós não podemos mais.
- Pois fiquem - respondeu o capitão, com voz estranha -, que eu subirei lá acima!
- Não! Porque o que ides fazer é inútil! Já estamos no pólo do mundo.
- Não! Não! Mais acima.
- Meu amigo! Sou eu que vos falo, eu, o Dr. Clawbonny! Pois não me reconheceis?
- Mais acima! Mais acima! - repetia o insensato.
- - Pois não há-de ser assim! Nós é que não havemos de consentir...
Ainda o doutor não tinha acabado de proferir estas palavras quando Hatteras, fazendo um esforço sobre-humano, transpôs de um salto a torrente de lava, e ficou fora do alcance dos companheiros.
Estes soltaram um grito de terror, porque pensaram que Hatteras se abismara na torrente de fogo; o capitão, porém, caíra do outro lado, seguido pelo fiel "Duck", que não quisera abandoná-lo.
E desapareceu encoberto por um véu de fumo; mas os companheiros continuaram por muito tempo a ouvir-lhe a voz, que decrescia com a distância, gritando sempre:
- Ao norte! Ao norte! Ao cume do Monte Hatteras! Lembrai-vos do Monte Hatteras!
Não havia que pensar sequer em seguir o capitão; as probabilidades de ficar onde ele lograra passar com aquela felicidade e destreza que é peculiar dos loucos, eram vinte contra uma; era impossível transpor a torrente de fogo, tão impossível como torneá-la.
Altamont ainda tentou, mas debalde, passar. Ia morrendo ao querer atravessar a torrente de lava; e os companheiros tiveram de retê-lo contra vontade dele.
- Hatteras! Hatteras!- - gritava o doutor.
O capitão, porém, não respondeu, e só os latidos apenas distintos de "Duck" retumbaram na montanha.
Hatteras, contudo, deixava-se ver a espaços através das colunas de fumo e debaixo das chuvas de cinza. Por entre aquele turbilhão, ora se via um braço ora uma perna. Depois tornava a desaparecer e mostrava-se mais acima agarrado aos rochedos. A sua estatura diminuía com a rapidez fantástica dos objectos que se elevam nos ares. Meia hora depois de largar os companheiros, parecia ter metade das dimensões que realmente tinha.
A atmosfera retumbava como o surdo estridor do vulcão; a montanha ressoava e roncava como uma caldeira de água a ferver; sentiam-lhe estremecer os flancos. Hatteras continuava a subir, "Duck" seguia-o.
De espaço a espaço produzia-se atrás dele um esboroamento, e algum enorme rochedo, animado de crescente velocidade, vinha, ressaltando pelas cristas da montanha, abismar-se até ao fundo da bacia polar.
Hatteras nem se voltava. Servia-se dum pau ferrado que levava, como haste a que prendera a bandeira inglesa. Os companheiros, pasmados de horror, não perdiam um só dos movimentos dele. As dimensões do capitão iam pouco a pouco parecendo microscópicas. "Duck" parecia já reduzido ao tamanho de uma ratazana.
Houve um momento em que o vento envolveu os dois num imenso véu de chamas. O doutor soltou um grito de angústia. Hatteras, porém, tornou logo a aparecer, de pé, e agitando a bandeira.
O espectáculo daquela ascensão aterradora durou por mais de uma hora. Uma hora de luta com os rochedos vacilantes, com barrancos cheios de cinza, em que aquele herói do impossível desaparecia até à cintura. Ora içando-se à força de braço, ora aguentando-se com as costas e joelhos nas anfractuosidades da montanha, e por vezes suspenso pelas mãos a alguma aresta viva, oscilando ao sabor do vento como um molho de ervas secas.
Afinal, Hatteras chegou ao topo do vulcão, mesmo ao orifício da cratera. O doutor concebeu então a esperança de que o desgraçado, tendo chegado ao alvo de seus desejos, voltasse talvez para trás, não tendo já a correr senão os riscos do regresso.
E soltou um último grito.
- Hatteras! Hatteras! - e com entonação tal que abalou o americano até ao fundo da alma.
- Hei-de salvá-lo - exclamou Altamont.
E logo, transpondo de um salto a torrente de fogo, em risco de lá cair, desapareceu por entre as rochas.
Clawbonny nem tivera tempo de o reter.
Entretanto Hatteras, depois de chegar ao cume da montanha, continuava ainda avançando por sobre o abismo, caminhando por uma saliência de rocha que lhe estava iminente. Em roda dele era uma verdadeira chuva de pedras candentes.
"Duck" continuava a segui-lo. O pobre animal também parecia estar já dominado pela atracção do abismo. Hatteras ia agitando a bandeira, que se iluminava de reflexos incandescentes, desdobrando-se em longas pregas o fundo vermelho do estandarte ao sopro da cratera.
Hatteras balançava-o numa das mãos e com a outra mostrava no zénite o pólo da esfera celeste. Todavia, parecia hesitar. É que procurava ainda o ponto matemático onde se reúnem todos os meridianos do Globo, e em que ele, na sua sublime obstinação, queria assentar o pé.
De repente faltou-lhe o rochedo debaixo dos pés; o capitão desapareceu, e um grito angustioso e terrível dos companheiros subiu até ao vértice da montanha. Um segundo, um século decorreu. Clawbonny julgou o seu amigo perdido e sepultado para sempre nas profundezas do vulcão. Mas estava ali Altamont e "Duck" também! O homem e o cão tinham ambos agarrado o desgraçado capitão mesmo no momento em que ele ia a despenhar-se no abismo. Estava salvo Hatteras, salvo contra sua vontade, e meia hora depois o capitão do "Forward", inteiramente privado de sentimento, repousava nos braços dos seus desesperados companheiros.
Quando o capitão voltou a si, o doutor perscrutou-lhe o olhar com muda ansiedade. O olhar de Hatteras, porém, inconsciente como o do cego que olha sem ver, não lhe respondia.
- Valha-nos Deus! - disse Johnson. - Está cego.
- Não! - respondeu Clawbonny. - Não! Meus pobres amigos, salvámos só o corpo de Hatteras! A sua alma, essa, ficou no topo do vulcão! A sua razão apagou-se!
- Louco! - exclamaram Johnson e o americano, consternados.
- Louco, sim - confirmou o doutor.
E corriam-lhe as lágrimas pela cara abaixo.
REGRESSO AO SUL
Três horas depois deste triste desenlace das aventuras do capitão Hatteras, Clawbonny, Altamont e os dois marinheiros estavam reunidos na gruta do sopé do vulcão.
E, ali, todos pediram a Clawbonny que emitisse a sua opinião acerca do que convinha fazer.
- Meus amigos - disse então o doutor -, não podemos prolongar a nossa estada na ilha da Rainha. Em frente de nós temos o mar livre; as provisões são em quantidade suficiente; por consequência, o que convém é largar já daqui a toda a pressa para o Forte Providência, onde invernaremos até ao próximo Estio.
- É também essa a minha opinião - declarou Altamont. - O vento está bom; amanhã já podemos meter-nos ao mar.
Passou-se o dia em profundo abatimento. A loucura do capitão era de mau agouro, e Johnson, Bell e Altamont, quando pensavam no regresso, tremiam do abandono em que se viam, aterravam-se com a distância. Faltava-lhes a alma intrépida de Hatteras.
Todavia, como homens enérgicos que eram, aprestaram-se para lutar novamente contra os elementos e até contra si mesmos, se alguma vez se sentissem esmorecer.
No dia seguinte, sábado, 13 de Julho, embarcou-se o trem de acampamento, e dali a pouco estava tudo pronto para a partida.
O doutor, porém, antes de deixar para sempre aquele rochedo, quis cumprir os desejos de Hatteras, e fez levantar um cairn exactamente no ponto em que o capitão abicara à ilha. O cairn foi edificado com enormes penhascos sobrepostos, de modo que formasse um vulto perfeitamente visível, se acaso o respeitassem os azares da erupção.
Numa das pedras laterais esculpiu Bell a simples inscrição que se segue:
JOHN HATTERAS
1861
No interior do cairn depositou-se o duplicado do documento, hermeticamente fechado num canudo de lata, e o testemunho da grande descoberta ficou assim abandonado naqueles rochedos desertos.
Os quatro homens e o capitão - pobre corpo sem alma - e o seu fiel "Duck", triste e gemebundo, embarcaram, afinal, para a viagem de regresso. Eram dez da manhã. Com os panos da barraca arranjou-se mais uma vela. A chalupa, singrando de vento em popa, largou da ilha da Rainha e, ao cair da noite, o Dr. Clawbonny, de pé no seu banco, lançou um derradeiro olhar ao Monte Hatteras, que resplandecia flamejante no horizonte.
A travessia foi rápida; o mar, sempre livre, prestava fácil navegação, e na realidade parecia ser mais fácil fugir do pólo do que aproximar-se dele.
Hatteras, porém, não estava em condições de compreender nada do que em volta dele se passava; permanecia deitado no fundo da chalupa, silencioso, com o olhar apagado e os braços cruzados sobre o peito, e "Duck" deitado a seus pés. Embalde lhe dirigia o doutor a palavra, que Hatteras não o ouvia.
Durante quarenta e oito horas foi a brisa favorável e o mar de pouca vaga. Clawbonny e os companheiros não tiveram mais do que deixar actuar o vento norte.
A 15 de Julho, os navegantes avistaram ao sul Altamont-Harbour; mas como o oceano polar estava desobstruído ao longo de toda a costa, resolveram contorná-la toda e ganhar por mar a baía Vitória, em vez de atravessar em trenó a terra da Nova América.
A viagem era assim mais rápida e mais fácil. Efectivamente, aquele espaço, que os viajantes tinham gasto quinze dias a passar no trenó, foi agora navegado em oito dias apenas, e ainda, seguindo os nautas todas as sinuosidades de uma costa franjada de numerosos fiordes, cuja configuração deixaram perfeitamente determinada. Chegaram à baía Vitória na segunda-feira, 23 de Julho, ao cair da noite.
Ancorada com toda a segurança a chalupa na praia, correram todos ao Forte Providência. Mas que devastação! Doctor's House, armazéns, paiol, fortificações, tudo se desfizera em água, sob a acção dos raios solares, e as provisões tinham sido saqueadas pelos animais carnívoros.
Triste e desconsolador espectáculo!
Os navegantes estavam quase sem provisões, e contavam refazer-se delas no Forte Providência.
Mas a impossibilidade de ali passar o Inverno tornou-se então evidente, e os nossos viajantes, como gente habituada a pronta resignação e resolução, decidiram ganhar desde logo o mar de Baffin pelo caminho mais curto.
- Não há outro partido a seguir - afirmou o doutor -, o mar de Baffin está a menos de seiscentas milhas. Enquanto houver água debaixo da quilha, podemos nós navegar; ganharemos pois o estreito de Jones, e daí os estabelecimentos dinamarqueses.
- Pois seja - anuiu Altamont! -, tratemos de reunir as provisões que nos restam e partamos.
Esquadrinhando bem, ainda se encontraram algumas caixas de pemmican espalhadas aqui e acolá, e duas barricas de carne de conserva, que tinham escapado à destruição. Aprovisionamento para seis semanas, em suma, e pólvora bastante. Tudo isto se juntou prontamente, aproveitando-se o resto do dia em calafetar a chalupa e pô-la em estado de navegar; no dia seguinte, 24 de Julho, fizeram-se os nossos viajantes de novo ao mar.
O continente, nas vizinhanças do octogésimo terceiro grau de latitude, inflectia para leste. Era possível que fosse entestar com as terras conhecidas pelo nome de terra Grinnel, Ellesmer e Lincoln-Setentrional, que formam a linha costeira do mar de Baffin.
E, assim, podia dar-se como certo que o estreito de Jones abria para os mares interiores, à imitação do estreito de Lancastre.
A partir daquele ponto navegou a chalupa sem grandes dificuldades, evitando facilmente os gelos flutuantes. O doutor, para prevenir quaisquer demoras possíveis, reduziu os companheiros a meia ração de víveres; mas eles, em suma, não se cansavam muito, e o estado sanitário manteve-se bom.
De resto, sempre iam atirando um ou outro tiro; e assim mataram alguns patos, gansos e tarambolas, que lhes ministraram alimento fresco e saudável. A reserva líquida, essa, facilmente se refazia nas penhas de gelo de água doce, que se encontravam no caminho, porque os viajantes tinham sempre cuidado de se não afastarem das costas; nem a chalupa era embarcação que aguentasse o mar largo.
Naquela época do ano já o termómetro estava constantemente abaixo do ponto de congelação; o tempo, depois de ter estado sempre chuvoso, tornou-se nervoso e sombrio; o Sol começava já a rasar de perto o horizonte e o seu disco cada dia se ocultava mais. A 30 de Julho, perderam os viajantes de vista o astro pela primeira vez, isto é, tiveram uma noite de alguns minutos.
A chalupa, entretanto, singrava admiravelmente, avançando por vezes sessenta até setenta e cinco milhas em vinte e quatro horas; não se parava um instante; todos sabiam que fadigas a aguentar, que obstáculos a transpor, representaria a viagem por terra, no caso de vir a ser forçoso fazê-la assim, e que aqueles estreitos canais dali a pouco estariam obstruídos e inavegáveis. Em diversos pontos começavam já a aparecer gelos novos. Nas latitudes elevadas, o Inverno segue inopinadamente o Estio; não há Primavera nem Outono; faltam estas estações intermédias. E, assim, toda a pressa era pouca.
A 31 de Julho, como o céu estava puro ao pôr do Sol, avistaram-se as principais estrelas das constelações zenitais. A partir daquele dia reinou um constante nevoeiro, que embaraçou consideravelmente a navegação.
O doutor, quando viu que assim se multiplicavam os sintomas do Inverno, ficou muito inquieto, porque sabia com que dificuldades lutara Sir John Ross para alcançar o mar de Baffin, depois que abandonou o navio do seu comando; e como, depois de tentar a primeira vez a passagem dos gelos, fora este audaz marinheiro forçado a regressar ao seu navio e a invernar quarta vez; mas aquele, ao menos, tinha um abrigo, provisões e combustível para lutar contra os rigores da estação.
Se tal desgraça acontecesse aos sobreviventes do "For-ward", se fossem forçados a deter-se ou a voltar para trás, estavam perdidos. Não comunicou estas suas apreensões aos companheiros, mas tratou de ganhar quanto possível no rumo de leste.
Afinal, a 15 de Agosto, depois de trinta dias de navegação bastante rápida, depois de terem lutado por quarenta e oito horas contra os gelos que se iam acumulando nos canais, depois de terem cem vezes arriscado a frágil chalupa, os navegantes acharam-se absolutamente detidos, sem esperança de poderem ir mais além; o mar por todos os lados estava coalhado e o termómetro já não marcava em média mais de 15 graus abaixo de zero (-9 graus° centígrados).
De resto, para a parte de norte e de leste não era difícil reconhecer a proximidade de uma costa, que se denunciava pelo aparecimento dessas pequenas pedras chatas e arredondadas, que as ondas gastam de encontro às praias; também se encontravam agora com mais frequência gelos de água doce.
Altamont fez a sua observação com escrupulosa exactidão, e obteve 77 graus° 15 minutos de latitude e 85 graus 02 minutos de longitude.
- Sendo essa a nossa posição exacta - disse o doutor -, abicámos ao Lincoln-Setentrional, precisamente no cabo Éden. Estamos na entrada do estreito de Jones. Com mais um poucochinho de felicidade, achávamo-lo desobstruído até ao mar de Baffin. Mas, ainda assim, não há grande razão de queixa. Se o meu pobre Hatteras encontrasse no princípio um mar tão fácil, tinha chegado rapidamente ao pólo. Nem os companheiros o haviam abandonado, nem ele tinha perdido a razão com tão excessivas e terríveis angústias!
- Nesse caso - declarou Altamont -, não há outra coisa a fazer senão abandonar a chalupa e tratar de alcançar em trenó a costa oriental do Lincoln.
- Abandonar a chalupa e servir-se do trenó, bem está - aquiesceu o doutor -, mas, em vez de atravessar o Lincoln, proponho eu que transponhamos o estreito de Jones por sobre os gelos, e que ganhemos o Devon-Setentrional.
- Porquê? - quis saber Altamont.
- Porque, quanto mais nos aproximarmos do estreito de Lancastre, mais probabilidades teremos de encontrar baleeiros.
- Isso é verdade, doutor; mas o que eu receio é que os gelos não estejam ainda bastante ligados para nos oferecer passagem praticável.
- Tenta-se - respondeu Clawbonny.
Descarregou-se logo a chalupa. Bell e Johnson reconstruíram o trenó, cujas peças estavam todas em bom estado. No dia seguinte atrelaram-se-lhe os cães, e os viajantes meteram ao longo da costa para ganhar o ice-field.
Recomeçou então aquela viagem, tantas vezes já descrita, tão fatigante e pouco rápida. Altamont tivera razão de desconfiar do estado do gelo: não foi possível atravessar o estreito de Jones e foi forçoso seguir a costa do Lincoln.
A 21 de Agosto, os viajantes, cortando obliquamente, chegaram à entrada do estreito da Geleira; aí, aventuraram-se a marchar sobre o ice-field, e no dia seguinte alcançaram a ilha Cobourg, que atravessaram em menos de dois dias, debaixo de borrascas de neve. Puderam então meter de novo pelo caminho mais fácil do gelo e, afinal, a 24 de Agosto, puseram o pé no Devon-Setentrional.
- Agora - comunicou o doutor -, falta-nos só atravessar esta terra e ganhar o cabo Warender, à entrada do estreito de Lancastre.
O tempo, porém, tornou-se horroroso e extremamente frio; rajadas de neve e turbilhões readquiriram a violência invernal. Os viajantes sentiam-se extenuados. As provisões iam-se esgotando e todos tiveram de reduzir-se a terço de ração, a fim de conservar aos cães alimento proporcionado ao seu trabalho.
A natureza do terreno acrescentava também bastante às fadigas da viagem; a terra do Devon-Setentrional era em extremo acidentada. Foi necessário transpor os montes Trauter por gargantas impraticáveis, lutando contra todos os elementos desencadeados. Trenó, homens e cães tudo lá ia ficando, e por mais de uma vez se apoderou o desespero do pequeno grupo, apesar de tão aguerrido e afeito às fadigas de uma expedição polar. É que aquela pobre gente, mesmo sem o perceber, estava gasta moral e fisicamente. Não se suportam impunemente dezoito meses de fadigas incessantes e uma série enervante de alternativas de esperança e desesperança. Demais, convém notar que, em qualquer viagem, a ida faz-se com mais entusiasmo e convicção do que a volta. Os desgraçados a custo se arrastavam e pode dizer-se que só por hábito iam marchando, por um resto de energia animal, quase independente da vontade.
Só a 30 de Agosto é que enfim saíram daquele caos de montanhas, de que a orografia das zonas baixas não pode dar ideia, mas saíram dali pisados e semigelados. Nem a filosofia do doutor era capaz de incutir forças aos companheiros, que até ele próprio se sentia desfalecer.
Os montes Trauter iam entestar com uma espécie de planície convulsionada pelo levantamento primitivo da montanha.
Foi absolutamente necessário tomar ali alguns dias de repouso. Os viajantes nem já podiam pôr um pé adiante do outro; dos cães de tiro dois tinham já morrido de cansaço.
Os viajantes abrigaram-se por detrás de uma penha de gelo, por um frio de 2 graus abaixo de zero (-19 graus centígrados). Ninguém teve coragem de armar a barraca.
As provisões estavam extremamente reduzidas e, apesar da grande parcimónia com que eram distribuídas as rações, não podiam durar mais de oito dias; a caça ia-se tornando rara, porque para aguentar o Inverno ia passando a climas menos ásperos. Erguia-se, por consequência, ameaçador, perante aquelas vítimas extenuadas, o espectro da morte pela fome.
Altamont, que mostrava uma grande dedicação e uma verdadeira abnegação, aproveitou um resto de forças e resolveu arranjar, por meio da caça, algum alimento para os companheiros.
Pegou pois na arma, chamou "Duck", e meteu-se pelas planícies do norte. O doutor, Johnson e Bell viram-no afastar-se quase com indiferença. Durante uma hora, nem uma só vez ouviram a detonação da espingarda e viram-no regressar sem ter dado um tiro. O americano, porém, vinha para os companheiros como um homem horrorizado.
- Que há de novo? - perguntou o doutor.
- Além! Debaixo da neve! - respondeu Altamont com entonação de terror, mostrando um ponto no horizonte.
- Quê?
- Um grupo inteiro de homens!...
- Vivos?
- Mortos... gelados... e até...
O americano não ousou concluir a frase, mas a sua fisionomia exprimia indizível horror.
O doutor, Johnson e Bell, reanimados por aquele incidente, encontraram forças para se levantarem e se arrastarem atrás de Altamont, em direcção àquela parte da planície que ele indicara com o gesto.
Dentro em pouco chegaram a um espaço apertado, no fundo de uma ravina profunda, e ali, que espectáculo viram diante de si!
Aqui e ali, da espessura da neve saíam cadáveres já hirtos, semienterrados debaixo daquele branco lençol; aqui um braço, além uma perna, mais além mãos encrespadas, cabeças que ainda conservavam a sua fisionomia de ameaça e de desespero!
O doutor aproximou-se, mas recuou logo, pálido, com as feições demudadas, ao passo que "Duck" uivava com sinistro terror.
- Que horror! Que horror! - exclamou Clawbonny.
- Então? - perguntou o mestre.
- Pois não os reconhecestes? - tornou o doutor, com voz transtornada.
- Que quereis dizer?
- Olhai!
A ravina fora, havia pouco, teatro de uma derradeira luta dos homens com o clima, com o desespero e até com a fome; que, por certos restos horríveis, claro estava que àqueles desgraçados tinham servido de repasto os cadáveres dos próprios companheiros; talvez carnes ainda palpitantes; entre eles o doutor reconhecera Shandon, Pen, enfim, toda a miserável tripulação do "Forward". Esgotaram-se as forças, faltaram os víveres àqueles desventurados; a chalupa que levavam tinha provavelmente sido esmagada pelas avalanchas ou arrojada a algum abismo, por forma que não puderam aproveitar o mar livre. É também de supor que se perdessem no meio daqueles continentes desconhecidos. Demais a mais, gente que, como aquela, partira animada pela excitação da revolta, não podia permanecer muito tempo unida, naquela forte união que torna possível a realização de grandes feitos. Um chefe de revoltosos não tem entre mãos senão um poder duvidoso. E Shandon, decerto, fora logo vencido.
Fosse como fosse, aquela tripulação passara evidentemente por mil torturas, mil desesperos, até chegar à temerosa catástrofe; mas o segredo de tantas misérias ficara sepultado com os desgraçados para sempre nas neves do pólo.
- Fujamos! Fujamos! - exclamou o doutor.
E arrastou os companheiros para longe do lugar do desastre. O horror deu a todos uma energia momentânea. Meteram-se de novo a caminho.
CONCLUSÃO
Para que insistir na descrição dos males de que seguidamente foram vítimas os que sobreviveram à expedição? Nem eles próprios puderam jamais recordar miúdamente os oito dias que decorreram depois da descoberta horrível dos restos da tripulação. Contudo, a 9 de Setembro, por um milagre de energia, acharam-se no cabo Horsburg, na extremidade do Devon-Setentrional.
Estavam a morrer de fome. Havia quarenta e oito horas que nada comiam, e a sua última refeição fora feita com a carne do último cão esquimó. Bell não podia ir mais além e o velho Johnson sentia-se morrer.
Estavam nas praias do mar de Baffin, em parte coalhado ainda, isto é, no caminho da Europa. A três milhas da costa, as ondas descongeladas rebentavam com ruído nas arestas vivas do campo de gelo.
Força era esperar ali a passagem problemática de algum baleeiro; mas por quantos dias ainda?
O céu, porém, teve piedade daqueles desgraçados, porque logo no dia seguinte Altamont avistou distintamente uma vela no horizonte.
São bem conhecidas as angústias que acompanham estas aparições de navios; que receios de que seja mais uma esperança perdida!
O navio ora se afastava, ora se aproximava. Estas alternativas de esperança e desesperança são horríveis, e as mais das vezes, no momento em que os pobres náufragos se julgam salvos, a vela entrevista afasta-se, até que se esvai no horizonte.
O doutor e os companheiros passaram por todas estas provas. Tinham chegado ao limite ocidental do campo de gelo, equilibrando-se, aguentando-se uns aos outros, e viram desaparecer pouco a pouco aquele navio, sem que ninguém de lá notasse a sua presença. Chamavam, chamavam, porém, debalde!
Foi então que o doutor teve uma derradeira inspiração daquele talento industrioso que tão bem o servira até então.
Um pedaço de gelo, apanhado pela corrente, veio chocar com o ice-field.
- Este pedaço de gelo! - disse, apontando para ele. Ninguém lhe compreendeu a intenção.
- Embarquemos! Embarquemos! - continuou o doutor.
Iluminou-se de repente o espírito de todos.
- Ah! Sr. Clawbonny, Sr. Clawbonny! - repetiu Johnson, beijando as mãos do doutor.
Bell, auxiliado por Altamont, correu ao trenó, trouxe de lá um dos montantes, cravou-o no pedaço de gelo como um mastro, e amarrou-o com cordas; rasgou-se a barraca para fazer uma vela. O vento era favorável. Os infelizes abandonados precipitaram-se na frágil jangada e fizeram- se ao largo.
Duas horas depois de inauditos esforços, os últimos tripulantes do "Forward" eram acolhidos a bordo do "Hans Christien", baleeiro dinamarquês, que se dirigia para o estreito de Davís.
O capitão recebeu, como homem caridoso, aqueles espectros, que já nem tinham aparência humana. À vista dos sofrimentos deles compreendeu-lhes a história e prodigalizou-lhes os mais atenciosos cuidados, logrando assim conservar-lhes a vida.
Dez dias depois desembarcavam Clawbonny, Johnson, Bell, Altamont e o capitão Hatteras em Korsceur, no Seeland, na Dinamarca, donde foram levados por um barco a vapor a Kiel; dali, por Altona e Hamburgo, ganharam Londres, aonde chegaram, nos fins do mesmo mês, ainda mal restabelecidos de tantas e tão longas provas.
O primeiro cuidado do doutor foi pedir licença à Sociedade Real Geográfica de Londres para lhe fazer uma comunicação, ao que foi admitido na sessão de 15 de Outubro.
Imagine-se a admiração daquela sábia sociedade e os seus hurras entusiásticos depois da leitura do documento de Hatteras!
Aquela viagem, única no seu género, sem precedentes nos fastos da história, resumia todas as descobertas anteriormente feitas no seio das regiões circumpolares; ligava as expedições dos Parry, dos Ross, dos Franklin e dos Mac Clure; completava, entre o meridiano cem e o meridiano cento e quinze, o mapa das regiões hiperbóreas e, enfim, tivera por termo esse ponto do Globo até então inacessível, o próprio pólo.
Nunca, nunca notícia tão inesperada rebentou de súbito como aquela no seio da Inglaterra assombrada.
Os Ingleses são apaixonados por estes grandes factos geográficos. A Inglaterra toda se sentiu comovida e ufana, desde o lorde até ao cokney, desde o prince merchant até ao operário das docas.
A nova da grande descoberta correu por todos os fios telegráficos do Reino Unido com a rapidez do raio; os jornais inscreveram o nome de Hatteras no alto das colunas, como o de um mártir, e a Inglaterra inteira estremeceu de orgulho.
O doutor e os companheiros foram muito festejados, e até apresentados a sua Graciosa Majestade pelo lorde Grande Chanceler, em audiência solene.
O Governo confirmou os nomes de ilha da Rainha, para o rochedo do Pólo Norte, de Monte Hatteras, dado ao próprio vulcão, e de Altamont-Harbour, dado ao porto da Nova América.
Altamont não mais se separou dos seus companheiros de miséria e de glória, agora seus amigos. Acompanhou o doutor, Bell e Johnson a Liverpul, que os aclamou no regresso, depois de por tanto tempo os ter julgado mortos e sepultados nos eternos gelos.
Toda esta glória atribuía-a o doutor sempre àquele que entre todos a merecia. Na sua narração de viagem, que teve por título "The English at the North-Pole", e que foi publicada no ano seguinte a expensas da Sociedade Real de Geografia, Clawbonny fez John Hatteras igual aos maiores viajantes, émulo desses homens ousados que se sacrificaram inteiramente aos progressos da ciência.
Entretanto, aquela triste vítima de uma paixão sublime vivia pacificamente numa casa de saúde de Sten-Cottage, nos arredores de Liverpul, onde o seu amigo doutor tinha ido em pessoa instalá-lo. A sua loucura era sossegada, mas não falava, nada compreendia, e a palavra parecia tê-lo abandonado ao mesmo tempo que a razão. Só um sentimento o prendia ainda ao mundo exterior: a sua amizade por "Duck", de quem não quisera separar-se.
Ia assim aquela enfermidade, aquela "loucura polar", seguindo pacificamente o seu curso, sem apresentar sintoma algum particular, quando um dia o Dr. Clawbonny, que frequentes vezes visitava o pobre enfermo, ficou impressionado com o modo de ser do doente.
Havia algum tempo que o capitão Hatteras, seguido do seu fiel cão, que o contemplava com um olhar meigo e triste, passeava todos os dias por espaço de muitas horas; aqueles passeios realizavam-se sempre em determinado sentido, na direcção de uma certa rua do jardim de Sten-Cottage. O capitão, logo que chegava ao extremo da rua, voltava ao princípio, recuando. Se alguém o detinha, apontava com o dedo para um ponto fixo do céu. Se alguém queria forçá-lo a voltar-se, irritava-se, e "Duck", que partilhava a sua cólera, ladrava com fúria.
O doutor observou, atento, aquela mania singular, e logo compreendeu o motivo de tão estranha obstinação; adivinhou prontamente por que razão aqueles passeios se realizavam sempre numa direcção constante e, por assim dizer, debaixo do influxo de uma força magnética.
Era que o capitão Hatteras marchava invariavelmente na direcção do norte!
Júlio Verne
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