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Series & Trilogias Literarias
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
CAPÍTULO 53
BARGEN, SUÍÇA
A cinco quilômetros e meio da fronteira com a Alemanha, no fim de um estreito vale arborizado, fica a pequena Bargen, famosa na Suíça por ser a cidade mais a norte do país. Tem pouco para oferecer além de uma estação de serviço e de um mercadinho frequentado por viajantes de passagem. Ninguém pareceu reparar nos dois homens que esperavam no estacionamento, dentro de um grande Audi. Um tinha cabelo fino, que esvoaçava ao vento e estava a beber café por um copo de papel. O outro tinha olhos cor de esmeralda e observava o movimento veloz do trânsito na auto-estrada: luzes brancas a dirigirem-se para Zurique, luzes verme lhas a deixarem um rastro a caminho da fronteira com a Alemanha. A espera... Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que uma van transportando um assassino russo ferido chegue.
— Vai ser um barulho dos diabos lá naquele banco. — disse Eli Lavon.
— Becker vai abafar tudo. Não tem outra escolha.
— E se não conseguir?
— Então, limpamos a trapalhada depois.
— Ainda bem que os suíços se juntaram ao mundo moderno e acabaram com seus postos fronteiriços. Lembra dos velhos tempos, Gabriel? Chateavam sempre que entrávamos ou saíamos.
— Nem consigo dizer quantas vezes esperei enquanto os arrogantes rapazinhos suíços vasculhavam minha bagagem. Agora, mal olham para uma pessoa. Este é nosso quarto russo em três dias e, mais uma vez, ninguém terá conhecimento de nada.
— Estamos fazendo um favor.
— Se continuamos neste ritmo, não vai sobrar nenhum russo na Suíça.
— É exatamente o que eu quero dizer.
Foi precisamente nessa hora que uma van fez a curva e entrou no estacionamento. Gabriel saiu do Audi e aproximou-se. Ao abrir a porta traseira, viu Sarah e Navot sentados no chão do compartimento de carga. Petrov estava estendido entre ambos.
— Como ele está?
— Ainda inconsciente.
— Pulsação?
— Boa.
— Como estamos com a perda de sangue?
— Não muito mal. Acho que as balas cauterizaram os vasos sanguíneos.
— O Boulevard vai enviar um médico ao local do interrogatório. Ele se aguenta?
— Vai ficar ótimo — respondeu Navot, entregando a Gabriel um pequeno saco plástico com ziper. — Pegue aí uma lembrança.
Era o anel de Petrov. Gabriel enfiou o saco no bolso do casaco com cuidado e fez sinal a Sarah para sair da van. Ajudou-a a entrar no banco de trás do Audi e depois pôs-se ao volante. Cinco minutos mais tarde, os dois veículos já estavam do outro lado da fronteira invisível, a salvo, seguindo para norte, em direção à Alemanha. Sarah conseguiu manter as emoções controladas por mais alguns minutos. Depois, encostou a cabeça na janela e começou a chorar.
— Agiu bem, Sarah. Salvou a vida de Uzi.
— Nunca tinha dado um tiro em ninguém.
— Sério?
— Não brinque, Gabriel. Não me sinto lá muito bem.
— Mas logo vai se sentir melhor.
— Quando?
— Mais cedo ou mais tarde.
— Acho que vou vomitar.
— Quer que pare?
— Não, continue.
— Tem certeza?
— Não sei.
— Acho melhor parar só por garantia.
— É.
Gabriel encostou à beira da estrada e agachou-se ao lado de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia para vomitar.
— Fiz por você, Gabriel.
— Eu sei, Sarah.
— Fiz pela Chiara.
— Eu sei.
— Quanto tempo vou me sentir assim? — Não muito.
— Quanto tempo, Gabriel? Ele esfregou as costas de Sarah enquanto o corpo dela se contorcia todo outra vez.
Não muito, pensou. Só para sempre.
QUARTA PARTE
PORTA DE RESSURREIÇÃO
CAPÍTULO 54
NORTE DA ALEMANHA
Para cada casa segura, há uma história. Um vendedor que anda sempre com a mala de viagem atrás e raramente vai a casa. Um casal com demasiado dinheiro para ficar muito tempo no mesmo lugar. Uma alma aventurosa que viaja para terras longínquas para tirar fotografias e escalar montanhas. Essas são as histórias que se contam aos vizinhos e aos senhorios. Essas são as mentiras que explicam os inquilinos de curta duração e os hóspedes que chegam a meio da noite com as chaves nos bolsos.
A casa de campo perto da fronteira com a Dinamarca também tinha uma história, ainda que uma parte fosse por acaso verdade. Antes da Segunda Guerra Mundial, tinha sido propriedade de uma família chamada Rosenthal. Todos os seus membros tinham morrido durante o Holocausto, com a excepção de uma moça que, após emigrar para Israel a meio da década de 1950, deixara a casa de família ao Escritório. Conhecida como Local 22XB, a propriedade era a menina dos olhos da Divisão dos Trabalhos Domésticos, reservada apenas para as operações mais sensíveis e importantes. Gabriel considerava que um assassino russo atingido por dois tiros e carregado de segredos vitais na cabeça se inseria claramente nessa categoria. A Divisão dos Trabalhos Domésticos concordara. Deram-lhe as chaves da casa e providenciaram para que a despensa estivesse bem abastecida.
A casa ficava a cerca de cem metros de uma estrada rural sossegada, um solitário posto avançado na planície triste e uniforme da Jutland Ocidental. O tempo tinha deixado as suas marcas. O estuque precisava de uma boa esfregada, as persianas estavam quebradas e a pelar devido à falta de tinta, e o telhado deixava entrar água sempre que chegavam as grandes tempestades vindas do mar do Norte. Lá dentro, a história era semelhante: pó e teias de aranha, salas que não se encontravam propriamente mobiladas, objetos e aparelhos de uma era passada.
Com efeito, andar pelos corredores era recuar no tempo, especialmente para Gabriel e Eli Lavon. Conhecida pelos veteranos do Escritório como Château Shamron, a casa servira de base para o planejamento da Operação Ira de Deus. Aqui, tinham sido condenados à morte homens, tinham sido selados destinos. No segundo andar, ficava o quarto que Lavon e Gabriel haviam partilhado. Atualmente, tal como então, apenas duas camas estreitas, separadas por uma mesinha-de-cabeceira lascada. Quando Gabriel parou à porta, surgiu-lhe uma imagem na cabeça: o vigia e o executor deitados na escuridão, sem conseguir adormecer, um por causa do estresse, o outro por causa das visões sangrentas. O velhinho transístor que lhes tinha preenchido as horas vagas continuava em cima da mesa. Tinha sido a ligação deles ao mundo exterior. Falara-lhes de guerras ganhas e perdidas, de um presidente americano que se demitira em desgraça; e, por vezes, nas noites de Verão, dava-lhes música. A música que os rapazes normais andavam a ouvir. Rapazes que não andavam a matar terroristas para Ari Shamron. Gabriel atirou a mala para cima da sua antiga cama — a que se situava mais perto da janela — e desceu as escadas, em direção ao porão. Anton Petrov estava deitado de costas no chão de pedra, com Navot, Yaakov e Mikhail em pé junto dele. Tinha mãos e pés presos, embora a essa altura provavelmente já não fosse necessário. Sua pele estava branca como a de um fantasma, a testa úmida de transpiração, o maxilar inchado onde Navot batera. O russo necessitava desesperadamente de cuidados médicos, mas só os receberia se falasse. Ou Gabriel deixaria que as balas alojadas na pélvis e no ombro envenenassem se corpo com septicemia. A morte seria lenta, febril e agonizante. A morte que merecia, e Gabriel estava mais do que preparado para concedê-la. Pôs-se de cócoras ao lado do russo, e falou com ele em alemão: — Acho que isso é seu.
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou de lá o saco plástico que Navot tinha dado na fronteira. O anel de Petrov continuava lá dentro. Gabriel tirou-o e o apertou com força na pedra. Da base, saiu um pequeno estilete, não muito maior do que uma agulha de vitrola. Gabriel fez questão de mostrar que o examinava bem e aproximou-o subitamente do rosto de Petrov. O russo encolheu-se de medo, virando a cabeça para a direita com violência.
— O que há, Anton? É só um anel.
Gabriel aproximou-o um pouquinho mais da pele macia do pescoço de Petrov. O russo se contorcia todo, aterrorizado. Gabriel apertou-o outra vez na pedra e a agulha se recolheu sem perigo à base do anel. Voltou a colocá-lo no saco plástico e entregou-o a Navot com cuidado.
— Para que tudo se fique a saber, nós trabalhamos num dispositivo semelhante. Mas, para ser franco, nunca achei grande graça a venenos. São para bandidos reles como tu, Anton. Prefiro matar com uma destas.
Gabriel tirou a Glock 45 da cintura e apontou para o rosto de Petrov. O silenciador já não estava atarraxado à extremidade do cano. Ali, não era necessário.
A um metro, Anton. É assim que eu prefiro matar, a um metro de distância. Dessa maneira, consigo ver os olhos do meu inimigo antes de ele morrer. Virshqya mera: a mais grave forma de punição continuou Gabriel, encostando o cano da pistola à base do queixo do russo. Uma sepultura não identificada. Um cadáver sem rosto.
Gabriel utilizou o cano da pistola para abrir o peito da camisa de Petrov. O ferimento no ombro não tinha bom aspeto: fragmentos de ossos, pedaços de roupa. Não havia dúvida de que o quadril estaria no mesmo estado. Gabriel fechou a camisa e fitou Petrov diretamente nos olhos.
— Está aqui porque seu amigo Vladimir Chernov o traiu. Nem tivemos de fazer-lhe mal. Na verdade, nem sequer tivemos de ameaçar. Demos só algum dinheiro e ele contou tudo o que queríamos saber. Agora, é sua vez, Anton. Se colaborar, vai receber cuidados médicos e será tratado de forma humana. Caso contrário...
Gabriel encostou o cano da arma no ombro de Petrov e pressionou com força o ferimento. Os gritos de Petrov ecoaram além das paredes do porão. Gabriel parou antes que o russo desmaiasse.
— Compreende, Anton?
O russo acenou com a cabeça.
— Se eu continuar aqui com você por muito tempo, espanco-o até a morte com as minhas próprias mãos — prosseguiu, olhando de relance para Navot. — Vou deixar que o meu amigo se encarregue do interrogatório. Uma vez que tentou matá-lo com seu anel em Zurique, parece perfeitamente justo. Não concorda, Anton?
O russo ficou em silêncio.
Gabriel pôs-se de pé e subiu as escadas sem mais uma palavra O resto da equipe estava espalhado pela sala de estar, em di versos estados de exaustão. O olhar de Gabriel recaiu de imediato sobre o mais novo membro do grupo, um médico que tinha sido enviado pelo Boulevard King Saul para tratar dos ferimentos de Petrov. No léxico do Escritório, tratava-se de um sayan, um ajudante voluntário. Gabriel reconheceu-o. Era um judeu de Paris que em tempos lhe tinha tratado um golpe fundo e grave na mão. Como está o paciente? — perguntou o médico em francês.
— Não é um paciente — respondeu Gabriel na mesma língua.
É um bandido do KGB.
— Continua a ser um ser humano.
— Se fosse a si, não opinaria até ter oportunidade de estar com Ele.
E quando isso vai acontecer? Não sei ao certo.
Fale-me dos ferimentos.
Gabriel fê-lo.
Quando ele os sofreu? 295 Gabriel olhou de relance para o relógio.
— Há praticamente oito horas.
— Essas balas precisam de sair cá para fora. Caso contrário...
— Elas saem cá para fora quando eu disser que saem. Eu fiz um juramento, monsieur. E não irei renunciar a esse juramento por estar a desempenhar um serviço a si. Eu também fiz um juramento. E, esta noite, o meu juramento prevalece sobre o seu.
Gabriel virou-se e subiu as escadas em direção ao seu quarto. Estendeu-se na cama, mas, de cada vez que fechava os olhos, via apenas sangue. Incapaz de expulsar a imagem dos pensamentos, esticou o braço e rodou o botão familiar do rádio. Uma alemã de voz sensual deu-lhe as boas-noites e começou a ler as notícias. A chanceler propunha uma nova era de diálogo e cooperação entre a Europa e a Rússia. Tencionava revelar a sua proposta na cúpula de emergência do G8 que se realizaria em Moscou dentro de pouco tempo.
Como uma febre noturna, Petrov soçobrou ao amanhecer. Não seguiu uma linha reta durante a sua viagem em direção à verdade, mas Gabriel também não esperava que o fizesse. Petrov era um profissional. Conduziu-os para becos de ilusão e levou-os por caminhos sem saída repletos de enganos. E, apesar de ter trabalhado apenas por dinheiro, tentou ser leal à Rússia e ao seu santo padroeiro, Ivan Kharkov, de forma admirável. Navot tinha sido paciente Mas firme. Não era necessário infligir mais dor ou sequer ameaçar fazê-lo, pois Petrov já sofria o suficiente. Tudo aquilo que tinham de fazer era mantê-lo consciente. Os dois ferimentos provocados Pelas balas e o maxilar partido fizeram o resto. Por fim, exausto e a tremer devido ao começo da infeção, o russo capitulou. Disse que havia uma datcha a nordeste de Moscou, na província de Vladimirskaya. Era um lugar isolado, escondido, Protegido. Havia quatro riachos que convergiam para um grande Pântano e uma extensa floresta de bétulas. Era o lugar onde Ivan tratava dos seus assuntos sanguinários. Era a prisão de Ivan. O Inferno de Ivan na Terra. Navot localizou o lote de terra utilizando um software normal de nível comercial. A imagem na tela correspondia perfeitamente à descrição de Petrov. Mandou chamar o médico e subiu para informar Gabriel.
Ele estava deitado na escuridão, com os dedos entrelaçados na nuca e os tornozelos cruzados. Ao ouvir as notícias, sentou-se direito e girou os pés para o chão. A seguir, utilizou o PDA seguro para enviar uma mensagem curta e segura para três pontos do globo: Boulevard King Saul, Thames House e Langley. Uma hora após o nascer do Sol, partiu sozinho para Hamburgo. Às duas da tarde, embarcou no voo 969 da British Airways e, pelas 15h15, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro do MI5, a caminho do centro de Londres.
CAPÍTULO 55
MAYFAIR, LONDRES
Nos dias negros que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, a embaixada americana em Grosvenor Square foi transformada numa monstruosidade de máxima segurança. Quase do dia para a noite, brotaram barricadas e muros antiexplosões à volta do perímetro, e, para grande ira dos londrinos, uma rua movimentada junto à embaixada ficou permanentemente encerrada ao trânsito. Mas houve outras alterações que as pessoas não puderam ver, incluindo a construção de um anexo secreto da CIA bem abaixo da praça propriamente dita. Ligado ao Centro de Operações Globais, em Langley, o anexo funcionava como um posto avançado de comando para operações na Europa e no Médio Oriente e era tão secreto, que apenas um punhado de ministros britânicos e agentes sabiam de sua existência. Durante uma visita no Verão anterior, Graham Seymour ficara deprimido ao ver que o anexo fazia com que os principais centros de operações do MI5 e do MI6 Parecessem minúsculos. Era típico dos americanos, pensou. Confrontados com a ameaça do terrorismo islâmico, tinham escavado um buraco bem fundo para si próprios, enchendo-o de brinquedos de alta tecnologia. E ainda se perguntavam por que estavam perdendo.
Seymour chegou pouco depois das oito da noite e foi levado ao aquário, uma sala de conferências segura com paredes de vidro à prova de som. Gabriel e Ari Shamron estavam sentados de um lado da mesa; Adrian Carter estava de pé, parado no centro da sala, varinha a laser na mão. Na tela, surgia uma imagem, captada por um satélite espião americano, cobrindo a Rússia Ocidental. Mostrava uma pequena datcha, localizada precisamente a duzentos e seis quilômetros a nordeste da Torre da Trindade, no Kremlin. O pontinho vermelho do ponteiro de Carter estava focado em dois Range Rover estacionados à porta da casa. Havia dois homens parados ao lado deles.
— Os nossos analistas fotográficos acham que há mais seguranças posicionados nas traseiras da datcha — o pontinho vermelho mexeu-se três vezes —, aqui, aqui e aqui. E também dizem que é evidente que estes Range Rover têm andado para lá e para cá. Há dois dias, houve um nevão de vários centímetros nessa zona. Mas esta imagem mostra marcas de pneu recentes.
— Quando foi captada?
— Ao meio-dia. Os analistas conseguem ver marcas em ambas as direções.
— Mudanças de turno?
— Suponho que sim. Ou reforços.
— E em relação a comunicações?
— A datcha tem eletricidade, mas a NSA tem dificuldades em localizar um telefone fixo. Estão seguros de que alguém ali dentro usa um telefone-satélite. E também pegaram comunicações entre celulares.
— Conseguem acessá-las?
— Estão nisso.
— E o que sabemos da propriedade propriamente dita?
— É controlada por uma holding com base em Moscou.
— Quem controla essa holding?
— Quem você acha?
— Ivan Kharkov?
— Claro — respondeu Carter.
— Quando ele comprou o terreno?
— No início dos anos noventa, não muito tempo depois da queda da União Soviética.
— Mas por que diabos Ivan comprou um terreno com bétulas e pantanal, a mais de duzentos quilômetros de Moscou?
— Provavelmente, pôde comprá-lo por alguns copeques, ao preço da chuva.
— Ele já era rico nessa época. Por que este lugar?
— A CIA e a NSA têm várias aptidões, mas ler a mente de Ivan não é uma delas.
— Qual é o tamanho da propriedade?
— Várias centenas de hectares.
— E o que ele faz com tanta terra?
— Aparentemente, nada.
Gabriel levantou-se da cadeira e aproximou-se da tela. Ficou olhando em silêncio, a mão no queixo e a cabeça inclinada, como se examinasse uma tela. Tinha o olhar focado numa parte da floresta, a duzentos metros da datcha. Apesar de a floresta ser coberta de neve, as imagens aéreas mostravam três depressões paralelas na topografia, cada uma precisamente do mesmo tamanho da outra. Eram uniformes demais para serem um fenômeno natural. Carter antecipou a pergunta seguinte de Gabriel: — Os analistas ainda não conseguiram entender o que são essas coisas. Algum projeto de construção. Descobriram outra série delas a pouca distância dessas.
— E há alguma foto?
Carter pressionou um botão do painel. A fotografia seguinte mostrava um padrão semelhante: três depressões paralelas, tapadas por bétulas. Gabriel lançou um olhar longo a Shamron e regressou a seu lugar. Carter desligou a varinha a laser e pôs na mesa.
— Pelos carros e pela presença de tantos guardas, é evidente que alguém importante está naquela datcha. Se se trata da Chiara e Grigori ... — a voz de Carter foi sumindo. — Suponho que a única maneira de ter certeza seja in loco. A questão que se coloca é: estão dispostos a ir lá com base na palavra de um assassino russo mestre em sequestros? — Os olhos de Carter foram saltando de um rosto para o outro. — Calculo que nenhum de vocês gostaria de explicar com um pouquinho mais de detalhe como encontraram Petrov tão depressa, não?
A pergunta recebeu como resposta um silêncio pesado. Carter virou-se para Gabriel.
— Devo assumir que Sarah participou de algum crime?
— De vários.
— E onde ela está agora?
— Não posso revelar.
— Com Petrov, presumo? — Gabriel assentiu com a cabeça. — Gostaria de tê-la de volta. E Petrov, também gostaria de tê-lo... quando já não precisarem dele, claro. Ele pode ajudar a encerrar alguns casos em aberto. — Voltou a virar-se para a foto de satélite. — Parece que vocês têm duas opções. Opção número um: ir ao Kremlin, apresentar aos russos as provas do envolvimento de Ivan e pedir que intervenham.
Foi Shamron quem respondeu: — Os russos já tornaram mais do que claro que não têm intenção de ajudar. Além disso, ir até o Kremlin é a mesma coisa do que ir ver Ivan. Se levantarmos esta questão com o presidente russo...
— ... o presidente russo informará Ivan — interrompeu Gabriel, completando a frase. — E Ivan responderá matando Grigori e minha mulher.
Carter acenou com a cabeça, em sinal de concordância. — Então, suponho que isso deixe apenas a opção número dois: entrar na Rússia e trazê-los de lá pelas próprias mãos. Sinceramente, o presidente e eu previmos que seria essa sua escolha. E ele está preparado para oferecer uma ajuda considerável.
Shamron disse duas palavras: — Kachol v’lavan.
Carter esboçou um ligeiro sorriso.
— Peço desculpas, Ari. Falo quase tantas línguas quanto você, mas hebraico não é uma delas.
— Kachol v’lavan — repetiu Gabriel. — Quer dizer “azul e branco”, as cores da bandeira israelense. Contudo, para dinossauros como Ari, quer dizer muito mais. Quer dizer que tratamos das coisas com nossas próprias mãos e não contamos com os outros para nos ajudar a resolver os problemas que nós próprios criamos.
— Mas na verdade não foram vocês que criaram este problema. Foram atrás de Ivan porque nós pedimos. O presidente considera que temos alguma responsabilidade no que aconteceu e acha que devemos cuidar dos amigos.
— E que tipo de ajuda o presidente oferece?
— Por razões compreensíveis, não podemos executar o resgate propriamente dito. Tendo em vista que os Estados Unidos e a Rússia continuam com milhares de mísseis apontados um para o outro, pode não ser muito prudente trocar tiros em solo russo. Mas podemos ajudar de outras maneiras. Para começar, podemos fazer com que entre no país de forma a não acabar logo logo de cara em Lubyanka.
— E?
— Podemos fazer com que volte a sair de lá. Com os reféns, claro.
— Como?
Carter jogou um passaporte americano na mesa. Era vermelho-borgonha em vez de azul e tinha carimbada a palavra OFICIAL.
— Apenas um nível abaixo do passaporte diplomático. Não terá imunidade total, mas com certeza fará com que os russos pensem duas vezes antes de te tocar.
Gabriel abriu o passaporte. Por enquanto, a página com os dados pessoais não incluía foto, apenas um nome: AARON DAVIS.
— E o que o Mr. Davis faz? Trabalha no apoio logístico ao presidente, na Casa Branca. Como provavelmente sabem, o presidente estará em Moscou na quinta e na sexta-feira para a cúpula de emergência do G8. A maior parte da equipe de apoio logístico da Casa Branca já está no terreno. Já tratei de tudo para que a equipe receba uma aquisição de última hora.
— Aaron Davis?
Carter confirmou com um movimento da cabeça.
— E como ele vai entrar?
— No carplane.
— Desculpe?
— É o nome não oficial do C-17 Globemaster que transporta a limusine presidencial. E também leva uma grande equipe de agentes do serviço secreto americano. Aaron Davis embarcará no avião numa parada de reabastecimento em Shannon, na Irlanda. Seis horas depois, aterrissa no Aeroporto Sheremetyevo. A seguir, um carro da embaixada americana o levará ao Hotel Metropol.
— E a volta?
— Mesmo percurso, direção contrária. Na sexta-feira no fim da tarde, após a última sessão da cúpula, o presidente russo dará um jantar de gala. Nosso presidente tem a volta a Washington agendada para depois do jantar, bem como o resto da delegação e o corpo de imprensa acreditado na Casa Branca. Os ônibus partem do Metropol às dez da noite em ponto. A comitiva segue diretamente para a pista de Sheremetyevo e embarca nos aviões. Vamos ter passaportes falsos a postos para Chiara e Grigori, para o caso de ser necessário. Mas, na realidade, o mais certo é que os russos não verifiquem passaportes.
— Quando chego a Moscou?
— Está previsto que o carplane aterrisse em Sheremetyevo poucos minutos das quatro da madrugada de quinta feira Pelos meus cálculos, isso te dará quarenta e oito horas na Rússia depois de aterrissar. Tudo o que tem a fazer é arranjar uma maneira de tirar Chiara e Grigori daquela datcha e estar outra vez no Metropol até dez da noite de sexta-feira.
— Sem ser preso ou morto pelo exército de capangas de Ivan.
— Lamento, mas aí não posso ajudar. E também tem um problema mais imediato. O emissário de Ivan está à espera de resposta às suas exigências amanhã à tarde, em Paris. A não ser que o convença a atrasar o prazo por vários dias... — Carter não teve coragem para terminar de dizer o pensava.
Gabriel fez isso por ele: — Toda esta conversa é puramente acadêmica.
— Receio que isso seja verdade.
Gabriel olhou fixamente para a fotografia de satélite da datcha no meio das árvores; a seguir, para os relógios pendurados na parede, com os diferentes fusos horários. Depois fechou os olhos. E viu tudo.
Surgiu em sua mente como um ciclo de vastos quadros, tinta a óleo em tela, executados pela mão de Tintoretto. Os quadros revestiam a nave de uma pequena igreja em Veneza e estavam escuros pelo verniz amarelado. Gabriel, nos seus pensamentos, como que flutuava por eles, Chiara a seu lado, o seio dela encostado a seu cotovelo e os longos cabelos roçando seu pescoço. Mesmo com a ajuda de Carter, tirar Chiara e Grigori vivos da datcha seria um pesadelo operacional e logístico. Ivan estaria jogando em seu território. Todas as vantagens seriam dele. A não ser que Gabriel, de alguma maneira, conseguisse virar a situação. Por meio do engano...
Gabriel tinha de fazer com que Ivan baixasse a guarda. Tinha de mantê-lo ocupado na hora do assalto. E, mais premente ainda, tinha de convencê-lo a não matar Chiara e Grigori por mais quatro dias. Para conseguir isso, precisava de mais uma coisa de Adrian Carter. Não de uma, na verdade, mas de duas. Piscou os olhos, afastando a visão de Veneza, e contemplou uma vez mais a foto da datcha nas árvores. Sim, pensou outra vez, precisava de mais duas coisas de Adrian Carter, mas não estavam na mão do americano. Apenas uma mãe podia fazê-lo. E assim, com a bênção de Carter, entrou numa sala desocupada no canto mais afastado do anexo e fechou a porta silenciosamente. Teclou o número de telefone da propriedade isolada nas montanhas de Adirondack. E perguntou a Elena Kharkov se podia emprestar as duas únicas coisas que ela ainda tinha no mundo.
CAPÍTULO 56
PARIS
No rescaldo de toda aquela situação, durante o inevitável período de análise e desconstrução que se segue a um caso desta magnitude, houve um animado debate em relação a quem, entre o extenso elenco de personagens, detinha a maior responsabilidade pelo resultado final. Um dos participantes não recebeu qualquer pedido de opinião e certamente que não teria arriscado dar nenhuma se tal tivesse sido feito. Era um homem de poucas palavras, um homem que ocupava um posto solitário. O seu nome era Rami e a sua missão era velar por um tesouro nacional, o Memuneh. Rami já estava ao lado do Velho há quase vinte anos. Era o outro filho de Shamron, aquele que ficava em casa enquanto Gabriel e Navot andavam pelo mundo fora a fazerem de heróis. Era aquele que entregava cigarros ao Velho sorrateiramente e lhe mantinha o zippo cheio de gasolina. Aquele que passava noites sentado no terraço em Tiberíades, a ouvir as histórias do Velho pela milionésima vez e a fingir que era a primeira. E era aquele que caminhava exatamente vinte passos atrás do Velho, às quatro horas da tarde seguinte, quando este entrou no Jardim das Tulherias, em Paris.
Shamron encontrou Sergei Korovin onde ele disse que estaria, sentado completamente direito e hirto num banco de madeira junto ao Jeu de Paume. Trazia um cachecol de lã grosso debaixo do sobretudo e estava a fumar a ponta de um cigarro que não deixava dúvida alguma sobre a sua nacionalidade. No momento em Que Shamron se sentou, Korovin levantou o braço esquerdo e olhou demoradamente para o relógio de pulso. Estás dois minutos atrasado, Ari. Nem parece teu.
— A caminhada levou-me mais tempo do que estava à espera. Tretas — atirou Korovin, baixando o braço. — Devias saber que a paciência não é um dos pontos fortes de Ivan. É por isso que ele nunca foi escolhido para trabalhar na Primeira Direção Principal. Foi considerado demasiado impetuoso para a espionagem pura. Tivemos de o enviar para a Quinta, onde podíamos tirar bom proveito do seu temperamento.
— A partir cabeças, queres tu dizer? Korovin encolheu os ombros descomprometidamente.
— Alguém tinha de o fazer.
— Ele deve ter sido uma grande desilusão para o pai.
— Ivan? Era filho único. Fizeram-lhe... as vontades.
— Nota-se.
Shamron tirou uma cigarreira de prata do bolso do sobretudo e levou o seu tempo a acender um cigarro. Korovin, irritado, lançou um novo olhar furibundo para o relógio.
— De repente, devia ter-te deixado uma coisa bem clara, Ari. Este prazo limite era mais do que hipotético. Ivan está a contar com notícias minhas. Se isso não acontecer, o mais provável a tua agente apareça com uma bala na nuca. Isso seria bastante estúpido, Sergei. É que, se Ivan matar a minha agente, vai perder a única hipótese que tem de recuperar os filhos.
A cabeça de Korovin virou-se bruscamente na direção de Shamron.
— O que está dizendo, Ari? Os americanos aceitaram devolver os filhos de Ivan à Rússia?
— Não, Sergei; os americanos, não. A decisão foi da Elena. Como pode calcular, ficou completamente desfeita, mas não quer que seja derramado mais sangue por causa do marido. — Shamron interrompeu-se por uns instantes. — E também conhece os filhos suficientemente bem para perceber que eles deixarão a Rússia mal tenham idade para isso e que voltarão para ela.
A idade parecia ter cobrado seu preço na capacidade de dissimulação de Korovin. Soprou uma nuvem de fumo para o crepúsculo parisiense e fez cara feia para tentar esconder a surpresa.
— O que há, Sergei? Disse que Ivan queria os filhos — testou Shamron, observando o russo cuidadosamente. — Faz-me pensar que sua proposta não era séria.
— Não seja ridículo, Ari. Só estou estupefato por ter sido realmente capaz de fazer com que isso acontecesse.
— Achei que soubesse há muito tempo que nunca deve me subestimar.
Os jardins começavam a ser envolvidos pela escuridão que se ia acumulando. Shamron olhou rapidamente em redor e depois fixou os olhos em Korovin.
— Estamos sozinhos, Sergei?
— Estamos sozinhos.
— Alguém ouvindo?
— Ninguém.
— Tem certeza?
— Ninguém se atreveria. Posso estar velho, mas ainda sou o Korovin.
— E eu ainda sou Shamron. Por isso, ouça com atenção, porque não vou dizer isto duas vezes. Na quinta-feira, às duas da tarde, hora de Washington, o embaixador russo nos Estados Unidos deve apresentar-se no portão principal da Base Andrews da força aérea. Será recebido pelas forças de segurança da base e por um grupo de agentes da CIA e do Departamento de Estado, que o levarão para uma área VIP, onde ele será autorizado a passar alguns minutos com a Anna e o Nikolai Kharkov. Shamron fez uma pausa.
Estás a acompanhar-me, Sergei? Duas da tarde, quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Quando o encontro tiver terminado, as crianças serão colocadas a bordo de um C-32, a versão do exército de um Boeing 757, que aterrissará na Rússia às nove da manhã em ponto de sexta-feira. Os americanos querem usar para isso o aeródromo à saída de Konakovo. Sabes de qual estou a falar, Sergei? É a antiga base a que foi convertida para uso civil quando a sua força aérea deixou de saber pilotar aviões.
Korovin acendeu mais um dos seus cigarros russos e, lentamente, apagou o fósforo com a mão.
— Nove horas. No aeródromo à saída de Konakovo. A Elena não quer que as crianças saiam do avião e passem para os braços de um desconhecido qualquer. Ela insiste que Ivan vá ao aeroporto recebê-las. Se ele não estiver lá, as crianças não saem desse avião. Estamos entendidos quanto a isso, Sergei? — Sem Ivan, não há crianças.
— Às nove e cinco, o avião irá estar estacionado com as portas abertas. Se a minha agente estiver à entrada da embaixada israelense em Moscou, as crianças saem desse avião. Se ela não estiver lá, a tripulação põe os motores a trabalhar e parte outra vez. E nem se ponham com ideias de se armarem em duros com esse avião. Trata-se de solo americano. E às nove da manhã de sexta-feira, o presidente americano estará sentado com o presidente russo e os outros líderes do G8 para um pequeno-almoço de trabalho no Kremlin. Não iríamos querer estragar o ambiente, pois não, Sergei? Diz o que quiseres do nosso presidente, Ari, mas ele é um homem que respeita o direito internacional...
— Se isso é verdade, então porque ele deixa Ivan inundar os cantos mais voláteis do mundo com armas russas? E porque o deixou raptar um dos meus agentes como moeda de troca para recuperar os filhos? — Ao receber apenas silêncio como resposta, Shamron atirou: — Suponho que seja tudo uma questão de dinheiro, não é, Sergei? Quanto dinheiro o teu presidente exigiu aIvan? Quanto Ivan teve de pagar pelo privilégio de sequestrar Grigori e a minha agente? O nosso presidente está ao serviço do povo. Essas histórias Da sua riqueza são mentiras e propaganda ocidental concebidas para desacreditar a Rússia e mantê-la fraca.
— Está indicando sua idade, Sergei.
Korovin ignorou o comentário.
— Quanto à agente desaparecida, Ivan não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela. Achei que tinha deixado isso bem claro no nosso primeiro encontro.
— Oh, sim, eu me lembro. Mas agora deixe-me deixar a coisa bem clara. Se a minha agente não tiver reaparecido, sã e salva, às nove da manhã de sexta-feira, partirei do princípio de que você e o seu cliente agiram de má-fé. E isso vai fazer com que eu fique muito zangado.
— Ivan não é meu cliente. Sou apenas um mensageiro.
— Não é não. É Korovin — respondeu Shamron, observando o trânsito veloz em volta da Place de la Concorde. — Sabe a identidade da agente que Ivan deteve?
— Sei muito pouco.
Shamron soltou um sorriso de desilusão.
— Você era um jogador de pôquer melhor, Sergei. Sabe exatamente quem ela é. E sabe exatamente quem é o marido dela. E isso quer dizer que sabe o que vai acontecer se ela não for libertada. — Shamron deixou cair a ponta do cigarro no caminho de cascalho. — Mas, para que não haja nenhum desentendimento, vou deixar tudo bem claro. Se Ivan matar a agente, considerarei o Kremlin responsável e, a seguir, solto meu serviço em cima do seu. Nenhum agente russo, em nenhuma parte do mundo, vai andar pelas ruas sem sentir nossa respiração na nuca. — Shamron pôs a mão no antebraço de Korovin. — Estamos entendidos, Sergei?
— Estamos entendidos, Ari.
— Ótimo. E há mais outra coisa. Quero Grigori Bulganov. E não me diga que ele não é da minha conta.
Korovin hesitou e depois respondeu: — Vamos ver.
— Duas da tarde de quinta-feira, Base Andrews da força aérea. Nove da manhã de sexta-feira, no aeródromo em Konakovo. Nove da manhã de sexta-feira, a minha agente à porta da nossa embaixada em Moscou. Não me desapontes, Sergei. Vão perder-se muitas vidas se o fizeres.
Shamron levantou-se sem mais uma palavra e dirigiu-se para o Louvre, com Rami a caminhar agora vigilantemente ao seu lado.
O guarda-costas não tinha conseguido ouvir, mas tinha certeza de uma coisa: o Velho continuava mandando; e deixara Sergei Korovin completamente aterrorizado.
CAPÍTULO 57
AEROPORTO SHANNON, IRLANDA
O nome Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, não lhes era familiar. As ordens que tinham, no entanto, não eram em nada ambíguas. Tinham de o ir buscar aquando da parada para reabastecimento no Aeroporto Shannon e levá-lo para Moscou sem qualquer empecilho. E não tentemfalar com ele durante o voo. Não é do tipo falador. Não perguntaram porquê. Eram do serviço secreto americanos.
Nunca lhes disseram o nome verdadeiro dele nem o país de origem. Nunca souberam que o misterioso passageiro era uma lenda, nem que tinha passado as quarenta e oito horas anteriores em Londres, embrenhado num trabalho logístico de um gênero bem diferente, em constante vaivém entre Grosvenor Square e a embaixada israelense em Kensington. E, embora estivesse visivelmente fatigado e tenso, todos aqueles que se cruzaram com Gabriel durante esse Período se recordam da sua extraordinária compostura. Não perdeu a calma uma única vez, disseram. Não mostrou a sua inquietação uma única vez. A sua equipe, fisicamente desgastada após duas semanas no terreno respondeu com velocidade-relâmpago à pressão, calma mas contínua, exercida por ele. Apenas doze horas depois do telefonema para Elena Kharkov, metade estava já em plena Moscou com as credenciais à volta do pescoço e os disfarces intatos. O resto juntou-se-lhes mais tarde, durante essa noite, incluindo o chefe das Operações Especiais, Uzi Navot. Mais nenhum serviço secreto do mundo teria colocado no terreno um homem com uma posição tão importante, num território tão hostil. Mas a verdade nenhum outro serviço secreto se equiparava de fato ao Escritório.
Shamron esteve sempre ao lado de Gabriel, salvo por umas quantas horas, quando regressou a Paris para apertar a mão de Sergei Korovin. Ivan estava a ficar nervoso. Ivan tinha dúvidas em relação a tudo aquilo. Ivan não compreendia por que razão tinha de esperar até sexta-feira para ter os filhos de volta. “Ele quer fazer isso já”, disse Korovin. “Quer despachar a questão de uma vez por todas.” Shamron não disse ao seu velho amigo que já sabia tudo isso nem que a NSA tinha tido a gentileza de lhes facultar a gravação original, bem como uma transcrição. Em vez disso, assegurou ao russo que não havia qualquer motivo para preocupação. Elena necessitava apenas de algum tempo para preparar os filhos, e a si própria, para a separação que se aproximava. “Com certeza que até um monstro como Ivan consegue compreender como isto vai ser difícil para ela.” No que dizia respeito aos horários, Shamron deixou bem claro que não haveria nenhuma alteração: duas da tarde na Base Andrews, nove da manhã em Konakovo, nove da manhã na embaixada israelense de Moscou. Sem Ivan, não haveria crianças. Sem Chiara, não haveria nenhum lugar seguro para nenhum agente do serviço secreto russos à face da terra. “E não te esqueças, Sergei... também queremos Grigori de volta.” Apesar de ter tentado não o demonstrar, o encontro de Paris deixou Shamron profundamente perturbado. A jogada de Gabriel tinha desorientado Ivan claramente, mas também o tinha posto a suspeitar de uma armadilha. A janela de oportunidade de Gabriel seria curta, apenas uns quantos minutos, não mais. Teriam de agir rápida e decididamente. Foram essas as palavras de Shamron a Gabriel, ao final da noite de quarta-feira, enquanto iam sentados no banco de trás de um carro da CIA, na pista do Aeroporto Shannon fustigada pela chuva.
A mala de Gabriel estava entre ambos e ele tinha os olhos fixos no gigantesco C-17 Globemaster que dentro de pouco tempo o deixaria em Moscou. Shamron fumava — embora agente da CIA lhe tivesse dito repetidas vezes para não o fazer e passar em revista toda a missão uma vez mais. Gabriel, ainda que exausto, ouviu-o pacientemente. A recapitulação era mais para proveito de Shamron do que para seu. O Memuneh iria passar as quarenta e oito horas seguintes como um espetador impotente, no anexo da CIA. Aquela era a última hipótese que tinha de sussurrar diretamente para o ouvido de Gabriel e aproveitou-a sem hesitar. E Gabriel fez-lhe a vontade, porque precisava de ouvir a voz do Velho uma última vez antes de entrar naquele avião. A voz deu-lhe coragem, fé. Fê-lo acreditar que a operação até poderia resultar, ainda que tudo o resto lhe dissesse que estava condenada ao fracasso. Mal consigas enfiá-los no carro, não pares. Mata toda a gente que precisares de matar. E quero mesmo dizer toda agente. Nós depois limpamos o que houver para limpar. É o que fazemos sempre. Foi então que bateram à janela. Era a escolta fornecida pela CIA, a dizer que o avião estava pronto. Gabriel deu um beijo na cara de Shamron e disse-lhe para não fumar muito. A seguir, saiu do carro e encaminhou-se para o C-17 , no meio da chuva. Por enquanto, era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um. Levava uma mala americana cheia de roupa americana. Um celular americano cheio de números americanos. Um BlackBerry americano cheio de e-mails americanos. E também tinha um segundo PDA, com caraterísticas não disponíveis nos modelos normais, mas que pertencia a outra pessoa. Um rapaz do vale de Jezreel. Um rapaz que se teria tornado um artista se não fosse por um grupo de terroristas palestinos conhecido como Setembro Negro. Nesta noite, esse rapaz não existia. Era um quadro que se tinha perdido nas brumas do tempo. Agora, era Aaron Davis, do Escritório de Apoio Logístico ao Presidente, na Casa Branca, e levava uma mão-cheia de credenciais para o provar. Pensava pensamentos americanos, sonhava sonhos americanos. Era um americano, mesmo que não fosse capaz de falar realmente como um; mesmo que também não fosse capaz de andar realmente como um. Afinal de contas, não havia uma limusine presidencial a bordo do avião mas sim duas, bem como um trio de vans blindadas.
O chefe da equipe do serviço secreto americanos era uma mulher; levou Gabriel até um lugar no centro do avião e deu-lhe uma parca para se proteger do frio cortante. Para sua grande surpresa, conseguiu dormir um pouco, algo de que precisava desesperadamente, apesar de um agente ter observado mais tarde que ele pareceu começar a agitar-se no preciso instante em que o avião entrou no espaço aéreo russo. Acordou, sobressaltado, quinze minutos antes da aterragem e, enquanto o avião ia descendo em direção a Sheremetyevo, pensou em Chiara. Como teria ela viajado para a Rússia? Teria sido amarrada e amordaçada? Teria estado consciente? Teria sido drogada? Assim que o avião aterrou, forçou-se a afastar essas perguntas da cabeça. Não havia Chiara, disse a si mesmo. Não havia Ivan. Havia apenas Aaron Davis, um homem ao serviço do presidente americano, um sonhador de sonhos americanos, que agora se encontrava apenas a alguns minutos do seu primeiro encontro com as autoridades russas.
Estavam à espera na pista escura, batendo com força com os pés no chão para afastar o frio penetrante, no momento em que Gabriel e a equipe do serviço secreto americanos desceram em fila pela rampa traseira destinada à carga. Ao lado da delegação russa, estavam dois funcionários da embaixada americana, um dos quais era agente não declarado da CIA sob disfarce diplomático. Os russos receberam Gabriel com apertos de mão e sorrisos calorosos e, a seguir, deram uma mera e rápida olhada ao seu passaporte antes de o carimbar. Em troca, Gabriel ofereceu a cada um uma pequena prova da boa vontade americana: botões de punho da Casa Branca. Passados cinco minutos, já se encontrava sentado no banco de trás de um carro da embaixada, seguindo a grande velocidade Pela Leningradsky Prospekt, em direção ao centro da cidade.
O tamanho sempre foi importante para os russos, e passar algum tempo na Rússia significa descobrir que quase todas as Coisas são as maiores: o maior país, o maior sino, a maior piscina. E se a Leningradsky não era a maior rua do mundo, com certeza que se encontrava entre as mais feias uma salgalhada de prédios de apartamentos em ruínas e de monstruosidades stalinistas, iluminadas por inúmeros letreiros de néon e postes de luz amarela. O capitalismo e o comunismo tinham colidido violentamente naquela avenida e o resultado era um pesadelo urbano. As bandeiras relativas à cúpula do G8, que os russos tinham pendurado com tanto cuidado, mais pareciam sinais de aviso quanto ao futuro que os aguardava a todos se não pusessem as suas finanças em ordem. Gabriel sentiu o estômago a contrair-se pouco a pouco, à medida que o carro se ia aproximando do Kremlin. Ao passarem pelo Dinamo Stadion, o homem da CIA entregou-lhe uma fotografia de satélite da datcha na floresta de bétulas. Havia três Range Rover, em vez de dois, e eram claramente visíveis quatro homens no exterior. Mais uma vez, o olhar de Gabriel foi atraído para as depressões paralelas na área da floresta mais próxima da casa. Parecia ter havido uma mudança desde a última passagem do satélite. No final de uma das depressões, havia uma pequena área mais escura, como se a cobertura de neve tivesse sofrido alguma alteração. Quando Gabriel devolveu a foto ao homem da CIA, já o carro seguia pela Rua Tverskaya. Diretamente à frente deles, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto, no Kremlin, com a sua estrela vermelha a assemelhar-se estranhamente ao símbolo de uma certa cerveja holandesa que agora corria livremente pelos bares de Moscou. As instalações da Galaxy Travel, às escuras, passaram rapidamente pela janela do lado de Gabriel, seguidas pela pequena rua secundária onde Anatoly, amigo de Viktor Orlov, tinha esperado para levar Irina para jantar.
Cem metros depois do escritório de Irina, a Rua Tverskaya desembocava nas doze faixas da Rua Okhotny Ryad. Viraram à esquerda e passaram a toda a velocidade pela Duma, a Casa dos Sindicatos e o Teatro Bolshoi. O marco seguinte que Gabriel viu foi uma fortaleza de pedra amarela, iluminada por holofotes, erguendo-se mesmo à sua frente, sobre a Praça Lubyanka — o antigo quartel-general do KGB, que agora albergava o seu sucessor doméstico, o FSB. Em qualquer outro país, o edifício teria sido desfeito em pedacinhos e os seus horrores expostos aos poderes curativos da luz do dia. Mas não na Rússia. Tinham simplesmente pendurado um novo letreiro e enterrado os seus terríveis segredos onde não pudessem ser descobertos.
Logo a seguir à colina, depois de Lubyanka, na Teatralnyy Prospekt, ficava o famoso Hotel Metropol. De mala na mão, Gabriel atravessou a entrada em estilo art déco como se fosse o dono do lugar, que era a forma como os americanos pareciam entrar sempre nos hotéis. A decoração original do hall, vazio e silencioso, tinha sido restaurada fielmente — com efeito, Gabriel quase conseguia imaginar Lênin e os seus discípulos a planejarem o Terror Vermelho enquanto bebiam chá e comiam bolos. O balcão da recepção não apresentava qualquer cliente; ainda assim, Gabriel teve de esperar uma eternidade antes de um duplo de Krutchev lhe fazer sinal para avançar. Depois de preencher uma longa ficha de inscrição, Gabriel recusou uma oferta de ajuda feita com indiferença por um paquete e subiu sozinho para o seu quarto. Eram quase cinco da manhã. Pôs-se à janela, com a mão no queixo e a cabeça inclinada para o lado, e esperou que o Sol nascesse sobre a Praça Vermelha.
CAPÍTULO 58
MOSCOU
Embora a crise financeira global tivesse causado sofrimento econômico por todo o mundo industrializado, poucos países tinham caído tanto ou mais depressa do que a Rússia. Alimentada pela subida em flecha do preço do petróleo, a economia russa tinha crescido a uma velocidade estonteante durante os primeiros anos do novo milênio, apenas para em seguida regressar estrondosamente à terra aquando do declínio acentuado do petróleo. O seu mercado de valores estava em escombros, o sistema bancário em ruínas, e a população, em tempos dócil, reclamava agora ajuda. No seio dos ministérios dos negócios estrangeiros e do serviço secreto ocidentais, havia o receio de que a enfraquecida economia russa pudesse levar a que o Kremlin retrocedesse ainda mais para uma postura típica de guerra fria um medo partilhado por vários dos principais líderes europeus, que começavam a ficar cada vez mais dependentes da Rússia em termos do fornecimento de gás natural. Tinha sido essa Preocupação que os levara a realizar a cúpula de emergência do G8 em Moscou, em pleno Inverno. Se mostrassem respeito ao rufia, Pensavam, talvez ele se sentisse encorajado a mudar de comportamento. Pelo menos, era essa a esperança.
Se a cúpula se tivesse efetuado em qualquer outro país do G8, achegada dos líderes e das respetivas delegações dificilmente teria causado grande impacto nos meios de comunicação locais. Mas a cúpula iria realizar-se na Rússia, e a Rússia, apesar dos protestos em contrário, ainda não era um país normal. Os media ou eram propriedade do Estado. ou controlados por este, e as estações de televisão fizeram ligações em direto sempre que cada avião dos presidentes ou primeiros-ministros furava o céu cinzento como ferro, em direção a Sheremetyevo. Segundo explicavam os jornalistas russos, os líderes ocidentais dirigiam-se para Moscou porque tinham sido pessoalmente convocados pelo presidente russo. O mundo estava em tumulto, avisavam eles, e só a Rússia o podia salvar. Inevitavelmente, o presidente americano, por seu turno, saiu maltratado. No momento em que o seu avião surgiu no horizonte, vários representantes oficiais e comentadores russos desfilaram perante as câmaras para o condenar e tudo aquilo que representava. A crise econômica global era culpa da América, gritaram. A América tinha entrado em colapso devido à sua ganância e arrogância, ameaçando levar o resto do mundo com ela. O Sol estava a pôr-se para a América. Adeus e boa viagem.
Gabriel deparou-se com poucas opiniões diferentes nos salões e restaurantes do Hotel Metropol que, a meio da manhã, já se encontrava repleto de repórteres e burocratas, todos eles ostentando com orgulho as suas credenciais oficiais para a cúpula do G8, como se um bocado de plástico preso a um fio de nylon lhes desse entrada nos santuários internos do poder e do prestígio. As credenciais de Gabriel eram azuis, o que significava que tinha acesso onde os meros mortais não tinham. Levava-as penduradas ao pescoço enquanto comia um pequeno-almoço ligeiro sob o teto em forma de abóbada e coberto de vitrais do célebre restaurante do Metropol, empunhando o seu BlackBerry como um escudo ao longo da refeição. Ao sair do restaurante, foi encurralado por um grupo de jornalistas franceses que exigiam saber a sua opinião em relação ao novo plano de estímulo americano. E, embora Gabriel se tivesse esquivado às perguntas, os franceses ficaram visivelmente impressionados com o fato de ele se lhes ter dirigido fluentemente na sua própria língua’ No hall, Gabriel reparou em vários jornalistas americanos aglomerados à volta da entrada para a Teatralnyy Prospekt e escapuliu-se rapidamente pela porta dos fundos, em direção à Praça da Revolução. No Verão, a marginal estava apinhada de bancas de mercado onde era possível comprar de tudo, desde gorros a bonecas russas, passando por bustos dos assassinos Lênin e Stalin . Agora, em pleno Inverno, só os mais corajosos se atreviam a aventurar-se até lá. Extraordinariamente, não tinha neve nem gelo. Quando o vento acalmou por breves instantes, Gabriel conseguiu sentir o cheiro do líquido que os russos utilizavam para atingir esse resultado. Lembrou-se das histórias que Mikhail lhe tinha contado sobre os poderosos produtos químicos que os russos despejavam para as ruas e passeios. Eram coisas capazes de destruir um par de sapatos numa questão de dias. Até os cães se recusavam a andar em cima delas. Na Primavera, os eléctricos costumavam incendiar-se violentamente por os seus cabos terem sido corroídos depois de passarem meses expostos a elas. Era assim que Mikhail celebrava a chegada da Primavera quando era pequeno e vivia na Rússia com os eléctricos a pegarem fogo.
Gabriel vislumbrou-o passado um momento, sentado ao lado de Eli Lavon, logo à saída da Porta da Ressurreição. Lavon segurava uma pasta na mão direita, o que significava que Gabriel não tinha sido seguido ao sair do Metropol. As Regras de Moscou... Gabriel virou à esquerda, atravessando a escura passagem debaixo da arcada da porta, e entrou na extensa vastidão da Praça Vermelha. Parado à frente da Torre do Salvador, com um sobretudo grosso e um gorro de pele, estava Uzi Navot. O mostruário do relógio dourado e preto da torre indicava 11h23. Navot fingiu estar a acertar o seu relógio por ele.
— Como foi a entrada no Sheremetyevo?
— Sem problemas.
— E o hotel?
— Sem problemas.
— Ótimo — disse Navot, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo. — Vamos dar uma volta, Mr. Davis. Temos de falar. Seguiram na direção da Catedral de São Basílio, de cabeça baixa e ombros curvados face ao frio cortante: o andar arrastado de Moscou. Navot queria passar o mínimo de tempo possível na presença de Gabriel. Não perdeu tempo nenhum em ir direto ao assunto.
— Nós fomos até a propriedade ontem à noite para dar uma olhada.
— Nós, quem?
— Mikhail e Shmuel Peled, da base de Moscou.
Interrompeu-se por uns instantes. — Gabriel olhou para ele de soslaio. — E eu.
— Está aqui para supervisionar, Uzi. Shamron deixou bem claro que não queria ver você envolvido diretamente com a operação. Sua posição é importante demais para acabar preso.
— Deixe ver se entendo como deve ser. Está tudo bem se eu andar embrulhado com um assassino russo num banco suíço, mas é proibido dar uma volta num bosque?
— Foi isso que fez, Uzi? Uma volta num bosque?
— Não exatamente. A datcha fica um quilômetro atrás da estrada. O caminho que vai dar lá tem uma floresta de bétulas a confiná-lo de ambos os lados. É apertado. Só pode passar um carro de cada vez.
— Há algum portão?
— Nenhum, mas o caminho está sempre bloqueado por seguranças num Range Rover.
— E até que ponto conseguiram aproximar-se da datcha
— Suficientemente perto para ver que Ivan faz dois pobres desgraçados ficarem de guarda no exterior o tempo todo. E suficientemente perto para colocar uma câmara portátil.
— E como está a transmissão?
— Não é má. Desde que não apanhemos com dois metros de neve hoje à noite, não iremos ter problemas. Conseguimos ver a porta da frente, o que quer dizer que conseguimos ver se há alguém a entrar ou a sair.
— Quem controla a transmissão?
— Shmuel e uma moça da base de Moscou.
— E onde eles estão?
— Enfiados num hotelzinho jeitoso, na cidadezinha mais próxima. Fingem que são amantes. Segundo parece, o marido da moça gosta de lhe dar umas chineladas. Shmuel quer ficar com ela e começar uma vida nova. Sabe como é a história, Gabriel.
— As fotos de satélite mostram guardas atrás da casa.
— Também os vimos. Têm pelo menos três homens lá atrás o tempo todo. Estão parados, a cerca de cem metros de distância uns dos outros. Com óculos de visão noturna, não tivemos problema nenhum em vê-los. À luz do dia — continuou Navot, encolhendo os ombros corpulentos, — vão cair que nem alvos numa pista de tiro. Teremos simplesmente de avançar enquanto ainda estiver escuro e tentar não morrer de frio, congelados, até as nove da manhã.
Já tinham passado a Catedral de São Basílio e estavam a aproximar-se da esquina mais a sudeste do Kremlin. Mesmo à frente deles, estava o rio Moscóvia, congelado e coberto de neve branca e acinzentada. Navot empurrou ligeiramente Gabriel para a direita com o cotovelo e conduziu-o pelo cais. Agora, tinham o vento pelas costas. Depois de passarem por um par de agentes da Milícia da Cidade de Moscou, com ar aborrecido, Gabriel perguntou a Navot se tinha visto alguma coisa na datcha que justificasse qualquer mudança no plano. Navot abanou a cabeça.
E quanto às armas? A sala de armamento da embaixada tem tudo. Diz-me só que queres.
Uma Beretta de calibre 92 e uma mim-Uri, ambas com silenciador.
Tem certeza de que a mim vai dar conta do recado? Aquilo vai ser complicado dentro da datcha.
Passaram por mais dois agentes da milícia. À direita, a pairar sobre as muralhas vermelhas da cidadela antiga, estava a requintada fachada amarela e branca do Grande Palácio do Kremlin, onde a cúpula do G8 se encontrava agora em pleno curso.
E qual é o ponto de situação quanto ao Range Rover? Foi-nos entregue ontem à noite.
Preto? Claro. Os rapazes de Ivan só conduzem Range Rover pretos Onde o arranjaram? Num concessionário na área norte de Moscou. Shamron vai explodir de raiva quando vir o preço.
Matrícula? Já está tudo tratado Quanto tempo dura a viagem de carro desde o Metropol? Num país normal, seriam no máximo duas horas e meia.
Aqui... Mikhail quer apanhar-te às duas da manhã, só para garantir que não há problemas.
Tinham chegado à esquina mais a sudoeste do Kremlin. Do outro lado do rio, havia um colossal prédio de apartamentos cinzento, com uma estrela da Mercedes-Benz girando no alto do telhado. Conhecido como a Casa no Cais, tinha sido construído por Stalin em 1931 como um palácio de privilégios soviéticos para os membros mais importantes da nomenklatura. Durante o Grande Terror, transformara-o numa casa de horrores. Quase oitocentas pessoas, um terço dos residentes do edifício, tinham sido arrancadas da cama e assassinadas num dos locais de extermínio que circundavam Moscou. A punição que sofriam era praticamente sempre a mesma: uma noite de espancamentos, uma bala na nuca, um funeral apressado numa vala comum. Apesar da sua história encharcada em sangue, a Casa no Cais era agora considerada uma das moradas mais exclusivas de Moscou. Ivan Kharkov era o proprietário de um apartamento de luxo no nono andar. Estava entre as suas posses mais estimadas.
Gabriel olhou para Navot e reparou que ele tinha os olhos fixados no pequeno e triste parque que ficava do outro lado da rua, em frente ao prédio de apartamentos: a Praça Bolotnaya, cenário daquela que era talvez a discussão mais famosa da história do Escritório.
— Devia ter-te partido o braço naquela noite. Nada disto teria acontecido se eu te tivesse arrastado para dentro do carro e te tivesse tirado de Moscou com o resto da equipe.
— Isso é verdade, Uzi. Nada disto teria acontecido. Nós não teríamos encontrado os mísseis de Ivan e a Elena Kharkov estaria morta.
Navot ignorou o comentário.
— Não posso acreditar que estamos outra vez aqui. Jurei a mim mesmo que nunca mais voltaria a pôr os pés nesta cidade — disse, olhando de relance para Gabriel. — Porque raio Ivan iria querer ter um apartamento num lugar daqueles? Está assombrado, aquele prédio. Quase que se conseguem ouvir os gritos. A Elena disse-me uma vez que o marido era um estalinista devoto. A casa de Ivan, na Zhukovka, foi construída num lote de terreno que pertencera em tempos à filha do Stalin . E quando andava à procura de um pied-à-terre perto do Kremlin, comprou o apartamento na Casa no Cais. O primeiro proprietário era um homem com uma posição importante no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Os capangas do Stalin suspeitavam que ele fosse um espião ao serviço dos alemães. Levaram-no para Butovo e enfiaram-lhe uma bala na nuca. Segundo parece, Ivan adora contar essa história.
Navot abanou a cabeça devagar.
— Há pessoas que vão pelas cozinhas simpáticas e pelas vistas agradáveis. Mas, quando se trata de Ivan, o que ele exige o lugar tenha um passado sangrento.
— É único, o nosso Ivan.
— De repente, isso explica porque ele comprou várias centenas de hetares de florestas de bétulas e pantanais sem valor nenhum, à saída de Moscou.
Sim, pensou Gabriel. De repente, explicava. Olhou para trás, ao longo do Cais do Kremlin, e viu Eli Lavon a aproximar-se, ainda com a pasta na mão direita. Quando Lavon passou por eles, deu uma pequena cotovelada nos rins de Gabriel. Significava que o encontro já tinha durado tempo suficiente. Navot tirou a luva e estendeu a mão.
Volta para o Metropol. Não faças ondas. E tenta não te preocupares. Nós vamos recuperá-la.
Gabriel apertou a mão a Navot e, a seguir, deu meia-volta e começou a dirigir-se novamente para a Porta da Ressurreição. Embora Navot não o soubesse, Gabriel desobedeceu à ordem Para regressar ao quarto no Hotel Metropol e, em vez disso, seguiu 322 para a Rua Tverskaya. Parando à porta do prédio de escritórios que ficava no nº 6, pôs-se a olhar para os cartazes na montra da Galaxy Travel. Um mostrava um casal russo a saborear um almoço regado a champanhe nas pistas de esqui de Courchevel; no outro, duas ninfas russas se bronzeavam nas praias da Côte d’Azur. A ironia da situação parecia passar despercebida a Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, que naquele momento estava sentada decorosamente em sua mesa, telefone encostado ao ouvido. Havia várias coisas que Gabriel lhe queria dizer mas não podia. Ainda não. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, a observá-la através do vidro fosco. A realidade é um estado de espírito, pensou.
A realidade pode ser muito bem o que se quiser que seja.
CAPÍTULO 59
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Se Gabriel mereceu os maiores elogios pela sua compostura sob pressão durante as últimas horas antes da operação, o mesmo, infelizmente, não podia ser dito de Ari Shamron. Ao regressar a Londres, montou um centro de operações para si próprio no interior da embaixada israelense, em Kensington, e serviu-se dele para lançar ataques a alvos que iam desde Tel Aviv até Langley. Os agentes do Escritório de Operações no Boulevard King Saul acabaram por ficar tão cansados das explosões de Shamron, que começaram a tirar à sorte para ver quem teria o azar de atender os seus telefonemas. Adrian Carter foi o único que conseguiu não perder a paciência com ele. Por também já ter sido um agente operacional obrigado a ficar de fora, conhecia a sensação de completa impotência pela qual Shamron estava a passar. O plano de extração era de Gabriel; Shamron apenas podia carregar nas alavancas e puxar os cordéis. E, mesmo assim, continuava a depender grandemente de Carter e da CIA, o que violava a essência da fé de Shamron nos princípios do kachol v’lavan. Se tivesse sido deixado à solta, o Velho teria entrado pela datcha de Ivan na floresta e tratado ele próprio do serviço. E só um Palerma teria apostado contra ele. “Já fez coisas que nenhum de nós Pode imaginar”, afirmou Carter, em defesa de Shamron. “E tem as Cicatrizes para o provar.” Nesse fim de tarde, às seis horas, Shamron dirigiu-se para a embaixada americana, em Mayfair, para o primeiro ato. Uma jovem agente da CIA, uma moça de rosto inexperiente que parecia ter acabado de completar um ano de faculdade no estrangeiro, recebeu-o na Upper Brook Street. Fê-lo passar pela Guarda Marinha e depois conduziu-o até a um elevador seguro, que o fez descer às entranhas do anexo. Adrian Carter e Graham Seymour já lá estavam, sentados no andar de cima do Centro de Operações, em forma de anfiteatro. Shamron sentou-se à direita de Carter e olhou para um das telas gigantes na parte da frente da sala. Mostrava dois aviões parados na pista à saída de Washington, D. C. Pertenciam ambos à 89ª Esquadrilha de Transporte, estacionada na Base Andrews da força aérea. Tinham sido ambos abastecidos de combustível e encontravam-se preparados para partir.
Às sete horas, o telefone de Carter tocou. Levou o fone rapidamente ao ouvido, escutou em silêncio durante alguns segundos e depois desligou.
Ele está a chegar ao portão. Parece que vai começar, senhores.
Houve uma época em Washington em que toda a gente que trabalhava para o governo ou em jornalismo sabia dizer o nome do embaixador soviético nos Estados Unidos. Porém, nos dias que corriam, além do Departamento de Estado e da sala de imprensa, pouca gente já tinha ouvido falar em Konstantin Tretyakov. Embora falasse inglês fluentemente, o embaixador da Federação Russa raramente aparecia na televisão e nunca organizava festas a que alguém se desse ao trabalho de ir. Era um homem esquecido numa cidade onde, em tempos, o enviado de Moscou tinha sido tratado, quase como um chefe de Estado. Tretyakov era a pior coisa que uma pessoa podia ser em Washington. Era irrelevante. O curriculum vitae oficial do embaixador descrevia-o como um “perito da América” e um diplomata de carreira que tivera muitos postos importantes no Ocidente. Mas deixava de fora o fato de a sua carreira quase ter ido por água abaixo, em Oslo, quando foi apanhado com a mão enfiada na gaveta do fundo de maneio da Embaixada. E também não mencionava que, de vez em quando, bebia demasiado. Nem que tinha um irmão que trabalhava como espião para o SVR e outro que fazia parte do círculo dos siloviki próximo do presidente russo, no Kremlin. No entanto, todo este material pouco lisonjeiro estava incluído no dossiê da CIA, do qual tinha sido entregue uma cópia a Ed Fielding para o auxiliar na preparação da parte da operação relacionada com a Base Andrews. O agente de segurança da CIA achara o dossiê muitíssimo divertido. Tinha ingressado na CIA nos tempos mais negros da guerra fria e passara várias décadas a combater os soviéticos e os seus agentes por procuração em campos de batalha secretos à volta do mundo. Uma olhada ao dossiê do embaixador bastou-lhe para o reassegurar que a sua carreira não tinha sido em vão.
Fielding estava parado por baixo da insígnia da 89ª Esquadrilha de Transporte quando a comitiva que transportava Tretyakov parou junto ao terminal de passageiros. Apesar de o embaixador se encontrar agora no interior de uma das instalações mais seguras da capital nacional, estava protegido por três camadas de segurança: os seus próprios guarda-costas russos, uma equipe de agentes de segurança do corpo diplomático americano e vários membros da equipe de segurança da Base Andrews. Fielding não teve qualquer problema em localizar o embaixador quando este saiu do banco de trás da sua limusine — o dossiê incluía uma fotocópia do retrato oficial de Tretyakov, bem como várias fotografias de vigilância —, mas escondeu a sua preparação prévia dirigindo-se antes ao factótum do embaixador. O assessor corrigiu Fielding, apontando-lhe Tretyakov, que exibia agora um sorriso de superioridade, como se a incompetência americana o divertisse. Fielding apertou a mão ao embaixador com força e apresentou-se como sendo Tom Harris. Aparentemente, Mr. Harris não possuía qualquer cargo ou razão para estar na Base Andrews que não fosse o de apertar a mão ao embaixador. Como pode provavelmente calcular, senhor embaixador, as crianças estão um pouquinho nervosas. A senhora Kharkov gostaria que fosse ter com elas sozinho, sem assessores nem seguranças.
— E porque as crianças haviam de estar nervosas, Mr. Harris? Vão voltar para a Rússia, que é o lugar delas.
— Está a dizer-me que se recusa a encontrar-se com a Anna e o Nikolai sem assessores nem guarda-costas, senhor embaixador? Porque se for esse o caso, o acordo fica sem efeito.
O embaixador ergueu um pouco o queixo.
— Não, Mr. Harris, não é esse o caso.
— Uma decisão sensata. Não gostaria nada de pensar no que aconteceria se Ivan Kharkov descobrisse alguma vez que o senhor tinha dado cabo sozinho do acordo que lhe possibilitava recuperar os filhos por causa de uma questão de protocolo trivial.
— Cuidado com o tom, Mr. Harris.
Fielding não fazia qualquer tenção de ter cuidado com o tom.
Na verdade, estava apenas a aquecer.
— Presumo que tenha visto fotografias das crianças, não? O embaixador assentiu com a cabeça. — E está seguro de que é capaz de identificá-las se as vir?
— Completamente.
— Ótimo. Porque não poderá aproximar-se ou tocar nas crianças em nenhuma circunstância. Pode fazer-lhes duas perguntas, não mais. Considera estas condições aceitáveis, senhor embaixador?
— Que alternativa eu tenho?
— Absolutamente nenhuma.
— Bem me parecia.
— Por favor, estique os braços e afaste-os do corpo e abra as pernas E por que razão eu haveria de fazer isso? Porque tenho de o revistar antes de deixá-lo aproximar-se um metro sequer daquelas crianças.
Mas isto é escandaloso! O embaixador esticou os braços e abriu as pernas. Fielding revistou-o com toda a calma do mundo e certificou-se de que toda aquela situação fosse o mais invasiva e humilhante possível. Quando terminou a revista, esguichou líquido desinfetante nas mãos.
Duas perguntas e nada de tocar. Estamos entendidos, senhor embaixador?
— Estamos entendidos, Mr. Harris.
— Venha comigo, por favor.
Era uma sala pequena, com as paredes repletas de fotografias que narravam o passado daquelas instalações: presidentes de partida para viagens históricas, prisioneiros de guerra a regressarem após vários anos de cativeiro, caixões embrulhados com a bandeira do país a regressarem a casa para serem enterrados em solo americano. Se naquela tarde tivessem estado presentes fotógrafos, teriam captado uma imagem de grande tristeza: uma mãe a abraçar os seus filhos, possivelmente pela última vez. Mas não havia fotógrafos, claro, porque a mãe e os filhos não estavam lá — pelo menos, não oficialmente. E quanto aos dois voos que em breve separariam aquela família, também não existiam, e nenhum registro deles iria alguma vez parar ao diário de bordo da torre de controle. Estavam sentados num sofá de vinil preto, bem chegados uns aos outros. Elena, com calças jeans azuis e um casaco de lã de carneiro, estava sentada ao meio, com um braço à volta de cada um dos filhos. As crianças tinham a cara enfiada na gola do casaco dela e assim permaneceram muito tempo depois de o embaixador russo ter entrado na sala. Elena recusou-se a olhar para ele. Tinha os lábios encostados à testa de Anna e os olhos fixos no carpete cinza.
— Boa tarde, Mrs. Kharkov — disse o embaixador em russo.
Elena não deu resposta. O embaixador olhou para Fielding e, em inglês, disse: — Preciso ver o rosto deles. Caso contrário, não posso confirmar que sejam os filhos de Ivan Kharkov.
— Tem direito a duas perguntas, senhor embaixador.
— Peça-lhes para levantar o rosto. Mas não esqueça de pedir com jeitinho. Caso contrário, eu posso ficar chateado.
O embaixador olhou para a desesperada família sentada a sua frente. Em russo, pediu: — Por favor, crianças, levantem o rosto para que eu possa ver.
As crianças mantiveram-se imóveis.
— Experimente falar com eles em inglês — propôs Fielding.
Tretyakov fez o que Fielding sugeriu. E, dessa vez, as crianças levantaram o rosto e olharam fixamente para o embaixador, com uma hostilidade não dissimulada. Tretyakov pareceu convencido de que as crianças eram de fato Anna e Nikolai Kharkov.
— Seu pai está ansioso por vê-los. Estão entusiasmados por voltarem para casa?
— Não — respondeu Anna.
— Não — repetiu Nikolai. — Queremos ficar aqui com nossa mãe.
— Sua mãe também devia voltar para casa.
Elena olhou para Tretyakov pela primeira vez. A seguir, o seu olhar deslocou-se para Fielding.
— Por favor, leve-o daqui, Mr. Harris. A presença dele começa a me deixar doente.
Fielding conduziu o embaixador até a porta do lado, o edifício das Operações da Base. Estavam os dois parados na plataforma de observação quando Elena e os filhos saíram do terminal de passageiros, acompanhados por vários agentes de segurança. O grupo avançou lentamente pela pista e subiu as escadas de embarque até a porta de um C-32. Elena Kharkov saiu do avião dez minutos mais tarde, sem os filhos e visivelmente abalada. Agarrada ao braço de um agente da força aérea, dirigiu-se para um Gulfstream e desapareceu no interior da cabina.
— Deve estar muito orgulhoso, senhor embaixador — disse Fielding.
— Vocês não tinham direito de tirá-las do pai, logo para começar.
A porta da cabina do C-32 estava agora fechada. As escadas de embarque afastaram-se, seguidas pelos camiões de combustível e de fornecimento de comida e serviços. Passados cinco minutos, o avião levantava voo sobre os subúrbios de Maryland, em Washington. Fielding ficou a vê-lo desaparecer por entre as nuvens e, a seguir, olhou para o embaixador com desprezo. Nove da manhã, no aeródromo de Konakovo. E não se esqueça, sem Ivan, não há crianças. Estamos entendidos, senhor embaixador? 329 — Ele vai lá estar.
— Pode ir-se embora quando quiser. Peço desculpa, mas não vou apertar-lhe a mão. Também estou a sentir-me um pouquinho doente.
Ed Fielding permaneceu na plataforma de observação até o embaixador e a sua comitiva se encontrarem no exterior da base, sem percalço, subindo em seguida a bordo do Gulfstream que o aguardava. Elena Kharkov já estava sentada com o cinto posto e os olhos fixos na pista deserta.
Quanto tempo temos de esperar? Não muito, Elena. Acha que vai ficar bem? Sim, Ed. Vamos para casa.
CAPÍTULO 60
HOTEL METROPOL, MOSCOU
Gabriel foi avisado da partida do avião às 22h45, hora de Moscou, enquanto estava à janela do seu quarto no Metropol. Já ali se encontrava, com algumas interrupções pelo meio, desde a sua incursão até a Rua Tverskaya. Dez horas sem nada para fazer a não ser andar de um lado para o outro do quarto e pôr-se doente com tanta preocupação. Dez horas sem nada para fazer a não ser visualizar a operação do início ao fim um milhar de vezes. Dez horas sem nada para fazer a não ser pensar em Ivan. Interrogou-se sobre como o seu inimigo iria passar a noite. Será que a passaria tranquilamente com a sua jovem noiva? Ou, De repente, exigia-se uma celebração: uma festança. Era essa a palavra que Ivan e os seus comparsas utilizavam para descrever as festas que faziam a seguir à conclusão de um importante negócio de armas. Quanto maior fosse o negócio, maior era a festança.
Com o avião e as crianças a caminho da Rússia naquele momento, Gabriel sentiu os nervos retesarem-se como cordas de violino. Tentou abrandar o coração acelerado, mas o seu corpo recusou-se a cumprir as ordens. Tentou fechar os olhos, mas via apenas fotos de satélite da pequena datcha na floresta de bétulas. E a sala onde Chiara e Grigori se encontravam Com certeza acorrentados e amarra’ dos. E os quatro riachos que convergiam para um grande pântano.
E as depressões paralelas na floresta.
O meu marido é um estalinista devoto... O amor dele pelo Stalin influenciou as suas compras de imobiliário.
O seu PDA seguro ajudou-o a passar o tempo. Informou-o de que Navot, Yaakov e Oded estavam a avançar para o alvo. Informou-o de que as câmaras ocultas não tinham detetado qualquer alteração na datcha ou no posicionamento das forças de Ivan. Informou-o de que Deus lhes tinha concedido um nevoeiro denso ao nível do solo, junto aos pantanais, ajudando-os a esconder a sua aproximação. E, por fim, à 1h48, informou-o de que já eram quase horas de partir.
Gabriel já se encontrava vestido há muito tempo e estava a suar por baixo de camada atrás de camada de roupa protetora. Obrigou-se a permanecer no quarto por mais alguns minutos e, a seguir, apagou as luzes e escapuliu-se discretamente para o corredor. No momento em que o relógio do hall indicava que eram duas da manhã, saiu do elevador e passou pelo duplo de Krutchev, cumprimentando-o com a cabeça secamente. O Range Rover estava à espera na Teatralnyy Prospekt, com o motor a trabalhar. Mikhail batia nervosamente com os dedos no volante ao avançarem pela colina acima, em direção ao quartel-general do FSB.
— Você está bem, Mikhail?
— Ótimo, chefe.
— Não está nervoso, não é?
— E por que estaria? Adoro andar pela área da Lubyanka. A KGB manteve o meu pai lá seis meses quando eu era garoto. Já tinha dito isso, Gabriel?
Já tinha.
— Está com as armas?
— Todas.
— Rádios?
— Claro.
— Telefone, satélite?
— Gabriel, por favor.
— Café.
Dois termos. Um para nós, outro para eles.
E os corta-cavilhas? Um par para cada um. Só para o caso de acontecer alguma coisa? Que gênero de coisa? Um de nós ser abatido.
— Ninguém vai ser abatido a não ser os guardas de Ivan.
— Como queiras, chefe.
Mikhail recomeçou a bater com os dedos no volante.
— Não te vais pôr a fazer isso o caminho todo? — Vou tentar não o fazer.
— Ótimo. Porque estás a pôr-me com uma dor de cabeça. Moscou recusou-se a largar mão deles sem dar luta. Demoraram trinta minutos só para ir de Lubyanka até a circular exterior MKAD: trinta minutos de engarrafamentos, semáforos que não funcionavam, esgotos, palcos de crimes e estradas barricadas pela milícia sem qualquer explicação.
— E são duas da manhã — soltou Mikhail, exasperado. — Imagina como será ao final da tarde, durante a hora de ponta, quando metade de Moscou está a tentar voltar para casa ao mesmo tempo.
— Se isto continuar assim, não teremos de imaginar.
A partir do momento em que deixaram a cidade, os gigantescos prédios de apartamentos começaram a desaparecer a pouco e pouco, mas acabando apenas por serem substituídos por quilômetro atrás de quilômetro de estaleiros dos caminhos-de-ferro e fábricas a libertarem fumo. Eram, claro, as maiores fábricas que Gabriel alguma vez tinha visto — monstros com chaminés imponentes e praticamente sem uma única luz a brilhar no seu interior. Um trem de mercadorias passou por eles a chocalhar, deslocando-se na direção oposta. Pareceu demorar uma eternidade a passar. Tinha mais de oito quilômetros de comprimento, pensou Gabriel. Ou talvez tivesse mais de cento e cinquenta. Com certeza que era o maior do mundo.
Deslocavam-se agora pela M7. Seguia para leste, em direção: à vasta região central da Rússia, atravessando a República do Tartaristão inteira. E se uma pessoa se sentisse com um espírito verdadeiramente aventureiro, explicou Mikhail, podia apanhar a Autoestrada Transiberiana em Ufa e guiar até a Mongólia e à China— Até a China, Gabriel! Consegues imaginar guiar até a China? Na verdade, Gabriel conseguia. Só a amplitude daquele lugar tornava qualquer coisa possível: o interminável céu negro repleto de estrelas extremamente brancas, as vastas planícies congeladas, polvilhadas de cidadezinhas e aldeias a dormitar, o frio insuportável. Em algumas aldeias, conseguia ver cúpulas em forma de cebola brilhando ao luar. O herói de Ivan tinha sido duro com as igrejas da Rússia. Em 1931, tinha ordenado que Kaganovich dinamitasse a Catedral de Cristo Salvador, em Moscou — supostamente, porque impedia a vista das janelas do seu apartamento no Kremlin e, no campo, tinha transformado as igrejas em celeiros e silos para cereais. Algumas estavam sendo agora restauradas. Outras, como as aldeias que tinham servido, estavam em ruínas. Era o segredinho sujo da Rússia. O brilho e o esplendor de Moscou encontravam apenas correspondência na pobreza e privação do campo. Moscou ficava com o dinheiro, as aldeias ficavam com os governadores ausentes e a visita ocasional de um lacaio qualquer do Kremlin. Eram os lugares que se abandonavam para se fazer fortuna na grande cidade. Eram para os falhados. Nas aldeias, não se fazia mais nada a não ser beber e dizer mal dos sacanas ricos de Moscou.
Passaram num ápice por uma série de pequenas cidades, cada uma mais desoladora do que a anterior: Lakinsk, Demidovo, Vorsha. Em frente, ficava Vladimir, a capital daquela província. A Catedral da Assunção, com as suas cinco cúpulas, servira de modelo para todas as catedrais da Rússia — as catedrais que Stalin tinha destruído ou transformado em pocilgas. Mikhail explicou que já havia pessoas a viver em Vladimir e nos seus arredores desde há vinte e cinco mil anos, uma estatística impressionante mesmo para um rapaz do vale de Jezreel. Vinte e cinco mil anos, pensou Gabriel, contemplando as fábricas destruídas no subúrbio da parte ocidental da cidade. Por que razão teriam elas vindo? Por que razão teriam elas ficado lá? Reclinando o banco, viu uma imagem da sua última viagem de carro pelo campo russo, a altas horas da noite: Olga e Elena a dormirem no banco de trás, Grigori ao volante. Prometa-me uma coisa, 334 Gabriel... Pelo menos, nessa altura, estavam a sair da Rússia, não a seguir diretamente para o ventre da fera. Mikhail descobriu um noticiário na rádio e providenciou uma tradução simultânea ao mesmo tempo que guiava. O primeiro dia da cúpula do G8 tinha corrido bem, pelo menos do ponto de vista do presidente russo, que era o único que importava. A seguir, graças a algum milagre de condições atmosféricas, Mikhail descobriu um noticiário da BBC em inglês. Tinha ocorrido um desenvolvimento importante na situação política do Zimbabwe. Um desastre mortal de avião na Coreia do Sul. E, no Afeganistão, as forças talibãs tinham efetuado um ataque de peso em Cabul. Com as armas de Ivan, sem dúvida.
— É possível ir de carro daqui até o Afeganistão? — Claro respondeu Mikhail.
A seguir, começou a enumerar as estradas e as distâncias entre elas, à medida que Vladimir, centro de habitação humana desde há vinte e cinco milênios, se retraía uma vez mais na escuridão. Ficaram a ouvir a BBC ato sinal da transmissão se tornou demasiado fraco para poderem escutar alguma coisa. Depois, Mikhail desligou o rádio e recomeçou, uma vez mais, a bater com os dedos no volante.
— Há alguma coisa que te esteja a preocupar, Mikhail? Talvez devêssemos falar da operação. Sentir-me-ia melhor se a revíssemos umas centenas de vezes.
— Isso nem parece teu. Preciso que estejas confiante. É a tua mulher que está lá dentro, Gabriel. Não suportaria pensar que alguma coisa que eu tivesse feito...
— Vais portar-te lindamente. Mas se a quiseres rever umas centenas de vezes... disse Gabriel, com a voz a sumir-lhe enquanto contemplava a ilimitada paisagem gelada. — Não tenhamos’ alguma coisa melhor para fazer.
O tom de voz de Mikhail baixou ligeiramente quando ele começou a falar da operação. A chave de tudo aquilo, disse, seria a velocidade. Tinham de os subjugar rapidamente. Uma sentinela hesita sempre por um instante, mesmo quando é confrontada com alguém que não conhece. Esse instante corresponderia à abertura que eles teriam. Iriam aproveitá-la veloz e decididamente.
E nada de tiroteios — acrescentou Mikhail. — Os tiroteios são para os cowboys e gângsteres.
Mikhail não era nem uma coisa nem outra. Era um antigo membro das forças especiais Sayeret Matkal, a unidade mais prestigiada à face da terra e que executara operações com as quais as outras unidades apenas podiam sonhar, participando em missões como as de Entebbe e Sabena, e outras bem mais duras sobre as quais nunca se iria ler nada. Mikhail matara alguns dos principais líderes terroristas do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Agra, tendo até atravessado a fronteira com o Líbano e assassinado membros do Hezbollah. Tinham sido operações infernais em cidades e campos de refugiados apinhados. E nenhuma tinha fracassado. Nem um só terrorista marcado para morrer por Mikhail continuava vivo. Uma datcha numa floresta de bétulas não era nada para um homem como ele. Os guardas de Ivan eram também antigos membros das forças especiais. Grupo Alfa e OMON. Mesmo assim, Mikhail referiu-se a eles apenas no passado. No que lhe dizia respeito, já estavam mortos. Silêncio, velocidade e timing seriam a chave.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
Ao contrário de Mikhail, Gabriel nunca executara assassinos na Faixa Ocidental ou em Gaza e, durante grande parte da sua carreira, tinha conseguido evitar as operações em países árabes. Uma excepção notável era Abu Jihad, o nome de guerra de Khalil al-Wazir, a segunda figura de maior importância no seio da OLP, a seguir a Yasser Arafat. Como todos os recrutas da Sayeret, Mikhail estudara todos os aspetos da operação durante o seu período de treino, mas nunca tinha perguntado nada a Gabriel sobre essa noite. Fê-lo agora, enquanto seguiam a toda a velocidade pela auto-estrada deserta. E Gabriel fez-lhe a vontade, embora viesse a arrepender-se mais tarde.
Abu Jihad... Mesmo agora, o som de seu nome fazia correr calafrios pelo pescoço de Gabriel. Em abril de 1988, esse símbolo do sofrimento palestino vivia em Túnis, em esplêndido exílio, numa grande villa junto à praia. Gabriel tinha vigiado ele próprio a casa e o bairro em redor e supervisionara a construção de uma réplica no deserto do Negev, onde tinham treinado durante várias semanas antes da operação. Na noite do ataque, desembarcara num barco de borracha e entrara numa van que o aguardava. Em questão de minutos, estava tudo terminado. Havia um guarda à porta da casa, a dormitar ao volante de um Mercedes. Gabriel enfiara-lhe uma bala no ouvido com uma Beretta munida de silenciador. A seguir, com a ajuda da sua escolta da Sayeret, tinha rebentado as dobradiças da porta da frente com um explosivo especial que emitia um som pouco maior do que um bater de palmas. Depois de matar um segundo guarda no hall de entrada, subira sorrateiramente as escadas até o escritório de Abu Jihad. A aproximação de Gabriel foi tão silenciosa que o líder da OLP nada ouviu. Morreu sentado à mesa enquanto via um vídeo da intifada.
Silêncio, velocidade e timing... A Santíssima Trindade de Shamron.
E a seguir? — perguntou Mikhail baixinho.
A seguir... Uma cena saída dos pesadelos de Gabriel.
Ao sair do escritório, tinha dado de caras com a mulher de Abu Jihad. Estava a apertar um rapazinho com toda a força contra o peito, aterrorizada, e agarrada ao braço da sua filha adolescente. Gabriel olhou para a mulher e gritou-lhe em árabe: — Volte para o quarto! — Depois, disse à moça calmamente: — Vai ter com a tua mãe e toma conta dela.
Vai ter com a tua mãe e toma conta dela...
Poucas eram as noites em que ele não via a cara dessa criança. E viu-a agora, no momento em que saíram da auto-estrada e seguiram para as regiões mais a norte da província. Por vezes, Gabriel interrogava-se se teria carregado no gatilho se soubesse que a moça estava atrás dele. E, por vezes, nos seus momentos mais negros, interrogava-se se tudo aquilo que lhe tinha acontecido desde então não teria sido castigo de Deus por ter matado um homem à frente da própria família. Agora, tal como fizera inúmeras vezes, estava a afastar a criança dos seus pensamentos suavemente e a ver Mikhail a virar de novo, desta vez para um denso arvoredo de pinheiros e abetos. Os faróis do carro apagaram-se e o motor calou-se.
— A que distância fica a propriedade?
— A cerca de três quilômetros.
— E quanto tempo demoramos a chegar lá?
— Cinco minutos. Vamos com calma e devagarinho.
— Tem certeza, Mikhail? O timing é tudo.
— Já fiz isto duas vezes. Tenho certeza.
Mikhail começou a bater os dedos no painel. Gabriel ignorou-o e olhou para o relógio: 6h25. A espera... Esperar que o Sol nasça antes de uma manhã de matança. Esperar para abraçar Chiara. Esperar que a filha de Abu Jihad lhe perdoasse. Serviu-se de uma xícara de café e carregou as armas. 6h26... 6h27... 6h28...
O sol iluminou o banco de neve. Chiara não sabia se era o nascer ou o pôr do Sol, mas, quando a luz incidiu sobre a cara de Grigori, que dormia, sentiu uma premonição de morte, tão nítida, que parecia que lhe tinham pousado uma pedra em cima do coração. Ouviu o som do ferrolho a abrir-se e ficou a ver a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a entrar na cela. A mulher trazia comida: pão seco, salsichas frias, chá em copos de papel. Se era o pequeno-almoço ou o jantar, Chiara não conseguia saber ao certo. A mulher retirou-se, trancando a porta ao sair. Chiara segurou no chá com as mãos acorrentadas e olhou para o banco de neve, que parecia pegar fogo. Como de costume, a luz apenas se manteve ali por alguns minutos. Logo depois, o fogo extinguiu-se e a sala mergulhou uma vez mais na escuridão total.
CAPÍTULO 61
KONAKOVO, RÚSSIA
Como a própria Rússia, o aeródromo em Konakovo fracassara duplamente. Abandonado pela força aérea pouco depois da queda da União Soviética, tinham deixado que se fosse desmoronando até atingir um estado de ruína e só então acabou por ser adquirido por um consórcio de empresários e lideres cívicos. Durante um breve período de tempo, tinha conhecido um êxito modesto enquanto estrutura para voos comerciais de carga, mas apenas para logo em seguida ver a sua sorte desabar por uma segunda vez, juntamente com o preço do crude russo. Agora, o aeródromo ocupava-se de menos de uma dúzia de voos por semana e era utilizado maioritariamente como uma casa de repouso para aviões Antonov, Ilyushin e Tupolev a caírem aos bocados. Mas a sua pista, com mais de três mil e quinhentos metros, continuava a ser uma das mais extensas da região, e as suas luzes de aterragem e sistemas de radar funcionavam bem, tendo em conta os padrões russos, o que era o mesmo que dizer que funcionavam na maior parte do tempo.
Todos os sistemas se encontravam a funcionar corretamente naquela sexta-feira de manhã e haviam sido feitos grandes esforços para alisar e alcatroar a pista. E com boas razões. A torre de controle tinha sido informada pelo Kremlin de que um C-32 da força aérea americana iria aterrissar em Konakovo às nove horas da manhã em ponto. E, mais ainda, uma delegação de figuras importantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das alfândegas estaria a postos para receber o avião e acelerar os procedimentos de chegada. As autoridades do aeroporto não tinham sido informadas da identidade dos passageiros que iriam chegar e sabiam muitíssimo bem que não deviam insistir no assunto. Não se deviam fazer perguntas quando o Kremlin estava envolvido. A não ser que se quisesse ter o FSB na porta.
A delegação moscovita chegou pouco depois das oito e estava à espera, à beira da pista varrida pelo vento, quando uma série de luzes surgiu a sul, no céu nublado. De início, alguns dos representantes russos julgaram que as luzes eram as do avião americano, o que não era possível, visto que o C-32 ainda se encontrava a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância e aterrissaria vindo de oeste, não de sudeste. À medida que as luzes iam se aproximando, o ar se encheu do som de hélices girando. Eram três helicópteros e, mesmo a uma distância grande, era evidente que não eram russos. Alguém na torre de controle os identificou como Bell 427, feitas de encomenda. Alguém na delegação afirmou que isso faria sentido. Ivan Kharkov podia muito bem ser capaz de enfiar um carregamento de armas num monte de sucata russo, mas quando era a sua família que estava em questão apenas viajava em material americano.
Os helicópteros pousaram na pista e, um por um, desligaram os motores. Das duas máquinas que se encontravam nos flancos, emergiu uma equipe de segurança digna de um presidente russo: homens grandes, bem arranjados, fortemente armados e duros como o aço. Após estabelecer um perímetro de segurança em redor do terceiro helicóptero, um dos guardas avançou e abriu a porta da cabina. Durante um longo momento, não apareceu ninguém. Foi então que surgiu um vislumbre de cabelo louro lustroso, que emoldurava um rosto de juventude e perfeição eslavas. As feições foram imediatamente reconhecidas pela torre de controle, bem como pelos membros da delegação moscovita. A mulher tinha aparecido em inúmeras capas de revistas e cartazes publicitários, normalmente com bem menos roupa do que naquele preciso momento. O nome dela tinha sido Yekaterina Mazurov. Agora, era conhecida como Yekaterina Kharkov. Embora estivesse meticulosamente penteada e maquilada, tinha os nervos claramente à flor da pele. Mal pôs uma bota elegante na pista, deu uma reprimenda severa a um guarda-costa, que não pôde ser ouvida. Alguém na delegação moscovita lembrou que a ansiedade de Yekaterina devia ser desculpada, pois estava prestes a transformar-se na mãe de dois filhos quando ela própria era pouco mais que uma criança.
A segunda pessoa a sair do helicóptero foi um homem elegante, de sobretudo escuro e um rosto que indicava a existência de antepassados do interior profundo da Rússia. Segurava um celular ao ouvido e parecia estar a meio de uma conversa de grande importância. Ninguém na torre de controle ou na delegação moscovita o reconheceu, o que dificilmente era surpreendente. Ao contrário da deslumbrante Yekaterina, a foto desse homem nunca tinha aparecido nos jornais e poucas pessoas fora do mundo fechado dos siloviki e dos oligarcas sabiam o nome dele. Era Oleg Rudenko, um antigo coronel do KGB que agora exercia as funções de chefe do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. E até mesmo Rudenko era o primeiro a admitir que o título era meramente honorífico. Ivan era quem decidia tudo; Rudenko limitava-se a garantir que os trens funcionassem nos horários. Daí, o celular encostado ao ouvido com força e a expressão severa do seu rosto. O intervalo entre Rudenko e a saída do terceiro passageiro foi de oitenta e quatro longos segundos, tal como cronometrado pelos funcionários da torre de controle... Era uma figura de aspecto muito poderoso, um homem para o baixo, com maçãs do rosto angulosas, a testa larga de um pugilista e o cabelo áspero e da cor da palha de aço. Por breves instantes, um dos funcionários confundiu-o com um guarda-costas, um engano comum que ele secretamente apreciava. Mas qualquer inclinação para pensar isso foi afastada pelo corte do seu magnífico sobretudo inglês. E pela maneira como as calças lhe caíam sobre os sapatos ingleses feitos à mão. E pelo modo como os seus próprios guarda-costas pareciam recear a sua simples presença. E pelo enorme relógio de ouro que tinha no pulso esquerdo. Olhem para ele, murmurou alguém na delegação moscovita. Olhem para Ivan Borisovich! A controvérsia, os mandados de captura, as acusações no Ocidente: qualquer um deles teria aceitado tudo isso de bom grado, só para viver como Ivan Borisovich por um dia.
Só para andar nos seus helicópteros e limusines. E só para ir para a cama uma única vez com Yekaterina. Mas porquê esse olhar carrancudo, Ivan Borisovich? Hoje é um dia de alegria. Hoje é o dia em que os teus filhos deixam a América e voltam para casa.
Avançou a passos largos pela pista, com Yekaterina de um lado, Rudenko do outro e os guarda-costas a rodearem-nos. O chefe da delegação, o ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros fulano de tal, do Escritório tal foi foi ao encontro dele no meio do caminho. A conversa entre ambos foi curta e, tudo o levava a crer, desagradável. A seguir, cada um deles retirou-se para o respetivo canto. Quando lhe pediram para relatar o que Ivan dissera, o ministro-adjunto recusou-se. Não podia ser repetido ao pé de pessoas educadas.
Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! O helicóptero americano janota, a mulher linda e nova, a montanha de dinheiro. E, por baixo de tudo isso, continuava a ser um bandido do KGB. Um bandido do KGB com um fato inglês janota.
Tal como Oleg Rudenko, Adrian Carter estava nesse momento com um telefone encostado ao ouvido, uma linha fixa segura com ligação direta ao Centro de Operações Globais da CIA, em Langley. Shamron também tinha um telefone encostado ao ouvido, apesar de o dele se encontrar ligado ao Escritório de Operações na Boulevard King Saul. Estava a olhar fixamente para o relógio enquanto lutava, ao mesmo tempo, contra um anseio incapacitante por nicotina. Era estritamente proibido fumar no anexo. E, aparentemente, falar também, pois Carter já não dizia uma palavra há vários minutos.
Então, Adrian? Ele está lá ou não? Carter acenou com a cabeça vigorosamente.
O observador acaba de confirmar. Os helicópteros de Ivan já aterrissaram.
Quanto tempo falta ato avião chegue? Sete minutos.
Shamron olhou para o relógio de Moscou: 8h53.
Vai ser tudo um pouquinho apertado, não vai? Não vai haver problema, Ari.
— Vê lá mas é se te certificas de que eles ligam esses transmissores de bloqueio de comunicações às nove e cinco, Adrian. Nem um segundo antes, nem um segundo depois.
— Não te preocupes, Ari. Nada de telefonemas para Ivan.
E nada de telefonemas para ninguém.
Shamron olhou para o relógio: 8h54.
Silêncio, velocidade, timing...
Tudo o que precisavam agora era de um pouquinho de sorte. Se Uzi Navot tivesse tido acesso aos pensamentos de Shamron, teria citado com certeza a máxima do Escritório que dizia que a sorte é sempre conquistada, nunca concedida. E teria feito isso por se encontrar naquele momento deitado de barriga para baixo na neve, cem metros atrás da datcha, segurando nos braços uma arma que possuía o mesmo nome que ele. Cinquenta metros à sua direita, precisamente na mesma posição, estava Yaakov; cinquenta metros à sua esquerda estava Oded. E mesmo à frente de cada um deles estava um russo. Já tinham passado cinco horas desde que Navot e os outros se tinham infiltrado sorrateiramente pela floresta de bétulas e ocupado as suas posições. Durante esse tempo, dois turnos de guardas tinham chegado e partido. Mas, claro, para a equipe visitante não houvera descanso. Navot, apesar de adequadamente equipado para uma operação daquele gênero, tremia de frio. Partiu do princípio de que Yaakov e Oded também estivessem a sofrer, embora já não falasse com qualquer um dos homens há várias horas. O silêncio nas comunicações por rádio era a palavra de ordem daquela manhã. Navot sentiu-se tentado a ter pena de si mesmo, mas a sua cabeça recusava-se a deixá-lo. Sempre que o frio começava a corroer-lhe os ossos, pensava nos campos de concentração e nos guetos e nos terríveis Invernos que o seu povo tivera de suportar durante a Ta1 como Gabriel, Navot devia a sua própria existência a alguém que tinha apelado à coragem, à força de vontade, de maneira a sobreviver a esses Invernos — uma figura paternal, um avô, que passara cinco anos a labutar nos campos de trabalho nazis. Cinco anos a viver de rações de miséria. Cinco anos a dormir ao frio. Tinha sido por causa desse avô que Navot entrara para o Escritório. E era por causa desse avô que se encontrava deitado na neve, cem metros atrás de uma datcha, rodeado por bétulas. O russo parado à sua frente não tardaria muito a estar morto. Ainda que Navot não fosse um especialista como Gabriel e Mikhail, cumprira o serviço militar obrigatório e passara por um extenso treino com armas na Academia. Tal como Yaakov e Oded. Para eles, cinquenta metros não eram nada, mesmo com as mãos congeladas, mesmo com silenciadores. E nada de fazer pontaria para a área do torso, a mais fácil. Só tiros na cabeça. Nada de pedidos de socorro moribundos pelo rádio.
Navot rodou o pulso esquerdo uns centímetros e deu uma olhadela ao relógio digital: 8h59. Mais seis minutos a terem de suportar o frio. Fletiu os dedos e pôs-se à espera de ouvir o som da voz de Gabriel no seu minifone.
A segunda e última sessão da cúpula de emergência do G8 iniciou-se ao bater das nove, no requintado Salão de São Jorge do Grande Palácio do Kremlin. Como sempre, o presidente americano chegou pontualmente e instalou-se no seu lugar à mesa do pequeno-almoço. Quis a sorte que o primeiro-ministro britânico tivesse sido colocado à sua direita. O presidente russo estava sentado do lado Oposto, entre a chanceler alemã e o primeiro-ministro italiano, os seus aliados mais próximos na Europa Ocidental. A sua atenção, no entanto, estava claramente concentrada no lado anglo-americano da mesa. Com efeito, fitava os dois lideres de língua inglesa com o seu caraterístico olhar fixo, aquele que adoptava sempre quando tentava parecer duro e decidido perante o povo russo.
— Acha que ele sabe? — perguntou o primeiro-ministro britânico.
Está brincando? Ele sabe tudo.
— Será que vai funcionar?
— Já saberemos.
— Só espero que não aconteça nada de ruim à mulher.
O presidente americano deu um gole no café.
— Qual mulher?
Stalin nunca tinha conseguido realmente pôr as mãos em Zamoskvorechye. As ruas do seu antigo e agradável bairro, ao sul do Kremlin, tinham sido poupadas em grande parte ao horror do replanejamento soviético e ainda estão repletas de majestosas casas imperiais e igrejas com cúpulas em forma de cebola. O bairro também alberga a embaixada do estado de Israel, localiza da no número 56 da Rua Bolshoya Ordynka. Rimona estava à espera logo à entrada, a seguir ao portão de segurança, com um guarda do Shin Bet de cada lado. Tal como Uzi Navot, observava um único objeto: um grande Mercedes classe S, que tinha estacionado junto ao passeio, à porta da embaixada, ao bater das nove.
O carro estava muito rente ao chão, com o peso do revestimento blindado e dos vidros à prova de bala. Os vidros também eram fumados, o que impossibilitava Rimona de ver os passageiros. Tudo o que conseguia distinguir era o queixo do motorista e duas mãos pousadas calmamente no volante. Rimona levantou o seu celular seguro, encostando-o ao ouvi do, e escutou a cacofonia do Escritório de Operações na Boulevard King Saul. A seguir, ouviu a voz de um dos agentes de serviço a implorar por informações.
“O avião já aterrou. Diz-nos se ela aí está.
Diz-nos o que vês.” Rimona obedeceu à ordem. Via um Mercedes com vidros fumados. E via duas mãos pousadas ao volante. E seguir, na sua cabeça, viu dois anjos sentados dentro de um Rover. Dois anjos que iriam transformar a Terra num Inferno a menos que Chiara saísse daquele carro.
CAPÍTULO 62
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Não havia fotos, apenas vozes longínquas em telefones seguros e palavras que surgiam e piscavam rapidamente nas telas de comunicações do tamanho de cartazes publicitários. Às nove da manhã, hora de Moscou, as telas anunciaram a Shamron que o avião das crianças tinha aterrado sem problemas. Às 9h01, que se encontrava a caminho da torre de controle, reduzindo progressivamente a velocidade. Às 9h03, que o pessoal de terra e as escadas motorizadas de desembarque se aproximavam do avião. Uns segundos depois, uma comunicação telefônica do Boulevard King Saul informou-o de que “Joshua” estava a caminho do alvo — sendo Joshua o nome de código do Escritório para Gabriel e Mikhail. E, por fim, às 9h04, foi avisado por Adrian Carter de que a porta dianteira da cabina se encontrava naquele momento aberta.
Onde está Ivan? A aproximar-se do avião.
E vai sozinho? Com o séquito todo. A mulher, os seguranças e o bandido.
Estás a referir-te ao Oleg Rudenko? Carter assentiu com a cabeça.
Vai a falar ao celular.
É melhor que não continue assim por muito tempo.
Não te preocupes, Ari.
Shamron olhou para o relógio: 9h04m17s. Apertando o telefone com toda a força contra o ouvido, pediu à Boulevard King Saul que lhe dessem uma informação atualizada sobre o carro estacionado junto ao portão da embaixada. O agente de serviço revelou que não tinha havido qualquer alteração.
— Talvez devêssemos exercer um pouco de pressão — disse Shamron.
— Como, chefe? — É a minha sobrinha que está aí fora. Digam-lhe para improvisar.
Shamron ouviu o agente de serviço a transmitir a ordem. A seguir, olhou para a mensagem que surgiu na tela: PORTA DO AVIÃO ABERTA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Tem cuidado, Rimona. Tem muito cuidado. O Memuneh quer que exerças um pouco de pressão E ele tem alguma sugestão? Sugere que improvises.
A sério? Obrigada, tio Ali.
Rimona fixou os olhos no Mercedes. O mesmo queixo. As mesmas duas mãos no volante. Mas os dedos estavam agora a mexer-se, Batendo de leve, num ritmo nervoso.
Sugere que improvises...
Mas como? Durante as reuniões de instruções anteriores à operação, Uzi Navot tinha-se mostrado inflexível num ponto-chave: não iriam dar de forma alguma oportunidade a Ivan para raptar outro agente do Escritório, especialmente outra mulher. Rimona devia manter-se o tempo todo dentro do recinto da embaixada, porque, tecnicamente, era solo israelense. Infelizmente, não havia maneira de exercer um pouco de pressão em quinze segundos permanecendo atrás do portão e da segurança por ele fornecida. Só poderia fazê-lo se se aproximasse do carro. E para se aproximar do carro tinha de deixar Israel e entrar na Rússia. Olhou de relance para o relógio e depois virou-se para um dos seguranças do Shin Bet.
— Abre o portão.
— Mandaram-nos mantê-lo fechado.
— Sabes quem é o meu tio? 347 Toda a gente sabe quem é o seu tio, Rimona.
Então, do que estás à espera? O segurança obedeceu à ordem e saiu com Rimona para a Rua Bolshoya Ordynka, de arma na mão, em violação de todos os protocolos diplomáticos, escritos e não escritos. Rimona dirigiu-se sem hesitação para a porta de trás do carro e bateu com os dedos no vidro espesso e à prova de bala. Ao não receber qualquer resposta, deu mais duas pancadas firmes na janela. Dessa vez, o vidro desceu. E nada de Chiara, apenas um russo de vinte e muitos anos, bem vestido e de óculos de sol, apesar do tempo nublado. Segurava duas coisas: uma pistola Makarov e um envelope. Utilizou a pistola para manter o segurança do Shin Bet à distância. O envelope, entregou-o a Rimona. Quando o vidro subiu, o russo estava a sorrir. A seguir, o carro avançou, com os pneus a derraparem no pavimento gelado, e desapareceu ao virar da esquina.
O primeiro instinto de Rimona foi deixar cair o envelope no chão. Em vez disso, depois de o examinar rapidamente, arrancou a dobra. Lá dentro, havia um anel de ouro. Rimona reconheceu-o. Estava ao lado de Gabriel quando ele o comprou de um joalheiro em Tel Aviv. E estava no terraço do tio, com vista para o mar da Galileia, quando Gabriel o colocou no dedo de Chiara. Levou o celular seguro ao ouvido e informou o Escritório de Operações do que tinha acabado de se passar. A seguir, depois de recuar novamente para o lado israelense do portão de segurança, leu a inscrição na aliança de casamento, com as lágrimas a correrem pelo rosto.
PARA SEMPRE, GABRIEL
As notícias da embaixada confirmaram o que eles sempre suspeitaram: que Ivan nunca pretendera libertar Chiara. De imediato, Shamron disse calmamente quatro palavras em hebraico: Enviem o Joshua para Canaã. — A seguir, voltou-se para Adrian Carter e disse: — Está na hora.
Carter sacou o telefone.
Liguem os transmissores de bloqueio de comunicações e deem a Ivan o bilhete.
Shamron olhou fixamente para a mensagem que continuava a piscar nos monitores. A sua ordem tinha provocado uma torrente de barulho e atividade na Boulevard King Saul. Mas naquele momento, por entre o pandemônio, ouviu duas vozes familiares, ambas calmas e sem revelar qualquer emoção. A primeira foi a de Uzi Navot, a informar que as sentinelas nas traseiras da datcha pareciam agitadas. A voz seguinte foi a de Gabriel. Joshua estava a trinta segundos do alvo, disse ele. Joshua estava prestes a bater à porta do diabo. Embora nem Gabriel nem Shamron o pudessem ver, o diabo estava a perder a paciência rapidamente. Encontrava-se parado à frente das escadas de desembarque, com as mãos, parecidas com marretas, apoiadas nas ancas e o peso do corpo a deslocar-se para trás e para a frente. Os agentes habituados a vigiar Kharkov teriam reconhecido a pose curiosa, identificando-a como uma das muitas que ele tinha adoptado do seu herói, Stalin . E também teriam sugerido que esta seria uma boa altura para uma pessoa se proteger, já que, quando Ivan começava a balançar daquela maneira, isso normalmente queria dizer que vinha uma erupção.
A origem da sua fúria crescente era a porta do C32 americano. Há já mais de um minuto que não havia ali qualquer movimentação exceptuando o aparecimento de dois homens vestidos de preto e fortemente armados. A sua fúria atingiu novos níveis pouco depois das 9h05, quando Oleg Rudenko, que se encontrava à direita de Ivan, o informou de que o celular dele parecia não estar a funcionar. Atribuiu a responsabilidade pelo sucedido às interferências causadas pelo sistema de comunicação do avião, o que em parte estava correto. Ivan, no entanto, tinha claramente as suas dúvidas. Foi nessa altura que tentou, por breves momentos, tratar ele próprio do assunto. Afastando da sua frente um dos guarda-costas’ subiu para as escadas e começou a avançar em direção à porta da cabina. Ao terceiro degrau, parou repentinamente, quando um paramilitar da CIA lhe apontou uma submetralhadora compacta e num russo excelente, lhe ordenou que não desse mais um passo.
Na pista, começaram a enfiar-se mãos debaixo dos sobretudos e, mais 349 tarde, o pessoal da torre de controle afirmou ter vislumbrado o cintilar de uma arma ou duas. Ivan, furioso e humilhado, fez o que lhe mandaram e recuou até o início das escadas.
E aí se manteve durante mais dois tensos minutos, com as mãos nas ancas e os olhos fixos nos homens das metralhadoras que se encontravam parados, lado a lado, junto à porta do C-32. Quando os homens da CIA se afastaram por fim, não foram os filhos que Ivan viu, mas sim o piloto. Tinha um bilhete na mão. Utilizando apenas linguagem gestual, chamou um dos membros da equipe russa de pessoal de terra e mandou-o entregar o bilhete ao homem de ar enfurecido e sobretudo inglês. Quando o bilhete chegou às mãos de Ivan, já a porta do avião estava fechada e os motores ligados. E, quando o avião começou a ganhar velocidade para decolar, quem se encontrava a bordo foi regalado com uma extraordinária visão: Ivan Kharkov — oligarca, traficante de armas, assassino e pai de duas crianças — amassando o papel numa bola e jogando no chão, enraivecido.
Outro homem qualquer poderia ter admitido a derrota naquele momento. Mas não Ivan. Com efeito, a última coisa que a tripulação viu foi Ivan pegando o celular de Oleg Rudenko e o lançando no avião. Bateu inofensivamente na parte de baixo da fuselagem e caiu na pista, despedaçando-se em centenas de pedacinhos. A tripulação riu. Os que sabiam o que viria não o fizeram. Jorraria sangue. E homens morreriam.
O que aconteceu foi que a esteira deixada pelos motores do C32 empurraram o bilhete pela pista em direção à delegação moscovita e, por fim, até os pés do ministro-adjunto em pessoa. Por um momento, este colocou a hipótese de deixá-lo continuar viagem a caminho do esquecimento, mas a sua formação burocrática não o permitiu. Afinal de contas, o bilhete era uma espécie de documento oficial.
O punho poderoso de Ivan tinha comprimido a folha de papel numa bola e o ministro-adjunto demorou segundos para conseguir abri-la e alisá-la novamente. No alto estava o timbre oficial da 89ª Esquadrilha de Transporte. Embaixo, algumas linhas escritas a mão e em inglês, claramente da autoria de uma criança sob grande tensão emocional. Ao olhar a primeira linha, o ministro-adjunto pensou em não ler mais nada. Uma vez mais, o dever exigiu outra coisa.
Nós não queremos viver na Rússia.
Nós não queremos estar com Yekaterina.
Nós queremos voltar para casa, para a América.
Nós queremos estar com a nossa mãe.
Nós te odiamos.
Adeus.
O ministro-adjunto levantou os olhos do papel a tempo de ver Ivan subir a bordo do seu helicóptero. Olhem para ele! Olhem para Ivan Borisovich! Tinha tudo no mundo: uma montanha de dinheiro, uma supermodelo como mulher. Tudo, menos o amor dos seus filhos. Olhem para ele! Tu não és nada, Ivan Borisovich! Nada!
CAPÍTULO 63
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA. RÚSSIA
O sinal de aviso na entrada pertencia à época soviética. As bétulas que surgiam de ambos os lados já se encontravam ali desde o tempo dos czares. Percorridos pouco mais de trinta e cinco metros do caminho estreito, estava um Range Rover parado, com dois guardas russos sentados à frente. Mikhail piscou os faróis. O Range Rover não se mexeu.
Mikhail abriu a porta e saiu do carro. Trazia uma parca grossa e cinzenta, com o fecho corrido até o queixo, e um gorro de lã bem enfiado na cabeça. Por enquanto, era apenas mais outro russo. Mais outro dos rapazes de Ivan. Um veterano do Grupo Alfa que não era para brincadeiras. Do tipo de não gostar de ter de sair do carro quando estavam dez graus negativos.
Com as mãos enfiadas nos bolsos e a cabeça para baixo, avançou para o Range Rover, direito ao lado do motorista. A janela desceu.
A pistola de Mikhail surgiu.
Seis clarões repentinos. Praticamente sem um único som. Gabriel murmurou algumas palavras para o microfone que tinha. junto à boca. Mikhail esticou o braço por cima do motorista morto, virou o volante com força para a direita e passou a caixa de mudanças automáticas da posição de ESTACIONAMENTO para a de CONDUÇÃO. O Range Rover foi afastando do caminho lentamente e acabou por ir chocar contra uma bétula. Mikhail desligou o motor e atirou as chaves para a floresta. Passados alguns segundos, estava outra vez ao lado de Gabriel, a acelerar em direção à parte da frente da datcha.
Nesse mesmo instante, nas traseiras da datcha, três homens colocaram três alvos sob a sua mira. A seguir, ao sinal de Navot, três homens dispararam três tiros.
Três clarões repentinos. Praticamente sem um único som.
Avançaram sorrateiramente pelo meio das bétulas e ajoelharam-se junto aos homens mortos. Armas adquiridas. Rádios silenciados. Navot falou baixinho para o microfone que tinha junto à boca. Alvos neutralizados. Perímetro traseiro assegurado.
Precisamente a duzentos e seis quilômetros a leste dali, na Rua Tverskaya, em Moscou, Irina Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, abriu a porta dos escritórios da Galaxy Travel com a sua chave e passou o letreiro de FECHADO para ABERTO. Sete minutos atrasada, pensou ela. Não que isso importasse. A agência estava a ir por água abaixo — ou, nas palavras do por vezes poético diretor-geral da Galaxy, estava mais bloqueada do que o rio Moscóvia. As férias de Natal tinham sido um autêntico fracasso financeiro. As reservas para a época de esqui da Primavera simplesmente não existiam. Nos dias que corriam, até os oligarcas andavam a armazenar o dinheiro. O pouco que ainda lhes restava. Irina instalou-se em sua mesa perto da janela, e fez todo o possível para parecer ocupada. Falava-se em cortes nas despesas da Galaxy; redução de comissões; até demissões. Obrigada, capitalismo! Talvez Lênin tivesse tido razão, afinal de contas. Pelo menos, conseguira acabar com a incerteza. Sob o comando dos comunistas, os russos tinham sido pobres e tinham-se mantido pobres. Havia algo de meritório na consistência.
A sineta da entrada interrompeu os pensamentos de Irina. Ao olhar para cima, viu uma pequena figura masculina a entrar pela porta discretamente: sobretudo grosso, cachecol de lã, chapéu de feltro, protetores de ouvido e pasta na mão direita. Havia mil pessoas iguaizinhas a ele na Rua Tverskaya, ambulantes de lã e peles, cada uma delas impossível de distinguir outra. O próprio Stalin poderia passear-se pela rua todo atafulhado nos seus agasalhos que ninguém iria olhar duas vezes para ele. O homem soltou o cachecol e tirou o chapéu, deixando a descoberto uma cabeça com cabelo fino e escasso. Irina reconheceu-o de imediato. Era o anjo apaziguador que a tinha convencido a falar sobre a pior noite da vida dela. E agora estava se aproximando de sua mesa, com o chapéu numa mão e a pasta na outra. Sem saber bem como, Irina estava agora em pé. Sorrindo. Apertando sua mão minúscula e fria. Convidando-o a sentar. Perguntando no que poderia ajudar.
— Preciso de ajuda para planejar uma viagem — disse ele em russo.
— E para onde vai?
— Para o Ocidente.
— Pode especificar melhor?
— Receio que não.
— Quanto tempo pensa ficar?
— Indefinidamente.
— Quantas pessoas no seu grupo?
— Isso também ainda está por determinar. Com sorte, vamos ser um grupo grande.
— E quando pensam em partir?
— Lá para o fim da tarde.
— Então, o que eu posso fazer ao certo?
— Pode dizer ao seu supervisor que só vai ali fora tomar um café. Não esqueça de trazer seus objetos de valor. Porque nunca mais voltará. Nunca.
CAPÍTULO 64
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Uma datcha russa pode ser muitas coisas. Um palácio em madeira; um barracão rodeado de rabanetes e cebolas. A que ficava no final do caminho estreito estava entre esses dois extremos Era baixa e robusta, sólida como um navio e tinha sido claramente construída com força de braços bolcheviques. Não havia varanda nem degraus à frente, apenas uma pequena porta ao centro, à que se acedia por um sulco bem marcado na neve. De cada um dos la dos da porta, havia uma janela com vidraças. Em tempos que já lá iam, os caixilhos tinham sido verde-escuros; agora, estavam mais próximos do cinzento. As janelas tinham cortinas finas. A da direita mexeu-se ao mesmo tempo em que Mikhail estacionava o Range Rover e desligava o motor.
— Tire a chave.
— Tem certeza?
— Tire.
Mikhail tirou a chave e guardou-a no bolso do peito. Gabriel olhou de soslaio para as duas sentinelas. Estavam paradas a pouco mais de três metros da datcha, com as armas bem seguras à frente do peito. O seu posicionamento apresentava um certo desafio a Gabriel. Iria ter de disparar numa trajetória ligeiramente ascendente, para que as balas não estilhaçassem as janelas quando saíssem pelo crânio dos russos. Fez esse cálculo no tempo que Mikhail levou a pegar num termo cilíndrico. já andava a fazer cálculos nesse gênero desde que era um rapaz de 355 vinte e dois anos. Só havia que decidir mais uma coisa: qual das mãos? A direita ou a esquerda? Era capaz de dar aquele tiro com qualquer uma delas. Uma vez que sairia do Rover pelo lado do passageiro, decidiu disparar com a direita. Dessa maneira, não bateria com o silenciador no para-choque quando erguesse a arma.
— Tem certeza de que quer ficar com os dois, Gabriel?
— Os dois.
— Porque eu posso ficar com o da esquerda.
— Saia do carro.
Uma vez mais, Mikhail abriu a porta e saiu do carro. E, desta vez, Gabriel fez a mesma coisa, com a parca aberta e a Beretta enfiada na bainha das calças. Mikhail aproximou-se das sentinelas, que tagarelavam em russo. Qualquer coisa relacionada com café quente; qualquer coisa relacionada com o trânsito de Moscou e a merda que era; qualquer coisa relacionada com Ivan e o estado de fúria em que ele se encontrava. Gabriel não percebeu ao certo. E também pouco lhe interessava. Estava a olhar para o lugar, mesmo a seguir ao pneu direito da frente do Rover, onde iria pousar um joelho e acabar com mais duas vidas russas. Os guardas já não estavam a olhar para Mikhail mas um para o outro. Encolheram os ombros... abanaram as cabeças.
E Gabriel ajoelhou-se no seu lugar.
Mais dois clarões. Mais dois russos caídos por terra.
Nenhum som. Nenhuma janela partida.
Mikhail encostou o termos à frente da porta e recuou vários passos rapidamente.
A floresta de bétulas tremeu.
O silêncio tinha terminado.
Nas traseiras da datcha, três homens ergueram-se em simultâneo e avançaram lentamente pelo meio das árvores. Navot disse que não levantassem a cabeça. Haveria muito chumbo. Chiara endireitou-se subitamente, sobressaltada, com as mãos algemadas, os pés acorrentados, poeira e escombros chovendo na escuridão mais do que completa. Vindo lá de cima, ouviu o som de passos nas tábuas do assoalho. Disparos abafados. E, depois, gritos.
— Vem alguém aí, Grigori!
Mais disparos. Mais gritos.
— Levante-se, Grigori! Consegue levantar-se?
— Não sei bem.
— Tem de tentar.
Chiara ouviu um gemido.
— Ossos quebrados demais, Chiara, e muito pouca força.
Ela esticou as mãos algemadas para o meio da escuridão.
— Agarre minhas mãos, Grigori. Podemos fazer isso.
Passaram-se alguns segundos até conseguirem encontrar um ao outro na escuridão.
— Puxe, Grigori! Puxe-me para cima.
Ele voltou a gemer de dor ao puxar pelas mãos de Chiara. No instante em que o peso dela se centrou nas plantas dos pés, Chiara conseguiu endireitar as pernas e levantar-se. Foi então que, no meio dos disparos, ouviu outro som: a mulher da pele branca como leite e dos olhos translúcidos a descer as escadas apressadamente. Chiara foi aproximando da porta pouco a pouco, tendo cuidado para não tropeçar nas correntes, e apertou-se toda para se enfiar no canto. Não sabia o que iria fazer, mas tinha certeza de uma coisa. Não iria morrer. Não sem dar luta.
Veio a descobrir-se que, afinal, nenhum dos telefones estava a funcionar. O de Yekaterina não funcionava; o que tinha sido incorporado a bordo do Bell também não funcionava; e, em toda a equipe de segurança, não havia um só telefone que funcionasse’ Nem um único telefone. Isto, até o avião com as crianças se virar já em pleno voo. Nessa altura, os telefones passaram a funcionar às mil maravilhas. Ivan ligou para o Kremlin e não tardou muito até estar a falar com um assessor bastante próximo do presidente. Oleg Rudenko fez várias chamadas para os homens que tinha na datcha, mas nenhuma delas foi atendida. Deu uma olhadela ao relógio: 9h08. Estava prestes a verificar-se mais uma mudança de turno dos guardas a qualquer momento. Rudenko marcou o número do segurança que comandava a equipe e levou o telefone ao ouvido.
A combinação da onda de choque provocada pela explosão e do estampido ensurdecedor fez a maior parte do trabalho pesado por eles. Tudo o que Mikhail e Gabriel tinham de fazer era ocuparem-se de umas tantas pontas soltas.
A ponta solta número um foi o guarda que olhou pela janela por breves instantes. Gabriel tratou dele com uma rápida rajada de uma mini-Uzzi, poucos segundos depois de entrarem. Antes da explosão, outros dois estavam saboreando um café sossegados. Agora, jaziam estatelados no chão, afastados das armas. Gabriel varreu-os com uma descarga da Uzzi e entrou na cozinha, onde um quarto guarda fazia chá. Ele conseguiu disparar um tiro antes de receber várias balas no peito. O lado direito da datcha estava agora seguro.
A poucos metros de distância, Mikhail estava a ter o mesmo gênero de sucesso. Depois de seguir Gabriel pela porta rebentada, tinha localizado imediatamente dois guardas atarantados no hall central da datcha. Gabriel agachara-se instintivamente antes de disparar os seus primeiros tiros, abrindo assim uma linha de fogo para Mikhail. E Mikhail aproveitara-a, disparando uma rajada prolongada de tiros por todo o hall, poucos centímetros acima da cabeça de Gabriel. A seguir, tinha rodado de imediato na direção da sala de estar. Um dos homens de Ivan estivera a ver na televisão o resumo de um importante jogo de futebol quando a carga explodiu. Agora, estava repleto de estuque e poeira e a procurar às cegas pela sua arma. Mikhail deitou-o ao chão com um tiro no peito.
— Onde está a moça? — perguntou em russo ao moribundo.
— No porão.
— Bom menino.
Mikhail deu-lhe um tiro na cara. Lado esquerdo da datcha assegurado.
Avançaram para a escada.
Enfiada no canto da cela às escuras, Chiara ouviu três sons numa rápida sucessão: um cadeado se abrindo, um ferrolho recuando e um trinco girando. A porta de metal deslocou-se, a raspar pelo chão, permitindo que um trapezoide de luz fraca entrasse na cela e iluminasse Grigori. A seguir, surgiu a Makarov nove milímetros, segurada por duas mãos. As mãos da mulher que tinha matado o bebê de Chiara com sedativos. A pistola afastou-se uns centímetros de Chiara e fez pontaria em Grigori. O rosto ferido dele não registrou medo algum. Sentia dor demais ter medo, exausto demais para resistir à morte. Chiara resistiu por ele. Lançando-se para a frente e saindo da escuridão, agarrou a mulher pelos pulsos e dobrou-os para trás. A arma disparou; naquela minúscula sala de concreto, pareceu um tiro de canhão. E depois disparou outra vez. E ainda uma terceira vez. Chiara não largou os pulsos da mulher. Por Grigori. Pelo bebê dela. Por Gabriel.
Ivan Kharkov era um homem de muitos segredos, muitas vidas. Ninguém sabia isso melhor do que Yekaterina, a sua antiga amante convertida em esposa devota. Tal como Elena antes de si, tinha celebrado um pato insensato: em troca de ter todos os seus desejos materiais concedidos, não faria nenhuma pergunta. Nenhuma pergunta sobre os negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre os amigos e os parceiros de negócios de Ivan. Nenhuma pergunta sobre o que teria levado Elena a decidir abrir mão das crianças. E, agora, nenhuma pergunta sobre o que teria levado as crianças a recusarem sair do avião. Em vez disso, tentou desempenhar o papel que 359 lhe atribuíra. Tentou pegar-lhe na mão, mas Ivan não queria que lhe tocassem. Tentou apaziguá-lo com algumas palavras, mas Ivan não queria ouvir, pois, por enquanto, apenas tinha olhos para Oleg Rudenko. O responsável pela segurança estava a gritar ao celular, sobrepondo-se ao barulho das hélices. Yekaterina ouviu palavras que desejava não ter ouvido. Quantos homens tens? Quantos minutos demoram a chegar lá? Nada de sangue! Estás a ouvir-me? Nada de sangue até nós lá chegarmos! Reuniu a coragem necessária para perguntar para onde estavam a ir. Ivan respondeu-lhe que não tardaria muito e ficaria a saber. Ela disse-lhe que queria ir para casa. Ivan mandou-a estar calada. Ela pôs-se a olhar pela janela do helicóptero. Algures lá em baixo, estava a sua antiga aldeia. A aldeia onde tinha vivido antes de ser descoberta pela mulher da agência de modelos. A aldeia cheia de bêbados e falhados. Fechou os olhos. Leva-me para casa, monstro. Por favor, leva-me para casa.
O jovem assessor abordou o presidente russo com considerável cautela, coisa que os assessores costumavam fazer, independentemente da idade que tivessem. O presidente inclinou-se para trás, afastando-se um pouco da mesa, e deixou que o assessor lhe sussurrasse ao ouvido, um privilégio raro. E depois o mesmo olhar outra vez, com o queixo colado ao peito e os olhos como punhais. Ele não parece muito contente — disse o primeiro-ministro britânico.
— Oh, sério? Como consegue ver isso?
— Imagino que as coisas não tenham corrido bem no aeroporto.
— Então, espere só até ele ouvir o encore.
Tinham-se lançado pela escada abaixo, em grande correria, e já iam a meio caminho quando soou o primeiro tiro. Mikhail ia à frente, Gabriel um passo atrás com a visão parcialmente obstruída. Já perto do fim da escada, foram recebidos por um cheiro horrível: o fedor de seres humanos encerrados há num lugar pequeno. O fedor da morte. A seguir, ecoou outro tiro. E depois outro. E outro...
Gabriel ouviu um grito, seguido por duas vozes completamente diferentes de mulheres gritando furiosamente. Eram completamente diferentes, porque uma das vozes gritava em russo, a outra em italiano.
Ao chegarem ao fim da escada, Gabriel correu atrás de Mikhail, escutando o som da voz de Chiara e rezando para não ouvir mais nenhum tiro. Mikhail abriu a porta da cela com força e entrou primeiro. Um homem estava encostado a um canto, mãos e os pés acorrentados e o rosto grotescamente distorcido. Chiara estava deitada de costas, com a russa em cima dela. Lutavam por uma pistola, agora muito perto do rosto de Chiara.
Mikhail pegou a arma e apontou-a para a parede e descarregou-a. Gabriel agarrou os cabelos da russa e meteu-lhe um único tiro na testa. Agora, havia apenas uma mulher chorando. Gabriel atirou a morta para longe e deixou-se cair de joelhos. Chiara, na sua agitação, julgou por instantes que ele era um dos homens de Ivan e recuou. Ele segurou seu rosto com as mãos e falou com ela baixinho, em italiano.
— Sou eu — disse. — Gabriel. Por favor, tente ficar calma. Temos de nos apressar.
CAPÍTULO 65
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Mais tarde, discutir-se-ia exatamente quanto tempo Gabriel e Mikhail tinham demorado a realizar a sua missão. A duração total foi de três minutos e doze segundos — uma proeza impressionante, ainda para mais tendo em conta o fato de ser preciso bem mais do que um minuto só para fazer de carro os cerca de oitocentos metros que separavam o primeiro posto de segurança da datcha propriamente dita. Desde a entrada até o resgate tinham passado uns assombrosos vinte e dois segundos. Silêncio, velocidade, timing... E coragem, claro. Se Chiara não tivesse decidido oferecer resistência e lutar pela sua vida, tanto ela com Grigori já estariam com certeza mortos na altura em que Gabriel e Mikhail chegaram à cave.
Graças ao milagre das comunicações avançadas e seguras via satélite, no Boulevard King Saul foi possível ouvir Gabriel sussurrar a Chiara suavemente e em italiano. Ninguém no Escritório de Operações percebeu o que estava a ser dito. Não era necessário. Só o próprio fato de Gabriel estar a falar em italiano com uma mulher histérica já lhes dizia tudo aquilo que precisavam de saber. A primeira fase da operação tinha sido um sucesso. Mikhail confirmou-lhes isso mesmo às 9h09m12s, hora de Moscou. E também confirmou que Grigori Bulganov, embora ferido com gravidade, se encontrava igualmente vivo.
Em Tel Aviv, soltou-se um grande rugido de alegria, com a pressão de vários dias de stresse e tristeza a ser libertada como vapor a sair de uma válvula. Os gritos de entusiasmo foram tão ruidosos, que passaram dez longos segundos até Shamron conseguir perceber precisamente o que tinha acontecido. Quando deu a notícia a Adrian Carter e a Graham Seymour, um segundo urro de regozijo rebentou no anexo de Londres, seguido por um terceiro no Centro de Operações Globais, em Langley. Apenas Shamron se recusou a participar nos festejos. E com boas razões. Os números diziam tudo o que precisava de saber.
Cinco agentes.
Dois reféns enfraquecidos.
Quase um quilômetro da datcha até a estrada.
Duzentos e seis quilômetros até Moscou.
E Ivan no ar.
Shamron girou o seu velho zippo entre os dedos e olhou para o relógio: 9h09m52s.
Os números...
Ao contrário das pessoas, os números nunca mentiam. E os números não tinham grande aspeto.
Gabriel retirou as algemas e as correntes e levantou Chiara.
— Consegue andar?
— Não me deixe, Gabriel!
— Nunca te deixarei. Fica comigo! Consegue andar?
— Acho que sim.
Ele pôs o braço em volta da cintura dela e ajudou-a a subir as escadas.
— Tem que se apressar, Chiara.
— Não me deixe, Gabriel.
— Nunca te deixarei.
— Não me deixe aqui com eles.
— Todos já se foram, meu amor. Mas nós temos de nos apressar.
Chegaram ao alto da escada. Navot estava parado no meio do hall central, os corpos a seus pés; havia sangue nas paredes.
— Grigori está todo quebrado — disparou Gabriel em hebraico. — Tragam-no cá para cima.
Gabriel ajudou Chiara a passar por entre os corpos e avançou em direção ao buraco onde a porta estivera.
Chiara viu mais corpos. Corpos por todo lado. Corpos e sangue.
— Oh, meu Deus.
— Não olhe, meu amor. Continue só a andar.
— Oh, meu Deus.
— Anda, Chiara. Anda.
— Foi você que os matou, Gabriel? Você fez isto?
— Continua só a andar, meu amor.
Navot entrou na cela e viu de Grigori.
— Sacanas!
Olhou para Mikhail.
— Vamos colocá-lo em pé.
— Ele está em mau estado.
— Não quero saber. Vamos levantá-lo.
Grigori gritou de dor quando Mikhail e Navot puxaram por ele e o puseram em pé.
— Acho que não consigo andar.
— Não precisa.
Navot pegou o russo e o pôs no ombro, fazendo sinal com a cabeça para Mikhail.
— Vamos.
As portas de trás do Range Rover estavam agora abertas. Yaakov estava parado de um lado e Oded do outro. A poucos metros de distância, estavam dois cadáveres de russos, de braços abertos e as cabeças circundadas por auréolas de sangue. Gabriel fez Chiara passar pelos corpos e ajudou-a a entrar para o banco de trás. A seguir, virou-se e viu Navot a sair da datcha, com Grigori sobre o ombro.
— Põe-no no banco de trás com Chiara e mexe-se daqui.
Navot colocou Grigori dentro do carro com cuidado, ao mesmo tempo que Gabriel se instalou à frente, no lugar do passageiro. Mikhail tirou as chaves do bolso da parca e pôs o motor a trabalhar. Quando o Rover avançou disparado, Gabriel olhou rapidamente para trás, uma última vez.
Três homens. Correndo para as árvores.
Carregou a mini-Uzzi com um cartucho de munições novo e olhou para o relógio: 9h11m07s.
— Mais depressa, Mikhail. Vai mais depressa.
Seguiam pela estrada deserta a pouco menos de cento e sessenta quilômetros por hora: dois Range Rover pretos, cheios de antigos agentes das forças especiais russas e que agora faziam parte do serviço de segurança privada de Ivan Kharkov. No banco da frente do primeiro carro, um celular vibrou. Era Oleg Rudenko ligando do helicóptero.
— Onde estão?
— Perto.
Perto quanto?
— Muito...
Por razões que depressa se tornariam evidentes para Gabriel, o caminho que ia da datcha para a estrada não seguia a direito. Visto de um satélite espião americano, parecia-se bastante com um S invertido, desenhado pela mão de uma criança pequena. Visto do lugar do passageiro de um Range Rover a deslocar-se a grande velocidade, no final do Inverno, era um mar de branco. Neve branca, Bétulas brancas. E, logo ao virar da segunda curva, um par de faróis brancos a aproximar-se a um ritmo alarmantemente rápido. Instintivamente, Mikhail travou a fundo — um erro, em retrospetiva, já que isso acabou por dar uma ligeira vantagem ao outro carro, em termos de impacto. Os air bags evitaram-lhes ferimentos graves, mas deixaram Gabriel e Mikhail demasiado atordoados para 365 resistir quando o Rover foi assaltado por vários homens. Gabriel ainda teve tempo de vislumbrar a coronha de uma pistola russa a fazer um arco em direção à sua cabeça. A seguir, houve apenas branco. Neve branca. Bétulas brancas. E Chiara a flutuar para longe dele, toda vestida de branco.
CAPÍTULO 66
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
Para Shamron, o primeiro indício de que havia problemas foi o súbito silêncio na Boulevard King Saul. Por três vezes, pediu uma explicação. Por três vezes, não recebeu resposta.
Finalmente, uma voz: — Perdemos.
— O que quer dizer com isso, perdemos?
Tinham ouvido um barulho. Parecia ter sido uma colisão. Um choque. E depois vozes. Vozes russas.
— Tem certeza de que eram russas?
— Estamos ouvindo de novo as gravações. Mas temos certeza.
— E eles já tinham saído da propriedade de Ivan quando isso aconteceu?
— Achamos que não.
— E em relação aos rádios?
— Desligados.
— E onde está o resto da equipe?
— Saindo de lá, como planejado. — Uma pausa. — A não ser que queira mandá-los voltar.
Shamron hesitou. Claro que queria mandá-los voltar. Mas não podia. Era melhor perder três do que seis. Os números...
— Digam a Uzi para continuar. E nada de heroísmo. Digam para saírem dali o mais depressa possível.
— Certo.
— E mantenham a linha aberta. Avisem se ouvirem alguma coisa.
Shamron fechou os olhos durante uns segundos e, a seguir, olhou para Adrian Carter e Graham Seymour. Os dois homens só tinham ouvido a conversa do lado de Shamron, mas isso fora suficiente.
— A que horas Ivan saiu de Konakovo? — perguntou Shamron.
— Os helicópteros já estavam todos no ar às nove e dez.
— Qual é a duração do voo entre Konakovo e a datcha?
— Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Shamron olhou para o relógio: 9h14m56s.
Isso significava que Ivan aterrissar em Vladimirskaya por volta das 10h10. E era possível que já tivesse ordenado aos seus homens que matassem Gabriel e os outros. Possível, pensou Shamron, mas não provável. Conhecendo Ivan, ele reservaria esse privilégio para si mesmo.
Uma hora. Talvez um pouquinho mais, se o tempo estiver ruim.
Uma hora...
O Escritório não tinha capacidade para intervir nesse tempo. E os americanos e os britânicos também não. Nesta altura, apenas uma entidade a tinha: o Kremlin... O mesmo Kremlin que tinha permitido, para começar, que Ivan vendesse armas à Al-Qaeda. O mesmo Kremlin que tinha permitido que Ivan se vingasse da perda da mulher e dos filhos. Sergei Korovin admitira praticamente que Ivan pagara ao presidente russo pelo direito de sequestrar Grigori e Chiara. Talvez Shamron conseguisse arranjar uma maneira de cobrir a proposta de Ivan. Mas quanto valeriam quatro vidas para o presidente russo, um homem que se dizia ser um dos mais ricos da Europa? E quanto valeriam para Ivan? Shamron teria de fazer uma jogada que Ivan não conseguisse acompanhar. E teria de fazê-la depressa.
Lançou uma olhada ao relógio, o Zippo girando entre os dedos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
— Vou precisar de uma companhia petrolífera russa, senhores. Uma companhia petrolífera russa bem grande. E preciso dela em uma hora.
— E importa-se de me dizer onde vamos desencantar uma companhia petrolífera russa? — perguntou Carter.
Shamron olhou para Seymour.
— No número 43 de Cheyne Walk.
O celular de Rudenko tocou outra vez. Ficou ouvindo por vários segundos o que lhe diziam, sem qualquer expressão no rosto, e depois perguntou: — Quantos mortos?
— Ainda estamos contando.
— Contando?
— Foi ruim.
— Mas tem certeza de que é ele?
— Sem dúvida.
— Nada de sangue. Está ouvindo? Nada de sangue.
— Sim, estou.
Rudenko deixou cair a chamada. Estava prestes a fazer de Ivan um homem muito feliz. Tinha a única coisa no mundo que ele queria ainda mais do que os filhos.
Tinha Gabriel Allon.
Desta vez, foi o presidente americano que foi abordado por um assessor. E não apenas por um assessor qualquer, mas pelo seu chefe de gabinete. A troca de palavras desenrolou-se em sussurros e foi curta. O rosto do presidente manteve-se sem expressão ao longo dela.
— Alguma coisa? — perguntou o primeiro-ministro britânico quando o chefe de gabinete se afastou.
— Parece que temos um problema.
— Que tipo de problema?
O presidente olhou para o lado oposto da mesa, na direção do seu colega russo.
— Complicações na floresta perto de Moscou.
— E há alguma coisa que possamos fazer?
— Rezar.
A limusine Jaguar de Graham Seymour estava estacionada na Upper Brook Street. Eram 6h20 em Londres quando ele entrou para o banco de trás. Com duas motos da Polícia Metropolitana de Londres a ladearem-no, dirigiu-se para sul, a caminho de Hyde Park Corner, virando para oeste, na Knightsbridge, e depois novamente para sul, na Sloane Street, seguindo até a Royal Hospital Road. Às 6h27, o carro encostava à frente da mansão de Viktor Orlov, em Cheyne Walk, e, às 6h30, Seymour entrava no majestoso escritório de Orlov, acompanhado pela badalada de um relógio de parede de bronze dourado. Orlov, que afirmava necessitar apenas de três horas de sono por noite, estava sentado à mesa, impecavelmente vestido e arranjado, com números dos mercados asiáticos correndo nas telas de computador. Na gigantesca televisão com ecrã de plasma, um jornalista da BBC, parado à porta do Kremlin, perorava em tom solene sobre uma economia global à beira do colapso. Orlov silenciou-o com um piparote no comando da televisão.
— O que estes idiotas sabem realmente, Mr. Seymour?
— Na verdade, posso dizer com grande certeza que sabem muito pouco.
— Está com ar de quem teve uma noite longa. Sente-se, por favor. Diga-me, Graham, em que posso ajudá-lo?
Foi uma pergunta que Viktor Orlov se arrependeria mais tarde de ter feito. A conversa que se seguiu não foi gravada; pelo menos, não pelo M15 nem por qualquer outro serviço secreto britânico. Durou oito minutos, bem mais longa do que Seymour teria preferido, mas isso era de esperar, pois Seymour estava pedindo a Orlov para abdicar para sempre de algo extremamente valioso. Na realidade, para Orlov, esse objeto já estava perdido. Mesmo assim, ainda se agarrou a ele com unhas e dentes nesta manhã, tal como o sobrevivente de uma bomba que acaba de explodir se agarra muitas vezes, em desespero, ao cadáver de alguém menos afortunado.
Não foi uma troca de palavras agradável, mas também isso era de esperar. Viktor Orlov dificilmente podia ser considerada uma pessoa agradável, mesmo nas melhores circunstâncias. Levantaram-se vozes e lançaram-se ameaças. Os empregados de Orlov, apesar de darem mostras de muita discrição, não puderam deixar de ouvir. Ouviram palavras como dever e honra. Ouviram com clareza a palavra extradição e, a seguir, passados poucos segundos, mandado de captura. Ouviram dois nomes, Sukhova e Chernov, e ficaram com a impressão de ter ouvido a visita inglesa dizer qualquer coisa sobre uma inspeção das atividades políticas e empresariais de Mr. Orlov em solo britânico. E, por fim, ouviram a visita dizer com toda a clareza: “Pode fazer o que é decente uma vez que seja na vida? Meu Deus, Viktor! Há quatro vidas em jogo! E uma delas é a de Grigori!”
E foi nessa hora que caiu um silêncio pesado. Passado um momento, a visita inglesa saiu do escritório, com expressão fechada e os olhos no relógio do pulso. Desceu as escadas de dois em dois degraus e entrou no banco de trás do Jaguar que o esperava. Quando a limusine se afastou em disparada, fez uma chamada para uma linha de emergência em Downing Street. Dois minutos mais tarde, falava diretamente com o primeiro-ministro, que tinha pedido licença para se ausentar momentaneamente do café da manhã da cúpula para atender o telefonema. Eram 6h42 em Londres e 9h42 na datcha isolada, no meio da floresta de bétulas a leste de Moscou. O primeiro-ministro britânico voltou para a mesa.
— Acho que está na hora de termos uma conversa a três com o nosso amigo ali na frente.
— Espero que tenha alguma coisa boa para lhe propor.
— Tenho. A única questão é saber se ele será capaz de cumprir a parte do acordo que lhe cabe.
A visão dos dois líderes levantando-se ao mesmo tempo fez correr um murmúrio de ansiedade entre funcionários do Kremlin espalhados pelo salão, ao verem o café que tinham cuidadosamente planejado aproximar-se, inesperada e perigosamente, de algo fora do roteiro. A única pessoa que pareceu não ficar surpresa foi o presidente russo, já em pé quando os líderes britânico e americano chegaram a seu lado.
— Precisamos falar — disse-lhe o primeiro-ministro. — Em particular.
Saíram discretamente do Salão de São Jorge e entraram numa antecâmara, apenas com a presença dos seus assessores mais próximos. Tal como o encontro que acabara de ter lugar no escritório de Viktor Orlov, não foi uma situação agradável. Uma vez mais, levantaram-se vozes, mas ninguém fora da sala as ouviu. Quando os líderes de lá saíram, o presidente russo sorria visivelmente, um acontecimento raro. E também trazia um celular encostado ao ouvido. Mais tarde, ao serem questionados pela imprensa, os porta-vozes de cada um dos três líderes utilizaram todos precisamente a mesma linguagem para descrever o que se tinha passado. Tratara-se de uma questão de planejamento rotineira, nada mais. De planejamento, talvez, mas dificilmente rotineira.
CAPÍTULO 67
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar do quartel-general do FSB, uma série de salas encontra-se ocupada pela unidade mais pequena e secreta da organização. Conhecida como o Escritório de Coordenação, o seu quadro de agentes experimentados lida apenas com casos de extrema sensibilidade política. Nessa manhã, pouco antes das dez, o seu chefe, o coronel Leonid Milchenko, estava rigidamente parado ao lado da sua mesa feita na Finlândia, com um telefone encostado ao ouvido. Embora Milchenko trabalhasse de fato para o presidente russo, as conversas diretas entre ambos eram raras. Esta foi curta e tensa. “Trate disso, Milchenko. E sem argoladas. Estamos entendidos?” O coronel disse “Da” várias vezes e desligou o telefone.
— Vadim!
Vadim Strelkin, o seu número dois, espetou a careca para dentro da sala.
— Qual é o problema?
— Ivan Kharkov.
— O que foi agora? — Milchenko explicou.
— Merda!
— Eu não o poderia ter dito melhor.
— Onde fica a datcha?
— Na província de Vladimirskaya.
— E qual é a distância exata?
— A suficiente para precisarmos de um helicóptero. Diz para pousar na praça.
— Não posso. Hoje, não.
— Por que não?
Strelkin apontou com a cabeça para o Kremlin.
— Todo o espaço aéreo dentro da circular exterior está fechado por causa da cúpula.
— Pois agora já não está.
Strelkin levantou o fone do telefone que se encontrava em cima da mesa de Milchenko e mandou vir o helicóptero.
— Já sei que há um encerramento, idiota! Faz isso e mais nada!
Desligou o telefone, batendo com toda a força. Milchenko estava parado junto ao mapa.
— Quanto tempo para chegar?
— Cinco minutos.
Milchenko calculou o tempo de viagem.
— Não temos chance de lá primeiro que Ivan.
— Deixa-me ligar diretamente ao Rudenko.
— Quem? — O Oleg Rudenko. O chefe de segurança de Ivan. Já foi um dos nossos. Talvez ele seja capaz de fazer com que Ivan tenha um pouco de bom senso.
— Fazer com que Ivan Kharkov tenha bom senso? Vadim, De repente, é melhor explicar-te uma coisa. Se ligares ao Rudenko, a primeira coisa que Ivan faz é matar aqueles reféns.
— Não se lhe dissermos que a ordem vem mesmo do topo.
Milchenko refletiu um pouco e, a seguir, abanou a cabeça. Não se pode confiar em Ivan. Vai dizer que eles já estão mortos. Mesmo que não estejam.
— E quem são essas pessoas?
— É complicado, Vadim. E é por isso que o presidente me concedeu esta grande honra. Escusado será dizer que há uma grande quantidade de dinheiro em jogo... para a Rússia e para o presidente.
— Como assim?
— Se os reféns acabarem vivos, dinheiro. Caso contrário...
— Nada de dinheiro?
— Tem um futuro risonho à tua frente, Vadim.
Strelkin juntou-se a Milchenko junto ao mapa.
— Pode haver outra maneira de conseguirmos fazer chegar lá algum poder de fogo rapidamente.
— Sou todo ouvidos.
— As forças do Grupo Alfa estão dispostas por toda a Moscou por causa da cúpula. Se não me engano, ocupam as suas posições em todas as principais autoestradas que vão dar na cidade.
— Para fazer o quê? Dirigir o trânsito?
— Procurar terroristas chechenos.
É claro, pensou Milchenko. Estavam sempre à procura de chechenos, mesmo quando não havia nenhum checheno por perto. Faz a chamada, Vadim. Vê se há alguns Alfas que estejam pela M7.
Strelkin assim fez. E havia. Um par de helicópteros poderia recolhê-los em menos de dez minutos.
— Envia-os, Vadim.
— Por ordem de quem?
— Do presidente, claro.
Strelkin deu a ordem.
— Tem um futuro risonho a sua frente, Vadim.
Strelkin olhou pela janela.
— E você tem um helicóptero.
— Não, Vadim, nós temos um helicóptero. Não vou lá sozinho.
Milchenko pegou o sobretudo e encaminhou-se para a porta, seguido de perto por Strelkin. Cinco graus negativos e neve a cair e ele ia para a província de Vladimirskaya salvar três judeus e um traidor russo das garras de Ivan Kharkov. Não era exatamente a maneira como tinha contado passar o dia.
Embora o coronel não soubesse, as quatro pessoas cujas vidas estavam agora em suas mãos encontravam-se naquele momento sentadas ao longo das quatro paredes da cela, cada uma encostada à sua, com os pulsos bem amarrados atrás das costas, as pernas esticadas e os pés a tocarem uns nos outros. A porta da cela estava entreaberta; dois homens, de armas prontas para disparar, estavam de guarda logo à saída. O murro que derrubara Mikhail tinha-lhe aberto uma ferida profunda por cima do olho esquerdo. Gabriel fora atingido por trás da orelha direita e o seu pescoço era agora um rio de sangue. Vítima de demasiadas pancadas, estava a sentir dificuldades em silenciar os sinos que lhe ecoavam nos ouvidos. Mikhail inspecionava o interior da cela, olhando em redor como se procurasse uma saída. Chiara estava a observá-lo, tal com Grigori. Em que está a pensar? — murmurou ele em russo. — Com certeza que não está a pensar em tentar escapar, não? Mikhail olhou de soslaio para os guardas.
— E dar àqueles macacos uma desculpa para me matarem? Isso nem me passaria pela cabeça.
— Então, o que a cela tem de tão interessante?
— O simples fato de existir.
— O que significa que...?
— Você teve uma datcha, Grigori?
— Tivemos uma quando era garoto.
— O seu pai era do partido?
Grigori hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça.
— Por uns tempos.
— O que aconteceu?
— Meu pai e o partido foram cada um para o seu lado.
— O seu pai era um dissidente?
— Dissidente, refusenik ... é uma questão de escolher a palavra, Grigori. Acabou por odiar o partido e tudo aquilo que ele representava. Foi por isso que foi parar em sua lojinha dos horrores.
— E ele tinha uma datcha?
— Até o KGB tomá-la. E digo uma coisa, Grigori. Não havia uma sala no porão como esta. Na verdade, nem sequer havia um porão.
— Na nossa também não.
— Tinham um chão?
— Um muito tosco — respondeu Grigori, conseguindo soltar um sorriso. — O meu pai não era um funcionário muito importante do partido.
— Lembra-se de todas as regras malucas?
— Como podíamos esquecer delas? Não era permitido ter aquecimento. As datchas não podiam ter mais de vinte e cinco metros quadrados.
— O meu pai contornou as restrições acrescentando uma varanda. Nós costumávamos dizer na brincadeira que era a maior varanda da Rússia.
— A nossa era maior, tenho certeza.
— Mas nada de cave, não era, Grigori? Nada de cave.
— Então, porque permitiram que este tipo construísse uma cave? — Ele devia ser do partido.
— Isso nem é preciso dizer.
— De repente, guardava o vinho cá em baixo.
— Vá lá, Grigori. É capaz de fazer melhor do que isso.
— Carne? De repente, gostava de carne.
— Devia ser um funcionário muito importante do partido para precisar de um frigorífico deste tamanho para carne.
— Tem alguma outra teoria? — Utilizei mais ou menos um quilo de explosivos para rebentar com a porta da frente. Se tivesse colocado uma carga assim tão grande à frente da nossa antiga datcha, isso teria feito com que todo o lugar viesse abaixo.
— Não me parece que esteja a compreender.
— Este lugar foi bem construído. Feito sob medida. Olhe para o concreto, Grigori. Isto é material do bom. Não é aquela trampa que davam a nós e ao resto das pessoas. Daquela trampa que costumava cair aos pedaços e desfazer-se em pó passado um Inverno. É velho, este lugar. O caruncho ainda não se tinha instalado no sistema quando o construíram.
— Velho a que ponto?
— Anos trinta, diria eu.
— Do tempo de Stalin ? Que descanse em paz.
Gabriel levantou o queixo do peito. Em hebraico, perguntou: — Mas do que raio vocês estão aí falando?
— De arquitetura — respondeu Mikhail. — Da arquitetura das datchas, para ser mais preciso.
— E há alguma coisa que queira dizer, Mikhail?
— Há algo neste lugar que não combina — afirmou Mikhail, mexendo o pé. — Por que há um cano de esgoto no meio deste assoalho, Gabriel? E o que são aquelas depressões lá fora?
— Diga você, Mikhail.
Mikhail ficou em silêncio por um momento. E depois mudou de assunto: — Como está a tua cabeça? Ainda continuo a ouvir coisas.
— Os sinos continuam?
Gabriel fechou os olhos e deixou-se ficar sem mexer um músculo.
— Não, os sinos, não.
— Helicópteros.
CAPÍTULO 68
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Em sua ascensão rumo à riqueza e ao poder, Ivan Kharkov aprendeu a fazer uma entrada. Sabia entrar num restaurante ou no hall de um hotel de luxo. Sabia entrar numa sala de reuniões repleta de rivais ou na cama de uma amante. E sem dúvida que sabia entrar numa cela úmida com quatro pessoas que mataria com as próprias mãos. O que era intrigante era o fato de o seu desempenho variar tão pouco de um local para o outro. Com efeito, observar Ivan agora era o mesmo que imaginá-lo parado à entrada do Le Grand Joseph ou da Vila Romana, os seus antigos redutos em Saint-Tropez. E, embora fosse um homem com muitos inimigos, Ivan nunca gostava de apressar as coisas. Preferia inspecionar uma sala e deixar que, por seu turno, a sala o inspecionasse também a ele. Gostava de exibir a sua roupa. E o relógio de pulso, com um mostrador do tamanho de um relógio de sol, para o qual, por razões que apenas ele conhecia, se encontrava agora a olhar, como se estivesse irritado com um maître por este o fazer esperar cinco minutos por uma mesa que lhe estava prometida.
Ivan baixou o braço e enfiou a mão no bolso do sobretudo, que se encontrava desabotoado; como se ele estivesse a antecipar um esforço físico. O seu olhar deslizou pela cela lentamente, fixando-se primeiro em Grigori, depois em Chiara a seguir em Gabriel e, por fim, em Mikhail. A presença deste último pareceu animá-lo: era um bónus, um ganho trazido por um golpe de sorte. Mikhail e Ivan tinham uma história conjunta. Mikhail tinha jantado com Ivan' Mikhail tinha sido convidado para um almoço na villa de Ivan. E Mikhail tinha tido um caso com a mulher de Ivan. Pelo menos, era isso que Ivan pensava. Pouco antes da queda de Ivan, dois dos seus capangas tinham dado uma grande tareia a Mikhail, num café no Velho Porto de Saint-Tropez. Fora apenas um mero aperitivo. A julgar pela expressão de Ivan, estava a ser preparado um banquete de dor. E ele e Mikhail iriam saboreá-lo em conjunto. O seu olhar foi deslocando vagarosamente, para trás e para a frente, como um holofote a percorrer um campo aberto, e acabou por se deter uma vez mais em Gabriel. A seguir, falou pela primeira vez. Gabriel tinha passado horas a ouvir gravações da voz de Ivan, mas nunca a ouvira em pessoa. O inglês de Ivan, embora perfeito, possuía o sotaque de um propagandista da velha Rádio Moscou, nos tempos da guerra fria. O seu tom de voz cheio e de barítono fez as paredes da cela vibrarem.
— Fico tão satisfeito por poder ter proporcionado o seu reencontro com a sua mulher, Allon. Pelo menos, um de nós cumpriu a parte do acordo que lhe competia.
— E que acordo foi esse?
— Eu libertaria sua mulher e você devolvia meus filhos.
— Anna e Nikolai aterrissaram hoje em Konakovo às nove da manhã.
— Não sabia que tratava meus filhos pelo nome.
Gabriel olhou para Chiara e depois fitou Ivan, correspondendo a seu olhar de ferro.
— Se minha mulher estivesse na porta da embaixada às nove horas, seus filhos estariam agora com você. Mas minha mulher não estava lá. E, por isso, seus filhos estão neste momento de volta à América.
— Acha que sou imbecil, Allon? Você nunca pensou em deixar meus filhos saírem daquele avião.
— A decisão foi deles, Ivan. Ouvi dizer que até lhe mandaram um bilhete.
— Era uma falsificação evidente, como aquele quadro que vendeu a minha mulher. O que me lembra: você me deve dois milhões e meio de dólares, sem falar nos vinte milhões que seu serviço secreto roubou de minhas contas bancárias.
— Se me emprestar o telefone, Ivan, trato de providenciar uma transferência bancária.
— Meus telefones parecem não funcionar muito bem hoje — respondeu Ivan, encostando o ombro na porta e passando a mão pelo cabelo grisalho e espesso. — É uma pena, realmente.
— O que, Ivan?
— Meus homens acham que vocês só estavam a dez segundos da entrada da propriedade na altura do choque. Se tivessem conseguido chegar à estrada, talvez tivessem podido voltar a Moscou. Suspeito que provavelmente teriam conseguido se não tivessem tentado levar Bulganov junto. Teria sido bem mais inteligente deixá-lo para trás.
— Era isso que você teria feito, Ivan?
— Sem dúvida. Deve se sentir muito estúpido neste preciso momento.
— E por quê? — Você e a sua adorável mulher vão morrer por você ter sido demasiado decente para deixar para trás um traidor e desertor ferido. Mas essa sempre foi a sua fraqueza, não foi, Allon? A sua decência.
— Prefiro as minhas fraquezas às suas, Ivan.
— Algo me diz que pode não ter a mesma opinião daqui a uns minutos — respondeu Ivan, exibindo um sorriso de desprezo. Só por curiosidade, como conseguiu descobrir onde eu tinha prendido a sua mulher e Bulganov?
— Você foi traído.
Uma palavra que Ivan compreendia. Franziu o sobrolho carregado.
— Por quem?
— Por pessoas em quem achava que podia confiar.
— Como pode calcular, Allon, eu não confio em ninguém... especialmente no que diz respeito às pessoas que supostamente me são mais próximas. Mas iremos discutir esse assunto de uma forma mais pormenorizada daqui a pouco. Deu uma olhadela à sala com alguma perplexidade estampada no rosto, como se estivesse a debater-se com um teorema matemático. — Diga-me uma coisa, Allon: onde está o resto da sua equipe?
— Está olhando para ela.
— Sabe quantas pessoas morreram aqui hoje de manhã?
— Se me der um minuto, tenho certeza...
— Quinze, na maioria antigos membros do Grupo Alfa e da OMON — interrompeu ele, olhando para Mikhail.
— Nada mau para um especialista de informática que trabalhava para uma organização de direitos humanos sem fins lucrativos. Por favor, Mikhail, pode me lembrar o nome do grupo?
— Centro Dillard para a Democracia.
— Ah, sim, é isso mesmo. Suponho que o Centro Dillard acredita no recurso à força bruta quando necessário — disse ele, voltando a sua atenção de novo para Gabriel e repetindo a pergunta inicial.
— Não brinque comigo, Allon. Eu sei que você e o seu amigo Mikhail são muito bons, mas não há hipótese de conseguirem fazer isso tudo sozinhos. Onde está o resto dos seus homens? Gabriel ignorou a pergunta e fez ele uma: — O que provocou aquelas depressões na floresta, Ivan? Ivan pareceu surpreso. No entanto, recuperou rapidamente, como um pugilista que se restabelece dos efeitos de um soco. Já vai ficar a saber. Mas primeiro precisamos conversar mais. Vamos fazê-lo lá em cima, sim? Este lugar cheira a merda.
Ivan foi embora. Apenas seu cheiro ficou. Sândalo e fumo.
O cheiro do poder. O cheiro do diabo.
CAPÍTULO 69
GROSVENOR SQUARE, LONDRES
A mensagem vinda do PDA seguro de Uzi Navot surgiu no anexo de Londres e no Boulevard King Saul em simultâneo, às 10h17, hora de Moscou.
HELICÓPTEROS DE IVAN ATERRISSARAM NA DATCHA... AGUARDO INSTRUÇÕES...
Shamron pegou rapidamente o telefone com ligação para Tel Aviv.
— O que ele quer dizer com instruções?
— Uzi pergunta se o senhor quer que eles voltem para a datcha.
— Achei que tinha deixado minha vontade bem clara, sem ambiguidades.
— Continuar a seguir para Moscou?
— Correto.
— Mas...
— Isto não é uma discussão.
— Certo, chefe.
Shamron desligou o telefone, batendo com o fone com toda a força. Adrian Carter fez o mesmo.
— O conselheiro de segurança nacional do presidente acabou de falar com seu equivalente russo no Kremlin.
— E?
— O FSB está perto. Tropas do Grupo Alfa, mais dois homens importantes de Lubyanka.
— Tempo de chegada previsto?
— Esperam aterrissar às dez e quarenta e cinco, hora de Moscou.
Shamron olhou para o relógio: 10h 19m49s.
Enfiou um cigarro na boca. O seu isqueiro soltou uma chama. Não havia mais nada a fazer agora a não ser esperar. E rezar para que Gabriel conseguisse lembrar-se de alguma maneira de se manter vivo durante mais vinte e cinco minutos. Nesse mesmo momento, um velho Lada, transportando Yaakov, Oded e Navot, estava encostado à beira de uma estrada congelada de duas faixas. Atrás deles, havia uma sucessão de aldeias. À frente, a M7 e Moscou. Oded estava ao volante, Yaakov ia no banco de trás, apertado, e Navot à frente, no lugar do passageiro. Os pequeninos limpa-pára-brisas do Lada iam raspando na neve que se acumulava no pára-brisas. O descongelador, um eufemismo como mais nenhum outro, estava a fazer mais mal do que bem. Navot ia completamente absorto. Não tirava os olhos da tela do PDA seguro e ia vendo os segundos a passarem no seu relógio digital. Por fim, às 10h20, uma mensagem. Ao lê-la, praguejou baixinho para si próprio e voltou-se para Oded.
— O Velho quer que voltemos para Moscou.
— E o que fazemos?
Navot cruzou os braços à frente do peito.
— Não nos mexemos.
O helicóptero era um M-8 reconfigurado, com velocidade máxima de duzentos e sessenta quilômetros por hora, um pouco mais devagar quando o vento uivava da Sibéria e a visibilidade não ultrapassava os oitocentos metros, na melhor das hipóteses. Lá dentro, viajava uma tripulação de três pessoas e um complemento de dois Passageiros apenas: o coronel Leonid Milchenko e o major Vadim Strelkin, ambos do Escritório de Coordenação do FSB. Strelkin, que não gostava nada de voar, estava a fazer um grande esforço Para não vomitar. Milchenko, de fones com microfone nos ouvidos ia ouvindo a conversa que decorria no cockpit e espreitava Pela janela.
Tinham transposto a circular exterior cinco minutos após deixarem Lubyanka e encontravam-se agora a deslocar-se para leste a toda a velocidade, utilizando a M7 como um guia. rudimentar. Milchenko conhecia bem as cidades — Bezmenkovo, Chudinka, Obukhovo — e o seu estado de espírito ia pesando mais a cada quilômetro que se afastavam de Moscou. A Rússia vista do ar não era muito melhor do que a Rússia ao nível do chão. Olhem para ela, pensou Milchenko. Foi uma coisa que não aconteceu da noite para o dia. Foram precisos séculos de czares, secretários-gerais e presidentes para produzir semelhantes destroços, e agora Milchenko tinha como missão esconder os seus segredos sujos. Carregou numa tecla para ligar o microfone e pediu uma estimativa do tempo de chegada. Quinze minutos, foi o que responderam. Vinte, no máximo.
Vinte, no máximo... Mas o que ele encontraria quando chegasse? E o que levaria de lá? O presidente tinha deixado sua vontade bem clara.
“É imperativo que os israelenses saiam de lá vivos. Mas se Ivan precisar derramar um pouquinho de sangue, dê-lhe seu amigo, Bulganov. É um cão. Deixe-o morrer como um cão.” Mas e se Ivan não quisesse abrir mão dos judeus? O que fazer então, senhor presidente? O que fazer então, de fato. Milchenko ficou a olhar fixamente pela janela, com uma expressão taciturna. As cidades iam ficando agora cada vez mais espaçadas. Mais campos de neve. Mais bétulas. Mais lugares para morrer... Milchenko estava prestes a encontrar-se numa posição nada invejável, preso entre Ivan Kharkov e o presidente russo. Aquela era uma missão que só poderia revelar-se infrutífera. E, se não tivesse cuidado, também ele era capaz de morrer como um cão.
CAPÍTULO 70
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Os mortos estavam amontoados como pilhas de madeira, à beira das árvores, vários deles com buracos de bala perfeitos nas testas e os restantes eram uma salgalhada sangrenta. Ivan não lhes prestou nenhuma atenção ao passar pela entrada em ruínas e avançar para a parte lateral da datcha. Gabriel, Chiara, Grigori e Mikhail seguiram-no, com as mãos ainda amarradas atrás das costas e guarda-costas a segurá-los pelo braço. Obrigaram-nos a ficar encostados à parede exterior, com Gabriel numa ponta e Mikhail na outra. A neve dava-lhes pelos joelhos e continuava a cair. Ivan foi deslocando no meio dela lentamente, empunhando uma grande pistola Makarov. O fato de as suas calças e sapatos dispendiosos estarem a estragar-se pareceu ser o único ponto negro no que era, fora isso, uma ocasião festiva.
O herói de Ivan, Stalin, gostava de brincar com as suas vítimas. Os condenados eram inundados de privilégios especiais, confortados com promoções e promessas de novas oportunidades para servirem o seu senhor e a pátria. Ivan não fingia ter essa compaixão; não havia qualquer tentativa de enganar quem estava prestes a morrer. Ivan era da Quinta Direção Principal. Alguém que partia ossos, que esmagava cabeças. Depois de passar uma última vez à frente dos seus prisioneiros, escolheu a primeira vítima. Gostou do tempo que passou com a minha mulher? — perguntou a Mikhail em russo.
— Ex-mulher — disse Mikhail na mesma língua. — E, sim, gostei muitíssimo do tempo que passei com ela. É uma mulher formidável. Você devia tê-la tratado melhor.
— Foi por isso que ma levou? — Não tive de a levar. Ela veio a cambalear para os nossos braços.
Mikhail nem viu a pancada a chegar. Uma bofetada com as costas da mão, de baixo para cima. Sem saber bem como, conseguiu manter-se de pé. Os guardas de Ivan, que formavam um semicírculo na neve, acharam aquilo divertido. Chiara fechou os olhos e começou a tremer de medo. Gabriel encostou o ombro ao dela suavemente. E, em hebraico, murmurou: — Tente manter-se calma. O Mikhail está a fazer o que deve.
— Só o está deixando mais furioso.
— Exatamente, meu amor. Exatamente.
Ivan estava agora a esfregar as costas da mão, como que para provar que também tinha sentimentos.
— Eu confiei em você, Mikhail. Abri as portas da minha casa a você. E você me traiu.
— Foi tudo apenas negócios, Ivan.
— Sério? Apenas negócios? Elena falou daquela pequena villa de merda, nas colinas de Saint-Tropez. Falou-me do almoço que você lá tinha à espera. E do vinho. O rosé de Bandol. O preferido dela. Bem gelado. Como ela gosta.
Outra bofetada com as costas da mão e com tanta força, que fez Mikhail ir de encontro à parede. Com as mãos ainda amarradas, era incapaz de se manter em pé sozinho. Ivan agarrou seu casaco e levantou-o sem nenhuma dificuldade.
— Ela me contou sobre o quartinho de merda onde fizeram amor.
— E até me falou das reproduções de Monet penduradas na parede. Curioso, não acha? Elena tinha dois Monets verdadeiros em casa. E, no entanto, você a levou para um quarto com dois pôsteres de Monet na parede. Lembra deles, Mikhail?
— Nem tanto.
— Por que não?
— Estava ocupado olhando para sua mulher.
Desta vez, foi um murro que mais parecia uma marretada. Abriu outro golpe profundo no rosto de Mikhail, a centímetros do olho esquerdo. Ao mesmo tempo que os guardas o punham de pé, puxando-o para cima, Chiara implorou a Ivan que parasse. Ivan a ignorou. Estava apenas começando.
— Elena disse que você foi um perfeito cavalheiro. Que fizeram amor duas vezes. Que você queria fazer amor uma terceira vez, mas que ela se recusou. Tinha de se ir embora. Tinha de ir para casa ter com os filhos. Agora já se lembra, Mikhail?
— Lembro, Ivan.
— Todas estas coisas eram mentiras, não eram? Você engendrou esta história de um encontro romântico para me enganar. Nunca fez amor com minha mulher naquela villa. Ela contou da minha operação. E, a seguir, planejaram a deserção dela e o roubo dos meus filhos.
— Não, Ivan.
— Não, o quê?
— O almoço estava à nossa espera. E o rosé também. De Bandol. O preferido da Elena. Fizemos amor duas vezes. Ao contrário de você, eu fui um perfeito cavalheiro.
O joelho subiu. Mikhail foi ao chão. E ficou no chão.
Agora, era a vez de Gabriel.
Os homens de Ivan não se tinham dado ao trabalho de tirar o relógio a Gabriel. Estava preso ao pulso esquerdo e o pulso estava bem encostado ao rim. Ainda assim, na sua mente, Gabriel conseguia imaginar os números digitais a avançarem. Da última vez que tinha confirmado, eram 9h11m07s. O tempo tinha parado com o choque entre os carros e recomeçara com a chegada de Ivan, de Konakovo. Gabriel e Shamron tinham escolhido o velho aeródromo por uma razão: criar espaço entre Ivan e a datcha. Criar tempo, Para o caso de alguma coisa correr mal. Gabriel chegou à conclusão de que passara pelo menos uma hora desde o momento em que tinham sido capturados e o momento da chegada de Ivan. E sabia que Shamron não passara essa hora a tratar dos preparativos para um funeral. Agora, Gabriel e Mikhail tinham de ajudar a sua própria causa dando a Shamron uma coisa: tempo. E, por mais estranho que parecesse, teriam de conseguir que Ivan funcionasse como seu aliado. Tinham de manter Ivan furioso. Tinham de manter Ivan a falar. Quando Ivan se calava, aconteciam coisas más. Países desfaziam-se aos pouquinhos. Pessoas morriam.
— Foi idiota da sua parte regressar à Rússia, Allon. Eu sabia que você o faria, mas foi à mesma idiota.
— E porque não me matou simplesmente na Itália e despachou logo tudo? — Porque há certas coisas que um homem tem de fazer ele próprio. E, graças a você, não posso ir à Itália. Não posso ir a lado nenhum.
— Não gosta da Rússia, Ivan?
— Adoro a Rússia — respondeu ele, com um breve sorriso. — Especialmente a distância.
— Então, suponho que exigir seus filhos de volta era uma mentira... como concordar em devolver minha mulher sã e salva.
— Acho que sã e salva foram palavras que Korovin e Shamron usaram em Paris. E, não, Allon, não era mentira. Eu quero mesmo recuperar meus filhos — disse, olhando de relance para Chiara. — Calculei que, se raptasse a sua mulher, teria pelo menos uma hipótese remota de os recuperar.
— Sabia que Elena e as crianças moravam na América.
— Digamos que tinha fortes suspeitas de que fosse esse o caso.
— Então, por que não sequestrou um alvo americano?
— Duas razões. Antes de mais nada, o nosso presidente não o teria permitido, uma vez que isso causaria com certeza a ruptura completa nas nossas relações com Washington.
— E a segunda razão?
— Não teria sido um investimento inteligente, em tempo e recursos.
— Importa-se de explicar?
— Com certeza — lançou Ivan, num tom repentinamente jovial.. — Como todo mundo sabe, os americanos têm política contrária às negociações com sequestradores e terroristas. Mas vocês, israelenses, operam de maneira diferente. Por serem um país pequeno, a vida para vocês é muito preciosa. E isso significa que entrarão de imediato em negociações quando há vidas inocentes em jogo. Meu Deus, até são capazes de trocar dezenas de assassinos comprovados para recuperar os corpos dos seus soldados mortos. O seu amor à vida torna-os um povo fraco, Allon. Foi sempre assim.
— Portanto, calculou que fôssemos exercer pressão sobre os americanos para eles devolverem as crianças?
— Não sobre os americanos — retorquiu Ivan. — Sobre Elena. A minha ex-mulher é bem parecida com os judeus: trapaceira e fraca.
— E porquê o intervalo entre o sequestro de Grigori e o da Chiara? Ordenado pelo czar. Grigori serviu mais ou menos como uma experiência. O nosso presidente queria ver como os britânicos iriam reagir a uma clara provocação no seu próprio solo. Quando viu que havia apenas fraqueza, deu-me autorização para enterrar um pouquinho mais a faca.
— Raptando a minha mulher e tentando abertamente apoderar-se dos seus filhos? — Correto — soltou Ivan. — E, para o nosso presidente, a sua mulher era um alvo legítimo. Afinal de contas, você e os seus amigos americanos executaram uma operação ilegal em solo russo no Verão passado... uma operação que resultou na morte de vários dos meus homens, já para não falar no roubo da minha família.
— E se a Elena se tivesse recusado a devolver o Nikolai e a Anna? Ivan sorriu.
Nesse caso, tinha certeza de que o apanharia a si.
Pronto, agora já me apanhou, Ivan. Solte os outros.
O Mikhail e Grigori? — Ivan abanou a cabeça.
— Eles traíram a minha confiança. E você sabe o que nós fazemos aos traidores, Allon.
Virshqya mera.
Ivan levantou o queixo, numa demonstração de admiração fingida.
— Bastante impressionante, Allon. Estou a ver que já apanhou um pouquinho de russo nas suas viagens pelo nosso país.
— Solte-os, Ivan. Solte Chiara.
— Chiara? Oh, não, Allon, isso também não é possível. É que, você sabe, você levou minha mulher. E agora vou levar a sua. É assim a justiça. Exatamente como no seu livro judeu. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, queimadura por queimadura, ferida por ferida.
— Chama-se Livro do Êxodo, Ivan.
— Sim, eu sei. Capítulo vinte e um, se a memória não me falha. E as suas leis declaram muito claramente que me é permitido levar a sua mulher por me ter levado a minha. É pena que não tenha tido um filho, porque também o levaria. Mas a OLP já fez isso, não foi? Em Viena. Chamava-se Daniel, não era? Gabriel atirou-se a ele. Ivan desviou-se com destreza e deixou que Gabriel caísse de cabeça na neve. Os guardas deixaram-no ficar ali deitado por um momento — um momento precioso, pensou Gabriel —, antes de voltarem a pô-lo em pé. Ivan sacudiu-lhe a neve da cara.
— Eu também sei coisas, Allon. Sei que você estava lá naquela noite em Viena. Sei que viu o carro a explodir. Sei que tentou tirar a sua mulher e o seu filho do meio das chamas. Lembra-se do aspeto do seu filho quando finalmente o conseguiu tirar para fora das chamas? Pelo que ouvi dizer, não era lá muito bonito. Outra investida fútil. Outra queda na neve. Uma vez mais, os guardas deixaram-no ficar ali deitado, com a cara a arder de frio.
E de raiva.
Tempo... Tempo precioso...
Voltaram a levantá-lo. Desta vez, Ivan não se deu ao trabalho de afastar a neve.
— Mas voltemos ao tema da traição, Allon. Como você conseguiu descobrir onde eu tinha prendido Grigori e a sua mulher? — Disse-me o Anton Petrov.
O rosto de Ivan ficou vermelho.
E como chegou até o Petrov? Vladimir Chernov.
Os olhos dele estreitaram-se.
E ao Chernov? Você foi traído outra vez, Ivan... traído por alguém que você pensava ser um amigo.
O soco foi aterrissar no abdômen de Gabriel. Apanhado desprevenido, dobrou-se, expondo-se assim ao joelho de Ivan, que o fez cair novamente na neve, desta vez aos pés de Chiara. Ela olhou para ele demoradamente; a sua cara era uma máscara de terror e sofrimento.
Ivan cuspiu e agachou-se ao lado de Gabriel. Não desmaie já, Allon, porque ainda tenho mais uma pergunta. Gostava de ver a sua mulher a morrer? Ou prefere morrer à frente dela? Solte-a, Ivan.
— Olho por olho, dente por dente, mulher por mulher.
Olhou para os guarda-costas. Levantem-me este monte de lixo.
CAPÍTULO 71
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
Navot foi o primeiro a reparar no helicóptero. Vinha de Moscou, deslocando-se perigosamente depressa, a uns sessenta metros do chão. Noventa segundos depois, passaram num ápice mais dois exatamente iguais por cima deles.
— Volte, Oded.
— E nossas ordens?
— Que se danem nossas ordens! Volte!
Tempo...
O tempo fugia. Ia-se movendo furtivamente pelo meio da floresta, de bétula a bétula. O tempo era agora inimigo deles. Gabriel sabia que tinha de apoderar-se dele. E, para isso, precisava da ajuda de Ivan. Mantém-no a falar, pensou. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar.
Por enquanto, Ivan ia liderando silenciosamente a procissão de morte ao longo de uma trilha da floresta coberta de neve, agarrando o braço de Chiara com mão gigantesca. Ladeados por guarda-costas, Gabriel, Mikhail e Grigori seguiam mais atrás.
Mantenha-o falando...
— O que provocou as depressões na floresta, Ivan?
— Por que está assim tão interessado nas depressões?
— Me lembram de uma coisa.
— Não me surpreende. Como descobriram?
— Satélites. São vistas direitinho do espaço. Muito retinhas. Muito regulares.
— Já são antigas, mas os homens que as escavaram fizeram um belo trabalho. Com escavadeira. Ainda está aqui, se quiser vê-la. Deixou de funcionar há anos.
— Então, como agora escavam, Ivan?
— Com o mesmo método, mas com uma máquina nova. É americana. Digam o que disserem dos americanos, eles continuam fabricando escavadeiras danadas de boas.
— O que está nas fossas, Ivan?
— Você é um rapazinho esperto, Allon. Parece conhecer um pouquinho da nossa história. Diga você.
— Presumo que sejam valas comuns da época do Grande Terror.
— Grande Terror? Isso é uma calúnia ocidental inventada pelos inimigos do Koba.
Koba era o nome de Stalin no partido. Koba era o herói de Ivan.
— E como chamaria a tortura e o assassinato sistemáticos de 750 mil pessoas, Ivan?
Ivan pareceu ponderar seriamente a questão.
— Penso que chamaria de limpeza já muito atrasada da floresta. O partido já estava no poder há praticamente vinte anos. Havia uma grande quantidade de madeira morta que precisava ser desbastada. E você sabe o que acontece quando a madeira é cortada, Allon.
— Caem lascas, forçosamente.
— Exato. Caem lascas, forçosamente.
Ivan traduziu uma parte da troca de palavras para os seus guarda-costas, que apenas falavam russo. Riram-se. E Ivan riu-se também.
Mantenha-o falando...
— Como este lugar funcionava, Ivan?
— Vai descobrir em um minuto ou dois.
— Quando esteve em funcionamento? Trinta e seis? Trinta e sete?
Ivan parou. Como todos.
— Foi em trinta e sete... no verão de trinta e sete, para ser mais preciso. Era a época das troicas. Sabe o que foram as troicas, Allon?
Gabriel sabia. Foi desbobinando as informações, lenta e ponderadamente.
— Stalin estava irritado com o ritmo lento das matanças. Queria apressar as coisas e, por isso, criou uma nova maneira de levar os acusados ao tribunal: as troicas. Um membro do partido, um agente do NKVD e um delegado do Ministério Público. Não era necessário que o acusado estivesse presente durante o seu julgamento. A maior parte era sentenciada sem saber sequer que se encontrava sob investigação. A maioria dos tribunais demorava dez minutos. Alguns menos.
— E os recursos não eram permitidos — acrescentou Ivan, com um sorriso. — E agora também não serão permitidos. Fez sinal com a cabeça para os dois guarda-costas que mantinham Grigori em pé. A procissão recomeçou a sua marcha. Mantém-no a falar. Acontecem coisas más quando Ivan pára de falar. Suponho que as matanças tenham ocorrido no interior da datcha. É por isso que ela tem uma cave com uma sala especial... uma sala com um cano de esgoto no meio do assoalho. E é por isso que o caminho é tortuoso em vez de a direito. Os capangas do Stalin não queriam que os vizinhos soubessem o que se tramava aqui.
— E nunca souberam. Os condenados eram sempre presos depois da meia-noite e trazidos para aqui em carros pretos. Eram levados diretamente para a datcha e aplicavam-lhes um belo espancamento para ser fácil lidar com eles. E depois seguiam lá para baixo, para a cave. Sete gramas de chumbo na nuca.
— E a seguir?
— Eram atirados para dentro de carroças e trazidos para aqui, para as valas.
— Quem está enterrado aqui, Ivan? Por altura do Verão de trinta e sete, a maior parte do trabalho de desbaste mais pesado já tinha sido feita. O Koba apenas tinha de limpar o mato.
— O mato?
— Os mencheviques. Os anarquistas. Os velhos bolcheviques que tinham estado ao lado do Lênin. Alguns padres, kulaks1 e aristocratas, só para compor o ramalhete. Qualquer pessoa que o Koba achasse que poderia constituir minimamente uma ameaça era liquidada. E, a seguir, as suas famílias também eram liquidadas. Há um verdadeiro cozinhado revolucionário enterrado debaixo desta floresta, Allon. Dormem todos juntos. Em algumas noites, quase que conseguimos ouvi-los a discutirem sobre política. E a melhor parte ninguém sabe que eles aqui estão.
— Por que você comprou o terreno depois da queda da União Soviética para garantir que os mortos continuassem enterrados? Ivan parou.
Na verdade, pediram-me para comprar o terreno.
Quem? O meu pai, claro.
Ivan respondera sem hesitação. De início, parecera irritado com as perguntas de Gabriel, mas agora até parecia estar a gostar da troca de palavras. Gabriel calculou que deveria ser fácil uma pessoa despejar os seus segredos a um homem que em breve estaria morto. Tentou engendrar outra questão que mantivesse Ivan a falar, mas não foi necessário. Ivan retomou a sua preleção sem precisar de mais incitamento.
Quando a União Soviética desabou, foi um tempo perigoso para o KGB. Falava-se em abrir os arquivos, em pôr a roupa suja cá fora, em revelar nomes. A velha guarda ficou horrorizada. Eles não queriam ver o KGB ser arrastado pela lama da história. Mas também tinham outras motivações para guardarem os segredos. É que, sabe, Allon, eles não faziam ficariam afastados do poder por muito tempo. Logo nessa altura, já planejavam o seu regresso. E foram bem-sucedidos, claro. O KGB, com outro nome, está mais uma vez a governar a Rússia.
— E você controla a última vala comum do Grande Terror. A última? Nem por isso. Não é possível enfiar uma pá no solo da Rússia sem dar com ossos. Mas esta é extensa. Aparentemente há setenta mil almas enterradas debaixo destas árvores. Setenta mil. Se isso viesse alguma vez a público... — A voz foi sumindo, como se lhe faltassem as palavras momentaneamente. Digamos que poderia causar um embaraço considerável no interior do Kremlin.
— E é por isso que o presidente se mostra tão disposto a tolerar as suas atividades? Ele recebe a sua parte. O czar tira uma parte de tudo. Quanto teve de lhe pagar para ter direito a raptar a minha mulher? Ivan não deu qualquer resposta. Gabriel insistiu com ele para ver se conseguia provocar mais uma explosão de fúria.
— Quanto, Ivan? Cinco milhões? Dez? Vinte?
Ivan voltou-se para ele.
— Estou farto das suas perguntas, Allon. Além disso, já não falta muito. Sua sepultura não identificada aguarda-o. Gabriel olhou por cima do ombro de Chiara e viu um monte de terra fresca, coberto por uma camada de neve. Disse-lhe que a amava. E depois fechou os olhos. Estava outra vez ouvindo coisas.
Helicópteros.
CAPÍTULO 72
PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA
O coronel Leonid Milchenko conseguia ver finalmente a propriedade: quatro riachos congelados que confluíam para um pântano congelado, uma pequena datcha com um buraco na porta da frente, fruto de uma explosão, uma fila de pessoas avançando lentamente por uma floresta de bétulas.
Ligou o microfone acoplado aos fones.
— Está vendo?
O capacete do piloto mexeu-se para cima e para baixo rapidamente.
— Até onde pode ir?
— Até a beira do pântano.
— Isso fica no mínimo a trezentos metros de distância. É o lugar mais perto em que posso aterrissar esta coisa, coronel.
— E os Alfas?
— Vão descer por cordas. Diretamente para as árvores.
— Ninguém morre.
— Sim, coronel.
Ninguém morre...
Quem ele estava a tentar enganar? Isto era a Rússia. Morria sempre alguém. Mais dez passos pelo meio da neve. A seguir, Ivan ouviu também os helicópteros. Parou. Inclinou a cabeça, como um cão. Deu um olhar rápido para Rudenko. E recomeçou a andar.
Tempo... Tempo precioso...
A mensagem de Navot irrompeu nas telas do anexo.
HELICÓPTEROS SE APROXIMAM...
Carter tapou o bocal do telefone e olhou para Shamron. A equipe do FSB confirma que há uma fila de pessoas a avançar em direção às árvores. Parece que eles estão vivos, Ari! Mas não continuará assim por muito tempo. Quando essas tropas do Grupo Alfa chegam ao terreno?
— Dentro de noventa segundos.
Shamron fechou os olhos.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda... A fossa para os mortos abriu-se à frente deles, uma ferida na carne da Mãe-Rússia. O céu cor de cinza ia derramando neve à medida que se aproximavam dela em fila, acompanhados pelo barulho de hélices à distância. Hélices grandes, pensou Gabriel. Suficientemente grandes para fazerem a floresta tremer. Suficientemente grandes para porem os homens de Ivan agitados. E também Ivan, que de repente começou a gritar com Grigori em russo, incitando-o a andar mais depressa para a sua morte. Mas Gabriel, nos seus pensamentos, suplicava a Grigori que diminuísse o passo. Que tropeçasse. Que fizesse qualquer coisa para permitir que os helicópteros tivessem tempo de chegar.
Foi então que o primeiro apareceu de repente, no nível da copa das árvores, formando uma tempestade de neve e vento. Por breves instantes, Ivan ficou perdido naquela especie de nevoeiro. Quando surgiu novamente, tinha a cara contorcida de raiva. Empurrou Grigori para a beira da fossa e começou a gritar com os guardas em russo. A maioria já não estava prestando atenção nele. Alguns observavam o helicóptero pousando na margem da área pantanosa. Os outros tinham os olhos postos no céu, a ocidente, onde surgiam mais dois helicópteros.
Quatro guarda-costas mantiveram-se leais a Ivan. Quando ele mandou, colocaram os condenados em fila, ao longo da fossa e com os calcanhares encostados na beira, já que Ivan decretara que todos seriam mortos com um tiro no rosto. Gabriel foi posto numa ponta, Mikhail na outra, Chiara e Grigori no meio. Primeiro, Grigori ficou colocado ao lado de Gabriel, mas pelos vistos isso não servia. Numa rajada de russo, com a pistola a agitar-se descontroladamente, Ivan ordenou aos guardas que mudassem Grigori rapidamente de lugar e pusessem Chiara junto a Gabriel. Enquanto a troca era feita, apareceram mais dois helicópteros de rompante, vindos de ocidente. Ao contrário do primeiro, não passaram rapidamente por eles, antes ficaram a pairar mesmo por cima das suas cabeças. Caíram cordas dos seus ventres e, passado um instante, forças especiais vestidas de preto desciam velozmente pelo meio das árvores. Gabriel ouviu o som de armas a tombarem na neve e viu braços a erguerem-se em sinal de rendição. E vislumbrou dois homens de sobretudo a correrem desajeitadamente em direção a eles, pelo meio das árvores. E viu Oleg Rudenko tentando desesperadamente tirar a Makarov das mãos de Ivan. Mas Ivan não a queria largar. Ivan queria o sangue a que tinha direito. Deu um único e poderoso encontrão no peito do seu chefe de segurança, fazendo-o cair na neve. A seguir, apontou a Makarov diretamente à cara de Gabriel. Mas não carregou no gatilho. Em vez disso, sorriu e disse: Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon.
A Makarov deslocou-se para a direita. Gabriel lançou-se na direção de Ivan, mas não conseguiu chegar até ele antes de a pistola explodir com um estrondo ensurdecedor. Ao tombar de cara na neve, dois homens do Grupo Alfa saltaram-lhe em cima imediatamente e pressionaram-no contra o chão congelado. Durante vários segundos agonizantes, debateu-se para se libertar, mas os russos recusavam-se a deixá-lo mover-se ou a levantar a cabeça. “A minha mulher!”, gritou-lhes. “Ele matou a minha mulher?” Se responderam ou não, não sabia. O tiro roubara-lhe a capacidade de ouvir. Tinha apenas consciência de uma luta titânica que se desenrolava perto do seu ombro. Foi então que, um momento depois, viu de relance Ivan a ser levado para longe, por entre as árvores.
Foi apenas nessa altura que os russos ajudaram Gabriel a levantar-se. Girando a cabeça depressa, viu Chiara a chorar junto a um corpo caído. Era Grigori. Gabriel ajoelhou-se e tentou consolá-la, mas ela parecia não estar ciente da sua presença, Eles nunca chegaram a matá-la! — gritava ela. A Irina está viva, Grigori! A Irina está viva!
QUINTA PARTE
AJUSTE DE CONTAS
CAPÍTULO 73
JERUSALÉM
Nos dias que se seguiram à conclusão da cúpula do G8 em Moscou, três notícias aparentemente sem relação surgiram numa sucessão rápida. A primeira dizia respeito ao futuro incerto da Rússia; a segunda, ao seu passado negro. A última conseguia tocar nessas duas questões e acabaria por vir a revelar-se a mais controversa. Mas a verdade isso seria de esperar, resmungaram alguns dos veteranos do serviço secreto britânicos, já que o assunto dessa notícia era, nem mais nem menos, Grigori Bulganov. A primeira notícia veio a público exatamente uma semana depois da cúpula e tinha como pano de fundo a economia russa mais especificamente, a sua vital indústria energética. Por se tratar de uma boa notícia, pelo menos do ponto de vista de Moscou, o presidente russo optou por fazer ele próprio o anúncio. E fê-lo numa conferência de imprensa no Kremlin, ladeado por vários dos seus assessores mais importantes, todos veteranos do KGB. Numa declaração curta, feita com o olhar penetrante que era a sua imagem de marca, o presidente anunciou que Viktor Orlov, o dissidente e antigo oligarca que residia agora em Londres, tinha sido finalmente posto na ordem. Todas as ações que Orlov detinha da Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, iriam ser colocadas de imediato sob o controle da Gazprom, a companhia, propriedade do Estado russo, que detinha o monopólio em termos de petróleo e gás. Em troca, revelou o presidente, as autoridades russas tinham concordado em desistir de todas as acusações criminais contra Orlov e retirar o pedido com vista à sua extradição.
Em Londres, na Downing Street, o gesto do presidente russo foi saudado como “próprio de um estadista”, ao passo que os funcionários afetos à Rússia no seio do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos institutos políticos se interrogaram abertamente se poderia ou não haver novos ventos a soprar do Leste. Viktor Orlov considerou essas especulações irremediavelmente ingênuas, mas os jornalistas que compareceram à conferência de imprensa que ele convocou apressadamente em Londres saíram de fato com a sensação de que ele não tinha grandes hipóteses de poder dar luta. A decisão de abdicar da Ruzoil, disse, baseava-se numa avaliação realista dos fatos. O Kremlin era agora controlado por homens que não recuariam perante nada para terem aquilo que queriam. Quando se combatiam homens assim, reconheceu, a vitória não era possível, apenas a morte. Ou talvez qualquer coisa pior do que a morte. Viktor prometeu que não seria silenciado e depois anunciou de imediato que não tinha mais nada a declarar.
Dois dias mais tarde, Viktor Orlov foi discretamente presenteado com o seu primeiro passaporte britânico durante uma pequena recepção organizada no número 10 de Downing Street. E também lhe foi concedida uma visita guiada e exclusiva ao Palácio de Buckingham, conduzida pela própria rainha. Tirou várias fotografias aos aposentos privados de Sua Majestade e passou-as ao seu decorador. Pouco tempo depois disso, foram vistas vans de entregas em Cheyne Walk e quem por ali passava conseguia por vezes vislumbrar Viktor a trabalhar no escritório. Segundo parecia, tinha decidido por fim que era seguro abrir as cortinas sem receio e apreciar a vista magnífica que tinha sobre o Tamisa.
A segunda notícia também teve origem em Moscou, mas, ao contrário da primeira, pareceu deixar o presidente russo perplexo e sem palavras. Dizia respeito a uma descoberta numa floresta de bétulas na província de Vladimirskaya: várias valas comuns repletas de vítimas do Grande Terror estalinista. Os cálculos preliminares colocavam o número de corpos ao nível das setenta mil almas O presidente russo não deu importância à descoberta, considerando-a “pouco significativa”, e resistiu aos apelos para que fosse visitar o local. Um gesto desse gênero teria sido politicamente delicado, já que Stalin, morto há mais de meio século, continuava entre as figuras mais populares do país. Com relutância, concordou em ordenar uma inspeção aos arquivos do KGB e do NKVD e concedeu autorização à Igreja Ortodoxa Russa para construir um pequeno monumento comemorativo no local — sujeito à aprovação do Kremlin, claro. “Mas deixemos as manifestações de remorsos para os alemães”, disse ele no seu único comentário. “Afinal de contas, temos de nos lembrar que o Koba levou a cabo essas repressões para ajudar a preparar o país para a guerra que se avizinhava contra os fascistas.” Todos os que estavam presentes ficaram arrepiados com a maneira desinteressada como o presidente falara de assassinato em massa. E também com o fato de se ter referido a Stalin pelo antigo nome de guerra que tinha no partido: Koba. As circunstâncias em redor da descoberta daquele campo da morte nunca foram reveladas, tal como o dono da propriedade nunca foi identificado. “É para sua própria proteção”, insistiu um porta-voz do Kremlin. “A história pode ser uma coisa perigosa.” A terceira notícia surgiu não em Moscou, mas sim na cidade russa por vezes conhecida como Londres. E esta também era uma notícia que tinha a ver com morte — não com a morte de milhares de pessoas mas sim de uma. Segundo as informações, o corpo de Grigori Bulganov, ex-FSB e dissidente bastante público, teria sido descoberto numa doca deserta no Tamisa, vítima de um aparente suicídio. A Scotland Yard e o Ministério do Interior refugiaram-se atrás de alegações de questões de segurança nacional e trouxeram a público muito poucos detalhes sobre o caso. No entanto, não deixaram de reconhecer que Grigori era uma alma algo perturbada, que não se adaptara bem a uma vida no exílio. Como prova disso, realçaram que ele tinha andado a tentar reacender a relação com a ex-mulher — ainda que se tivessem esquecido de mencionar que essa mesma ex-mulher se encontrava naquele momento a viver no Reino Unido, com um novo nome e proteção governamental. E também foi revelado o fato algo curioso de Grigori não ter comparecido recentemente à final do campeonato do Central London Chess Club, uma partida que se esperava que vencesse facilmente. Simon Finch, o adversário de Grigori, surgiu brevemente na imprensa para defender a sua decisão de aceitar o título por desistência do oponente. Depois, utilizou a exposição que lhe foi concedida para publicitar a sua mais recente causa, a abolição das minas terrestres. A editora de Grigori, a Buckley & Hobbes, anunciou que Olga Sukhova, amiga de Grigori e também ela dissidente, aceitara simpaticamente terminar o livro Assassino no Kremlin. Apareceu por breves instantes no enterro de Grigori, no Cemitério de Highgate, antes de ser levada por uma escolta de vários seguranças armados, que a devolveram rapidamente ao seu esconderijo. Muita gente na imprensa britânica, incluindo os jornalistas que tinham lidado com Grigori, rejeitou a alegação de suicídio feita pelo governo, considerando-a um disparate. No entanto, sem disporem de mais fatos, não lhes restou outra hipótese que não fosse especular, coisa que fizeram sem hesitação. Era óbvio, disseram eles, que Grigori tinha inimigos em Moscou que o queriam ver morto. E era óbvio, insistiram, que um desses inimigos devia tê-lo matado.
O Financial Times realçou que Grigori era bastante próximo de Viktor Orlov e sugeriu que a morte do dissidente pudesse estar de alguma forma relacionada com o caso Ruzoil. Pela sua parte, Viktor referiu-se ao concidadão falecido como sendo um “verdadeiro patriota russo” e criou um fundo em seu nome para a liberdade. E a história morreu aí, pelo menos no que dizia respeito à imprensa tradicional. Mas na Internet e em alguns dos pasquins de escândalos mais sensacionalistas, continuou a gerar matéria para notícias durante várias semanas. O que as conspirações têm de maravilhoso é o fato de, por norma, um jornalista esperto ser capaz de arranjar uma maneira de ligar dois assuntos quaisquer, por distintos que possam ser. Mas nenhum dos jornalistas que investigou a morte misteriosa de Grigori tentou alguma vez ligá-la às valas comuns acabadas de descobrir na província de Vladimirskaya. Tal como nunca foi avançada nenhuma ligação entre russo e o casal destroçado que se tinha refugiado num pequeno apartamento sossegado na Rua Narkiss, em Jerusalém. Os nomes de Gabriel Allon e Chiara Zolli não eram um elemento daquela história' E nunca o seriam.
Já tinham recuperado de traumas relativos a operações anteriormente, mas nunca ao mesmo tempo e nunca de feridas tão profundas. As lesões físicas sararam depressa. As outras recusavam-se a melhorar. Eles comprimiam-se atrás de portas trancadas, vigiados por homens armados. Incapazes de tolerar estarem separados por mais do que alguns segundos, seguiam-se mutuamente de sala para sala. Quando faziam amor, era algo de voraz, como se cada encontro pudesse ser o último, e era raro o momento em que não estavam a tocar-se. O sono de ambos era rasgado por pesadelos. Sonhavam que assistiam à morte um do outro. Sonhavam com a cela por baixo da datcha na floresta. Sonhavam com os milhares que tinham sido assassinados ali e com os milhares que jaziam sob as bétulas, em sepulturas não identificadas. E, claro, sonhavam com Ivan. Na verdade, Ivan era quem Gabriel via mais vezes. Ivan deambulava-lhe pelo subconsciente a toda a hora, vestido com a sua roupa inglesa de ótima qualidade e empunhando a sua pistola Makarov. Por vezes, tinha a acompanhá-lo Yekaterina e os guarda-costas. Normalmente, estava sozinho. E tinha sempre a pistola apontada à cara de Gabriel.
Divirta-se a ver a sua mulher morrer, Allon...
Chiara não demonstrava especial vontade em falar da sua provação e Gabriel não a pressionou. Sendo filho de uma mulher que sobrevivera aos horrores do campo de concentração de Birkenau, sabia que Chiara sofria de uma forma aguda de culpa — a culpa do sobrevivente, que era toda ela um tipo especial de inferno. Chiara tinha sobrevivido e Grigori tinha morrido. E tinha morrido porque se colocara à frente de uma bala que era dirigida a ela. Era essa a imagem que Chiara mais vezes via em sonhos: Grigori, espancado e praticamente incapaz de se mexer, a reunir forças para se pôr à frente da pistola de Ivan. Chiara fora baptizada no sangue de Grigori. E estava viva por causa do sacrifício de Grigori. O resto foi saindo aos poucos e, por vezes, nos momentos mais estranhos. Uma noite, ao jantar, descreveu a Gabriel pormenorizadamente o momento da sua captura e as mortes de Lior e Motti. Passados dois dias, quando se encontrava a lavar a louça, relatou co408 mo tinha sido passar aquelas horas todas na escuridão. E como uma vez por dia, apenas por alguns instantes, o sol iluminava o banco de neve no exterior da janela minúscula. E, por fim, uma tarde, enquanto estava a dobrar a roupa, confessou de lágrimas nos olhos que tinha mentido a Gabriel a propósito da gravidez. Estava grávida de oito semanas na altura em que foi raptada e perdera o bebê na cela de Ivan.
— Foram as drogas — explicou. — Mataram meu bebê. Mataram teu bebê.
— Por que não me disseste a verdade? Eu nunca teria ido à procura de Grigori.
— Tive medo que ficasses zangado comigo.
— Por quê?
— Por ter ficado grávida.
Gabriel deixou-se cair desamparado no colo de Chiara, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Eram lágrimas de culpa, mas também de raiva. Apesar de Ivan não o saber, tinha conseguido matar o filho de Gabriel. O seu filho que não chegara a nascer, mas mesmo assim o seu filho.
— Quem te deu as injeções? — perguntou.
— Foi a mulher. Vejo a morte dela todas as noites. É a única recordação de que não fujo — soltou ela, limpando as lágrimas.
— Preciso que me prometas três coisas, Gabriel.
— Tudo.
— Promete-me que vamos ter um bebê.
— Prometo.
— Promete-me que nunca nos separaremos. Nunca.
— E promete-me que os vais matar a todos.
No dia seguinte, estes dois destroços humanos apresentaram-se na Boulevard King Saul. Juntamente com Mikhail, foram sujeitos a rigorosos exames físicos e psicológicos. Uzi Navot analisou os resultados ao final da tarde. A seguir, telefonou para casa de Shamron, em Tiberíades. São muito maus? — perguntou Shamron.
— Muito.
— Quando ele vai ficar preparado para voltar ao trabalho?
— Ainda vai demorar.
— Quanto tempo, Uzi?
— De repente, nunca.
— E Mikhail?
— Está uma desgraça, Ari. Estão todos uma desgraça.
Shamron calou-se de repente.
— A pior coisa que podemos fazer é deixá-lo ficar sentado sem fazer nada. Ele precisa voltar à ativa.
— Presumo que tenha uma ideia?
— Como vai o interrogatório do Petrov?
— Ele está resistindo.
— Vai ao Negev, Uzi. Pressione os interrogadores.
— O que quer?
— Quero os nomes. Todos eles.
CAPÍTULO 74
JERUSALÉM
Já era fim de março. As chuvas frias do Inverno já tinham vindo e partido, e o tempo primaveril estava quente e ótimo. Por sugestão dos médicos, tentavam sair do apartamento pelo menos uma vez por dia. Deleitavam-se com as coisas mais mundanas: uma visita ao movimentado mercado Makhane Yehuda, um passeio pelas ruas estreitas da Cidade Antiga, um almoço sossegado num dos seus restaurantes preferidos. Por insistência de Shamron, eram sempre acompanhados por um par de guarda-costas, rapazes com cabelo cortado à escovinha e óculos escuros e que faziam com que ambos se recordassem demasiado de Lior e Motti. Chiara disse que queria visitar o monumento comemorativo a norte de Tel Aviv. Ver os nomes dos guarda-costas gravados na pedra deixou-a tão perturbada, que Gabriel teve praticamente de carregá-la de volta ao carro. Dois dias depois, no Monte das Oliveiras, foi a vez dele de se ir abaixo com o sofrimento. Lior e Motti tinham sido enterrados a alguns metros apenas do seu filho.
Gabriel sentia uma vontade invulgarmente forte de passar algum tempo com Leah, e Chiara, incapaz de suportar a ausência dele, não tinha outra escolha a não ser acompanhá-lo. Ficavam sentados com Leah no jardim do hospital durante horas e ouviam-na pacientemente enquanto ela deambulava pelo tempo, ora no presente, ora no passado. Com cada visita, foi sentindo mais confortável na companhia de Chiara e, durante os momentos de lucidez, as duas mulheres comparavam notas sobre o que era viver com Gabriel Allon. Falavam das idiossincrasias dele e das suas mudanças de humor, bem como da necessidade que tinha de absoluto silêncio enquanto estava a trabalhar. E quando se sentiam generosas, falavam dos seus dons incríveis. Depois, a luz desaparecia nos olhos de Leah e ela regressava uma vez mais ao seu inferno pessoal. E, por vezes, Gabriel e Chiara regressavam ao deles. O médico de Leah pareceu pressentir que havia alguma coisa errada. Durante uma visita no início de Abril, chamou Gabriel e Chiara à parte e perguntou-lhes discretamente se não precisavam de ajuda profissional. Vocês os dois estão com ar de quem já não dorme há semanas.
— E não dormimos — respondeu Gabriel.
— Querem falar com alguém?
— Não temos autorização.
— Problemas no trabalho?
— Algo assim.
— Posso dar alguma coisa que ajude a dormir? Temos uma autêntica farmácia no nosso armário de medicamentos.
— Não quero voltar a vê-los aqui pelo menos por uma semana. Façam uma viagem. Apanhem um pouco de sol. Parecem fantasmas.
Na manhã seguinte, seguidos de perto por guarda-costas, foram de carro até Eilat. Durante três dias, conseguiram não falar da Rússia, nem de Ivan, nem de Grigori, nem da floresta de bétulas perto de Moscou. Passaram o tempo pegando sol na praia ou mergulhando entre os recifes de coral do mar Vermelho. Comeram demais, beberam vinho demais e fizeram amor até a exaustão. Na última noite, falaram do futuro, da promessa que Gabriel tinha feito de deixar o Escritório e do lugar onde poderiam viver. De momento, não tinham outra escolha a não ser permanecer em Israel. Era impossível deixar o país e o casulo protetor do Escritório enquanto Ivan continuasse na face da terra.
— E se ele deixasse de existir? — perguntou Chiara.
— Poderíamos morar onde quiséssemos... dentro do razoável, claro.
— Então, suponho que tenha pura e simplesmente de matá-lo.
Saíram de Eilat na manhã seguinte e partiram para Jerusalém. Ao atravessar o deserto de Negev, Gabriel decidiu, de forma espontânea, fazer um pequeno desvio perto de Beersheba. Seu destino era uma prisão e centro de interrogatórios, situada no meio de uma área militar restrita. Acolhia apenas um punhado de reclusos, os piores dos piores. Incluído neste grupo seleto, estava o prisioneiro nº 6754, também conhecido como Anton Petrov, o homem que Ivan contratou para sequestrar Grigori e Chiara. O comandante das instalações providenciou para que Petrov fosse levado até o pátio de exercícios para Gabriel e Chiara poderem vê-lo. Usava moletom azul e branco. Tinha perdido a musculatura, bem como a maior parte do cabelo. mancava muito ao andar.
— É uma pena que não o tenha matado — lançou Chiara.
— Não pense que isso não me passou pela cabeça.
— Quanto tempo vamos mantê-lo aqui?
— O tempo necessário.
— E depois?
— Os americanos gostariam de lhe dar uma palavrinha.
— Alguém precisa garantir que ele tenha um acidente.
— Veremos.
Já estava escuro quando chegaram à Rua Narkiss. Pela quantidade muita de guarda-costas, Gabriel percebeu que tinham uma visita à sua espera lá em cima, no apartamento. Uzi Navot estava sentado na sala de estar. Tinha um dossiê. E tinha nomes. Onze nomes. Todos antigos agentes do KGB. Todos a viverem bem na Europa Ocidental, à conta do dinheiro de Ivan. Navot deixou o dossiê com Gabriel e disse que ficava à espera de notícias. Gabriel deixou que Chiara tomasse a decisão.
— Mate todos eles — disse ela.
— Vai demorar o seu tempo.
— Leve o tempo que precisar.
— E não poderá ir comigo.
— Eu sei.
— Vá para Tiberíades. Gilah vai tomar conta de você.
Reuniram-se na manhã seguinte, na Sala 456C do Boulevard King Saul: Yaakov e Yossi, Dina e Rimona, Oded e Mordecai, Mikhail e Eli Lavon. Gabriel foi o último a chegar e afixou onze fotografias no placard informativo que se encontrava à entrada da sala. Onze fotografias de onze russos. Onze russos que não sobreviveriam ao Verão. O encontro não demorou muito tempo. A ordem das mortes ficou estabelecida e as tarefas distribuídas. A Divisão das Viagens tratou dos voos, a Divisão de Identidade, dos passaportes e dos vistos. A Divisão dos Trabalhos Domésticos abriu várias portas. A Divisão das Finanças passou-lhes um cheque em branco. Partiram de Tel Aviv em várias vagas, viajaram aos pares e voltaram a reunir-se duas semanas mais tarde, em Barcelona. Foi lá, numa rua sossegada do Bairro Gótico, que Gabriel e Mikhail mataram o homem que tinha seguido Grigori ao longo da Harrow Road naquele final de tarde em que se dera o seu sequestro. Pelos pecados que cometera, foi morto à queima-roupa com tiros disparados por Berettas de calibre 22. Enquanto morria prostrado na valeta, Gabriel sussurrou-lhe duas palavras ao ouvido.
Por Grigori...
Passada uma semana, em Lisboa, no Bairro Alto, sussurrou as mesmas duas palavras à mulher que Grigori vira a andar na sua direção, a mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva. Duas semanas depois, em Biarritz, foi a vez do parceiro dela, o homem que a tinha acompanhado na Westbourne Terrace Road Bridge. Ouviu as duas palavras enquanto dava um passeio à meia-noite pelo areal da La Grande Plage. Foram-lhe ditas com ele de costas. Quando se virou, viu Gabriel e Mikhail, de braços esticados e armas nas mãos.
Por Grigori...
Depois disso, as notícias dos assassinatos começaram a circular por entre aqueles que ainda faltavam morrer. Para impedir que os 414 sobreviventes fugissem para a Rússia, o Escritório foi semeando histórias falsas de que tinha sido Ivan, e não os israelenses, o responsável. Ivan tinha lançado um Grande Terror, segundo os rumores. Ivan estava a limpar a floresta. Quem quer que fosse idiota ao ponto de pôr os pés na Rússia, seria morto à maneira russa, com grande sofrimento e violência extrema. E, por isso, os culpados deixaram-se ficar no Ocidente, colados ao chão, sem poderem ser localizados. Ou pelo menos era isso que julgavam. Mas, um por um, ficaram sob mira. E, um por um, morreram.
O motorista do Mercedes que levou Irina até a sua “reunião” com Grigori foi morto em Amsterdam, nos braços de uma prostituta. O motorista da van que transportou Grigori na primeira parte da sua viagem de regresso à Rússia foi morto à saída de um bar em Copenhaga. Os dois lacaios enviados para matar Olga Sukhova em Oxford foram os seguintes. Um morreu em Munique, o outro em Praga.
Foi então que Sergei Korovin se lançou numa tentativa desesperada de intervenção.
O SVR e o FSB estão a ficar nervosos — disse ele a Shamron. — Se isto continua, quem sabe onde pode ir parar? Como se estivesse a seguir uma página do livro de tácticas de Ivan, Shamron professou ignorância. E a seguir avisou Korovin que era melhor o serviço secreto russos terem muito cuidado. Caso contrário, seriam eles a seguir. Ao final da tarde, as bases do Escritório espalhadas pela Europa já tinham detetado um aumento considerável de segurança em redor das embaixadas russas e de conhecidos agentes secretos russos. Isso era desnecessário, claro. Gabriel e a sua equipe não tinham nenhum interesse em atacar os inocentes. Só os culpados.
Chegados a esse ponto, apenas lhes faltavam quatro nomes. Quatro agentes que tinham levado a cabo o sequestro de Chiara na Úmbria. Quatro agentes que tinham sangue do Escritório nas mãos. Sabiam que andavam a ser caçados e tentavam não se manter muito tempo no mesmo lugar. Mas o medo tornava-os descuidados. O medo tornava-os alvos fáceis. Foram mortos numa série de operações-relâmpago: Varsóvia, Budapeste, Atenas, Istambul. Enquanto morriam, ouviram cinco palavras em vez de duas.
Por Liar e Motti.
A essa altura, já era quase agosto. Estava na hora de voltar para casa.
CAPÍTULO 75
TIBERÍADES, ISRAEL
Então e o que se passava com Ivan? Durante várias semanas a seguir ao pesadelo na floresta de bétulas perto de Moscou, manteve-se longe da vista. Ouviam-se rumores de que tinha sido preso. Rumores de que fugira do país. Rumores, até, de que tinha sido levado pelo FSB e morto. Eram falsos, claro. Ivan estava apenas a cumprir uma outra grande tradição russa, a tradição do exílio interno. Para ele, isso não se caraterizava por extenuantes trabalhos forçados nem por rações que conduziam a uma fome extrema. O gulag de Ivan era a sua mansão, mais parecida com uma fortaleza, em Zhukovka, a cidade secreta dos oligarcas a leste de Moscou.
E tinha Yekaterina para lhe suavizar as feridas.
Embora o nome de Ivan nunca tivesse sido publicamente relacionado com o campo da morte na província de Vladimirskaya, a exposição que o local recebeu pareceu prejudicar o seu estatuto no interior do Kremlin. Em determinados círculos, atribuiu-se grande significado ao fato de a empresa de urbanização de Ivan ter perdido um importante projeto de construção; e de a sua discoteca ter deixado de repente de estar na moda junto dos siloviki e da restante gente bem relacionada de Moscou; e de o seu concessionário de carros de luxo ter sofrido uma súbita e acentuada diminuição nas vendas. Mas essas eram leituras incorretas, situações mais sintoma” ticas da perturbada economia russa do que de um verdadeiro declínio na boa sorte de Ivan. E, mais ainda, os seus negócios de armas continuavam a seguir de vento em popa, até porque a venda de armas era uma das poucas abertas num clima financeiro mundial na sua generalidade sombrio. Com efeito, o serviço secreto britânicos, americanos e franceses aperceberam-se todos de um súbito e acentuado aumento no número de aviões detidos por Kharkov, que se encontravam a aterrissar em pistas isoladas, do Médio Oriente da África e para lá dela. E o presidente russo continuou a tirar a sua parte. O czar, como Ivan gostava de dizer, tirava sempre a sua parte. As operações de vigilância efetuadas pela NSA revelaram que Ivan teve conhecimento da liquidação metódica dos agentes de Anton Petrov e que isso não o perturbou minimamente. Na sua opinião, tinham-no traído, pelo que mereciam o destino que lhes calhara. Na verdade, durante esse longo Verão de vingança, pareceu obcecado por apenas duas questões. Teriam os seus filhos estado a bordo do jato americano que aterrissara em Konakovo? E teriam eles escrito mesmo a carta cheia de ódio que lhe fora entregue pelo piloto? Os filhos e a mãe deles sabiam a resposta, claro, tal como o presidente americano e um punhado dos seus funcionários mais importantes. E também o sabia o pequeno grupo de agentes do serviço secreto israelenses que se reuniu, ao pôr do Sol da primeira sexta-feira de Agosto, a norte da velha cidade de Tiberíades. A ocasião era o sabat; o cenário era a villa cor de mel de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Toda a equipe estava presente, juntamente com Sarah Bancroft, que tinha decidido passar as férias de Agosto com Mikhail em Israel. Havia cônjuges que Gabriel nunca tinha conhecido e crianças que apenas vira em fotografias. A presença de tantas crianças foi difícil para Chiara, em especial quando viu as caras delas iluminadas pelo brilho das velas do sabat. Ao mesmo tempo que Gilah recitava a oração, Chiara pegou na mão de Gabriel e agarrou-a com força. Gabriel deu-lhe um beijo na cara e ouviu outra vez as palavras que ela lhe tinha dito na Úmbria. Choramos os mortos e guardamo-los no coração. Mas vivemos as nossas vidas. O Verão passado junto ao lago fizera maravilhas ao aspeto de Chiara. Tinha a pele bronzeadíssima e o cabelo volumoso a brilhar, com madeixas douradas e ruivas. Sorriu despreocupadamente ao longo da refeição e até desatou às gargalhadas quando Bella repreendeu Uzi por se servir uma segunda vez do famoso frango com especiarias marroquinas feito por Gilah. Observando-a, Gabriel quase podia imaginar que nada daquilo tinha acontecido realmente. Que fora tudo apenas um sonho de que ambos tinham finalmente despertado. Não era verdade, claro, e não havia tempo suficiente que fosse alguma vez capaz de sarar as feridas que Ivan tinha infligido. Chiara era como um quadro acabado de restaurar, retocado e a reluzir com uma camada fresca de verniz, mas mesmo assim danificado. Teria de ser tratada com grande cuidado.
Gabriel receara que aquela reunião fosse uma oportunidade para relembrar os tenebrosos detalhes do caso, mas este apenas foi mencionado uma única vez, quande Shamron falou da importância daquilo que tinham alcançado. Sendo judeus, todos eles possuíam familiares cujos restos mortais tinham sido transformados em cinzas pelos fornos crematórios ou enterrados em valas comuns nos países bálticos ou na Ucrânia. A sua memória era preservada pelas chamas comemorativas e pelos arquivos armazenados na Sala dos Nomes de Yad Vashem. Mas não havia sepulturas para visitar, nem lápides onde derramar lágrimas. Através das suas ações na Rússia, a equipe de Gabriel fornecera um lugar semelhante aos familiares das setenta mil pessoas assassinadas no campo da morte na província de Vladimirskaya. Tinham pago um preço terrível, e Grigori não sobrevivera, mas com o sacrifício deles tinham aplicado uma espécie de justiça, talvez até mesmo de paz, a setenta mil almas inquietas. Durante o resto da refeição, Shamron regalou-os com histórias do passado. Nunca se encontrava mais feliz do que quando estava rodeado pela família e os amigos, e o bom humor pareceu amenizar-lhe as fendas e fissuras profundas no seu rosto envelhecido. Mas também havia ali tristeza. A operação tinha sido traumatizante para todos eles, mas, de muitas maneiras, fora especialmente dura para Shamron. Com o seu modo de pensar frio e criativo, tinha salvo a vida a todos eles. Porém, durante mais de uma hora naquela terrível manhã, temera que três agentes, dois dos quais amava como seus filhos, estivessem prestes a sofrer uma morte horrível. Havia um preço emocional a pagar por uma operação como aquela e Shamron pagou-o, mais à frente nessa noite, quando convidou Gabriel a juntar-se a ele no terraço para uma conversa privada. Sentaram-se os dois no local onde Gabriel e Chiara se tinham casado, com Shamron a fumar tranquilamente e Gabriel a contemplar o céu azul e preto por cima dos montes Golã.
— Sua mulher está radiante esta noite. Parece quase como nova.
— As aparências enganam, Ari, mas é verdade que ela está com um aspecto maravilhoso. Suponho que tenha de agradecer a Gilah. É óbvio que cuidou muito bem dela na minha ausência. Gilah é boa em recompor as pessoas, mesmo quando não tem bem certeza de como elas acabaram por ficar destroçadas. E devo dizer que gostamos muito de ter Chiara conosco no verão. Se ao menos meus próprios filhos viessem nos visitar mais vezes...
— Talvez viessem se não fumasse tanto.
Shamron deu uma última tragada no cigarro e apagou-o com força e lentamente.
— E você até parecia estar se divertindo. Ou estava só me enganando?
— Foi uma noite magnífica, Ari. Na verdade, foi exatamente o que todos nós precisávamos.
— Sua equipe te adora, Gabriel. Eles eram capazes de fazer tudo por ti.
— E já fizeram, Ari. É só perguntares ao Mikhail.
— Acha que ele vai mesmo se casar com aquela moça americana?
— Ela se chama Sarah. Sendo judeu de Tiberíades, com certeza não terá problema em se lembrar desse nome.
— Responda a minha pergunta.
— Só se fosse idiota não se casaria com ela... É uma mulher formidável.
— Mas não é judia.
— Mas bem podia ser.
— Acha que a CIA vai deixá-la continuar por aqui se ela se casar com um dos nossos?
— Se não deixar, devia contratá-la. Se não fosse Sarah, Petrov podia ter matado Uzi em Zurique.
Shamron não deu resposta a não ser acender outro cigarro.
— Como ele está? — perguntou Gabriel.
— Petrov? — respondeu Shamron, franzindo os lábios com indiferença. — Não está lá muito bem.
— O que aconteceu?
— Segundo parece, conseguiu escapar das instalações onde estava detido. Um grupo de beduínos encontrou o corpo dele no meio do Negev, uns oitenta quilômetros ao sul de Beersheba. A essa altura, os abutres já o tinham apanhado. Pelo que ouvi dizer, não foi nada bonito.
— Pena não ter podido lhe dar uma última palavrinha.
— Não tenha. Enquanto estava na Europa, ainda conseguimos arrancar mais uma confissão. Admitiu ter matado aqueles dois jornalistas da Moskovskaya Gazeta no verão passado, a mando de Ivan. Mas, tendo em conta as circunstâncias delicadas de sua admissão de culpa, não estávamos em posição de transmitir a informação às autoridades francesas e italianas. Por enquanto, os dois casos vão ficar oficialmente por resolver.
— O que fizeram com os cinco milhões de euros que Petrov deixou no Becker & Puhl?
— Nós o obrigamos a endossá-los para Konrad Becker para cobrir os custos da balbúrdia que vocês causaram no banco dele. Envia cumprimentos, por sinal. Mas ficaria muitíssimo agradecido se realizasse suas operações financeiras em outro lugar.
— E foram forçados a limpar mais alguma trapalhada?
— Não. A nossa campanha de desinformação conseguiu desviar as suspeitas todas para Ivan. Além disso, os tipos que vocês mataram não eram exatamente cidadãos exemplares. Eram antigos capangas do KGB que faziam dos assassinatos, dos sequestros e das extorsões sua atividade. Para a polícia e a segurança europeia, foi um favor. — Shamron olhou em silêncio para Gabriel por um momento. — Ajudou?
— Em quê?
— Matá-los?
Gabriel lançou um olhar às águas negras do lago.
— Fiz coisas terríveis para conseguir recuperar Chiara, Ari. Fiz coisas que nunca mais quero voltar a fazer.
— Mas?
— Sim, ajudou.
— Onze — disse Shamron. — Irônico, não acha?
— Como assim?
— Sua primeira missão surgiu porque o Setembro Negro matou onze israelenses em Munique. E, na última missão, você e Mikhail mataram onze russos responsáveis pelo sequestro de Chiara e pela morte de Grigori.
Instalou-se um silêncio pesado entre eles, apenas interrompido pelo som das gargalhadas vindas da sala de jantar.
— Minha última missão? Pensei que você e o primeiro-ministro tinham decidido que estava na hora de eu assumir o controle do Escritório.
— Já viu seus relatórios médicos? — disse Shamron, abanando a cabeça devagar. — Não está em condições de assumir a responsabilidade de comandar o Escritório neste momento. Não quando temos um confronto com os iranianos se avizinhando. E não quando sua mulher precisa de atenção.
— O que está dizendo, Ari?
— Qe está livre da promessa que fez em Paris. Estou dizendo que você está despedido, Gabriel. Agora, tem uma nova missão. Volte a engravidar sua mulher o mais depressa possível. Já não é assim tão novo, meu filho. Precisa ter outro filho rapidamente.
— Tem certeza, Ari? Está mesmo preparado para me dispensar?
— Tenho certeza de que teremos sempre alguma coisa para você fazer. Mas não ficar sentado na sala do diretor. Vamos infligir essa desagradável tarefa a outra pessoa.
— E já têm algum candidato em vista?
— Por acaso, já nos decidimos por um. Vai ser anunciado no mês que vem quando Amos renunciar ao cargo.
— Quem é?
— Eu — respondeu Uzi Navot.
Gabriel virou-se e viu Navot parado no terraço, com os braços corpulentos cruzados na frente do peito. À meia-luz, parecia-se chocantemente com Shamron quando era novo.
— Uma escolha brilhante, não acha?
— Estou sem palavras.
— Por uma vez — soltou Navot, avançando e pondo a mão no ombro de Gabriel. Temos um sistema fantástico, você e eu. Você recusa um cargo e eles o oferecem a mim.
— Mas o homem certo ficou com o cargo nos dois casos, Uzi. Eu teria sido um diretor terrível. Mazel tov.
— Está falando sério, Gabriel?
— O Escritório vai ficar em boas mãos durante vários anos — respondeu Gabriel, inclinando a cabeça na direção de Shamron.
— Agora, só nos falta convencer o Velho a largar a bicicleta.
Shamron fez uma careta.
— É melhor não nos deixarmos entusiasmar. Mas deixemos também uma coisa bem clara. Uzi não será meu peão. Será ele mesmo. Mas é óbvio que estarei sempre aqui para oferecer conselhos.
— Quer ele queira quer não.
— Tenha cuidado, meu filho. Ou o aconselho a lidar com você duramente.
Navot aproximou-se e encostou-se na balaustrada.
— O que vamos fazer com ele, Ari?
— Na minha opinião, deviam trancá-lo num quarto com a mulher e mantê-lo lá até ela ficar grávida outra vez.
— Combinado — disse Navot, olhando para Gabriel. — É uma ordem. E não vai desobedecer a outra ordem minha, Gabriel.
— Não senhor.
— Então, o que vai mesmo fazer com todo esse tempo livre?
— Descansar.
— Depois disso... — Encolheu os ombros de forma evasiva. — Para ser franco, não faço ideia.
— Só não tenha ideia de sair do país — avisou Shamron. — Por enquanto, seu endereço é no número dezesseis da Rua Narkiss.
— Preciso trabalhar.
— Nós arranjamos uns quadros para restaurar.
— Os quadros estão na Europa.
— Não pode ir para a Europa — respondeu Shamron. — Ainda não.
— Quando?
— Quando tivermos tratado de Ivan. Nessa hora, pode ir.
CAPÍTULO 76
JERUSALÉM
Gabriel e Chiara fizeram um esforço firme para seguir as ordens de Navot à letra. Não encontraram grandes razões para sair do apartamento; uma fornalha típica de agosto tinha-se instalado em Jerusalém e as horas de sol eram insuportavelmente quentes. Apenas se aventuravam lá fora depois do cair da noite e mesmo assim só por pouco tempo. Pela primeira vez em muitos anos, Gabriel sentia um forte desejo de produzir obras originais. O seu tema era, evidentemente, Chiara. Em apenas três dias, pintou um nu assombroso que, depois de terminado, encostou à parede, aos pés da cama. Por vezes, quando o quarto estava às escuras e ele se encontrava inebriado com os beijos de Chiara, quase era possível confundir o quadro com a realidade. Foi durante uma dessas alucinações que o telefone da mesinha-de-cabeceira tocou bastante inesperadamente. Com Chiara montada nas suas ancas, sentiu-se tentado a não atender. Relutantemente, levou o fone ao ouvido.
— Precisamos falar — disse Adrian Carter.
— Estou ouvindo.
— Por telefone não.
— Onde?
Encontraram-se para tomar café dois dias depois, no terraço do Hotel King David. Quando Gabriel chegou, deparou-se com Carter num fato de popelina com pregas e a ler o International Herald Tribune. Já tinham passado muitos meses desde que haviam estado juntos pela última vez. Na verdade, o último encontro ocorrera na Irlanda, no Aeroporto Shannon, na manhã a seguir à cúpula do G8. Segundo os termos do acordo alcançado com o presidente russo, Gabriel, Chiara, Mikhail e Irina Bulganova tinham sido autorizados a deixar Moscou da mesma maneira que Gabriel chegara: rodeados de agentes do serviço secreto americanos e a bordo do carplane. Tinham desembarcado na parada para reabastecimento e cada um seguira seu caminho. Irina viajara com Graham Seymour para o Reino Unido, enquanto Gabriel, Chiara e Mikhail voaram para casa, para Israel, com Shamron. Nessa manhã, Carter estava tão dominado pela emoção que esqueceu de pedir a Gabriel o passaporte americano oficial que ele usou para entrar na Rússia. Fez isso naquele preciso momento, logo depois de voltar a se sentar. Gabriel jogou-o na mesa, com a insígnia virada para baixo.
— Espero que não tenha usado nas suas feriazinhas europeias de verão.
— Não saí de Israel desde que voltei da Rússia.
— Boa tentativa, Gabriel. Mas nós sabemos de muito boa fonte que você e sua equipe passaram o verão matando amigos e parceiros de negócios de Anton Petrov. E fizeram um belo trabalho.
— Não fomos nós, Adrian. Foi Ivan.
— Os chefes de nossas bases europeias também ouviram esses rumores.
Carter abriu o passaporte e começou a folhear as páginas.
— Não se preocupe, Adrian. Não vai encontrar nenhum visto novo. Eu não faria isso com você nem com o presidente. Minha mulher está viva por causa de vocês. E nunca poderei recompensá-los.
— Acho que ainda tem muito saldo a seu favor. — Carter deu um gole no café e mudou de assunto. — Ouvimos dizer que está prestes a acontecer uma mudança no comando do Boulevard King Saul. Desnecessário dizer que em Langley estamos satisfeitos com a escolha. Sempre gostei do Uzi.
— Mas?
— Obviamente, estávamos com esperança de que o próximo chefe fosse você. Compreendemos por que isso não vai ser possível. E apoiamos sua decisão incondicionalmente.
— Nem digo como fico aliviado por saber que tenho o apoio de Langley, Adrian.
— Faça um esforço e tente controlar essa ironia israelense cáustica — respondeu Carter, limpando levemente os lábios no guardanapo. — Já tem alguma ideia de teus planos para o futuro?
— No momento, Chiara e eu temos de ficar por aqui.
Gabriel inclinou a cabeça na direção do par de guarda-costas, sentados a duas mesas de distância. Protegidos por crianças com armas.
— Podiam vir para a América. Elena diz que serão sempre bem-vindos. Aliás, ela diz que estaria até disposta a construir uma casa para você e Chiara lá na fazenda. Se eu estivesse no seu lugar, ficaria tentado.
— Isso porque você nasceu na Nova Inglaterra e está habituado ao inverno. Eu venho do vale de Jezreel.
— Ela não está brincando, Gabriel.
— Por favor, agradeça a Elena e diga que aprecio verdadeiramente a oferta. Mas não posso aceitar.
— Os filhos dela vão ficar muito desapontados Escreveram uma carta para você — disse Carter, entregando um envelope a Gabriel. — Na verdade, é dirigida a você e a Chiara.
— E o que diz?
— Um pedido de desculpas. Querem que vocês saibam como lamentam o que o pai deles fez.
Gabriel tirou a carta do envelope e leu-a em silêncio.
— É linda, Adrian, mas diga às crianças que não precisam se sentir culpadas pelas ações do pai. Além disso, nunca poderíamos recuperar Chiara sem a ajuda delas. Segundo parece, fizeram uma bela atuação na Base Andrews. Fielding diz que ficará na história. O embaixador russo nunca suspeitou de nada.
Gabriel guardou a carta outra vez no envelope e sorriu. Embora o embaixador russo não se tenha dado conta, tinha desempenhado um pequeníssimo papel num logro intrincado. Era verdade que Anna e Nikolai tinham subido a bordo de um C-32 da força aérea americana na Base Andrews, mas, por insistência de Gabriel, tinham sido mantidos bem longe do espaço aéreo russo. Com efeito, segundos depois de passarem pela porta da cabine, entraram diretamente no compartimento de carga de um veículo hidráulico de fornecimento de refeições e serviços, onde Sarah Bancroft os esperava. Dez minutos após o embaixador ter partido, juntaram-se à mãe a bordo do Gulfstream e voltaram para Adirondack. Apenas o bilhete era genuíno. Tinha sido escrito pelas crianças na Base Andrews e entregue ao piloto. De acordo com Elena, os filhos estavam falando sério quando escreveram tudo aquilo.
— O meu diretor deu de cara com o embaixador russo numa recepção na Casa Branca há uns dois meses. Ainda estava espumando de fúria com o que aconteceu. Pelo visto, morre de medo da ira de Ivan. Passa o menor tempo possível na Rússia.
Gabriel enfiou a carta no bolso da camisa. Com certeza Carter não tinha feito todo aquele caminho até Jerusalém para recuperar um passaporte e entregar uma carta, mas não parecia estar com pressa nenhuma em revelar o verdadeiro motivo da visita. Naquele momento, lia o jornal. Dobrou-o em quatro e passou-o a Gabriel.
— Está vendo isso? — perguntou, batendo com o dedo num dos títulos.
Era uma notícia sobre o novo monumento comemorativo no campo da morte na província de Vladimirskaya. Apesar de discreto e pequeno, já tinha atraído dezenas de milhares de visitantes, para grande descontentamento do Kremlin. Muitos visitantes eram familiares das pessoas que tinham sido mortas lá, mas na maioria eram cidadãos comuns, russos que vinham ver algo que fazia parte de seu passado negro. Desde a inauguração do memorial, a reputação de Stalin tinha caído a pique. E a do atual regime também. Com efeito, havia cada vez mais russos expressando sua insatisfação. O jornalista do Herald Tribune interrogava-se se os russos não se poderiam mostrar menos dispostos a aceitar um futuro autoritário se falassem mais abertamente sobre o seu passado totalitário. Gabriel não acreditava muito nisso. Lembrou-se de uma coisa que Olga Sukhova lhe tinha dito, quando atravessavam o Cemitério de Novodevichy.
Os russos nunca tinham conhecido uma verdadeira democracia. E, com toda a probabilidade, nunca iriam conhecer.
— Diz aqui que o presidente russo ainda não foi visitar o local.
— É um homem muito ocupado — respondeu Carter. — Acha que está arrependido da decisão de tornar público tudo aquilo?
— Receio que não tivesse outra saída. Concordamos em não revelar nada sobre o caso e encobrir a morte de Grigori com aquela história ridícula do suicídio. Mas as valas não faziam parte do acordo. Aliás, deixamos bem claro ao Kremlin que, se não dissessem a verdade ao povo russo, faríamos isso por eles.
Gabriel dobrou outra vez o jornal e tentou devolvê-lo a Carter.
— Veja a notícia embaixo dessa.
O assunto era uma nova sangria levada a cabo no Congo que tinha deixado mais de cem mil pessoas mortas. A notícia vinha acompanhada por uma fotografia de uma mãe desesperada, agarrada ao corpo do filho morto.
— E adivinha quem anda atiçando as chamas? — perguntou Carter.
— Ivan?
Carter assentiu com a cabeça.
— Fez aterrissar lá dois aviões carregados de armas no mês passado. Morteiros, RPG, AK e vários milhões de cartuchos de munições. E o que acha que o presidente russo disse quando pedimos para intervir?
— “Qual Ivan?”
— Qualquer coisa do gênero. É evidente que não há lisonja nem fala mansa que cheguem para convencer o Kremlin a pôr fim às operações de Ivan. Se quisermos acabar de vez com os negócios dele, temos de ser nós mesmos a fazê-lo.
— Enquanto Ivan estiver na Rússia, ninguém pode tocá-lo.
— Isso é verdade, enquanto ele estiver na Rússia. Mas se por acaso saísse...
— Ele não vai sair de lá, Adrian. Não com um mandado de captura internacional da Interpol a ameaçá-lo.
— Isso é o que qualquer pessoa pensaria. Mas Ivan pode ser muito impulsivo — atirou Carter, entrelaçando as mãos debaixo do queixo e contemplando as muralhas da Cidade Antiga. — Pelas nossas contas, você e sua equipe mataram onze russos na Europa no verão. Estávamos pensando se não estaria interessado em ir atrás de mais um.
Gabriel sentiu o coração bater nas costelas. As suas palavras seguintes foram ditas com fingida calma.
— Para onde ele vai?
Carter disse.
— E ele não tem acusações pendentes lá?
— Em Langley, acham que o país em questão não quer mesmo atacá-lo.
— Por quê?
— Questões políticas, claro. E o petróleo. Esse país quer melhorar os laços com Moscou e acredita que uma ação contra um amigo pessoal do presidente russo apenas levaria a uma retaliação do Kremlin.
— E o serviço secreto do país em questão sabe que Ivan está a caminho de lá?
— Tendo em conta as preocupações que os políticos deles nos levantam, optamos por não informar. Além disso, faria com que as outras opções fossem mais difíceis de executar.
— Que outras opções?
— Parece que temos três.
— Número um?
— Deixá-lo aproveitar as férias e esquecer o assunto.
— Má ideia. Número dois?
— Sermos nós a prendê-lo e levá-lo para ser julgado em solo americano.
— Muito complicado. Além do mais, isso provocaria uma crise entre os Estados Unidos e um aliado europeu importante.
— Foi exatamente o que nós pensamos. Aliás, consideramos que estamos impossibilitados de tomar qualquer medida no solo desse país.
Carter interrompeu-se por um instante e, a seguir, acrescentou: — O que nos leva à terceira opção.
— E qual é?
— “Kachol v’lavan.”
— Até que ponto tem certeza de que Ivan estará lá?
Carter entregou-lhe o dossiê.
— Tenho certeza absoluta.
CAPÍTULO 77
SAINT-TROPEZ, FRANÇA
De modo bem apropriado, o barco se chamava Mischief: cinquenta e quatro metros de luxo fabricado na América e registrado nas Bahamas, detido e comandado por um tal Maxim Simonov, mais conhecido como Mad Maxim, rei da lucrativa indústria russa do níquel, amigo e companheiro de folia do presidente russo e antigo convidado na Villa Soleil, o palácio à beira-mar, e agora vazio, de Ivan Kharkov em Saint-Tropez. E embora Maxim fosse proprietário de uma villa que valia vinte milhões de dólares, na Costa del Sol, em Espanha, preferia a privacidade e a mobilidade do seu iate. Tinha andado a viajar pela costa do Norte da África em junho e passara o mês de julho a saltitar de ilha em ilha na Grécia. Na parte final do passeio, dera ordens à tripulação para um pequeno desvio até a costa turca, onde, na manhã de 9 de agosto, recebera a bordo dois passageiros: um homem de aspeto corpulento, chamado Alexei Budanov, e sua jovem e deslumbrante mulher, Zoya. Embora sem filhos, o casal tinha vasta bagagem; tanta, na verdade, que foi preciso um segundo camarote de luxo só para acomodar tudo. Mad Maxim pareceu não se importar. Os amigos tinham passado um ano horrível. E Mad Maxim, alma generosa como poucas, encarregara-se de garantir que tivessem pelo menos umas boas férias de verão. O anfitrião tinha ganho a alcunha não pela perspicácia para os negócios, mas pelas atividades de lazer. As festas que dava tinham a reputação de serem acontecimentos tresloucados que raramente terminavam sem violência ou detenções. De fato, vários 432 anos antes, Maxim estivera detido por pouco tempo, depois de ter alegadamente mandado vir um avião carregado de prostitutas russas para entreter os convidados no seu château à saída de Paris. Mais tarde, a polícia francesa aceitou retirar todas as acusações após o bilionário tê-la convencido de que as moças simplesmente faziam parte de uma companhia de dança contemporânea. O caso, escandaloso mas um tanto cômico, não prejudicou em nada a reputação de Maxim em seu país. Na verdade, os jornais de Moscou aclamaram-no como o exemplo perfeito do Novo Russo. Mad Maxim tinha dinheiro e não tinha medo de o exibir, mesmo que isso implicasse meter-se de vez em quando em problemas com a polícia francesa.
O ritmo das suas festanças não abrandava no mar. Quando muito, liberto dos constrangimentos de autoridades metediças e de vizinhos queixosos, atingiu novos níveis de intensidade. Esse Verão já tinha produzido muitas noites memoráveis de deboche, mas foi atingido um novo cume com a chegada de Alexei e Zoya Budanov. Com uma tripulação de trinta pessoas a cuidar dos seus interesses, o séquito passou a viagem a comer, a beber e a fornicar ao longo do Mediterrâneo, até chegar ao mítico Porto Velho de Saint-Tropez, na tarde de 20 de Agosto. Embora se encontrassem exaustos e profundamente ressacados devido às aventuras da véspera, os passageiros embarcaram de imediato nos botes de borracha do Mischief e seguiram para terra. Todos, menos o homem que dava pelo nome de Alexei Budanov, que permaneceu no convés da ré, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar fixamente para Saint-Tropez como se fosse a sua cidade proibida. E, apesar de Mr. Budanov não o saber, já estava a ser vigiado por um homem que se encontrava à frente do farol no final do Quai d’Estienne d’Orves.
O homem usava bermuda, pulôver branco, chapéu panamá e grandes óculos escuros. Meses antes, numa floresta de bétula perto de Moscou, Mr. Budanov tinha tentado matar sua mulher. Agora, o homem planejava matar Mr. Budanov. Mas, para isso, precisava de uma coisa. Precisava que ele saísse do iate. Estava convencido de que Mr. Budanov não ficaria por lá muito mais tempo. O russo era viciado em dinheiro, mulheres e Saint-Tropez. A estância francesa fora o pano de fundo para sua queda e seria o cenário de sua morte. O homem de estatura e constituição médias tinha certeza disso. Tinha simplesmente de ser paciente. Tinha de deixar Mr. Budanov vir até ele.
E depois acabaria com ele.
Felizmente, não teria de esperar sozinho. Havia oito companheiros com ele. Usando nomes diferentes e falando línguas diferentes, tinham passado grande parte do verão: num périplo pela Europa como nenhum outro. Esta seria a última parada no seu itinerário. E depois tudo estaria terminado. Viviam todos juntos debaixo do mesmo teto, numa villa situada nas colinas por cima da cidade. Tinha persianas azuis e uma grande piscina com vista para o mar ao longe. Passavam pouco tempo na piscina, apenas o suficiente para enganar os vizinhos. Com efeito, dispendiam a maior parte do tempo nas ruas de Saint-Tropez, vigiando, seguindo, escutando. Um amigo na CIA facilitava a tarefa enviando transcrições e gravações de todos os telefonemas feitos do iate ou pelos seus passageiros. Essas interceptações avisavam com antecedência sempre que Mad Maxim ou um membro do grupo se preparava para ir à cidade. Ficavam sabendo antecipadamente onde planejavam almoçar em cada dia, onde planejavam jantar e que discoteca de luxo planejavam virar do avesso depois da meia-noite. E as interceptações também permitiam ouvir a voz de Alexei Budanov em pessoa. Quase todas as chamadas dele eram para Moscou. Nem por uma vez pronunciou o próprio nome.
Nem tirou os pés do Mischief. Mesmo quando os outros jantaram no Le Grand Joseph, o seu lugar preferido para comer, manteve-se fechado no iate. E o homem de estatura e constituição médias passava o tempo a pouca distância dali, à frente do seu farol. Para ajudar a preencher as horas mortas, sonhava que fazia amor com a mulher. E restaurava quadros imaginários. E recordava-se, com grande pormenor, do pesadelo na floresta de bétulas. Durante a maior parte do tempo, no entanto, manteve os olhos postos no ia434 te. E esperou. Sempre a espera... Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que Ivan Kharkov regressasse finalmente a Saint-Tropez.
No final da tarde do dia 29, enquanto observava os botes do Mischief a voltarem para o navio-mãe, Gabriel recebeu uma chamada no seu celular seguro. A voz que ouviu era a de Eli Lavon.
É melhor vir aqui imediatamente.
No fim, não foi a tecnologia americana a responsável pela destruição de Ivan, mas sim a astúcia israelense. Enquanto seguia pelo Chemin des Conquettes, uma rua residencial a sul do movimentado centre ville de Saint-Tropez, Lavon tinha reparado num novo letreiro na porta do restaurante conhecido como Vila Romana. Escrito em inglês, francês e russo, lamentava anunciar que o famoso restaurante e local de diversão de Saint-Tropez estaria fechado dali a duas noites para uma festa privada. Fingindo ser um paparazzo à procura de estrelas de cinema, Lavon tinha agitado algumas notas para os garçons para ver se conseguia saber a identidade de quem reservara o estabelecimento. Um barman informou-o de que seria uma festa totalmente russa. Um dos rapazes que punha e levantava as mesas confidenciou-lhe que seria uma festança — foi essa a palavra, uma festança. E, por fim, da estonteante anfitriã, conseguiu obter o nome do homem que daria a festa e pagaria a conta: Mad Maxim Simonov, o rei do níquel da Rússia. “Nada de estrelas de cinema”, disse a moça. “Só russos bêbados e as namoradas. Todos os anos, celebram a última noite da temporada. Deve ser uma noite para recordar mais tarde.” E seria, pensou Lavon. Uma noite bem memorável, de fato.
Gabriel fez uma aposta, convicto de que ela lhe seria bastante proveitosa. Apostou que Ivan Kharkov não seria minimamente capaz de fazer toda aquela viagem até a Côte d’Azur e resistir à atração gravitacional do Villa Romana, um restaurante onde já tivera uma mesa habitualmente reservada para si. Iria tomar as suas precauções, talvez chegasse até a utilizar um disfarce rudimentar qualquer, mas viria. E Gabriel estaria à espera. Se iria carregar no gatilho ou não, dependeria de dois fatores. Não iria derramar sangue inocente, além daquele que pertencesse a guarda-costas armados, e não desceria ao nível de Ivan matando-o à frente da sua jovem mulher. Lavon engendrou um plano de ação. Apelidaram-no de brincadeiras com telefones.
Foi uma noite para recordar e, tal e qual como Gabriel previra, Ivan foi incapaz de resistir a aparecer na festa. A música techno-pop era ensurdecedora, as mulheres quase não estavam vestidas e o champanhe corria como um rio borbulhante. Ivan não deu muito nas vistas, ainda que não tivesse trazido nenhum disfarce, já que nem um único convidado se teria atrevido a comunicar a sua presença. E quanto à possibilidade de estar sob algum tipo de perigo físico, também isso parecia ter sido descartado. Os dois guarda-costas que Mad Maxim tinha trazido para proteção estavam parados como porteiros logo à entrada do Villa Romana. Se qualquer um deles mexesse sequer um músculo, morreriam os dois ali, às duas da manhã. Às duas da manhã, porque as defesas de Ivan se encontrariam enfraquecidas pelo cansaço e pelo álcool. Às duas da manhã, porque essa é a hora em que o Chemin des Conquettes sossega por fim, numa noite quente de Verão. Às duas da manhã, porque seria nessa altura que Ivan iria receber o telefonema que o levaria para a rua. O telefonema que assinalaria que o fim estava finalmente próximo.
Como centro de operações, Gabriel e Mikhail escolheram a ponta de um pequeno parque infantil, ao norte do Chemin des Conquettes, porque a entrada do Villa Romana ficava a menos de cinquenta metros. Estavam em suas motos, numa pequena área escura entre os postes, ouvindo as vozes que saíam dos receptores que tinham no ouvido. Ninguém olhou para eles duas vezes. Estar sentado indolentemente numa moto, às duas da madrugada, é o que se faz numa noite quente de verão em Saint-Tropez, em especial quando as primeiras trovoadas de outono estão apenas a uns dias de distância.
Não foi um trovão que os fez ligar os motores, mas uma voz baixa. A voz disse que a chamada tinha acabado de ser feita para o celular de Ivan. Disse que estava quase na hora. Gabriel tocou na Glock 45 que tinha nas costas, carregada com balas de ponta oca altamente destrutivas, e mudou-a ligeiramente de posição. A seguir, baixou o visor do capacete e esperou o sinal.
Era Oleg Rudenko ligando de Moscou — ou, pelo menos, foi nisso que Ivan acreditou. Não tinha bem certeza. Nunca a teria. A ligação era fraca demais, a música estava alta demais. Ivan sabia três coisas: quem estava telefonando falava russo, tinha o número de seu celular e dizia que era extremamente urgente. Foi o suficiente para fazê-lo se levantar e avançar para o sossego da rua, com o celular colado a um ouvido e a mão tapando o outro. Se Ivan ouviu as motos chegando, não deu sinal. Na verdade, estava gritando em russo, de costas, no instante em que Gabriel parou a moto. Os guarda-costas, na entrada do restaurante, pressentiram de imediato que havia problemas e cometeram a tolice de enfiar as mãos nos paletós. Mikhail deu um tiro no coração de cada um antes de conseguirem tocar nas armas. Ao ver os guardas tombando, Ivan rodopiou, aterrorizado, apenas para dar de cara com um silenciador na ponta de uma Glock. Gabriel levantou o visor do capacete e sorriu. Então, apertou o gatilho e o rosto de Ivan desapareceu. Por Grigori, pensou, enquanto se afastava na moto pela escuridão adentro. Por Chiara.
NOTA DO AUTOR
O romance é uma obra de entretenimento. Os nomes, personagens, lugares e incidentes descritos neste livro são produto da imaginação do autor ou ficcionais. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, negócios, companhias, acontecimentos e locais verdadeiros, é pura coincidência. A companhia Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis, não existe, tal como acontece com a revista Moskovskaya Gazeta ou com a agência Galaxy Travel, na Rua Tverskaya. Viktor Orlov, Olga Sukhova e Grigori Bulganov não devem ser interpretados de forma alguma como versões ficcionais de pessoas reais. O quartel-general do serviço secreto israelenses já não está no Boulevard King Saul em Tel Aviv. Optei por manter aí o quartel-general dos meus serviços secretos fictícios, em parte, por sempre ter gostado do nome. Aldrabei os horários das companhias aéreas para os adaptar à minha história. Quem tentar chegar a Londres a partir de Moscou, irá procurar em vão pelo voo 247 da Aeroflot. Não existe nenhum banco privado em Zurique chamado Becker & Puhl. Os seus procedimentos de funcionamento internos foram inventados pelo autor. O Escritório de Apoio Logístico ao Presidente foi retratado com precisão, mas, tanto quanto sei, nunca foi utilizado para servir de disfarce a um espião israelense.
Não existe nenhum aeródromo em Konakovo, pelo menos que eu saiba; e também não há qualquer divisão do FSB conhecida como Escritório de Coordenação. Há um clube de xadrez que se reúne de fato nas noites de terça-feira na Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Chama-se Greater London Chess Club, e não Central London Chess Club, e os seus membros são inacreditavelmente encantadores e amáveis. As minhas maiores desculpas à gerência do Villa Romana, em Saint-Tropez, por ter executado um assassinato à porta do seu restaurante, mas receio bem que tivesse de ser feito. Além disso, as minhas desculpas também aos moradores do delicioso local pie é Bristol Mews, em Maida Vale, por ter colocado um desertor russo no meio deles. Se o autor tivesse alguma vez de se esconder em Londres, seria com certeza lá. Os leitores não devem ir à procura de Gabriel Allon ao nº 16 da Rua Narkiss, em Jerusalém, nem de Viktor Orlov ao nº 43 de Cheyne Walk, em Chelsea. Nem devem atribuir demasiada importância à utilização que faço de um anel que injeta veneno, embora suspeite que o KGB e os seus sucessores provavelmente têm um. O campo da morte da época do Grande Terror, descoberto no clímax de O Desertor, é fictício, mas infelizmente as circunstâncias históricas que poderiam ter criado um local desse gênero não são. É possível que nunca se venha a saber precisamente quantas pessoas foram fuziladas durante as repressões brutais que duraram de 1936 até 1938. As estimativas variam de números próximos dos setecentos mil até bem mais de um milhão. Mas basta dizer que a quantidade de pessoas executadas é apenas uma medida para o sofrimento que Stalin infligiu à Rússia durante o Grande Terror. O historiador Robert Conquest calcula que as purgas e as fomes induzidas por Stalin custaram provavelmente entre onze a treze milhões de vidas. Outros historiadores avançam com números ainda mais elevados. Mesmo assim, as sondagens de opinião continuam a constatar que Stalin se mantém, até hoje, altamente popular junto dos russos. Um dos poucos locais onde os russos podem chorar as vítimas de Stalin é Butovo, logo a sul de Moscou. Aí, de Agosto de 1937 a Outubro de 1938, estima-se que vinte mil pessoas tenham sido fuziladas com um tiro na nuca e enterradas em extensas valas comuns. Visitei com a minha família, no Verão de 2007, enquanto fazia a pesquisa para o livro As Regras de Moscou, o memorial que tinha sido inaugurado há pouco tempo em Butovo e, em grande medida, isso serviu de inspiração a . Uma pergunta perseguiu-me enquanto ia passando lentamente pelas valas comuns, acompanhado por cidadãos russos chorosos. Por que razão não existem mais lugares deste gênero? Lugares onde os russos comuns possam ver com os seus próprios olhos as provas dos crimes inimagináveis de Stalin . A resposta, claro, os governantes da Nova Rússia não estão especialmente interessados em expor os pecados do passado soviético. Pelo contrário, estão envolvidos numa tentativa cuidadosamente orquestrada de passar uma esponja por cima dos seus aspetos mais repulsivos, celebrando ao mesmo tempo as suas façanhas. Os seus motivos são compreensíveis. O NKVD, que levou a cabo o Grande Terror, a mando de Stalin, foi o antecessor do KGB. E antigos agentes do KGB, incluindo o próprio Vladimir Putin, comandam neste momento a Rússia.
Existe um perigo nesse tipo de miopia histórica, claro: o perigo de que possa acontecer outra vez. De maneiras mais triviais, e bastante mais subtis, já está a acontecer. Desde que subiu ao poder em 1999, Vladimir Putin, o antigo presidente russo e agora primeiro-ministro, tem supervisionado uma alargada restrição de liberdades cívicas e de imprensa. E, em Dezembro de 2008, o governo introduziu nova legislação que viria a expandir vastamente a definição de “traição ao Estado”. Os ativistas de direitos humanos, já de si numa posição delicada, temem que as leis possam ser utilizadas para mandar prender qualquer pessoa que se atreva a criticar o regime. Segundo parece, Andrei Lugovoi, o ex-agente do KGB acusado pelas autoridades britânicas do envenenamento, em Novembro de 2006, de Aleksandr Litvinenko, acha que a nova legislação não vai suficientemente longe. Atualmente membro do parlamento, e um herói para muitos russos, afirmou ao jornal espanhol El País que quem quer que se atreva a criticar a Rússia “deve ser exterminado”. Lugovoi disse ainda: “Se acho que alguém devia ter matado o Litvinenko, no interesse do Estado russo? Se está a falar do interesse do Estado russo, na acepção mais pura da palavra, eu próprio teria dado essa ordem.” E isto vindo do homem procurado pelas autoridades britânicas pelo mesmíssimo homicídio de que fala. Para aqueles que se atrevem a questionar o Kremlin e a poderosa elite russa, as prisões e acusações são por vezes a menor das suas preocupações. Demasiadas pessoas foram simplesmente mortas a sangue-frio. Basta ter em atenção o caso de Stanislav Markelov, o empenhado advogado especialista em direitos humanos e ativista da justiça social, abatido a tiro numa rua central de Moscou, em Janeiro de 2009, à saída de uma conferência de imprensa. Também assassinada foi Anastasia Baburova, jornalista freelance que escrevia para a Novaya Gazeta — tragicamente, a mesma publicação onde trabalhava Anna Politkovskaya, que foi abatida a tiro, em Outubro de 2006, no elevador do prédio onde morava em Moscou. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, sediado em Nova York, quarenta e nove profissionais dos media foram mortos na Rússia desde 1992. Durante o mesmo período, apenas no Iraque e na Argélia morreram mais no cumprimento do dever. Também esta é uma tragédia russa.
Daniel Silva
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