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O DESERTOR
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CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.


CONTINUA

CAPÍTULO 36

AEROPORTO BEN-GURION, ISRAEL

Existe uma sala no Aeroporto Ben-Gurion conhecida apenas por uma mão-cheia de pessoas. Fica à esquerda da área de controle de passaportes, atrás de uma porta não assinalada que está sempre fechada à chave. As suas paredes são de falsa pedra calcária de Jeru salém; a mobília corresponde à que se encontra tipicamente em aeroportos: sofás e cadeiras de vinil preto, mesas modulares, luminárias modernas baratas que lançam uma luz implacável. Há duas janelas, uma com vista para a pista, a outra para o hall das chegadas. Ambas são feitas de vidro fumado de alta qualidade. Reservada aos membros do Escritório, é a primeira parada para os agentes que regressam de campos de batalha secretos no estrangeiro. Há um odor permanente a cigarros velhos, café queimado e tensão masculina. O pessoal dos serviços de limpeza já experimentou todos os produtos imagináveis para o expulsar, mas o cheiro continua. Tal como os inimigos de Israel, não pode ser derrotado através de meios convencionais.

Gabriel já tinha entrado nesta sala, ou em versões dela, várias vezes. Já entrara nela em triunfo e cambaleando com o peso do fracasso. Já lá fora honrado com festas e, uma vez, já tinha dado entrada numa maca, com uma bala ainda alojada no peito. Agora, pela segunda vez na vida, entrou nela depois de homens de indiscriminada violência terem atacado a sua mulher. Só lá estava Shamron para o receber. Shamron poderia ter dito muitas coisas Poderia ter dito que nada daquilo teria acontecido se Gabriel tivesse voltado para casa, para Israel; ou que Gabriel tinha sido tolo em ir à procura de um desertor russo com Grigori. Mas não o fez. Na verdade, durante um longo momento, não disse absolutamente nada. Limitou-se a pôr a mão na cara de Gabriel e a olhar fixamente para os seus olhos verdes. Estavam raiados de vermelho, por dentro e por fora, de raiva e cansaço.

— Suponho que não tenha conseguido dormir, não?

Os olhos responderam por ele.

— E também não comeu. Tem que comer, Gabriel.

— Como quando a tiver de volta.

— O profissional que há em mim quer dizer que devíamos deixar que outra pessoa se encarregasse disso. Mas sei que esta não é uma opção. — Segurou o cotovelo de Gabriel. — Sua equipe está à espera. Querem começar logo. Temos muito trabalho para fazer e muito pouco tempo.

Ao saírem da sala, foram fustigados por uma forte chuvarada batida pelo vento. Gabriel olhou para o céu: não havia nem lua nem estrelas, apenas nuvens cor de chumbo que se estendiam da Planície Costeira às montanhas da Judeia.

— Está nevando em Jerusalém — disse Shamron. — Aqui embaixo, só chuva. — Fez uma pausa. — E mísseis. Ontem à noite, o Hamas lançou mísseis de longo alcance a partir de Gaza. Cinco pessoas morreram em Ashkelon... uma família inteira dizimada. Uma das crianças era deficiente. Aparentemente, não conseguiram chegar aos abrigos a tempo.

A limusine de Shamron estava estacionada junto ao passeio, na área VIP e segura do estacionamento. Rami estava junto à porta aberta, com as mãos ao lado do corpo e um rosto fechado. Quando Gabriel entrou para a parte de trás, o guarda-costas apertou-lhe o braço de uma forma reconfortante, mas não disse nada. Passado um momento, a viatura já avançava a grande velocidade pela estrada circular de acesso ao aeroporto, no meio da Violenta chuvada. No final da estrada, havia um letreiro azul e branco. Para a. direita, ficava Jerusalém, cidade de crentes; para a esquerda, ficava Tel Aviv, cidade de ação. A limusine seguiu para a esquerda. Shamron acendeu um cigarro e pôs Gabriel ao corrente dos acontecimentos.

— Shimon Pazner instalou-se no quartel-general da Polizia di Stato. Está acompanhando as buscas dos italianos minuto a minuto e mandando informes da situação ao Escritório de Operações.

Pazner era o chefe da base de Roma. Ele e Gabriel tinham tido uma ou outra altercação profissional ao longo dos anos, mas Gabriel confiaria sua vida a ele. E a de Chiara também.

— Shimon teve conversas discretas com os chefes dos serviços italianos. Enviaram condolências e prometeram fazer tudo o que estiver a seu alcance para ajudar.

— Espero que ele não tenha se sentido obrigado a dizer alguma coisa sobre minha visita recente a Como. Nos termos do meu acordo com os italianos, estou proibido de fazer operações em solo italiano.

— Isso não aconteceu. Mas eu não me preocuparia com os italianos. Não voltará lá tão cedo.

— E como ele explicou o fato de Chiara andar com guarda-costas?

— Disse que tínhamos recebido ameaças contra você. Não entrou em detalhes.

— Como os italianos reagiram?

— Como seria de esperar, ficaram algo desapontados por não termos mencionado isso antes. Mas a primeira preocupação deles é localizar sua mulher. Dissemos que acreditamos que os russos estejam envolvidos. O nome de Ivan não veio à baila. Ainda não.

— É importante que os italianos tratem disso discretamente.

— E vão fazê-lo. A última coisa que eles querem é que o mundo descubra que você mora numa quinta. na Úmbria restaurando quadros para o Papa. Os agentes da Polizia di Stato e dos carabiniere que estão no terreno acham que a vítima era uma italiana comum. Um pouco mais acima na cadeia de comando, sabem que há ligação com questões de segurança nacional. Só os chefes e seus principais assessores sabem a verdade.

— Que medidas tomaram?

— Fazem buscas na área circundante à villa e têm agentes em todos os pontos de entrada e postos fronteiriços. Não podem revistar todos os veículos, mas estão fazendo inspeções rápidas e revirando tudo o que pareça remotamente suspeito. Segundo parece, o trânsito de caminhões para os túneis da Suíça está engarrafado há mais de uma hora.

— E já sabem alguma coisa sobre o modo como a operação se desenrolou?

Shamron abanou a cabeça.

— Ninguém viu nada. Eles acham que o Lior e o Motti já estavam mortos há um par de horas quando a governanta os encontrou. Quem quer que tenha feito isto, é bom. O Lior e o Motti nem conseguiram disparar sequer um único tiro.

— Onde estão os corpos?

— Foram levados para Roma... Os italianos os terão a nossa disposição no fim da manhã. Esperam poder fazê-lo discretamente, mas duvido que sejam capazes de manter a coisa em segredo por muito mais tempo. Com certeza que algum jornalista vai saber do que aconteceu não tarda nada.

— Quero que eles sejam enterrados como heróis, Ari. Não mereciam morrer assim. Se eu não tivesse...

— Fez o que achava correto, Gabriel. E não se preocupe. Aqueles rapazes vão ser enterrados com todas as honras no Monte das Oliveiras. — Shamron hesitou e depois acrescentou: — Perto de seu filho.

Gabriel olhou pela janela. Sentia-se grato pelos esforços dos italianos, mas receava que tudo isso não passasse de tempo perdido. Não precisou de expressar esse pensamento em voz alta. Shamron, como a sua própria fisionomia severa indicava, sabia que era assim.

Apagou o cigarro, pisou-o e acendeu outro de imediato.

— Já pensou em como Ivan a descobriu?

— Não tenho pensado em mais nada, Ari... A não ser trazê-la de volta.

— Talvez eles tenham seguido Irina quando conseguiu que ela fosse à Itália.

— É possível...

— Mas?

— Extremamente improvável. A base de Moscou vigiou Irina por vários dias antes de ela sair da Rússia. Não tinha ninguém atrás dela.

— E acha que eles podiam ter uma equipe à espera no aeroporto de Milão que os seguisse até a vila?

— Nós preparamos um percurso que permitia detectar se estávamos sob vigilância. Não havia hipótese de não termos dado por um grupo de russos a nos seguir.

— Talvez o tenham feito eletronicamente.

— Com um sinal emitido por um transmissor? — Gabriel abanou a cabeça. — Revistamos Irina muito antes de sairmos do aeroporto. Não havia nenhum transmissor na bagagem dela. Fizemos tudo segundo as regras, Ari. E suspeito que Ivan e os amigos dele no serviço secreto russo já tivessem conhecimento do meu paradeiro há muito tempo.

— Então, por que ele não te matou simplesmente e despachou o assunto?

— Tenho certeza de que não tardaremos a descobrir.

A limusine avançou em direção a uma rampa de saída e, passado UM momento, já ia a avançar a toda a velocidade para norte, ao longo da Auto-Estrada 20. À esquerda, ficavam Tel Aviv e os seus subúrbios; à direita, havia um imponente muro cinzento a separar Israel da Margem Ocidental. Dentro dos serviços de segurança e defesa israelenses, havia quem se lhe referisse como o Muro de Shamron, já que ele passara anos a defender a sua construção. A barreira de separação tinha ajudado a diminuir os atos de terrorismo drasticamente, mas causara muitos prejuízos à já baixa reputação do país no estrangeiro. Shamron nunca deixava que as decisões importantes fossem influenciadas pela opinião internacional. Agia de acordo com uma simples máxima: “Faz o que é necessário e preocupa-te mais tarde com a trapalhada que tiver de ser limpa.” Agora, Gabriel iria agir de acordo com a mesma doutrina.

— E já expressamos formalmente as nossas opiniões aos russos? Convocamos o embaixador para vir ao Foreign Office ontem à noite e demos um aperto. Dissemos que acreditamos que Ivan Kharkov é responsável pelo desaparecimento da Chiara e frisamos bem que esperamos que ela seja libertada de imediato.

— E como o embaixador reagiu?

— Respondeu que tinha certeza de que estávamos enganados, mas prometeu analisar o assunto. O desmentido formal chegou hoje de manhã. Ivan não teve nada a ver com isso, claro.

— Claro. Mas a coisa ainda se torna mais interessante, porque o FSB ofereceu-se para ajudar a localizar Chiara.

— Oh, sério? E o que eles gostariam de receber em troca?

— Todas as informações referentes ao seu desaparecimento, mais os nomes dos aqueles que participaram na operação contra Ivan em Moscou, no verão.

— Isso quer dizer que Ivan age com a bênção do Kremlin.

— Sem dúvida nenhuma. E também quer dizer que teremos de tratar os serviços russos como adversários. Felizmente, você tem amigos em Londres e Washington. Graham Seymour diz que os britânicos farão tudo o que puderem para ajudar. E Adrian Carter já enviou telegrama sobre o sequestro de Chiara a todas as bases e centros de operações e vai nos transmitir tudo o que a CIA pegar.

— Preciso de cobertura total de todas as comunicações de Ivan.

— E já tem. Todas as interceptações relevantes da NSA serão enviadas para nosso chefe da base em Washington.

Shamron fez uma pausa. — A questão é: o que Ivan quer? E quando teremos ter notícias dele?

A limusine saiu da Autoestrada 20 e disparou em direção a uma avenida encharcada pela chuva na área norte de Tel Aviv.

Shamron pôs a mão no braço de Gabriel.

— Não era desta forma que eu queria que voltasse, meu filho, mas bem-vindo a casa.

Gabriel olhou pela janela, em direção a uma placa que passava agora defronte dele, com o nome de uma rua:

SDEROT SHAUL LECH.

Boulevard King Saul.

CAPÍTULO 37

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O MI5 tinha a imponente solenidade em granito de Thames House. A CIA tinha a grande extensão de vidro e aço de Langley.

O Escritório tinha o Boulevard King Saul.

Era um edifício pardacento, indistinto e, melhor do que tudo, anônimo. Não havia nenhuma insígnia pendurada por cima da porta de entrada, nenhum letreiro em bronze a proclamar quem o ocupava. Na verdade, não havia absolutamente nada que sugerisse que se tratava do quartel-general de um do serviço secreto mais temidos e respeitados do mundo. Um exame mais atento da estrutura teria revelado a existência de um edifício dentro de outro edifício, um dos quais com o seu próprio abastecimento de energia, a sua própria canalização de água e esgotos e o seu próprio sistema de comunicações altamente seguro. Os funcionários traziam com eles duas chaves: uma abria uma porta não assinalada no hall de entrada, a outra fazia funcionar o elevador. Aqueles que cometessem o pecado imperdoável de perderem uma ou ambas as chaves eram desterrados para o deserto da Judeia, sem que ninguém voltasse a vê-los ou a ter notícias deles.

Gabriel atravessara o hall de entrada uma única vez, no dia a seguir ao primeiro encontro com Shamron. Daí em diante, apenas tinha entrado no edifício “negro” pela garagem subterrânea. Agora, voltava a fazê-lo, com Shamron ao seu lado. Amos Sharret, o diretor, estava à espera no vestíbulo, acompanhado de Uzi Navot. O relacionamento entre Gabriel e Amos era, na melhor das hipóteses, frio, mas nada disso importava naquele momento. A mulher de Gabriel, uma agente do Escritório, estava desaparecida e presumivelmente nas mãos de um assassino comprovado que jurara vingança. Após expressar as suas condolências, Amos tornou bem claro que o arsenal completo do Escritório, tanto humano como técnico, se encontrava agora à disposição de Gabriel. A seguir, conduziu-o para um elevador que os esperava, com Shamron e Navot logo atrás.

— Deixei-te um gabinete livre no andar de cima — disse Amos.

— Pode trabalhar a partir de lá.

— Onde está a minha equipe? — No lugar do costume.

— Então, porque eu haveria de ir trabalhar para o andar de cima? Amos carregou com força num dos botões do painel de controle. O elevador começou a descer.

Durante muitos anos, tinha sido uma lixeira para onde eram atirados os computadores obsoletos e a mobília velha, e era utilizado com frequência pelos agentes do turno da noite como um local para encontros secretos românticos. Mas agora a Sala 456C, uma divisão subterrânea apertada, três níveis abaixo do hall de entrada, era conhecida como o Covil de Gabriel. Afixado à porta, estava um aviso desbotado, escrito em papel: COMITÉ TEMPORÁRIO DE ESTUDO DE AMEAÇAS TERRORISTAS NA EUROPA OCIDENTAL. Gabriel arrancou-o e, a seguir, marcou o código da fechadura de segurança eletrônica. A sala onde entraram estava repleta de escombros de operações passadas e, afirmavam alguns, assombrada pelos seus fantasmas. Sentados às mesas de trabalho, ligadas umas às outras, encontravam-se os membros da equipe de Gabriel: Dina e Rimona, Yaakov e Yossi, Eli Lavon e Mikhail. Com eles, estavam também outros cinco agentes: um par de versáteis agentes operacionais, Oded e Mordecai, e três jovens gênios da divisão técnica do Escritório, especializados em ciberoperações secretas. Eram os mesmos três homens que tinham saqueado as contas bancárias de Ivan nos dias que se seguiram à deserção da sua mulher. Durante os últimos dias, todos os seus assombrosos conhecimentos tinham estado concentrados nos ativos financeiros de outro oligarca russo: Viktor Orlov.

Gabriel ficou parado à entrada da sala e inspecionou os rostos à sua frente. Viu apenas raiva e determinação. Estes mesmos homens e mulheres tinham levado a cabo algumas das operações mais arrojadas e perigosas da história do Escritório. E, naquele momento, não havia ninguém entre eles que colocasse em dúvida a capacidade da equipe para localizar Chiara e fazê-la regressar a casa. Se por alguma razão falhassem, então derramar-se-iam lágrimas. Mas não agora. E não à frente de Gabriel.

Ficou parado diante deles, em silêncio, com o seu olhar passando lentamente de parede em parede, pelos rostos dos mortos: Khaled al-Khalifa, Ahmed Bin Shafiq, Zizi al-Bakari, Yusuf Ramadan... Havia muitos mais, claro, quase demasiados para recordar. Todos eles tinham sido assassinos e todos eles tinham merecido a sentença de morte que Gabriel lhes administrara. Também devia ter matade Ivan Kharkov. Agora, Ivan tinha capturado a mulher de Gabriel. Independentemente do que viesse a acontecer, Ivan iria passar o resto da vida como um homem perseguido, tal como aconteceria com quem quer que estivesse remotamente envolvido no assunto. Não tinham a mínima hipótese de sobrevivência. Gabriel iria encontrá-los a todos, independentemente do tempo que demorasse. E iria matá-los a todos sem excepção.

No entanto, por agora, a punição dos culpados teria de esperar. Encontrar Chiara era tudo o que importava. Iriam dar início à investigação localizando o homem que tinha planejado e executado o sequestro. O homem que se apresentara a Irina Bulganova como Anatoly, amigo de Viktor Orlov. O homem que tinha acabado de cometer o maior erro da sua carreira profissional. Naquele preciso momento, Gabriel pendurou a fotografia dele na galeria dos mortos. E depois contou uma história à equipe.

— Há um monumento comemorativo não muito longe do Boulevard King Saul. É dedicado aos que serviram e tombaram em segredo. É feito de arenito polido e tem forma de cérebro, porque os fundadores de Israel acreditavam que só o cérebro manteria o país a salvo dos que o queriam destruir. Os nomes das vítimas e as datas em que morreram estão gravados nas paredes do monumento. Os outros detalhes sobre suas vidas e carreiras estão na Sala de Arquivo. Mais de quinhentos agentes secretos dos vários serviços israelenses estão ali homenageados; setenta e cinco eram do Escritório. Em poucos dias seriam acrescentados mais dois nomes — de dois bons rapazes que tinham morrido porque Gabriel tentou cumprir uma promessa. Chiara Zolli, disse ele, não seria o terceiro nome. A Polícia italiana se dedicava a encontrá-la.

Com voz calma e sem emoção, afirmou que os esforços dos italianos não resultariam em nada. Com toda a probabilidade, Chiara tinha sido retirada de solo italiano antes de as buscas terem iniciado. Naquele momento, podia estar em qualquer lugar. Podia estar a caminho do Leste, atravessando os antigos territórios do império soviético a que os russos se referiam como “o estrangeiro aqui perto”.

Ou talvez já estivesse na Rússia.

— Ou talvez nem sequer esteja na Rússia — acrescentou Gabriel. — Ivan controla uma das maiores companhias de transporte marítimo e aéreo de mercadorias do mundo. Tem a capacidade necessária para esconder Chiara em qualquer parte da Terra; tem a capacidade necessária para a deslocar de um lado para o outro e fazer com que ela continue perpetuamente a deslocar-se. Isso significava que Ivan tinha uma vantagem desleal. Mas eles também possuíam margem de manobra. Ivan não tinha capturado Chiara simplesmente para a matar. Sem dúvida que queria mais alguma coisa. E isso dava-lhes tempo e espaço para preparar as suas ações. Não muito tempo, realçou Gabriel. E muito pouco espaço. Iriam começar por tentar encontrar o homem que Ivan tinha utilizado como o seu instrumento de vingança. Por enquanto, não passava de uns quantos traços desenhados a carvão numa tela que, fora isso, estava em branco. Mas eles iriam completar o desenho. Aquele homem não se materializara a partir do nada. Tinha um no me e um passado. Tinha uma família. Vivia. Existia. Tudo nele sugeria que era um antigo agente do KGB, um homem que se especializara em encontrar pessoas que não queriam ser encontra das. Um homem que conseguia fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar vestígio. Um homem que agora trabalhava para russos abastados com Ivan Kharkov.

Um homem assim não existia num vácuo. As pessoas tinham de ter conhecimento dele para poderem contratar os seus serviços e eles iriam encontrá-lo. E iriam dar início à sua busca na cidade onde tudo tinha começado: na cidade russa por vezes conhecida como Londres.

CAPÍTULO 38

Embora Gabriel não tivesse como saber, tinha razão em relação a, pelo menos, uma coisa. Chiara não permanecera por muito tempo em solo italiano. Na verdade, poucas horas depois de ter sido raptada, fora levada para leste, atravessando o país em direção a uma aldeia de pescadores, na região conhecida como Le Marche. Quando lá chegou, foi colocada a bordo de uma traineira e levada para alto-mar, para aquilo que parecia ser uma noite de trabalho no Adriático. As 2h15, enquanto os agentes da Polizia di Stato vigiavam os postos fronteiriços da Itália, foi transferida para um iate a motor chamado Anastasia. Ao romper do dia, o iate tinha regressado a um porto sonolento ao longo da costa do Montenegro, a antiga república jugoslava recém-independente que acolhia agora milhares de expatriados russos, além de ser uma importante base de operações para a máfia russa. Todavia, também não iria ficar muito tempo nesse país. A meio da manhã, no momento em que o avião que trazia Gabriel aterrava em Ben-Gurion, era transportada para dentro de um avião de carga, num campo de aviação à saída da capital montenegrina. De acordo com os documentos a bordo, o avião pertencia a uma companhia de transporte de mercadorias sediada nas Bahamas e chamada Luko Tranz. O qui os documentos não diziam era que a Luko Tranz era na verdade uma empresa de fachada controlada por, nem mais nem menos Ivan Kharkov. Não que isso tivesse importado aos agentes das alfândegas montenegrinas. O suborno que tinham recebido para não inspecionarem o avião ou o que ele levava era mais do que o triplo do salário mensal que o governo lhes pagava.

Mas Chiara não tinha conhecimento de nada disso. Com efeito, sua última memória nítida era o pesadelo no portão da Villa dei Flori. Estava escuro quando lá chegaram. Exausta da operação em Como, Chiara tinha passado a longa viagem de carro dormindo e acordando intermitentemente, tendo despertado no momento em que Lior reduzia para parar junto ao portão de segurança. Para abrir, era necessário um código de seis dígitos. Lior estava teclando quando os homens de capuzes pretos surgiram do meio das árvores. Suas armas distribuíram morte com pouco mais do que um sussurro. Motti tinha sido atingido primeiro, Lior depois. Chiara tentava puxar a Beretta quando recebeu uma pancada na cabeça, suficiente para ficar fora de combate. A seguir, sentiu uma picada na coxa direita, uma injeção de sedativo que deixou sua cabeça girando e transformou seus membros num peso morto. A última coisa de que se recordava era do rosto de uma mulher olhando para ela enquanto estava deitada. "Porte-se bem e talvez deixemos que viva", disse a mulher num inglês com sotaque russo. Então o rosto da mulher se desvaneceu e Chiara perdeu os sentidos.

Agora, estava à deriva num mundo que era parte sonho, parte recordação. Durante horas, vagueou perdida pelas ruas da sua Veneza natal, enquanto as águas das cheias da acqua alta* rodopiavam à sua volta, ao nível dos joelhos. Numa igreja em Cannaregio, encontrou Gabriel sentado numa das plataformas que utilizava no seu trabalho, a conversar em voz baixa com São Cristóvão e São Jerônimo. Levou-o para uma casa no canal, perto do velho gueto judaico, e fizeram amor em lençóis encharcados de sangue, enquanto Leah, a mulher dele, os observava nas sombras, sentada na sua cadeira de rodas. Um desfile de imagens passou-lhe à frente, algumas retratadas de forma aterrorizadora e outras reproduzidas com precisão. Reviveu o dia em que Gabriel lhe disse que nunca poderia casar com ela; e o dia, quando ainda não tinham passado dois anos desde esse momento, em que ele lhe preparou um casamento-surpresa no terraço de Shamron, com vista para o mar da Galileia. Atravessou com Gabriel o campo da morte de Treblinka e ajoelhou-se junto ao seu corpo despedaçado, num pasto inglês encharcado, suplicando-lhe que não morresse.

 

* Maré alta. (N. do T.)

 

Por fim, viu Gabriel num jardim na Úmbria, rodeado por paredes de pedra etrusca. Estava a brincar com uma criança —não a criança que ele tinha perdido em Viena, mas a criança que Chiara lhe tinha dado. A criança que crescia agora dentro dela. Fora tola em mentir a Gabriel. Se ao menos lhe tivesse contado a verdade, ele nunca teria ido para Londres cumprir a promessa que fizera a Grigori Bulganov. E Chiara não se encontraria prisioneira de uma mulher russa.

Uma mulher que agora se debruçava sobre ela, De seringa na mão.

Tinha uma pele branca como o leite e olhos de um azul translúcido, e parecia estar com dificuldades em manter o equilíbrio. E isto não era nem um sonho nem uma alucinação. Naquele momento, Chiara e a mulher estavam presas numa súbita tempestade, no meio do Adriático. Mas Chiara não o sabia, claro. Apenas sabia que a mulher por pouco não tinha caído por cima dela enquanto lhe dava uma injeção de sedativo, espetando a agulha com bastante mais força do que era necessário. Perdendo de novo os sentidos, Chiara regressou uma vez mais ao jardim na Úmbria. Gabriel estava a despedir-se da criança, que depois se afastou em direção a um campo de girassóis e desapareceu.

Chiara acordou novamente durante a travessia, desta vez com o zumbido de um avião em pleno voo e o fedor do seu próprio vômito. A mulher estava de novo debruçada sobre ela, com mais uma seringa na mão. Chiara prometeu portar-se bem, mas a mulher abanou a cabeça e espetou-lhe a agulha. Quando os efeitos da droga se fizeram sentir, Chiara deu por si a percorrer o campo de girassóis freneticamente, à procura da criança. Foi então que a noite caiu como uma cortina e ela começou a chorar histericamente, sem ninguém para a consolar.

Quando voltou a recuperar a consciência, foi com uma sensação de frio intenso. Por um momento, pensou que fosse mais uma alucinação. Depois, apercebeu-se de que estava em pé e, de alguma maneira, a caminhar no meio da neve. Tinha as mãos algemadas e presas ao corpo com fita de nylon, e os tornozelos agrilhoados. As correntes dos grilhões faziam com que a sua passada se limitasse a pouco mais do que um curto arrastar de pés. Os dois homens que lhe seguravam os braços pareciam não se importar. Pareciam ter todo o tempo do mundo. Tal como a mulher da pele branca como o leite.

Ela seguia alguns passos à frente, em direção a um chalé rodeado por bétulas. À porta, estavam estacionados dois grandes Mercedes. A avaliar pelo seu aspeto discreto, tinham revestimento de aço e janelas à prova de bala. Encostado ao capô de um deles, estava um homem: casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com o canhão de um tanque. Chiara nunca o conhecera pessoalmente, mas já tinha visto aquela cara muitas vezes em fotografias de vigilância. O seu after-shave intenso pairava pelo ar quebradiço como uma neblina invisível. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo sorriu-lhe sedutoramente e tocou-lhe na cara. Chiara recuou, instantaneamente repugnada. A uma ordem do diabo, os dois homens levaram-na para dentro do chalé e fizeram-na descer um estreito lanço de escadas de madeira. Lá em baixo, havia uma Pesada porta de metal, com um ferrolho grosso e horizontal. atrás dela, ficava uma sala pequena com chão de betão e paredes caiadas. Obrigaram-na a entrar e fecharam a porta com toda a força. Chiara ficou ali parada, sem se mexer, a chorar baixinho e a tremer devido ao frio insuportável. Passado um momento, quando os seus olhos já se tinham ajustado à escuridão, apercebeu-se de que não se encontrava sozinha. Apoiado a um canto, com as mãos e os pés amarrados, estava um homem. Apesar da fraca luz, Chiara conseguia ver que ele já não fazia a barba há muitos dias. E também conseguia ver que tinha sido espancado selvagemente.

— Lamento muito vê-la — disse ele em voz baixa. — Deve ser a mulher de Gabriel.

— E quem é você?

— Meu nome é Grigori Bulganov. Não diga nem mais uma palavra. Ivan está ouvindo.

 


CAPÍTULO 39

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

O Escritório orgulhava-se da sua capacidade para responder rapidamente em tempos de crise, mas até os veteranos dos serviços, endurecidos pelas batalhas já travadas, abanariam mais tarde a cabeça de espanto perante a velocidade com que a equipe de Gabriel se lançou em ação. Os seus membros atazanaram os analistas da Divisão de Investigação para que voltassem a dar uma olhada aos arquivos e insistiram com os agentes de recolha da Divisão de Recolhas para que apertassem com as suas fontes, de modo a conseguirem obter qualquer pontinha de informação. Deixaram a Divisão das Finanças duzentos e cinquenta mil euros mais pobre e alertaram a Divisão dos Trabalhos Domésticos para o fato de irem precisar de alojamento seguro com pouco ou sem nenhum aviso prévio. E, por fim, deixaram a postos pela Europa material eletrônico e armamento suficientes para começar uma pequena guerra.

Mas na verdade era essa a sua intenção.

Felizmente para Gabriel, não iria para a guerra sozinho. Possuía dois poderosos aliados, com grande influência e alcance global, um em Washington e o outro em Londres. A Adrian Carter, pediu de empréstimo um ativo, uma agente que tinha sido enviada recentemente à Europa a título temporário. A Graham Seymour, pediu uma incursão noturna. O alvo seria um homem que se gabava de saber mais sobre o que se passava na Rússia do que o próprio presidente russo. Seymour se encarregaria de todo o trabalho de preparação e da logística. Olga Sukhova seria a espada que daria a estocada final.

Era um trabalho há muito reservado para Shamron. Agora, não tinha outra tarefa a não ser percorrer os pisos de um lado para o outro, preocupado, ou incomodar toda a gente de um modo geral. Punha-se a olhar por cima dos ombros das pessoas, sussurrava-lhes aos ouvidos e, em várias ocasiões, puxava Uzi e Gabriel para o meio do corredor e apontava-lhes repetidamente o seu dedo indicador curto e grosso. E, uma e outra vez, ouvia a mesma resposta. Sim, Ari, nós sabemos. Já tínhamos pensado nisso. E, verdade seja dita, já tinham mesmo pensado nisso. Porque Shamron os tinha treinado. Porque eram os melhores dos melhores. Porque era como se fossem filhos dele. E porque agora eram capazes de fazer aquele trabalho sem precisar da ajuda de um velho.

E, por isso, ele passou grande parte daquele dia terrível a deambular pelos pisos superiores da sua adorado Boulevard King Saul, espreitando à entrada das salas, renovando velhas amizades, fazendo as pazes com antigos rivais. Havia um ambiente depressivo a pairar sobre aquele lugar; era algo que fazia com que Shamron se recordasse de Viena mais do que gostaria. Impaciente, pediu autorização a Amos para ir até o Aeroporto Ben-Gurion e receber os corpos de Lior e Motti. Tinham regressado ao estado de Israel em segredo, exatamente como o tinham servido, e apenas Shamron e os pais de ambos estavam presentes. Shamron ofereceu-lhes um ombro famoso para chorarem, mas não lhes pôde dizer nada sobre a forma como os filhos tinham morrido. A experiência deixou-o profundamente abalado, pelo que voltou para o Boulevard King Saul sentindo-se anormalmente deprimido. O seu estado de espírito melhorou um pouco quando entrou na Sala 456C e viu a equipe de Gabriel a trabalhar arduamente. No entanto, Gabriel não estava lá. Estava a caminho de Jerusalém, cidade de crentes.

Caía uma neve persistente quando Gabriel estacionou no caminho de acesso para o Hospital Psiquiátrico do Monte Herzl. Um letreiro na entrada indicava que a hora das visitas já terminara; Gabriel ignorou-o e entrou. Nos termos de um acordo com a administração do hospital, tinha autorização para aparecer sempre que quisesse. Na verdade, raramente lá ia quando as famílias e os amigos dos outros doentes lá se encontravam. Israel, um país com pouco mais do que cinco milhões de habitantes, era em muitos sentidos uma família alargada. Até mesmo para Gabriel, que tratava dos seus assuntos de uma forma anônima, era difícil ir a algum lado sem dar de caras com um conhecido de Bezalel ou do exército.

O médico de Leah estava à espera no hall. Uma figura rotunda, com uma barba rabínica, pôs Gabriel ao corrente sobre o estado de Leah enquanto percorriam, lado a lado, um corredor sossegado. Gabriel não ficou surpreendido por saber que este pouco se tinha alterado desde a sua última visita. Leah sofria de uma combinação especialmente aguda de depressão psicótica e síndroma de estresse pós-traumático. O atentado à bomba de Viena passava incessantemente na sua mente, como um vídeo de projeção contínua. De tempos a tempos, tinha instantes de lucidez, mas na maior parte do tempo vivia apenas no passado, presa a um corpo que já não funcionava, assolada pela culpa de não ter sido capaz de salvar a vida do filho.

— Ela reconhece alguém?

— Só Gilah Shamron. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, mais.

— Onde ela está agora?

— Na sala de atividades recreativas. Nós a fechamos para que possa ver Leah em particular.

Estava sentada numa cadeira de rodas junto à janela, de olhar perdido na direção do jardim, onde a neve se acumulava nos ramos das oliveiras. Tinha o cabelo, que em tempos fora comprido e preto, Curto e grisalho; e as mãos, contorcidas e cheias de cicatrizes devido ao fogo da explosão, cruzadas no colo. Quando Gabriel se sentou ao seu lado, pareceu não reparar. Depois, a cabeça dela virou-se lentamente e uma faísca de reconhecimento surgiu-lhe nos olhos.

— É você mesmo, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Disseram que você podia aparecer. Estava com medo que tivesses esquecido de mim.

— Não, Leah. Nunca a esqueci. Nem por um só minuto.

— Esteve chorando, Gabriel. Consigo ver isso nos seus olhos. Há alguma coisa?

— Não, Leah, está tudo bem.

Ela voltou a contemplar o jardim.

— Olha para a neve, Gabriel. Não é...

Deixou o pensamento por acabar. Uma expressão de horror passou rapidamente por seus olhos; Gabriel sabia que ela tinha voltado a Viena. Pegou suas mãos destroçadas e falou. Do quadro que estava restaurando. Da villa onde tinha vivido na Itália nos últimos tempos. De Gilah e Ari Shamron. De tudo, menos de Viena. De tudo, menos de Chiara. Por fim, ela olhou uma vez mais para ele. Estava de volta.

— És mesmo você, Gabriel?

— Sim, Leah. Sou eu.

— Estava com medo de que...

— Nunca, Leah.

— Está com um ar cansado.

— Tenho trabalhado muito.

— E está magro demais. Quer comer alguma coisa?

— Não é preciso, Leah.

— Quanto tempo pode ficar, meu amor?

— Não muito.

— Como está sua mulher?

— Ela está bem, Leah.

— É bonita?

— É muito bonita.

— Você cuida bem dela?

Os olhos dele se encheram de lágrimas.

— Faço todo o possível.

Ela desviou o olhar. — Olha para a neve, Gabriel. Não é linda?

— Sim, Leah, é linda.

— A neve absolve Viena dos seus pecados. A neve cai em Viena enquanto os mísseis chovem em Tel Aviv. — Voltou a olhar para ele. — Não esqueça de ver se o cinto do Dani está bem preso. As ruas estão escorregadias.

— Ele está ótimo, Leah.

— Me dá um beijo.

Gabriel beijou o rosto cheio de cicatrizes.

Leah sussurrou: — Um último beijo.

 

 

Em Tel Aviv e seus subúrbios, há uma constelação de apartamentos seguros do Escritório conhecida como locais de salto. São os lugares onde, por doutrina e tradição, os agentes passam a última noite antes de partirem de Israel para missões no estrangeiro. Mas, naquela noite, nem Gabriel nem qualquer membro da sua equipe se deram ao trabalho de ir para o local que lhes tinha sido designado. Não havia tempo. Na verdade, tinham passado a noite inteira a trabalhar e chegado tão tarde a Ben-Gurion, que os funcionários da El Al tiveram de fazê-los passar apressadamente pelo suplício habitual dos procedimentos de segurança. E, no que era outro corte com a tradição, toda a equipe viajou a bordo do mesmo avião: o voo 315 da El Al para Londres. Mas Gabriel era o único que tinha um papel a desempenhar naquela noite; separou-se dos outros em Heathrow e pôs-se a caminho de Cheyne Walk, em Chelsea. Passavam poucos minutos das seis quando virou a esquina em direção a Cheyne Gardens e bateu com o nó dos dedos, de uma forma seca e por duas vezes, à porta traseira de uma van preta sem matrícula. Graham Seymour abriu-a e fez-lhe sinal para entrar. O alvo estava no seu lugar. A espada estava a postos. A incursão noturna estava prestes a começar.


CAPÍTULO 40

CHELSEA, LONDRES

 

 

Dizia-se que Viktor Orlov dividia as pessoas em duas categorias: as que estavam dispostas a ser usadas e as que eram demasiado estúpidas para perceber que estavam a ser usadas. E alguns teriam acrescentado uma terceira: as que estavam dispostas a deixar que Viktor lhes roubasse o dinheiro. Não fazia nenhum segredo do fato de ser um predador e um magnata sem escrúpulos. Na verdade, era com orgulho que vestia esses rótulos, tal como os seus fatos italianos de dez mil dólares e as camisas às riscas que eram a sua imagem de marca, feitas especialmente para si por um homem em Hong Kong. O colapso brutal do comunismo tinha proporcionado a Orlov a oportunidade de ganhar uma grande quantidade de dinheiro num curto espaço de tempo e ele aproveitara-a. Orlov raramente pedia desculpa por alguma coisa, e muito menos pela maneira como tinha enriquecido. “Se eu tivesse nascido inglês, o meu dinheiro talvez me tivesse surgido de uma forma limpa”, disse a um entrevistador britânico pouco tempo depois de se ter instalado em Londres. “Mas nasci russo. E fiz uma fortuna russa.” Abençoado com uma apetência natural para os números, Orlov trabalhava como físico no programa de armas nucleares soviético quando o império desabou por fim. Enquanto a maior parte dos colegas continuou a trabalhar sem receber o ordenado, Orlov decidiu abrir o seu próprio negócio e, passado pouco tempo, já tinha ganho uma pequena fortuna a importar computadores, eletrodomésticos e outros artigos vindos do Ocidente para o nascente mercado russo’ Mas a sua verdadeira riqueza chegaria mais tarde, após ter adquirido 223 a maior companhia de aço da Rússia e a Ruzoil, o gigante siberiano dos combustíveis. A revista Fortune declarou que Viktor Orlov era o homem mais rico da Rússia e um dos empresários mais influentes do mundo. Nada mau para um antigo físico ao serviço do governo, que em tempos tivera de partilhar um apartamento comum com duas outras famílias soviéticas.

No mundo competitivo do capitalismo russo dos magnatas sem escrúpulos, uma fortuna como a de Orlov podia ser uma coisa perigosa. Conquistada rapidamente, podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. E podia fazer de quem a detinha e da sua família alvos de inveja e, por vezes, violência. Orlov sobrevivera a três tentativas de assassinato e, segundo os rumores, teria ordenado a morte de vários homens em retaliação. Mas a maior ameaça à sua fortuna viria não daqueles que o queriam matar, mas sim do Kremlin. O atual presidente russo achava que homens como Orlov tinham roubado os ativos mais valiosos do país e a sua intenção era roubá-los de volta. Pouco depois de ter tomado posse, chamou Orlov ao Kremlin e exigiu-lhe duas coisas: a sua companhia de aço e a Ruzoil. “E não meta o nariz na política”, acrescentou. “Caso contrário, arranco-lo.” Orlov aceitou abrir mão dos seus interesses no setor do aço mas não da sua companhia energética. O presidente não achou graça. Ordenou imediatamente aos delegados do Ministério Público que abrissem uma investigação para apurar a existência de fraudes e subornos e, no intervalo de uma semana, foi emitido um mandado de captura contra Orlov. Sensatamente, Orlov fugiu para Londres. Alvo de um pedido de extradição por parte da Rússia, continuava a manter o controle nominal das suas ações na Ruzoil, que estavam agora avaliadas em doze mil milhões de dólares, embora, em termos legais, permanecessem congeladas, fora do alcance tanto de Orlov, como do homem que as queria de volta, o presidente russo. Durante os primeiros tempos do seu exílio, a imprensa agarrava-se a tudo o que ele dizia. Na qualidade de fonte segura de informação incendiária sobre as trapaças perpetradas pelo Kremlin, conseguia encher uma sala com jornalistas em apenas uma hora. Porém, a imprensa britânica cansara-se de Viktor, do mesmo modo que se 224 fartara dos russos de uma maneira geral. Já poucos se interessavam pelo que ele tinha a dizer, e menos ainda tinham o tempo ou a paciência para aguentar uma das suas longas diatribes contra o arquirrival, o presidente russo. Por isso, foi sem surpresa que Gabriel e a sua equipe receberam a notícia de que Orlov aceitara prontamente um pedido de entrevista por parte de uma tal Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente empenhada da revista Moskovskaya Gazeta, agora também ela uma exilada. Preocupada com a sua própria segurança, pediu para se encontrar com Orlov em casa dele e à noite. Orlov, solteiro e um eterno mulherengo, sugeriu que ela viesse às sete. “E, por favor, venha sozinha”, acrescentou, antes de desligar o telefone.

Ela chegou de fato às sete, embora estivesse muito longe de vir sozinha. Uma empregada guardou seu casaco e a acompanhou ao escritório no segundo andar, onde Orlov a cumprimentou em russo, exuberantemente. Gabriel e Graham Seymour, de fones colocados, ouviram a tradução simultânea.

— É um prazer tão grande vê-la outra vez após todos esses anos, Olga. Posso oferecer-lhe um pouco de chá ou qualquer coisa mais forte?

CAPÍTULO 41

CHELSEA, LONDRES

 

 

— Um chá seria ótimo, obrigado.

Orlov não pôde esconder a desilusão. Não havia dúvida de que tinha esperado impressionar Olga com uma garrafa ou duas de Château Petrus que bebia como se fosse água da torneira. Pediu à empregada que lhes trouxesse chá e aperitivos e depois pôs-se a observar Olga com óbvia satisfação, enquanto ela fingia que admirava o seu amplo escritório. Segundo os rumores, Orlov tinha ficado tão impressionado com a sua primeira visita ao Palácio de Buckingham, que ordenara ao seu exército de decoradores de interiores que refizesse a atmosfera do palácio em Cheyne Walk. Segundo as informações, a sala, três vezes maior do que o antigo apartamento de Olga em Moscou, fora inspirada no gabinete privado da rainha. Enquanto suportava uma visita entediante à casa, Olga não pôde deixar de refletir sobre as diferenças que existiam entre a sua vida e a de Viktor. Libertos do jugo do comunismo, Viktor tinha ido a procura de dinheiro, ao passo que Olga se decidira a descobrir a verdade. Tinha passado a maior parte da carreira a investigar os movimentos de homens como Viktor Orlov e acreditava que esses homens carregavam grande parte da culpa pela morte da liberdade e da democracia no seu país. A avidez de Orlov tinha ajudado a criar um Conjunto único de circunstâncias que permitira ao Kremlin fazer o País regressar ao autoritarismo do passado. Na verdade, se não fosse por causa de homens como Viktor Orlov, o presidente russo Possivelmente ainda continuaria a ser um funcionário de pouca importância no executivo municipal de São Petersburgo. Em vez disso, governava o país mais vasto do mundo com um punho de ferro, e era considerado um dos homens mais ricos da Europa. Mais rico até, do que o próprio Orlov.

O chá chegou. Sentaram-se cada um na sua ponta de um comprido sofá de brocado, de frente para uma janela com cortinados sumptuosos que iam do chão até o teto. Talvez fosse possível ver o Chelsea Embankment e o Tamisa se as cortinas não estivessem fechadas, como medida de precaução contra atiradores furtivos — o que era irônico, já que Orlov tinha gasto milhões de libras para adquirir uma das melhores vistas em Londres. Usava terno azul-escuro e camisa listrada azul. Tinha um braço estendido nas costas do sofá, virado para Olga e deixando ver um relógio de pulso em ouro e diamantes, de valor incalculável. O outro estava pousado no braço do sofá. Fazia girar os óculos sem parar. Seus vigias de longa data teriam reconhecido o tique. Orlov estava perpetuamente em movimento, mesmo quando sentado.

— Por favor, Olga, me lembre qual foi a última vez que nos encontramos.

Os vigias de Orlov também reconheciam isso. Viktor não era o tipo de pessoa que soltasse um “Eu nunca me esqueço de uma cara”. Na verdade, tinha por hábito fazer de conta que esquecia das pessoas. Era uma tática de negociação que revelava aos adversários que eles não ficavam na memória; que eram insignificantes; que não tinham valor nem importância. Olga pouco se importava com o que Orlov pensava dela e, por isso, respondeu honestamente. Tinham-se encontrado uma vez em Moscou, pouco antes de ele fugir para Londres.

— Ah, sim, agora lembro! Fiquei muito zangado com você por não ter se interessado por algumas informações valiosas que eu tinha.

— Se eu tivesse escrito a história que queria que escrevesse, teria sido morta.

— A destemida Olga Sukhova estava com medo? Isso nunca a travou no passado. Pelo que ouço dizer, tem sorte em estar viva. O Kremlin nunca disse o que aconteceu naquela escadaria no último verão, mas eu sei a verdade. Estava investigando Ivan Kharkov e Ivan tentou silenciá-la. Permanentemente.

Olga não deu resposta.

— Então, não nega que foi isso que aconteceu?

— As suas fontes sempre foram irrepreensíveis, Viktor.

Ele respondeu ao elogio rodopiando os óculos. — É uma pena que só agora tenhamos tido oportunidade de voltar a nos encontrar. Como pode calcular, segui seu caso com grande interesse. Tentei arranjar uma maneira de entrar em contato com você depois de sua deserção se tornar pública, mas você se revelou difícil de localizar. Pedi aos amigos no serviço secreto britânico que lhe passassem uma mensagem, mas eles recusaram.

— E por que não perguntou simplesmente a Grigori onde eu estava?

Os óculos ficaram quietos por alguns segundos. — Perguntei, mas ele não quis me dizer. Sei que os dois são amigos. Suponho que ele não queira partilhar você.

Olga tomou nota do tempo verbal: Sei que os dois são amigos... Ele não parecia saber que Grigori estava ausente — a não ser que estivesse mentindo, o que era uma clara possibilidade. Viktor Orlov era geneticamente incapaz de dizer a verdade.

— O velho Viktor não se teria dado ao trabalho de perguntar a Grigori onde eu estava escondida. Teria se limitado a mandar segui-lo.

— Não pense que isso não me passou pela cabeça.

— Mas nunca o fez?

— Seguir Grigori? —Abanou a cabeça. —Os ingleses dão liberdade de ação a meus guarda-costas, mas nunca tolerariam operações de vigilância privada. Não esqueça, continuo cidadão russo. E fui alvo de um pedido formal de extradição. Tento não fazer nada que ponha meus anfitriões ingleses zangados demais.

— Além de criticar o Kremlin sempre que dá vontade.

— Eles não podem esperar que eu permaneça mudo. Quando vejo injustiça, sinto-me compelido a falar. É a minha natureza. É por isso que eu e Grigori nos damos tão bem. – Interrompeu-se e depois perguntou: — Como ele está, por falar nisso?

— Grigori? — Ela deu um gole no chá e disse que já não falava com ele há semanas. — E você?

— Por acaso, pedi a um assistente que telefonasse para ele no outro dia. Nunca tivemos resposta. Presumo que esteja muito ocupado com o livro. — Lançou a Olga um olhar conspiratório. — Alguns de meus homens têm trabalhado com Grigori em segredo. Como pode calcular, desejo que este livro seja um grande êxito.

— Por que não estou surpresa, Viktor?

— É a minha natureza. Gosto de ajudar os outros. E é por isso que fico tão contente que esteja aqui. Fale-me da história em que está trabalhando. Diga em que posso ser útil.

— É uma história sobre um desertor. Um desertor que desapareceu sem deixar rastro.

— E tem nome?

— Grigori Nikolaevich Bulganov.

Dentro da van de vigilância, Seymour tirou os fones e olhou para Gabriel.

— Muito bem jogado.

— Ela é boa, Graham. Muito boa.

— Posso ficar com ela quando acabar?

Gabriel levou um dedo aos lábios. Viktor Orlov estava outra vez falando. Ouviram uma rajada de palavras em russo, seguida pela voz do tradutor.

— Conte o que sabe, Olga. Conte tudo.

CAPÍTULO 42

CHELSEA, LONDRES

 

 

De repente, Orlov mexia-se em vários lugares ao mesmo ’tempo. Os óculos rodopiavam, os dedos da mão batucavam nas costas do sofá de brocado e o olho esquerdo tremia-lhe de ansiedade. Nos seus tempos de criança, esse tique nervoso fizera dele um alvo de provocações e intimidações impiedosas. Tinha-o feito ferver de ódio, e esse ódio compelira-o a ser bem-sucedido na vida. Viktor Orlov queria vencer toda a gente. E era tudo por causa do tique nervoso no seu olho esquerdo.

— Tem certeza de que ele está desaparecido?

— Tenho.

— Quando desapareceu?

— No dia dez de janeiro. Às seis e doze da tarde. A caminho do xadrez.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova. Eu sei tudo.

— E os ingleses têm conhecimento?

— Claro.

— E o que eles acham que aconteceu?

— Acham que ele voltou a desertar. Acham que está neste momento outra vez em Lubyanka, contando aos superiores todas as informações que recolheu sobre o funcionamento de sua organização enquanto trabalhou para você.

O olho agora piscava involuntariamente como o obturador de uma máquina fotográfica automática de alta velocidade.

— E por que não me disseram nada?

— Não acho que tenha sido sua primeira preocupação. Mas não se preocupe. O que eles dizem de Grigori não é verdade. Ele não voltou a desertar. Foi sequestrado.

Ela deixou que as palavras produzissem efeito e, a seguir acrescentou: — Por Ivan Kharkov.

— Como sabe disso?

— Sou Olga Sukhova.

— E você sabe de tudo.

— Nem tudo. Mas talvez possa me ajudar a encaixar algumas peças que faltam. Não sei a identidade do homem que Ivan contratou para o sequestro. Tudo o que sei é que esse homem é muito bom. É um profissional. — Fez uma pausa. — O tipo de homem que você costumava contratar em Moscou... nos velhos dias difíceis, quando tinha um problema que se recusava simplesmente a desaparecer.

— Tenha cuidado, senhora Sukhova.

— Eu tenho sempre cuidado. Nunca precisei publicar um só pedido de desculpas nos anos em que trabalhei para a Gazeta. Nem um só.

— Isso porque nunca escreveu matéria sobre mim.

— Se tivesse escrito, teria sido à prova de desmentidos e completamente rigorosa.

— Se assim o diz.

— Sei muita coisa sobre a forma como ganhou seu dinheiro, Viktor. Fiz-lhe um favor ao nunca ter publicado essas informações na Gazeta. E agora você vai fazer um a mim. Vai me ajudar a encontrar o homem que sequestrou meu amigo.

— E se não o fizer?

— Despejo tudo o que tenho nos meus blocos de notas e o transformo no menos lisonjeiro artigo bombástico que já escreveram sobre você.

— E eu a levo aos tribunais.

— Tribunais? Acha mesmo que eu tenho medo de um tribunal britânico?

Enfiou a mão na carteira e tirou uma foto: um homem parado no hall de chegadas do Aeroporto de Heathrow.

Orlov pôs os óculos. O olho tremeu nervosamente. Apertou um botão na mesinha de apoio e a garçonete se materializou.

— Traga-me uma garrafa de Petrus. Já.

Viktor tentou escapar ao laço da forca que o apertava, claro, mas Olga não lhe deu trégua. Disse calmamente uns quantos nomes, uma data e os detalhes de uma certa transação envolvendo uma empresa que ele controlara apenas o suficiente para o deixar perceber que as ameaças dela não eram vãs. Viktor bebeu seu primeiro copo de Petrus rapidamente e serviu-se de outro.

Olga nunca o tinha visto mostrar medo, mas naquele momento ele estava claramente assustado. Sendo uma repórter experimentada, reconheceu as manifestações desse medo no comportamento que se seguiu: as exclamações de descrença, as tentativas de enganá-la, o esforço para atirar as culpas para cima de outros. Viktor tinha tendência para culpar a Rússia de todos os seus problemas. Como tal, não foi nenhuma surpresa para Olga quando ele fez isso naquele momento.

— Tem de se recordar de como eram as coisas nos anos noventa. Tentamos estalar os dedos e transformar a Rússia num país capitalista normal de um dia para o outro. Não era possível. Eram ideias utópicas, tal como o comunismo. Eu recordo-me, Viktor. Também lá estava.

Então, com certeza que se lembra de como eram as coisas Para as pessoas como eu, que conseguiram fazer algum dinheiro. Toda a gente queria uma parte. As nossas vidas estavam sob perigo constante, tal como as vidas das nossas famílias. Havia a máfia, claro, mas às vezes os nossos concorrentes eram tão perigosos quanto ela’ Toda a gente contratava exércitos privados para se proteger e Para fazer guerra aos seus rivais. Era o Leste Selvagem.

Orlov levantou o copo de vinho em direção à luz. Espesso e intenso, brilhava como sangue acabado de derramar. — Não havia falta de soldados. Já ninguém queria trabalhar para o governo, não quando há dinheiro alto a ganhar no setor privado. Os agentes dos serviços de segurança estavam a abandonar os seus cargos em catadupa. E alguns nem se davam ao trabalho de se despedirem. Cumpriam simplesmente uma ou duas horas no escritório e no resto do tempo faziam biscates.

Olga tinha escrito em tempos um artigo bombástico a revelar essa prática — uma história sobre dois agentes do FSB que investigavam a máfia russa durante o dia e matavam ao serviço dela à noite. Os homens do FSB tinham negado o artigo veementemente e, a seguir, ameaçaram matá-la.

— Alguns desses homens não possuíam grandes talentos — continuou Orlov. — Conseguiam dar conta de trabalhos simples, assassinatos de rua e coisas do gênero. Mas havia outros que eram profissionais altamente treinados. — Examinou a fotografia com atenção. — Este homem enquadrava-se na segunda categoria.

— Já esteve com ele?

Ele hesitou por uns instantes e depois acenou afirmativamente com a cabeça.

— Foi em Moscou, numa outra vida. Não vou falar da natureza ou das circunstâncias desse encontro.

— Eu não quero saber do encontro, Viktor. Só quero saber do homem que está nessa fotografia.

Ele bebeu um pouco mais de vinho e cedeu.

— O nome de código dele no KGB era Camarada Zhirlov. Especialista em assassinatos, sequestros e em encontrar homens que não queriam ser encontrados. E também se dizia que era muito bom com venenos e toxinas. Deu bom uso a esses talentos quando passou a trabalhar por conta própria. Fazia o tipo de trabalho que outros eram recusavam por serem perigosos demais. Isso o tornou rico. Trabalhou na Rússia alguns anos e depois alargou os horizontes.

— E para onde ele foi?

— Para a Europa Ocidental. Fala várias línguas e tem muitos passaportes dos tempos de KGB.

— Onde ele mora?

— Quem sabe? E duvido que até mesmo a famosa Olga Sukhova o encontre. Na verdade, recomendo fortemente que esqueça a ideia de sequer tentar. A única coisa que vai conseguir é que a matem.

— É evidente que ele continua a vender seus serviços no mercado livre.

— Foi isso que ouvi dizer. E também ouvi dizer que os preços dele subiram exponencialmente. Agora, só homens como Ivan Kharkov conseguem contratá-lo.

— E como você, Viktor.

— Eu nunca me envolvi nessas coisas.

— Ninguém está fazendo essa acusação. Mas suponhamos que uma pessoa precisasse dos serviços de um homem assim. Como entraria em contato com ele? Aonde iria?

Viktor se calou. Era russo — e, como todos os russos, suspeitava de que sempre houvesse alguém na escuta. E, no caso, tinha razão. Por um momento, os dois homens sentados na parte de trás da van do M15 temeram que a sua fonte não se mostrasse disposta a dar o último passo. E foi então que ouviram uma palavra, que não necessitava de tradução.

— Genebra.

— Havia lá um homem— , disse Orlov. — Um assessor de russos ricos para assuntos relacionados com segurança. Um agente. Um intermediário. Acho que se chama Chernov. Sim, tenho certeza.

— Chernov.

— E tem primeiro nome?

— Pode ser Vladimir.

— Por acaso, sabe onde fica o escritório dele?

— Logo na saída da Rue du Mont-Blanc. Acho que tenho o endereço.

— E não teria também um número de telefone?

— Por acaso, posso até ter o celular dele.

Em circunstâncias normais, Gabriel nunca se teria dado ao trabalho de anotar o nome e o número do celular. Mas naquele momento, com a mulher nas mãos de Ivan, não confiava em sua memória habitualmente irrepreensível. Quando acabou de anotar as informações, Olga atravessava o portão de ferro da casa de Viktor. Um táxi foi apanhá-la e levou-a até a esquina que dava para Cheyne Gardens. Gabriel entrou no táxi, sentando-se ao lado dela, e seguiram para o Aeroporto London City, onde um jato Gulfstream G500 providenciado pelos americanos os esperava. O resto da equipe já estava a bordo, na companhia da sua mais recente aquisição, Sarah Bancroft. Mais tarde, o registro da torre de controle indicaria que a partida do avião se dera às 22h18. Por razões nunca explicadas, o seu destino não ficou registrado.

CAPÍTULO 43

BOULEVARD KING SAUL, TEL AVIV

 

 

Podia não parecer muita coisa — um nome, a morada de um escritório, um par de números de telefone —, mas, nas mãos de um serviço de espionagem como o Escritório, era o suficiente para pôr um homem completamente a nu. Shamron passou a informação aos sabujos da Divisão de Investigação e enviou-a também para o outro lado do Atlântico, para Langley. A seguir, com Rami ao seu lado, foi para casa, para Tiberíades.

Já passava da meia-noite quando chegou. Despiu-se na escuridão e enfiou-se na cama sem fazer barulho, de forma a não acordar Gilah. Não se deu ao trabalho de fechar os olhos. O sono era algo que raramente surgia e nunca em circunstâncias como aquelas. Em vez de tentar adormecer, reviveu cada minuto dos dois dias anteriores e explorou as regiões mais remotos do seu passado. Interrogou-se sobre quando lhe seria dada a oportunidade de fazer alguma coisa de valor, alguma coisa que não fosse incomodar toda a gente ou receber uma mensagem de Londres. E debateu-se com duas questões: onde estaria Ivan? E por que razão não teriam sido ainda contatados por ele? Por mais estranho que pareça, Shamron estava concentrado nesse preciso pensamento quando o telefone da mesa-de-cabeceira tocou, às 4h13. Sabia a hora exata porque, como era seu hábito, olhou de relance para o relógio de pulso antes de atender. Receando estar prestes a ser informado de mais uma morte, deixou o fone encostado ao ouvido durante um momento antes de resmungar o seu nome baixinho. A voz que respondeu foi-lhe instantaneamente familiar. Era a voz de um velho rival. A voz de um aliado ocasional. Queria dar uma palavrinha a Shamron em privado e saber se estaria disponível para uma viagem a Paris. Na verdade, disse a voz, seria sensato da parte de Shamron se arranjasse alguma maneira de apanhar o voo que saía de Ben-Gurion às nove da manhã. Sim, disse a voz, era urgente. Não, não podia esperar. Shamron desligou o telefone e acendeu o abajur da mesa-de-cabeceira. Gilah levantou-se e foi fazer café.

Ivan tinha escolhido o seu emissário com cuidado. Havia poucas pessoas que se encontrassem no ofício há mais tempo do que Ari Shamron, mas Sergei Korovin era uma delas. Depois de passar a década de 1950 na Europa de Leste, o KGB ensinou-o a falar árabe e enviou-o para o Médio Oriente para fazer das suas. Primeiro, foi para Bagdá, depois para Damasco, a seguir para Tripoli e, por fim, para o Cairo. Foi no tenso Verão de 1973 que os caminhos de Korovin e de Shamron se cruzaram pela primeira vez. A Operação Ira de Deus estava em plena execução na Europa, os terroristas do Setembro Negro andavam a matar israelenses onde quer que conseguissem encontrá-los, e apenas Shamron se encontrava convencido de que os egípcios estavam a preparar-se para a guerra. Tinha um espião no Cairo que o informava disso — um espião que logo a seguir foi preso pelo serviço secreto egípcios. Com a execução deste a apenas algumas horas de distância, Shamron fora ter com Korovin e tinha-lhe pedido para interceder. Após várias semanas de negociações, o espião de Shamron recebeu autorização para cambalear até as linhas israelenses, no Sinai. Tinha sido severamente espancado e torturado, mas estava vivo. Passado um mês, quando Israel se preparava para o Yom Kippur1, os egípcios organizaram um ataque-surpresa.

Em meados dos anos setenta, Sergei Korovin estava de volta a Moscou, subindo a pulso pelas fileiras do KGB. Promovido a general, foi colocado à frente do Escritório 18, que lidava com o mundo árabe, e mais tarde recebeu o comando da Diretoria R, que tratava do planejamento e análise de operações. Em 1984, assumiu o controle de toda a Primeira Direção Principal1, cargo que manteve até o KGB ser dissolvido por Boris Yeltsin. Se lhe tivesse sido dada essa oportunidade, Sergei Korovin teria provavelmente matado o presidente russo com as suas próprias mãos. Em vez disso, destruiu os seus arquivos mais sensíveis e entrou na reforma sossegadamente. Mas Shamron sabia melhor do que ninguém que isso era coisa que não existia, especialmente para os russos. Havia um ditado no seio da irmandade da espada e do escudo2: uma vez agente do KGB, para sempre agente do KGB. Só com a morte se estava verdadeiramente livre. E, por vezes, nem mesmo nessa altura. Shamron e Korovin tinham mantido contato ao longo dos anos. Tinham-se encontrado para trocar histórias, partilhar informações e fazer favores esporádicos um ao outro. Teria sido incorreto descrevê-los como amigos, sendo mais almas gémeas. Conheciam as regras do jogo e ambos professavam um cinismo saudável em relação aos homens que serviam. Korovin era também uma das poucas pessoas do mundo que não fazia objeções ao consumo de tabaco por parte de Shamron. E, tal com Shamron, tinha pouca paciência para assuntos triviais, como comida, moda ou até mesmo dinheiro. “É uma pena que o Sergei não tenha nascido israelense”, dissera uma vez Shamron a Gabriel. “Teria gostado de tê-lo do nosso lado.” Shamron sabia que a passagem do tempo podia ser dura para os homens russos. Tinham tendência a envelhecer num abrir e fechar de olhos jovens e viris num minuto, papel amarrotado no outro. Mas o homem que naquela tarde entrou no salão do Hôtel de Crillon pouco depois das três horas continuava a ser a figura alta e direita Com quem Shamron se cruzara pela primeira vez tantos anos atrás. Dois guarda-costas seguiam-no lentamente; outros dois tinham chegado uma hora antes e encontravam-se sentados não muito longe de Shamron. Estavam tomando chá; Shamron, água mineral. Tinha sido o próprio Rami a entregar, depois de ter dado instruções ao garçom para que não retirasse a tampa e ter pedido duas vezes copos limpos. Mesmo assim, Shamron ainda não lhe tocara. Trazia o seu fato escuro e a gravata prateada: Shamron, o homem dos negócios suspeitos e que sabia jogar bacará.

Tal como o israelense, Sergei Korovin podia discutir assuntos importantes em várias línguas diferentes. A maior parte dos encontros entre ambos tinha decorrido em alemão, e era em alemão que agora falavam. Korovin, depois de se instalar numa cadeira, abriu de imediato a cigarreira com o polegar. Shamron teve de lembrar que já não era permitido fumar em Paris. Korovin franziu o sobrolho.

— E ainda nos deixam beber vodca?

— Se pedirmos com jeitinho...

— Eu sou como você, Ari. Não peço nada.

Mandou vir vodca e, a seguir, olhou para Shamron.

— Foi reconfortante ouvir sua voz ontem à noite. Estava com medo de que você tivesse morrido. É o que mais custa quando se envelhece, a morte dos amigos.

— Não fazia ideia de que você tinha.

— Amigos? Um ou outro. — Fez um sorriso ligeiro. — Sempre jogou bem o jogo, Ari. Tinha muitos admiradores em Yasenevo. Estudamos suas operações e até aprendemos uma ou outra coisa.

Yasenevo era o antigo quartel-general da Primeira Direção, por vezes chamado Centro de Moscou. Agora, era o quartel-general do SVRY, o serviço secreto externo russo.

— Onde anda meu arquivo? — perguntou Shamron.

— Bem guardado no lugar dele. Por algum tempo, receei que toda a nossa roupa suja fosse tornada pública. Felizmente, o novo regime colocou um ponto final nisso. O nosso presidente compreende que quem controla a história controla o futuro. Ele louva as façanhas da União Soviética, ao mesmo tempo em que minimiza seus supostos crimes e abusos.

— Você aprova?

— Claro. A Rússia não tem nenhuma tradição democrática. Ter democracia na Rússia seria o equivalente a impor o islamismo em Israel. Vê aonde quero chegar, Ari?

— Penso que sim, Sergei.

O garçom trouxe a vodca com grande pompa e circunstância e retirou-se. Korovin bebeu-a sem hesitação.

— Bom, Ari, agora que estamos sozinhos...

— E estamos sozinhos, Sergei?

— Não há mais ninguém comigo a não ser meus seguranças.

Fez uma pausa. — E você, Ari?

Shamron olhou de soslaio para Rami, sentado perto da entrada do requintado salão, fingindo que lia o Herald Tribune.

— Só um?

— Acredite em mim, Sergei, um é tudo que preciso.

— Não é o que tenho ouvido. Contaram que dois rapazes foram mortos numa noite dessas e que os italianos tentam fazer a você o favor de manter tudo em silêncio. Mas não vai dar certo, aproveito para informar. Minhas fontes dizem que essa notícia vai explodir na sua cara amanhã de manhã, num dos grandes diários italianos.

— Sério? E o que a notícia vai dizer?

— Que dois agentes do Escritório foram mortos numa viagem de carro pelo campo italiano.

— Mas nada sobre um agente ter sido sequestrado?

— Não.

— E os autores?

— Vai especular que seria um trabalhinho dos iranianos.

Interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Mas nós os dois sabemos que isso não é verdade.

Korovin bebeu um pouco mais de vodca. O assunto tinha sido abordado. Agora, ambos tinham de avançar com cuidado. Shamron sabia que Korovin estava numa posição que não lhe permitia admitir muita coisa. Mas isso não importava. O russopodia dizer mais com uma sobrancelha levantada do que a maioria dos homens numa palestra de uma hora. Shamron deu o passo seguinte.

— Sempre fomos honestos um com o outro, Sergei.

— Tão honestos como dois homens podem ser neste ramo.

— Por isso, deixe-me ser honesto com você. Acreditamos que nosso agente foi capturado pelo Ivan Kharkov e que isso foi feito em retaliação a uma operação que organizamos contra ele no outono passado.

— Eu sei tudo sobre a sua operação, Ari. O mundo inteiro sabe. Mas Ivan Kharkov não teve absolutamente nada a ver com o desaparecimento dessa mulher.

Shamron ignorou tudo na resposta de Korovin excetuando uma única palavra: mulher. Era tudo o que precisava saber. O russo tinha acabado de dar uma demonstração de sua boa-fé. Agora, a negociação podia começar. Seguiria um conjunto de diretrizes cuidadosamente estabelecidas e seria conduzida no essencial por meio de falsidades e meias-verdades. Nada seria admitido e nenhuma exigência chegaria a ser feita. Não era necessário. Shamron e Korovin falavam ambos a linguagem das mentiras.

— Tem certeza, Sergei? Tem certeza de que Ivan tem as mãos limpas?

— Já falei em pessoa com representantes de Ivan.

Uma nova pausa, e depois: — E já ouviu dizer alguma coisa sobre o estado da mulher?

— Só que está viva e que a tratam bem.

— É bom saber disso, Sergei. Se as coisas pudessem continuar dessa forma, ficaríamos muito agradecidos.

— Vou ver o que posso fazer. Como sabe, Ivan está bem aborrecido com suas condições atuais.

— Só pode culpar a si mesmo.

— Ivan não vê a coisa assim. Acha que os atos de que é imputado e as acusações no Ocidente não passam de mentiras e invenções. Ele nunca seria tão imprudente ao ponto de entrar no negócio de fornecer nossos mísseis à Al-Qaeda. Na verdade, garantiu que nem sequer está envolvido no tráfico de armas.

— Não me esquecerei de passar essa informação aos americanos.

— E há mais uma coisa que devia passar.

— Tudo o que quiser, Sergei.

— Ivan acredita que os filhos lhe foram tirados ilegalmente na França, no verão passado, e quer tê-los de volta.

Shamron encolheu os ombros, fingindo estar surpreso.

— Não fazia ideia de que os americanos os tinham.

— Acreditamos ser o caso, apesar dos desmentidos oficiais.

— Talvez alguém pudesse interceder a favor de Ivan junto dos americanos. — Agora, foi a vez de Korovin encolher os ombros. — Não posso dar certeza, mas acho que poderia ajudar bastante na recuperação de seu agente desaparecido.

Korovin tinha acabado de dar mais um passo no sentido de propor uma troca de favores. Shamron escolheu seguir o caminho do subterfúgio.

— Nós não somos um serviço grande como vocês, Sergei. Somos uma família pequena. Queremos ter o nosso agente de volta e estamos dispostos a fazer tudo o que pudermos. Mas tenho muito pouca influência sobre os americanos. Se eles têm de fato as crianças, é pouco provável que concordem em entregá-las a Ivan, mesmo em circunstâncias como estas.

— Tem muito pouca fé em sua capacidade, Ari. Vá ver os americanos. Faça com que eles vejam a razão. Convença-os a pôr os filhos de Ivan num avião. Mal estejam na Rússia, que é o lugar deles, tenho certeza de que seu agente aparecerá.

Korovin tinha posto um contrato na mesa. Shamron fez o que lhe competia.

— São e salvo?

— São e salvo.

— Mas há outra questão, Sergei. Também queremos Grigori Bulganov de volta.

— Grigori Bulganov não é da sua conta.

Shamron cedeu nesse ponto.

— E se eu convencer os americanos a entregarem as crianças? Quanto tempo teríamos para tratar de tudo?

— Não tenho certeza, mas não muito.

— Preciso saber, Sergei.

— A minha resposta teria apenas uma natureza hipotética.

— Muito bem, hipoteticamente falando, quanto tempo temos?

Korovin bebeu um pouco de vodca e respondeu: — Setenta e duas horas.

— Isso não é muito, Sergei.

— É o que há.

— E como eu te contato?

— Não contata. Voltamos a nos encontrar na terça-feira, às quatro da tarde. E, de um amigo para outro, aconselho fortemente que tenha uma resposta até lá.

— Onde nos encontramos?

— Ainda é permitido fumar no jardim das Tulherias?

— Por enquanto.

— Então, nos encontramos lá. Nos bancos junto ao Jeu de Paume. Quatro da tarde?

Korovin acenou com a cabeça. — Quatro da tarde.

CAPÍTULO 44

HOTEL BRISTOL, GENEBRA

 

As notícias de Paris foram rapidamente enviadas para vários pontos à volta do globo: para o Escritório de Operações, na Boulevard King Saul, para Thames House, em Londres, e para o quartel-general da CIA, em Langley. E para o majestoso Hotel Bristol, em Genebra, a casa temporária de Gabriel e da sua equipe. Embora todos tivessem ficado profundamente aliviados por saber que Chiara estava de fato viva, não ocorreu nada que se assemelhasse a uma celebração. As condições de Ivan eram, claro, inaceitáveis. Eram inaceitáveis para Shamron. Inaceitáveis para os americanos. E, em especial, inaceitáveis para Gabriel. Ninguém estava preparado para pedir a Elena Kharkov para sacrificar os filhos, muito menos um homem que em tempos perdera o seu. No entanto, a proposta de Ivan acabou por cumprir um propósito valioso. Dava-lhes um pouco de tempo e algum espaço de manobra. Não muito tempo, apenas setenta e duas horas, e muito pouco espaço. Procurariam recuperar Chiara e Grigori seguindo dois caminhos paralelos. Um era o caminho da negociação; o outro, o caminho da violência. Gabriel teria de agir rapidamente e seria forçado a assumir riscos. Por enquanto, tinha apenas um homem em mira: Vladimir Chernov.

— Tudo sobre Viktor Orlov bate — disse Navot a Gabriel, no fim da tarde, enquanto tomavam café no bar do hotel, que contava com um pianista profissional. — Estamos acompanhando seus telefonemas e vigiando escritório e apartamento. E no Boulevard King Saul estão fazendo progressos com os computadores dele. Tem um bom software de segurança, mas isso não vai barrar nossos geeks por muito tempo.

— O que sabemos do passado dele?

— Está comprovado que era mesmo do KGB. Trabalhava para a Nona Direção Principal, a divisão que protegia os lideres soviéticos e o Kremlin. Segundo parece, o Chernov foi designado para fazer parte da equipe de segurança do Gorbachev nos anos finais.

— E quando o KGB se dissolveu?

— Não perdeu tempo nenhum em passar a trabalhar por conta própria. Formou uma empresa de segurança em Moscou e começou a aconselhar os novos-ricos sobre a forma de se manterem a si e aos seus pertences a salvo. Teve sucesso.

— Quando se instalou aqui?

— Há cinco anos. Em Langley, já há muito tempo que andam preocupados com ele. Os americanos não ficarão propriamente tristes se lhe acontecer algum azar.

— Idade?

— Quarenta e seis.

— Em boa forma, presumo?

— É forte e mantém-se em forma.

Navot passou seu PDA a Gabriel. Na tela, estava uma fotografia de vigilância tirada no início daquela tarde. Mostrava Chernov a entrar no prédio do seu escritório. Era um homem grande, com mais de um metro e oitenta de altura, já com muito pouco cabelo e com olhos pequenos dispostos numa cara redonda e carnuda.

— E ele tem a sua própria equipe de segurança?

— Anda pela cidade num grande Audi. Os vidros são claramente à prova de bala. Tal como o tipo que se senta ao lado dele. Eu diria que tanto o guarda-costas quanto o motorista estão extremamente bem armados.

— Família?

— A ex-mulher e os filhos ficaram em Moscou. Tem uma namorada aqui em Genebra.

— Suíça?

— Russa. Uma garota da província. Vende luvas depois da esquina do escritório dele.

— E a garota tem nome?

— Ludmila Akulova. Vão jantar fora hoje à noite. A um restaurante chamado Les Armures.

Gabriel sabia qual era. Ficava na Cidade Antiga, perto do Hôtel de Ville.

— A que horas?

— Oito e meia.

— A que distância fica o apartamento do Vladimir do Les Armures?.

— Não muito longe. Ele vive perto da catedral.

— E como é o prédio?

— Pequeno e tradicional. Tem um intercomunicador com um teclado logo à entrada. Os inquilinos podem utilizar as chaves ou premir os dígitos do código de acesso. Fomos dar uma olhada lá dentro ao início da tarde. Há um elevador, mas o apartamento do Vladimir fica logo no primeiro andar.

— E a rua?

— Mesmo de dia é sossegada. À noite... completamente parada.

A voz de Navot foi sumindo.

— Já comeu no Les Armures?

— Não posso dizer que tenha tido o prazer.

— Se eles se sentarem à mesa às oito e meia, já será tarde quando voltarem para o apartamento. Pegamos o cara nessa hora...

— Parte da premissa de que Ludmila vai estar com ele?

— Sim, Uzi.

— E o que vamos fazer com ela?

— Dar-lhe um susto de morte e deixá-la para trás.

— E em relação ao motorista e ao guarda-costas?

— Vou precisar deles para deixar uma coisa bem clara.

— Necessitamos de uma manobra diversionista de algum tipo.

— Sua manobra diversionista está lá em cima no quarto 702. Fez o check-in com o nome de Irene Moore. O nome verdadeiro é Sarah Bancroft.

— Para onde os queres levar?

— Para algum lugar no outro lado da fronteira. Um lugar isolado. Diz ao pessoal de Trabalhos Domésticos que precisaremos dos serviços de uma empregada. Diz-lhes que vai haver muita desarrumação Há muitas pessoas sofisticadas que não dão valor a Genebra por ser entediante e provinciana, uma criada calvinista demasiado frígida para desabotoar a blusa. Mas não ouviram os sinos das suas igrejas a tocar numa noite fria de Inverno, nem observaram os flocos de neve a caírem suavemente sobre as suas ruas de pedras arredondadas. E não jantaram numa mesa sossegada a um canto do restaurante Les Armures, na companhia de uma bela russa. As saladas estavam frescas, a vitela soberba, e o vinho, um Bâtard-Montrachet de Joseph Drouhin, de 2006, foi servido à temperatura perfeita por um atencioso sommelier. Demoraram-se a beber o seu conhaque, um costume em Genebra numa noite de neve de Fevereiro, e às onze da noite estavam a entrar de mãos dadas para o banco de trás do grande Mercedes estacionado à porta do antigo arsenal. Todos os indícios apontavam para uma noite de paixão no apartamento perto da catedral. E esse poderia ter sido realmente o caso se não fosse pela moça que se encontrava à espera na entrada, no meio da neve.

Tinha pele de alabastro e trazia um casaco de couro e meias de rede. Se não tivesse a maquilhagem esborratada por ter passado a noite a chorar, até se poderia dizer que era muito bonita. De início, o casal que saiu do banco de trás do Mercedes não lhe prestou grande atenção. Uma jovem sem-abrigo, devem ter pensado. Uma moça da noite. De repente, uma toxicodependente. Mas, sem dúvida alguma, nenhuma ameaça para um homem como Vladimir Chernov. Afinal de contas, Chernov tinha sido em tempos guarda-costas do último líder da União Soviética. Chernov era capaz de lidar com qualquer coisa. Ou, pelo menos, era isso que pensava. Primeiro, a voz dela soou queixosa, infantil. Referiu-se a Chernov pelo nome próprio, o que causou claramente um choque, e acusou-o de vários crimes amorosos. Tinha-lhe feito declarações de amor, disse ela. Tinha-lhe feito promessas sobre o futuro. Tinha-lhe prometido apoio financeiro para a criança de quem ela agora cuidava sozinha. Com Ludmila já a ferver de irritação, Chernov tentou explicar à mulher que era óbvio que ela o confundia com outra pessoa. Isso valeu-lhe uma valente bofetada na cara, o que fez com que os guarda-costas saíssem do carro.

A confusão que se seguiu durou precisamente vinte e sete segundos. Existe uma gravação em vídeo do que se passou e até hoje é utilizada para efeitos de treino. Deve dizer-se que, no início, os guarda-costas russos de Chernov agiram com admirável comedimento. Confrontados com uma moça que se mostrava claramente perturbada e delirante, tentaram acalmá-la gentilmente e tirá-la dali. A reação dela, dois violentos pontapés nas suas canelas, serviu apenas para exaltar ainda mais os ânimos. A situação intensificou-se com a chegada de quatro cavalheiros que apenas por acaso se encontravam a passar naquela rua sossegada. O maior dos quatro, um homem de ombros largos com cabelo louro-avermelhado, foi o primeiro a intrometer-se, seguido por um homem de cabelo escuro e cara bexigosa. Foram trocadas palavras, feitas ameaças e, por fim, dados alguns socos. Mas estes não foram os socos precipitados e descontrolados dados por amadores. Foram certeiros e brutais, do gênero dos que eram capazes de infligir danos permanentes. E, nas circunstâncias certas, até podiam provocar uma morte instantânea. Mas uma morte instantânea não era o objetivo deles, e os quatro cavalheiros moderaram o ataque para se certificarem de que apenas deixariam as suas vítimas sem sentidos. Mal os homens ficaram incapacitados, dois automóveis que se encontravam estacionados ganharam subitamente vida. Vladimir Chernov foi atirado para dentro de um e os guarda-costas para dentro do outro. Quanto a Ludmila Akulova, escapou apenas com uma admoestação verbal, dada em russo fluente por um homem com uma cara pálida e olhos da Cor de um glaciar: Se disser uma palavra a alguém sobre isto, matamo-la. E a seguir matamos os seus pais. E depois matamos todas as pessoas da sua família.

Quando os carros partiram a toda a velocidade, Gabriel não conseguiu desviar o olhar do rosto arrasado de Ludmila. Ele acreditava nas mulheres. As mulheres, dizia, eram a única esperança da Rússia.


CAPÍTULO 45

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

A casa ficava na região francesa de Haute-Savoie, num vale isolado acima das margens do lago Annecy. Limpa e arrumada, com um telhado pontiagudo e íngreme, ficava a mais de um quilômetro de distância da habitação vizinha mais próxima. Yossi mudara-se para lá na noite anterior, fazendo-se passar por um autor britânico de livros de mistério, e tinha preparado o local cuidadosamente para o interrogatório que se seguiria. Estava no exterior quando os dois automóveis começaram a aproximar-se ao longo da estrada sinuosa, enquanto a neve caía através dos feixes de luz dos seus faróis. Gabriel foi o único a aparecer, saindo do lugar do passageiro do primeiro automóvel, uma van Renault, e seguiu Yossi até a sala de estar da casa. A mobília estava toda amontoada a um canto e o chão de azulejo inteiramente tapado com um plástico protetor. Na lareira aberta, o fogo estava ao rubro, exatamente como Gabriel ordenara. Acrescentou-lhe mais dois troncos e depois voltou a sair da casa. Um terceiro automóvel tinha estacionado à entrada. Eli Lavon estava encostado ao capô.

— Seguiram-nos? — perguntou Gabriel.

Lavon abanou a cabeça.

— Tem certeza, Eli?

— Tenho.

— Leve Yossi e volte a Genebra. Fiquea lá à espera com os outros. Não vamos demorar muito.

— Eu fico aqui com você.

— Você é vigia, Eli. O melhor do mundo. Isso não é para você.

— De repente também não é para você.

Gabriel ignorou o comentário e olhou de relance para Navot, que se encontrava ao volante da van Renault. Um momento depois, três russos, sedados e amarrados, cambaleavam como bêbados em direção à entrada da casa. Lavon pôs a mão no ombro de Gabriel. Tem cuidado ali dentro, Gabriel. Se não tiveres, és capaz de perder mais do que outra mulher.

Lavon sentou-se ao volante do carro sem dizer mais uma palavra e começou a descer o vale. Gabriel ficou a ver as luzes traseiras a desaparecerem atrás de um véu de neve e, a seguir, virou-se e entrou na casa.

Despiram-nos, deixando-os apenas em roupa interior, e prenderam-nos a um trio de cadeiras exteriores de metal. Gabriel deu uma injeção de estimulante a cada um dos três homens, doses pequenas para o guarda-costas e o motorista, e uma maior para Vladimir Chernov. A cabeça deste último ergueu-se lentamente do peito e piscando os olhos depressa, inspecionou o que o rodeava. Os seus dois homens estavam sentados mesmo em frente a si, com os olhos esbugalhados de terror. Em fila e parados atrás deles, estavam Yaakov, Mikhail, Navot e Gabriel. A mão esquerda de Gabriel empunhava uma pistola Glock de calibre 45, com um silenciador atarraxado à ponta do cano. Na direita, estava uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. Gabriel olhou de relance para Yaakov, que arrancou a fita adesiva colada na nuca de Chernov. Ficando ainda com menos cabelo, Chernov gritou de dor. Gabriel acertou-lhe violentamente com a Glock na testa e mandou-o calar a boca. Chernov, com sangue a escorrer no olho esquerdo, obedeceu.

— Sabes quem eu sou, Vladimir?

— Nunca o vi na minha vida. Por favor, quem quer que seja, isto é tudo algum...

— Não é nenhum engano, Vladimir. Olha bem para a minha cara. Com certeza já me viu.

— Não, nunca.

— Estamos começando mal. Está mentindo. E se continuar a mentir, nunca sairá deste lugar. Diga a verdade, Vladimir, e deixamos você e seus homens vivos;

— Estou dizendo a verdade! Nunca vi sua cara!

— Nem sequer em foto? Com certeza que eles devem ter dado uma foto minha.

— Quem?

— Os homens que foram ver você quando quiseram contratar o Camarada Zhirlov para me encontrar.

— Nunca ouvi falar desse homem. Sou um consultor de segurança honesto. Exijo que me libertem e aos meus homens imediatamente. Caso contrário...

— Caso contrário, o que, Vladimir?

Chernov calou-se de repente.

— Tem uma janela de oportunidade estreita, Vladimir. Uma janela muito estreita. Vou fazer uma pergunta e vai dizer-me a verdade.

Gabriel pôs a fotografia diante de Chernov.

Diga onde posso encontrar este homem.

— Nunca o vi na minha vida.

— Tem certeza de que essa é a resposta que quer dar, Vladimir?

— É a verdade!

Gabriel abanou a cabeça com tristeza e pôs-se atrás do motorista de Chernov. Tinham-lhe dito o nome dele, mas Gabriel já se esquecera. Porém, o nome dele não importava. Não ia precisar de um nome para onde ia. Chernov, a julgar pela expressão insolente, pensava claramente que Gabriel estava a fazer blefe. Era óbvio que o russo nunca tinha ouvido falar do décimo segundo mandamento de Ari Shamron: Nós não agitamos as nossas armas por aí como se fôssemos gangsteres, nem fazemos ameaças vãs. Sacamos das nossas armas no terreno apenas e só por uma única razão. Gabriel encostou a pistola à nuca do homem e inclinou o ângulo ligeiramente para baixo. E a seguir, com os olhos a perfurarem a cara de Chernov, carregou no gatilho.

CAPÍTULO 46

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Existe uma ideia errada sobre os silenciosos e que é bastante comum. A verdade não silenciam realmente uma arma, em especial quando se trata de uma Glock de calibre 45. A bala de ponta oca entrou no crânio do motorista com um baque bastante sonoro e saiu pela boca, levando grande parte do maxilar e do queixo. Se a pistola estivesse na horizontal na altura do disparo, o projétil poderia ter continuado e perfurado Vladimir Chernov. Em vez disso, foi bater com força mas inofensivamente no chão. No entanto, Chernov não escapou completamente incólume. O seu torso musculoso estava agora todo salpicado de sangue, tecido cerebral e fragmentos ósseos. Passados poucos segundos, veio cá para fora o que tinha dentro do estômago: a requintada refeição que comera ao lado de Ludmila Akulova algumas horas antes, no Les Armures. Era um bom sinal. Chernov podia fazer da morte e da violência o seu negócio, mas a visão de um pouquinho de sangue punha-o doente. Com sorte, era capaz de não demorar muito tempo a quebrar. Gabriel pôs outra vez a fotografia à frente da cara dele e fez a mesma pergunta: Quem é este homem e onde o posso encontrar? Infelizmente, a resposta de Chernov foi a mesma. Tenho certeza de que já ouviste falar no afogamento simulado, Vladimir. Nós temos uma outra técnica que utilizamos quando precisamos de informações rapidamente.

Gabriel fixou os olhos no fogo da lareira por um momento.

— Chamamos incêndio simulado.

Voltou a olhar para Chernov.

— Já viu um homem passar por isso, Vladimir?

Quando Chernov não deu resposta, Gabriel olhou de relance para os outros. Navot e Yaakov agarraram o segundo guarda-costas e, com ele ainda preso à cadeira, enfiaram-lhe a cara na lareira. Deixaram-no lá ficar não mais do que dez segundos. Ainda assim, quando saiu, tinha o cabelo a fumegar e a cara toda preta e cheia de bolhas. E também estava a gritar com dores terríveis. Puseram-no mesmo à frente de Chernov, para que o russo pudesse ver o resultado horrível da sua intransigência. A seguir, Gabriel encostou a Glock à cabeça do guarda-costas e acabou-lhe com o sofrimento. Chernov, agora encharcado em sangue, ficou a olhar com horror para os dois homens mortos diante dele. Mikhail tapou sua boca com fita adesiva e deu-lhe uma violenta bofetada na cara com as costas da mão. Gabriel pôs a fotografia no colo e disse que voltaria em cinco minutos.

Regressou ao quinquagésimo nono segundo do quarto minuto e arrancou a fita adesiva da boca de Chernov. E depois colocou-o perante uma escolha simples. Podiam ter uma conversa cordial, de um profissional para outro, ou Chernov podia ir para dentro da lareira como o seu agora falecido guarda-costas. E não seria uma queimadura rápida, avisou Gabriel. Seria um assado lento. Um membro de cada vez. E não haveria nenhuma bala na nuca para acabar com as dores.

Gabriel não teve de esperar muito tempo pela resposta. Dez segundos, não mais do que isso. Chernov disse que queria falar. Chernov disse que estava arrependido. Chernov disse que queria ajudar.

CAPÍTULO 47

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

Arranjaram-lhe algumas roupas e uma dose de Alprazolam para reduzir um pouco a sua ansiedade. Permitiram-lhe que se sentasse numa cadeira propriamente dita, com as mãos livres, embora a cadeira estivesse voltada de maneira a que ele não pudesse deixar de ver os dois empregados mortos, lembranças sinistras do destino que o aguardava se se refugiasse mais uma vez em afirmações de ignorância. Dentro de poucas horas, os corpos iriam desaparecer da face da terra. Vladimir Chernov desapareceria com eles. Se iria morrer de forma indolor ou com violência extrema, dependia apenas de uma coisa: responder a todas as perguntas de Gabriel com sinceridade. O Alprasolam tinha a vantagem adicional de soltar a língua de Chernov e apenas foi necessário um mínimo de incitamento por parte de Gabriel para pô-lo a falar. Começou por elogiar Gabriel pela operação que tinham orquestrado à porta da casa dele. O KGB não teria feito melhor — afirmou, sem um pingo De ironia na voz.

— Terás de me desculpar, mas não me sinto lisonjeado. Acabou de matar dois homens a sangue-frio, Allon. Não tem o direito de se sentir incomodado com comparações em relação aos meus antigos serviços.

— Sabes o meu nome.

Chernov conseguiu esboçar um sorriso fraco.

— Seria possível arranjarem-me um cigarro? — Os cigarros fazem-te mal à saúde.

— E não é uma tradição dar aos condenados um cigarro? — Continua a falar, Vladimir, e deixo-te viver.

— Depois do que eu vi hoje? Toma-me por parvo, Allon? — Não por parvo, Vladimir... apenas por um ex-bandido do KGB que acabou por conseguir escapar para fora da sarjeta. Mas vamos manter isto num nível cortês, sim? Estavas mesmo a ponto de me contar quando conheceste o homem daquela fotografia. — Fez uma pausa e, depois: — O homem conhecido como Camarada Zhirlov.

O cocktail de narcóticos que fluía pela corrente sanguínea de Chernov deixou-o incapaz de empreender outra campanha de desmentidos. Nem conseguiu esconder a surpresa perante o fato de Gabriel saber o nome de um dos agentes clandestinos mais secretos do KGB.

— Foi em noventa e cinco ou noventa e seis. Eu tinha uma pequena empresa de segurança. Não me tornei num Ivan Kharkov ou num Viktor Orlov, mas a vida estava a correr-me bastante bem. O Camarada Zhirlov apresentou-me uma proposta lucrativa. Já tinha adquirido uma reputação em Moscou e começava a ficar muitíssimo perigoso para ele contatar diretamente com os clientes. Precisava de alguém que funcionasse como intermediário... um agente, se preferir. Caso contrário, não viveria o suficiente para apreciar os frutos do seu trabalho.

— E se ofereceu para ser essa pessoa... por uma comissão, claro.

— Dez por cento. Quando alguém precisava que um trabalho fosse feito, me procurava e eu levava a proposta. Se aceitasse, estabelecia um preço. Eu voltava ao cliente e negociava o acordo final. O dinheiro passava todo por mim. Lavava-o na minha empresa de consultoria e cobrava ao Camarada Zhirlov uma comissão pelos serviços prestados. Pode não acreditar, mas ele tinha que pagar impostos sobre os rendimentos que auferia matando e sequestrando pessoas.

— Só na Rússia.

— Eram tempos loucos, Allon. É fácil nos julgar, mas viu o seu país e o seu dinheiro desaparecerem num abrir e fechar de olhos. As pessoas faziam o que tinham de fazer para sobreviver. Era a lei da selva. Verdadeiramente.

— Poupe-me da historieta triste, Vladimir. Não teria sido uma selva se não fossem você e seus companheiros da máfia russa. Mas estou divagando. Você falava do Camarada Zhirlov. Na verdade, estava a ponto de dizer o nome verdadeiro dele.

— Queria um cigarro.

— Não está em posição de fazer exigências.

— Por favor, Allon. Eu tinha um maço no bolso do sobretudo ontem à noite. Se não fosse um incômodo muito grande, gostaria de fumar um agora. Juro que não vou tentar nada.

Gabriel olhou de relance para Yaakov. Quando apareceu, o cigarro já vinha aceso. Chernov deu uma grande aspirada e, a seguir, disse a Gabriel o nome que ele queria ouvir. Era Petrov. Anton Dmitrievich Petrov.

Não que isso importasse, acrescentou Chernov rapidamente. Petrov já não usava esse nome há vários anos. Filho de um coronel do KGB destacado para a Rezidentura de Berlim Oriental, tinha nascido na República Democrática Alemã, durante os dias mais negros da guerra fria. Sendo filho único, tinham-lhe permitido que brincasse com crianças alemãs e bem cedo se tornou completamente bilingue. Com efeito, o alemão de Petrov era tão bom, que conseguia fazer passar-se por um natural do país nas ruas de Berlim Oriental. O KGB encorajou discretamente os dotes linguísticos de Petrov autorizando-o a completar os estudos na RDA, em vez de regressar à União Soviética. Depois de terminar o liceu com distinção em Berlim Oriental, estudou na prestigiada Universidade de Leipzig, onde se licenciou em Química. Durante pouco tempo, Petrov ponderou avançar para uma pós-graduação ou mesmo uma carreira em medicina. A base de Moscou, no entanto, tinha outros planos. Passados poucos dias da licenciatura, foi chamado a Moscou e foi-lhe oferecido um emprego no KGB. Poucos jovens seriam tolos ao ponto de recusar uma proposta dessas e Petrov, membro da família alargada do KGB, não teve quaisquer pensamentos desse gênero. Depois de cumprir dois anos de treino na Academia Bandeira Vermelha, em Yasenevo, foi-lhe atribuído o nome de código de Camarada Zhirlov e fizeram-no regressar a Berlim Oriental. Passado um mês, com a ajuda de um espião soviético infiltrado no serviço secreto da República Federal Alemã, atravessou a Cortina de Ferro discretamente e estabeleceu-se como um agente “ilegal” na cidade de Hamburgo, na Alemanha Ocidental.

A própria existência de Petrov apenas era conhecida por um grupo restrito de importantes generais da Primeira Direção Principal. A sua missão não consistia em fazer espionagem contra a América e os seus aliados da NATO, mas sim em combater os dissidentes, desertores e outros agitadores do gênero que ousavam desafiar a autoridade do Estado soviético. Armado com meia dúzia de passaportes falsos e fundos monetários ilimitados, foi caçando as suas presas e planejando a sua destruição meticulosamente. Especializou-se na utilização de venenos e de outras toxinas mortais, algumas produzindo uma morte praticamente instantânea, outras demorando semanas ou meses para se mostrarem letais. Por ser químico, Petrov pôde participar na concepção dos seus venenos e das armas que os aplicavam. O seu dispositivo preferido era um anel, que usava na mão direita e que injetava na vítima uma pequena dose de uma toxina que afetava o sistema nervoso mortalmente. Um aperto de mão, uma palmada nas costas, era tudo o que era preciso para matar.

Como seria de esperar, o Petrov não aceitou muito bem o colapso da União Soviética. Nunca teve qualquer escrúpulo em matar dissidentes e traidores. Era um crente.

E o que aconteceu aos seus passaportes todos que o KGB emitiu? Ficou com eles. Deram-lhe muito jeito quando se mudou para o Ocidente. E tu vieste com ele? Na verdade, até vim primeiro. Petrov veio um mês ou dois depois e retomamos a parceria. Os negócios iam bem animados. Os russos chegavam à Europa Ocidental aos montes e trouxeram os velhos costumes com eles. Em poucos meses, já tínhamos muitos clientes.

— E um desses clientes era Ivan Kharkov? O russo hesitou e, a seguir, assentiu com a cabeça. Ivan confiava nele. Os pais deles eram ambos do KGB e eles eram ambos do KGB.

— E lidava com Ivan diretamente?

— Nunca. Só com Arkady Medvedev.

— E depois de Arkady ter sido morto?

— Ivan enviou outra pessoa. O nome era Malenski.

— Lembra da data?

— Foi em outubro.

— Depois de o negócio dos mísseis de Ivan ter vindo a público.

— Sim, depois, sem dúvida.

— E encontraram-se em Genebra?

— Ele receava que eu estivesse sendo vigiado em Genebra. Insistiu que eu fosse a Viena.

— E tinha uma proposta de trabalho?

— Duas propostas, na verdade. Proposta a sério. Dinheiro a sério.

— Sendo a primeira Grigori Bulganov?

— Correto.

— E a segunda era eu?

— Não, você não, Allon. A segunda era a sua mulher.

CAPÍTULO 48

HAUTE-SAVOIE, FRANÇA

 

 

Gabriel sentiu uma onda de fúria a apoderar-se de si. Queria enfiar o punho pela cara do russo adentro. Queria atingi-lo com tanta força, que ele nunca mais voltaria a levantar-se. Em vez disso, ficou sentado calmamente, com a Glock na mão e os dois mortos atrás de si, e mandou Chernov descrever a gênese da operação com vista ao sequestro de Grigori.

— Era o desafio de uma vida..., pelo menos, era assim que o Petrov via a coisa. Ivan queria que o Bulganov fosse levado de Londres e trazido outra vez para a Rússia. E mais ainda: era preciso que parecesse que o Bulganov tinha regressado a casa voluntariamente. Caso contrário, os aliados de Ivan no Kremlin não lhe dariam luz verde. Não queriam outro conflito com os ingleses como aquele que se seguiu ao envenenamento do Litvinenko.

Quanto? Vinte milhões mais despesas, que iriam ser consideráveis. Petrov tinha feito trabalhos destes quando estava no KGB. Reuniu uma equipe de agentes experientes e montou um plano. Tudo dependia de se conseguir que o Bulganov entrasse no carro sem alarido. Não podia ser feito à força, não com as câmaras da CCTV a espreita por cima do ombro. Por isso, enganou a ex-mulher do Bulganov, de maneira a que ela o ajudasse.

Fala-me das pessoas que trabalham para ele. São todos ex-KGB. E, como Petrov, são todos muito Bons.

— Quem lhes paga?

— Petrov toma conta deles com uma parte do que recebe. Ouvi dizer que é muito generoso. Nunca teve nenhum problema com os empregados.

Chernov tinha fumado o cigarro até o filtro. Encheu os pulmões uma última vez e procurou um lugar onde deitar a beata. Yaakov tirou-a dos dedos e jogou na lareira. Gabriel recusou o pedido de outro cigarro e retomou o interrogatório. Alguém fez uma tentativa desastrada para matar uma jornalista russa há umas noites, em Oxford.

— Está se referindo a Olga Sukhova?

— Estou. Calculo que Petrov não tenha estado lá nessa noite. Se tivesse estado, Olga não teria sobrevivido. Foi um trabalho que teve de ser feito às pressas. Enviou dois associados para tratar do assunto.

— E onde estava Petrov?

— Estava na Itália, preparando o sequestro de sua mulher.

Gabriel sentiu uma nova onda de fúria. Reprimiu-a e fez a sua pergunta seguinte: — Como ele nos descobriu?

— Não descobriu. Foi o SVR. Ouviram rumores de que você estava escondido na Itália e começaram a apertar as fontes deles no serviço italiano. Uma delas acabou por traí-lo.

— Sabe quem foi?

— De maneira nenhuma.

Gabriel não voltou a insistir. Acreditava que o russo estivesse dizendo a verdade.

— Que tipo de informações deram sobre mim?

— Nome e localização da quinta.

— E por que demoraram tanto tempo para agir?

— Instruções do cliente. A operação contra a sua mulher só avançaria se o sequestro de Bulganov ocorresse sem problemas... e só se o cliente desse a ordem final para prosseguir.

— Quando receberam essa ordem?

— Uma semana depois de Bulganov ter sido sequestrado.

— E quem a deu foi Malensky?

— Não, foi o próprio chefão. Ivan ligou para meu escritório em Genebra. Deixou claro que Petrov devia avançar para o segundo alvo. — Chernov interrompeu-se por uns segundos. — Vi a foto de sua mulher, Allon. É uma mulher extraordinariamente bonita. Lamento termos tido de sequestrá-la, mas negócio é...

Gabriel bateu com força com a Glock na cara de Chernov, reabrindo o golpe fundo que tinha acima do olho.

— Onde está Petrov agora?

— Não sei.

Gabriel contemplou a lareira.

— Lembra do nosso acordo, Vladimir?

— Pode até me arrancar a carne dos ossos, Allon, que eu não conseguiria dizer onde ele está. Não sei onde ele mora e nunca sei onde ele está.

— Como entra em contato com ele?

— Não o faço. Ele me contata.

— Como?

— Por telefone. Mas nem pense em tentar localizá-lo. Ele troca de telefone constantemente e nunca fica com nenhum por muito tempo.

— E como se processa a questão financeira?

— Como nos velhos tempos em Moscou. O cliente paga a mim e eu pago a ele.

— E lava o dinheiro pela Regency Security?

— Os europeus são sofisticados demais para isso. Aqui, ele é pago em dinheiro vivo.

— Onde deixam o dinheiro?

— Temos várias contas numeradas na Suíça. Eu deixo o dinheiro em cofres e ele vai buscá-lo quando quer.

— Quando foi a última vez que encheu um cofre?

Chernov calou-se de repente. Gabriel contemplou a lareira e repetiu a pergunta.

— Deixei cinco milhões de euros em Zurique anteontem.

— A que horas?

— Logo antes da hora de fechar. Gosto de lá ir quando o banco está vazio.

— E qual é o nome do banco?

— Becker & Puhl.

Gabriel sabia qual era. E por acaso também sabia o endereço. Perguntou naquele momento, só para ter certeza de que Chernov não mentia. O russo respondeu corretamente. O banco Becker & Puhl ficava no número 26 de Talstrasse.

— Número da conta?

— Nove-sete-três-oito-três-seis-dois-quatro.

— Repita.

Chernov repetiu. Sem enganos.

— Senha?

— Balzac.

— Que poético.

— Foi Petrov que escolheu. Ele gosta de ler, mas eu nunca tive tempo para isso.

O russo olhou para a pistola que Gabriel empunhava.

— Suponho que nunca vá ter.

Houve um último tiro na villa acima do lago Annecy. Gabriel não o ouviu. No momento em que foi disparado, estava sentado ao lado de Uzi Navot na van Renault, seguindo em alta velocidade pelo vale, na luz cinzenta da manhã. Pararam em Genebra o tempo suficiente para buscar Sarah Bancroft no Hotel Bristol e partiram para Zurique.

 


CAPÍTULO 49

 

 

A sala no porão da pequena dacha não estava inteiramente isolada do mundo exterior. Bem alto, num canto, havia uma janela minúscula, coberta por um século de sujeira e, do lado de fora, por um banco de neve. Todos os dias, durante breves momentos, quando o ângulo do sol se encontrava exatamente na posição certa, a neve ganhava tons escarlates e enchia a sala com uma luz fraca. Partiram do princípio de que era o nascer do Sol, mas não podiam ter certeza. Juntamente com a liberdade, Ivan roubara-lhes o tempo.

Chiara aproveitava cada segundo da luz, mesmo que isso significasse que não tinha outra escolha a não ser olhar diretamente para a cara espancada de Grigori. Os cortes, as feridas, os inchaços que o desfiguravam: havia momentos em que ele mal parecia sequer humano. Ela cuidou dele o melhor que podia e, uma vez, de forma corajosa, pediu aos guardas de Ivan ligaduras e qualquer coisa para as dores. Os guardas acharam o pedido divertido. Tinham-se dado a um grande trabalho para pôr Grigori no seu estado atual e não estavam dispostos a permitir que a nova prisioneira destruísse todos Os seus esforços com gazes e unguentos.

Tinham ambos sempre as mãos algemadas e as pernas acorrentadas; não lhes davam travesseiros nem cobertores e, mesmo com o frio cortante da noite, não havia aquecimento. Duas vezes por dia, davam-lhes um pouco de comida — pão de má qualidade, algumas fatias de chouriço gorduroso, chá fraco em copos de papel — e, duas vezes por dia, levavam os dois a um banheiro escuro e fétido. Passavam as noites lado a lado, no chão frio. Na primeira noite, Chiara sonhou que estava à procura de uma criança numa floresta interminável de bétulas coberta de neve. Obrigando-se a acordar, deu com Grigori a tentar confortá-la gentilmente. Na noite seguinte, acordou com um esguicho de fluido quente entre as pernas. Dessa vez, nada que ele fizesse poderia consolá-la. Tinha acabado de perder o bebê de Gabriel. Atentos aos microfones de Ivan, não falavam de nada que fosse importante. Por fim, durante o curto período de luz no terceiro dia que passaram juntos, Grigori perguntou em que circunstâncias ela tinha sido capturada. Chiara pensou um momento antes de responder e, a seguir, relatou-lhe uma versão cuidadosamente calibrada da verdade. Disse-lhe que fora capturada numa estrada na Itália e que dois jovens, bons rapazes e com um futuro risonho, tinham sido mortos ao tentarem protegê-la. No entanto, não mencionou que, durante os três dias que tinham antecedido a sua captura, estivera no lago de Como a participar no interrogatório da ex-mulher de Grigori, Irina. Ou que sabia como os agentes de Ivan tinham enganado Irina de modo a que ela desempenhasse um papel na captura de Grigori. Ou que a equipe de Gabriel gostara tanto de Irina, que enviá-la outra vez para a Rússia lhes tinha partido o coração. Chiara queria contar essas coisas a Grigori, mas não podia. Ivan estava a ouvir.

Quando chegou a altura de Grigori descrever a sua provação, não fez quaisquer omissões. A história que contou foi a mesma que Chiara tinha ouvido no lago de Como dias antes, só que desta vez contada do outro lado do espelho. Ele ia a caminho de uma partida de xadrez com um homem chamado Simon Finch, um marxista devoto que queria infligir o sofrimento da Rússia ao Ocidente. Durante uma curta parada no Waterside Café, reparou que estava a ser seguido por um homem e uma mulher. Partiu do princípio de que eram vigias do M15 e de que era seguro continuar. Mudou de opinião passados uns momentos, quando reparou noutro homem, russo, que o seguia ao longo da Harrow Road. A seguir, viu uma mulher a andar na sua direção — uma mulher que não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva e apercebeu-se de que a vira apenas há alguns minutos. Receou que estivesse prestes a ser morto e por breves instantes pensou em lançar-se numa corrida desenfreada pela Harrow Road. Foi então que apareceu um grande Mercedes. E que a porta se abriu rapidamente... Reconheci o homem que tinha a pistola encostada à cabeça da minha ex-mulher. Chama-se Petrov. A maior parte das pessoas que se cruza com este homem não sobrevive. Disseram-me que a Irina seria uma exceção se eu colaborasse. Fiz tudo o que eles pediram. Depois de alguns dias de cativeiro, enquanto estava a ser interrogado nas caves de Lubyanka, um homem que em tempos tinha sido meu amigo disse-me que a Irina estava morta. Disse-me que Ivan a tinha matado e enterrado numa sepultura não identificada, e disse-me que a seguir seria eu.

Foi nesse preciso momento que a cor se retirou do banco de neve que tapava a janela, fazendo a sala mergulhar mais uma vez na escuridão. Chiara chorou silenciosamente. Queria desesperadamente dizer a Grigori que a mulher dele continuava viva. Mas não podia.

Ivan estava ouvindo.


CAPÍTULO 50

ZURIQUE

 

 

Mais tarde, Shamron iria referir-se a Konrad Becker como o único pedaço de sorte de Gabriel. Tudo o resto, Gabriel conquistou da maneira mais difícil, ou com sangue. Mas não Becker. Becker foi-lhe entregue de mão beijada, embrulhado e com um laço. Seu banco não era uma das catedrais da atividade financeira suíça que avultam sobre a Paradeplatz ou se encontram dispostas em fila ao longo da curva graciosa da Bahnhofstrasse. Era uma capela particular, um local onde os clientes eram livres para prestar culto ou confessar os seus pecados em segredo. A lei suíça proíbe que os bancos desse tipo solicitem depósitos. Têm toda a liberdade para se referirem a si mesmos como bancos se o quiserem, mas não é necessário que o façam. Alguns empregam várias dezenas de agentes e especialistas em investimento; outros, apenas um punhado. Becker & Puhl inseria-se na segunda categoria. Ficava no rés-do-chão de um prédio de escritórios antigo e soturno, num quarteirão sossegado da Talstrasse. A entrada era assinalada por uma pequena placa de bronze que passava facilmente despercebida, como era intenção de Konrad Becker. Às sete horas, ele esperava no vestíbulo sombrio, uma pequena figura careca com a palidez de quem passava os dias debaixo do chão. Como de costume, trazia um sóbrio fato escuro e uma gravata cinzenta, própria de um carregador de caixão. Tinha os olhos, sensíveis à luz, escondidos atrás de uns óculos escuros. A brevidade do aperto de mão foi um insulto calculado.

— Que surpresa tão desagradável. O que o traz a Zurique, Herr Allon?

— Negócios.

— Bom, então, veio ao lugar certo.

Virou-se sem mais uma palavra e conduziu Gabriel por um corredor com espesso carpete. O escritório onde entraram tinha um tamanho modesto e estava mal iluminado. Becker contornou a mesa lentamente e, com cautela, instalou-se na cadeira de executivo em couro, como se estivesse a experimentá-la pela primeira vez. Olhou para Gabriel nervosamente por um momento e depois começou a folhear os papéis que tinha em cima da mesa. Herr Shamron garantiu que não haveria mais contatos entre nós. Cumpri minha parte do acordo e espero que honre a sua palavra.

— Preciso de sua ajuda, Konrad.

— E que tipo de ajuda, Herr Allon? Quer que o auxilie num ataque ao Hamas na Faixa de Gaza? Ou talvez queira que o ajude a destruir as instalações nucleares do Irã?

— Não seja melodramático.

— Quem está sendo melodramático? Tenho sorte em estar vivo — respondeu Becker, entrelaçando as mãos minúsculas e pousando-as em cima da mesa cuidadosamente. — Sou um homem de fraca constituição física e emocional, Herr Allon. Não tenho vergonha de o admitir. Nem tenho vergonha em dizer que ainda tenho pesadelos sobre a nossa última aventurazinha em Viena.

Pela primeira vez desde que Chiara fora raptada, Gabriel sentiu-se tentado a sorrir. Até ele tinha dificuldade em acreditar que o pequeno banqueiro suíço desempenhara papel ativo num dos maiores golpes que o Escritório já engendrara: a captura do criminoso de guerra nazista Erich Radek. Tecnicamente, as ações de Becker tinham sido uma violação das sacrossantas leis do segredo bancário suíço. Com efeito, se o seu papel na captura de Radek viesse alguma vez a público, enfrentaria a distinta possibilidade de ser acusado ou, pior ainda, entrar em ruína financeira. E tudo isso explicava por que razão Gabriel estava confiante de que Becker, após previsível protesto, concordaria em ajudá-lo. Não tinha outra escolha. Chegou-nos ao conhecimento que o senhor tem na sua posse uma conta numerada que nos interessa. Um cofre associado a esta conta está ligado a uma questão de extrema urgência. Não será exagero dizer que se trata de uma questão de vida ou morte. Como sabe, de acordo com as leis bancárias suíças, seria crime estar a revelar-lhe essas informações.

Gabriel soltou um suspiro profundo.

— Seria uma pena, Konrad.

— O quê, Herr Allon?

— Se os trabalhos que realizamos juntos no passado viessem a público.

— O senhor é um reles chantagista, Herr Allon.

— Um chantagista, mas não reles.

— E o problema em pagar a um chantagista ele volte sempre para exigir mais.

— Posso dizer-lhe qual é a conta numerada, Konrad?

— Se tem mesmo de o fazer.

Gabriel disse o número rapidamente. Becker não se deu ao trabalho de anotar.

— Senha? — perguntou.

— Balzac.

— E o nome associado à conta?

— Vladimir Chernov, da Regency Security Services, em Genebra. Não temos certeza se ele é o primeiro titular da conta ou apenas um signatário.

O banqueiro não fez qualquer movimento.

— Não precisa verificar seus registros, Konrad? Não precisava.

— Vladimir Chernov é o primeiro titular da conta. Outra pessoa que tem acesso ao cofre.

Gabriel estendeu-lhe a foto de Anton Petrov.

— Este homem? — Becker assentiu. — Se tem acesso, presumo que tenha o nome dele registrado. Eu tenho um nome. Se é ou não o correto...

— Pode me dar, por favor?

— Ele usa o nome de Wolfe. Otto Wolfe.

— Fala alemão?

— Fluentemente.

— Sotaque?

— Não fala muito, mas eu diria que é do Leste. E tem uma morada e um número de telefone nos seus registros: — Tenho. Mas também não me parece que sejam os corretos.

— E, mesmo assim, deu-lhe acesso a um cofre? Becker não deu qualquer resposta. Gabriel guardou a foto. Pelo que sei, o Vladimir Chernov deixou qualquer coisa no cofre há dois dias.

— Para sermos precisos, o Herr Chernov acedeu ao cofre há dois dias. Se acrescentou qualquer coisa ou se retirou qualquer coisa, não lhe sei dizer. Os clientes têm privacidade total quando se encontram na caixa-forte.

— Exceto quando os observam com as suas câmaras ocultas. Ele deixou dinheiro vivo no cofre, não deixou? — Uma grande quantidade de dinheiro, para dizer a verdade.

— E Wolfe já veio buscá-lo?

— Ainda não.

O coração de Gabriel deu um súbito solavanco para o lado. E quanto tempo ele costuma esperar depois de o Chernov encher o cofre? Conto que venha hoje. Amanhã, no máximo. Não é o tipo de homem que deixe dinheiro a apodrecer.

— Gostaria de ver a caixa-forte.

— Lamento, mas isso não é possível.

— Konrad, por favor. Não temos muito tempo.

A porta exterior era de aço inoxidável e tinha um ferrolho circular do tamanho de um leme de barco. Lá dentro, havia uma segunda porta, também de aço inoxidável, com uma pequena janela de vidro reforçado. A porta exterior apenas ficava fechada à noite, explicou Becker, ao passo que a porta interior era utilizada durante o horário de expediente.

— Explique quais são os procedimentos quando um cliente quer aceder a um cofre.

— Depois de ser autorizado a entrar pela porta da frente, que dá para a Talstrasse, o cliente se registra na recepção. Esta o encaminha a minha secretária. Sou a única pessoa que lida com contas numeradas. O cliente tem de fornecer duas informações.

— O número e a senha?

Becker assentiu.

— Na maior parte dos casos, trata-se de uma formalidade, já que eu conheço praticamente todos os nossos clientes. Dou entrada no livro de registros e depois acompanho o cliente até a caixa-forte. São precisas duas chaves para abrir o cofre, a minha e a do cliente.

Geralmente, sou eu que tiro o cofre e o coloco em cima da mesa.

— E é nessa altura que saio.

— Fechando a porta quando vai embora?

— Claro.

— E trancando-a?

— Com certeza.

— E o senhor e o cliente entram os dois sozinhos na caixa-forte?

— Nunca. Sou sempre acompanhado pelo nosso segurança.

— E o guarda também se vai embora da caixa-forte?

— Sim.

— E o que acontece quando o cliente está pronto para sair?

— Chama o guarda pressionando o botão.

— Há mais alguma maneira de sair do banco sem ser pela Talstrasse?

— Há uma porta de serviço que dá para uma ruela nos fundos e lugares de estacionamento. Partilhamo-los com os outros inquilinos do prédio. Estão todos atribuídos.

Gabriel olhou em redor, para as caixas de aço inoxidável que cintilavam e depois para Becker. As lentes escuras dos seus óculos brilhavam com o reflexo das intensas luzes fluorescentes, tornando’ os seus pequenos olhos negros invisíveis.

— Vou precisar de um favor seu, Konrad. Um grande favor.

— Uma vez que gostaria de não perder o meu banco, Herr Allon, em que posso ajudá-lo?

— Mande chamar seu segurança e sua secretária. Diga-lhes para tirarem folga nos próximos dias.

— Presumo que os vá substituir?

— Não quero deixá-lo em apuros, Konrad.

— Alguém que eu conheça?

— A secretária será uma desconhecida. Mas pode se lembrar do segurança de outros tempos.

— Herr Lange, suponho eu?

— Tem mesmo uma boa memória, Konrad.

— Isso é verdade. Mas um homem como Oskar Lange também não é assim tão fácil de esquecer.

CAPÍTULO 51

ZURIQUE

 

 

Gabriel saiu do banco pouco depois das oito e encaminhou-se para um café movimentado na Bahnhofstrasse. Sentados numa mesa exígua ao fundo, rodeados por homens de negócios suíços de ar deprimido, estavam Sarah e Uzi Navot. Sarah tomava café; Navot atacava um prato de ovos mexidos e torrada. O cheiro da comida fez o estômago de Gabriel dar voltas quando ele se abaixou para se sentar numa cadeira livre. Ainda demoraria até que sentisse outra vez vontade de comer.

— As faxineiras chegaram uma hora depois de termos partido — murmurou Navot em hebraico. — Os corpos foram tirados de lá e estão a dar uma boa arrumada na casa inteira.

— Diga para garantirem que esses corpos nunca reapareçam. Não quero que Ivan saiba que tiramos Chernov de circulação.

— Ivan não saberá de nada. E Petrov também não.

Navot deixou cair uma garfada de ovo  e passou de hebraico para alemão, que falava com um ligeiro sotaque vienense: — E como está o meu velho amigo Herr Becker?

— Envia cumprimentos.

— Está disposto a ajudar?

— Disposto pode ser uma palavra muito forte, mas estamos lá.

Num alemão rápido, Gabriel descreveu os procedimentos para o cliente aceder aos cofres no Becker & Puhl. Terminado o relatório, fez sinal ao garçom e pediu um café. A seguir, pediu que levantassem o prato de Navot. Este ainda teve tempo para tirar um último bocado de tosta no momento em que o prato flutuou para longe.

— Quem fica como secretária? Tem que falar inglês, alemão e francês, o que faz com que sobre uma candidata.

Navot olhou por breves instantes para Sarah.

— Eu me sentiria melhor se obtivéssemos aprovação de Langley antes de metê-la lá dentro.

— Carter me deu autoridade para usá-la da forma que precisasse. Além disso, dei-lhe um papel ativo na operação da noite passada em Genebra.

— E tudo o que ela teve de fazer foi desempenhar o papel da amante abandonada uns poucos segundos. Agora, estás a falar em colocá-la muito perto de um antigo assassino do KGB.

Sarah falou pela primeira vez: — Posso dar conta do recado, Uzi.

— Esquece que Ivan tem fotos suas tiradas na casa dele de Saint-Tropez, no Verão passado. E é possível que ele tenha mostrado essas fotografias ao amigo Petrov. Eu levei uma peruca morena e óculos falsos. Quando os ponho, mal me reconheço a mim mesma. E, da mesma maneira, mais ninguém será capaz de me reconhecer, especialmente se nunca me tiverem visto em pessoa.

Navot continuava cético.

— Ainda há outra coisa que é preciso ter em conta, Gabriel.

— O quê?

— O treino dela com armas. Mais precisamente, a falta de treino dela com armas.

— Eu a treinei. E a CIA também.

— Não, foi um treino muito básico. E a CIA preparou-a para um trabalho de secretária no Centro de Contraterrorismo. Não se disparam muitos tiros num dia normal em Langley.

Sarah disse em sua própria defesa: — Posso lidar com uma arma, Uzi. Mas não como Dina e Rimona. As duas eram do exército. E se alguma coisa der errado lá dentro... Não hesitariam, não é?

Navot não respondeu.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

O garçom trouxe o café de Gabriel. Navot passou-lhe um pacote de açúcar.

— Suponho que o posto de secretária esteja neste momento preenchido.

— Está.

— E quem tem em mente para o segurança? Os requisitos em termos de línguas são os mesmos: inglês, francês e alemão. E também precisa ter um pouquinho de músculo.

— Isso limita consideravelmente o grupo de potenciais candidatos: tu e eu. E como não restam quaisquer dúvidas de que Petrov conhece a seu rosto, isso significa que não pode se aproximar daquele banco de maneira nenhuma.

— Se não...

— Eu faço isso — respondeu Navot rapidamente. — Eu trato disso.

— É a pessoa mais forte que conheço, Uzi.

— Mas não suficientemente forte para travar veneno russo. Haja o que houver, não aperte a mão dele. E não esqueça: não vai estar sozinho. Mal Petrov entre na caixa-forte, Sarah vai sinalizar para entrarmos no banco. Quando voltar a abrir a porta para deixá-lo sair, Petrov vai deparar-se com vários homens.

— E para onde o levamos?

— Para dentro da van, pela porta dos fundos. Aplicamos uma dose de qualquer coisinha para o manter confortável durante a viagem.

Navot fez questão de mostrar que estava a examinar as suas — roupas. Tal como Gabriel, trazia uma camisola e um casaco de couro.

— Preciso de algo um pouquinho mais apresentável — disse, passando a mão pelo queixo. — E também de fazer a barba.

— Pode comprar aqui na Bahnhofstrasse. Mas rápido, Uzi. Não quero que chegue atrasado ao teu primeiro dia de trabalho.

Os veteranos gostam de dizer que a vida de um agente operacional do Escritório se faz de viagens constantes e de um tédio embrutecedor, interrompido por interlúdios de puro terror. E depois há a espera. Esperar por um avião ou trem. Esperar por uma fonte. Esperar que o Sol nasça depois de uma noite de matança. E esperar que um assassino russo vá buscar cinco milhões de euros a um cofre em Zurique. Para Gabriel, a espera tornou-se ainda pior devido às imagens que lhe irrompiam pelos pensamentos como quadros numa galeria. As imagens roubaram-lhe a sua paciência natural. Puseram-no agitado, aterrorizado. E privaram-no da frieza emocional que Shamron achara tão atraente quando Gabriel era um rapaz de vinte e dois anos. Não os odeies, dissera-lhe Shamron a propósito dos terroristas do Setembro Negro. Limita-te a matá-los, para que eles não possam matar outra vez. Gabriel tinha obedecido. Agora, tentava obedecer, mas não era capaz. Odiava Ivan. Odiava Ivan como nunca tinha odiado antes.

O interminável dia de vigilância não deixou de ter os seus momentos mais leves, providenciados quase exclusivamente pelo par de transmissores que Navot instalou no interior do Becker & Puhl poucos minutos depois de lá ter chegado. A equipe ficou à escuta quando Miss Irene Moore, uma jovem e atraente americana enviada por uma agência de trabalho temporário de Zurique, foi buscar café a Herr Becker. E anotou o que Herr Becker lhe ditou. E atendeu o telefone de Herr Becker. Aceitou os vários elogios de Herr Becker a sua beleza. E declinou habilmente um convite para jantar num restaurante com vista para o lago Zürichsee. Também ficaram à escuta quando Herr Becker e Oskar Lange passaram vários momentos desconfortáveis reaprendendo a se habituar um ao outro. E quando Herr Becker explicou a Herr Lange os detalhes relacionados à abertura e ao fechamento da caixa forte. E, no fim da tarde, ouviram Herr Becker repreender Herr Lange por não ter podido abrir a caixa-forte com a rapidez necessária quando Mr. Al-Hamdali, de Jidá, quis acesso a seu cofre. Nada dispostos a deixar passar uma boa oportunidade, ordenaram a Miss Moore que copiasse a ficha de Mr. Al-Hamdali. A seguir, apostando no seguro, tiraram várias foto de Mr. Al-Hamdali quando ele saiu do banco.

Trinta minutos mais tarde, as persianas do Becker & Puhl foram fechadas e as luzes desligadas. O segurança e a secretária deram boa-noite a Herr Becker e seguiram cada um seu caminho: Herr Lange virando à esquerda, em direção a Barengasse, Miss Moore à direita, para Bleicherweg. Gabriel, com Lavon num carro estacionado, não se deu ao trabalho de esconder a desilusão.

— Voltamos amanhã — disse Lavon, fazendo o possível para consolá-lo. — E depois de amanhã, se tiver que ser.

Mas Lavon, tal como Gabriel, sabia que o tempo de que dispunham era limitado. Ivan apenas lhes tinha dado setenta e duas horas. E isso deixava-lhes apenas tempo para mais um dia em Zurique Gabriel disse aos membros da equipe para voltarem para os quartos de hotel e descansarem. E, embora precisasse ele próprio desesperadamente de dormir, esqueceu-se de seguir o seu próprio conselho e, em vez disso, entrou discretamente para a parte de trás de uma van de vigilância estacionada na Talstrasse. Foi aí que passou a noite sozinho, sem tirar os olhos da entrada do Becker Puhl, à espera do assassino a soldo de Ivan. O irmão de Ivan no KGB. O velho amigo de Ivan em Moscou, durante os anos noventa, nos velhos e maus tempos em que não havia lei nem qualquer outra coisa que impedisse Ivan de ir matando gente até chegar ao topo. Um homem desses talvez soubesse onde Ivan gostava de tratar dos seus assuntos sanguinários. Quem sabe? Um homem desses talvez já lá tivesse ele próprio matado.

Na manhã seguinte, poucos minutos antes das nove, Sarah e Navot chegaram ao posto de trabalho. Yossi substituiu Gabriel na van e tudo começou novamente. A vigilância. A espera.

Pouco depois das quatro da tarde Gabriel estava ao lado de Mikhail num café com vista para a Paradeplatz. Pediu algo para Gabriel comer.

— E não tente dizer que não. Está com um aspecto horroroso. Além disso, vais precisar de todas as tuas forças quando cairmos em cima do Petrov.

— Já começo a pensar que ele não vai aparecer.

— E deixar cinco milhões de euros em cima da mesa? Ele vai aparecer, Gabriel. Acabará por aparecer.

— O que te faz ter tanta certeza?

— Chernov apareceu no fim do dia e Petrov vai aparecer no fim do dia. Esses bandidos russos não fazem nada quando há luz. Preferem a noite. Acredite em mim, Gabriel, conheço-os melhor do que você. Cresci com estes sacanas.

Estavam sentados lado a lado, num balcão alto, à janela. Lá fora, os postes começavam a se iluminar na movimentada praça e os bondes serpenteavam pela Bahnhofstrasse. Mikhail batia nervosamente com os dedos no balcão.

— Está me dando dor de cabeça, Mikhail.

— Desculpe, chefe.

Os dedos ficaram quietos.

— Há alguma coisa preocupando você?

— Tirando o fato de estarmos à espera que um assassino russo venha buscar o lucro do sequestro de sua mulher? Não, Gabriel, não há absolutamente nada.

— Não concorda com a minha decisão de colocar Sarah naquele banco?

— Claro que concordo. Ela é perfeita para o trabalho.

— Se não concordasse com minhas decisões você diria, não é, Mikhail? Tem sido sempre assim que esta equipe funciona. Nós falamos de tudo.

— Eu teria dito se não concordasse.

— Ótimo, Mikhail, porque não gostaria nada de pensar que alguma coisa mudou por estar envolvido com a Sarah.

Mikhail deu um gole no café, tentando ganhar tempo.

— Ouça, Gabriel, eu ia dizer, mas...

— Mas o quê?

— Achei que ficaria zangado.

— Por quê?

— Vamos, Gabriel, não me faça dizer isso agora. Não é a hora.

— É a hora perfeita.

Mikhail pôs o café em cima do balcão.

— Era óbvio para todos nós, desde o momento em que recrutamos Sarah para a operação do Al-Bakari, que ela sentia alguma coisa por você. E, francamente...

— Francamente o quê?

— Pensamos que você também sentisse.

— Isso não é verdade. Isso nunca foi verdade.

— Tudo bem, Gabriel, como queira.

Uma garçonete colocou um sanduíche na frente de Gabriel. Ele empurrou para o lado.

— Coma, Gabriel. Precisa comer.

Gabriel arrancou um canto do sanduíche.

— Está apaixonado por ela, Mikhail?

— Que resposta quer ouvir?

— Seria simpático se fosse a verdade.

— Sim, Gabriel. Amo-a muito. Demais.

— Isso é coisa que não existe. Faça-me só um favor, Mikhail. Tome bem conta dela. Vá morar na América. Saia deste mundo o mais depressa que puder. Saia antes que...

Não terminou de dizer o em que estava pensando. Mikhail recomeçou a bater com os dedos no balcão.

— Acha que ele vai aparecer?

— Vai aparecer.

— Dois dias à espera. Já não aguento mais essa espera.

— Já não terá que esperar muito, Mikhail.

— Como tem tanta certeza?

— Porque Anton Petrov acabou de passar por nós.

CAPÍTULO 52

ZURIQUE

 

Usava japona, cachecol cinzento, grandes óculos com armações de metal e uma boina bem enfiada na cabeça. Por mais estranho que isso pudesse parecer, o disfarce tosco chamou a atenção de Gabriel. Tinha passado inúmeras horas a olhar fixamente para as fotos de vigilância tiradas no Aeroporto de Heathrow, os vislumbres fragmentados de um homem de queixo robusto, com óculos e um chapéu de feltro. Foi esse homem que passou à frente do café com vista para a Paradeplatz, levando duas pastas de diplomata desirmanadas. E era esse homem que virava naquele momento a esquina para a Talstrasse. Gabriel levou cautelosamente aos lábios o microfone que tinha ao pulso e informou Sarah e Navot de que Petrov estava a caminho. Quando a comunicação terminou, Mikhail já tinha se levantado e dirigia-se para a porta. Gabriel deixou um maço de dinheiro em cima do balcão e foi atrás dele.

— Esqueceu de pagar a conta — disse. — Os suíços ficam muito zangados quando fugimos sem pagar a conta.

Petrov passou duas vezes em frente ao banco antes de acabar por se apresentar à entrada quando faltavam apenas três minutos para a hora de fecho. Carregando na campainha, identificou-se como Otto Wolfe e deixaram-no entrar sem demora. A recepcionista telefonou imediatamente para Miss Irene Moore, secretária temporária de Herr Becker, e lhe foi dito que mandasse logo o cliente. Lá fora, na Talstrasse, duas duplas se posicionaram discretamente em seus lugares: de um lado, Yaakov e Oded, e, do outro, Gabriel e Mikhail. Este último cantarolava. Gabriel não o ouvia. Estava apenas concentrado na voz que tinha ao ouvido, a voz de Sarah Bancroft, dizendo boa-tarde a um dos homens mais perigosos do mundo.

Faça o favor de se sentar, Herr Wolfe, disse ela num alemão perfeito.

O Herr Becker irá atendê-lo dentro de poucos momentos. Ele pôs as pastas de diplomata no chão, ao lado da cadeira, desabotoou a canadiana e tirou as luvas de couro. Não havia qualquer anel nos dedos da mão esquerda. Mas no terceiro dedo da mão direita, aquele em que um russo comum traria uma aliança de casamento, tinha um anel pesado com uma pedra escura. Na América, teria passado por um anel de curso, ou pelo anel de uma unidade militar. Sentada à mesa, Sarah obrigou-se a não olhar para ele.

— Posso guardar seu casaco?

— Não.

— Deseja tomar alguma coisa? Café ou chá?

Ele abanou a cabeça e sentou-se sem tirar a japona ou a boina.

— A senhora não é a secretária de Herr Becker.

— Ela está doente.

— Nada grave, espero.

— Só um vírus.

— Anda por aí muito disso. Nunca a tinha visto aqui.

— Só estou aqui temporariamente.

— Não é suíça.

— Americana, para dizer a verdade.

— Seu alemão é muito bom. Até tem um pouco de sotaque suíço.

— Estudei aqui alguns anos quando era nova.

— Em que escola?

A resposta de Sarah foi interrompida pelo aparecimento de Becker à porta do seu gabinete. Petrov levantou-se.

— A sua secretária ia agora mesmo dizer o nome da escola em que estudou na Suíça.

— Foi na Escola Internacional de Genebra.

— Tem uma reputação excelente — respondeu ele, estendendo a mão direita. — Foi um prazer conhecê-la, Miss...

A voz foi sumindo.

— Moore — completou ela, apertando a mão dele com força. Irene Moore.

Petrov largou a mão de Sarah e entrou na sala de Becker. Passados trinta segundos, e terminadas as formalidades, os dois homens saíram de lá e foram para a caixa-forte. Sarah passou a informação a Gabriel pelo microfone escondido na mesa e, a seguir, esticou a mão por baixo desta e abriu o fecho da mala de mão. A arma estava lá, o cano virado para baixo e a coronha à vista. Olhou de relance para o relógio e aguardou o som da campainha da porta de entrada. Começou a sentir coceira no lugar da mão em que o anel de Petrov a tinha tocado. Não era nada, disse a si mesma. Só sua cabeça pregando peça.

Uzi Navot esperava na entrada da caixa-forte quando Becker surgiu, seguido por Anton Petrov. As fotos de vigilância tiradas em Heathrow não tinham feito justiça ao tamanho do russo. Tinha bem mais do que um metro e oitenta, ombros largos e era forte. A preocupação que sentia era claramente visível. Olhando diretamente para Navot, perguntou a Becker: Onde está o segurança habitual? O banqueiro respondeu sem hesitação: — Tivemos de despedi-lo. Lamento, não posso entrar em detalhes. Mas pode ficar descansado, já que o assunto não envolveu ativos de clientes, incluindo os seus.

— Fico aliviado — atirou ele, ainda de olhos postos em Navot. — Mas é uma bela coincidência. Uma nova secretária e um novo segurança.

Uma vez mais, Becker conseguiu dar uma resposta pronta: — Temo que a mudança seja a única constante, até na Suíça.

Navot abriu a segunda porta que dava para a caixa-forte e afastou-se. O russo manteve-se imóvel no lugar, o olhar passando rapidamente do banqueiro para o segurança e vice-versa. Era evidente que Petrov suspeitava de alguma coisa e se sentia relutante em entrar. Navot interrogou-se se cinco milhões de euros seriam suficientes para tentá-lo. Não teve de esperar muito tempo pela resposta.

— Peço desculpas por incomodá-lo, Herr Becker, mas mudei de ideia. Trato dos meus assuntos em outra hora.

Becker pareceu ser apanhado de surpresa. Por um instante, Navot temeu que ele pudesse improvisar e pedir ao russo que reconsiderasse a decisão. Em vez disso, afastou-se com a brusquidão de um maître e apontou para a saída.

— Como queira.

Petrov fitou Navot com um olhar reprovador, voltou-se e começou a avançar pelo corredor. Navot ponderou suas opções rapidamente. Se o russo conseguisse sair do banco, restariam apenas duas saída para a equipe: apanhá-lo numa rua movimentada de Zurique — dificilmente uma solução ideal — ou segui-lo até seu próximo destino. O melhor seria atacá-lo ali mesmo, nas instalações do Becker & Puhl, mesmo que isso significasse fazê-lo sozinho.

Navot tinha uma curta vantagem — o fato de Petrov estar de costas — e aproveitou-a. Afastando Becker com um movimento da mão esquerda, aplicou um golpe com a direita semelhante a uma facada no pescoço do russo. A pancada poderia ter matado um homem normal, mas Petrov limitou-se a cambalear. Recuperando o equilíbrio, largou as pastas diplomáticas rapidamente e enfiou a mão esquerda sob o casaco. Ao virar-se para enfrentar Navot, a pistola já era perceptível. Navot agarrou o pulso esquerdo do russo e bateu com força contra a parede. Virou a cabeça e procurou desesperadamente a direita. Não foi difícil encontrar. Com os dedos esticados e o anel da morte à vista, tentava alcançar seu pescoço. Navot agarrou o outro pulso e segurou-o com força.

Não vai estar sozinho, tinha dito Gabriel. Engraçado como as coisas nunca corriam como planejado.

Sarah ouviu dois sons, numa sucessão rápida: um homem gemendo de dor, seguido por um pesado baque surdo. Segundos depois, ouviu um terceiro som: o botão do intercomunicador. Gabriel e os outros estavam à espera lá fora, na entrada do banco. Demorariam pelo menos trinta segundos para entrar e chegar à caixa-forte. Trinta segundos em que Uzi lutaria pela vida, sozinho, com um assassino profissional russo.

— Eu também não hesitarei, Uzi.

— Tem certeza disso?

— Tenho.

Sarah esticou a mão por baixo da mesa e tirou a pistola da mala. Enfiando a primeira bala na câmara, levantou-se e dirigiu-se ao corredor.

 

Ao terceiro toque da campainha, a recepcionista respondeu enfim.

— Posso ajudá-los?

— Meu nome é Heinrich Kiever. Herr Becker está à minha espera.

— Um momento, por favor.

O momento pareceu durar uma eternidade.

— Herr Kiever?

— Sim?

—  Lamento informá-lo, mas ninguém atende o telefone de Herr Becker. Podem esperar mais um momento, por favor?

— Seria possível esperarmos aí dentro? Está muito frio aqui fora.

— Lamento, mas isso vai contra a política do banco. Tenho certeza de que Herr Becker atenderá num momento.

— Obrigado.

Gabriel olhou de relance para Mikhail.

— Acho que podemos ter um problema lá dentro.

— O que fazemos?

— A não ser que consiga pensar em alguma maneira de entrar à força num banco de Zurique, esperamos.

Não havia suficiente treino com armas que pudesse preparar Sarah para o cenário que encontrou ao entrar no corredor que dava para a caixa-forte: um banqueiro suíço encolhido de medo e dois homens corpulentos se esforçando para se matar um ao outro. Navot tinha conseguido prender Petrov contra a parede e debatia-se na tentativa de controlar os braços do russo. Na mão esquerda de Petrov, havia uma pistola. A direita estava vazia, mas ele tinha os dedos esticados e parecia tentar alcançar o pescoço de Navot.

O anel! Um toque do estilete era tudo o que era preciso. Um toque e Navot estaria morto passados alguns minutos.

Com as mãos bem esticadas agarrando a arma, Sarah evitou Becker e avançou para os homens que lutavam. Petrov percebeu de imediato a aproximação e tentou apontar sua arma na direção dela. Navot reagiu com rapidez, torcendo o braço do russo e batendo com ele com força na parede, de modo que o cano da pistola ficasse apontado para o teto.

— Atire, Sarah! Atire, diabos!

Sarah deu dois passos para a frente e encostou a pistola no quadril esquerdo de Petrov.

Eu também não hesitarei, Uzi... E não hesitou, nem por um instante. A bala despedaçou a articulação do quadril do russo e fez com que a perna dele se torcesse. Sem perceber bem como, a mão esquerda se manteve com a pistola. E a direita continuava a se aproximar pouco a pouco do pescoço de Navot.

— Outra vez, Sarah! Atire outra vez!

Desta vez ela encostou a pistola no ombro esquerdo de Petrov e apertou o gatilho. No momento em que o braço do russo perdeu a força, ela arrancou rapidamente a pistola da mão dele.

Podendo agora usar a mão direita, Navot fechou-a num punho maciço e deuu três socos brutais no rosto de Petrov. Os dois últimos já não eram necessários. O russo tinha perdido os sentidos no primeiro.

 

 

 


CONTINUA