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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESPERTAR DE MENFREYA / Victoria Holt
O DESPERTAR DE MENFREYA / Victoria Holt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

      Naquele castelo da Cornualha, amor e morte andam de mãos dadas
      Diz a tradição que, quando o relógio da torre do Castelo de Menfreya pára, isso significa mau agouro. Mas, para Harriet, não passa de mais uma das muitas crendices que cercam a propriedade de Bevil, seu marido.
      No entanto, quando Jessica, a nova governanta, muda-se para Menfreya, a segurança de Harriet é abalada: haveria algo entre aquela bela mulher e seu marido? As suspeitas adquirem proporções maiores quando Harriet recebe um misterioso aviso de morte, seguido da notícia de que o relógio da torre parou...

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      É pela manhã que melhor se pode apreciar Menfreya. Descobri isso pela primeira vez num nascer do sol na casa da Ilha de Ninguém, quando as nuvens manchadas de vermelho projetavam brilhos rosados no mar, e a água que circundava a ilha era como seda encrespada de cor cinza-pérola.
      Depois do medo que senti durante a noite, a manhã me pareceu mais calma, e a paisagem, também, mais encantadora após os pesadelos. Diante da janela aberta, com o mar e a ilha principal à minha frente e vendo Menfreya assentada no topo de um penhasco, me senti estimulada por toda aquela beleza e também pelo fato de que tinha conseguido atravessar, a salvo, a noite.
      A casa parecia um castelo, com seus torreões, contra-fortes e torres de ameias, sendo também um ponto de referência para os marinheiros, que podiam saber onde se achavam depois de avistarem aquele bloco de velhas pedras. Ao entardecer, adquiria um tom cinza-prateado, com o sol fazendo suas pedras pontiagudas brilharem como diamantes. Nunca, porém, Menfreya se mostrava em todo o esplendor como quando era batida pela luz rosa do sol nascente.
      Menfreya é, há séculos, a casa dos Menfrey. Intimamente, eu os apelidei de Menfrey Fabulosos, porque assim me pareciam - fortes, viris, todos com impressionante aparência. Já ouvira falar que eram também chamados de Menfrey Selvagens, e segundo A'Lee, o mordomo de Chough Towers - que tinha muitas histórias para contar do atual Sir Endelion - eles não só eram selvagens, mas também maus. Os Menfrey tinham nomes que me pareciam estranhos, mas, aparentemente, assim não achavam os habitantes daquela região, já que se tratava de nomes que, há longo tempo, constavam da história do ducado. A atual Lady Menfrey, contou-me A'Lee, quando era ainda uma mocinha de não mais de 15 anos, foi raptada por Sir Endelion, que a trouxe para Menfreya, onde a manteve, arruinando sua reputação, e, desse modo, a família dela nada mais tinha a fazer a não ser de bom grado concordar com o casamento dos dois.
      - Não se iluda, senhorita, o casamento não foi por amor - disse A'Lee. - Ele andava era atrás do dinheiro dela, porque os Menfrey estavam precisando, e ela era uma das grandes herdeiras deste país.
      Quando vi Sir Endelion cavalgando nas redondezas de Menfreystow, julguei que fosse um rapaz; muito parecido com o próprio filho, Bevil, era como se estivesse indo raptar a herdeira para trazê-la em seu cavalo para Menfreya; pobre moça, pouco mais do que uma criança, amedrontada e inteiramente fascinada por aquele selvagem.
      O cabelo dele era alourado, e me fazia lembrar a juba de um leão. Olhava ainda para mulheres, contou-me A'Lee - e este era o ponto fraco dos Menfrey; muitos deles, homens e mulheres, foram muito infelizes em seus amores.
      Lady Menfrey, a herdeira, era inteiramente diferente do resto da família; loura e frágil, essa gentil senhora se dedicava aos pobres da região. Com resignação, aceitou seu destino quando passou a fortuna para as mãos do marido. E, assim, disse A'Lee, ele se pôs imediatamente a desbaratar da forma mais louca a fortuna dela.
      Não fosse pelo seu dinheiro, Lady Menfrey teria sido considerada decepcionante, pois os Menfrey sempre foram grandes reprodutores, e ela teve apenas um filho, Bevil; passados cinco anos é que foi ter uma filha, Gwennan. Não que tenha deixado de se esforçar nesse meio-tempo. Quase todos os anos a pobre senhora passava por um insucesso, e mesmo durante alguns anos, após o nascimento de Gwennan, continuou tentando engravidar.
      Logo que vi Bevil, e que me falaram que era tal e qual o pai, quando jovem, deu para entender por que Lady Menfrey se deixara raptar. O colorido de Bevil era o mesmo do pai, e com o olhar mais sedutor que eu já tinha encontrado. Os olhos possuíam o mesmo tom do cabelo: marrom-avermelhado, mas não era por isso que se faziam notados; suponho que fosse por algo na expressão, algo de indiferença, segurança e sarcasmo, quando contemplavam o mundo e sua pobre gente, como se, enfim, nada fosse digno de ser levado a sério. Para mim, constituía-se no membro mais fascinante de uma família fabulosa.
      De todos, Gwennan, a irmã, era quem eu melhor conhecia, pois, sendo de minha idade, havia me tornado sua amiga. Possuía um tipo de arrogância e vitalidade que parecia, neles, inerentes. Costumávamos passar horas falando, deitadas por cima das rochas entre a vegetação da orla do mar, ou melhor, ela falava e eu ouvia.
      - Na Igreja de St. Neot, há um vitral - contou-me certa ocasião. - Está lá há centenas de anos e nele existe uma pintura de St. Brychan com os 24 filhos. Lá também estão St. Ive, Menfre e Endelient... Menfre, obviamente, é o nosso nome, o de papai vem de Endelient. Gwennan era uma irmã de Brychan. Bem, agora você já sabe. ..
      - E o de Bevil?
      - Bevil? - pronunciou o nome com respeito. - Vem de Sir Bevil Granville, aquele que foi o maior dos soldados da Cornualha. Ele lutou contra Oliver Cromwell.
      - Bom - disse eu, sabendo um pouco mais de história do que ela -, mas ele não venceu.
      - Naturalmente que venceu - respondeu com desdém.
      - Mas a Srta. James diz que o rei foi decapitado e que Cromwell governou depois.
      Como boa Menfrey, recusou a informação da Srta. James e os livros de história.
      - Bevil venceu sempre - declarou, pondo um ponto final.
      Os muros da casa, agora, começavam a mudar de cor novamente; os tons rosa iam esmaecendo, passando a pirateados pelo brilho do amanhecer. Dei uma olhada no contorno da costa, nas rochas perigosas, afiadas como facas e traiçoeiras, porque, freqüentemente, eram encobertas pelo mar. Perto da ilha havia uma fileira de rochas, batizadas com o nome de Sorrateiras. Gwennan explicou que o nome era devido ao fato de elas, muitas vezes, passarem completamente despercebidas, como se espreitassem, sorrateiras, a aproximação de um barco para destruí-lo. A Ilha de Ninguém fazia parte dessa fileira de rochas e ficava a uns quinhentos e tantos metros da ilha principal, sendo apenas um montículo no mar, com uma circunferência de mais ou menos um quilômetro quadrado. Nela havia uma casa apenas, embora existisse uma bela nascente, que foi a razão, segundo Gwennan, para se construir a casa. Envolvia-se essa casa em aura misteriosa, que levava as pessoas a não quererem habitá-la, o que, por sinal, foi muito bom - pois se tivesse algum inquilino, onde agora teria passado a noite? Não seria o lugar que iria escolher se tivesse tido chance para outra opção. Bem, a casa, onde ninguém queria viver, era cheia de luz e, mesmo assim, continuava tendo uma atmosfera lúgubre. A impressão era de que as pessoas ficavam prisioneiras do passado, que lá havia colocado sua armadilha.
      Se dissesse isso a Gwennan, ela iria rir de mim. Já até imaginava o seu tom de voz alto e mandão, dizendo com desdém: "Xi! Quanta imaginação! Isso é porque você estava muito aflita".
      Gwennan não tinha escrúpulos em discutir abertamente assuntos que os outros fingiam não acreditar. Talvez, por isso, achasse sua companhia sensacional, se bem que algumas vezes se tornava bastante desagradável.
      Estava com fome e comi o chocolate trazido por ela; dei uma olhada na sala. À noite, os lençóis para proteger os móveis contra poeira pareciam fantasmas, e cheguei a pensar se não seria melhor dormir do lado de fora; mas a terra era dura, o ar estava frio e o barulho do mar, parecendo murmúrio de vozes, era bem mais alto do lado de fora do que dentro da casa. Assim, subi e fui para um dos quartos, deitando inteiramente vestida na cama que não desfiz.
      No dia seguinte, desci até a cozinha: enorme, com chão de pedra; as lajes estavam úmidas, como tudo na ilha. Lavei-me com a água que trouxe do poço na véspera; na parede, havia um espelho e penteei os cabelos; ao me olhar, pareceu que eu estava diferente de quando me via no espelho de meu quarto em casa. Meus olhos pareciam maiores, provavelmente pelo medo; minhas faces estavam pálidas, sem dúvida pela emoção; e meus cabelos apontavam em todas as direções, por causa da noite agitada. Eram cabelos grossos, duros, que não admitiam ser presos e que foram motivo de desespero das muitas babás que tiveram a desventura de cuidar de mim na infância. Minha aparência era comum, e eu não tinha o menor prazer de olhar minha imagem no espelho.
      Para matar o tempo, decidi explorar a casa. Era também um jeito de me certificar de que, de fato, estava sozinha. Via agora que os estranhos ruídos que me torturaram a noite toda eram estalidos da madeira; aquilo que me pareceu sussurros e respirações humanas era o ritmado balanço das ondas ou então o tropel de ratos, pois havia quantidades deles na ilha. Segundo Gwennan, vinham de navios naufragados nas Sorrateiras.
      A casa fora construída pelos Menfrey há 150 anos, e como muitas outras coisas no distrito, também lhes pertencia. Além da cozinha e das dependências externas, possuía oito peças; recentemente tinha sido mobiliada, esperando pelo ocupante que jamais chegou.
      Entrei na sala de visitas, cujas janelas se abriam para o mar. À volta da casa não havia jardim, mas parece que alguém, em algum tempo, tentou fazer um. Agora, tufos de grama, moitas de tojo e capim cresciam por toda parte. Os Menfrey não queriam se aborrecer com isso, ademais seria inútil porque, nas ocasiões de maré alta, tudo era invadido pelas águas do mar.
      Sem idéia das horas, saí e desci para um recanto na praia, contemplando Menfreya, à espera de Gwennan.
      O sol já ia bem alto quando ela apareceu. Vi quando surgiu do outro lado, numa praia formada por uma enseada de propriedade também dos Menfrey, que, como especial favor, permitiam o seu uso pelo público, para que não se tivesse de cercar parte dela e obrigar as pessoas a darem a volta. Lá, eram guardados três ou quatro botes amarrados, e fiquei observando quando ela entrou num e começou a remar. Logo, estava atracando no lado de cá, e, ao pular do barco, fui correndo ao seu encontro gritando:
      - Gwennan!
      - Psss! - Ela fez. - Alguém pode ouvir e ver você. Entre logo dentro de casa.
      Pouco depois estava comigo, excitada como nunca. Notei que vestia uma capa com enormes bolsos internos, parecendo estofados com o que achei que fosse a comida que me prometera.
      Nas mãos, agitava um jornal.
      - Olhe para isso! - gritou. - O jornal desta manhã. Você está nele. Você... na primeira página.
      Foi até uma mesa, coberta por uma toalha empoeirada, colocando sobre ela o jornal.
      Arregalei os olhos e li: "Filha de membro do Parlamento desaparecida. Hipótese de crime não é excluída, diz a polícia". Abaixo do cabeçalho se lia: "Henrietta (Harriet), de 13 anos, filha de Sir Edward Delvaney, membro do Parlamento por Lansella, distrito da Cornualha, desapareceu de sua casa em Londres há dois dias. Teme-se que tenha sido seqüestrada e que seja pedido resgate".
      Gwennan sentou-se em cima da mesa, segurando os joelhos com as mãos, os olhos meio perdidos - era o jeito como ficavam quando seu rosto se vincava com algo que lhe dava prazer. Apontando para mim disse:
      - Bem, Srta. Henrietta (Harriet) Delvaney, você ficou bem importante, hein? Estão dando buscas por sua causa, e Londres inteira está à sua procura. Veja, ninguém sabe onde está, a não ser eu e, claro, você.
      Suponho que fosse isso mesmo o que queria; assim, de certa forma, tinha conseguido realizar os meus intentos.
      Demos, as duas, boas risadas. Afinal, as pessoas falavam de mim, e a polícia me procurava. O momento foi maravilhoso! Mas a experiência já me ensinara que, quando são maravilhosos, eles não duram muito. No fim, iam acabar me achando mesmo e, depois, então, o que seria? Flores é que não seriam sempre. Gwennan iria embora; a escuridão estava para chegar, e logo estaria sozinha de novo na ilha.
      Foi numa noite em que meu pai estava dando um baile que decidi fugir da casa dele, que ficava numa parte sossegada de Westminster, a uns cinco minutos a pé do Parlamento. Costumava sempre dizer que, como parlamentar, era também do seu dever receber com prodigalidade e assiduidade. Desse modo, fosse na Cornualha ou em Westminster, tínhamos sempre convidados. Em Londres, dávamos jantares e bailes; na Cornualha, oferecíamos caça e hospedagem. Como eu estava só com 13 anos, era excluída desses acontecimentos. Meu lugar devia ser no meu quarto, mas de lá escapava para ficar espiando, pelas frestas da balaustrada da escada, o hall embaixo e admirando o esplendor que ia pela fresta ou, então, de minha janela, ficava olhando as pessoas descerem de suas carruagens e caminharem sob um toldo vermelho e branco, armado especialmente para a ocasião.
      Um dia inteiro era gasto nos preparativos de uma festa. Nunca faltava, por exemplo, um espesso tapete vermelho, que ia além dos degraus da porta da frente e se estendia pela calçada, até onde as visitas apeavam das carruagens; contratava-se duas floristas, que passavam toda uma tarde ocupadas, arranjando flores em vasos e botando plantas em cada vão de parede; algumas dessas eram expressamente arranjadas para dar impressão de estarem brotando da própria parede; na rica balaustrada da escada em curva entrelaçavam-se flores e folhagens, de cima, até onde não bloqueassem a passagem dos convidados.
      - Está cheirando como num enterro - falei para minha governanta, a Srta. James.
      - Harriet, você está parecendo muito negativa. - Disse isso me olhando com um ar de sofrimento, que era um jeito seu já muito meu conhecido.
      - Mas, está cheirando mesmo como num enterro - insisti.
      - Você é uma menina mórbida - murmurou sem querer me dar razão.
      Coitada da Srta. James: uma mulher de 30 anos e sem recursos, se quisesse sobreviver teria de se casar, ou então se conformar em ser governanta de meninas iguais a mim.
      A ceia ia ser na biblioteca, e a decoração de flores, lá, ficou magnífica. No meio da sala, foi posta uma fonte de mármore, onde nadavam peixinhos dourados e prateados por entre lírios aquáticos, que flutuavam na superfície. A cor dos Tory estava representada por magníficos panejamentos púrpura, e, na sala da frente, decorada nas cores branco, ouro e vermelho, se achava um piano de cauda, que, à noite, seria tocado por um famoso pianista.
      De cima, olhando para baixo, via os convidados subirem a escada, torcendo para que nenhum olhasse para cima e visse lá a filha do anfitrião, que não era motivo algum de orgulho para ele. Estaria esperando por uma oportunidade de ver meu pai, pois nessas ocasiões se mostrava um homem bem diferente daquele que conhecia. Ele se casara tarde; por esse tempo, já devia ter passado dos 50 anos; era alto, e os cabelos escuros estavam brancos nas têmporas; no rosto moreno, os olhos azuis faziam belo efeito, mas, quando olhavam para mim, tinham sempre uma expressão gelada. Nos momentos em que se fazia de anfitrião, ou em outros em que estava falando ao seu eleitorado ou entretendo alguns de seus hóspedes, esses olhos soltavam chispas. Na Câmara, meu pai ficou conhecido como homem de espírito e por fazer brilhantes discursos, sempre publicados nos jornais. Era rico e, por isso mesmo, podia dar-se ao luxo de ser parlamentar. A política era sua vida. Sua renda provinha de investimentos, mas o dinheiro grosso mesmo era oriundo do aço produzido em alguma parte no centro do país. Esse fato nunca era mencionado entre nós, e ele não precisava se preocupar muito com isso, mas o aço era o grande provedor da família.
      Foi eleito para o Parlamento por um distrito da Cornualha, e esse era o motivo por que mantínhamos uma casa perto de Lansella; íamos para lá sempre que o Parlamento estava de férias, visto que ele não podia descuidar-se de seu eleitorado; por alguma razão, que me é estranha, onde meu pai estava, também eu estava, embora víssemos um ao outro muito pouco.
      Nossa casa em Londres, assim, se compunha: no andar térreo, de um grande hall, biblioteca, sala de jantar e dependências de serviço; no primeiro andar, duas salas de visitas muito grandes e estúdios; no andar de cima havia três quartos de hóspedes - um deles ocupado por William Lister, secretário de meu pai - e ainda o meu quarto e o de meu pai.
      Era uma linda casa georgiana, mas, na minha opinião, o melhor dela estava no desenho da escada, que, sinuosa como uma serpente, ia do térreo até o último andar, de modo que do alto se avistava o hall embaixo. Entretanto, para mim, não deixava de ser uma casa fria. E sentia o mesmo em relação à casa da Cornualha. Aliás, qualquer casa em que meu pai fosse viver seria sempre fria e sem vida. Mas Menfreya era diferente. Ela era o contrário - cheia de vida, acolhedora, imprevista, tudo podendo acontecer ali; uma casa, enfim, de que se tinha saudade e de onde não se tinha vontade de sair; era, de fato, um lar.
      Mas, voltando à casa de Londres, devo confessar que sua decoração era elegante e de acordo com a arquitetura; o mobiliário, do século XVIII, com poucas concessões feitas ao estilo vitoriano. Por isso, às vezes, ficava espantada ao entrar em outras casas e ver móveis rebuscados e salas muito atravancadas, começando, então, automaticamente, a compará-las com o nosso Chippendale e com o Hepplewhite.
      Quanto aos criados, não me lembro mais dos nomes deles - também, eram muitos. Entretanto, é claro, não poderia me esquecer da Srta. James, porque foi minha governanta, e também da Sra. Trant, a zeladora, e de Polden, o mordomo. Esses são os nomes de que ainda me lembro, e, naturalmente, o de Fanny.
      Mas Fanny era diferente. Não posso pensar nela como empregada. Sua presença significava segurança num mundo que me ameaçava; quando me sentia perturbada, devido à indiferença percebida em meu pai, era para ela que me voltava, querendo que me explicasse o porquê disso; ela não podia, mas em compensação me dava consolo; foi quem me fez tomar leite e comer arroz-doce; para que não sentisse tanto a falta de uma mãe, como seria natural que sentisse, ela se zangava e se irritava comigo. O seu rosto tinha um formato pontiagudo, e os olhos eram fundos e sonhadores; os cabelos, castanho-acinzentados, ela usava puxados para cima e amarrados por um laço tão apertado no alto da cabeça que dava a impressão até de estar machucando; o tom da pele era amarelado; o corpo, magro; estava com cerca de 35 anos e dificilmente devia ter um metro e meio de altura; desde que pude tomar consciência de sua pessoa, ela me pareceu ter sempre o mesmo aspecto. O seu jeito de falar era o das pessoas das ruas de Londres, aquelas que, mais tarde, às escondidas, conheci por seu intermédio e que passei a amar tanto quanto amava a própria Fanny.
      Pouco depois de meu nascimento, ela veio servir como ama-de-leite. Não creio que pretendessem conservá-la, mas parece que desde as primeiras semanas de vida fui uma criança difícil e logo mostrei predileção por ela; por isso, ela permaneceu, embora a Sra. Trant, Polden e minha governanta mesmo ficassem enciumados; mas nem Fanny nem eu ligávamos para isso.
      Ela era uma mulher de contrastes. Seu cortante cock-ney1 em nada combinava com os olhos sonhadores. As histórias que me contava de seu passado eram mistura de fantasia e realidade. Mas o único fato certo mesmo é que foi abandonada num orfanato por pessoas desconhecidas.
      - Fui encontrada - ela disse - juntinho da estátua de São Francisco dando comida aos pássaros. É por isso que me deram o nome de Francês, apelido Fanny, e o nome completo Frances Stone2, porque a estátua é de pedra.
      Mas já não era mais Frances Stone; tinha se casado com Billy Carter, sobre quem pouco conversávamos. Uma vez, disse que ele estava no fundo do mar e que nesta vida não iria vê-lo mais, e, aí, concluiu de modo brusco:
      - O que acabou, está acabado. O melhor é esquecer. Às vezes, quando se deixava levar pela imaginação - uma de nossas brincadeiras prediletas quando eu estava com seis ou sete anos - relembrava coisas de seu passado, antes de ter sido abandonada junto da estátua de São Francisco. Inventava histórias e eu a encorajava. Assim é que, em algumas, ela havia nascido numa casa enorme, tão grande quanto a nossa, mas ciganos a raptaram; em outras, era uma rica herdeira que um tio perverso abandonou no orfanato, depois de substituí-la na casa do pai por uma criança morta. Sei que as versões eram muitas e que quase sempre terminavam assim: "E como a gente nunca vai mesmo saber, por isso é melhor beber o seu leite, que já é hora de ir para a cama".
      Costumava também conversar comigo sobre o orfanato, de coisas do tipo de campainhas que chamam crianças para comerem uma refeição miserável, e conhecia tão bem suas histórias que via direitinho aquelas crianças com seus aventais listradinhos, mãos sarapintadas de frio e marcadas de frieiras, fazendo reverências diante dos superiores - aprendendo a ser humildes.
      Mas, lá também, se aprendia a escrever, dizia, e o que já é muito, porque há gente que nem isso pôde ter.
      Quase nunca falava do bebê que teve, mas, se acontecia, me segurava com força, abaixando minha cabeça para que não visse o seu rosto.
      - Nasceu uma menina que viveu só uma hora - ela contou. - Foi tudo que tive de Billy.
      Billy estava morto, e o bebê, também.
      - Depois, vim para cá, ficar com você - acrescentou Fanny.
      No parque onde costumava me levar, ficávamos dando comida aos patos ou, então, sentava-se na grama, eu tentando convencê-la a contar mais histórias de sua infância. Foi também quem me apresentou uma parte de Londres, que, não fosse ela, jamais teria conhecido. Mas isso era para ser guardado em segredo, recomendou, pois de nada iria adiantar às pessoas lá de casa ficarem sabendo dos lugares de nossas andanças. Íamos então ao mercado, onde os vendedores montam suas bancas; segurando minha mão, ia me puxando, tão excitada quanto eu com as vozes roucas dos pregões que eu não entendia, mas que cantavam as virtudes das mercadorias. Até hoje, recordo as lojas de roupas usadas penduradas do lado de fora e do cheiro esquisito de mofo que exalavam; das velhas que vendiam miudezas, alfinetes, botões etc; dos mariscos, dos pães de gengibre, das balas para tosse. Uma vez, Fanny trouxe uma batata assada, que foi a coisa mais deliciosa que já tinha comido... enquanto não provei castanhas assadas na brasa.
      - Não diga aonde fomos - sempre avisava.
      E o segredo fazia a coisa ficar mais excitante. Comprava-se, então, ginger beer3, sorvetes de frutas e limonada. Numa de nossas idas, apostamos com o pasteleiro. Um vê-lho uso desses vendedores, explicou Fanny. Durante um tempo, ficamos só observando: um rapaz e sua namorada que, apostando um penny, perderam, indo embora, portanto, sem ganhar o pastel. Chegada nossa vez, Fanny, apostando com largueza, atirou o seu penny para cima e ganhamos. Carregamos, então, nosso pastel para o parque, e, sentadas junto ao lago, nos pusemos a devorá-lo aos pedaços.
      - Mas o que você nunca viu é o mercado nas noites de sábado - disse Fanny. - Talvez quando for maior...
      Era uma coisa para ser programada.
      O mercado me fascinava. Via nas fisionomias dos vendedores todos os tipos possíveis de serem encontrados numa peça de costume. Sensualidade, cobiça, preguiça, astúcia estavam naqueles rostos, e algumas vezes, também, a santidade. Porém o que mais excitava Fanny eram os ilusionistas. Junto deles - mágicos, prestidigitadores, engo-lidores de fogo e de facas etc. - perdia um tempão.
      Foi desse modo que ela me fez conhecer um mundo novo e que estava a um passo de nossa porta, apesar de muitas pessoas ignorá-lo. A única vez que vi esses dois mundos se encontrarem foi numa tarde de sábado, quando, sentada na minha janela, escutei a sineta do vendedor de biscoitos e vi um homem cruzando a praça com um tabuleiro na cabeça, e as criadas de avental e touca branca correndo para comprar com ele.
      Tal foi minha vida, até a noite do baile.
      Nessas ocasiões, todo mundo estava sobrecarregado de serviço na casa, e Fanny foi requisitada pela cozinha, onde passara toda a tarde e a noite; a Srta. James ajudava a Sra. Trant; e nisso tudo, fiquei sozinha.
      Minha tia Clarissa estava conosco, porque meu pai precisava de uma anfitriã. Era irmã dele, e eu desgostava dela tanto quanto ela de mim. Sua mania era me comparar com suas três filhas: Sylvia, Phyllis e Clarissa - todas de cabelos louros, olhos azuis e, segundo ela, lindas. Dentro de pouco tempo, estaria muito ocupada com a apresentação delas à sociedade, e eu teria de me juntar a elas nessa fastidiosa obrigação por que todas as moças têm de passar. Eu sabia que ia detestar a coisa tanto quanto minha tia tinha respeito por ela.
      Assim, o fato de tia Clarissa estar em casa foi um motivo a mais para eu desejar estar fora dela.
      Naquele dia, tinha perambulado miseravelmente pela casa e uma vez cruzei com ela, na escada.
      - Meu Deus, Harriet! - disse, berrando. - Que cabelo é esse? Você está sempre parecendo que saiu de dentro de um matagal. Os cabelos de suas primas não dão problema. E também nunca vão ter esse seu ar de desmazelo, isso eu posso garantir.
      - Oh, é que elas são três belezas.
      - Ora, não seja malcriada, Harriet. Achei que devia cuidar mais dos cabelos, já que...
      - Já que eu sou um monstro? -Ela ficou surpresa.
      - Que bobagem! Claro que não quis dizer que é um monstro. Achei apenas que poderia...
      Não esperei o resto, fui mancando para o meu quarto. Ela não precisava saber o quanto eu me importava com isso, e ninguém precisava, pois seria então ainda mais insuportável.
      No meu quarto, coloquei-me de pé diante do espelho; levantei a saia de merinó cinza e examinei minhas pernas e pés. Não havia nada que indicasse ser uma mais curta do que a outra. Só quando andava, uma parecia estar arrastando atrás da outra. Sempre foi assim, desde o decepcionante dia em que nasci. Decepcionante! Essa era uma maneira bem suave de dizê-lo. Foi um dia odioso, trágico para todos, inclusive para mim. Nunca desconfiei de nada disso, até que comecei, mais tarde, a descobrir que não era exatamente igual às outras crianças. Como se já não fosse o bastante ser causa da morte da própria mãe, tinha ainda de não nascer perfeita. Lembro-me de ter ouvido o que se disse de certa beldade - Lady Hamilton: "Deus estava num dia de gloriosa inspiração quando a fez". E de mim, eu diria: "Ele deve ter estado de muito mau humor quando me fez".
      Às vezes, pensava que seria melhor ser qualquer outra, não eu, Harriet Delvaney. Quando Fanny me levava ao parque e via outras crianças, morria de inveja delas. Aliás, tinha inveja de todo mundo, até das crianças maltrapilhas que ficavam perto do homem do realejo, com olhar de tristeza, enquanto o macaquinho ia estendendo o chapéu para pegar os níqueis. Naqueles dias, achava que qualquer um era mais feliz do que Harriet Delvaney.
      Muitas das governantas que me serviram nesse tempo disseram que eu era uma menina má, ruim mesmo. Afinal, tinha uma bela casa, comida em quantidade, um bom pai e nunca estava satisfeita.
      Até os quatro anos, não andei. Fui levada a diversos especialistas, que, depois de apalparem minhas pernas e discutirem longamente sobre o que fazer, acabavam olhando para mim e balançavam suas cabeças, desanimados. Fui tratada dessa e daquela maneira, e, durante os tratamentos, meu pai costumava aparecer para me ver, mas havia algo em seu olhar que me fazia crer que preferia estar olhando para qualquer coisa que não fosse para mim; em todo caso, se esforçava para fingir que queria estar presente.
      Lembro-me do que aconteceu no jardim da casa de tia Clarissa, perto de Regent's Park. Era época de morangos, que estávamos comendo com creme e açúcar, junto de um quiosque. Todas as mulheres tinham guarda-sóis e usavam chapéus de aba larga para se protegerem; por ser aniversário de Phyllis, havia muitas outras crianças, que corriam e brincavam entre si. Enquanto isso, fiquei sentada numa cadeira com minhas pernas espichadas. Tinha vindo de carruagem, e um empregado me carregou e acomodou numa cadeira, para que ficasse apreciando as outras crianças brincarem.
      A certa altura, ouvi a voz de tia Clarissa dizendo:
      - É, ela não é uma criança muito simpática, vocês devem desculpar...
      Não entendi o que queria dizer, mas guardei a coisa para mais tarde refletir. Voltando àquele dia, ainda sinto o gosto delicioso de morangos com creme, mas misturado com uma visão de pernas, as pernas fortes das outras crianças.
      Outra coisa de que me lembro é da minha força de vontade quando, quase caindo, consegui me manter de pé e andar.
      Foi um milagre, diziam os mais compreensivos; outros, já achavam que andei fingindo o tempo todo e que isso já devia ter acontecido há muito tempo. Quanto aos médicos, ficaram abismados.
      No princípio, só consegui andar titubeando, mas a partir daquele dia, andei. Não sei se poderia ou não ter andado antes. Tudo que lembro é que, de repente, surgiu em mim uma vontade irresistível e também uma sensação de poder, uma sensação gratificante, quando, cambaleando, fui em direção às outras crianças.
      Foi aos poucos que fiquei sabendo de minha patética história, sendo que sua maior parte me chegou pelos criados que já trabalhavam na casa antes de meu nascimento. Eram pedaços de conversas, mais ou menos assim:
      - Ela era muito velha para ter filhos. Pensa no que deve ter sido ela...
      - Ela morreu por causa da Srta. Harriet. A operação. Todas essas novidades nos hospitais.. .
      - É, tudo isso é muito perigoso...
      - Preferiram salvar a menina e deixarem que morresse. Mas, você vê, ela ficou com aquela perna.
      - E ele?
      - Ah, nunca mais foi o mesmo. Ela era adorada... Só estiveram casados um ou dois anos.
      - Mas, se tivesse durado mais, sendo como ele é...
      - Não admira dele não ficar com a menina. Agora, se ela fosse como a Srta. Phyllis, ou uma das primas...
      - Essas coisas dão o que pensar, não é? Dinheiro não traz felicidade.
      Nessas poucas palavras está minha história. Certas vezes, me imaginava como uma santa que saía pelo mundo espalhando o bem e sendo amada por todos. E então, diriam de mim: "Ela não é bonita, mas é muito boa, e a gente tem de dar um desconto".
      Mas, nem boa eu era. Morria de ciúme de minhas primas, com seus rostos bonitinhos e rosados e seus cabelos louros e sedosos; tinha também raiva de meu pai, que não queria saber de mim, porque minha vinda ao mundo pôs minha mãe para fora dele; além de ser um problema para os empregados, isso porque tinha pena de mim mesma.
      As únicas pessoas com quem sentia que podia ser simpática e, até, talvez, por causa deles, melhorar, eram os Menfrey; mas, afinal, eles eram os Menfrey Fabulosos, que moravam numa casa fantástica, fincada sobre o penhasco do outro lado da Ilha de Ninguém, que também era deles e com uma história que ainda iria descobrir. Nossa casa era a mais próxima da deles. Muito mais moderna que Menfreya, era apenas uma mansão que servia ao meu pai para receber e estar perto de seus eleitores. Ele e os Menfrey se tornaram grandes amigos.
      - Devemos tratá-los bem - ouvi meu pai dizendo, certa vez, para seu secretário, William Lister. - A influência deles com os eleitores é grande, por aqui.
      E assim, por esse motivo, os Menfrey deviam ser cultivados como flores em estufa.
      E bastava um olhar que fosse, para qualquer deles, que logo se saberia de que influência ele falava. Certa vez, ouvi William Lister defini-los como sendo tão grandes quanto a própria vida. Foi a primeira vez que ouvi isso, e achei que era muito adequado.
      A família se dispôs imediatamente a fazer amizade conosco; nas eleições, os Menfrey trabalhavam para meu pai; recebiam-no em sua casa e ele retribuía, na dele. Eram os donos do distrito. Uma ordem de Sir Endelion aos inquilinos significava que votariam em quem fosse do agrado dele, caso contrário, não esperassem permanecer como inquilinos.
      Quando vínhamos para a Cornualha, alguns dos empregados nos acompanhavam; a Sra. Trant, Polden e outros ficavam em Londres; entre os que vinham, estavam a Srta. James e Fanny. Na Cornualha, mantínhamos um mordomo e uma governanta - marido e mulher, eram os A'Lee, que vieram juntos com a casa que alugamos mobiliada, o que não deixou de ser muito conveniente para nós.
      Permitiam que eu fosse tomar chá com Gwennan em Menfreya, e ela, por sua vez, vinha a Chough Towers. Chegava a cavalo, acompanhada por um dos criados. Foi numa das visitas dela que aprendi a montar e descobri que podia ser muito mais feliz em cima de uma sela do que em qualquer outro lugar, pois, desse jeito, o meu defeito físico passava a não ter a menor importância. Sobre um cavalo, era como qualquer um. Isso me proporcionou a sensação mais completa de prazer já tida até então, quando, pelos caminhos da Cornualha, dava longos passeios a cavalo, subindo e descendo montes, sem jamais me cansar de seu cenário. Sempre que alcançava o topo de alguma montanha e, de repente, de lá, avistava o mar, parava de respirar, tão maravilhada estava.
      Invejava Gwennan por viver sempre num lugar como esse. Mas ela também tinha interesse de saber sobre Londres, e isso me divertia, contando as coisas da cidade para ela. Em troca, eu a obrigava a falar de Menfreya, dos Menfrey e especialmente de Bevil.
      Foi quando fiquei em frente do espelho, depois de meu encontro com tia Clarissa na escada, que comecei a pensar em Menfreya, sentindo uma saudade tão grande de lá, que chegou a doer.
      Estava debruçada no corrimão da escada. Da sala de visitas da frente chegava o som de uma música, meio abafada pelo rumor de vozes e de risadas. A casa estava como que ressuscitada; transformada por todos aqueles risos e vozes, tinha perdido sua atmosfera de frieza.
      Naquela noite, vestia uma camisola de flanela com um robe vermelho por cima e os pés descalços para os chinelos não me traírem, fazendo aquele barulhinho característico. Não porque os criados fossem zangar comigo por espiar da escada, mas porque gostava de fingir não estar interessada nas festas de meu pai.
      Nessas ocasiões, às vezes, ficava sonhando que ele ia me mandar buscar, e eu entraria, então, mancando na sala. Lá estaria o primeiro-ministro, que vinha conversar comigo, e todos se admirariam de meu espírito e inteligência. Os olhos de meu pai estariam cheios de ternura e brilhando, porque se orgulhava de mim.
      Que sonho idiota!
      Debruçada na escada, que cheirava a cera e a terebintina do polimento recebido durante o dia, ouvi por acaso uma conversa entre tia Clarissa e um homem que eu não conhecia. Falavam de meu pai.
      - Ele esteve brilhante...
      - Parece que o primeiro-ministro também achou.
      - Guarde bem estas palavras, Sir Edward está destinado a ministro.
      - Tenho pena de Edward. - Era a voz de tia Clarissa. - Ele merecia ter tido um pouco mais de sorte.
      - Sorte! Pensei que isso não lhe faltasse, devendo ser um homem tão rico.
      - É, mas depois que sua mulher morreu, nunca mais foi feliz.
      - Há muito tempo ele é viúvo, não? Uma mulher lhe faria bem agora. Acho estranho que não tenha se casado outra vez.
      - O casamento para ele foi uma experiência trágica, e de certo modo Edward é também um solteirão incorrigível.
      - Ouvi dizer que há uma criança.
      Senti meu rosto em brasa ao ouvir o tom de voz de tia Clarissa quando disse;
      - É verdade, há uma menina, Henrietta, que chamamos de Harriet.
      - Existe aqui qualquer coisa de errado?
      Tia Clarissa sussurrou qualquer coisa e, depois, sua voz ficou alta novamente.
      - Muitas vezes acho que foi uma pena que tivesse sido ela quem ficou, e não Sylvia. Como sabe, foi a criança que a matou. Só estiveram casados alguns anos, mas ela já passava muito dos 30. Claro que o que tinham desejado era um menino, e essa garota, meu Deus...
      - Em todo caso, ela deve ser um consolo para ele.
      A resposta veio num riso maldoso e em qualquer coisa murmurada. E então depois ouvi:
      - Vai ser minha tarefa prepará-la para fazer sua apresentação à sociedade, quando chegar a ocasião. Minhas filhas, Phyllis e Sylvia, em homenagem à tia, são quase da mesma idade, mas que diferença! Oh, meu Deus, como vou fazer para encontrar um marido para Harriet, isso eu não sei...
      - Ela é tão sem atrativos?
      - Atrativos? Oh, ela não tem nada... absolutamente nada.
      Fanny avisou que quem escuta escondido sempre ouve o que não quer. Como ela estava certa! Já tinha ouvido dizer que eu era ruim, má, tinha crises de mau humor e até que devia ir para o inferno. Porém nunca ouvira nada que me ferisse tanto quanto a conversa de minha tia com esse desconhecido. E daí em diante, por muito tempo, não pude suportar cheiro de cera e terebintina, porque estavam associados com um estado abjeto de miséria.
      Sem poder agüentar mais, saí da escada, indo para o quarto.
      Alguém já disse que quando uma pessoa se sente muito infeliz, o melhor é dar as costas à tristeza e pensar em algo novo... Alguma coisa que a faça esquecer. Que imbecilidade sonhar daquela maneira, sonhos onde nunca me via como realmente era. Neles, sempre aparecia como heroína, e até mudara a cor dos meus cabelos, que de castanho-escuros passavam a dourados. Mas não era só a cor dos cabelos, também a dos olhos, que de verde ficavam azuis; e também o feitio do nariz, que adquiria uma linha reta e pura, em vez da ponta arrebitada que tinha - que em alguns rostos pode dar ar atrevido, mas, no meu caso, em nada combinava com o meu jeito sombrio.
      Pense em alguma coisa depressa, disse para mim, e a resposta veio logo: se não me querem aqui, então fujo.
      Para onde? Só havia um lugar para onde quisesse fugir: Menfreya.
      - Vou para Menfreya - disse em voz alta.
      E recusei-me a pensar no que faria quando chegasse lá, porque, do contrário, o plano poderia fracassar logo de saída, e eu tinha, a todo custo, de silenciar aquelas vozes maldosas que diziam coisas perversas. Do que estava precisando era fazer qualquer coisa, e o mais rápido possível.
      Poderia pegar um trem em Paddington. No cofre, havia dinheiro suficiente para comprar a passagem, e isso era o que interessava. No momento, tudo que tinha de pensar era como chegar a Menfreya; quando chegasse, então faria planos para mais tarde. O que não podia era ficar ali e ouvir, todas as vezes que descesse a escada, o som daquelas vozes. Se tia Clarissa estava preocupada em arrumar marido para mim, bem, lhe pouparia o incômodo.
      Quando iria partir? Como ter certeza de que não dariam pela minha falta antes de pegar o trem? Tudo tinha de ser cuidadosamente planejado.
      Assim, enquanto na sala de visitas estavam ouvindo os músicos especialmente contratados para a festa, se deliciando com todas as iguarias servidas e falando de política, das chances de meu pai obter uma Pasta no Ministério, eu, deitada na cama, pensava em como fugir.
      Minha chance surgiu no dia seguinte, quando todos estavam cansados. O mau humor reinava na cozinha, e os nervos da Srta. James estavam extremamente sensíveis. Depois que li Jane Eyre, imaginava que ela acreditava um dia ainda vir a se casar com meu pai, mas depois de uma festa como a de ontem, tal possibilidade parecia mais remota do que nunca. Às 6 h, ela se retirou para o quarto, queixando-se de dor de cabeça - o que me deu a oportunidade esperada; calmamente, então, botei minha capa com capuz, enfiei o dinheiro do cofre no bolso e saí de casa, de fininho. Peguei um ônibus, era a primeira vez que fazia isso sozinha, e só uma ou duas pessoas me olharam com curiosidade, mas fingi não notar. Sabia ter tomado o ônibus certo, porque nele estava escrito Paddington do lado de fora, e paguei tranqüilamente minha passagem até a estação. Foi muito mais fácil do que pensava.
      Conhecia já a estação, porque tinha estado lá com papai, se bem que nunca de noite. Comprei a passagem de trem, mas me disseram que teria de esperar uma hora e 45 minutos, e fiquei apavorada. E realmente nunca o tempo me pareceu mais longo do que essa hora e 45 minutos. Morrendo de medo que aparecesse alguém a me procurar, fui sentar num banco perto do portão de entrada.
      Mas ninguém apareceu, e o trem chegou na hora certa. Embarquei, achando tudo muito diferente da primeira classe, que conhecia de viajar com papai. Os assentos eram de madeira e desconfortáveis, porém eu estava no trem e a caminho de Menfreya. Isso era o que importava.
      Sentei num banco perto da janela, e ninguém prestou atenção em mim. Dava graças a Deus por ser de noite. Cochilei, e ao acordar vi que Exeter já passara; foi só aí que comecei a me perguntar o que faria quando descesse. Que iria dizer ao mordomo quando entrasse no hall de Menfreya? Que tinha vindo fazer uma visita? Imagino que logo me levariam até Lady Menfrey, que, por sua vez, contactaria meu pai para lhe dar notícias minhas. Seria, então, trazida de volta, castigada e proibida de repetir isso novamente. E o que teria ganho, além das primeiras emoções da aventura?
      Como isso era próprio de mim: só depois de já ter deixado me levar pelo primeiro impulso é que me perguntava o porquê da coisa que fizera.
      Agora, no entanto, estava com fome, cansada e deprimida, e o que desejava era estar no meu quarto, mesmo que tia Clarissa irrompesse lá, me olhando do jeito de quem está me comparando com Phyllis.
      Foi mais ou menos na altura de Liskeard que me dei conta de ter feito uma coisa inteiramente idiota. Mas já não podia voltar atrás. Quando viajava com papai, A'Lee trazia a carruagem até a estação, e fazíamos nela o resto da viagem. Desta vez, porém, não havia carruagem esperando, e tive de comprar outra passagem para o trem que fazia conexão com o expresso de Londres, que pegava o ramal de Menfreystow.
      Ele já estava ali aguardando, e corri para apanhá-lo.
      Porém ele não partiu logo, e esperamos quase meia hora dentro dele, o que me deu tempo para planejar o que iria fazer. Enquanto fazíamos o pequeno trajeto, ocorreu-me que algumas pessoas, no trem, poderiam reconhecer-me e me prender. Embora não viajasse nunca por essa linha, papai era muito conhecido no distrito, e poderiam me identificar como sendo sua filha.
      Em Menfreystow, saltei do trem. Não havia mais de uma dúzia de pessoas e eu, na hora de entregar o tíquete, abaixei a cabeça e me coloquei entre elas no portão de saída. Estava livre, mas e agora?
      Tinha de dar uma caminhada até a praia, e de lá ir pelos caminhos das montanhas, andando mais uns 500 metros. A essa hora da manhã haveria poucas pessoas fora de suas casas.
      A pequenina cidade de Menfreystow dormia. A rua principal, cheia de curvas e praticamente a única existente, estava inteiramente deserta; a maioria das casas e das poucas lojas, fechadas, com as trancas ainda nas portas e as cortinas abaixadas. Aspirei com força o cheiro de mar e fui para o cais, vendo os barcos dos pescadores ancorados. Mesmo naquela minha triste situação, quando passei pelo depósito, onde se negocia o produto da pesca, e vi os covos de lagostas e as redes estendidas, senti um instante de felicidade. Sempre me senti como pertencente a esse lugar, embora não tivesse nascido ali. Só quando meu pai se tornou parlamentar por Lansella, há uns seis anos, é que alugou a casa. E, com cuidado, fui me desviando das argolas de ferro onde eram amarradas cordas grossas e salgadas; aí, então, disse para mim: outra bobagem que fiz, ter vindo pelo cais; quase sempre os pescadores já estavam lá desde antes do amanhecer, e, se fosse vista, imediatamente a notícia de minha presença começaria a correr.
      Tomei, então, um dos caminhos laterais, voltando à rua principal; dessa vez, entretanto, me dirigi para uma estrada transversal, calçada de pedras, e subi por uns cinco minutos, quando cheguei bem no alto da montanha.
      A beleza da vista me obrigou a uma parada de alguns segundos, para melhor contemplá-la. Lá estava a costa em toda a sua glória, e, bem abaixo de mim, a praia e as águas azuis-esverdeadas fazendo carícias nas areias cinzentas. Mais ou menos a um quilômetro, pela costa, encontraria Menfreya. E em frente, a Ilha de Ninguém, onde ninguém morava.
      Comecei a caminhar, pensando nos Menfrey e na sua casa. Logo a estaria vendo; conhecia exatamente o lugar no caminho de onde ela era avistada. E lá estava, grande, imponente, uma espécie de Meca de minha peregrinação, o solar dos Menfrey, aqueles que, há gerações, são os seus donos. Ali, já viviam Menfrey quando o Bispo Trelawny foi mandado preso à torre; um Menfrey, então, sustentou os bispos, reunindo seus serviçais aos 2.000 cornualhenses que foram a Londres indagar dos motivos da prisão; e me detive a imaginar como seriam esses Menfrey de chapéu com plumas, punhos e gravata de renda e cabeleiras empoadas. Na galeria da casa havia diversos quadros deles. Achava não haver nada mais emocionante do que ser um Menfrey, mas o melhor era conduzir meu pensamento para coisas mais práticas.
      Cheguei ao lugar de onde se avistava os adarves. Numa das vezes em que a Srta. James me levou para tomar chá com Gwennan, ela subiu comigo até o alto da torre. De onde, olhando para baixo, senti um arrepio, vendo aquele paredão altíssimo caindo abrupto no mar. Foi quando Gwennan me disse:
      - Se quer morrer, tudo que tem a fazer é se atirar daqui.
      Tive medo de que pudesse me ordenar a fazer isso com o seu jeito imperioso, próprio dos Menfrey, e, como estava tão acostumada a ser obedecida, era bem possível que esperasse que eu obedecesse. Afinal, eles tinham dado ordens por muitas gerações, enquanto nós, os Delvaney, tínhamos feito isso apenas por uma. O negócio do aço, que se mostrou altamente lucrativo, foi montado pelo meu avô, que começou como humilde empregado. Naturalmente, Sir Edward Delvaney havia esquecido tudo sobre suas origens. Agora, era um homem educado, polido, com brilhante futuro, mas ainda que fosse mais inteligente do que os Menfrey, eu percebia aí uma grande diferença.
      Também eu, tinha de ser inteligente. Precisava fazer um plano para a próxima jogada. Em geral, Gwennan dá um passeio a cavalo pela manhã e quase sempre vem por este caminho, que é um de seus preferidos, como me disse certa vez.
      Se me escondesse numa gruta que descobrimos, talvez pudesse vê-la. E se não... Bem, teria de pensar em algum outro plano. Pode ser que fosse melhor me esconder nos estábulos. Poderia, porém, encontrar um dos criados, e, além disso, existiam os cachorros. Não, esse plano não servia. Tinha mesmo era de contar com a sorte e ficar esperando na gruta. Se saiu para montar hoje, é quase certo dela vir por aqui.
      Esperei durante o que me pareceu horas, mas, no fim, tive sorte. Gwennan veio, e sozinha.
      Chamei por ela. Ela puxou rápido as rédeas e parou.
      Quando ouviu minha história, ficou encantada. Foi ela que se lembrou da ilha. Era o tipo da aventura que a deixava empolgada. Daí em diante, ficaria à sua mercê, e ela, com isso, tinha o maior prazer.
      - Vamos. Sei onde vou escondê-la.
      A maré estava cheia, e, assim, foi ela quem remou até a ilha, me obrigando a deitar no fundo do barco, com medo de que alguém me visse.
      - Eu arranjarei comida - falou. - E já que ninguém quer morar nesta casa, então por que não você?
      Isso tinha acontecido no dia anterior, e agora ela estava aqui, com o jornal. Quanto a mim, não fazia idéia de que minha fuga pudesse ser coisa tão importante.
      - Todos estavam falando disso na hora do café - disse Gwennan. - Papai contou que vão pedir resgate por você. Milhões. Puxa, valer tanto assim!
      - Mas meu pai nunca pagaria. Ele deve estar até bem contente de se ver livre de mim.
      - Mesmo assim - ela acrescentou, com jeito de pessoa sensata - ele não deve querer que os jornais saibam, e vai acabar pagando.
      - Mas ninguém vai pedir. Afinal, não fui raptada.
      Gwennan olhou para mim com uma expressão meio especulativa.
      - Bem, você sabe que nós andamos precisando de dinheiro.
      Aí, tive de rir.
      - O quê? Os Menfrey me seqüestrando por causa de resgate? Isso não faz sentido.
      - Faria - suspirou ela - se Sir Edward nos pagasse. Você sabe que vivemos comprimidos dentro de nosso orçamento. Foi por isso que arrumamos esta casa, para ser alugada. Papai não via razão para que não fosse. Está vazia há anos. Assim, ela foi mais ou menos recuperada, e mandaram estes móveis para cá. Isso, há um ano. E aqui estamos, à espera do primeiro inquilino. Bem, agora ele já existe. É você.
      - Mas não sou um inquilino de verdade. Estou aqui apenas escondida. E além do mais...
      - Você não está pagando aluguel. Agora, se houvesse um resgate...
      - Mas não há.
      - Não. Isso é verdade. Olha, eu não me surpreendo de que você tenha fugido. Afinal, aquela sua tia Clarissa é uma velha detestável! Se estivesse no seu lugar, teria descido a escada e metido a mão nela.
      - Mas nunca estaria. Você é bonita, e ninguém ia dizer uma coisa dessas para você.
      Gwennan escorregou de cima da mesa em que estava sentada e se dirigiu ao espelho para examinar o seu rosto. E eu, arrastando minha perna, me aproximei dela, ficando ao seu lado e olhando também no espelho. Ela só tinha de ficar satisfeita com o que via: um rosto redondo, pele clara com umas pequeninas sardas, cabelos e olhos castanhos e um narizinho encantador, de ventas largas, que lhe dava um ar felino.
      - Sabe - disse Gwennan - você está sempre com um jeito de... bem, como se achasse que as pessoas não vão gostar de você. É esse o seu problema.
      - Bem, e por que iria parecer de outro jeito, se essa é a verdade?
      - Mas você faz com que as pessoas se lembrem disso. Poderiam esquecer, se você se comportasse como se não soubesse disso. Bem, mas você tem de ficar aqui. Vou trazer comida todos os dias. De fome, não vai morrer. Agora é que vai ficar sabendo quanto tempo será capaz de resistir. O que é que achou de passar uma noite nesta ilha?
      - Ah. .. tudo bem.
      - Mentirosa. Está apavorada.
      - E você não estaria?
      - Pode ser. Como sabe, a casa é mal-assombrada.
      - Não, ela não é - respondi com firmeza. - Não pode ser, e se fosse, não quero ouvir falar disso.
      Mas não resisti e pedi para ela prosseguir. De qualquer modo, não era mesmo intenção dela me poupar.
      - É, ela é mesmo. Papai diz que, se não fossem os zunzuns, ia aparecer um inquilino para ela. As pessoas chegam, olham e, depois, começam a escutar os rumores sobre a casa.
      Gwennan ficou comigo mais ou menos por uma hora, e, quando saiu, prometeu voltar à tarde. Tinha de ter todo o cuidado para não levantar suspeitas, alguém poderia se surpreender com o seu súbito interesse pela ilha.
      E eu também ficaria excitada se estivesse no seu lugar. Afinal, ela ficava com a parte divertida da coisa, e eu, com as dificuldades.
      Comecei a me sentir inquieta quando a noite começou a cair. Só queria entrar na casa quando não tivesse outro remédio; assim, fui sentar-me encostada na parede e fiquei ali olhando para Menfreya. A visão era alentadora. Em muitas de suas janelas havia luz. Bevil, provavelmente, estaria lá agora. Tinha querido perguntar a Gwennan sobre ele, mas me contive, pois ela possuía o hábito muito desconfortante de ler meus pensamentos, e se descobrisse o meu interesse por seu irmão, iria divertir-se, fazendo mil caçoadas, além de também exagerar o interesse.
      Era dia de maré cheia, e fiquei olhando a água que se arrastava vagarosamente, chegando cada vez mais para perto da casa. Chegou até poucos metros de onde me achava, e, nas marés muito cheias, já tinham me dito que a água avançava até as paredes da casa, inundando a cozinha. Creio que isso acontecia só em certas ocasiões do ano, e não era esta. Mas a invasão do mar não me dava tanto medo quanto a escuridão dentro da casa.
      Gwennan, à tarde, trouxe velas, e, antes que ficasse inteiramente escuro, iria entrar e acender algumas. Quanto mais velas, menos medo teria. Talvez deixasse uma queimando a noite toda no quarto; assim, se acordasse sobressaltada de noite, veria imediatamente onde estava.
      Não tendo relógio, não sabia, portanto, das horas. Há muito, porém, o sol já desaparecera, e as primeiras estrelas começaram a surgir. Fiquei a observá-las: num momento, não havia uma num determinado ponto, um instante depois, já havia. Descobri as estrelas da Ursa Maior e comecei a procurar por outras constelações, que aprendi com a Srta. James serem possíveis localizar. O medo aumentava. Era como o mar, como a escuridão, cada vez mais invasor. Talvez, se fosse para a cama e deitasse, pudesse dormir, já que por duas noites tinha dormido muito pouco.
      Fui para dentro, acendendo depressa as velas e carregando uma para o quarto, na parte de cima. Quando entrei, tive a sensação de que os móveis saltaram em seus lugares. Fiz um rápido exame do lugar e fechei a porta. Depois, sempre com a vela acesa, cautelosamente, examinei cada um daqueles montes ridículos, levantando os lençóis para me assegurar de que era só móvel embaixo e de que não havia nada escondido ali; enfim, de que eram apenas as peças trazidas de Menfreya para guarnecer o lugar para o tão almejado inquilino. Era mesmo uma tola, o medo estava dentro de mim. Se conseguisse tirá-lo do pensamento, veria ali só uma casa vazia, e que podia dormir tranqüilamente.
      Iria fazer isso, mas deixando a vela acesa.
      Deitei na cama, tal como fiz na noite anterior, e fechei os olhos, para tornar a abri-los imediatamente depois, esperando assim pegar alguma coisa antes que ela tivesse tempo de esconder-se de novo. Quanta bobagem! Dizem que os fantasmas não podem ser vistos, porque ver é um processo físico, e os fantasmas não têm corpo físico. Apenas se sente a presença deles. E tenho certeza de que, quando estava anoitecendo, eu senti qualquer coisa naquela casa.
      Fechei os olhos outra vez e comecei a pensar que viajava num trem. Como estava muito cansada, dormi.
      Acordei, de repente, aterrorizada. A primeira coisa que olhei foi a vela, e percebi então que tinha dormido por algum tempo por causa do tamanho dela. Sentei na cama e examinei o quarto; parecia que os lençóis, subitamente, retornaram aos lugares que estavam antes de ter dormido. Dei uma olhada para a janela, ainda era noite. Alguma coisa tinha me despertado. Seria sonho? Se fosse, seria um bem ruim, porque estava tremendo, e o meu coração batia apressadamente.
      - Foi só sonho - disse para mim, em voz alta. Mas nisso, junto com o barulho das ondas, ouvi sons. Sons de vozes... e, logo em seguida, um clique na porta lá embaixo.
      Pulei da cama e fiquei olhando na direção da porta do meu quarto.
      Eu não estava sozinha na ilha, e nem também na casa.
      Vozes! Vozes mesmo... e sussurravam. Uma grave, outra aguda. E também agora, sons de passos.
      - Não pode ser. É minha imaginação, falei baixinho. -Ouvi os degraus da escada estalando, e o barulho inconfundível de quando se pisa furtivamente nas pontas dos pés.
      Meu coração batia tanto que já não pensava mais. Fui encostar-me à porta e fiquei ouvindo. Os passos, sem dúvida, eram mesmo na escada. Aí, ouvi alguém dizendo, voz de mulher:
      - Vamos embora. Não gosto disso.
      Logo em seguida, um riso baixinho. Riso de homem.
      Uma coisa era certa, o que quer que fosse, não era fantasma, e a qualquer momento iria surgir no quarto. Corri para a penteadeira, enfiartdo-me debaixo do lençol que a protegia contra a poeira. Tinha acabado de me esconder, quando a porta abriu.
      - Bom, aqui estamos! - disse uma voz que eu conhecia demais.
      - Uma vela. . . e está acesa, Sr. Bevil. - Era a mulher falando.
      - Quem estiver nesta casa, está escondido aqui - disse Bevil Menfrey.
      Aí, ele começou a arrancar todos os lençóis, e, em segundos, estaria tirando o da penteadeira. Tirou...
      Deu de cara comigo, e até naquele momento ainda pensei: como ele fica lindo à luz da vela. Estava mais velho, desde a última vez em que o havia visto. Era agora um homem. Parecia imensamente alto, com a luz da vela projetando na parede sua sombra alongada ao lado de outra, a de uma figurinha de mulher encolhida atrás dele.
      - Meu Deus! É Harriet Delvaney. Saia daí, seu diabinho. O que é que está fazendo aqui?
      Abaixou-se, agarrando-me pelo braço, puxando-me para fora.
      - Não digo que não admiro a escolha de moradia que fez. Há quanto tempo já está aqui?
      - Esta é a segunda noite.
      Ele se voltou para sua companheira, e vi, então, que era jovem e bonita, mas eu não a conhecia.
      - Bem, está resolvido o mistério.
      - O que é que o senhor vai fazer, Sr. Bevil? - ela perguntou.
      Percebi que se tratava de uma das meninas das redondezas, daquelas que jamais seriam convidadas para ir a Menfreya. Logo imaginei o que estaria fazendo ali, a uma hora dessas, com Bevil.
      - Só há uma coisa a fazer. Vou metê-la no barco e levá-la para Menfreya; depois, avisar o pai dela que foi encontrada.
      - Puxa. .. mas que coisinha ruim!
      - E quanto a você, Bevil? - perguntei. Isso fez com que risse de novo.
      - É, quanto a você, quanto a mim... Nada de recriminações dos dois lados. Está bem Harriet?
      - Não - respondi, sem entender.
      Mas me sentindo quase feliz. Primeiro, porque não ia ter de passar o resto da noite sozinha na ilha; segundo, porque ele estava se divertindo com o que eu tinha feito; e, também, porque, se ele descobriu onde eu não devia estar, também eu o tinha descoberto na mesma situação.
      Ele olhou para mim e disse:
      - Não devia ter deixado a vela acesa. Muito imprudente de sua parte. Vimos a luz na janela logo que entramos no barco. - Sua expressão ficou subitamente séria. - Sabe, Srta. Harriet, que há muita aflição por sua causa? E que por pouco não dragam o Tâmisa?
      Estava brincando, claro, mas estava também meio desconcertado, e outra vez me veio uma onda de prazer. Nunca até então tinha tido sua atenção só para mim; percebi que tinha esquecido inteiramente a moça.
      Descemos, pegamos o barco e, em pouco tempo, estávamos chegando a Menfreya.
      - Você pode ir embora agora - disse, dirigindo-se à moça.
      Ela ficou com a boca entreaberta, olhando surpresa para ele. Aí, ele repetiu com impaciência:
      - É, pode ir embora.
      Ela lançou um olhar de raiva para ele, levantou a saia à altura das coxas e entrou na água escura, empurrando o barco. Estava descalça e, por um momento, com a água nos tornozelos, parou, virando a cabeça para trás, para ver se Bevil olhava para ela. Mas não olhava. Estava olhando para mim, com suas mãos apoiadas nos remos.
      - Por que fez isso? - ele perguntou.
      - Eu precisava.
      - Fugir e passar uma noite na ilha?
      - Não para isso.
      - Como chegou lá?
      Não respondi. Não iria comprometer Gwennan.
      - Você é uma menina estranha, Harriet. Tenho a impressão de que se preocupa muito com certas coisas que são, na verdade, bem menos importantes do que aquilo que imagina.
      - Você não sabe se é ou não importante para mim ser aleijada. - De repente, fiquei exaltada e inteiramente possessa. E acrescentei: - Você diz que não é importante. Para você não é mesmo. Não é você que tem de andar por aí mancando, é? Claro que não pode imaginar o que é ou não importante. Não é você.
      Ele me olhou, espantado.
      - Harriet, meu bem, que veemência! As pessoas não vão deixar de gostar mais de você só porque é aleijada. E é apenas isso que estou tentando dizer. Mas este não é o problema agora, hein? Você fugiu, e estão fazendo uma confusão danada em torno disso. E agora foi descoberta. O que é que vai fazer? Não está pensando que vai escapar de mim, não é? Porque iria de novo agarrá-la e trazê-la de volta. Só quero ajudá-la.
      Aí, se inclinou para o meu lado. Tinha o olhar irônico, mas não sem doçura, o que me fez corar e ficar feliz ao mesmo tempo.
      - A vida na sua casa estava insuportável, não é?
      Respondi afirmativamente com a cabeça.
      - Seu pai, imagino... - Suspirou e, em seguida, disse: - Coitadinha, sinto muito, mas vou ter de levá-la de volta. Se não fizesse isso, seria considerado cúmplice. Tenho de dizer que foi encontrada. Quem a trouxe para cá? Gwennan, suponho. Passou o dia inteiro exibindo sua importância pela casa. É, acertei, foi Gwennan!
      Não respondi.
      - A honra está salva. Muito louvável. Bem, não há nada a fazer agora a não ser agüentar as conseqüências. Mas diga, quais eram mesmo as suas intenções?
      - Não sei.
      - Você quer dizer que fugiu sem antes ter resolvido para onde ia?
      - Vim para cá.
      - De trem, imagino. Isso foi muito corajoso de sua parte. Mas não deveria ter feito primeiro um plano de campanha? E o que esperava conseguir?
      - Não sei.
      Ele balançou a cabeça, e sua expressão adoçou-se novamente.
      - Pobrezinha, deve ter sido bem duro!
      E então deixei escapar:
      - É que escutei tia Clarissa falando que ia ser difícil para ela encontrar um marido para mim. Porque... eu era...
      - Ora, não fique preocupada com isso. Quem sabe, eu mesmo poderia me casar com você?
      Tive de rir.
      - Estou ofendido - disse com ar de troça. - Estou fazendo uma proposta perfeitamente razoável, e você me tratando com desprezo.
      - Ela não é séria.
      - As pessoas nunca me levam a sério. Sou muitas vezes brincalhão.
      Ele recolocou os remos no lugar e se inclinou para me dar um beijo na testa. Naquele instante, tive plena certeza do charme dos Menfrey.
      Ao ajudar-me a saltar do barco, segurou-me por instantes, e o seu rosto estava perto do meu. E então disse:
      - Não se esqueça, vai dar muita confusão, mas tudo passa. Agora vamos, e agüentemos as conseqüências.
      Os cachorros começaram a latir quando atravessamos o pátio.
      O hall estava fracamente iluminado; apenas dois bicos de gás acesos, numa coisa parecida com uma lanterna; a luz era suficiente apenas para mostrar o teto abobadado e os vultos das armaduras no pé da escada.
      Bevil gritou, e sua voz ressoou por cima das vigas do telhado.
      - Venham todos e vejam o que encontrei. Harriet Delvaney! Ela está agora aqui, comigo!
      A casa inteira acordou. De todos os lados surgiram vozes.
      Primeiro chegaram Sir Endelion e Lady Menfrey, depois, os criados, e rio topo da escada ficou Gwennan, me olhando com olhos arregalados e expressão acusadora.
      Por enquanto estava sossegada, ainda não havia chegado o momento em que tinha de me perguntar: e agora, o que vai acontecer? Também estava excitada, pois a aventura me aproximara mais de Bevil.
      Levaram-me para a biblioteca, e ali fiquei sentada, tomando leite quente.
      Lady Menfrey, a todo instante, dizia baixinho:
      - Mas Harriet, como pôde fazer isso? Coitado do seu pai... Que loucura... Que loucura...
      - Temos de mandar um telegrama para ele - disse Sir Endelion num tom de desculpa e cofiando o bigode.
      Como é melhor tratar com pecadores, pensei. Sir Endelion e Bevil, em comparação com Lady Menfrey, não estavam quase nada escandalizados.
      Bevil foi sentar-se em cima de uma mesa e sorria para mim, como se quisesse manter minha moral alta. Enquanto estive lá, não deu para me sentir infeliz ou com medo.
      Gwennan entrou de mansinho para não ser vista e ser mandada de volta para a cama. Seus olhos me vigiavam o tempo todo.
      - Nem sei o que ele vai dizer - suspirou Lady Menfrey. - Pelo menos fizemos o que pudemos.
      - É, agora você tem de agüentar as conseqüências. - Era Sir Endelion, repetindo o que Bevil já afirmara.
      - Foi exatamente o que falei - observou Bevil. - Não vamos nos repetir. Acho que o que Harriet tem de fazer é ir para a cama e dormir, para estar em forma quando tiver de arcar com as conseqüências.
      - Já mandei Pengelly preparar a cama - disse Lady Menfrey.
      - No quarto junto do meu - emendou Gwennan.
      - Gwennan, querida, o que está fazendo aqui? Devia estar na cama dormindo - disse Lady Menfrey como que aborrecida.
      Essa sua família, pensei, deve lhe trazer uma preocupação atrás da outra.
      - Acordou com a chegada de Harriet - respondeu Bevil. - Foi grande a surpresa que teve.
      - E foi mesmo - respondeu Gwennan, com ar de desafio.
      - Grande surpresa? - ironizou Bevil. Gwennan franziu a testa, encarando o irmão.
      - Seria o último lugar em que você pensaria encontrá-la, não é?
      - E você, não? - respondeu Gwennan. - Então por que foi lá de noite?
      Sir Endelion deu uma risada alta, e Lady Menfrey pareceu ficar embaraçada. Que família fantástica, pensei, e desejei com todas as forças que pudesse pertencer a ela. Percebi que todos, à exceção de Lady Menfrey, aceitavam de modo compreensivo o que tinha feito; mas a opinião dela não contava.
      - Se soubesse que Harriet estava lá, teria ido na noite passada, acreditem - respondeu Bevil.
      Botei meu copo vazio sobre a mesa, e Lady Menfrey então disse:
      - Gwennan, já que está aqui, talvez você possa levar nossa hóspede para o quarto dela.
      Dei boa-noite a todos e subi com Gwennan. Naquele instante, não pude evitar a emoção de estar em Menfreya.
      - Seu quarto é o que fica junto do meu - falou Gwennan. - Eu disse a Pengelly que queria você perto de mim. Então não contou nada, não é?
      - Não havia o que contar.
      - Estou perguntando se falou de mim.
      Com a cabeça respondi que não.
      O quarto que me deram era grande, mas todos eram. Tinha uma janela com um sofá redondo debaixo, e dava vista para a ilha. Na cama de casal, uma camisola de fla-nela cor-de-rosa.
      - É uma das minhas - disse Gwennan, apontando para a camisola. - Troque logo a roupa.
      Mostrei certa hesitação.
      - Puxa, ande logo. Quanta vergonha você tem!
      Tirei a roupa, me retorcendo toda, enquano ela me olhava. Quando me deitei, ela foi sentar-se no pé da cama, abraçando os joelhos e sempre com os olhos fixos em mim.
      - Não sei se você não pode ir parar na cadeia - disse ela. - Afinal, a polícia vai acabar promovendo um processo, e quando isso acontece... bem, nunca se sabe.
      Percebi que, enquanto debochava de mim, sua cabeça fazia planos para me salvar.
      - Mas acho que isso não vai acontecer. Seu pai, no fim, ia acabar subornando todo mundo. Veja bem, estou também encrencada. Vão querer saber com quem foi à ilha e quem roubou a despensa. A Sra. Pengelly deu falta da perna de galinha que levei ontem para você. E outras coisas mais. Vê? Existem indícios contra mim. Bem, estarei no Tribunal junto de você. Isso já é um consolo, não é? Mamãe e papai, a essa altura, vão estar em longas conferências, e uma decisão em relação a isso tem de ser tomada agora. A propósito, Bevil está furioso com você.
      - Comigo?
      -É, porque você estragou o programa dele. Afinal, desde que papai mobiliou aquela casa, que ela vem sendo usada por ele como garçonnière. Você entende, ali é romântico, as mocinhas têm medo de fantasmas, e o clima, assim, vai ficando mais picante. Ele pode tomar ares protetores e mostrar sua coragem; a coisa, então, é resolvida na metade do tempo.
      - Está inventando. Como você sabe?
      - Ora, Harriet, meu bem, todos os Menfrey sabem o que se passa um com o outro. É um dom que temos. Além disso, todos os homens inspiram paixões devastadoras nas mulheres, e as mulheres nos homens. Não podemos evitar. Temos de aceitar o fato.
      Olhei para ela e acreditei no que disse. Mas o pensamento me fez desanimar.
      - Estou cansada, quero ficar sozinha - falei.
      Mas o que desejava era ficar pensando nos momentos em que Bevil e eu ficamos juntos no barco e lembrar cada uma das palavras dele.
      - Cansada? Como pode ficar cansada se tem de pensar no dia de amanhã? Que boa coisa eu não ter mandado a carta pedindo resgate.
      - Mas uma carta de resgate estava fora de cogitações.
      - Estava? Estive fazendo o rascunho de uma. Você não pensou que ia deixar passar uma oportunidade dessas, hein? Os Menfrey nunca deixam escapar suas oportunidades.
      - Não acredito nisso - eu disse, fechando os olhos.
      - Tudo bem - falou ofendida e saltou da cama. - Vá dormir e sonhe com o dia de amanhã. Eu é que não gostaria de estar no seu lugar, Harriet Delvaney. Espere até o seu pai chegar.
      Gwennan e eu ficamos à espera, e vimos quando a carruagem dele apareceu. Pouco depois, fui chamada à biblioteca.
      Nunca tinha visto a expressão de seu olhar tão fria, nunca me olhara com tamanha aversão, e nunca me senti tão feia como quando, mancando, entrei naquela sala. Estranhamente, quando pensava muito no meu defeito físico, tinha a impressão de que ele se tornava mais visível, e acontece que, na presença dele, sempre pensara.
      - Venha cá - disse ele.
      E, como sempre, quando se dirigia a mim, a sua voz produzia o efeito de água gelada escorrendo pelas minhas costas.
      - Estou muito mais indignado do que se pode crer. Nunca vi tanta ingratidão, egoísmo e maldade. Como pôde... você... Sei que é capaz de ser desobediente, mas tomar uma atitude dessas? Como pôde?
      Não respondi. A última coisa que pensaria era explicar minhas razões a ele. Eu própria não estava bem certa delas. Tinham raízes muito profundas, e mesmo ali, agora, sabia que não foram aquelas poucas e impensadas palavras de tia Clarissa o motivo verdadeiro de ter saído de casa.
      - Responda quando eu perguntar. Não se mostre insolente e ingrata.
      Deu um passo em direção a mim, e pensei que fosse me bater. Quase desejei que o fizesse. Achava mais fácil suportar um ódio com paixão do que uma fria antipatia.
      - Papai, eu... quis fugir. Eu...
      - O quê? Quis fugir? O que você quis foi causar muitos aborrecimentos! Por que veio parar aqui?
      - Eu... eu quis vir para Menfreya.
      - Sei, seus caprichos passageiros. O que devia era apanhar de chicote agora... Insensível é o que é.
      Sua boca retorceu-se, num ríctus de nojo. Já sabia que a violência física lhe era repugnante. Um cachorro que não lhe obedecesse, em vez de ser corrigido, era sacrificado. E então, pensei, ele gostaria também de me sacrificar, mas de chicote não me bateria.
      Desviou-se de mim, como se não suportasse me olhar.
      - Tudo que você quer, tem. Tem também todo o conforto, e assim mesmo não passa de uma ingrata. Você se compraz em causar aborrecimentos e em deixar todos aflitos. E pensar que sua mãe morreu para que você nascesse.
      Quis gritar para que parasse. Era duro ouvi-lo dizendo isso. Que pensava freqüentemente nessas coisas, eu sabia, mas elas foram ditas em voz alta, e as palavras ganharam uma força abominável. Impossível agüentar mais; minha vontade era me arrastar até um cantinho e ficar lá, chorando.
      Mas, em vez do meu rosto expressar a dor que sentia, nele surgiram rugas muito feias, que indicavam minha obstinação, e não tive como evitá-las. Ele viu isso, e sua aversão profunda pelo monstro que tirou a vida de sua amada foi, por um instante, extravasada. Encontrou, assim, breve consolo, expandindo esse sentimento amargo que, por anos a fio, o consumia.
      - Quando vi você... Quando me disseram que sua mãe tinha morrido, a minha vontade foi de jogá-la fora.
      As palavras, finalmente, saíram. Conseguiram me ferir mais do que qualquer chicote poderia fazê-lo. Ele havia cristalizado a cena para mim. Vi a enfermeira com um bebê feio nos braços, a mulher morta sobre a cama e a expressão do rosto dele. Podia mesmo ouvir sua voz dizendo: "Joguem isso fora". Estaria para sempre gravada na minha mente.
      No princípio, não pude compreender bem tal aversão e me iludia, achando que fosse criada por mim, que ele era apenas um homem com dificuldade para exprimir os seus sentimentos, mas que, no fundo de seu coração, me amava. Agora, isso acabou.
      Talvez estivesse naquele momento com vergonha; sua voz se suavizou um pouco.
      - Desisto de ensinar a você o que vem a ser decência. Não só arruma confusão para você, como também para os outros. Nossa casa está em completa desordem, e somos assediados por repórteres a todo momento.
      Acho que continuava falando para esconder sua confusão, mas de qualquer modo eu só ouvia o que ele dizia pela metade, porque pensava realmente era na raiva dele, quando viu o bebê nos braços da enfermeira.
      - Para acabar - ele acrescentou - você não deve abusar da hospitalidade desta casa, mais do que o necessário. Vamos já partir para Chough Towers.
      Chough Towers era uma mansão vitoriana, do primeiro período. Foi alugada mobiliada, pelo meu pai, de uma família chamada Leveret, que fez fortuna com caulim extraído de uma pedreira perto de St. Austell. A casa era quase tão grande quanto Menfreya, mas faltava-lhe as características daquela. Era bem feia, e, como já disse, sempre me pareceu fria e impessoal, mas talvez porque quem morava lá era o meu pai, e ela estivesse impregnada de sua personalidade. Habitada por uma família feliz, seria uma casa alegre. Os aposentos eram espaçosos, com paredes forradas, tinha janelas amplas, que se abriam para gramados bem tratados, e um salão de baile de ótimas proporções, no andar térreo, com uma escada de carvalho ao fundo. Tudo quanto se podia fazer para dar à casa uma aparência de antiga foi feito. Possuía até um jirau de couro, que me parecia destoar numa casa dessa; o jardim de inverno era agradável, pela quantidade de plantas variadas, mas todo o restante era demasiadamente enfeitado e pesado. As torres barrocas e ás ameias eram falsas, e também absurdo era que se chamasse Chough Towers4, pois nunca vi uma gralha por perto. Em tudo, uma imitação ostensiva fingindo ser o que não era.
      Era cercada por um parque, mas as árvores das aléias foram plantadas há menos de 30 anos; nenhum daqueles teixos delicados que se encontravam em Menfreya. Mas eu estava apaixonada por Menfreya, e talvez agora sentisse a diferença mais do que nunca. Chough Towers era, suponho, uma linda casa num belo cenário; faltavam no entanto ressonâncias do passado e um certo ar de mistério; externava exatamente o desejo de um novo-rico de construir ele próprio uma moradia tão majestosa quanto as desfrutadas por aquelas pessoas, diante das quais, uma geração antes, esperava-se que se curvasse respeitosamente, como indivíduo de classe inferior à delas. Porém uma casa é mais do que paredes e janelas - mesmo belos salões de festas e estufas, parques e gramados.
      Satisfazia meu pai porque ele passava apenas pouco tempo no local; e ele mesmo não estava muito resolvido a comprar uma casa lá. Se perdesse seu lugar no Parlamento, certamente não iria manter Chough Towers.
      Logo que entramos em casa, senti a aura de silêncio. Desconfiei de que os criados estavam falando de mim; alguns, talvez, até estivessem me espreitando. Tornara-me objeto de interesse por meu nome ter aparecido nos jornais. E apareceria de novo, pois a descoberta de meu paradeiro teria de ser conhecida, uma vez que tanto haviam se preocupado com meu desaparecimento.
      - Vá direto para o seu quarto e não saia dele até que tenha permissão para isso - meu pai afirmou.
      E como fiquei feliz por poder escapar dele!
      Era prisioneira. Tinha de passar a pão e leite até ordens em contrário. Nenhum dos empregados devia dirigir-me a palavra. Estava em desgraça.
      Mas, como era rebelde, fingia não ligar. Meus sentimentos vacilavam entre orgulho e dor.
      Às vezes, conseguia apagar tudo da memória, menos Bevil sentado no barco. Podia ver seus estranhos olhos fitando-me com ternura - não, com zombaria. "Eu mesmo podia casar com você..." Estava brincando, talvez não de todo, entretanto. Em todo caso, na minha presente situação, era bom sonhar, acreditar que ele quisera mesmo dizer aquilo. Era um sonho alegre e feliz.
      Mas havia outro - sombrio, lúgubre: a câmara de morte, as feições encarquilhadas de um bebê; já tinha visto recém-nascidos e os achava todos feios; no meu caso, então, devo ter sido particularmente assim. Podia figurar para mim os impulsos desvairados de um homem normalmente retraído; sentir sua reação violenta e o desejo de se ver livre de um ser indesejado que para nascer lhe custou tão caro.
      No segundo dia de cativeiro, meu pai entrou no quarto e fiquei com o moral mais alto por vê-lo com traje de viagem.
      - Você vai ainda ficar em seu quarto por mais uma semana, e espero que este tempo seja suficiente para castigá-la. Por acaso lhe ocorreu antes que sua vida, a qualquer momento, poderia ser interrompida? Gostaria que, nos próximos dias, pudesse pensar que você pode estar destinada à condenação eterna. Portanto, para o seu próprio bem, pois sei que é muito egoísta para pensar no meu, mude os seus modos. Ficará aqui até quando chegar a hora de ir para um colégio.
      Minha surpresa foi grande demais para poder falar. Numa fração de segundo, tinha passado da contemplação dos tormentos do inferno para considerar a possibilidade de uma vida inteiramente nova. Escola!
      - Bem - prosseguiu - o que você precisa é de muita disciplina. Se na escola for desobediente, logo será severamente castigada. A Srta. James tem sido extremamente condescendente com você. Naturalmente ela terá de largar o emprego.
      Pensei, então, na Srta. James fazendo suas malas e chorando baixinho, receosa com o que teria de enfrentar no futuro. Coitada da Srta. James! Iria, nas próximas semanas, ficar me rondando, apesar das assustadoras perspectivas que tinha pela frente.
      - Então ela foi despedida...
      - Como vê, suas ações impensadas podem afetar os outros.
      Nisso, me ocorreu um pensamento horrível: Fanny! O que é que iria acontecer com Fanny?
      Murmurei seu nome baixinho, quase que respirado, mas ele ouviu assim mesmo.
      - Ela fica. Será utilizada em outros serviços. Quando você vier nos feriados, vai precisar de uma empregada.
      Graças a Deus, Fanny estava salva. Por que não pensei antes nas conseqüências de minha fuga para ela? Meu pai tinha razão. Antes de agir, devo pensar.
      - Faço votos que aprenda a ter um pouco de amor ao próximo. Sua ação irrefletida e irresponsável já me causou grandes aborrecimentos. E lembre-se, se novamente se sentir tentada a praticar atos desse tipo, por favor, pense antes, pois não vai encontrar-me tão indulgente da próxima vez.
      - Está indo embora, papai?
      - Estou partindo para retomar o trabalho que você interrompeu.
      Ele olhou para mim e, por um instante, cheguei a imaginar que fosse me abraçar e me beijar. E, para espanto meu, pensei que gostaria que o tivesse feito.
      Se tivesse, teria chorado. Teria lhe contado como me sentia infeliz, como lamentava ter nascido e como de bom grado voltaria ao limbo, o lugar dos bebês que não chegam a nascer... se isso lhe restituísse minha mãe.
      Esta era uma parte de mim; a outra tinha ódio dele.
      E a parte que odiava era a preponderante, visível pela expressão sombria de meu rosto.
      Ele me deu as costas e foi embora.
      A atmosfera da casa ficou bem mais animada depois que ele partiu.
      Antes que tivesse passado um hora, A'Lee estava abrindo minha porta. Vinha carregando uma bandeja coberta por uma toalhinha e, já ao entrar, foi dizendo:
      - Bem, Srta. Harriet, o patrão voltou para Londres, e estamos sozinhos outra vez.
      Largou a bandeja numa mesa, piscou para mim e arrancou com um gesto teatral a toalhinha, exibindo uma torta que tinha uma linda cor marrom-dourada, quente, saborosa, acabada de sair do forno, receita da Cornualha; trazia também um copinho de sidra e mais uma enorme fatia de bolo de passas.
      - Aqui está tudo que a Sra. A'Lee pôde fazer, tão logo soube da novidade.
      - Está com uma aparência deliciosa.
      - E o gosto também, ou então não conheço a Sra. A'Lee.
      - Mas eu devia passar só a pão e leite.
      - Eu e a Sra. A'Lee nunca concordamos com isso.
      Sentei à mesa e cortei a torta. Exalava um delicioso cheiro que encheu minha boca de água, enquanto A'Lee ficou admirando, com ar de grande satisfação.
      - Bem, já chega. Essa bobagem de pão e leite tinha de ter fim - ele disse.
      - Meu pai iria ficar furioso se soubesse. Iria despedir os dois: você e a Sra. A'Lee.
      - Não nós dois. Viemos com a casa, não esqueça. Ele nunca gostou mesmo de nós. Não somos como seu mordomo de Londres, parece.
      Aí, A'Lee pegou a toalhinha da bandeja, dobrou-a e pendurou no braço, começando a andar todo posudo pelo quarto. Suas tentativas para imitar a sofisticação da fala de Polden, que viu apenas uma ou duas vezes quando veio a Chough Towers para supervisionar alguma ocasião especial, eram tão caricatas que me fizeram rir, o que de fato era sua intenção.
      - É verdade - disse ele - nós servimos direitinho ao Sr. Leveret e vamos servir direitinho à senhorita também.
      - Você queria que o Sr. Leveret continuasse morando aqui, não é?
      - Oh, aquilo é que foi bom tempo. Pode ser que o Sr. Harry volte, mas ele anda muito ocupado em St. Austell e outras partes por aí que falam. A gente trabalha com mais gosto para os Leveret do que para esses senhores metidos a sebo que vêm de Londres como...
      - Como meu pai? Você não gosta de trabalhar para ele, não é A'Lee?
      - Bem, ele tem uma mocinha muito boa, que é sua filha.
      - E que pelo menos gosta mais de você do que gosta daquele idiota do Polden.
      - Ah, mas ela é uma dama de verdade.
      Aí, rimos juntos.
      - A sidra foi preparada por mim mesmo. Foi feita para o Sr. Leveret. O Sr. Harry gostava de tomar todos os dias. Mas não tomava mais de oito. Vinha e ficava cheirando em volta do barril, e eu não sabia que ele já se servira! Foi um bom tempo. Ah, se foi! Não vá tomar muito gosto por ela, hein, Srta. Harriet? É bebida esbraseada mesmo.
      - Não vou ter muita chance disso. Estou indo para uma escola.
      - É, nós ouvimos dizer. Mas a senhorita vai voltar, imagino. E ela também vai junto. De todo jeito, vai pegar fogo.
      - Ela quem?
      - A Srta. Gwennan, de Menfreya.
      - Ah, é? A'Lee, isso é verdade?
      - Pois é. Vai ser bom para a senhorita.
      - Isso muda tudo. Ele balançou a cabeça duvidando.
      - Não sei não. Esses Menfrey...
      - Você não gosta muito deles, hein A'Lee?
      - Não é bem o caso de gostar ou não gostar. Eles são selvagens. Nasceram para arrumar confusão. Foi por causa de uma confusão deles que a senhorita está aqui... sentada nessa cadeira, comendo a gostosa torta da Sra. A'Lee, que parece feita com néctar dos deuses. Parece, não, ela é feita disso mesmo, porque não podia ser mais gostosa. Eu garanto.
      - Por causa de uma confusão dos Menfrey? Mas por quê?
      - Bem, por que a senhorita está aqui? Porque seu pai, o Sr. Edward Delvaney, é membro do Parlamento. Já vem sendo há uns sete ou nove anos. Mas antes, foi sempre um Menfrey que ia ao Parlamento por nós. Nunca houve estrangeiro aqui até os últimos sete anos.
      - Quem era o representante por Lansella, então? Sir Endelion?
      - Claro que era ele! E o pai dele antes. Desde que existe Parlamento, sempre foram os Menfrey que representaram Lansella.
      - E por que Sir Endelion desistiu?
      - Não é bem que ele tenha desistido, mas porque desistiram dele. A rainha, todo mundo diz, é demais rigorosa e não queria ter nenhum de seus ministros com reputação duvidosa. E Sir Endelion era para ser muita coisa em Londres. Um figurão. Dizem que talvez até primeiro-ministro, ou coisa parecida, se não acontecesse o que aconteceu.
      - E o que aconteceu?
      - O de sempre. Você nunca tem de perguntar o que, quando é com os Menfrey, minha querida, mas quem.
      - Alguma mulher?
      A'Lee fez que sim com a cabeça.
      - O escândalo costumeiro. Também foi fazer lá em Londres. Aqui, a gente já está acostumado. Mas sempre foram bons para as meninas que se metiam com eles. Procuravam maridos de conveniência para elas ou arrumavam quem ficasse com os bebês. Só que agora aconteceu em Londres. Foi com uma moça bem-nascida, e aí o marido pediu o divórcio por causa de Sir Endelion.
      - Coitada de Lady Menfrey!
      - Ah, mas ela é uma moça muito bem-nascida. Ah, isso ela é. Ela perdoou, por assim dizer, e ele voltou para casa. Mas isso não servia para a rainha. Para dizer a verdade, nada servia para a rainha, a não ser a renúncia de Sir Endelion. Assim, ele teve de renunciar, e, pela primeira vez, desde que a gente se pode lembrar, não teve um Menfrey no Parlamento nos representando.
      - Eles parecem que não ligam.
      - Tem gente que diz que ele está chocando o lugar para o Sr. Bevil.
      - Então... ele vai entrar na política.
      - É. Os Menfrey sempre acabam entrando. Eles precisam ter voz no governo, é o que dizem. E são eles mesmos que têm de ter a voz. O Sr. Bevil vai voltar, acho eu. Tudo no seu tempo. E então haverá um Menfrey, em Londres, por Lansella.
      Terminei de beber a sidra e engoli o último pedaço do bolo de passas.
      - Isso estava muito bom - disse eu, pensando na pobre Lady Menfrey e na raiva que deve ter tido ou, quem sabe, tristeza. Seja como for, uma infeliz.
      Veio-me, então, a imagem de Sir Endelion voltando para Menfreya, desalojado do Parlamento por causa de um escândalo.
      Não é à toa que são chamados de Menfrey Selvagens.
      Nesse dia, mais tarde, Gwennan veio visitar-me.
      - Logo que soube que seu pai tinha ido embora, eu vim - comentou. - Sabe? Vamos para uma escola... juntas. Somos indisciplinadas e não conseguem controlar-nos. Que engraçado! Nunca teriam pensado em nos mandar, se você não tivesse fugido. Isso é o fim de tudo.
      - Não, não é o fim - respondi. - Como partir e começar nova vida pode ser o fim de tudo?
     
     
    Capítulo 2
     
      Três anos haviam passado desde que fugi, e foram eles os mais felizes que até então já tinha vivido, mesmo não sendo tão popular na escola como Gwennan foi. Entretanto, era mais estudiosa do que ela, e, sem ser brilhante, meu desejo de sobressair em qualquer coisa me ajudou bastante. Os meus professores estavam contentes com minha aplicação, e eu me sentia, por isso, razoavelmente feliz.
      A amizade entre minha família e a dos Menfrey, durante esse tempo, cresceu. Meu pai mostrava-se interessado principalmente em Bevil, e A'Lee estava certo ao dizer que os Menfrey sempre acabam seguindo a carreira política. Bevil decidiu-se exatamente por isso, e suponho que algum dia contava em devolver à família a tradição de um Menfrey representando Lansella no Parlamento. Nesse meio tempo, largou a universidade e viajou pela Europa numa espécie de grand tour; agora, ajudava meu pai no trabalho, esperando surgir uma oportunidade de apresentar-se como candidato a uma cadeira no Parlamento.
      Quando eu vi os dois juntos, fiquei espantada, pois meu pai era extremamente simpático com Bevil, que, tenho certeza, não fazia a menor idéia de como ele poderia ser o oposto com a própria filha.
      As férias de verão eram passadas em Chough Towers, e era tão agradável como estar em Menfrey. Meu pai decidiu que o ar de Londres não era saudável para mim. Desse modo, eu deixava de ser um estorvo, para ser posta aos cuidados dos A'Lee, o que muito me convinha, pois passava a maior parte do tempo em Menfreya, onde era considerada como da família.
      Eu estava crescendo, e os meus modos iam ficando mais reservados, mas ainda continuava ressentida com o mundo, embora capaz de controlar melhor meu temperamento. Às vezes, ainda tinha sonhos com o meu pai querendo jogar-me fora ou me batendo com um chicote. Lembro-me, como se fosse hoje, do pavor e do suor frio com que acordava após esses pesadelos.
      Nunca falei deles a ninguém, e seguramente nem com Gwennan, mas Fanny sabia. Acordava freqüentemente com ela ao meu lado, porque havia ouvido os meus gritos durante a noite. Às vezes, naqueles momentos, ela deitava na minha cama e me tomava nos braços, até que eu fosse tranqüilamente pegando no sono; em outras, se punha a contar histórias do orfanato, enquanto eu não dormisse. Raramente, porém, tive desses sonhos quando passava as férias no colégio.
      Como já tinha tido, uma vez, medo de perder Fanny, sabia o quanto ela era importante para mim. Era quem bordava minhas iniciais na roupa do colégio e quem comigo insistia para que trocasse de roupa, quando apanhava chuva.
      Gwennan me invejava por causa dela.
      - Você tem sorte de ter uma empregada só para você - dizia ela. - Ela vai ficar com você até morrer.
      E ser invejada por Gwennan me dava prazer; era, portanto, uma coisa a mais que tinha para agradecer a Fanny.
      Na escola, Gwennan era, entre todas, a menina mais interessante e também a dona da língua mais ferina. Com charme, conseguia sair das confusões que arrumava, e acredito que, se não fosse por ele, teria sido expulsa. E ela estava certa, ao falar do fascínio dos Menfrey sobre o sexo oposto. No colégio, teve um ou dois casos que não foram descobertos, mas de que gostava de gabar-se. Até onde chegaram, não posso dizer, porque nem sempre podia acreditar no que contava. O que eu sempre tinha medo era do que faria em seguida, e o que me dava mais medo ainda era deixar de ser sua confidente.
      Foi ela quem me falou que Bevil contava em entrar para o Parlamento e que meu pai o estava ajudando. Por enquanto, esperava haver eleitores para ele, para depois começar a paparicá-los na esperança de conseguir uma cadeira, quando surgisse uma eleição para preenchimento de vaga ou, então, quando chegasse a eleição geral.
      - Seu pai pode fazer muita coisa por ele. É por isso que mamãe e papai estão doidos para todos sermos amigos. Vê, queridinha, por que fomos mandadas juntas para o colégio e por que é tão bem recebida em Menfreya?
      - Esta está me parecendo uma razão das mais sórdidas.
      - Todas as razões são sempre assim.
      - Então, por isso é minha amiga?
      - Não, porque eu não sou subornável.
      - Não sei de que jeito ia poder suborná-la.
      - Não você. Mas todo o dinheirão de seu pai pode. Mamãe e papai fazem questão que você e eu sejamos amigas. Bem, tudo por causa de Bevil, sabe? Mas eu tenho minhas razões.
      - Quais?
      - Bem, você vê, você dá realce à minha beleza. - Aí, ela riu. - Xi, agora parece que ficou enfezada. Boba! Como se precisasse de alguém para me pôr em evidência. Olha aqui, de qualquer jeito, nunca confiei mesmo neles. Não, não é por isso. Gosto de você por causa de seu jeito, parecendo que sempre está aborrecida com tudo, porque foge, e isso tudo que faz. E também ficou naquela noite na ilha e não me meteu na coisa. Fico até satisfeita de que vai casar com Bevil.
      - Eu casar com Bevil?
      - Bem, você está apaixonada por ele, não está? Oh, minha vida, linda vida, como dizia a Sra. Pengelly. Ei, agora está ficando vermelha. Fica mais bonita vermelha do que amarela. Então, a idéia não é má, hein? Podia trabalhar nisso para você, Harriet.
      - Acho que não estou entendendo... O que pretende dizer com... com casamento?
      - Então é mais cega do que 12 morcegos juntos. Você sabe muito bem como são trabalhadas as coisas nas famílias como as nossas. São eles que escolhem maridos para nós, como faz a realeza. Bevil será para você, e Harry Leveret para mim. Coitadinho do Harry, com aquele seu cabelo ruivo; a gente não enxerga nem as pestanas dele, acho até que nem tem. Mas o que ele tem, muito, eu sei, é dinheiro, em profusão. E acontece que minha família acha isso bem mais importante do que pestanas. E você também tem a mesma coisa. Por isso é que ficamos tão felizes em convidar os Leveret e os Delvaney a Menfreya. Faz sentido, não é?
      - Vocês são muito... muito mercenários.
      - Piedade, Harriet! Somos apenas pobres. Eles têm a maior das casas do Sul da Cornualha, um velho monstro que engole montanhas de dinheiro. Você nem pode avaliar o que seja isso. O que somos é incompetentes. Sempre fomos. E monstros, Harriet, para viver precisam de sangue jovem, mas de jovens virgens e com dinheiro, como você e Harry. Você, eu sei que é, e Harry tenho certeza de que também é. Portanto, precisamos dos dois.
      - Bevil sabe disso?
      - Claro que sabe!
      - E ele não se incomoda?
      - Se ele se incomoda? E por que devia? Acha ótimo.
      - Está pretendendo dizer que ele gosta um pouquinho de mim?
      - Ora Harriet, não seja boba! O que acontece é que você é uma herdeira. Seu pai arranjou toda essa fortuna, e para quem mais iria deixá-la?
      - Não acredito que ele vá deixar para mim.
      - Naturalmente que vai. As pessoas sempre deixam para os seus herdeiros... por mais que tenham ódio deles. É por orgulho ou uma outra coisa parecida.
      - Mas isso é abominável... Tanto para você como para Bevil. Bem, pelo menos eu acho.
      - Santo Deus, Harriet, nós não ligamos para isso.
      Aí, ela ficou de pé e colocou as mãos na posição em que ficam as dos santos.
      - É para o bem de Menfreya - acrescentou.
      Foi logo depois dessa conversa que me mostrou uma mesa no hall de Menfreya.
      - Essa mesa já teve incrustações de pedras preciosas. Acho que de rubis. Foram todos retirados. Um por um, usados pelos meus antepassados... para salvar Menfreya. Bem, agora os rubis se foram, e temos então de arranjar maridos e mulheres com dinheiro.
      - Sou uma mulher, valendo mais do que rubis - disse eu.
      E começamos as duas a rir. Assim era sempre com Gwennan e eu - por mais que me agredisse, acabávamos depois sempre rindo, e mesmo que me desdenhasse e criticasse, continuava sendo sua grande amiga.
      Quando meu pai decidiu dar um baile a fantasia em Chough Towers, Gwennan cismou de ir. Estávamos com 16 anos, e oficialmente nenhuma ainda havia debutado, mas Gwennan tanto atormentou Lady Menfrey que ela acabou permitindo que ficássemos espiando da galeria, se meu pai também concordasse. E, como foi a própria Lady Menfrey quem pediu, a permissão foi graciosamente concedida.
      - Vamos precisar de fantasias - disse Gwennan. Mas ninguém a levou a sério, nem mesmo Lady Menfrey, que sempre se deixava persuadir.
      Gwennan ficou de cara amarrada, esbravejou e durante dias não falou de outra coisa a não ser sobre fantasias e de como consegui-las. Foi então que, um dia, chegando a Menfreya, encontrei-a excitadíssima, e, enquanto me cumprimentava, já foi dizendo:
      - Tenho uma coisa para mostrar a você. Vem. É um lugar em que nunca esteve.
      Menfreya sempre me pareceu ter um ar de mistério, porque lá havia muita coisa que eu ainda não conhecia. E só o pensamento de ver uma parte nova para mim já me deixava alvoroçada. Assim, emocionada, fui seguindo Gwennan pela casa, indo na direção da ala leste, que nunca era usada e que era a parte mais antiga.
      - Esta ala precisa de tantos consertos que não dá para ser habitada, enquanto eles não forem feitos. Tanto faz, quem iria querer? Ontem, vim até aqui, mas começou a escurecer e, aí, não quis ficar mais.
      Tínhamos de subir uma escadinha e passar por uma porta, que, quando ela puxou, não abriu.
      - Ontem, também, foi difícil abri-la, mas consegui. Há anos que não era aberta; acho que não foi nunca mais, desde que Bevil e eu costumávamos, há séculos, vir aqui. Não fique aí parada. Ajude!
      Encostei meu ombro na porta e empurrei com toda a força. Primeiro, cedeu um pouquinho, depois, se abriu de repente, descobrindo uma passagem escura, cheirando a mofo e aos séculos que ficaram ali guardados. Aí, entramos.
      - Devemos estar perto do contraforte da ala leste - sussurrei.
      - Não precisa falar baixinho - gritou Gwennan. - Ninguém pode nos ouvir. Estamos hermeticamente fechadas. O contraforte fica à direita. É para lá que vou levá-la.
      Meus dentes batiam, não de frio, mas pela excitação, apesar de o ar também estar frio.
      - Puxa, ser dona de tudo isso e nunca vir aqui - disse eu.
      - Alguém esteve aqui, certa vez, e fez um orçamento para o que se teria de fazer. Aí, nunca mais se pensou nisso. Foi no tempo em que Bevil e eu costumávamos vir explorar isso aqui.
      - Quando eram crianças?
      Ela não respondeu.
      - Cuidado com essa escada. Segure na corda. Tínhamos ido dar numa escadinha em espiral; cada degrau estava molhado e gasto no meio; a corda servia de corrimão e ajudava as pessoas a se puxarem para cima nos degraus. Gwennan chegou ao topo e deu um sorriso de satisfação para mim, exibindo as mãos.
      - Olha a poeira!
      - O que a fez vir aqui?
      - Você vai ver. Está vendo aquela porta? Foi posta aqui muito tempo depois do lugar ter sido construído. Antes, devia ser só um painel que se deslocava, deixando a passagem para o quarto aberta.
      - Que quarto?
      - Por aqui, vamos dar numa espécie de corredor e, então... chegamos no quarto mal-assombrado. Esta porta também é difícil de abrir.
      E era. Ela deu um gemido de protesto, como se fosse a voz de alguém que nos avisava para não entrar ali. Pelo menos foi no que pensei e que fez Gwennan rir até não poder mais.
      - Só mesmo você, Harriet, para inventar uma coisa dessas! Agora, por aqui... vai dar no contraforte.
      O ar agora estava de fato frio; a passagem era estreita, com paredes de pedra. Estávamos quase no escuro, e estendi o braço, agarrando a saia de Gwennan.
      A passagem desembocou no que dificilmente se poderia chamar de quarto, mas no que se podia pensar como sendo um vão circular. Ali, não havia janela, só uma fresta rasgada ao comprido na grossa parede, por onde passava uma luz muito fraca do dia lá fora.
      - Que lugar estranho - falei alto.
      - Claro que tem de ser. Era aqui que se mantinha, antigamente, os prisioneiros. E depois, certamente, foi aqui que ela ficou presa... e daí em diante passou a ser mal-assombrado.
      - O que, Gwennan? Você está sendo incoerente.
      Com ar de satisfação, ela observava o meu espanto, enquanto eu examinava o lugar. Por estranho que pareça, apoiado na parede, estava um espelho embaçado e com a moldura toda manchada. Ali, também havia um baú, que, pelo bolor, estava verde. Percebi, então, a existência de outra passagem, igual àquela por onde passamos, e apontei na sua direção, para Gwennan.
      - Vamos, então. Vou mostrar a você.
      Era um caminho que ia dar numa outra passagem, que chegava numa segunda escada em espiral, tal como a que, antes, já tínhamos subido. Ela começou a subi-la e ia contando, ao mesmo tempo, os degraus empoçados de água. Eram 40, e, já em cima, demos com o céu aberto, num corredor circular, que contornava o contraforte.
      - Era para aqui que costumava vir em busca de ar, disse Gwennan.
      - Quem?
      - Ela, naturalmente. Se é verdade que ela passeia, imagino que suba para aqui.
      As paredes externas do contraforte eram recortadas formando ameias. Ajoelhamos numa das saliências e nos inclinamos para olhar lá embaixo o mar, visto do ponto culminante da casa. Gwennan apontou para os modilhões - que serviram de suporte para os vasilhames de óleo quente, que eram jogados naqueles que fossem atacá-los, explicou.
      - Tente imaginá-los - continuou dizendo - subindo por estes penhascos e sendo atirados lá embaixo a golpes de aríete. Isso foi há séculos e séculos, muito antes dela vir para cá.
      Enchi os pulmões de ar puro e me colei às pedras das ameias. Como amava esta casa, onde tanta coisa emocionante aconteceu e onde tanta gente viveu e morreu. De todo o coração, gostaria de pertencer a ela e ser um deles.
      Gwennan havia começado a me contar a história:
      - Ela foi empregada, aqui, como preceptora das crianças, e um Menfrey, um de meus antepassados, se apaixonou por ela. Quando Lady Menfrey descobriu, foi despedida e mandada embora. Lady Menfrey pensou que a moça tivesse ido, mas não foi. Bom, sabe como é, ele não agüentava viver separado dela, aí trouxe-a para este lugar que ninguém conhecia. Costumava vir visitá-la neste quarto aqui embaixo. Dá para você imaginar, Harriet? Ele, vindo às escondidas para este lado da casa e empurrando para um lado um painel? Aposto como devia ser um, e que devia vir carregando uma vela, ou uma lamparina... era como conseguiam ficar juntos. Mas aconteceu que ele teve de ficar fora por uns tempos. Talvez em Londres. Lá pelo Parlamento... e, então, o relógio na torre parou. Você já sabe que o relógio na torre pára, sempre que um Menfrey está para morrer.
      - Não, não sabia...
      - É, você não sabe de nada. Bem, o relógio da torre pára, quando um de nós está para morrer de morte não natural. Por isso é que Dawney tem de ter todo o cuidado com ele, que deve estar sempre funcionando. Claro que não acreditamos nessas histórias de antigamente, ou pelo menos dizemos que não; mas há pessoas que acreditam. Isso é o que papai diz, e estamos sempre nos lembrando dessas coisas. Deus sabe por quê.
      - Bem, e o que aconteceu? Por que o relógio parou?
      - Porque ela morreu, aqui mesmo, no quarto aí embaixo... e também o bebê.
      - Bebê de quem?
      - O dela, lógico! Veja, nasceu antes do tempo... e ninguém soube. Morreram os dois. Tinha sido por isso que o relógio havia parado.
      - Mas ela não era uma Menfrey.
      - Não, mas o bebê era. Parou por causa do bebê. Algum tempo depois, Sir Bevil voltou.
      - Quem?
      - Suponho que fosse Sir Bevil... ou Endelion ou qualquer outra coisa... Quando chegou, ela estava morta. Aí, lacraram o quarto, e nunca mais se pensou no assunto por anos e anos... até que alguém veio aqui outra vez e mandou colocar uma porta no lugar do painel. Mas ninguém queria vir aqui, nem os criados. Dizem que está mal-assombrado. O que é que você acha?
      - Ele tem um ar melancólico e frio.
      Ela se sentou nos vãos das ameias com os pés pendurados para o lado de fora para me dar susto. Botando-me medo de que ela pudesse cair. Fez isso de propósito, só para se exibir.
      - Vamos descer?
      - Vamos, é melhor. Mas há ainda aquele baú para ver. Já olhei dentro dele. Foi para isso que vim com você aqui. Quero mostrá-lo a você, antes de ir.
      Descemos outra vez ao quartinho redondo. Lá, Gwennan levantou a tampa do baú, e a sujeira verde pegou em suas mãos. Ela fez uma careta, mas deu um sorriso, quando olhou para o que estava dentro dele.
      Puxou para fora o que podia ser uma peça de veludo cor de topázio, porém naquele instante meu pensamento ainda estava voltado para a mulher que havia sido amada por um Menfrey.
      - Achei que você podia ficar com essa coisa marrom - disse ela.
      Soltou a coisa no chão, e, tirando uma massa de veludo azul, começou a ajeitá-la no corpo. Peguei do chão o veludo topázio. Era um vestido com corpete muito justo, de corte reto e com mangas larguíssimas, forradas de cetim dourado, que aparecia sob recortes feitos nas mangas do veludo topázio. A saia devia ter metros e metros de veludo. Encostei o vestido em meu corpo, e, quando me olhei no espelho, mal podia acreditar que estava olhando para mim mesma.
      - Ele fica bem em você - falou Gwennan, quando por um instante desviou sua atenção dela mesma.
      - Vista. Anda, vista logo.
      - Aqui?
      - É, por cima da roupa mesmo.
      - Mas ele está tão frio, e tenho certeza de que também deve estar úmido.
      - Só por um minuto, você não vai morrer por isso. Ele é exatamente o tipo de coisa que serve para ir ao baile.
      Só parou de falar quando comecei a fazer passar o vestido pela minha cabeça. Ao meu lado, ela ficou ajeitando, apertando, esticando o vestido, e segundos depois ali estava eu... Completamente transformada.
      Era um vestido decotado até os ombros, e minha roupa de merinó cinza ficava aparecendo à altura do pescoço e dos ombros, mas não tinha importância, o vestido tinha me transformado numa coisa que jamais havia sido. Quando levantei a saia, um objeto caiu: uma rede de cabelo, trançada com fitas e rendas e ornada com minúsculos topázios.
      - Ela combina com a cor de seu cabelo - Gwennan disse. - Ponha.
      Agora, a mudança era completa. Não era mais a aleijadinha da Harriet Delvaney quem me olhava do outro lado naquele espelho embaçado. Os olhos tinham ficado mais verdes, maiores, e o rosto era cheio de animação.
      - É um milagre - disse Gwennan, apontando para o espelho. - Não se parece nada com o que você é. Virou outra pessoa. - E, rindo, disse: - Bem, vou lhe dizer uma coisa, Harriet Delvaney, você já tem um vestido para o baile.
      Ela se aproximou de mim, enrolando-se no veludo azul, e fiquei feliz por ela estar ali, senão acharia que qualquer coisa de bem estranha estava sucedendo comigo. Mas naturalmente eu era uma pessoa com muita imaginação...
      - Venha, linda senhora, ser o meu par nesta dança - disse Gwennan, segurando minha mão.
      E começou a saltitar em volta do quarto, sempre de mão dada comigo. Deixei-me levar, e ficamos rodopiando, até que me dei conta de que estava dançando. Eu, que me dissera que jamais iria dançar.
      Ela também percebeu.
      - Você é uma impostora, Harriet Delvaney - gritou, com sua voz ressoando de modo fantástico naquele estranho lugar. - Não acredito mais que tenha alguma coisa de errado com os seus pés, depois disso.
      Parei e olhei para eles e, aí, dei com o reflexo de uma menina no espelho. Aquele era um momento extraordinário, igual ao outro no jardim, quando, em criança, subitamente, levantei e andei.
      Sentia uma alegria fantástica, sem saber por quê, apenas pressentia que alguma coisa tinha a ver com o vestido que estava usando.
      - Bem, essas coisas resolvem nosso problema - disse Gwennan. - Já podemos ir ao baile. Vamos tirar tudo isso daqui e levar lá para baixo. Depois veremos o que fazer.
      Fui com Gwennan para o quarto dela, com a sensação de estar vivendo um sonho.
      Um dia antes do baile, chegou meu pai a Chough Towers, e a atmosfera sombria baixou novamente sobre a casa. As horas das refeições, quando ele estava lá, eram verdadeiras provações. Felizmente para mim, não para ele, William Lister veio juntar-se a nós, e ficávamos os três sentados na enorme mesa da sala de jantar, com vista para um dos gramados, por um tempo que parecia não acabar mais. Era meu pai quem conduzia a conversa, geralmente sobre política, enquanto William Lister fazia apenas discretos comentários. Se eu falasse, meu pai ouvia com ar enfadado, e, na maioria das vezes, ignorava o que eu dizia. Se William Lister fosse tentar responder-me, meu pai geralmente mudava de assunto. Por isso, decidi que o melhor seria manter-me calada, esperando que a refeição terminasse logo. A'Lee ficava perto do aparador, dirigindo os criados que serviam à mesa. Eram dois, o que sempre me pareceu absurdo: três pessoas precisarem de tanta gente para servi-las, ainda mais que sabia que, àquelas horas, a cozinha andava em polvorosa. Só me levantava quando os dois já estavam conversando, passando pela porta para saírem. Que alegria quando essa hora chegava!
      Certa vez meu pai me perguntou:
      - Você não tem assunto?
      Fiquei vermelha e nada disse, no entanto tive vontade de gritar para ele: "Essa é boa, se falo, você me ignora".
      Agora, pelo menos, tinha o pensamento voltado para o vestido que estava pendurado no meu guarda-roupa, ao lado de outro, que seria usado por Gwennan, e me punha a imaginar se Bevil iria me ver com ele e se gostaria do que estava vendo; e, com isso, deixava de preocupar-me tanto com o meu pai. Gwennan me recomendou para não falar nada a respeito dos vestidos, pois poderiam surgir tentativas para nos impedir de usá-los. Entretanto, não podia deixar Fanny do lado de fora; seria ela quem ia aprontar o azul para Gwennan e consertar o topázio para mim. Fanny não via nenhum mal na coisa e, além disso, acrescentou, podíamos devolvê-los outra vez ao lugar onde foram achados. Ela, para fazer sair o cheiro de mofo deles, iria arejá-los na varandinha do meu quarto. Foi assim que, depois de contrabandeados para Chough Towers, o meu quarto passou a ser lugar de longas conferências, com Fanny parecendo divertir-se tanto quanto nós.
      Na noite do baile, os meus cabelos - sempre desgrenhados - foram escovados por Fanny até caírem lisos sobre os meus ombros; em seguida, ela me ajudou a botar o vestido e me fez sentar diante do espelho, enquanto dava os retoques finais no cabelo, prendendo-os naquela jóia que era a rede. No espelho, me via com olhos brilhantes, mais verdes por isso mesmo, e o tom de minha pele tinha um leve rosado. Chegava quase a acreditar que estava muito atraente naquele vestido.
      - Bem, aí está, minha senhora, pronta para ir ao baile.
      A casa pareceu ter nova vida. Por toda parte havia som de vozes; os músicos já haviam chegado, e os hóspedes estavam no salão de baile com o meu pai. Tia Clarissa, nessa ocasião, não estava lá, era muito longe de Londres, e o meu pai ia, sozinho, receber os convidados.
      No meu quarto, sentei com Fanny no sofá junto da janela, e ficamos observando as carruagens chegarem.
      Era uma cena estupenda, ver os convidados fantasiados e com máscaras, apeando e atravessando o caminho da entrada da casa. A chegada dos Leveret causou sensação, pois foram os únicos a aparecerem numa carruagem sem cavalos. Só eles, na vizinhança, possuíam uma dessas, e quando saíam, todo mundo corria de suas casas para vê-los passar. As vezes, ela enguiçava e tinha de ser puxada a cavalo. Comentava-se, então, muito a respeito do que é a loucura dessas invenções modernas. Mas, no ano anterior, a engenhoca foi tratada com mais respeito, desde que aboliram a lei que obrigava um homem a caminhar adiante do carro empunhando uma bandeira vermelha e que se aumentou o limite de sua velocidade para 20km/h. Aqui, entretanto, na remota Cornualha, as carruagens sem cavalo eram encaradas com desdenhosa desconfiança, mas não havia como discordar de que a visão dos Leveret, fantasiados e dirigindo a coisa, era das mais grotescas. Tive que rir, e, então, Fanny disse:
      - Ora, veja se isso não virou um perfeito circo.
      - Eu pensava assim antigamente... até que chegou esta.
      - Ei, está ficando muito excitada.
      - Será que estou?
      - Ora se está, nunca esteve assim antes. Não se esqueça de que vai ficar olhando só da galeria.
      - Queria que Gwennan já estivesse aqui.
      - A senhorita bagunceira vai chegar logo. Não precisa ficar se roendo.
      Tinha razão, acabou de falar, e a carruagem de Menfreya chegou. O primeiro a descer foi um cavaleiro do século XVIII, Bevil, que ajudou sua mãe e Gwennan a saírem; em seguida, saltou Sir Endelion. Não prestei atenção de que estavam fantasiados Sir Endelion e Lady Menfrey, meus olhos eram para Bevil.
      Gwennan, com sua capa de todos os dias sobre um simples vestido de festa, estava inteiramente insignificante, junto de todas aquelas fantasias faiscantes, e imaginei logo que devia estar aflita para se meter de uma vez no seu vestido de veludo azul.
      Uma das empregadas veio com ela até o meu quarto, e tive que me esconder para não ser vista no meu veludo topázio, e Fanny foi conversar com a empregada, até que Gwennan entrasse. Logo que a empregada se foi, Fanny disse:
      - Pode sair agora.
      Aí, foi ajudar Gwennan a se vestir e nos deixou, depois, sozinhas.
      - O seu não é marrom - disse Gwennan. - É uma espécie de dourado.
      E, vaidosa, alisava as pregas de seu vestido, mas franziu, então, a testa.
      - O seu é menos comum. Sério, Harriet, você nunca esteve desse jeito. Ah, já sei, é que, agora, não está pensando que as pessoas têm ódio de você. Mas o que estamos esperando? Se você não quer, eu quero ir ao baile.
      Tinham me avisado para onde tinha de levá-la. Era para a galeria, a que imitava um jirau de coro, sobre o salão de baile. Nós tínhamos combinado esperar até que o salão estivesse bem cheio, para só então descermos de mansinho, e com máscaras.
      - Agora - disse Gwennan. - Não vão reparar na gente.
      Chegamos à galeria. Lá, haviam sido postas pesadas cortinas de veludo vermelho, amarradas por percintas douradas, de modo a nos deixar, num ponto dela, uma abertura para espiar; duas cadeiras foram colocadas atrás da balaustrada, numa posição tal que, se não nos deixava completamente invisíveis, também não nos punha muito à vista.
      Gwennan foi imediatamente para o gradil da galeria, para olhar lá para baixo, enquanto eu fiquei mais atrás. A visão era magnífica. Estávamos quase no mesmo nível dos lustres a gás, e a cena embaixo ficava fantástica, com as cores dadas pelos trajes de todas as épocas.
      Cinco ou seis minutos depois de estarmos ali, ouvimos vozes na entrada da galeria; uma, era a de Fanny.
      - Bem, meu senhor - estava ela dizendo -, não sei se devo, mas se o senhor insiste.
      - Claro que insisto! Ora, vamos, é só uma brincadeira.
      Gwennan me olhou e disse:
      - É Harry. Harry Leveret.
      A porta abriu, e Fanny apareceu vermelha e aflita.
      - Não sei bem se... - começou a dizer.
      - O que está acontecendo, Fanny? - perguntei.
      - Um senhor está aqui dizendo que...
      E ali estava Harry, fantasiado de Sir Francis Drake, com uma barba falsa, que não combinava com o seu cabelo vermelho, aparecendo por baixo do chapéu enfeitado de plumas. Ele dispensou Fanny, que desapareceu; aí, entrou na galeria.
      - Harry, o que está fazendo? - Era Gwennan que, excítadíssíma, falava num tom de voz mais alto que o seu.
      - Não esperava que fosse ficar lá embaixo, com você aqui em cima, hein?
      Não parecia nem um pouco surpreso por nos ver fantasiadas; concluí, então, que ela já lhe devia ter falado do nosso achado. Os olhos dele brilhavam ao fitá-la.
      - Sabe, temos máscaras também, não é, Harriet? - disse Gwennan. - Vamos logo sair daqui. Coloquem as máscaras, e a gente desce.
      Percebi que Harry não ficou muito satisfeito diante da perspectiva de eu estar por perto.
      - Não se preocupem, não vou ser incômodo.
      - Você encontra logo um par - disse Gwennan, com aquela convicção, quando queria acreditar numa coisa.
      - Claro - respondi com orgulho.
      Nem por um momento estava acreditando nisso, mas a hora de me juntar aos outros tinha chegado. Fiquei com medo. O que iria acontecer se meu pai me descobrisse? Afinal, deixei-me levar por Gwennan nessa aventura, sem medir bem as conseqüências dela. Para ela, tudo estaria bem, estava com Harry Leveret do lado, e sua família não era igual a meu pai.
      - Lógico que vai - concordou Harry.
      Deixamos a galeria e descemos ao salão. Havia me prometido que, se por acaso me sentisse muito sozinha no meio dos outros, voltaria correndo à galeria, e esse pensamento fez com que me animasse. E que bom era poder estar oculta atrás de uma máscara. Ao passar na frente de um espelho, dei uma olhada para mim. Não me reconheci. Se eu não podia, quem mais ia poder? Subitamente, me senti excitada com todas aquelas cores, com a música, com o brilho de tudo ali e, também, porque tinha a estranha sensação de que, com aquela roupa, eu vestia outra personalidade, diferente da minha.
      Harry mal podia esperar para ter Gwennan só para ele, e logo à entrada do salão passou o braço em volta dela, e os dois se foram, numa valsa. Fiquei observando: estava lindo o Danúbio Azul. Que sonho! Que romântico! Como gostaria de ser uma daquelas pessoas dançando.
      Escondi-me atrás de um vaso de samambaias e fiquei ali, olhando, enlevada pela música, a me imaginar dançando... com Bevil, é lógico.
      E lá estava ele: dançava com uma linda Cleópatra; ria com os olhos pousados nela e, seguramente, dizendo coisas divertidas e afetuosas. Lembrei-me do modo como me falou, quando me trouxe da ilha; havia, então, me beijado. Claro, tinha sido só de brincadeira.
      Ele estava ainda dançando e ia passar outra vez perto do meu canto, e, aí, tenho certeza, olhou expressamente para mim, embora não desse muito para saber por causa da máscara que usava. Veio para junto da samambaia, como se quisesse dar uma olhada de perto na figura agachada ali atrás. Então, se foi, e pensei que tudo não havia passado de minha imaginação. Tinha certeza de ser ele, porque tinha visto quando ele chegou com sua família e, além disso, onde quer que estivesse, eu o reconheceria, mas o mesmo não se daria com ele; e principalmente eu, naquele vestido, com a rede no cabelo e a máscara me transformando numa pessoa inteiramente diferente do que sou.
      A valsa terminou, e ia haver um intervalo, quando triplicavam os perigos de desmascaramento para mim. Suponha que fosse vista escondida naquele canto? Que estaria fazendo uma moça num baile, sem a vigilância de sua mamãe ou de uma dama de companhia qualquer?
      A música começou novamente. Estava na hora de voltar à galeria e ficar sentada lá, observando o baile, como me recomendaram fazer. Gwennan iria desprezar-me por fugir, me advertiu. Mas não era bem isso que me retinha. Eu me sentia diferente naquele vestido. Não conseguia esquecer-me do que senti naquele quartinho, naquele estranho vão circular lá no contraforte, onde eu havia dançado.
      - Está sozinha?
      Meu coração começou a dar pulos.
      - Agora não estou mais - balbuciei.
      Bevil deu um sorriso. Eu sonhava. Não podia ser ele, Bevil.
      - Vi você e voltei, sem esperar muito encontrá-la ainda aqui - disse ele. - Você deve ter acabado de chegar, ou então eu já teria notado a sua presença.
      - No meio de tanta gente?
      - Claro, você seria imediatamente percebida.
      Era o modo como falava às mulheres. Isso era um flerte, e, com Bevil, estava achando imensamente agradável. A orquestra começou a tocar novamente.
      - Um cotílhão - disse, fazendo uma careta. - Vamos ficar aqui e conversar, a não ser que prefira dançar.
      - Não, não prefiro.
      Sentou-se ao meu lado e se pôs a me olhar fixamente.
      - Já não nos encontramos antes?
      - Você acha? - respondi, tentando disfarçar a voz.
      - Tenho certeza de que sim - disse, botando sua mão sobre a minha.
      Retirei a mão, deixando-a cair entre as dobras do meu vestido.
      - Tinha curiosidade de saber onde.
      - Podemos facilmente descobrir.
      - Creio que temos de guardar segredo de nossas identidades. Não é mais engraçado desse jeito?
      - Pelo que sei, a curiosidade no fim sempre é satisfeita. Mas acontece que sou muito impaciente.
      Ele inclinou-se um pouco para o meu lado e tocou na minha máscara.
      Afastei-me indignada.
      - Desculpe - disse ele. - É que tenho tanta certeza de conhecê-la, que é incrível que não possa saber quem é você.
      - Nesse caso, sou uma mulher misteriosa.
      - Mas você me conhece, disso estou certo.
      - É verdade... Conheço mesmo.
      Ele se encostou na cadeira.
      - Desistiu? - perguntei.
      - Não. Vejo que não deve conhecer-me muito bem, senão ia saber que nunca desisto. Mas, de qualquer maneira, tenho a noite toda pela frente. Primeiro, quero lhe dizer que é um encanto e que seu vestido é sensacional.
      - Gosta?
      Sorri, pensando nos sachês de lavanda que Fanny fabricou para botar entre as dobras dele e nas sacudidelas que se teve de lhe dar, e mais, no sol que teve de apanhar para perder o cheiro de mofo.
      - Já vi esse vestido antes.
      - Onde? - perguntei.
      - Estou tentando me lembrar.
      Eu me sentia no sétimo céu e me surpreendia ouvindo o som do meu riso com essa conversa - ligeira, superficial, frívola. E, apesar de tudo, parecia haver algo de profundo nela. Eu havia despertado o interesse dele: viu-me no meu canto e, logo que pôde, largou a moça com quem dançava e veio a mim. Quem poderia imaginar isso possível?
      E ali estava, sentada, alegre como qualquer um no baile, respondendo a seus ditos e achando que, também eu, tinha o dom das respostas rápidas e finas e que bem podiam ser interpretadas como sendo espirituosas. Tinha certeza de que ele não estava nem um pouco caceteado; antes surpreso, eu diria. Ele não podia adivinhar quem eu era. Talvez, se soubesse que fosse estar no baile, pudesse presumir alguma coisa. Mas como sempre pensou em mim como criança, e agora ainda pensava, não podia ocorrer a seu pensamento que estivesse ali. Afinal, quando viu Gwennan pela última vez, ela estava vestida simplesmente, e tanto quanto ele sabia, ficaríamos as duas apreciando o baile da galeria; do nosso achado dos vestidos, não tinha qualquer idéia. Não, nunca passaria pela cabeça dele que a moça fora quem, naquele momento, estava se divertindo e tendo um interlúdio dos mais intrigantes fosse aquela meninota, a Hatriet.
      O cotilhão terminou, e estavam tocando agora uma valsa.
      - Vamos dançar? - ele propôs.
      Eu mesma estava surpresa comigo. Se tudo ali não me enebriasse - a noite, a presença dele, minha nova personalidade - e apesar de já ter dançado com Gwennan, teria respondido que não dançava. Mas estava fascinada. Fui me deixando levar através do salão; devo até ter mancado, mas nem tive consciência disso; talvez o volume de minha saia escondesse meu defeito; pelo menos foi o que pensei, mais tarde. E lá estava eu a dançar com Bevil. Não vou dizer que dancei lindamente, ou mesmo bem. Mas Bevil, pelo seu lado, não era também nenhum dançarino nato. O fato é que dancei, e o salão estava tão cheio que uma pisada a mais não faria a menor diferença; e depois, me sentia tão feliz, que a vida parecia maravilhosa, e tudo tinha, para mim, se transformado.
      Antes da dança terminar, Bevil sugeriu que passássemos à outra sala, para cearmos. Lá, sentada a uma mesa, esperei, enquanto ele foi buscar alguma coisa para comer. Voltou com uma bandeja e taças. Foi a primeira vez que bebi champanha e, mais do que nunca, agora, me sentia enebriada, mas de felicidade. De relance, enxerguei Gwennan e Harry, tão absorvidos um com o outro que não creio que tenham me visto.
      Quando acabamos de cear, fomos ao jardim. Bevil pegou na minha mão e seguimos pelo gramado iluminado pelo luar; sentamos debaixo de uma das árvores e ficamos observando as outras pessoas que também tinham escapulido para lá. Das janelas abertas, chegavam acordes musicais.
      - Já sei - gritou, de repente, Bevil. - O vestido! Já sei onde vi esse vestido!
      - Ah, por favor, diga.
      - Em Menfreya.
      - Oh...
      Fiquei pálida, lembrando que Gwennan falara ter sido ela e ele quem haviam encontrado o baú, há alguns anos. Mas era incrível que Bevil pudesse recordar-se de um vestido.
      - Ei - gritou. - Mas tudo é igualzinho! A rede de cabelo... o vestido. Podia até ser você, mas, logicamente, ela está sem máscara.
      - Quem?
      - É um retrato que está em Menfreya. Vou mostrá-lo a você... o mais depressa possível. Quando pode ser? Você tem de vir a Menfreya e me deixar mostrá-lo para você. Aceita?
      - Ah, claro!
      - Bem. Estou tranqüilo agora. Tinha medo de que desaparecesse, depois dessa noite, e nunca mais tornasse a vê-la. A promessa está feita, não é?
      - É, está prometido.
      - Quando?
      - Amanhã - respondi. - Amanhã vou visitá-lo, e você me mostrará o retrato.
      - Sei que você é o tipo de pessoa que mantém a palavra - disse, apertando minha mão.
      - Agora, me fale do retrato.
      - É de uma antepassada minha. De uma Lady Menfrey de outros tempos, de uma tetra, tetra, tetravó. É, talvez haja alguns tetras a mais. E o seu vestido é uma réplica exata do que ela está usando. É como se você tivesse pulado fora da tela.
      - Adoraria vê-lo.
      - Amanhã. Está prometido.
      Minha vontade era segurar o tempo e não deixar que passasse. As pessoas, nesse momento, começavam a fazer o caminho de volta ao salão, e ia começar a dança, quando todos tiram suas máscaras, antes da meia-noite. Antes disso, teria de dar o fora. Não queria ficar do lado de Bevil, tirar a máscara e ver estampada no seu rosto a expressão de surpresa, com ele dizendo: "Harriet?" - num tom de espanto. Sobretudo, o que aconteceria, se meu pai me visse?
      Para essa noite, não queria nada mais do que simplesmente gozá-la como algo sedutor e misterioso, encoberto por uma máscara.
      Seguíamos a multidão que voltava ao salão, e Lady Menfrey ficou perto de nós. Veio falar qualquer coisa com Bevil, e, enquanto ele se voltava em sua direção, aproveitei a oportunidade e me meti por um corredor que ia dar na escada principal, e subi correndo para a galeria. Afinal, conhecia o lugar melhor que ninguém. Faltavam 20 minutos para meia-noite.
      Já na galeria, vi quando ele entrou no salão; olhava ansioso à sua volta, com jeito de quem estava procurando. E era por mim que procurava!
      Foi só aos cinco minutos para meia-noite que Gwennan entrou correndo. Cheguei a pensar que fosse ser surpreendida lá embaixo; mas isso era bem dela: sair só no último instante.
      Estava corada e radiante.
      - Que maravilha! Que baile fantástico! É o melhor baile que já vi.
      Só pude rir e lembrá-la de que, tendo sido o único, não podia haver outro melhor.
      Aí, rimos. Naquela noite estava diferente. Também eu tinha tido minha aventura, e não foi menos maravilhosa do que a de Gwennan.
      Essa noite dormi muito pouco. Fiquei deitada, acordada, revendo tudo o que tinha acontecido no baile. Pelo meio da madrugada, me levantei, acendi a vela e tirei o vestido do guarda-roupa; encostei-o ao meu corpo e me olhei no espelho. Aquele vestido me acrescentava alguma coisa. Mesmo na semi-escuridão, eu parecia diferente, como se tivesse uma auréola mágica, até mesmo, diria, um ar sedutor. Sim, tinha certeza disso, era com ele uma pessoa para quem se olhava duas vezes. Eu sabia que não era bonita, e à luz de vela não podia enganar-me tanto assim, mas o meu rosto naquele momento tinha um certo quê medieval e um tipo de charme que precisava, para brotar, da cor muda e do estilo daquele vestido.
      Já era quase de manhãzinha e ainda não pregara o olho, e só consegui fazê-lo depois, por mais ou menos uma hora. Na manhã seguinte, a casa vivia o caos costumeiro que sempre acompanhava uma festa, e ao qual já me habituara; todo mundo estava cansado e irritado, menos eu, que caminhava nas nuvens.
      À tarde, fui até Menfreya, onde Bevil me esperava. Apenas, naturalmente, ele não sabia que esperava por mim. Que choque vai levar, pensei; em vez da misteriosa mulher, vai dar com uma jovem, pouco mais que uma colegial, vestida de merinó cinza, com uma capa severa e os cabelos despenteados, sem estarem mais protegidos por uma rede cintilante. Se ao menos estivesse com o vestido, como ia me sentir diferente!
      A casa estava em silêncio, mas Bevil estava lá; fui, sem ser anunciada, diretamente à biblioteca.
      - Ora veja, é Harriet - disse ele.
      Suas maneiras eram perfeitas. Se ficou desapontado, não deu qualquer demonstração.
      - Vejo que esperava alguém - disse eu. - Bem, desculpe estar aqui apenas Harriet.
      - Mas acontece que tenho o maior prazer.
      Apareceu um tipo de ruga no seu rosto, que era um sorriso conhecido e que eu adorava.
      - Mas você devia estar esperando uma mulher fascinante e curioso em saber como seria ela usando roupas modernas. E devia estar fazendo o seu retrato com roupa de montaria de veludo cor de amora e um chapéu negro; o rosto estaria encoberto por um véu delicado que esconderia uma pele deslumbrante.
      - Quem é esse fantasma delicioso e como pode você saber tanto daquilo que estou esperando?
      - Porque sei que esteve com ela ontem no baile. Prepare-se, agora, Bevil, para ter um choque. Seu par de ontem à noite não é nada do que está pensando. Bem, vou logo confessar. Ontem à noite, eu fui ao baile fantasiada... estava irreconhecível.
      - Então, você diz que!... Ora, não acha que eu ia reconhecê-la em qualquer lugar?
      - Então você sabia!
      Ele botou suas mãos nos meus ombros e riu para mim. Aí, abaixou a cabeça e me deu um beijo, tal como tinha feito no barco.
      - E você estava sabendo todo o tempo!
      - Ora, minha querida Harriet, por que iria você me reconhecer e eu não a você? Meus poderes de percepção são tão desenvolvidos quanto os seus.
      - Só que eu vi quando você chegou e eu... Bom, eu saberia reconhecê-lo em qualquer lugar.
      - E eu também. Agora diga, qual era a sua, ontem à noite? Gwennan também está nisso, hein? É, o plano deve ter sido das duas. Onde encontraram os vestidos?
      - Aqui em Menfreya.
      - É, já imaginava.
      - Promete não dizer nada? Gwennan ficaria furiosa.
      - E eu naturalmente morro de medo da fúria de Gwennan.
      - Bem, veja se dá para entender: a gente queria ir ao baile, e aí os vestidos foram achados naquele baú, então...
      - Duas cinderelas vão ao baile e não se esquecem de desaparecer à meia-noite; lá, deixam dois desolados príncipes encantados, que se puseram a imaginar o que teria acontecido a elas. Bem, Harriet, devo agradecer-lhe por uma noite encantadora. Comigo, seu segredo estará a salvo. Mas prometi mostrar-lhe uma coisa, se viesse esta tarde aqui, não é? Então, é para já. Vamos indo.
      Passamos pelo grande hall e subimos a escada que dava na ala protegida pelo contraforte onde Gwennan e eu achamos os vestidos.
      - Não está com medo de fantasmas, hein, Harriet? - Perguntou, olhando para trás, por cima dos ombros. - Esta ala não é muito usada. Falam que é mal-assombrada. Aliás, casas desse tipo têm sempre de ter fantasmas. Já sabia disso, não é? Bem, vamos lá. Se está com medo, me dê a mão.
      - Não, não estou.
      - Sempre achei que você fosse uma pessoa em quem seria difícil botar medo.
      Nisso fez uma exclamação de nojo.
      - Eh, está tudo mofado por aqui. Sempre quisemos abrir esta parede, mas por uma razão ou outra nunca chegamos a nos convencer disso. E nem os criados gostariam da idéia. Não vêm aqui nem mesmo durante o dia.
      - É aqui que Gwennan e eu encontramos o baú.
      - Ah, é? Então você já esteve aqui antes. E ela contou para você a história dos fantasmas? Uma mulher com o filho nos braços, caminhando por essas passagens borolentas... e um homem que também passeia por aqui; só que os dois não andam juntos, porque um está procurando pelo outro.
      Senti um arrepio, que ele percebeu.
      - Sei que estou botando medo em você, mas não ligue para o que eu disse, Harriet. São bobagens, não passam de antigas lendas.
      - É o frio. Não estou com medo - falei.
      Rodeou-me com o braço e me aproximou, por um momento, para perto dele. Não significava nada, simplesmente o gesto que teria para consolar uma criança. Estava diferente do homem que encontrei a noite passada, e passei a suspeitar que ele não havia me reconhecido coisa nenhuma, estava diferente porque tinha deixado de ser a mulher mascarada e glamourosa, tornando-me outra vez a Harriet comum e familiar.
      - Gwennan me contou uma história - falei de modo apressado, para esconder minha perturbação. - Sobre uma governanta que foi mantida num quarto da casa, desconhecido por todo mundo, a não ser por um Sir Menfrey qualquer.
      - Sir Bevil, por favor. Um dos muitos Bevils da família.
      - E ela morreu ao ter a criança, e só se soube muito depois que já estava morta.
      - É, é isso aí - retrucou Bevil.
      Ele abriu a porta, que soltou aquele mesmo Iamúrio de protesto que eu já havia notado anteriormente.
      - Esta parte da casa está precisando urgentemente ser arrumada - comentou. - Nós, os Menfrey, não passamos de um bando de preguiçosos. Não somos enérgicos como os Delvaney; deixamos sempre o barco correr. Há quantos anos calcula que estes aposentos não são habitados?
      Dei um pulo para trás, porque uma coisa tinha me tocado no rosto. Mas era só um emaranhado de teias de aranha, pegajoso e frio. Naquele instante, senti como se o lugar inteiro me avisasse: cuidado, afaste-se. Mas Bevil não sentia nada disso. Nele, não existiam fantasias. Um quarto desabitado era apenas um quarto vazio. Coisas como fantasmas não existiam, o que havia eram lendas.
      - Aqui está ela - disse Bevil. Era o quadro: uma mulher num traje que sem dúvida alguma era o mesmo que tinha usado na noite passada. Esplendidamente pintado! As pregas de veludo eram tão reais que achei que, se encostasse a mão, iria sentir a mesma maciez do tecido real. Seus cabelos pretos estavam presos atrás, por uma rede trançada com fios dourados e enfeitada com pedrinhas de topázio.
      - É ele mesmo - disse eu. - Então usei o vestido dela?
      - Parece que sim.
      Cheguei para mais perto do quadro. A expressão do rosto dela era como se dissimulasse sua tristeza.
      - Não parece feliz - eu falei.
      - Pudera, foi casada com esse Bevil que se envolveu com a governanta.
      - Hã, estou entendendo.
      Ele veio ficar atrás de mim, as mãos sobre os meus ombros.
      - O que é que você está vendo, Harriet?
      - Bem, ela parece infeliz, mas o vestido é maravilhoso. Que grande artista foi esse que pintou o quadro.
      - Estou vendo que ficou louca com o vestido. Onde está ele agora?
      - No meu guarda-roupa, em Chough Towers.
      - Não gostaria de se despedir dele, hein, Harriet?
      - Vou embrulhá-lo e devolvê-lo a Gwennan.
      - Não, você vai ficar com ele. Qualquer dia pode precisar se disfarçar novamente.
      - Ficar com ele?
      - É. Um presente meu.
      - Oh, Bevil!
      - Bem, agora podemos ir embora. Está fazendo frio aqui. Vamos para outras regiões mais habitadas.
      A noite do baile transformou Gwennan e eu. Ela estava mais do que nunca irrequieta e insatisfeita com a vida, num dos seus piores humores, quando voltamos a montar juntas.
      - A vida - dizia-me, enquanto íamos pela mata, abaixando nossas cabeças para passar sob as árvores, pesadas de folhagem nessa época do ano - não anda nada boa para nós.
      Sempre ansiosa por notícias dos Menfrey, e principalmente agora, perguntei por quê.
      - Dinheiro. Sempre dinheiro. É até bom que papai, no momento, não esteja mexendo com política, porque ser representante é um negócio que custa caro. Ando tão infeliz por não ter dinheiro que estou quase decidindo-me a tomar uma certa providência.
      - Qual?
      - Casar com Harry, claro!
      - E você acha que ele se casaria, Gwennan?
      - Se acho? Está maluca! Lógico que se casaria! Ele está loucamente apaixonado por mim. Esta é uma das razões por que ter 16 anos é uma coisa detestável. Terei de esperar pelo menos um ano para casar.
      Tínhamos ido dar numa clareira, onde ela deu uma chicotada no seu cavalo, o Sugar Loaf, e disparou galopando. Toquei no meu e fiquei ao lado dela. Estava rindo. Achei que algum plano diabólico estava passando por sua cabeça, essa manhã.
      - Não quero voltar mais para aquela nossa escola ridícula - falava, olhando por cima dos ombros.
      - Bem, ainda não estamos lá. Temos mais uma outra semana, ou quase isso.
      - O que quero dizer... é nunca mais. Academia de moças! Ridículo! Se há alguma coisa que detesto mais do que ter 16 anos, é ser moça.
      - Moça em idade, isso é inquestionável. Já no outro sentido, não tenho tanta certeza.
      - Harriet, não fique aí tentando falar como um... um político horroroso.
      - Falava assim? Não tinha percebido.
      - Dizem que quando se quer muito que uma coisa aconteça, ou então que ela não aconteça, basta que se concentre, que o seu desejo se realiza.
      - Como não voltar à escola? Como levar um dia, em vez de dois anos, para pular dos 16 aos 18 anos?
      - Já está você outra vez desenvolvendo essa sua natureza agressiva e azeda. Se não tomar cuidado, vai virar uma daquelas mulherezinhas sabichonas de língua de víbora.
      - E por que não iria?
      - Porque, nelas, a falta de atrativos para os homens é uma fatalidade.
      - Não tenho que desenvolver nenhuma nova tendência para ser assim. Já sou desse jeito.
      - Pare com isso, Harriet. Você mesma é culpada.
      - De quê?
      - Sabe, mudando de assunto, não tive tempo esta manhã para resolver seus problemas. Os meus já são muitos. Estou decidida, não volto à escola no próximo período.
      Fiquei calada, imaginando como seria a escola sem ela. Mas naturalmente que ela voltaria.
      Íamos a toda, galopando pela charneca, e Gwennan estava, sem dúvida, com um jeito desafiador.
      - É assim - gritou. - É assim que me sinto livre. É isso o que quero, Harriet, liberdade. Livre para fazer o que quiser. Não quando crescer, mas agora! Sou adulta, e lhe digo isso: sou tão adulta, agora, como serei um dia.
      Eu também galopava, gritando para que tivesse cuidado: havia umas rochas bastante perigosas pela charneca, e, se não se importava consigo mesma, que pelo menos tivesse cuidado com Sugar Loaf.
      - Nós dois sabemos aonde vamos - respondeu. Dei graças a Deus quando deixamos a charneca para trás. Gwennan foi a pessoa mais atirada que vi em toda minha vida.
      Entramos num vilarejo, que nunca tinha visitado antes. Era um encanto, com uma igrejinha de torre cinzenta, rodeada pelo cemitério, e os chalés, lá, eram todos borde-jados por plantas.
      - É Grendengarth - disse Gwennan. - Estamos a oito quilômetros de casa.
      Foi perto dessa cidadezinha que aconteceu. Numa clareira, tínhamos deixado a estrada e logo à nossa frente havia um barranco que não seria difícil ultrapassar; mas como disse, os modos de Gwennan naquela manhã eram dos mais imprudentes. Não sei direito o que aconteceu - nessas ocasiões nunca se sabe. Ela estava pouco mais a minha frente, quando saltou o barranco. Ouvi seu grito, e ela sendo projetada por cima da cabeça do cavalo. Senti o tempo parando. Era como se eu tivesse ficado suspensa acima do barranco durante minutos, até chegar do outro lado dele. Vi seu cavalo correndo, desorientado, e só aí minha atenção se dirigiu para Gwennan, que estava deitada na relva, imóvel.
      - Gwennan! - gritei idiotamente. - Gwennan, o que aconteceu?
      Saltei de meu cavalo e me ajoelhei ao seu lado. Branca e sem nenhum movimento, ainda respirava. Fiquei ali alguns segundos, então montei, voltando em busca de socorro no vilarejo.
      Tive sorte. Ao pegar a estrada, um menino vinha passando montado num pônei, e, aí, gaguejando, contei que tinha havido um acidente.
      -- Vou já buscar o Dr. Trelarken - disse o garoto.
      Voltei para onde se achava Gwennan e permaneci ajoelhada a seu lado por um tempo que me pareceu horas; morria de medo de que estivesse morta. Aí, lembrei das palavras que pouco antes dissera sobre sua resolução de não voltar à escola. Será, pensei, que algum espírito mau, encarregado de registros, escreveu o que ela disse, e esse era, então, o castigo?
      - Se você morrer, Gwennan - sussurrei - não voltará à escola, e o seu desejo será realizado.
      O pensamento me arrepiou. Vi, então, que sua perna esquerda estava numa posição estranha, e percebi o que devia ter acontecido.
      Nisso, surgiu Dr. Trelarken em cena, acompanhado de dois homens carregando uma padiola. Ele ajeitou a perna de Gwennan, antes de removê-la para sua casa em Grendengarth. Depois, fomos andando juntos, enquanto pelo caminho ia me fazendo perguntas.
      Sabia quem nós éramos, pois no distrito todo mundo conhecia os Menfrey e Sir Edward Delvaney. Perto de casa, apontou em sua direção: era uma daquelas pintadas de branco e com lindo jardim que já havia notado antes, quando estávamos passando pela cidade. Meu cavalo foi trazido por um criado, e, ao entrarmos na casa, o doutor gritou:
      - Jess! Jessie! Onde está você?
      - Já vou, papai - uma voz respondeu, aparecendo logo em seguida a dona dela.
      Foi a primeira vez que vi Jessica Trelarken, que sempre julguei ser uma das mulheres mais lindas que já conheci.
      Era alta e magra, cabelos escuros, quase pretos, olhos admiravelmente azuis, que naquele momento pareciam num tom mais forte devido ao vestido, que também era azul. Devia estar pelos seus 19 anos!
      A padiola foi levada para um quarto no primeiro andar, e o médico subiu para atender Gwennan; Jess foi ajudá-lo, enquanto fiquei no andar térreo, onde me mandaram esperar. Uma criada me fez entrar numa sala clara, bem-arejada, mobiliada de maneira agradável e convencional, não fosse uma pintura sobre a lareira de uma mulher bonita, parecida com Jess, mas sem a mesma beleza que, em Jess, era logo notada. O ar estava perfumado por flores arranjadas numa enorme jarra de porcelana, sobre uma mesa bem lustrada e polida, perto da janela. Lavanda, budiéia púrpura e rosas dobradas eram as flores.
      Sentei-me e fiquei ouvindo o tique-taque do relógio de pé; não tinha a menor idéia de quanto tempo ia ter de passar ali, até saber se era grave ou não o ferimento de Gwennan. Olhava distraída, o meu reflexo distorcido no bronze luzidio de uma lamparina a óleo, que estava ao lado da jarra de flores.
      Passaram mais ou menos uns 20 minutos, até o médico aparecer de novo. Jessica veio com ele.
      - Acho que a Srta. Delvaney gostaria de um refresco - disse ele.
      - Claro que gostaria, - falou Jessica, dando em minha direção um sorriso muito sereno que ainda ia conhecer muito bem, no futuro.
      - E Gwennan? - perguntei.
      - Está com a perna quebrada. Não quero removê-la por enquanto. Nada demais. Imagino que deva ter saltado aquele barranco correndo muito. Já vi isso acontecer antes, mais de uma vez, naquele mesmo lugar.
      - Acho que tenho de ir já para Menfreya - falei.
      - O cavalo vai chegar lá sozinho, e vão ficar assustados.
      - Já mandamos uma pessoa para explicar o que aconteceu - disse Jessica. - Não me admiro se alguém chegar logo aqui.
      - E quanto a você, senhorita, deve ter levado um bom susto - disse o médico. - Jess, mande trazer vinho e uns biscoitos para acompanhar. Todos queremos.
      Jessica foi até a campainha; ela se locomovia com a graça de uma fera, e isso combinava, estranho que pareça, com sua suavidade.
      - Depois, então, pode conversar com a Srta. Menfrey - acrescentou o médico.
      E lá, deixei-me ficar sentada, naquela sala perfumada, bebendo vinho com os Trelarken e pensando o tempo todo: isso só pode ser um castigo do céu; ela decidira não mais voltar à escola e não ia voltar mesmo.
      Senti muito a falta de Gwennan, mas a vida ficou mais calma sem ela na escola. Mais do que nunca, passei a aplicar-me aos estudos, e os professores se mostravam satisfeitos comigo. Com as outras meninas, não consegui fazer amizade; nunca tive facilidade para isso, e também, como não era dada à prática de esportes, todo o meu tempo era passado estudando. E, com isso, os resultados logo começaram a aparecer.
      Mas, ao receber uma carta de Gwennan, percebi o quanto tinha saudade dela. A carta era exuberante. Agora, estava satisfeita com a vida, conseguindo fazer o que queria, aquilo que, por sinal, sempre fez.
      Minha pobre Harriet, e pensar que você ainda está nesse pavor dessa Academia de Moças, esse centro de distinção. O que você acha? Estou noiva de Harry. Naturalmente estão fazendo oposição. Muito menina, muito menina, ficam ganindo para mim. Imagine que minha família quer, as duas querem, e também Harry... Coisa de louco, não é? Assim, onde está o sentido de esperar?
      Só pude rir quando li isso e pensar: se você não quer esperar, Gwennan, então não haverá espera. Mas, continuei a ler:
      Chego mesmo a pensar em fugir. Isso seria engraçado: Harry escalando os muros de Menfreya - naturalmente a parte mais alta, aquela que você conhece, onde o rochedo e a muralha se encontram. Se escorregar, é certo o salto para a morte! Mas aí pensei: é melhor não. Uma jovem senhora, note bem, não uma senhorita, não deve se envolver com coisas incompatíveis com sua posição e precisa de algum tempo para refletir. Bem, então vieram a mim com esta sugestão: durante o noivado ir para uma escola, a fim de complementar a educação e, depois, então é que os sinos tocarão por um casamento, em Menfreystow. A coisa me atrai. Creio que serei uma das raras garotas que foram para um colégio já noiva. E assim é o que será. Vou à França, alguma parte no centro. Perto de Tours, onde se fala o melhor francês, é o que me disseram, já que tenho de voltar falando como uma nativa. Você entende, faz parte dos requisitos da educação de toda moça.
      Meus ossos estão perfeitamente ajeitados, é o que o Dr. Trelarken diz. Ele se sente satisfeito com meus progressos, e Bevil se sente satisfeito com Jessica, sua filha. É pena que ele tenha de escolher sempre as pessoas mais inadequadas para si. Dr. Trelarken não parece ser daqueles médicos inteligentes que selecionam com cuidado os pacientes. Dedicação e gratidão parecem ser a única forma de recompensa desse homem. Muito nobre, mas penso que o único dote que a pobre Jess trará ao marido é a sua beleza.
      Bem, temos agora também a guerra. Bevil está decidido a ir lutar, pela rainha e pela pátria, contra o malvado bôer. Mas você entende, quando for candidato ao Parlamento, a coisa vai ficar muito mais fácil para ele, se for um herói que voltou das guerras. Além do que, os Menfrey sempre cerram fileiras por uma boa causa. Ele já estava decidido a ir, mas, agora, acho que não está mais tão ansioso. É por causa de Jessica. Talvez se case com ela antes de seguir com Kitchener5. Nada como uma guerra para apressar casamentos.
      Harry não irá. Faz falta em casa, diz ele; é o que diz, também, o pai. Os negócios têm de continuar.
      Mas que carta longa. E dificilmente escrevo cartas. É porque meu coração sangra por você, minha pobre Harriet, que não está noiva para se casar, que não vai para a França completar sua educação, que não está em Menfreya, mas sentada à janela de seu estúdio, aposto, olhando para gramados bem cuidados e com livros à sua frente, sendo uma boa menina, agora que não é mais desviada pela travessa da Gwennan.
      Como sempre, ela havia conseguido me perturbar. A paz que estava gozando, não pude mais recuperar. Já via tudo. Menfreya, onde sempre estavam acontecendo coisas emocionantes. Bevil, indo a cavalo até à casa dos Trelarken, e Jessica saindo para ficar à porta de entrada. Usaria o vestido azul de gola de renda com que estava na primeira vez que a vi: linda naquela ocasião, e agora, então, apaixonada, devia estar fantasticamente bela.
      E Bevil também estava apaixonado por ela, e brevemente iria deixá-la e ia partir para a África do Sul. Sim, ele desejava casar com ela antes de partir.
      Lembrei-me da garota que veio com ele à ilha. Entre aquela e Jessica, deve ter existido outras. Muitas outras. Mas com Jessica seria diferente. Era jovem e inexperiente como eu, sentia que isso era verdade e fiquei deprimida.
      Chegou mais uma carta de Gwennan, antes de ela partir para a escola.
      O pessoal do Harry vai deixar de alugar Chough Towers. Ele sabe que nunca me sentiria feliz longe de Menfreya e, assim, pensa em Chough para nossa casa. Devo dizer que gostei da idéia. Já estou planejando os bailes que darei naquele magnífico salão. O contrato de seu pai já está terminado, assim, Chough não será por muito tempo mais sua residência na Cornualha, mas sim a minha. Claro que irei convidá-la para passar temporadas lá. Irei dar a você o quarto que é seu agora. Vai ser divertido, hein? Mas aposto que está pensando no que o seu pai vai fazer. Ele precisa ter um lugar perto de Lansella, não é? Estamos muito contentes com o pai rabugento que tem, Harriet. Sabe o que fez ele? Nunca vai adivinhar. Ficou com a casa da Ilha de Ninguém. Mais do que isso, comprou a ilha de papai. Isso foi uma das coincidências mais felizes que já nos aconteceu. Bem sabe o elefante-branco que é essa ilha. Sem nenhuma utilidade, a não ser para esconderijo de herdeiras fujonas e para rapazes dissolutos fazerem farras. Em que má companhia ando eu! Tinha de ser a primeira a lhe dar a notícia. A Ilha de Ninguém logo será sua. Pode imaginar as maravilhas que seu pai fará ali. Espero que faça da casa um palácio numa ilha. Papai está imensamente contente. Fica andando pela casa e esfregando as mãos de satisfação. Finalmente, conseguimos alguma coisa, pelo menos por uns tempos, para nos manter!
      Como vê, Harriet, nem tudo está igual. Estou de partida, no fim de semana, para minha escola. Gostaria que viesse. E provavelmente virá. Aqui vai outro segredo: seu pai andou falando sobre isso, e mamãe já lhe deu toda espécie de detalhes sobre o lugar. Bem, parece ser nosso destino não ficarmos separadas por muito tempo. Espero que logo esteja adquirindo um acento de francês impecável. Mas não fique noiva, ouviu? Quero essa exclusividade para mim, a de não ser só a primeira, mas a única moça comprometida a chegar naquela escola.
      G.
      P.S. Bevil já não está mais aqui. Virou soldado. Por enquanto, não vai partir para a África do Sul, e quando for, a guerra já terá terminado. Disso, você pode ter certeza. Pobre Jess, ela anda triste, os dois ainda não estão noivos. Papai e mamãe não escondem o alívio que sentem. Eles estão apavorados, se bem que agora, certamente, não seria nenhuma calamidade, uma vez que estou comprometida com Harry. Até breve, Harriet, nos veremos na escola.
      G.
      Mudanças pairavam no ar, mas quando cheguei em casa para as férias, deparei com a maior de todas até hoje.
      Foi no fim do período escolar da primavera e, para meu desapontamento, recebi carta de meu pai, dizendo que não fosse passar as férias em Chough Towers, como sempre fazia, mas, em vez disso, que fosse para Londres. Mandariam pegar-me em Paddington.
      Fiquei decepcionada, mesmo sabendo que Gwennan e Bevil não estariam na Cornualha, mas contava em ir para lá assim mesmo, para ouvir de A'Lee - fonte certa de informações - o que realmente estava acontecendo com Chough Towers, que meu pai iria desocupar em pouco tempo, e quais as melhorias que já tinham sido feitas na casa da ilha. Sobretudo, interessava saber mais coisas sobre Bevil e Jessica Trelarken; eu não acreditava que ela fosse se contentar em ser mais uma entre tantas das eventuais companheiras de aventuras de Bevil.
      Tampouco podia entender por que meu pai estava querendo minha presença em Londres. Se não gostava de me ver, teria naturalmente de querer que minhas férias fossem passadas onde ele não estivesse.
      Logo ao saltar do trem, vi Fanny, que foi quem veio me encontrar. Estava igual ao que era, com seu casaco muito simples de sarja e o vestido de algodão aparecendo por baixo, a sua boina preta amarrada por uma fita cinza debaixo do queixo, e que em nada a favorecia, a não ser acentuar a palidez de seu rosto e esconder o cabelo grisalho, que ficava roçando sua nuca de maneira inconveniente. A expressão de seu rosto era de ansiedade. Enquanto a observava, fiquei emocionada. Parecia tão insignificante! Mas foi ela quem tentou ser para mim a mãe que não conheci. O rosto dela relaxou-se ao me ver.
      - Minha nossa, como cresceu! - disse ela.
      - E você parece sempre a mesma, Fanny.
      - É claro, o meu tempo de crescer já passou. Mas isso é novidade... vir para Londres nestas férias. O que é que você acha?
      Ela me olhava de jeito apreensivo.
      - Aconteceu alguma coisa? - perguntei.
      Ela afirmou com a cabeça, com expressão sombria no rosto.
      - Ei, Fanny... o que é que foi?
      - Seu pai casou de novo. Nunca teria acreditado.
      - Mas, Fanny, com quem ele casou?
      - Espere e verá com os seus próprios olhos.
      - Ela está agora aqui?... Lá em casa?
      - Ah, está. Seu pai mal agüenta esperar. Está doido para apresentar sua madrasta a você. Acha que todo mundo tem de ficar maravilhado com ela, do mesmo jeito que ele está.
      - Ele... maravilhado.
      - Pois é o que estou dizendo.
      - Mas nunca ficou maravilhado com coisa alguma!
      - Desta vez ficou. Com essa cabecinha oca, isso posso garantir para você.
      - Fanny, nunca pensaria numa coisa dessas.
      - Foi o que imaginei, por isso estou avisando. Você deve ficar preparada, pelo meu modo de ver as coisas.
      Ela pegou minha mala, e fomos para a carruagem. Já acomodadas e trafegando pelas ruas, perguntei:
      - Fanny, quando foi?
      - Há três semanas.
      - Ele não comentou nada disso comigo.
      - E nunca foi costume dele, foi? Mandar relatórios para você daquilo que anda fazendo.
      - Mas, aconteceu... assim de repente?
      - Deve ter havido um pouquinho de namoro antes, pelo menos eu acho. Ele mudou muito, sabe? Uma das empregadas, um dia, ouviu-o cantando. Quando ela contou, a gente pensou que ela estava de pileque, mas era verdade. É, o amor é uma coisa bem estranha...
      - Deve ser mesmo, se aconteceu com ele.
      - Vai ver como ele está mudado - disse, tornando a me avisar e botando sua mão em cima da minha.
      - Só pode ser para melhor. Porque para pior não é possível, hein? - falei.
      E, realmente, ele estava mesmo mudado. Mas, quando encontrei com minha madrasta, fiquei tão espantada que a única coisa que pude perceber foi o disparate de tal casamento.
      Logo que entramos em casa, a Sra. Trant apareceu no hall e me disse que eu fosse imediatamente à biblioteca, onde meu pai e Lady Delvaney esperavam por mim.
      Por um momento, fiquei parada na soleira da porta daquela sala, tendo a sensação, ali, de que a casa estava realmente passando por mudanças. Nada seria o mesmo, daí para a frente. Chegou-se ao fim de uma época. Quando entrei, Lady Delvaney estava sentada numa poltrona perto da lareira. Era uma mulher jovem, petite, de cabelos louros e fofos, pele admiravelmente fresca, rosto redondo de bebê, olhos num tom de azul-pálido e tão grandes que davam ao rosto uma expressão assustada. E talvez estivesse mesmo - comigo. Vestida de vermelho e branco, a primeira impressão que me deu foi a de que era uma obra de confeitaria preparada pelo cozinheiro de meu pai para uma de suas festas. Na cabeça, usava uma fita vermelha, combinando com os enfeites do vestido, que eram vermelho e branco. O rosto, empoado discretamente, e sua cintura era finíssima, como nunca, antes, tinha visto outra. Jamais a palavra ampulheta seria tão bem aplicada.
      Mas, naquela sala, o mais surpreendente não era a mulher, era o meu pai. Seria impossível, para mim, acreditar que um dia ele fosse parecer como agora. Os seus olhos haviam se tornado mais azuis e brilhavam como nas ocasiões em que se mostrava espirituoso com seus amigos políticos.
      - Harriet - disse, levantando e vindo em minha direção.
      Segurou com uma das mãos a minha e colocou a outra sobre meu ombro. Era um gesto de afeição que jamais teve antes.
      - Quero que conheça sua... sua madrasta.
      A linda criaturinha cobriu o rosto com as mãos e murmurou:
      - Oh, mas falando assim, fica parecendo tão horrível!
      - Bobagem, meu amor - disse meu pai. - Harriet e você vão ser ótimas amigas.
      Ela se levantou e ergueu os enormes olhos azuis para mim. Era bem mais baixa do que eu.
      - Você acha?
      A criaturinha só podia estar fingindo, ou então estava mesmo com medo de mim.
      - É claro que podemos - respondi.
      Nunca achei tão fácil agradar meu pai, que agora sorria para mim com indulgência.
      - Eu me sinto tão contente - ela murmurou.
      - Hã! - fez meu pai. - Não lhe falei que não tinha por que ter medo? O que foi que eu disse?
      - É, Teddy, bem que você disse.
      Teddy! Isso era novo para mim. Teddy! Que despropósito! E o melhor de tudo é que ele parecia estar gostando. Como teria essa moça conseguido tamanho milagre?
      - Eu não tinha razão?
      - Teddy, querido, você tem sempre razão.
      Ela possuía covinhas, e meu pai ficava sorrindo em sua direção, como se ali estivesse uma das maravilhas do mundo. Sentia-me como que vivendo um dos meus sonhos. Pareciam tão contentes um com o outro que deixavam passar um pouco daquele contentamento para mim.
      - Você parece espantada... Harriet.
      Ela falava o meu nome com timidez.
      - É que eu não tinha nenhuma idéia... Para mim foi uma surpresa.
      - E você, nem para avisá-la, Teddy. Oh, que maldade a sua! E parece que sou mesmo madrasta, vejam só. Sempre se imaginam as madrastas como criaturas horríveis.
      - Mas tenho certeza de que, no seu caso, você será uma boa madrasta - falei.
      Meu pai parecia emocionado. Seria possível que não o conhecesse antes?
      - Obrigada... Harriet - ela falou, com a pequena pausa que fazia antes de pronunciar o meu nome, como se tivesse medo de dizê-lo.
      - Realmente, madrasta é demais - disse meu pai. - Não é nem seis anos mais velha do que Harriet.
      Ela fez um beicinho e disse:
      - Bem, vou tentar ao máximo ser uma boa madrasta.
      - De fato - disse eu - já sou muito velha para ter madrasta, talvez então é melhor sermos amigas.
      Ela apertou suas mãos como se estivesse em êxtase, e meu pai se mostrava encantado.
      - Vão ter muito tempo para se conhecer nestas férias - acrescentou ele.
      - Ah, isso será muito divertido - disse ela.
      Quando fui para meu quarto, fechei a porta e fiz uma inspeção, esperando encontrar mudanças também nele. Mas eram as mesmas quatro paredes, testemunhas da minha infância dolorosa; foi para aqui que vim, depois de ter ouvido as palavras venenosas de tia Clarissa, para planejar minha fuga nele, sem poder dormir, muitas vezes chorei por me julgar feia e rejeitada, e lá estava o quadro da mártir cristã que, por alguma razão, sempre me botou medo quando era criança. Retratava uma jovem com água à altura da cintura, atada a um pau, com os pulsos amarrados um no outro e as palmas das mãos unidas de modo que pudesse rezar, enquanto os olhos se voltavam para o céu. Esse quadro sempre provocou pesadelos em mim, até Fanny me explicar seu significado. Contou-me que a moça estava se sentindo feliz por morrer por sua fé, e tudo logo estaria terminado, quando as águas subindo iriam deixá-la inteiramente submersa. Lá estava a estante com os meus velhos livros, que fizeram a delícia de minha infância. E também lá, o cofre de onde extraí o dinheiro de minha passagem para a Cornualha. Era o mesmo quarto onde tive de passar a pão e água quando me comportava mal e onde batalhava para aprender as lições do dia ou decorava versos de Shakespeare como penitência.
      Era o mesmo quarto, mas a casa já não era a mesma. O ressentimento de meu pai, a infelicidade que pareceu carregar por anos haviam desaparecido, obra daquela mulher frívola, mais parecendo um confeito de bolo, e que era minha madrasta; ela fez com que ele se despisse de seus sentimentos, mudasse, tal como se muda de roupa.
      No espelho da penteadeira, me detive a examinar-me. Eu, também, estava mudada. Bastou uma pequenina demonstração de amabilidade de meu pai para fazer sumir a ruga de minha testa. Prometi a mim mesma que, daí para a frente, teria uma aparência mais agradável. Gwennan estava certa ao dizer que eu, com minha atitude, é que levava as pessoas a notarem minha falta de graça.
      Fiquei alvoroçada com o pensamento, pois o conhecimento de si mesmo é emocionante. Começava a acreditar que tinha poder para influenciar minha própria personalidade. Afinal, havia visto como a felicidade com sua Jenny foi capaz de transformar meu pai. Foi uma descoberta sensacional.
      À medida que os dias passavam, aumentava meu espanto. Meu pai não me deixava propriamente fazer parte do seu mundo encantado, mas, ao mesmo tempo, não desejava me isolar inteiramente. Pareceu-me que o fato de aceitar Jenny, e ela a mim lhe era necessário à sua perfeita felicidade. Suponho que a criança que havia sido - amarga, ressentida - lhe teria recusado o que agora me pedia. Mas eu também havia mudado, depois de ter usado o vestido topázio, quando Bevil, sem dúvida nenhuma, se sentiu atraído por mim. De certa maneira, me tornara mais doce. A nova Harriet não tinha mais um caráter vindicativo, queria, sobretudo, agradar.
      Assim, me tornei amiga de Jenny.
      As refeições, agora com William Lister, eu, papai e sua nova mulher, eram diferentes. A conversa fluía mais facilmente, não tendo William Lister e eu de nos preocuparmos em fazer comentários vazios, tolos. Jenny os fazia com perfeição; qualquer bobagem da parte dela era recebida com sorrisos do marido.
      Os dois iam freqüentemente ao teatro, coisa nova para o meu pai, que nunca teve tempo antes para isso; mas o teatro tinha sido a vida de Jenny, e era louca por ele. Passava o jantar tagarelando a respeito do espetáculo que iam ver, ou o que já haviam visto, e sobre a gente do mundo teatral - sua grande admiração na vida. Papai ficava ouvindo e aprendia rápido o que ela contava a respeito dos atores e atrizes, para poder participar melhor de sua inconseqüente conversa.
      Certo dia meu pai me disse:
      - Harriet, quero ter uma conversa com você. Venha até a biblioteca.
      Eu o segui. Sentou-se, fazendo sinal para que também me sentasse. Tinha no rosto a mesma expressão de frieza e aversão que tanto me magoava antes da chegada de Jenny. Com que então era só quando na companhia dela que se mostrava mais delicado comigo? A segurança que tinha adquirido e pensava ser uma dura carapaça não passava de frágil casquinha, que um contato mais descuidado fazia romper. Senti, insinuando-se no meu rosto, aquela expressão carrancuda que sabia existir, e me percebi feia, pois tinha certeza de que ele estava me comparando com a perfeição de sua pequena Jenny.
      - Andei pensando na sua educação - disse ele. Concordei com a cabeça, e ele me olhou exasperado.
      - Deus meu, mostre algum entusiasmo!
      - Eu... estou interessada - respondi.
      - Espero que sim. Acho que já é tempo de deixar sua atual escola. Certamente que, para debutar, vai precisar de alguém para prepará-la de modo apropriado. No fim, será sua tia Clarissa que irá fazer, sua apresentação, mas, por enquanto, não está nem um pouco preparada para isso. Quantos anos você tem agora?
      Então, nem se lembrava? Podia se lembrar de que Jenny gostava de bombons amarrados com fita vermelha, mas não a idade da filha! Talvez o esquecimento fosse fingido, pois sem dúvida devia se recordar do dia mais trágico de sua vida, antes de sua Jenny chegar e fazer um novo homem.
      - Dezesseis anos e meio.
      - É um pouco cedo. Acho que pode esperar até pelo menos fazer 17 anos, e também passar um ou dois anos no exterior. Não vejo por que não ir agora. Os relatórios que me chegam da escola não estão maus. Podiam ser melhores, claro, mas em todo caso são razoáveis. Parece que os pais de Gwennan Menfrey estão satisfeitos com o lugar para onde foi enviada. Ele pode do mesmo jeito ser bom para você. Assim sendo, você não vai voltar para Cheltenham.
      Fiquei excitada com a idéia. Logo estaria com Gwennan outra vez. Excetuando estar em Menfreya, essa era a melhor coisa que podia me acontecer.
      - A escola fica perto de Tours - continuou. (Como se eu não soubesse.) - Vamos ver o que ela pode fazer por você em... vejamos, seis meses. Caso o resultado seja satisfatório, poderá ficar lá por um ou talvez dois anos.
      - Tudo bem, papai.
      Fez um gesto com a cabeça me despedindo, e eu me encaminhei à porta, mais consciente do que nunca de minha deformidade.
      Era nessas ocasiões que dava para ver o quanto precisávamos de Jenny. Se fosse embora, meu antigo relacionamento com meu pai imediatamente voltaria. A constatação me deixou abalada, mas por outro lado a perspectiva de me juntar a Gwennan me deixou agitada.
      Naquela noite iam ao teatro. William Lister contou-me as muitas dificuldades em encontrar entradas, mas que teve de consegui-las de qualquer jeito, porque era muito grande a vontade de Lady Delvaney de ir. Às obrigações que tinha antes foi acrescida mais esta: a compra de entradas de teatros.
      O jantar foi servido meia hora antes, por causa da hora do teatro. Jenny parecia estar mais bonita do que nunca. Vestia uma gaze malva sobre cetim verde, que não há como negar, surtiu um belo efeito; penteou os cabelos para cima, e isso lhe deu mais do que nunca um ar de menina. Meu pai, achei que estava bebendo mais do que o usual; e Jenny afetava uma solicitude cheia de mimos.
      - Mas, Teddy, falo sério, se sua cabeça não melhorou, nós não vamos.
      - Não é nada, amorzinho, nada mesmo.
      Ela se voltou para mim e disse:
      - Sabe, Harriet, sua cabecinha doía tanto hoje à tarde. Fiz com que descansasse e pusesse um pouco de água-de-colônia na testa. É uma maravilha! Quando estou cansada, faço isso, e aí me sinto melhor. Se por acaso precisar, Harriet...
      - Não, obrigada. Não tenho dor de cabeça.
      - Ah, é claro. Você é muito criança. Mas, Teddy, você tem de tomar mais cuidado. Sua dor de cabeça não passando totalmente, não vai ser divertido para você.
      Meu pai deu um sorriso carinhoso e afirmou que ela curara sua dor de cabeça com seus encantos.
      Olhei para William, querendo saber o que estaria pensando de toda essa conversa de pombinhos, e vi então que estava tão embaraçado quanto eu.
      Pouco antes da meia-noite, cheguei a minha janela e vi meu pai de cartola e casaca preta, junto de minha cintilante madrasta, voltando do teatro. Ela tagarelava. Dava para escutar seu tom esganiçado de voz e sua excitação, enquanto subiam para o quarto deles. Fiquei ainda por algum tempo sentada na janela, a imaginar se teria sido assim com minha mãe, e se eles teriam ficado alegres com a notícia de que iam ser pais. Procurava me convencer de que ele se emocionou tanto na ocasião com a perspectiva quanto agora estava com o fato de ser marido de uma linda moça.
      Talvez sob a influência de Jenny se tornasse, aos poucos, mais bem-humorado, e um dia falasse sobre o assunto.
      Tirei a roupa, fui para a cama e logo adormeci, para ser despertada pelo barulho de alguém batendo na minha porta, que se escancarou mesmo antes que abrisse os olhos.
      Era minha madrasta, que, num negligé coberto por babados de cetim e de renda, com os cabelos em desalinho, caídos sobre os ombros, os olhos mais arregalados do que sempre e o medo estampado no rosto pálido, gritava coisas incoerentes para mim.
      - Harriet... Pelo amor de Deus... Venha. Seu pai... Teddy. .. aconteceu uma coisa. Oh, Harriet, venha depressa.
      Meu pai morreu nas primeiras horas da manhã seguinte. Nunca me senti tão vazia, e nunca tive tamanha sensação de irrealidade. Apenas pensava: agora, nunca mais poderei almejar a aprovação dele. Não, nunca, nunca mais.
      A fantástica noite terminou. O médico nos falou que meu pai teve um acesso de paralisia e que existia uma única possibilidade de recuperação. Porém, antes do amanhecer, essa possibilidade se foi. Jenny não fazia mais do que tremer e murmurar:
      - Não, não pode ser verdade. Não é verdade. Foi comigo que o médico veio falar, não com ela.
      - Se ele se recuperasse - disse - ficaria para sempre inválido. Não creio que fosse gostar de viver nessas condições.
      Ficamos todos muito gratos a William Lister, que, com seus modos calmos e eficientes, se encarregou de todas as providências na casa.
      O médico deu a Jenny e a mim alguns sedativos não muito fortes, pois em sua opinião tínhamos de dormir. Ela se colou a mim o tempo todo, e em determinado momento disse:
      - Posso ficar com você, Harriet? Não quero voltar para o nosso quarto.
      Nesse instante não pude deixar de sentir carinho por ela.
      - Claro - respondi.
      Assim, ela dormiu na minha cama até o dia seguinte.
      Acordei com a sensação de que havia tido um pesadelo. Nada seria igual novamente. Meu pai, que pouco vi na vida, tinha, apesar de tudo, sido o centro de minha existência. Se um fardo foi retirado de cima de mim, também algo que me era vital desapareceu. Impossível explicar meus sentimentos.
      Os de Jenny eram menos complicados. O que ela perdeu foi seu grande provedor, o príncipe encantado que a encontrou vestida de andrajos e a levou ao baile. Mas o sofrimento dela era sincero; ainda que à raiz dele pudesse estar sua apreensão quanto ao futuro, acredito que fosse afeiçoada a ele.
      Tia Clarissa chegou no tempo devido e imediatamente deu a entender não gostar nada de Jenny. E eu contava que Jenny não percebesse isso. Ela veio ao meu quarto e me lançou um olhar tão crítico que, mesmo naquela hora, não sei se não estaria pensando na sua dificuldade de me arranjar marido.
      - Que coisa horrível! - disse ela, fechando a porta. - Nunca aprovei esse casamento, e nunca também antes vi Edward fazer asneiras. Meu Deus, que tipo! Inaceitável. O que será que deu nele?
      - Amor - respondi.
      - Harriet, o que você acha que é? Esperta? Muito inconveniente numa hora dessas.
      - Enxergar o óbvio não é nem um pouco esperteza. Papai estava apaixona-díssimo. Por isso se casou, dando tudo aquilo que ela nunca teve antes.
      - Hã. E ela, claro, agarrou tudo com a maior das pressas.
      - A pressa dela em agarrar não se comparava com a dele de dar.
      - Que bobagem é essa agora? Estou profundamente abalada e muito triste, mas isso não vai me impedir de saber com certeza o que está realmente por trás desse mistério.
      - Mistério? Mas papai morreu de um ataque. O médico disse.
      - Bem, veremos isso pela autópsia, hein?
      - Autópsia?
      - Queridinha, sempre se faz autópsia em casos de mortes súbitas. E a de seu pai foi muito súbita.
      - Tia Clarissa, o que é que está insinuando?
      - Simplesmente que um homem já velho, muito rico, se casa com uma aventureira e, pouco depois, morre.
      - Mas o que é que ela ganha com isso?
      - Bem, vamos certamente saber disso quando o testamento for lido depois do enterro. Mas a autópsia, graças a Deus, vem antes.
      - Tenho certeza de que está enganada.
      - E você, Harriet, continua como sempre teimosa. Noto que seus modos estão piores do que nunca.
      Ela me deu as costas e estava indo embora, quando parou na porta.
      - Nem uma palavra sobre isso. Se ela está pensando que pode nos enganar, deixe que continue pensando, por enquanto.
      Foi então embora, me deixando sozinha e pensativa.
      Pobre Jenny, perdia o carinho e a proteção de meu pai.
      Horas depois, passando pela porta de serviço, não pude deixar de escutar certos comentários dos empregados.
      - É isso no que dá, um velho querendo parecer rapazinho.
      - Você não está achando que ela...
      - Bobagem! Mas não sei, não... Acho que ele deve ter deixado que ela ficasse numa situação muito boa. E, se ela estava querendo dar o fora nele para se mandar com algum sujeitinho jovem...
      Não quis ouvir mais. Havia tanto veneno, tudo era tão injusto. O que meu pai teve mesmo foi só um ataque porque estava, certamente, tentando acompanhar o ritmo de Jenny, muito mais nova; mas isso era culpa dele, não dela.
      A suspeita foi se espalhando pela casa, tal como nevoeiro de novembro.
      No dia seguinte, li no jornal:
      "Sir Edward Delvaney morre de ataque cardíaco. Dois meses depois de ter casado com uma corista, Srta. Jenny Jay, Sir Edward Delvaney sofreu um colapso em sua residência de Londres. Isso significa nova eleição para o Parlamento em Lansella, Distrito da Cornualha, de onde Sir Edward foi representante nos últimos 10 anos".
      Bevil, que ainda não tinha partido para a África do Sul, veio a Londres para os funerais, representando a família, disse ele. Quando a Sra. Trant me disse que ele estava pedindo para me ver, corri apressada à biblioteca. Ao me ver, seu rosto iluminou-se. Fiquei de pé à sua frente, e ele pôs as mãos sobre meus ombros, me olhando com expressão triste.
      - Oh, Harriet, coitadinha de você, tão de repente - ele comentou.
      Olhava meu rosto como que investigando; sabia, é claro, qual era a relação que existia entre meu pai e eu.
      - Está tudo... tão confuso - falei.
      - Mas é lógico! Quando soubemos, ficamos horrorizados, e todos lá em casa mandam lembranças a você. Querem que vá para Menfreya, se desejar, naturalmente.
      Eu esbocei um sorriso.
      - É bondade deles - respondi.
      - Gwennan, como sabe, está fora, lá naquele colégio dela, na França.
      - Foi outro dia mesmo que... ele estava dizendo que eu ia para lá, juntar-me a ela.
      - Essa é uma boa idéia. Cortar com tudo aqui e, depois, voltar para começar nova vida. É o melhor plano possível.
      A porta abriu, e Jenny entrou na sala. Ficou surpresa por não me ver sozinha.
      - Harriet... - ia começar a dizer, mas parou, olhando para Bevil.
      - Minha... madrasta - apresentei.
      Bevil deu uns passos à minha frente e segurou as mãos dela.
      - Sinto muito que nos tenhamos conhecido em circunstâncias tão tristes.
      Seus olhos brilhavam. Já tinha visto antes aquele olhar, e por isso fiquei assustada.
      O funeral foi quase que um acontecimento público. Meu pai, como político, foi bastante conhecido e recentemente ficou sendo notícia ao se casar çom uma moça, jovem o suficiente para ser sua filha e ainda por cima corista; e agora morria de repente, algumas semanas após o casamento.
      Sempre que sentir cheiro de lírios, vou me lembrar daquele dia. A casa tinha uma atmosfera de augúrio e por ela toda se espalhou o odor que saía do caixão de carvalho misturado com o perfume das flores. Todos os aposentos estavam escuros, em face de as persianas estarem abaixadas, e as pessoas caminhavam e sussurravam; ao falarem de meu pai, pronunciavam seu nome como se tivesse sido um santo.
      Recordo-me bem do cortejo lento e solene, do qual fazia parte, e da curiosidade nos rostos das pessoas que nos espiavam, olhando principalmente para Jenny. Dava para ouvir alguns comentários:
      - É aquela ali...
      - Tem gente que sabe o que é bom logo que vê. Imagina que era uma corista de última fila e hoje é grande dama... Agora é madame e tem dinheiro. E deve ser tudo livre, sem nenhum encargo.
      - É, tem gente de sorte nesta vida...
      Pobre Jenny! Parecia inteiramente alheia aos mexericos. Quisera também tivesse podido estar. Quanto a tia Clarissa, ficou de pé, tesa, empertigada; usava, creio, um chapéu preto, faiscando com contas e pingentes negros, que balançavam. Ela estava desapontada, pois a autópsia revelou que meu pai morreu tão somente de um ataque de coração.
      O calor que fazia na igreja era sufocante; fiquei feliz por Bevil ter se colocado entre Jenny e eu, como se fosse sua intenção nos proteger. E durante o tempo que permanecemos na beira da sepultura, o sol queimava; ali, fiquei lembrando de cenas minhas e meu pai, mas em vão procurei por uma em que eu fosse feliz. Foi só na presença de Jenny que demonstrou alguma amizade por mim; ao ouvir, porém, o barulho da terra caindo sobre o caixão, senti um grande peso no coração; afinal, nunca mais iria vê-lo outra vez. Vi lágrimas correndo no rosto de Jenny, segurei sua mão e ela apertou a minha com gratidão.
      Quando chegamos em casa, comemos alguma coisa que haviam preparado e tomamos vinho. O Sr. Greville, da firma Greville, Baker & Greville, chegou pouco depois para ler o testamento.
      A atmosfera era de tensão na biblioteca, onde seria lido. O Sr. Greville, de óculos na ponta do nariz, sentou-se à mesa, solene e, sem pressa, como que para provocar as pessoas, fazia com que esperassem o mais possível.
      Logo me cansei do jargão jurídico. Uma coisa me interessava mais do que tudo aquilo, e era o interesse de Bevil pela viúva e também o dela por ele, que eu não sabia muito bem se não estaria aumentando.
      Algumas coisas, entretanto, consegui pegar. Por exemplo, que houve legados para os empregados que se encontravam a serviço de meu pai quando ele morreu, que William Lister teve também um pequeno quinhão e que tia Clarissa foi igualmente lembrada. Não consegui entender muito bem o que ficou disposto para mim, mas achei que fiquei amparada razoavelmente e que a Jenny tocou a bolada, bastante considerável.
      Olhei para ela e me parecia que não entendia a coisa; passava o tempo dando e desfazendo nós num lenço, botando nele toda a sua atenção. Chorava discretamente.
      Pobre Jenny, me recuso a acreditar que fosse unia caçadora de dotes.
      Muitos planos foram feitos e desfeitos, mas ficou decidido que, por ser desejo de meu pai, eu iria para o colégio o mais rápido possível.
      No que me diz respeito, foi o melhor que podia acontecer. Deixei de pensar exclusivamente na morte dele e passei a me preocupar mais com o que o futuro me reservava.
      Bevil estava de partida para a África do Sul.
      Um dia saímos para uma volta a cavalo, e foram momentos de grande felicidade. Jenny não sabia montar, de modo que não nos acompanhou, o que me deixou muito contente, pois, quando Bevil aparecia em casa, ela sempre estava presente, ou então tia Clarissa, e nunca tivemos ocasião de ficar os dois a sós.
      Em dado momento, ele disse:
      - Você vai se sentir melhor quando estiver com Gwennan. Ela está doida para vê-la, Harriet. Mas agora me diga, tudo isso deve estar sendo horrível para você, hein? Imagino que sempre esperou que um dia ele fosse se aproximar de você como um pai, não é verdade?
      - Como é que sabe?
      - Sei muita coisa sobre você, Harriet - disse rindo. - Parece que ficou assustada. Tem medo de que eu saiba de seus segredos?
      - Não tenho segredos.
      - Esperava que, na sua idade, não tivesse mesmo. Sabe, provavelmente vou assumir o lugar de seu pai no Parlamento.
      - Fico contente. É o que você queria mesmo, não é?
      - Coisa estranha. Isso acontecer e...
      - E você consegue o que sempre quis.
      - Mas naturalmente tenho, primeiro, de ganhar a eleição.
      - Se ganhar, vai precisar de um secretário.
      - Quem seria?
      - William Lister, ele é ótimo.
      - É quem você recomendaria?
      - Qualquer um que foi capaz de satisfazer meu pai deve ser bom.
      - Vou me lembrar disso.
      Ele deu um sorriso para mim, e tocamos de leve os cavalos para apressar o trote.
     
     
    Capítulo 3
     
      A vida na escola era agradável, não existindo nenhuma das disciplinas de Cheltenham. O fato de ser amiga de Gwennan me deu logo certo prestígio, e fiz algumas amigas - naturalmente nenhuma tão chegada quanto ela mesma. Dividíamos um quarto, e isso foi ótimo, porque, tendo que falar francês o dia inteiro, nos pareceu que era um grande privilégio tagarelar em inglês no quarto à noite.
      Gwennan estava mais alta e tinha se tornado também mais voluptuosa; uma verdadeira beldade. Também eu estava alta, mas era magra; além disso, tinha meu maldito aleijão. Entretanto, as professoras, ao me verem, ficaram alegres, seguras de que seria mais fácil manobrar uma garota como eu do que cuidar das outras, cheias de vida e de charme.
      Pouco depois de Bevil ter chegado à África do Sul, foi ferido, não porém sem ter antes se distinguido por bravura; voltou a tempo de participar das eleições gerais daquele mês de setembro, quando se elegeu por maioria absoluta como representante de Lansella; como o seu partido conservou também a maioria, o futuro lhe sorria brilhante.
      Gwennan estava constantemente se vangloriando dele, e minha opinião, volta e meia, era pedida para dar crédito às suas afirmações. E prontamente era dada.
      De todas as alunas na escola, Gwennan era a mais vibrante, e nunca tive tanta certeza do charme dos Menfrey como agora. Antigamente, por ser eu uma criança vinda de uma família particularmente seca, podia ser que tivesse criado fantasias a esse respeito. Mas agora observava Gwennan junto de outras garotas oriundas de famílias parecidas com a dela; ela continuava sobressaindo, como uma chama no escuro.
      Eu fazia o papel de sombra nas aventuras dela, era requisitada sempre para ajudá-la nas situações difíceis. Na vizinhança, tinha os seus admiradores e, constantemente, fugia nas horas em que toda a escola dormia. O sal da vida são as aventuras noturnas - era o que dizia. Mas quem cuidava para que a porta de nossa varandinha estivesse aberta, pronta para recebê-la, era eu; sendo também quem ficava vigiando e dava o sinal de trânsito livre, para que escalasse sem perigo a trepadeira e saltasse para a varandinha, e quem fazia seu trabalho para que pudesse estar folgando num outro lugar qualquer. Eu adorava Gwennan, como adorava tudo que se relacionasse com Menfreya. Mas ela também gostava de mim, e eu sabia que, se um dia estivesse em dificuldade, podia contar com sua ajuda.
      No nosso quarto havia festas à meia-noite, dadas por ela. Isso, claro, era proibido, mas esse era um costume que ia sendo levado, e acho até que era do conhecimento da direção da escola, que fazia vista grossa para ele. Contanto que não houvesse gente de fora, as festinhas entre nós mesmas já eram consideradas como parte de nossas vidas ali - de nossa vida semi-secreta.
      As reuniões me divertiam. Gostava de ficar estirada na cama, observando Gwennan, enquanto falava sem parar de si mesma, de Menfreya, do noivado com Harry Leveret e da vida na Cornualha. Uma vez contou minha fuga e como fui parar na ilha, onde fiquei, até me descobrirem. O interesse então das meninas foi, por algum tempo, dirigido para mim, e Gwennan me pediu para dar minha própria versão do caso. Contei a história em francês, já que havia poucas garotas inglesas, e na minha maneira seca de ser, considerada cínica por elas. E foi então com o maior prazer que contei minha história, com elas a ouvir, cheias de interesse, algumas sentadas na cama e outras pelo chão.
      Foram dias felizes, e resolvi gozá-los enquanto durassem, sem pensar no futuro ou no passado. Outro tempo assim não haveria mais em minha vida.
      Às vezes, me inquietava, querendo saber o que estaria ocorrendo em Menfreya ou em Londres. Jenny escrevia, mas não sendo lá muito boa nisso, suas cartas eram muito sucintas. Continuava residindo na nossa casa, pois realmente não tinha idéia do que ia fazer e contava com que eu ficasse lá quando voltasse.
      Chegaram muitas cartas dela. Era uma pessoa tão pouco sutil que não sabia disfarçar seus sentimentos, e, desse modo, consegui detectar nas cartas o surgimento de uma nova tônica. Percebi que se refazia da perda sofrida, e isso me perturbava, achando que sua recuperação podia ter qualquer coisa relacionada com Bevil.
      Comentei isso com Gwennan. Ela estava espichada na cama, no seu modo preferido, isto é, de um ângulo onde pudesse ver-se refletida no espelho do guarda-roupa.
      - Bevil? - disse ela, levantando os olhos, mas continuando a se observar no espelho. - Dificilmente. Não acredito nisso. De sua parte, apenas um entusiasmo passageiro. Para ele, só Jess Trelarken.
      Virei um pouco a cabeça, para que ela não pudesse ver a expressão contraída de minha boca. Aliás, preocupação inútil, pois sua atenção estava toda voltada para o expressivo rosto de Gwennan Menfrey refletido no espelho.
      - Ora, Bevil já teve um sem-número de casos. E sempre irá tê-los. Ele é como papai. Mas há mulheres para quem sempre voltam e tornam a voltar. E no caso de Bevil, esta é Jess.
      - E quanto a ela? Vai, pacientemente, ficar sempie esperando por ele?
      - Você conhece Bevil, não é? Sabe que é possuidor do irresistível charme dos Menfrey.
      Não pude senão rir.
      - Mas não à presunção dos Menfrey, espero.
      - Presunção! Harriet querida, é presunção admitir a verdade? Por acaso você pode me ver como uma pessoa comum e insignificante? Por que negar isso?
      - É, não adianta negar. Você nunca iria convencer os outros do contrário. A sua arrogância é a coisa mais convincente em você.
      - Bah! Olha, torno a dizer o que já disse antes a você: se não quisesse tanto exibir sua falta de graça, talvez as pessoas nem notassem isso.
      - Pelo menos não me coloco na infeliz posição de ser noiva de um homem e andar divertindo-me com outros.
      - Querida Harriet, muito em breve estarei sossegada e não seria tempo disso ainda. Não acha que tenho o direito de fazer umas besteirinhas por aí?
      - Quem faz besteirinhas tem de arcar com as conseqüências delas.
      - Oh, muito bom senso de sua parte, mas também quanta banalidade. Pelo menos umas 3.000 vezes já ouvi isso no decorrer de minha vida, e você tem de admitir que velha ainda não sou.
      - Gwennan, você está apaixonada por Harry Leveret?
      - Não seja ridícula - disse, mudando de conversa.
      O ano que Gwennan passou no exterior terminou antes que o meu. Quando foi para casa, senti muito sua falta, mas três meses depois eu voltava.
      Minha madrasta alegrou-se quando me viu, é disse que estava se sentindo muito sozinha, vivendo naquela casa sem meu pai.
      - Talvez - disse pensativa - não seja muito boa dona para uma casa como esta. Muitas vezes acho que gostaria mais de viver numa casa no campo.
      - Por que então não larga isto aqui e procura uma casinha no campo?
      Ela me olhou, incrédula.
      - Você não se importa mesmo, Harriet?
      Sorri para ela. Era realmente uma mulher que sabia cativar.
      Dei uma percorrida na casa; agora que meu pai nunca mais estaria lá, parecia diferente. Detive-me diante do retrato dele na biblioteca. Foi pintado com meu pai posando, mas ali não estava o pai que conhecera. Os olhos chegavam a ser quase meigos. Nunca haviam olhado para mim desse jeito. O sorriso era alegre, e a expressão do rosto, viva. Um homem que a todos encantou, menos à filha.
      Ao subir a escada, abaixei minha cabeça e aspirei o cheiro de cera e terebintina na balaustrada, lembrando o que tinha ouvido naquela noite em que fugi. Um longo caminho foi percorrido por aquela garotinha que se julgava feia e rejeitada porque uma pessoa inadvertidamente confirmara seu próprio julgamento. Gwennan me dizia que eu estava sempre na defensiva, e tinha razão. Era só Bevil me dispensar um pouquinho de atenção para fazer brotar em mim uma outra personalidade, e bastava eu usar um vestido que pertenceu a uma Menfrey para me tornar uma mulher charmosa.
      Os Menfrey haviam me transformado: Gwennan, com sua franqueza rude, e Bevil, com sua admiração. Mas isso não impedia de estar constantemente a me perguntar se a ternura que Bevil tinha por mim era do mesmo tipo da que sentia por outras mulheres. Aos olhos das mulheres, passava por um homem muito atraente; não escondia sua admiração por elas e também o quanto lhe eram importantes; mas, ao mesmo tempo que amava a linda Jessica Trelarken, também era gentil com a insignificante Harriet Delvaney.
      Um vez pensou-se que eu me casaria com Bevil, mas isso agora ainda seria verdade? Pois como o dinheiro do meu pai foi deixado para Jenny, e, apesar de eu ter ficado bem garantida, já não era mais a rica herdeira que por certo tempo se achou que fosse.
      Recebi carta de Gwennan.
      Querida Harríet, a data do casamento já está marcada. Todos estão avisados que só terei você como dama de honra - uma delas pelo menos - mas você será a principal. Você deve vir imediatamente para cá, ou logo que puder. Não demore. Há muito o que fazer e muito para lhe contar. Mamãe queria me levar a Londres para tomar um "banho de loja", mas isso está fora de cogitação. Dinheiro, minha querida! Triste convenção esta da família da noiva ter de arcar com todas as despesas do casamento. Ainda não sou mulher de homem rico. Após a lua-de-mel (veja só, meu bem, primeiro Itália, depois Grécia), você será a primeira hóspede em Chough Towers. Já falei com Harry, e ele está pronto para fazer todas as minhas vontades. Pretendo que isso continue para o resto da vida. Venha logo que puder, pois há todo esse assunto de vestido de casamento para ser tratado. Vai ser feito em Plymouth, mas tenho certeza de que, juntas, podemos bolar algo de espetacular.
      Menfreystow está vivendo um torvelinho de emoções, e, pode acreditar, o assunto principal da conversa é meu casamento. Faltam ainda sete semanas, mas há muito o que fazer, e se não chegar logo não vamos conseguir nunca que seu lindo vestido para o casamento fique bem em você. Quem está mais entusiasmado é Bevil. Anda terrivelmente ocupado nestes dias, agora que é representante de Lansella. Por dentro, deve estar satisfeitíssimo, pois, ao me casar com meu querido milionário, ele não terá tanta obrigação de fazer um c.d.c. (casamento de conveniência). Conheço bem Bevil. Se Jess fosse rica como o meu Harry, haveria duplo casamento em Menfreya.
      Agora estou sendo indiscreta. Mas quando não fui? Queime esta logo após sua leitura. Só para evitar que possa cair em mãos de (a) Bevil, (b) Jess Trelarken, (c) qualquer um que não seja você. Venha depressa. Estou com saudade.
      Gwennan.
      Queria estar lá. E sentir no rosto a brisa do mar. Queria dormir em Menfreya e acordar de manhã, olhando em direção de nossa casa na Ilha de Ninguém. Nossa? Não, de Jenny, pois tudo parecia ser agora dela.
      Estava em minha janela, olhando a praça, quando vi a carruagem chegar, e Jenny saltar, com expressão contrariada. Subiu a escada vindo diretamente ao meu quarto.
      - Harriet - ela chamou. - Está aí, Harriet?
      - Entre - respondi, indo cumprimentá-la. Parecia desorientada, tal como uma criança de quem se tira inesperadamente um presente.
      - A casa de campo... - começou a dizer.
      - Sim, o que é que tem?
      Sabia que, nas últimas semanas, ela procurara desesperadamente por uma.
      - Eu não posso comprar.
      - E por quê?
      - Porque, afinal, o dinheiro não é meu.
      - Explique, por favor.
      - Você estava lá quando leram o testamento, não é? E acho que também não entendeu.
      - Creio que estava distraída. Pensava no meu pai, no passado, no casamento dele com você. Nessas coisas todas.
      - Também estava distraída. Lembra que ele ficava repetindo, repetindo e explicando? Eu dizia que estava entendendo, mas não estava. Aí ele dizia: e confiado à guarda da Srta. Delvaney. Bem, essa é você, meu bem. Sob sua guarda parece que significa que tenho direito à renda, ou não sei o que mais só enquanto viver, mas, depois de morrer, tudo será seu. Ninguém pode tocar em nada, a não ser nós duas. No momento, você tem sua renda, uma soma destinada à sua educação e uma outra reservada para o seu casamento. O resto é meu, mas só a renda, porque no capital não me permitem mexer. Por isso, não vou poder comprar a casa, já que o dinheiro tem todo de ficar para você. É como se fosse ficar pedindo dinheiro emprestado a você até eu morrer. Só pego a renda, e depois ele será todo seu e de ninguém mais.
      - Começo a perceber.
      Então, com efeito, lembrou-se de mim; havia se preocupado com o meu futuro mais do que tinha podido imaginar e, sem dúvida, também, deve ter-lhe ocorrido que a maluquinha da minha madrasta seria presa fácil de caça-dotes. Assim, qualquer um que não se desse ao trabalho de consultar os termos do testamento antes de se casar com ela, ia ter uma desagradável surpresa depois.
      Então eu continuava sendo uma rica herdeira ou poderia ainda ser, se Jenny morresse.
      Meu pai era o tipo do homem que sempre pensou em tudo.
      - Lamento, Jenny, você ter ficado sem a casa.
      Ela sorriu.
      - O que se pode fazer, não é? Também agora não me importo muito, com você em casa.
      Alguns dias antes daquele em que estava pretendendo partir para Menfreya, recebi uma carta de tia Clarissa, pedindo para que eu fosse à sua casa em St. John's Wood.
      Fanny devia me acompanhar, já que com tia Clarissa todas as convenções tinham de ser observadas; viajar sozinha, por exemplo, seria considerado indecoroso por ela. Quanto à minha madrasta, não ia comigo, pois não foi convidada, e me contou que tia Clarissa deixou bem claro, desde o casamento, que não tinha a menor intenção de visitá-la ou ser visitada por ela.
      Fanny ficaria tomando chá com a empregada, enquanto eu estivesse com minha tia e suas filhas.
      Chegando lá, fui conduzida à sala de visitas, onde já se encontravam tia Clarissa e minhas primas, Sylvia e Phyllis. Clarissa, a caçula, ainda estava no quarto de estudos. Phyllis regulava mais ou menos a idade comigo e Sylvia era dois anos mais velha.
      Ao entrar, tive plena consciência de que mancava e meu cabelo despencava.
      - Ah, Harriet, você chegou?
      Minha tia levantou o rosto para que lhe beijasse a bochecha. Nem se ergueu, e o cumprimento foi dos mais secos. Na verdade, não houve beijo, nada mais do que um ligeiro toque de epidermes.
      - Por favor, sente-se ali no sofá com Sylvia. Phyllis, querida, pode pedir o chá.
      Phyllis atirou para trás seus cabelos louros e encaracolados, dirigindo-se à campainha. Senti sobre mim três arrogantes, críticos e enfastiados pares de olhos, e nos de tia Clarissa podia-se ler: "Graças a Deus que minhas filhas não são como essa aí".
      - E como tem passado... naquela casa?
      - Bem, obrigada.
      - Espero que ela saiba por que não apareço lá.
      - Ela nunca comentou que sente sua falta.
      Tia Clarissa ficou rubra e foi logo dizendo:
      - Sou de opinião de que você não deve voltar mais para aquele seu colégio. Seu pai, antes de morrer, me pediu para prepará-la para debutar junto com minhas filhas, e eu prometi isso a ele. Foi por essa razão que lhe pedi para vir aqui.
      - Isso me faz sentir como alguém que vai à guerra. Será que preciso mesmo debutar?
      - Minha querida, se você não for introduzida à sociedade do jeito apropriado, não vai poder ser recebida em certos lugares. Esse é o meu dever, agora que não tem mais pai e que sua madrasta é - aí, deu um suspiro - ...tão pouco apresentável. Meu dever é protegê-la, e me proponho a tomar conta de você e de minhas filhas ao mesmo tempo. Desse modo vai ficar muito mais barato.
      - Três pelo preço de uma - retruquei.
      - Você, meu bem, parece ter adquirido o hábito de fazer comentários estranhos e inoportunos. Estou planejando festas e bailes para suas primas, e você terá de juntar-se a nós.
      - Uma temporada londrina é uma coisa que me atrai muito pouco.
      - Não se trata aqui do que lhe atrai ou não, Harriet, mas do que é necessário para uma moça de sua classe e posição.
      - Sempre imagino uma temporada como uma feira de amostra. O gado é exibido, inspecionado e depois premiado.
      - Oh! - fez minha tia, e minhas primas olharam horrorizadas. - Não sei - continuou - onde foi buscar essas idéias tão absurdas. Espero que não tenha sido naquela sua escola. Só pode ter sido com sua madrasta.
      O mordomo chegou com a criada, que colocou todos os apetrechos do serviço de chá sobre uma mesa perto de minha tia. Enquanto estiveram ali, a conversa girou unicamente sobre o tempo.
      - A senhora mesma serve, madame?
      - Sim - respondeu, e, no seu tom de voz, já estava implícita a ordem para que eles saíssem.
      Comemos torradas e sanduíches de pepino, e competia a Sylvia entregar as xícaras a cada uma de nós. Contei-lhes, então, que estava de partida para Menfreya, dentro de poucos dias, para ser dama de honra do casamento de Gwennan Menfrey.
      - Gwennan vai casar! Por quê? Ela mal saiu do colégio!
      - E ela não precisou de nenhuma temporada - comentei maldosamente, olhando para minhas primas. - Vai se casar com Harry Leveret, que ao que me consta é um milionário.
      - Mas sem nenhuma tradição - disse minha tia com ar de triunfo, mas acrescentou relutando: - se bem que a fortuna seja considerável. E casar... logo depois de sair da escola...
      - Uma façanha mesmo, e com essa não podemos competir - murmurei sorrindo para minhas primas.
      - Quantos anos ela tem?
      - Deve ser dois anos mais moça do que você, Sylvia.
      Sylvia ficou vermelha e resmungou:
      - Provavelmente os dois são amigos de infância. Sei que me acharam rancorosa e que, mais tarde, iriam comentar entre si que, como eu devia ter dificuldades para encontrar marido, queria que elas também tivessem.
      - Quando você voltar, vou tratar de todas as coisas. Lady Masterton tem uma filha que também vai debutar; ela me deu uma lista de bons partidos que vai convidar para suas festas, e nós não podemos ficar em desvantagem em relação a elas.
      Todos esses projetos me deixaram deprimida, e comecei a pensar se não haveria um modo de me livrar deles. Não tinha a menor vontade de ser exibida como uma potran-ca qualquer e me sentir como se comentassem: "Ela manca um pouco, mas vale uma fortuna... por enquanto não vale muito, mas se a madrasta morre, ali existe um dinheirão. Alguém pronto a candidatar-se?"
      - Você precisava aprender a ser mais simpática, minha querida - disse minha tia. - Não pense que vai conseguir as coisas sem simpatia.
      - Não estou superansiosa com minha situação. Afinal, tudo que se espera é que eu obtenha um marido, e posso muito bem passar sem isso. Você se esquece, tia, que meu pai deixou com que me manter?
      Houve um profundo silêncio, e, algum tempo depois, minha tia disse, num tom de voz firme:
      - Receio, Harriet, que tenha adquirido uma visão muito mercenária de tudo, e também lhe digo: seu modo de se exprimir é muito inconveniente e não...
      - Vai me comprar um marido? - acrescentei.
      - Realmente, Harriet, não sei por que me dou a tarefa ingrata de querer fazer seu début junto com o de minhas filhas. É uma obrigação que, já pressentira, iria trazer-me sérios aborrecimentos.
      O chá terminado, tia Clarissa disse para minhas primas me levarem ao quarto de estudo e, depois, me mostrarem os vestidos que usariam nas festas em que iriam.
      Clarissa filha juntou-se a nós. Era bem semelhante às irmãs: bonitinha na superfície e de cabeça oca; aliás, era o que se podia esperar de uma educação supervisionada por tia Clarissa. Foram treinadas, as três, na crença de que o objetivo máximo na vida é um bom casamento. Enquanto ouvia a tagarelice delas, pus-me a imaginar sobre o que lhes iria acontecer, mesmo que atingissem seus objetivos. No momento, seria impossível fazê-las entender que o que acontece nos anos futuros é mais importante do que os acontecimentos dos meses que antecedem a cerimônia do casamento.
      Era uma estranha no meio delas, e me sentia como um peixinho fora da água. Tinham medo de minha língua, mas não de meu físico. Era essa a vantagem que levavam sobre mim, e tinham o propósito de explorá-la ao máximo.
      Fiquei feliz quando chegou a hora de partir e voltar para casa. Foi na carruagem com Fanny que pude dar vazão à minha raiva.
      - Gostaria de nunca mais pisar ali. Minha tia se propõe a fazer tudo quanto for possível para achar marido para mim. Sabe o que ela quer? Que eu desfile nesses bailes idiotas, que, de qualquer modo que sejam, vou detestar. É quase como se estivesse com um cartaz pendurado no pescoço com a inscrição: "Excelente negócio. Está um pouco estragado, mas com ótimas possibilidades. Maiores detalhes, dirigir-se por favor à Sra. Clarissa Carew, tia do objeto em questão".
      - Só mesmo você - disse Fanny. - Não sei como consegue pensar nessas coisas. Acho que não é o tipo que se casa contra a vontade; ou então não sei quem você é.
      - Você está certa, Fanny. Mas como odeio toda essa coisa parecendo leilão de mercadoria!
      E dei graças a Deus porque estaria em Menfreya antes da chegada da tão indesejável temporada.
     
     
    Capítulo 4
     
      Quando eu e Fanny chegamos em Liskeard, fiquei surpresa de ver A'Lee esperando por mim. Sabia que iam mandar alguém ao nosso encontro, mas o que pensava encontrar era a carruagem de Menfreya.
      - Ordens da Srta. Gwennan - disse A'Lee, me cumprimentando, como se eu nunca tivesse saído de lá.
      - Mas esta não é a carruagem dos Leveret?
      - Ela já é quase uma Leveret, Srta. Harriet. Já está dando suas ordens.
      E aí seu maxilar inferior começou a tremer, por causa de umas risadinhas contidas que dava. Eu tinha certeza de que Gwennan estava dando o que falar pelas redondezas.
      No caminho para Menfreya, me contou que ela planejara vir ao meu encontro, mas não pôde porque teve de ir a Plymouth tratar de uns assuntos do casamento.
      Para a maioria das moças, são as mães que fazem essas coisas, mas com a Srta. Gwennan isso não acontece. E Lady Menfrey já deve ter aprendido há muitos anos o que eles já lhe ensinaram.
      - Estou vendo que está doido para que chegue o dia em que ela será a dona de Chough Towers - disse eu.
      - Imagino que até lá muita coisa pode acontecer.
      - É bom estar de volta - falei para ele. - Parece até que nem estive fora daqui. E, veja você, isso já faz muito tempo.
      - Eh, mas a senhorita fica bem é aqui. Quando a gente se viu pela última vez, a senhorita era muito novinha ainda. Agora já está uma moça. Imagino que o próximo será o da senhorita.
      - Bem, por enquanto ninguém ainda me pediu.
      Seu maxilar começou a sacudir outra vez.
      - A senhorita sempre foi muito prudente, isso foi mesmo. Quem tiver juízo para pedi-la em casamento, está fazendo um bem para ele mesmo. É o que acho.
      - E espero ter juízo para aceitar quando me pedirem. É incrível como esse assunto agora está sempre surgindo. Será normal? Ou será porque estou naquela idade enjoada que se chama de casadoura?
      - É, a Srta. Harriet é daquelas que têm muito juízo mesmo.
      - Mas me diga uma coisa, A'Lee, por aqui houve mudanças?
      - O doutor morreu há uns seis meses atrás.
      - Dr. Trelarken?
      - Ele mesmo. Mas ele arrumara um sócio, o Dr. Syms, que está agora sozinho aqui.
      - E a Srta. Trelarken?
      - A Srta. Jessie foi embora. Acho que para Londres. Está morando com uma tia por lá, e ouvi dizer que ia ser governanta ou dama de companhia. Sabe como é, não tinham dinheiro, e agora ela tem de ganhar a vida trabalhando. Coitadinha!
      - Mas acho que ela deve ter muita... capacidade.
      - Ah, capacidade, isso tem. Não ia admirar-se se ela se casasse até antes. Bonita como é.
      - É, ela é muito bonita.
      - Sempre digo à Sra. A'Lee que faz bem a gente olhar para ela. Houve um tempo em que se pensava que...
      - Pensava o quê?
      - Bem, é que o Sr. Bevil andava todo meloso com ela. Veja, ele já gostou de muitas moças aqui, mas com Jessie Trelarken parecia que... Mas parece que a coisa toda foi por água abaixo. Agora é um político importante, a senhorita já sabe, não é? Venceu por grande maioria. O pessoal daqui é cismado; gosta de ser fiel ao que é dele. Acha que o direito e o certo é ser representado por um Menfrey outra vez.
      - Meu pai tinha um pouquinho de jeito de gente de fora, não é?
      - Bem, é assim que é aqui. Mas ele nunca pertenceu a esse lugar, não é verdade? Já a senhorita é diferente, tem jeito de pertencer. Acho que é porque vem aqui desde pequena. E a gente não esquece que fugiu de Londres para vir para cá.
      - Oh, mas isso já faz tanto tempo!
      - Mas nós não esquecemos. É essa coisa que faz a gente pensar que a senhorita parece mais daqui do que a maioria dos outros estrangeiros. Era pequenina quando veio, e sabemos que é de onde mais gosta. Sempre foi assim, não é?
      - Você tem razão, A'Lee, é aqui que me sinto feliz.
      - Então este é o seu lugar.
      - Olha, já estou vendo Menfreya!
      - Eh, chegaremos lá daqui há pouco.
      - Depois de passar um tempo fora, Menfreya é emocionante à primeira olhada.
      - Estou vendo que se apaixonou pelo velho casarão. Dizem que o Sr. Harry prometeu que, depois do casamento, vai fazer tudo o que a casa está precisando, e aposto minha vida como a Srta. Gwennan vai fazê-lo cumprir o prometido.
      - Você está falando de consertos?
      A'Lee, apontando com o chicote na direção de Menfreya, disse:
      - Casas como essas estão sempre precisando de consertos. De homens trabalhando o tempo todo é do que está carecendo, grande como é... e tendo agüentado nossas ventanias e nosso mar, todas essas centenas de anos, lógico que anda precisando ganhar forças.
      - E aí, chega Harry Leveret em socorro.
      - Por isso é que lá estão todos felizes com o casamento. Imagino que não estariam tão contentes em dar as boas-vindas ao Sr. Harry se ele não tivesse dinheiro. Se me perguntar, digo que a pessoa de sorte nessa maravilha de casamento é a Srta. Gwennan. Menfrey, bah! Por que tanto orgulho? Só porque sabem quem foram seus antepassados em centenas de anos? Acho que todos nós temos também antepassados, ou não?
      - É, acho que sim.
      - Bem, se todas as histórias que ouvi sobre os Menfrey são verdadeiras, eles não têm razão para tanto orgulho.
      - Você está certo, A'Lee. Mas se os Leveret estão satisfeitos e os Menfrey também, é a conclusão de uma feliz transação. Olha, lá está a ilha!
      - E essa agora! Tinha me esquecido, ela é da senhorita...
      - Não é propriamente minha. Meu pai se casou, e eu tenho madrasta.
      - Ah, então é dela?
      - Também não é propriamente dela. Não tenho muita certeza, em todo caso, agora é da família.
      - A gente aqui não gosta muito disso. Terras do velho ducado passando para as mãos de gente de fora. Mas, como já disse, está certo se ficar sendo desta mocinha, a Srta. Harriet. Assim, não fica parecendo tão mal.
      - Bondade sua, A'Lee.
      - Não é bondade. É verdade.
      - Estou louca para ir ver a ilha de perto.
      - Não está pensando em passar outras noites lá, hein?
      - Parece que as pessoas vão se lembrar disso para sempre.
      - Ah, mas a história foi boa mesmo. Estava até nos jornais. Filha de um membro do Parlamento e toda... toda Londres procurando por ela, quando estava escondida aqui, bem no meio da gente.
      - Foi bobagem ter feito isso. Mas não se esqueça de que eu era muito pequena.
      - A gente não achou que fosse tão bobagem assim.
      O queixo dele começou outra vez a tremer, e eu fiquei em silêncio; estávamos chegando aos portões de Menfreya, os que davam na estrada e por onde se entrava, passando sob uma arcada, onde o relógio proibido de parar estava colocado.
      Olhei para cima: a hora, como de costume, era precisa; fiz um comentário qualquer a esse respeito.
      - Claro que tem de estar na hora certa; não pode ser de outro jeito. Isso é serviço de Thomas Dawney. Ele tem de manter o relógio sempre funcionando, e nos últimos 100 anos os Dawney têm casa, comida e roupa só por causa dele; desde quando ele parou uma vez, e Sir Redvers Menfrey foi atirado de seu cavalo, que os Menfrey não querem facilitar.
      Passando o portão do relógio, a moradia do porteiro e os alojamentos, que há mais de 100 anos são dos Dawney, chegava-se a um jardim gramado com hortênsias e azaléias enfeitando-o, floridas nessa época, e graciosos arbustos dando frutinhas vermelhas que duravam o inverno inteiro.
      No grande hall, com quadros nas paredes, teto em abóbada e uma escadaria ladeada por armaduras usadas na guerra civil pelos Menfrey de então, lembrei-me da noite em que entrei ali com Bevil, e de Gwennan, em pé no alto da escada, me olhando com ar de censura.
      Mas A'Lee estava puxando o cordão da campainha, e Pengelly, o mordomo dos Menfrey, apareceu para me conduzir à sala vermelha, onde Lady Menfrey esperava por mim.
      Foi uma maravilha poder estar outra vez com Gwennan. Ela era como uma chama - parecia ter nascido com um fulgor que fazia todos se deslumbrarem com ela. Só em olhá-la, já me sentia mais animada.
      Enquanto tomava chá com Lady Menfrey, ela entrou na sala e, com aquela sua exuberância, foi logo atirando-se sobre mim e me carregando consigo para o quarto. Tinha mudado, claro, era de fato agora uma mulher, linda, cheia de sex-appeal, ávida e inquieta.
      Esta, pensei, deve ser a Gwennan apaixonada.
      Contava os planos para o casamento.
      - A vizinhança toda está esperando um acontecimento espetacular. Acho que vai ficar um pouco parecido com um cortejo medieval. Meu vestido foi copiado de um de uma tetra, tetra, tetravó. Tenho de ficar indo sempre prová-lo. Uma chatura, pois Dinah é obrigada sempre a ir comigo. Dama de companhia, bah! Não é permitido moças irem sozinhas a cidades grandes. Uma das grandes vantagens do casamento é a liberdade. Juro, Harriet, que, enquanto você ainda estiver acorrentada, eu já estarei há muito tempo em liberdade.
      - Dizem que certos maridos se comportam como carcereiros...
      - Não o meu. Por acaso pensa que vou sair de uma prisão para entrar em outra?
      - Não. Acho que a família dele é muito mais tolerante do que a maioria das outras.
      - Mas de que é que estamos falando, se há tanta coisa que quero contar a você. Seu vestido é de gaze lilás, e você vai ficar...
      - Medonha.
      - Essa é a idéia, para contrastar com a beleza da noiva.
      Rimos as duas. Como era bom estar com Gwennan.
      Parece que captou meu pensamento, pois comentou:
      - Estou tão contente por você estar aqui, Harriet! Quando casar, será a primeira hóspede em Chough.
      - É estranho pensar em você morando ali.
      - É, não é? Estamos fazendo umas reformas fantásticas. Harry está transfor-mando o lugar num palácio, para melhor condizer com a rainha que vai ter.
      - Está muito apaixonada, não está?
      - E não devia estar? Só que devo esconder isso até o dia do casamento. Até lá, ele tem de estar de joelhos aos meus pés, depois, sou eu quem ficará de joelhos, quando terei de honrar e obedecer ao meu senhor.
      - Ele nunca vai conseguir isso.
      - Espero que não. Ele me adora. Bem, agora preste atenção. Amanhã vamos a Plymouth. É bem divertido. Dinah tem uma irmã que mora lá, e eu digo para ela ir visitá-la, assim a gente fica livre.
      - Livre para quê?
      - Você vai ver. Mas primeiro temos de passar na costureira e ver como anda seu vestido.
      Sorria, provavelmente, divisando o futuro; e percebi o quanto me era querida, agora que sentia nela nova suavidade, mais ainda. Estar apaixonada, pensei, deve ser isso. No amor, Gwennan devia ser mais arrebatada do que a maioria das pessoas, pois a tudo que se entregava era com vigor. Se Harry a amasse e ela também o amasse, não havia como os dois não serem muito felizes.
      Aí, ela falou uma coisa estranha:
      - Harriet, há vezes em que penso que me daria muito bem num palco.
      Levantei as sobrancelhas, esperando que prosseguisse com o assunto, mas ela não disse mais nada. Continuava a sorrir, sonhando com o futuro.
      No dia seguinte, fomos de carruagem até a estação, e lá pegamos um trem para Plymouth. Dinah, empregada particular de Gwennan, se achava conosco e nos largou na costureira, combinando de nos apanhar à tarde.
      - Mas vamos passar muito tempo na costureira - comentei.
      Gwennan apenas deu um sorriso, dizendo que deixasse tudo por sua conta.
      As minhas medidas foram tomadas, examinei a fazenda lilás, e Gwennan me disse que voltaríamos daí a três dias para fazer a primeira prova. Na loja, ficamos só por cerca de meia hora.
      - Sabe, Harriet, tenho uma surpresa para você. Nós vamos ao teatro. Vai gostar. É lindo. Romeu e Julieta. Lembra-se de que era boa para ler poesia e de que, na leitura de peças, não era lá grande coisa? Nunca conseguiu esquecer-se de você mesma. É o seu problema, hein Harriet?
      - Por que não disse antes que íamos ao teatro?
      - E por que tinha de dizer?
      - Porque era uma coisa que interessava.
      Ficou calada, com o sorriso ainda brincando nos lábios.
      - No final, depois que acabar a peça, podemos ir aos bastidores.
      - Está querendo dizer que... tem algum amigo na produção?
      - Viu? Sempre disse que conseguia surpreendê-la e agora surpreendi. Lembra-se de que dizia também que nunca sabia o que eu estava planejando?
      Tive de concordar que realmente havia ficado surpreendida.
      - Você vai gostar, Harriet.
      Ela comprou os tíquetes, e entramos. Pelo programa, vi tratar-se de uma companhia fazendo curta temporada em Plymouth, com determinado repertório: Henry Arthur Jones e Pinero e mais algumas exibições especiais de Shakespeare.
      Mas estava mais interessada em Gwennan do que propriamente no que se passava no palco. Era certo que alguma aventura estava em andamento. Conhecia os sinais e comecei a me preocupar. Por que estaria tão interessada em teatro às vésperas do casamento?
      Entre os nomes dos atores no programa, ela apontou para um: Eve Ellington.
      - Quem é? - perguntei.
      - Não adivinha?
      Abanei a cabeça.
      - Lembra-se de Jane Ellington?
      Sim, lembrava dela recitando trechos de Hamlet no nosso quarto na França.
      - Santo Deus, será possível?! - exclamei.
      - Pois é ela mesma. Quando estava para chegar aqui, me escreveu, e vim imediatamente procurá-la. Aí, a seu convite, fui até os bastidores e conheci alguns atores da companhia. Depois disso, já vim diversas vezes.
      - Ah, então por esse motivo você também está achando que gostaria de ser atriz, não é? Um pouco tarde para pensar nisso, hein? Dentro de poucos dias já será a Sra. Leveret.
      - É - respondeu - é muito tarde, está bem em cima da hora.
      - Não, já está na hora mesmo.
      - Também não. A hora mesmo é a do casamento - respondeu com voz firme.
      - Ora, você não dá muito para isso. Nunca conseguiu decorar um papel.
      A cortina foi erguida, e a peça começou. Não passava de um espetáculo barato, de mau gosto e representado mediocremente. Estranho que pareça, Gwennan se mostrava extasiada. Romeu era um homem bonito, e procurei pelo seu nome no programa - Benedict Bellairs; Eve Ellington desempenhava o papel de Lady Capuleto. Imediatamente a reconheci, e passei a prestar atenção. Pobre Jane, já teve pretensões tão mais altas!
      Quando a cortina desceu, depois do primeiro ato, comentei isso com Gwennan.
      - Que bobagem - respondeu. - Ela precisava começar, não é? Acho que já está fazendo muito.
      - Pensa que ela será uma segunda Ellen Terry e, suponho, com certeza acha que Romeu seja um embrião de Irving6. Muito bem.
      - E por que não?
      - Tenho a impressão de que mesmo no início de suas carreiras, deviam representar um pouco diferente disso que está aí.
      - Você é cínica, Harriet. Sempre foi. Se não tem coragem de fazer nada, não tem também de ficar zombando dos que fazem.
      - Ora... você é uma sonhadora!
      - Não, apenas admiro quem se esforça. Só isso.
      Fiquei em silêncio. Dava realmente para preocupar.
      A peça não acabava mais. Dei uma olhada em Gwennan, completamente alheia à minha presença, com os olhos pregados no palco. Isso era inesperado, mas afinal o inesperado foi sempre o esperado com Gwennan.
      Finalmente, quando acabou, ela me agarrou impaciente, me levando para os fundos do teatro. Nunca havia estado num bastidor e achei um lugar emocionante, se bem que um tanto sujo. Tive prazer em rever Jane, que me cumprimentou efusivamente. Sentamos em cima de um caixote para conversar. Adorava aquele tipo de vida, ela contou; nunca o trocaria pelo marido mais rico do mundo. Talvez uma alusão ao casamento de Gwennan, pensei. Sua família se opusera, não querendo que entrasse para o teatro, aí simplesmente fugiu de casa. Possivelmente seria excluída do testamento do pai; mas e daí? O cheiro de maquilagem vale mais do que todo e dinheiro do mundo, quando se tem 18 anos e se está apaixonada pela profissão.
      Enquanto isso, Gwennan conversava com Romeu, ainda de fantasia e com o rosto brilhando pela maquilagem, mas vi que era um homem de bela aparência.
      - Quero apresentá-la a Benedict Bellairs - disse Gwennan, voltando-se na minha direção.
      Ele segurou minha mão e fez uma mesura.
      - Bem-vinda aos bastidores - disse ele.
      Senti, nesse momento, um frio correr pela espinha - devia ser de apreensão. Não tinha gostado nada dele.
      Gwennan se mostrava reservada - fato muito estranho - ela, que nunca guardou segredos e que sempre falou a primeira coisa que passasse pela cabeça. Por isso, sua mudança agora dava para preocupar.
      De volta, durante a viagem, por causa da presença de Dinah, não foi possível conversar, mas tirei a conclusão de que as visitas a Plymouth, por sinal muito freqüentes, incluíam sempre idas ao teatro.
      Por que subitamente tanto interesse?
      De noite, ao nos retirarmos para dormir, fui ao seu quarto, decidida a descobrir se estava seriamente envolvida com aquilo tudo e até que ponto, caso estivesse. Ao bater em sua porta, escutei que falava em voz alta, parando para dizer: "Entre!" De pé no meio do quarto, de camisola, sem dúvida declamava em frente do espelho. Aí, vi um livro aberto em cima da mesa, e reconheci como sendo o Shakespeare que usávamos na escola.
      - Presumo que seja Julieta - comentei.
      - O que você está insinuando?
      Olhei para a página aberta no livro e disse:
      - Cena do balcão. Gostaria de ver sua representação dela. Vamos lá. "Romeu, Romeu! Por que razão, Romeu...?" Comece daqui. Eu faço Benedict Bellairs.
      Ela ficou vermelha.
      - Só mesmo você! - falou furiosa, fechando violentamente o livro.
      - Então pegou a mania do teatro, hein? Gwennan, o que está pretendendo fazer?
      - Nada.
      - Ora, Gwennan, deixe disso. Sei quando está planejando alguma coisa. Lembre-se que sempre adivinhei.
      - Fiquei só inspirada com a representação de hoje à tarde, nada mais.
      - É, bem mais do que eu.
      - E você pode ficar inspirada com alguma coisa?
      - Talvez não. A não ser com uma representação sua. Quero ver sua Julieta.
      - Pare com isso.
      - Paro quando contar até onde isso foi.
      - Pare de uma vez. Está parecendo a dona-de-casa que encontrou o marido beijando a empregada.
      - Ah, entendo. Você andou beijando alguém?
      - Realmente, Harriet.
      - E quanto a esse Benedict? Por acaso não anda fazendo o que costuma chamar de besteirinhas da mocidade, hein?
      - Achei que ele era um homem interessante, apenas isso.
      - E Harry? Sabe o quanto você acha esse Benedict interessante?
      - Pare de falar! Queria que não tivesse vindo.
      - Talvez seja melhor mesmo eu voltar.
      - Não seja boba. Ora, como pôde pensar isso?
      - Mas, Gwennan, estou realmente preocupada. Afinal, não é mais nenhuma garotinha de colégio; é uma mulher que está prestes a se casar. Já pensou no Harry?
      - Estarei pensando em Harry pelo resto de minha vida. Gostaria de, pela última vez, ter a chance de pensar numa outra pessoa.
      - Fala como uma verdadeira noiva! Gwennan, já é tempo de você crescer.
      - E olha quem fala. Você... bebê de fraldas! O que é que sabe da vida? Apenas o que leu.
      - Ora, talvez se possa saber mais sobre a vida através de livros do que nos bastidores, com atores de terceira categoria.
      - Pare com isso.
      - Já está ficando repetitiva.
      - E você, atrevida.
      Ia me levantar para ir embora, mas ela segurou minha mão.
      - Ouça aqui, Harriet, a companhia sai de Plymouth uma semana antes do meu casamento, e então tudo vai acabar.
      - Não estou gostando disso.
      - Nem poderia, D. Virtude.
      - Só espero que...
      - Mentirosa! Só espera que Bevil se apaixone e case com você.
      Ia sair, mas ela não me deixou.
      - Nós nos conhecemos demais, Harriet. E de uma coisa também sabemos: não importa o tipo de confusão em que nós nos metermos, ficaremos sempre uma do lado da outra.
      Era verdade.
      No dia seguinte, Gwennan e eu remamos até a ilha. Lá estava a casa com suas quatro faces, todas vigiando o mar. Já havia recebido alguns melhoramentos, e imaginei que meu pai teria feito isso antes de morrer; mas o velho mobiliário de Menfreya ainda continuava lá.
      - O que ela faz lembrar? - perguntou Gwennan. Não seria necessário perguntar. Nunca, durante todo esse tempo, ao ver a ilha, deixei de lembrar a noite em que passei ali, e principalmente dos momentos de terror quando ouvi a voz de Bevil embaixo e, depois, ele entrando acompanhado da moça do vilarejo. Era, então, muito inocente para perceber com que propósitos ele tinha ido ali com a moça; mas, claro, agora sabia: era só um incidente entre outros tantos parecidos, fazendo parte da vida de Bevil.
      Aí, me veio ao pensamento o amor de Harry por Gwennan, o que me deixou vagamente deprimida. Gwennan, às vésperas do casamento, deixando sua fantasia arrastá-la para Benedict Bellairs; e Bevil, que, tal como o pai e a maioria dos Menfrey varões, achava perfeitamente natural ficar saltando de mulher em mulher, como uma abelha cuja obrigação é fecundar.
      O barco tocou no fundo e desembarcamos.
      - Engraçado - disse Gwennan - agora é sua. Este pedacinho de terra, os Menfrey perderam para sempre. Parece até o mar usurpando de mansinho a terra, e é do oceano que parte a acusação: sempre que olharmos para o mar, ele estará nos censurando. Nos anos futuros, os Menfrey desse tempo irão abanar a cabeça e dizer: "Foi Sir Endelion quem perdeu a ilha. Período negro para Menfreya". A não ser, é claro, que a ilha volte à família através de um casamento.
      - Talvez - sugeri - o casamento de uma Menfrey com um homem rico permita aos Menfrey recomprar a ilha.
      - Não é fácil arrancar terras que já pertenceram aos Menfrey dos seus novos donos. Nem sempre o dinheiro é bastante.
      - Vamos dar uma olhada na casa.
      Quem abriu a porta fui eu.
      - Típico - disse Gwenann. - No nosso tempo, as portas nunca ficavam fechadas. Só se vê mudança e decadência por todos os lados.
      - Menos decadente do que quando era sua.
      - Está mais pretensiosa. Não sei o que os fantasmas estarão pensando disso.
      - Há mais de um?
      - Acho que sim. Esta casa é das mais mal-assombradas. Mas provavelmente não aparecem para estranhos. Os fantasmas cornualhenses, têm suas manias, sabe?
      A gaiatice dela não era espontânea, e me perguntei se não estaria com um pouco de vergonha.
      Fomos andando pela casa, nos desviando dos móveis cobertos contra a poeira. Afastei-me e fui sozinha ao quarto em que Bevil tinha me encontrado. Lá, reconstituí a cena, com ele arrancando os lençóis e eu, abaixada, olhando em sua direção. Ah, Bevil, de quem estava precisando tanto agora!
      - Nunca gostaria de morar aqui - disse eu. - A melhor coisa desta casa é a vista.
      - Não se vê nada. Só mar até o horizonte.
      - Não. Estou me referindo ao outro lado. Do lado da costa e de Menfrey.
      Gwennan me lançou um sorriso carinhoso.
      - Acho que gosta tanto daquela velharia quanto nós.
      Não demoramos muito e voltamos direto para Menfrey. Entramos pelo lado onde havia um jardim feito na encosta do penhasco, indo por um pórtico em frente ao mar e passando pelas cavalariças e dependências externas da casa. Foi aí que apareceu um empregado avisando:
      - O Sr. Bevil acabou de chegar.
      - Então chegou, hein? - disse Gwennan sorrindo e me olhando com malícia.
      Tentei dar ao rosto uma expressão de indiferença, mas não sei se fui bem-sucedida.
      Seguiram-se dias dos mais felizes que até então havia conhecido. Com Bevil, chegou uma atmosfera de alegria a Menfreya. Talvez já existisse e tenha sido só aumentada pelo fato de ter parado de pensar em Gwennan. Bevil estava sempre em nossa companhia, e Harry Leveret vinha todos os dias de Chough Towers; saíamos os quatro pela manhã para passeios a cavalo. Lady Menfrey, eternamente preocupada, achando sempre que um daqueles cabeças-duras de sua família pudesse cometer alguma estrepolia, agora consolava-se, sabendo que um estava vigiando o outro.
      Estava me transformando numa pessoa quase alegre. A cavalo, era muito mais feliz do que sobre os meus próprios pés. Sentia-me igual a qualquer um, e talvez por isso mesmo fosse ótima amazona. Tudo parecia estar a meu favor. Jessica Trelarken se achava a quilômetros de distância. Não sabia onde e tampouco perguntei. Harry, totalmente devotado a Gwennan, e ela, por seu lado, envolvida com seus complicados assuntos. Assim, Bevil ficava só para mim.
      Íamos, quase sempre, à frente deles e, muitas vezes, nos perdíamos de suas vistas.
      - Não penso que eles nos perderam de vista - disse Bevil.
      Jamais me esquecerei das vezes em que, a passo lento, nossos cavalos iam pelas sombras rendilhadas dos bosques, feitas pela luz que vazava através da folhagem, e o contato com um cavalo há de me deixar sempre em estado de louca euforia. Foi então que descobri que jamais haveria na minha vida alguém comparável a Bevil. Ele dava a impressão de ser exatamente como o via nos meus sonhos dos tempos de criança, quando fiz dele cavaleiro... o meu cavaleiro. Também do canto dos pássaros; da brisa suave que vem do mar - do sudoeste cornualhês, agradável como carícia, brando-úmido, embelezador, dando brilho à pele; de uma vista do mar que surge inesperada, mar azul-ferrete, azul turqueza, azul-pombinho... claro, quase esverdeado, água-marinha, todos os azuis da paleta do artista celestial, e mais tons de cinza, verde e madrepérola. Mas nunca tão lindo, e eu o disse a Bevil, como quando batido pela luz rosada da aurora.
      - Não me diga que acorda cedo para ver isso.
      - Acordo sim. De lá, na parte detrás da casa, avista-se a terra e Menfreya. Menfreya é a vista mais linda do mundo.
      Ele riu, e seus olhos pousaram em mim - no meu colo e no meu corpo, e depois olharam dentro dos meus.
      - Lembro-me muito bem de tudo. Você agachada embaixo de um lençol, e eu pensando que ali estava um vagabundo.
      - E, enquanto eu, não ouvi vozes, achei que era um fantasma. Recorda-se? Você não estava sozinho.
      - Claro que não! Não tinha ido lá para ver a vista. Mas um dia desses vou só para isso. Terá que me convidar, pois aquilo não é mais nosso. Prometo que chego cedo, para juntos apreciarmos Menfreya de manhãzinha.
      - Vou gostar disso.
      Olhou para trás, por cima do ombro.
      - Parece que nos perdemos deles outra vez - disse, fazendo um trejeito.
      - Acho que Harry arruma uma maneira para se perderem.
      - E confesso que não vou fazer nada para impedi-lo.
      - Acha que isso é direito?
      - Quando me conhecer melhor, e espero que vá conhecer, vai descobrir que nem sempre faço as coisas direito.
      - Você está muito satisfeito com o casamento de Gwennan, não é?
      - Ele é ideal. Harry é ótimo sujeito, e vão morar em Chough Towers. Não podia ser melhor.
      - E, além disso, ele é rico.
      - Por essas terras existe muito dinheiro, se souber onde ir procurá-lo. Estanho, caulim, pedras para construção e esse mar abarrotado de peixe. Há fortunas esperando por aqueles que têm mais energia.
      - E os Menfrey não têm energia?
      - Nunca tivemos. Mas pode crer, representar Lansella não é nenhuma sinecura. E você sabe disso por causa de seu pai.
      - Gosta desse tipo de vida?
      Ele voltou-se para mim e disse:
      - Sempre quis isso. Parecia errado que Lansella não fosse representada por um Menfrey. Sempre foi, e desde rapazinho já pensava em entrar na política. Tinha enorme quantidade de planos para promover grandes reformas. Mas era jovem e idealista, capaz de relatar todos os fatos importantes ocorridos desde os Gabinetes de Peel, Russell, Derby, Aberdeen e Palmerston. Acompanhei os desempenhos de Disraeli e de Gladstone... e naturalmente também os de Rosebery e Salisbury.
      - Mas eu também sei disso.
      - Você? Ora, mas por quê, Harriet?
      - Porque achava que, se falasse de política com papai, ele talvez se interessasse por mim. E, durante um certo tempo, acreditei que isso fosse realmente possível.
      Ele olhava-me com atenção.
      - Então me diga, Harriet, o mundo da política não é fascinante?
      - As pessoas é que são fascinantes. Adoraria, por exemplo, ter conhecido o Sr. Disraeli. O casamento dele deve ter sido uma perfeição. Ele, de espírito brilhante e cheio de verve; ela, cheia de plumas e diamantes. Ouvi dizer que os dois foram devotadíssimos um ao outro. Ah, acho isso maravilhoso!
      - Como você é romântica, Harriet! Não tinha idéia de que fosse assim.
      - Bem, era natural que ela fosse devotada a ele. Afinal, era primeiro-ministro e favorito da rainha, com todo mundo ansiando por suas palavras. Ela, pelo que sei, era uma mulher bastante ridícula. Muitos anos mais velha do que ele, que se casou por dinheiro. E veja só, mais tarde confessou, ou alguém disse, não sei, que ele se casara por dinheiro; mas, após ter passado muitos anos junto dela, disse que se casara por amor.
      - Casamentos de conveniência muitas vezes no fim resultam ser os melhores. E o deles é um belo exemplo. Tinham tudo a seu favor.
      - Exceto amor, não é? - indaguei.
      - O amor talvez só venha com o tempo.
      - Mas o que você diz do amor à primeira vista?
      - Isso é paixão, minha querida, uma plantinha bem menos resistente.
      - Você realmente acredita nisso?
      - Acredito só no que pode ser provado. Como vê, não sou homem de muita fé.
      - Bem, esperemos que um dia possa provar suas teorias.
      - E vou mesmo, Harriet, disso não tenho a menor dúvida. É curioso, sabe? Você ser filha do representante anterior de Lansella.
      Naquele instante, olhou para mim como se me estudando, com os olhos semícerrados por causa do sol.
      - Você poderá me ajudar nas próximas eleições.
      - Adoraria.
      - Uma mulher pode ser de grande ajuda, principalmente se for filha do parlamentar anterior.
      - Mas, aqui, não vai precisar de ajuda. Estão doidos para que você seja o representante no Parlamento.
      Inclinou-se para o meu lado e, segurando o meu pulso, disse:
      - Vou querer sua ajuda, ouviu? - ele disse, e eu corei de prazer.
      Quanta felicidade, mas não podia esquecer-me de que era assim que agia com as mulheres. Sabia exatamente o que lhes dizer para deixá-las felizes.
      Sorria para mim.
      - Estou contente de que esteja crescendo, Harriet. Temos de nos encontrar mais vezes. Onde moro em Londres não fica longe de sua casa. Precisa pedir a sua madrasta para me convidar.
      - Vou pedir.
      Tocamos de leve nos flancos dos cavalos e, num meio-galope, cruzamos o campo que se estendia à nossa frente.
      Chegamos à charneca; ali prendemos os cavalos e fomos sentar por uns instantes num muro de pedras. Era uma manhã gloriosa, com o sol iluminando o imenso relvado, fazendo brilhar as gotinhas de orvalho na grama, que na neblina da manhã ficavam como continhas de cristal. O vento suave batia em minha pele, e eu me sentia feliz.
      Ele, então, retornou ao assunto Jenny.
      - Você gosta de viver naquela casa, Harriet?
      - Bem, suponho que o meu lugar seja lá.
      - E será que ela pretende continuar morando nela?
      - Sei que tinha planos de comprar uma casa de campo, mas isso não foi possível porque não tem licença para tocar no capital que meu pai lhe deixou. Acho que pode usá-lo, mas a guarda está comigo.
      - Então foi essa a solução encontrada por seu pai.
      - Na verdade, não compreendo direito a coisa. Tudo o que sei é que Greville, Baker & Greville lhe disse que não podia dispor do dinheiro para comprar a casa.
      - Com que então, querida Harriet, que, em certas circunstâncias, será considerada herdeira?
      - Espero nunca ter de herdar. Para isso, ela teria de morrer antes. Isso seria horrível! Sabe, cada vez me sinto mais apegada a ela.
      - Tais sentimentos são adequados a você, Harriet.
      - São adequados ao meu bom senso. Se tivesse herdado toda a fortuna de meu pai, seria hoje um chamariz para rapazes querendo fazer casamentos de conveniência. Prefiro ficar com minha modesta fortuna e estar relativamente a salvo de investidas dessa ordem.
      - Querida Harriet, não importa se sua fortuna é ou não modesta, porque esse não é seu único predicado.
      - Ora, Bevíl, você chega a me surpreender.
      - Será? Então estamos quites. Você também me surpreende com sua conversa.
      - Com certeza achava que eu não tivesse nenhuma, não é?
      - Foi só recentemente que me deu oportunidade de apreciá-la.
      - Mas também só recentemente é que procurou por essa oportunidade.
      Aí, ele riu e pegou na minha mão, apertando-a.
      - Harriet, prometa-me que me dará muitas outras oportunidades, aqui e em Londres.
      Inclinou-se para mim e me deu um beijo na face. Não com o ardor com que o imaginava beijando outras mulheres, mas com meiguice e admiração. E pensei: está começando a me ver sob outro prisma, aprendendo a me conhecer e a gostar de mim. Ou, quem sabe, começando a saber da minha fortuna e passando a gostar dela.
      Mas, afinal de contas, não era uma fortuna muito grande, e Jenny era só alguns anos mais velha do que eu, e por muito tempo não iria pôr as mãos nela, ou talvez mesmo nunca.
      O pensamento me deixou feliz. Não era a fortuna. Era eu.
      Tal felicidade, para quem não estava acostumada, chegava a enebriar.
      Quando estávamos montados outra vez, ele disse:
      - Com que então sua madrasta desconhecia a situação em que foi deixada?
      - Bem, ela ouviu a leitura do testamento, viu o assistente do advogado lá, mas na hora não compreendeu os fatos legais.
      - Achei que uma coisa que lhe era tão vital fosse impressioná-la.
      - Eu também estava lá quando leram o testamento e, da mesma forma, não pude compreendê-lo muito bem. Realmente minha cabeça vagava, pensava...
      - Em quê?
      - Em como meu pai e eu perdemos tempo não sendo amigos e que nunca mais poderíamos ser.
      - Um dia, Harriet, alguém vai recompensá-la de todas as coisas que lhe têm faltado.
      - Isso seria justo, mas nem sempre a vida é justa, não é?
      - Talvez precisemos dar um jeito para que ela seja.
      O que será que ele queria dizer? Seria isso equivalente a um pedido de casamento?
      - Vou lhe dizer o que tem de fazer - disse ele, após deixarmos a charneca. - Você está muito confusa sobre sua herança, não está? Se quiser, pode descobrir os termos do testamento.
      - Eu sei. Posso me dirigir a Greville, Baker & Greville.
      - Não precisa fazer isso. Pode ver a cópia do testamento em Somerset House. Quer que eu dê uma olhada para você, quando chegar em Londres?
      De repente fiquei arrepiada, mas, falei:
      - Ah, obrigada Bevil. Por favor, faça isso.
      - Vou fazer - respondeu. - Pode deixar comigo.
      Agora soprava um vento muito frio. Seria o vento, pensei, que estava fazendo com que sentisse um pouco de frio?
      Quando se olha em retrospecto uma tragédia, os dias que a precedem parecem carregados de uma atmosfera irreal. Convive-se com o óbvio e não se vê o que está sob o próprio nariz.
      Aqueles foram dias de sol e gastos com os preparativos do casamento, que se avizinhava cada vez mais. Nove dias... Oito... Alguns dias antes, quando fui com Gwen-nan a Plymouth, voltamos ao teatro, e vi cartazes do lado de fora anunciando: "Última Semana".
      Graças a Deus, disse para mim. Quando partirem, Gwennan vai se acomodar e esquecê-los. E, dentro de pouco tempo, depois que tiver voltado da lua-de-mel e estiver novamente comigo, como prometeu, iríamos rir e até classificar essa fase de sua vida como a do encanto da ribalta.
      Ela me surpreendeu não indo despedir-se dos atores no último dia de estada da companhia em Plymouth; e, aliviada, pensei que ela já devia ter rompido com eles.
      Meu vestido estava pronto e pendurado no guarda-roupa. Tinha ficado muito bonito. Era de gaze lilás e feito justo. Na cabeça eu iria usar um adorno verde feito de folhas. As outras damas de honra estariam de verde com alguns detalhes em lilás. Eram cores, sem dúvida, que iam fazer efeito.
      - Verde não traz sorte - disse Fanny com cara amarrada. - Fico admirada de ela ter podido escolher essa cor.
      - Pois eu não fico - respondi.
      Chegou mais um dia, igual aos muitos outros. Pela manhã, montamos: eu, Bevil, Harry e Gwennan. Ela é que parecia um tanto alheia, e imaginei que tivesse o pensamento voltado para a companhia que partia. Não tive chance, nesse dia, de ficar sozinha com Bevil, pois passamos, os quatro, juntos a manhã inteira.
      No resto do dia, Gwennan pareceu me evitar, e imaginei que estivesse querendo ficar sozinha para meditar acerca do futuro.
      À noite, nos reunimos em casa dos Leveret para um jogo de cartas. Jogamos uíste de modo quase circunspecto e saímos às l0h. Achei que Gwennan tinha um olhar estranho. Falei com ela uma ou duas vezes, mas não me respondeu. Imaginei que seu pensamento estivesse na companhia que estaria embalando a tralha e rumando para uma outra cidade, encerrando esse episódio. Graças a Deus, já não havia tempo para mais nada, até o casamento.
      Dormi bem e, na manhã seguinte, Fanny, como de hábito, entrou para puxar as cortinas e trazer água quente.
      - Outro lindo dia - comentou - mas, um pouquinho nublado. Pengelly diz que essa é uma neblina quente. Pela manhã, ela estava muito cerrada.
      Fui até a janela e olhei o mar.
      Daqui a uma semana mais ou menos estaria de volta a Londres, tendo tia Clarissa em cima de mim com sua firme intenção de me fazer debutar.
      Quisera que o tempo não passasse. Minha vontade era a de segurar cada minuto e aprisioná-lo.
      Naquela manhã combinara sair com Bevil e Gwennan da estrebaria e iríamos a cavalo até Chough Towers, onde estaria Harry, impaciente, esperando por nós.
      Desci para o café. Sir Endelion e Lady Menfrey estavam à mesa e me deram um bom-dia afetuoso.
      Fiquei sabendo por Lady Menfrey que Bevil já tomara café, e que Gwennan ainda não tinha descido. Depois de ter conversado sobre o tempo e o casamento, me encaminhei para as cavalariças.
      Foi mais ou menos depois de uma hora que vi Bevil.
      - Então, montamos esta manhã? - disse ele.
      - Espero que sim.
      - Bem, e onde está Gwennan?
      - Ainda não estive com ela.
      - Provavelmente ainda não se levantou. Suba até o quarto dela e diga que se apresse.
      Quando entrei na casa, encontrei Dinah e falei para ela:
      - Gwennan está atrasada esta manhã.
      - Ela disse que tocaria a campainha quando precisasse de mim.
      - Quando é que ela disse isso?
      - Ontem à noite.
      - Então você ainda não foi lá?
      O tom de minha voz tinha ficado altíssimo, como sempre acontecia quando me sentia nervosa.
      - Não, ainda não fui, porque ela não chamou.
      Enquanto subia a escada, de dois em dois degraus, lembrei-me da expressão que tinha no rosto no dia anterior: era de resignação. Tinha fugido. Já sabia mesmo antes de abrir a porta e ver a cama sem ter sido desfeita. Ao entrar, dei imediatamente com os envelopes encostados meio de pé, em cima da penteadeira. Só mesmo Gwennan para arranjar as coisas de modo melodramático.
      Eram três cartas: para seus pais, para Harry e para mim.
      Meus dedos tremiam ao abrir o envelope da minha. E então li:
      Querida Harriet.
      Acabei consumando. Não tinha outro caminho. Simplesmente não dava mais para ficar. Fui embora com Benedict. Vamos nos casar, e é possível que entre também para o teatro. Tente fazer com que eles entendam. Principalmente Harry; não tive como evitar. Foi uma dessas coisas que tinha de acontecer. É diferente de tudo quanto já me ocorreu. Harriet, seremos sempre amigas, não importa o que venha acontecer. Não se esqueça, e tente fazê-lo compreender.
      Gwennan
      Sentia-me paralisada, sem conseguir sair do lugar. Ouvi sons de riso vindo da cozinha, e a voz de Bevil gritando para um dos empregados. À minha volta, por uns minutos mais, a vida ainda iria prosseguir no seu normal, mas logo, logo, tudo estaria mudado.
      Peguei as outras duas cartas e saí correndo do quarto.
      - Bevil! - gritei, correndo para fora da casa. - Rápido, venha cá!
      Ele veio correndo.
      - O que houve?
      Mostrei-lhe as cartas.
      - Ela foi embora, Bevil. Uma dessas cartas é para mim. Fugiu com Benedict Bellairs.
      - O quê? Quem?
      Tinha me esquecido, é claro. Não havia ninguém naquela casa, apenas eu e possivelmente Dinah, a saber da existência daquele homem.
      - Gwennan fugiu com um ator.
      Ele arrancou de mim a carta e leu.
      - Ela vai casar. Mas e Harry? O que é que significa isso?
      Dei uma olhada nele e percebi no seu rosto sinais de que começava a compreender, da expressão de surpresa passava à de raiva.
      - Você sabia disso - acusou-me. Fiz que sim com a cabeça.
      - Então por que não contou? Deixou que ela fizesse uma coisa dessas. Temos de trazê-la de volta.
      Encaminhou-se para a casa, enquanto eu, me sentindo ferida e culpada, fui atrás dele. Aos berros, gritava chamando o pai.
      Sir Endelion, seguido por Lady Menfrey, apareceu na escada.
      - Gwennan fugiu com um ator - berrou Bevil.
      - O quê?!
      Bevil se voltou na minha direção.
      - Harriet vai contar. Ela sabe de tudo.
      - Harriet!
      Era um grito lamuriento vindo de Lady Menfrey.
      - Não sabia que ela ia fugir - disse eu.
      - Mas e o casamento... - estava começando a dizer Lady com voz embargada.
      - Vou trazê-la de volta - declarou Bevil. - É melhor que eu saia logo. Qual é mesmo o nome desse homem? Ah, aqui está. Abra sua carta.
      - Carta? - disse Sir Endelion.
      - É - disse Bevil furioso. - Ela fez tudo no melhor estilo, deixando cartas para a família... e para Harriet.
      Aí, me senti ofendida. Ele desviava a raiva que sentia de Gwennan para mim.
      - Receio que esteja sem meus óculos - disse Sir Endelion.
      Sua voz era trêmula, e percebi então o quanto estava abalado e confuso.
      Bevil pegou o envelope da mão dele e leu em voz alta. O conteúdo era quase o mesmo da minha. Ela amava Benedict Bellairs, havia fugido com ele, porque não podia levar avante o casamento com Harry. Esperava que a perdoassem e entendessem.
      - Entender! - gritou Bevil. - Entendemos sim. Entendemos que ela é uma cretininha muito egoísta. Perdoar! Espere só até que a gente ponha as mãos nela.
      - É mesmo horrível - disse eu - preferir casar por amor e não por conveniência.
      Bevil me lançou um olhar cheio de desprezo. Enquanto isso, Lady Menfrey ficava soltando lamentos.
      - Que coisa horrível... horrível...
      - Ouçam - disse Bevil rispidamente - estou indo sozinho para Plymouth, e até que eu volte guardem segredo de tudo. Vamos trazê-la de volta, e o negócio pode parar por aí. Guardem segredo disso junto dos criados.
      - Você não vai encontrar mais a companhia em Plymouth - falei. - Ela partiu ontem.
      - Qual é o nome da companhia?
      Aí, eu disse para ele.
      - Vou descobrir para onde foram, e ela vai voltar comigo - ele falou, com o semblante carregado.
      - Ela não virá.
      - É o que veremos.
      Ele partiu para Plymouth, e eu fui com Sir Endelion e Lady Menfrey para a biblioteca. Ali, ficaram os dois a me fazer perguntas. O que é que eu sabia? Como era o homem? Olhavam-me com expressão de censura. Fui eu quem ajudei Gwennan a enganá-los.
      Estava me sentindo uma desgraçada; não só porque deixara-os desapontados comigo, mas sobretudo porque Bevil agora me desprezava. Nunca o vira antes com raiva, mas sabia agora que podia ficar com raiva de verdade.
      Contei-lhes então nossas idas ao teatro; já não era necessário esconder mais nada.
      - E você estava lá com ela, quando era na costureira que deviam estar.
      Aí, perguntei aos dois com raiva como é que puderam acreditar que se precisasse de tanto tempo para experimentar vestidos.
      -- Dinah devia ter nos comunicado - disse Lady Menfrey.
      - Mas a senhora sabe como é Gwennan. Ela proibiu Dinah de fazer isso.
      - É - suspirou Lady Menfrey - sabemos como ela é.
      Sir Endelion, para surpresa minha, parecia um homem vencido. Imaginei que estivesse pensando no escândalo que desembocou na sua renúncia ao Parlamento.
      - E você, Harriet?
      - E eu podia contar histórias a respeito de Gwennan? - protestei.
      - Mas veja só o que aconteceu. Ah, quando Bevil chegar aqui com ela...
      - Mas ela não virá.
      - Ele fará com que venha. Bevil sempre dá um jeito.
      - E Gwennan também.
      Lady Menfrey suspirou, e muitas e muitas vezes, pensei, já deve ter se deparado com a natureza selvagem e intratável de sua família.
      Nisso, chegou Harry Leveret querendo saber por que não tínhamos ido a Chough Towers.
      A carta de Gwennan para ele tinha de ser entregue. Até hoje não gosto de me lembrar de seu rosto, enquanto estava lendo.
      Parecia acabrunhado. Pobre Harry! Gostava realmente de Gwennan com todo amor.
      Aquele dia ficou sendo para mim como um horrível sonho. Bevil chegou sozinho, pálido e furioso. Tinha ido a Paddington, para onde, lhe informaram, a companhia de teatro se fora. Mas lá, quando descobriu os atores, ficou sabendo que Benedict Bellairs não trabalhava mais com eles e que seu paradeiro era ignorado.
      Não havia mais nada a fazer... pelo menos por enquanto.
      Os Leveret chegaram, e a Sra. Leveret chorava. Eu não agüentava olhar para Harry, e a todo momento um deles começava a me bombardear com perguntas. Não tinha nada para contar, a não ser que havia ido ao teatro com Gwennan, onde ela conheceu um ator chamado Benedict Bellairs. Tinha de ficar repisando sempre as mesmas coisas, até que chegou um momento em que precisei gritar para que me deixassem sair.
     
     
    Capítulo 5
     
      Em Londres, na minha casa, me sentia em miserável estado. Havia perdido Gwennan, Bevil estava furioso comigo, e, como perspectiva, uma temporada comandada por tia Clarissa.
      Ela sentou em frente a Jenny na sala de visitas, toda de preto, numa demonstração evidente de censura - ela, a irmã, ainda não havia tirado o luto, enquanto a mulher não pensava que fosse mais necessário mantê-lo. Parecia um corvo azarando um periquito.
      Sua voz era alta e estridente.
      - Naturalmente, esta casa seria ideal. Eu me recordo das festas que meu irmão costumava dar. Já vi essas salas decoradas com arranjos primorosos de flores e até mesmo um lago com peixes na biblioteca.
      Minha madrasta, nervosa, agitava as mãos, mas seus gestos de indefesa, que tanto encantaram o meu pai, em tia Clarissa não surtiam o menor efeito.
      - É claro que nem sonho usá-la. Uma casa que há bem pouco tempo passou por doloroso transe.
      - Todas as casas de vez em quando passam por transes dolorosos - disse, me intrometendo, em socorro de Jenny. - Se todas deixassem de dar festas, restariam bem poucas.
      - Estava falando com sua madrasta, Harriet.
      - Ora, titia, não sou mais criança para falar só quando me mandam.
      - Enquanto não for declarada oficialmente maior, vou considerá-la criança.
      - Então ficarei muito feliz ao ultrapassar a barreira encantada.
      - Olhe Harriet, devo lhe dizer que não acho graça nessa sua língua ferina.
      - E o máximo que posso fazer é fingir que foi domesticada.
      - Isso é digressão absurda. Mas o que dizia é não ser possível usar a casa, e assim sugiro que Harriet vá morar comigo, até que a temporada termine.
      Jenny me olhou desanimada. Compreendi que tinha de ser como tia Clarissa queria.
      A casa de tia Clarissa, atrás de uma estrada, tinha dois portões - um de cada extremo de uma alameda semicircular, que levava à porta da frente. Era maior do que a nossa, porém muito menos elegante. O marido dela não tinha sido tão rico como meu pai, e creio que ela sempre se ressentiu desse fato, e acho mesmo que isso muitas vezes foi jogado na cara do pobre coitado. Há uns cinco anos, depois de ter estado muito tempo doente, morreu, e sua morte foi anunciada como um alívio para o pobrezinho. Acredito que tenha sido mesmo.
      Com ar desdenhoso e condescendente, Sylvia e Phyllis vieram me cumprimentar, dando as boas-vindas. E, realmente, eu não era ali uma rival, servindo apenas para realçar os tons maravilhosos de pele e cabelos das duas.
      A casa vivia num eterno redemoinho, com atividades por todos os lados. Tinha pena da Srta. Glenister, a costureira, que trabalhava desde a manhã até tarde da noite num dos sótãos, promovido a quarto de costura. O tormento de sua vida era minha tia e suas filhas, e não podia haver maior desastre, se Sylvia, por acaso, não gostasse do feitio de uma manga, ou se Phyllis, que escolhera determinada cor de renda num vestido, resolvesse de repente que estava achando aquilo horrível. Lá a Srta. Glenister era o bode expiatório, o saco de pancadas de todas elas. Algumas vezes cheguei até a pensar que fosse atirar nelas seus alfinetes e panos, e depois pedir as contas. Mas, para onde iria? Ser empregada de outra família, que cobraria as mesmas obrigações e descarregaria sobre ela idênticas acusações?
      Se fazia alguma coisa para mim, me dava por satisfeita, o que nem sempre era verdade; mas era impossível trazer mais problemas para ela.
      Nessas ocasiões é que minhas primas cobriam os lábios com as mãos, escondendo seus risos para depois dizer:
      - Bem, Harriet, eu não ligo muito para isso e acho que você também não dá muita importância, não é?
      A Srta. Glenister costumava então pedir desculpas por elas, dizendo-me:
      - É porque são muito bonitas; a gente tem que entender que queiram sempre tudo do melhor.
      E nisso, os guarda-roupas iam se enchendo de vestidos. Vestidos de baile em profusão, pois, conforme dizia tia Clarissa, seria um desastre ter um vestido reconhecido porque foi usado muitas vezes.
      - Isso quer dizer que só usamos uma vez um vestido? - perguntei.
      - Que disparate - respondeu minha tia.
      - Mas não seria prudente usar duas vezes, não é? Pode ser que haja gente esperta que reconhece um vestido depois da primeira desfilada com ele.
      - Por favor, Harriet. Se pensa que está sendo inteligente, saiba que não está. Na verdade, está sendo é muito idiota.
      No entanto tinha conseguido perturbá-la, e isso me fazia sentir um certo prazer rancoroso.
      Não perdia oportunidade de minar sua confiança nas filhas e deixá-la incerta do sucesso que fariam na feira de casamentos, que era como eu chamava a temporada. Mas sentia vergonha disso, dizia para mim que desprezava todo esse negócio e, ao mesmo tempo, sabia que, no fundo, se fosse bonita, charmosa, atraente, provavelmente, do mesmo jeito que minhas primas, estaria interessada em vestidos e também ávida de sucesso. Havia perdido a confiança que uma vez adquiri, e a criança emburrada que fui no tempo de meu pai cada vez mais se mostrava. Possuía duas personalidades: uma, alegre, esperançosa e até simpática; outra, mal-humorada, cáustica, sempre na defensiva, à espera do ataque. Costumava me comparar com as duas figurinhas de madeira do barômetro que ficava no quarto de estudo de minhas primas. Havia uma mulher, de vestido primaveril e guarda-sol para indicar tempo bom; e um homem, vestido soturnamente, indicando tempo impreciso, chuvoso. O tempo bom era Bevil e Menfreya, o ruim, minha tia e minhas primas.
      Quanto mais me desprezava, mais me sentia miserável. Havia porém uma diferença daquele tempo - minha infelicidade não se manifestava mais por silêncios casmurros, eu simplesmente agora fazia uso de minha língua afiada para feri-las e acabar com sua alegria.
      Entretanto, quem mais me feriu foi a costureira, que só recebia brutalidades de minhas primas e, de mim, delicadezas, mas mesmo assim preferia fazer os vestidos delas; derramava lágrimas nos babados e franzidos, mas dedicava-lhes respeito e admiração.
      O que estou fazendo aqui? Era o que costumava me perguntar naqueles dias.
      Fomos devidamente apresentadas, e estava dada a partida para uma série de programações.
      O que mais poderia fazer agora, senão tentar escapar da tagarelice idiota delas quando estudavam, numa lista, os nomes dos convidados?
      - Precisamos tentar esse. Ele faria qualquer festa.
      - Um dos partidos mais bem qualificados de Londres. Dono de um título de barão e de grande fortuna.
      - Melhor mesmo do que o conde, meu bem, mas ele é obrigado a manter suas imensas propriedades em boas condições, e você pode ter certeza de que está procurando uma bela fortuna. Algo bem melhor do que nossos dotes. Se ao menos seu pai tivesse... Bem, temos de tirar o melhor partido com o que temos. Lorde Bars é um homem encantador... e rico... e como! Claro que conheço George Crellan, é filho de um conde... mas o quarto filho, queridinhas! Se fosse o segundo, ainda vá lá, mas o quarto! Honorável Sra. Crellan! É, está bem. Mas gostaria de um título mais sólido... alguma coisa hereditária. Honorável é coisa duvidosa, sempre achei. Há ocasiões até que não é de bom gosto usar esse título. Assim, devemos pensar em Lorde Bars...
      Ela viu meus lábios fazendo uma expressão de desprezo.
      - Se pensa que pode ter uma chance com o conde, está muito enganada. Se seu pai não fosse idiota em casar com aquela mulher... e deixar para você só a guarda do dinheiro... Oh, Santo Deus, que confusão! Pensei que quando fosse debutar, pelo menos fosse dispor de seu dinheiro. Bem, só se ela morresse... mas é ainda tão moça...
      Dei uma risada alta.
      - Harriet.
      - Tudo isso é tolice e provavelmente não significa nada - falei. -- Não me interessa o conde, nem Lorde Bars e nem o Honorável George Crellan. E digo isso com toda a sinceridade.
      - Não se preocupe - respondeu minha tia com raiva - não terá mesmo chance para isso.
      - E, se esses senhores tiverem um pouco de bom senso, minhas primas também não terão.
      Nada mais havia a fazer senão deixá-las, e como desejava fugir daquela bobajada toda, fui visitar minha madrasta.
      Jenny ficou feliz por me ver, e achei-a mais bonita e mais animada do que de costume.
      - Bevil Menfrey veio ontem aqui - disse. - Que rapaz maravilhoso! Ele estava muito divertido.
      E logo imaginei a figura de Bevil fazendo charme, como era de seu hábito, sempre que encontrava uma mulher bonita.
      - É lógico que perguntou por você.
      - Acho que não anda muito satisfeito comigo - respondi. - Pensa que sou meio culpada do que aconteceu a Gwennan.
      - Ora, sei que não pensa assim. Seria injusto, coisa que ele nunca seria.
      - Pois foi, me botando a culpa. Tudo foi bem claro.
      - Isso, naquele momento de tensão. Devia estar então muito abalado. É claro que ele não ia esperar que fosse inventar histórias. Perguntei se conseguira notícias de Gwennan, e me respondeu que não. Contou também que havia feito umas investigações, mas que não deram em nada e esperava que a estas horas ela já tivesse casada e, assim, não era mais o caso de trazê-la de volta.
      - Ele falou de mim?
      - Ah, falou sim. Disse: Harriet sabia do plano... jurou guardar segredo. Se pelo menos tivesse nos dado uma pista, mas claro que nunca faria isso.
      - Então acha que entendeu?
      - Lógico! Ele teria feito o mesmo. Contou ainda que tinha vindo para algumas de suas festas, que foi sua tia que enviou os convites.
      Sabia que, no momento, minha alegria era visível, mas ao olhar para minha bela madrasta, com os olhos a brilhar quando falava de Bevil, a pele luminosa, fresca, de uma clareza transparente, fora do comum, fazendo-se desejável, foi aos poucos apossando-se de mim um enorme mal-estar.
      Dias depois, fomos ao baile que Lady Mellingfort dava para sua filha, Grace. Passou-se o dia inteiro nos preparativos para esse baile, e eu me sentia desapontada até a alma com o fato de Bevil ainda não ter me visitado na casa de tia Clarissa, como havia esperado que fizesse.
      Sozinha no meu quarto, praticava passos de dança. Podia dançar. Tinha provado isso na salinha mal-assombrada de Menfreya e no baile em Chough Towers, mas me achava sem graça.
      Só havia uma razão para que quisesse ir ao baile: Bevil, que poderia estar presente.
      Meu vestido era verde, e minhas primas tiveram a gentileza de me informar que essa era uma cor de azar. Realmente, enquanto me vestia, tive certo receio; afinal, tinha escolhido a cor mais por bravata do que por qualquer outra coisa. Seda verde para um vestido de baile é demais, e ainda por cima feito pela Srta. Glenister com seus dedos picados e seus olhos quase cegos.
      Achei que minha aparência era pobre, e, pelas expressões de satisfação nos rostos de minhas primas, percebi que também pensavam isso.
      Sylvia estava de rosa e prata, e Phyllis, de azul e prata. A fita prateada era a mesma para as duas; ficava mais barato comprar em quantidade. Tinha de admitir que, ao jeito delas, estavam muito bonitas - e isso me fez sentir mais ainda desenxabida. A empregada delas, compartilhada por todas nós, lhes penteou os cabelos de um modo maravilhoso: as duas tinham um cacho caindo sobre o ombro. Ninguém diria que aquele cacho fosse resultado de papelotes postos na noite anterior, coisa inconfortável e grotesca, mas tia Clarissa era contra permanentes. Quanto a mim, fui eu mesma que escovei meus cabelos, e fiz o coque que sempre usava no alto da cabeça.
      - Ficou parecendo mais velha - disse Phyllis alegremente.
      - Pelo menos - respondi - não vamos ser três bonequinhas saídas de uma árvore de Natal.
      - Inveja - sussurrou Sylvia.
      - Não, apenas a verdade - falei.
      Certamente não estava num dos meus melhores dias. Mesmo o ruge, que minhas primas estavam usando, tinha desprezado. Iria modestamente, sem artifícios para deixar claro que não estava ligando nem um pouco.
      - Está com cara de governanta - disse Sylvia para Phyllis.
      - Só que governantas não vão a bailes - falei, e depois acrescentei num tom de voz ríspido: - Sylvia! Phyllis! Suas maneiras não estão de acordo nem um pouco com seus lindos vestidos.
      - O que significa isso?
      - Estou me comportando como uma governanta, já que pareço tanto com uma.
      Ficariam admiradas se pudessem saber do nó que tinha na garganta e dos meus olhos que ardiam com vontade de chorar. E era isso que gostaria de fazer: atirar-me numa cama e chorar. Estava me sentindo muito infeliz, mas a infelicidade era como uma recordação do passado, com o meu pai demonstrando claramente não se importar comigo e com minha tia não sabendo o que fazer para encontrar marido para mim.
      A carruagem chegou, e nos pusemos a caminho. Observava tia Clarissa, satisfeita, com os olhos pousados nas filhas, achando-as encantadoras.
      Perto da casa de Lady Mellingfort, em Park Lane, entramos no caudal das carruagens que conduziam os outros convidados ao baile. Deveria ser um dos mais importantes da temporada, e tia Clarissa, naquele momento, se achava dividida: por um lado, sentindo prazer por ter sido convidada, por outro, imaginando no que faria para competir com tamanho esplendor, quando chegasse sua vez de receber.
      Gente na rua, maltrapilhos de rostos descarnados, espiavam para dentro das carruagens. Cheguei a me arrepiar. Sempre detestei contrastes. Não sabia se "nos odiariam, ali, sentadas, bem-nutridas, com aquelas roupas faiscantes, cujo custo daria para alimentar uma família por toda uma semana.
      Fiquei feliz quando a carruagem andou, e chegamos à porta da casa.
      A primeira visão foi a do tapete vermelho, dos lacaios de libré empoados, das palmeirinhas em vasos brancos, dos olhos cheios de ansiedade das mamães ambiciosas e o zunzum de vozes excitadas.
      Em seguida, subimos por uma escadaria larga para sermos recebidas por Lady Mellingfort que, de cetim branco, diamantes e plumas, esperava pelos convidados.
      Não me enganara, era o próprio pesadelo que havia imaginado. Mães que se cumprimentavam e se congratulavam mutuamente pelas encantadoras filhas que tinham, olhos atentos para qualquer beldade fora do comum que surgisse e dando o máximo de si mesmas para atrair a presa.
      No meu caso, não infundia medo; no momento em que lhes era apresentada, podia até ler o pensamento delas: filha de Sir Edward Delvaney. Não é nenhuma beldade, e como o seu pai casou outra vez... não existe aí dinheiro. Está fora do páreo.
      Ali não era o meu lugar, e ansiava pela hora das despedidas e de agradecer à nossa anfitriã. Como então me ficava parecendo atraente o meu quarto!
      Aconteceu o que temia. Fui apresentada a um ou dois rapazes, que me olharam de modo especulativo. O mais velho era totalmente sem graça. Presumo que minha fortuna, mesmo exígua, pudesse ter algum interesse para ele. Desajeitadamente dancei e consegui conversar um pouquinho, mas como não fiz nenhum esforço para manter a conversa, acabaram desaparecendo.
      Num determinado momento, vi Sylvia e Phyllis dançando e não me senti nada bem, sabendo que elas também tinham me visto. Riram para mim com ar de piedade, que não escondia de modo algum a satisfação que estavam sentindo.
      Não me importo com o que estejam dizendo, mas prometi a mim mesma que jamais voltaria a um desses bailes idiotas.
      Foi então que vi quando ele se encaminhava na minha direção. Sabia que muitas das rapinas, das mamães ali sentadas, estavam de olhos fixos nele, mas ele vinha caminhando com o ar mais alheio do mundo. Se não era o mais bonito, certamente era o rapaz mais charmoso do baile.
      - Harriet! - disse num tom de voz ouvido por todos ali por perto e fazendo com que cabeças se voltassem e olhos se levantassem. - Há meia hora que ando à sua procura.
      - Bevil! - gritei, e na voz estava toda a minha alegria e prazer, que não passaram despercebidos pelas pessoas que nos observavam.
      Ele veio se sentar ao meu lado.
      - Devia ter chegado mais cedo, mas fiquei retido no Parlamento.
      - Não tinha idéia de que viesse.
      - Não sabia ao certo se ia poder. Mas soube por Tony Mellingfort que sua tia e todas vocês foram convidadas. Aí, resolvi vir, mesmo chegando fora de hora. Como é, não está contente de me ver? Puxa, mas que barulho...
      Nos primeiros momentos, estava me sentindo feliz demais para poder falar. Mas, depois, com voz calma falei:
      - Bem, suponho que é o que se espera num lugar desse... música e tagarelice.
      - Na verdade, sempre que posso, evito esse tipo de coisa.
      - E eu também. Mas para você é mais fácil do que para mim. Teve notícias de Gwennan?
      - Não - respondeu - e devo me desculpar, não é? Mas, entenda, estava com uma raiva danada e achei que isso teria sido evitado se nos tivesse contado alguma coisa. Mas claro que compreendo, ela deve ter depositado confiança em você, e sei que não seria capaz de trair uma amiga.
      - Que bom que você possa entender.
      - Você chegou a ver aquele camarada, não é? Oh, Deus meu, que barulho! Vamos procurar um lugar mais quieto?
      Pegou na minha mão e me deu o braço em seguida. Enquanto estávamos indo para um canto protegido por umas palmeiras, diversos olhos ficaram nos acompanhando.
      - Bem, isso aqui está melhor.
      - Longe da turba enfurecida - murmurei, já começando a ficar mais espirituosa.
      - Mas não o suficiente. Agora me diga, esse ator, como ele é?
      - No palco, só vi uma vez, e, depois, por pouquíssimo tempo nos bastidores.
      - Mas que impressão teve dele, Harriet?
      - É difícil dizer. Era tão ator que parecia sempre estar representando um papel, no palco e fora dele.
      - Não sei o que será dela.
      - Ela sabe como se defender.
      - Por acaso ela tem escrito e pedido a você para nos contar? E se tivesse, não contaria, não é? - disse, dando um sorriso.
      - Não. Mas isso posso lhe dizer: ela não escreveu.
      - Fico sem saber se isso é bom ou mau sinal.
      - Pode ser os dois.
      - Não queira me enganar, Harriet. Se Gwennan pudesse se gabar de qualquer coisa, já teria escrito. Sempre fez isso, não é?
      - É, mas pode estar com medo de você descobrir uma pista e tentar trazê-la de volta.
      - Isso não podemos fazer... se ela estiver casada. Bem, mas se souber de qualquer coisa, me avise, hein? Claro, se não estiver com a palavra comprometida.
      - Lógico que sim, Bevil!
      - Bem, é isso aí. Agora, fale de você. Sei que está morando com sua tia. Soube quando visitei sua madrasta, outro dia.
      - É verdade, e vou me sentir muito feliz quando tudo isso terminar. Odeio a coisa toda.
      - Eu também.
      - Mas você não tem necessidade de vir.
      - Engano seu, Harriet. Tenho muita necessidade de vê-la. Sabe que é a moça mais inteligente e divertida que conheço?
      - Sei que você sabe como ninguém fazer elogios.
      Aí, ele se inclinou e me deu um beijo na ponta do nariz. Nunca haveria uma felicidade igual. Como pude pensar em não querer vir ao baile de Lady Mellingfort?
      Começamos então a falar de Menfreya, e, enquanto estava sentada com Bevil, ali naquele cantinho, via muradas com ameias, lembrando de um velho relógio numa torre, ouvindo o marulho de ondas e me vendo cavalgar ao lado de Bevil, atravessando bosques e veredas. Estava ébria de felicidade.
      Mais tarde, fomos à sala onde a ceia estava sendo servida; para desgraça minha, encontramos tia Clarissa e Sylvia, que estava desacompanhada, e fui o suficiente impiedosa para notar isso.
      - Ora, o Sr. Menfrey! Que prazer. Esta é minha filha Sylvia.
      Senti naquele instante uma fisgada. Olhava para Sylvia na sua maneira acariciante e envolvente, que era tanto dele como do pai, sempre que encontravam uma mulher bonita.
      Aí, Sylvia disse:
      - Eu também tenho muito prazer, Sr. Menfrey. Ouço muito falar a seu respeito.
      - Então há prazer por toda parte. Harriet, a noite toda, não conseguiu falar de outra coisa a não ser das lindas primas.
      Respirei aliviada. Sorria para mim. Tinha compreendido a situação.
      Lady Mellingfort achou que seria mais divertido para os seus convidados se eles mesmos fossem se servir no buffet, e Bevil, então, se ofereceu para trazer a comida enquanto ficávamos esperando sentadas.
      - Leve Sylvia com você para ajudar. Vá, meu bem.
      Fiquei observando os dois se afastarem e odiando minha tia. Mas ela também me odiava.
      - Com efeito, Harriet - começou ela a dizer, controlando a voz - as pessoas já estão falando!
      - E o que é que a senhora esperava? Não estamos num mosteiro onde se tem de fazer silêncio.
      - Harriet, ouça!
      - Estou ouvindo.
      - Seu comportamento é vergonhoso.
      - Como?
      - Escondendo-se por aí com esse homem.
      - Escondendo? Ora titia, não há nada escondido. Podia-se perfeitamente ver através das folhas das palmeiras.
      - O que quero dizer é que isso simplesmente não se faz. Está aos meus cuidados, e estou muito desgostosa com o que está fazendo. Você monopolizou o Sr. Menfrey. Não lhe ocorreu que outras pessoas também poderiam estar querendo falar com ele?
      - Não, porque a fortuna dele é pequena, titia. Bem, é claro que um dia o título será seu, e acho que também a propriedade no campo, mas relativamente é muito pequena. Não dá para ser comparada com a dos condes e dos barões, nem mesmo com a do Honorável Sr. Crellan.
      - Você quer calar a boca? Bem, pelo menos ele e Sylvia parecem que estão se dando bem.
      E estavam. Com melancolia, observava os dois rindo e escolhendo as iguarias do buffet, assistidos pelos lacaios empoados de Lady Mellingfort.
      - Oh, aí estão eles. Que coisas deliciosas o senhor nos trouxe, Sr. Menfrey! Por favor, sente-se aqui. Sylvia, você, querida, sente-se ali.
      Bevil puxou sua cadeira um pouco mais para perto da minha.
      - Espero - disse ele sorrindo - que isso esteja do seu gosto.
      Com minha tia, foi encantador, e com Sylvia adotou uma atitude meio de flerte, que nele parecia inevitável. Não é que a noite tenha sido propriamente estragada, mas tinha sido expulsa do paraíso e sabia que, naquela noite, não teria mais chance de voltar para lá. Mas pouco depois já estávamos nos despedindo. Bevil aceitou o convite de tia Clarissa para ir à sua casa, e a carruagem partiu, nos levando por Park Lane afora.
      Durante o trajeto, permanecemos todas em silêncio.
      No meu quarto, atirei o vestido sobre a cadeira e me meti na cama; num meio torpor, comecei a me ver em Menfreya, olhando o mar e, depois, remando até a ilha onde Bevil esperava por mim; daí, me vi com ele a cavalo, cruzando bosques, rindo, conversando, até que, de repente, estávamos galopando, fugindo da perseguição de tia Clarissa e de Sylvia. Foi um sonho agradável, com leve sombra de dúvida e de desconfiança. Bem o reflexo do que se passou comigo no baile de Lady Mellingfort.
      No dia seguinte, tia Clarissa sugeriu que fosse visitar minha madrasta, e de bom grado obedeci. Seu gesto atencioso me deixou surpresa, mas depois soube que, enquanto estive fora, Bevil nos fez uma visita, e que lhe foram servidos biscoitos e vinho na sala de visitas. Provavelmente, ela conseguira combinar isso sem que eu soubesse. Ao voltar e saber da coisa, a minha raiva era enorme.
      - Ele deu tanta atenção a Sylvia - disse Phyllis.
      - Pois eu pensei que você estava tentando flertar com ele - falou Sylvia. - Bem, ele desejava se divertir, e de qualquer modo ele ficou conversando comigo.
      Não agüentei ouvir o resto da conversa. Entretanto, meu momento de glória chegou no dia seguinte. Pouco antes de sairmos para mais um dos bailes da temporada, surgiu uma empregada trazendo uma caixinha com flores.
      Eram duas orquídeas, numa linda caixa, arranjadas com o maior bom gosto.
      - São para mim - disse Phyllis, antes dando um gritinho esganiçado. - Desconfio que sei quem mandou.
      Aí, apareceu minha tia toda agitadinha.
      - Flores? Ora, isso é muito comum. Não precisam ficar tão emocionadas. Acontece quando um rapaz quer demonstrar o seu interesse.
      Sylvia fechou a cara para a irmã e tentou arrancar-lhe a caixa da mão.
      - Como sabe que são para você?
      - O Sr. Sorrell ficou interessadíssimo por mim no baile de Lady Mellingfort e insinuou que gostaria de me ver novamente. Assim, isso não me surpreende nem um pouco.
      - Oh, então não vieram para você?
      Sylvia estava rindo, olhando para o cartão que tinha arrancado da caixinha.
      - São para você? - perguntou a mãe.
      Mas quando Phyllis foi tentar tomar o cartão de Sylvia, ele caiu aos meus pés e, olhando para o chão, vi o que estava escrito nele: "Hoje à noite estarei à sua espera. B. M."
      - Isso não pode ser - disse minha tia.
      Peguei a caixa. Nela, meu nome estava escrito de modo bem visível. Tirei as orquídeas e experimentei o efeito que faziam com o vestido.
      Minha tia pegou o cartão para ler.
      - B. M.! - berrou ela.
      - Espécimes do British Museum, é o que está pensando? Bem, mas eu tenho certeza de que me foram mandadas por Bevil Menfrey.
      Levei as orquídeas para o meu quarto e tive o maior cuidado em escolher um vestido que combinasse com elas. Escolhi um verde-pálido, e, quando experimentei as orquídeas nele, vi que tinha ficado lindo.
      - Não se deve dar tanta importância a um presente de flores - disse minha tia com voz suave.
      - Eu sei disso, tia - respondi, compenetrada.
      - Aquela sua amiga é bem louca, não é? Foi escandaloso o que fez. Fugir daquela maneira na véspera do casamento. Eles devem ter muita vergonha dela.
      - Talvez todos tenham esse hábito de fugir depois de ficarem noivos - sugeriu Sylvia.
      - É uma família de selvagens. É assim que sempre escutei serem chamados, e também não têm muito futuro. Soube, através de gente muito bem-informada, que andam cheios de dívidas. A propriedade deles, lá naqueles confins da Cornualha, está caindo aos pedaços. Gente desse tipo, duvido que iríamos conhecer se seu pai, Harriet, não tivesse sido membro do Parlamento por lá. E você sabe, ele ficou com a cadeira no Parlamento porque o representante anterior foi obrigado a renunciar por ter provocado um escândalo. E é esse homem que foi ser amigo de seu pai. Acho que, com uma família dessa, todo o cuidado é pouco.
      - É mesmo - respondi - por isso a senhora devia ter mais cuidado e não convidar parlamentares desse tipo para vir aqui à tarde, tomar vinho com biscoitos enquanto estou fora.
      Aspirava o perfume exótico das orquídeas, que me deixava completamente inebriada, e pouco estava ligando para o que diziam ou pensavam.
      Além disso, esperava que a noite fosse maravilhosa, porque estaria com Bevil.
      E não errei. Foi mesmo. Como já acontecera da outra vez, ele ficou comigo a noite inteira. Sabendo que meu defeito era um problema para mim, sugeriu que ficássemos conversando em vez de dançarmos. E foi o que fizemos, mas de uma maneira divertida, e eu estava me julgando brilhante, ou pelo menos pensava que era. Talvez a felicidade seja como um bom vinho forte, as duas coisas nos fazem pensar assim. Mas ele deu boas risadas, dando sem dúvida a impressão de estar se divertindo em minha companhia, pois não desgrudou de mim a noite inteira e revelou que se sentia feliz por me ver usando as orquídeas.
      O melhor da coisa é que eu sabia que nos observavam e faziam tudo quanto era especulação a nosso respeito.
      Seria possível, que logo no início da temporada, Harriet Delvaney, que não tem nada, mas nada mesmo, depois que seu pai casou com uma atriz, fosse a potranca que ia chegar em primeiro lugar?
      Era a glória.
      Comigo e Bevil tudo fícou muito evidente, porque estávamos sempre na companhia um do outro, e, assim, nada mais natural que as colunas sociais falassem de nós. Foi tia Clarissa quem me mostrou a notícia. Estava um pouco impressionada e um tanto invejosa do meu sucesso. Era inacreditável para ela que, sem ser mais rica do que suas filhas e com nem um quarto da beleza delas, fosse justo eu a primeira a aparecer no noticiário.
      Foi numa manhã, quando desci para o café e encontrei minha tia e filhas já sentadas à mesa.
      - Veja isso - disse tia Clarissa.
      - Hum, uma crônica do baile de terça-feira.
      - Leia o que diz.
      "Sr. Bevil Menfrey, membro do Parlamento por um distrito da Cornualha, é visto constantemente em companhia da Srta. Harriet Delvaney. A Srta. Delvaney é filha do falecido Sir Edward Delvaney, que foi representante do distrito, atualmente representado pelo Sr. Menfrey. Recordamos que Sir Edward morreu há cerca de oito meses, pouco depois de seu casamento. Será que esses dois encantadores jovens encontram prazer na companhia um do outro por causa da política... ou... ?"
      Dei uma risada em voz alta.
      - Com que então somos notícia.
      - Espero - disse Sylvia - que ele não esteja só se divertindo.
      - Ah, mas isso sei que ele está.
      - Ora, você está se fazendo de ingênua.
      - Eu, queridinha?
      - Realmente, Harriet, você está muito espevitada - disse minha tia, em tom de censura. - Isso pode transformar-se numa coisa séria.
      Não respondi. Aquele era um assunto sério. O mais sério do mundo.
      Alguns dias depois, Bevil fez uma rápida visita à casa de minha tia.
      Por sorte ou azar, escolheu uma hora em que titia e minhas primas também faziam visitas. Eu me encontrava no quarto e fiquei muito surpresa, mas alegríssima, quando a empregada apareceu, dizendo que ele aguardava na sala de visitas.
      - Chamando pela senhorita - disse com expressão maliciosa.
      As pessoas que trabalhavam em casa de minha tia, por causa das maneiras dela e de suas filhas, não simpatizavam nada com nenhuma delas; assim, agora se divertiam muito com o fato de tê-las suplantado com meu sucesso social. Claro que sabiam de tudo, e, sem dúvida, o assunto era fartamente comentado na copa e na cozinha.
      Mas, naquele momento, estava com o meu modesto vestido de risquinhas azuis e não sabia se teria tempo de trocá-lo. Olhei-me no espelho; como de costume meus cabelos não estavam penteados. Não tinha nada da moça que dava tudo de si mesma para aparecer nas festas com sua melhor aparência.
      - Diga ao Sr. Menfrey que dentro de alguns minutos descerei.
      Logo que a porta fechou, troquei o riscadinho por um de faille cinza, cujo corpete era separado da saia. Enquanto abotoava os colchetes, não parava de pensar nos minutos que passavam. Chegando ao último, lembrei-me do cabelo, e me detive ainda para penteá-lo. Nisso tudo, gastei pouco mais de cinco minutos, e estava consumada a transformação. Mas costumo pensar nesses cinco minutos como algo de grande significação na minha vida.
      Corri à biblioteca, encontrando Bevil de pé, com as costas viradas para a lareira. Segurou-me as mãos e permaneceu por uns instantes sorrindo para mim.
      - Que bom poder encontrá-la sozinha.
      - Mas minhas primas e minha tia não devem demorar. A não ser que por algum motivo se atrasem.
      - As moças têm sempre um motivo de atraso.
      Seus olhos demonstravam alegria, e tinha certeza de que sabia que eu havia demorado para poder trocar de vestido.
      - Está muito elegante, mas com essa confusão de colchetes, quatro mãos valem mais do que duas. Você permite?
      Aí, veio ficar atrás de mim e senti seus dedos abotoando o vestido. Mas então seus lábios tocaram no meu pescoço.
      - Bevil! - gritei.
      - Minha recompensa. Você deve saber que sempre tem de pagar pelos serviços que lhe são prestados.
      Continuei de costas, não querendo que meu rosto me traísse com seu ar de felicidade. Mas então ele falou, inesperadamente:
      - Que bom tê-la encontrado sozinha. Há uma coisa que preciso dizer para você.
      - O que é, Bevil?
      Ele me pegou pelo braço e fomos sentar no sofá.
      - Estou de saída hoje para a Cornualha.
      Fiquei muda, com meu coração batendo disparado e sentindo um aperto na garganta. O prazer de sua companhia nas próximas festas me seria negado, mas ali estava ele, querendo dizer uma coisa e tinha vindo para isso. Acho que sabia o que era, e se fosse o que estava pensando, ficaria na mais completa felicidade. O que queria é que ele me levasse para longe, para a Cornualha, longe de minha casa em Londres, para onde teria brevemente de voltar.
      - Tenho de ir para um comício lá. É fundamental minha ida, do contrário não iria.
      - Sei disso.
      - Sabia que a filha do político ia entender. Mas, Harriet...
      A carruagem tinha parado do lado de fora, e minha tia e primas estavam descendo. Ouvi, em seguida, a voz esganiçada de tia Clarissa:
      - Ande, Sylvia!
      Bevil me olhou, fazendo uma careta. Depois, quando entrou no hall, ouvi novamente sua voz estridente dizendo:
      - Ah, estão na biblioteca...
      E imediatamente irrompeu pela porta.
      - Ora, mas é o querido Sr. Menfrey. Que agradável surpresa!
      Aí, me senti murchar. A revelação esteve por um triz e passou. Bevil também parecia ter perdido a graça.
      Quando Sylvia e Phyllis apareceram, e que já estava, então, de todo arruinado o meu tête-à-tête com Bevil, procurei me convencer de que não tinha razão para ficar desanimada, afinal se estava a ponto de ser pedida em casamento, isso era só uma questão de tempo, tinha sido adiada e nada mais.
      No entanto comecei a pensar mais tarde na importância da fatalidade, da maneira como ela brinca com nossas vidas e o momento gasto na troca de um vestido riscadinho por um de fatile, que colocou toda uma série de questões para mim que por muito tempo no futuro iriam perseguir-me.
      Estava me sentindo inteiramente abatida depois que Bevil foi embora e pedi, então, para ir visitar Jenny. Em minha casa, subi para o quarto, onde encontrei Fanny.
      Estava com um ar infeliz, e perguntei se havia acontecido alguma coisa errada.
      - Soube de vocês pelos jornais - disse ela. - Estão insinuando um casamento e não estou gostando disso.
      - De que é que você não está gostando, Fanny?
      - Bem, agora está uma moça, e acho que não posso ficar mais falando como antigamente. Mas, assim mesmo, vou falar, porque para mim você será sempre a menina que criei... Afinal tomei conta de você desde que era bebezinho, não é?
      - Sei disso, Fanny. Mas como vê, não sou mais nenhum bebezinho. É possível que me case. Já tenho 18 anos, você sabe.
      - Não, não é isso, Harriet. É que estão ligando o seu nome com o desse... Bem, você sabe que gosto de pensar que um dia, quando tiver sua casa e os filhos chegarem, eles vão ser também meus.
      - E não tem por que isso não acontecer, Fanny.
      Ela parecia furiosa naquele instante.
      - É, não tem por que e é como vai ser. Mas o que quero é vê-la feliz e casada com um homem direito.
      - Certamente, não vai querer escolher meu marido, ou vai?
      - Nunca pensei em chegar a tanto, mas existem uns por aí que você sabe que não prestam.
      - Olhe Fanny, não estou percebendo o que está querendo insinuar.
      - É que está havendo uns disse-não-disse, zunzuns espalhados por aí, e eles nunca chegam às orelhas de quem têm de chegar. Mas não vou ficar dizendo coisas por pedacinhos, é melhor contar tudo de uma vez. Bem, de quem estou falando é do Sr. Bevil Menfrey. E não adianta ficar me olhando desse jeito de quem está com raiva. Já sei que não quer que se fale nada dele. E nem eu quero que você sofra. Mas antes sofrer um pouco agora do que muito depois. Agora, olhe aqui, não vá ficar zangada, estou mesmo muito preocupada. Fico o tempo todo pensando em como é fácil você cair num laço.
      - O que é que você sabe do Sr. Menfrey?
      - Que ele é um desses Menfrey, e isso já chega. São ruins, a ruindade está dentro deles, não há como esconder isso. Ah, eu sei que olhar para eles é bom, sabem encantar as pessoas, mas lá no fundo são ruins. Veja o que a Srta. Gwennan, só por capricho, acabou fazendo no último instante com o pobre do Sr. Harry... Ela é uma deles, uma Menfrey. É gente que não merece confiança.
      - Fanny, você sabe de alguma coisa sobre o Sr. Menfrey?
      Ela torceu a boca, abaixando os olhos.
      - Fanny! - disse, agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a. - Vamos, diga, estou pedindo.
      - Você não vai gostar...
      - Vou gostar ainda menos se tentar esconder alguma coisa de mim.
      - Mulheres. Pronto, é isso aí. Andam dizendo que ele sustenta uma amante numa casinha lá em St. John's Wood. Lembra-se da Srta. Jessie, a filha do médico? Pois ela agora é governanta numa casa em Park Lane, e soube que o Sr. Menfrey vai lá sempre, ele tanto freqüenta a sala de visitas como a copa e a cozinha.
      - Tudo isso é mexerico - gritei.
      - Pode ser, mas quando soube que você estava envolvida neles, aí agucei os ouvidos.
      - Por que está me dizendo tudo isso, Fanny?
      - Vou responder, contando uma coisa para você. Nunca falei do bebê que tive, não é? Não sei por que não conseguia falar. Podia contar coisas do orfanato, da tristeza de lá, mas do bebê não conseguia falar. Era uma menina. Foi quando deixei o orfanato e fui trabalhar numa casa, onde a arrumadeira tinha um irmão chamado Billy... Billy Carter. Ele era marinheiro, e nos casamos. Já estava casada há um ano quando o mar carregou com ele. Quando fomos para aquele lugar na Cornualha, toda essa história começou a voltar à minha cabeça. Ficava acordada de noite, ouvindo o mar, barulhento e bravo, e pensava: é o mar que roubou meu Billy. O bebê já estava a caminho, e eu dizia para mim que tudo ia melhorar depois dele nascer. Mas ele viveu apenas um dia. Disseram que foi pelas coisas que me aconteceram: o choque e todo o resto. Pensei que ia morrer, mas então fui mandada para você, para uma menina da mesma idade da minha e que tinha perdido a mãe. Está entendendo? Existia um bebê sem mãe e uma mãe sem bebê. Foi assim que tudo se ajustou. Fiquei como sua ama-de-leite e, dessa maneira, pude ter o meu bebê.
      - Oh, Fanny - disse, me atirando aos braços dela.
      - Meu bebê! - disse cantarolando e alisando meus cabelos. - A minha garotinha não ia ter pai, seria como você, se também não tivesse. Aí, porém, tudo ficou diferente. Eu já não chorava mais na hora de dormir. Agora estava ali o meu bebê para eu cuidar. Era como se tivesse caído do céu. Apesar de tudo, havia conseguido o meu bebê. Por isso é que acho que tenho direito de lhe dar conselhos, minha queridinha. Estamos muito ligadas, eu e você. E se visse que não é feliz, ia partir meu coração.
      - Fanny, querida, não pense que não entendo... e nem que não dou valor. Claro que ficaremos sempre juntas... e que meus filhos serão também seus. Mas você está enganada sobre Bevil e os Menfrey.
      Ela, com expressão de tristeza, abanou a cabeça.
      - E você, amorzinho, está enfeitiçada por eles. Pensa que não sei quem é você? Que não estou vendo como tudo vem acontecendo? Sabe que tenho razão, não é? Acredita no que disse?
      Tinha vontade de chorar. Não era justo que jogasse em cima de mim os seus problemas e, depois, ainda viesse difamar o homem que eu amava.
      Afastei-me dela e falei, então:
      - Não gosto de mexericos, Fanny, e sei que, se está preocupada, é por minha causa. Sempre soube que podia confiar em você, e você também sabe que pode confiar em mim. Mas posso conhecer os Menfrey muito melhor do que você pode.
      - Só sei que estou preocupada - continuava insistindo.
      Dei um abraço nela e acrescentei:
      - Será, Fanny, que ainda não aprendeu que posso cuidar de mim mesma?
      Ela apenas balançou a cabeça.
      Depois que ela saiu, fui sentar-me na beirada da cama. Era grande minha tristeza. Tinha fingido não acreditar nas acusações contra Bevil, mas meu bom senso me dizia que havia grande probabilidade de serem verdadeiras. Afinal, isso seria bem próprio dos Menfrey. Infidelidade, para eles, era tão natural como o ato de respirar. Seria do mais ingênuo romantismo se fosse acreditar que Bevil iria mudar toda uma maneira de ser, que formou durante a vida, só porque me encontrara. E eu sempre soube disso. Mas conservava uma tola esperança de que, se ele viesse a ser meu marido, iria transformar-se naquilo que desejava que fosse. E o que queria era que Bevil fosse exatamente o que é e o que sempre foi, exceto nisso: ser fiel a uma só mulher! E eu era essa mulher.
      Mesmo agora já me iludia. Como confiar em Bevil, se enquanto me fazia a corte - e não havia dúvidas de que estava fazendo - mantinha uma amante em St. John's Wood e ainda tinha tempo para estar apaixonado por Jessica Trelarken? Só com uma moral muito elástica se pode comportar desse jeito. Mas não era essa a moralidade dos Menfrey?
      Alguém capaz de tanta impostura podia servir de apoio para outra que desejava ardentemente construir uma nova vida? Como confiar num homem desses? Como me sentir segura com ele?
      E de segurança sempre precisei e sempre fui carente. É a busca desesperada do jovem e daqueles que são fracos. Foi-me negada pelo meu pai e achada em Fanny. E agora a mesma Fanny me avisava, tentando evitar o desastre de um casamento com um homem por ela considerado indigno, tal como fez uma vez - e eu me recordo disso - quando me segurou rápido para não cair num urtigueiro.
      Em pensamento, voltei à casa de minha tia.
      Estávamos no quarto de costura com a Srta. Glenister. Espalhados pela mesa, metros e metros de cetim branco bordado com florezinhas douradas. Tia Clarissa tinha comprado a fazenda por uma pechincha e exultava com o bom negócio que fizera. Enquanto a Srta. Glenister, muito nervosa, media, tentando calcular o tipo de vestido que daria a fazenda, Sylvia e Phyllis discutiam sobre em qual delas o cetim assentaria melhor.
      Só ouvia, como sempre fazia nesses últimos dias, interessada e divertida. Obrigava-me a pensar nessas banalidades, um modo de desviar o pensamento de coisas desagradáveis.
      - Quero mangas bufantes - cacarejou Sylvia.
      - Não ficam bem em você, é muito gorducha - falou Phyllis.
      - Talvez fosse a senhorita gostar de uma saia com babados, mas... é capaz de fazer com que fique parecendo muito atarracada.
      - Bem - berrou minha tia - chega de tanta desobediência, antes não tivesse achado essa fazenda. Primeiro a Srta. Glenister vai dizer o que se pode fazer, depois veremos para quem será.
      - Mas tem de ficar pronto para o baile de Lady Carront - disse Sylvia.
      - E é daqui a dois dias - falei.
      - Mas, se precisar, fico a noite toda para acabar o vestido - disse a Srta. Glenister com humildade.
      Peguei a fazenda, apalpando-a, e a encostei junto do rosto, me olhando no espelho. Sylvia riu e me lembrou:
      - Ela foi comprada para uma de nós, Harriet.
      - Eu sei, mas pensei que não havia nada de mau em vê-la de perto.
      - Para você, ela é muito delicada.
      - Talvez ela seja muito fina para todas nós - respondi.
      - E nós não somos finas?
      - Seríamos, se pudéssemos.
      - Inteligente como sempre. Mas sua inteligência não deu para impedir uma certa pessoa de dar no pé, não é?
      - Quem deu no pé?
      - Ora, você sabe muito bem quem. Depois de fazer com que ficasse caída, acho que ficou com medo de você querer outras coisas.
      Fiquei fula de raiva e ia investir contra ela, mas, naquele instante, se ouviu uma batida na porta, entrando em seguida uma das criadas.
      - Está aqui uma das empregadas de Westminster Square. Está chamando pela Srta. Harriet.
      Saí correndo e desci as escadas, encontrando Fanny no hall. Imediatamente percebi que havia qualquer coisa de errado... de muito errado.
      Por segundos, ela parecia procurar as palavras sem achá-las, palavras que expressassem a enormidade de uma tragédia.
      - É sua madrasta... Harriet.
      - Ela está doente?
      Fanny balançou a cabeça.
      - Está morta - respondeu.
     
     
    Capítulo 6
     
      Os dias passaram a ter uma atmosfera de total irrealidade. Não dava para acreditar que aquelas coisas realmente estavam acontecendo. Cenas ficavam passando pela minha mente, como quadros hediondos, pintados por algum louco. Via Polden, a Sra. Trant e os outros criados, todos amedrontados, emocionados. Mas, ao mesmo tempo que se horrorizavam, pareciam também se deliciarem com a tragédia. Estavam no centro de um daqueles dramas que conheciam antes só de leitura.
      Dizia-se que minha madrasta tinha sido envenenada. Iria haver inquérito, e depois é que se saberia ao certo a causa da morte, e se alguém era responsável.
      Tia Clarissa me mandou chamar à biblioteca. Parecia cinco anos mais velha desde que a vi pela manhã discutindo sobre o cetim bordado a ouro.
      - Harriet, tudo isso é horrível!
      - É mesmo, titia.
      - Estão dizendo que foi droga em excesso. Terrível isso! Vai ser um escândalo, e logo no meio da temporada. Para nós, pode ser um desastre.
      - Oh! - exclamei e me surpreendi dando uma gargalhada, mas acrescentei: - É verdade, a temporada.
      - Posso garantir que aqui não tem nada para rir.
      Pobre tia, coitada, sem ter sensibilidade, era também incapaz de reconhecê-la nos outros.
      - Quem vai querer ligar o seu nome a uma família que tem escândalos dessa ordem? Todas as nossas esperanças podem ir por água abaixo. Não podia ter acontecido em pior ocasião - concluiu.
      - Quando acontece, é sempre a pior ocasião. Será possível, tia Clarissa? Ela está morta... morta!
      - Não grite. Os criados podem ouvir. Estão certamente falando disso agora. Realmente, Harriet, acho que não devia ficar mais nesta casa. Afinal, se não estivesse aqui, o fato não estaria tão diretamente ligado a nós. É claro que vão publicar que ela era mulher de Edward. Oh, Deus, como ele pôde ser tão cego? Foi sempre tão prudente... só nessa coisa não foi, com sua paixão idiota por essa mulher abominável... E o afirmo, mesmo que esteja "morta". Meu Deus, enrabichado por uma mulher que logo depois dele morrer suicida-se ou, pior ainda, deixou que alguém a matasse.
      Enquanto ouvia o que ela dizia, sentia que estava ficando histérica, mas perguntei:
      - A senhora está me botando para fora?
      Como não respondeu, continuei:
      - Vou embora, é a primeira coisa que farei amanhã de manhã.
      De noite, estava esgotada quando fui para a cama, mas pouco dormi. Se conseguia adormecer, logo em seguida acordava sobressaltada, morta de medo. Com tantos pesadelos, dei graças a Deus quando o dia começou a clarear.
      A criada que entrou para me trazer água quente olhou-me cheia de curiosidade. Afinal, acontecimentos trágicos - morte súbita, suicídio... assassinato - estavam ligados à minha pessoa.
      Comecei a me lavar e me vestir vagarosamente, retardando a hora de partir. Que estranho era querer me deixar ficar na casa de minha tia. Sempre achei que estava doida para ir embora, mas assim como agia, dava-me mais ainda a sensação de desamparo. Nunca em minha vida me senti tão só, tão insegura e tão incerta do futuro.
      Ouvi uma batida na porta, e uma das empregadas entrou.
      - Estão chamando a senhorita na biblioteca.
      Respondi com um movimento de cabeça, fingindo que me olhava no espelho, ajeitando os cabelos, para que ela não visse meu abatimento.
      Já não era o caso de demorar mais. Fechei a mala. Estava pronta para partir. Minha tia já devia estar na biblioteca e iria me dizer que, no interesse de todos, era melhor que partisse, e que já mandara chamar a carruagem, que em 10 minutos estaria ali. Sem pressa, me encaminhei à biblioteca, encontrando tia Clarissa, mas ela não estava sozinha. Lady Menfrey vinha em minha direção, segurou minhas mãos e me beijou.
      - Harriet querida, coitadinha - ela murmurou. E aí vi Bevil se levantar de uma poltrona. Abraçou-me, apertando-me contra seu peito. Sentia-me desvanecendo. A transição foi rápida demais. Do desespero, do peso da solidão ao conforto da única pessoa no mundo com quem realmente queria estar. Não conseguia falar. Tinha medo que, se tentasse, irromperia em choro.
      - Harriet, minha querida - disse numa voz tão carinhosa que deu ainda mais vontade de chorar -, isso deve estar sendo terrível para você. Mas não precisa preocupar-se mais, estamos aqui para cuidar de você.
      Eu ainda não conseguia falar.
      - Harriet - era tia Clarissa - o Sr. Menfrey e sua mãe vieram da Cornualha. Estão aqui para ajudá-la até que termine esse caso desgraçado. Lady Menfrey deu a sugestão de ir com você para a casa do Sr. Menfrey, onde ficaria até se pensar numa outra coisa. E acho uma excelente idéia.
      O alívio que senti naquela hora devia transparecer no meu rosto, e me ouvi, numa voz de choro, dizendo:
      - Ah sim, sim... por favor.
      E assim fui parar na casinha de Bevil em Londres, situada numa rua sem saída, que fica no lado norte de Hyde Park, onde Lady Menfrey ficou comigo. Havia só duas empregadas: a arrumadeira e a outra, que além de governanta também era cozinheira, mas cozinhando só o que Bevil necessitava. O lugar não era mais do que um pied-àterre que ele adquiriu ao se eleger para o Parlamento.
      Lady Menfrey insistiu, logo que chegamos, para que fosse direto para a cama, pois achava que eu devia estar exausta, ainda que no momento não percebesse. Fui, submissa. Pensava ser o máximo me pôr aos cuidados dessa nobre senhora, e ainda mais que Bevil fazia tudo para demonstrar-me que estava preocupado com o meu bem-estar.
      Sobre a tragédia de minha madrasta conversamos pouco, falamos mais de Menfreya. Lady Menfrey, então, afirmou ser seu desejo, e o de Bevil também, que, tão logo terminasse o inquérito, eu voltasse com eles para Menfreya, a fim de me refazer do trauma sofrido.
      Emocionada, respondi que não havia nada que quisesse tanto e nada de que necessitasse mais. Ficou então combinado que iria para Menfreya.
      E passei a viver os dias que se seguiram à tragédia: eram longos e vagos, mas me sentia como já tendo algumas coisas a que me apegar. Não só porque via Bevil com freqüência, mas também porque estava constantemente em companhia de Lady Menfrey, cuja única idéia parecia a de me fazer sentir que se preocupava comigo do mesmo modo que com uma filha. Muito serena, foi a melhor companhia que podia ter tido. Ela, a herdeira raptada por Sir Endelion, que romanticamente se apaixonou por ele e que foi obrigada a refrear os seus ideais românticos para poder conviver com um homem infiel que, afinal, se apaixonara irresistivelmente, não por ela, mas pelo seu dinheiro. Aqui ainda estava bonita, de beleza diferente da dos Menfrey - calma, de feições clássicas, nobre, delicada, e diria, ainda, resignada. O resultado, sem dúvida, de uma vida de concessões para se ajustar aos modos selvagens dos Menfrey - irreverente, talvez até egoísta e mercenário - mas ainda assim as pessoas mais encantadoras do mundo.
      E lá estava também Bevil, ansioso a meu respeito, preocupado com o meu conforto, terno, numa atitude sugerindo sentimentos reprimidos. Esquecia as mãos apoiadas no meu braço, os olhos me acariciando e um jeito de quem espera, muito significativo para mim. Era como se já estivesse noiva, de casamento marcado. E tinha certeza de que cedo isso aconteceria. Também Lady Menfrey, com suas maneiras, deixava entrevista essa idéia, e quando falava de Menfreya, se referia como se já fosse o meu lar.
      Foi como passei aqueles dias de tensão, quando os Menfrey procuraram sobrepor a imagem de tragédia por outra, de que apesar de tudo se vivia feliz.
      E conseguiram. Por isso, amei os dois mais ainda. Lady Menfrey, como a mãe que nunca tive, e Bevil, como nunca alguém poderia amar tanto.
      Bevil me disse que não seria necessário o meu comparecimento ao inquérito. Seria desagradável, e, além do mais, eu não estava em casa quando a tragédia ocorreu. Desejava que fosse ele a se ocupar de todas as providências que julgasse necessário.
      - Logo que terminar - disse-me - você deve ir para Menfreya. Pode viajar com mamãe, e me juntarei a vocês dentro de poucos dias.
      Respondi-lhe dizendo que não sabia como agradecer aos dois e o que faria se tivesse de ter passado esses dias em minha casa.
      Bevil segurou minha mão e a apertou num gesto tranqüilizador.
      - Bem, sabe agora que com os Menfrey está segura, não é?
      Achei que, naquele instante, estava a ponto de declarar-se, mas não o fez - não com palavras, só com os olhos, mostrando-se muito terno e também como se quisesse me proteger para sempre.
      No dia do inquérito, o próprio Bevil e Lady Menfrey estavam visivelmente apreensivos, embora na minha frente tentassem disfarçar.
      Lady Menfrey passou a maior parte da manhã no seu quarto, preparando a viagem, pretendendo partir no dia seguinte.
      - Vou precisar de algumas coisas - falei. - Vou ter de ir...
      Ela balançou a cabeça e disse:
      - Não tem necessidade disso. Escreva da Cornualha e mande aquela sua empregada pegar tudo quanto precisar.
      - Farei assim. Mas a casa, o que é que vai ser dela agora? Acho que nunca vou querer entrar lá outra vez. Nunca vou conseguir esquecer...
      - Por enquanto não há necessidade de se preocupar com essas coisas. Deixe como está. Existe, é claro, o problema dos empregados, e você vai precisar de ajuda nisso. Meu marido e Bevil podem ajudá-la. Mas, por hora, deixe tudo como está. A única coisa a fazer é ir embora... Tão logo acabe esse negócio.
      - Tem momentos que penso que nunca vai acabar.
      - Meu bem, o que está querendo dizer?
      - Tenho a impressão de que nunca vou esquecer... de que vou ficar com isso sempre na cabeça.
      - Uma tragédia sempre dá essa impressão, se é com a gente que acontece.
      - Para mim é um descanso deixar as decisões com a senhora.
      - E eu espero que sempre nos permita ajudá-la assim.
      Tive, então, a certeza de que, em breve, seria a mulher de Bevil.
      Era o dia do inquérito, e Bevil tinha ido assistir a ele. Eu estava no quarto de hóspedes e de lá observava o minúsculo jardim de inverno, quando ele entrou em casa. Lady Menfrey se achava na sala de visitas, e não desci logo porque queria antes me acalmar.
      O dia todo tinha passado inquieta e de tal maneira pensei na sala de audiências que era como se tivesse ido assistir. Afinal, minha sorte dependia do veredicto que seria pronunciado.
      Por fim, Lady Menfrey veio ao meu quarto e me disse que Bevil tinha voltado e desejava me ver. O veredicto foi o de morte acidental.
      - Desça, vá ver Bevil. Ele vai lhe explicar. Sendo assim, vamos poder viajar amanhã mesmo.
      Quando entrei na sala, Bevil veio para mim e me tomou nos seus braços.
      - Pronto, tudo acabado - disse. - Meu Deus, que alívio! Nem sei o que estava esperando. Bem, mas agora é o fim de tudo. Sente-se aqui.
      Fomos sentar no sofá, e ele me deu um beijo.
      - Mas, Bevil - comecei a dizer - o que aconteceu? Como foi?
      - Descobriu-se que ela andava tomando arsênico por causa da pele. Parece que isso não é de todo fora do comum. Existem mulheres que o ingerem para ficar com a pele bonita e, infelizmente, a droga, no caso dela, foi fatal, pelo menos foi o que aconteceu dessa vez.
      - Arsênico! Para a pele? - disse quase gritando. - Agora entendo, sua pele era muito bonita, mas havia qualquer coisa de estranho nela.
      - Evidentemente por causa da droga. Na audiência isso ficou provado. Há pessoas que usam arsênico misturado em loções, e outras que são bastante loucas para ingeri-lo. Onde ela o teria conseguido, isso não se pôde descobrir. Naturalmente que o fornecedor não iria se manifestar. Mas foi a sua Fanny quem viu e contou que ela costumava botar arsênico em bebidas, tipo limonadas etc.
      - Mas que idéia, tomar arsênico, que horror!
      - É, mas é usado na preparação de remédios por médicos. Lógico que eles sabem o que fazem. Por exemplo, na audiência se mencionou o caso Maybrick. Essa prática foi muito discutida, anos atrás, na ocasião do julgamento de Maybrick. O caso era de um marido que tinha morrido envenenado por arsênico, e a mulher foi acusada de tê-lo assassinado. Foi condenada à morte e, no último momento, a execução foi suspensa. Provavelmente, em benefício da dúvida. Pois quem pode dizer que ele não tomava arsênico do mesmo modo que Jenny, você compreende? Não é uma coisa excepcional, mas perigosíssimo para gente do tipo de James Maybrick e de sua madrasta. Acharam uma quantidade de arsênico no quarto dela. O oficial do inquérito fez um enorme discurso a respeito do uso de drogas por pessoas ignorantes, que desconhecem seus efeitos perigosos. Foi por isso que deram o veredicto de morte acidental.
      Não conseguia apagar a visão de Jenny tão radiante, tão bonita... e agora morta. Bevil percebeu isso e procurou consolar-me.
      - Bem, está tudo acabado - disse ele. - Amanhã estará viajando com mamãe e, dentro de alguns dias, estarei lá com você. É, tem também de começar imediatamente a fazer os preparativos, porque não vamos querer esperar.
      - Mas que preparativos...?
      Ele riu. Era muito presunçoso, mas tinha razão de ser, pois mesmo que eu tentasse não podia resistir.
      - Para o casamento, lógico! Não é lá muito convencional, mas é desse jeito que somos. A noiva saindo da casa do noivo, vai ser uma sensação.
      - Mas poderia ser da casa da ilha - sugeri.
      - Veja a cena: a noiva entrando no barco, de vestido de casamento e com todos os seus apetrechos. O de sudoeste, se estiver soprando, e pode estar certa de que vai estar, carregando com o véu e as flores de laranjeira.
      - E o barco virando, a noiva arrastada à praia por gigantescas ondas e chegando atrasada à cerimônia...
      - Agora me lembro, você ainda não disse que sim - acrescentou Bevil.
      - Sim... para quê?
      Olhou para mim com uma expressão incrédula, ajoelhou-se e me segurou a mão dizendo:
      - Madame, casando-se comigo, lhe darei as chaves do paraíso...
      - Para começar, bastam as chaves de Menfreya - respondi solenemente.
      Rindo, ele aproximou-se de mim e me deu um abraço.
      - Harriet, sabe por que gosto de você? Porque você me diverte. E de que me divirtam é a coisa de que mais gosto no mundo, ou uma delas pelo menos. E agora quero que diga que me ama, que me adora e que quer ser minha mulher, tanto ou quase tanto quanto quero ser seu marido.
      - Um tanto gaiato, mas um lindo pedido, Bevil.
      - Querida, se estou sendo brincalhão é porque meus sentimentos foram profundamente tocados. Agora, fora de brincadeira, posso ficar de joelhos e lhe dizer o quanto quero isso, que sempre quis e que jamais existirá alguém que amarei tanto, Harriet adorada. Você pertence a nós, pertence a Menfreya. Sempre soubemos que ainda íamos ficar juntos lá, não é?
      - Bevil, tenho muito amor por você, e mesmo que quisesse não podia negar, porque deixei isso bem claro no passado, como estou agora deixando claro. Mas, e você?
      - E eu? Não estou sendo claro agora?
      - Está me dizendo que me ama, mas é lógico que não amou sempre. E como poderia? Amar uma menina sem graça, aleijada, a maioria das vezes agressiva e parecendo infeliz?
      Ele tapou, com os seus, os meus lábios. Seus gestos eram irresistíveis e encantadores, aqueles que toda moça procura num homem, aqueles que ela não pode admitir como sendo meramente gestos de um homem experimentado e vivido.
      - Não, sempre vi uma garota interessante, divertida, que pôs na cabeça uma idéia muito louca de que não era tão bonita quanto as outras crianças, só porque não se parecia com uma dessas bonequinhas desmioladas. Não gosto do tipo boneca, Harriet, mas adoro a mulher viva e forte com quem vou casar, queira ela ou não.
      - Está insinuando um rapto?
      - Isso mesmo. É tradição na família.
      - E, desde então, ficou sendo considerado como boa base para um bom casamento.
      - Tem junto de você um belo exemplo.
      Tinha mesmo? É verdade que Lady Menfrey se mostra serena e feliz, mas como teria vivido todos aqueles anos de humilhação, quando os casos de Sir Endelion com outras mulheres eram comentados pela vizinhança? Seria essa a idéia de Bevil de um bom casamento? Talvez uma das regras a lhe orientar a vida fosse a infidelidade do marido, e outra, a compreensão da mulher.
      Não, comigo não seria assim. Mas estava muito feliz com os acontecimentos presentes para me preocupar com o futuro.
      - O rapto não vai ser necessário - respondi. - Não precisa levar os seus planos adiante. Em vez disso dê-me algumas razões por que quer se casar comigo.
      Ele jogou a cabeça um pouco de lado e me deu um olhar meio de troça. Aí, pensei: iríamos os dois acabar sempre rindo ao fim das conversas. Essa havia sido a tônica de minha relação com Gwennan, por causa da sintonia dos nossos pensamentos e agora seria também com ele. Num relance, lembrei-me dela e de sua fuga às vésperas do casamento e da voz implacável de Fanny dizendo: "Não confie nesses Menfrey".
      - Como filha de um membro do Parlamento, dará uma boa mulher para outro.
      - Essa é uma razão de ordem prática.
      - E por que não ser prático? A escolha de uma mulher é assunto que merece muita reflexão. Bem mais do que para escolher um representante do Parlamento. Afinal, este pode cair fora depois de cinco anos, e a mulher fica para o resto da vida. Assim, a filha de um parlamentar é a mulher ideal para um outro que está em ascensão, principalmente se o eleitorado for o mesmo.
      - Então está esperando minha ajuda nas eleições? Provavelmente está contando também que, no intervalo delas, eu participe do processo de bajulação dos eleitores.
      - Claro que espero! Você será ótima nessa coisa.
      Senti que meus olhos se enchiam de lágrimas e não consegui contê-las. Fiquei envergonhadíssima, pois ele nunca me vira chorar antes. Na verdade, nem eu mesma me lembrava de quando havia chorado pela última vez. Nunca havia visto uma ternura como a sua, quando me afastou um pouco dele para pegar o lenço a fim de enxugar minhas lágrimas.
      - Lágrimas... Harriet, num momento desses! - disse como se ralhasse.
      - Não combinam, não é? Mas não pense que vou ser uma mulher lamurienta. É porque estou muito feliz.
      - Você ainda não viu nada. Isso é apenas o começo. Seremos conhecidos pela Cornualha afora como o casal mais feliz que já apareceu por lá.
      Antes de partir, fui ao escritório do Sr. Greville, de Greville, Baker & Greville, para que lá me explicassem minha situação financeira. O Sr. Greville disse que, com a morte de minha madrasta, eu me tornara herdeira de considerável fortuna. Tudo seria meu quando fizesse 21 anos, ou então se me casasse com o consentimento dele e do outro testamenteiro.
      - O Sr. Menfrey já me disse que a senhorita se comprometeu com ele. Bem, quanto a isso posso logo tranqüilizá-la. Não há qualquer objeção, e a fortuna passará às suas mãos tão logo se case.
      - E quanto ao segundo inventariante?
      - É Sir Endelion Menfrey.
      E, ao dizer isso, as feições enrugadas do Sr. Greville aproximaram-se de qualquer coisa parecida com um sorriso. Em seguida, continuou a falar.
      - Creio que seu pai teria ficado muito satisfeito com seu casamento. Sei que ele e Sir Endelion falavam disso quando você ainda era criança.
      - Então - disse meio sem graça - estamos fazendo o que esperavam.
      Ele deixou cair, espalmadas, as mãos brancas sobre a mesa e, por um instante, ficou observando-as com ar de satisfação.
      - Estou certo - disse, com sua maneira precisa e seca de falar - que é uma união muito desejada e posso lhe assegurar, Srta. Delvaney, que ela simplifica enormemente as coisas.
      Falando isso, pegou uns papéis que estavam sobre a mesa e ficou como se estivesse avaliando o peso deles e, depois, então, me olhou por cima do aro dourado do pince-nez, dizendo:
      - Bem, sua pensão continuará sendo a mesma até que tenhamos todas as formalidades cumpridas. Ouvi dizer que está de partida para a Cornualha com Lady Menfrey. Isso é excelente! Excelente! Soube também que o casamento será lá. Meus parabéns. Não creio que pudesse haver conclusão mais satisfatória para todos esses desagradáveis acontecimentos.
      Sentia-me como tendo passado por uma repartição, onde fui classificada como um caso que agora tinha o seguinte rótulo: "Herdeira posta em segurança e casada conforme o pré-estipulado. Assuntos desagradáveis satisfatoriamente resolvidos".
      Ao sair dali para pegar a carruagem, estava pensando em como seria melhor se meu pai e os Menfrey não tivessem discutido tão minuciosamente o meu futuro. A minha vontade era a de que Bevil e eu nos tivéssemos encontrado só uns meses antes e sido, então, arrastados um para o outro por uma paixão irresistível.
      Começava a suspeitar de que, apesar de minha aparência de cínica, no fundo era uma romântica.
      - Não há mais razão para adiarmos a partida para a Cornualha - disse Lady Menfrey. - Lá, poderá pensar no que pretende fazer com a casa e com todo o resto. Bevil depois verá se tudo foi feito como você mandou.
      Lembrei-me, então, da casa, onde a vida estaria correndo como de costume. Silenciosa, com os empregados falando baixinho e andando nas pontas dos pés, quando passassem em frente do quarto onde o corpo de Jenny foi encontrado. Deviam agora estar pensando no que o futuro lhes reservava, e seria injusto mantê-los em suspense.
      Fanny, naturalmente, viria comigo, mas os outros teriam de procurar novos empregos e estariam, sem dúvida, preocupados com o que lhes poderia acontecer. Discuti o assunto com Bevil e fui procurar outra vez Greville, Baker & Greville. Ficou então assentado que, para os empregados mais antigos, como Polden e a Sra. Trant, se dariam pensões, e para os mais recentes, gratificações. Poderiam permanecer na casa por mais dois ou três meses, mas teriam de começar a providenciar novos empregos, e, à medida que fossem conseguindo, iriam sendo dispensados.
      Depois de combinar isso, senti um grande alívio e fui até lá, um dia antes de viajar para a Cornualha.
      Pedi à Sra. Trant para chamar todos à biblioteca e aí lhes falei de minha situação e do que tinha sido estipulado para eles. Ao ver as expressões de alívio em seus rostos, fiquei emocionada. Coube a Polden falar em nome de todos e expressar a gratidão, fazendo votos para minha felicidade.
      - Creio que a senhorita vai vender a casa - disse depois a Sra. Trant.
      - Vou sim.
      - Bem, se o Sr. Menfrey e a senhorita precisarem de qualquer um de nós, basta chamar. Ficaremos felizes de largar nossos empregos e voltar a trabalhar aqui.
      Agradeci a todos e subi ao meu quarto com Fanny para resolver o que queria que ela levasse para a Cornualha, quando fosse para lá alguns dias depois de mim.
      Ia tentar ser o mais prática possível.
      - A maioria dessas coisas vou pôr fora, Fanny. Na lua-de-mel devo passar por Paris e pretendo comprar umas roupas por lá. Assim, só vou precisar de pouca coisa daqui.
      - Mas há os seus livros e outros objetos de que gostava muito.
      Estava mesmo pensando neles. O álbum de cartões-postais que sempre guardei, bobagenzinhas que me divertiram, como uma caixa de costura revestida de conchas e outra de música, dada por William Lister quando passou uma pequena temporada em Devon, um colar de pérolas que se foi formando com as contas que meu pai me dava todo Natal, pois os aniversários preferia esquecê-los. Nunca havia gostado dele, mas agora, observando bem as pérolas, elas eram todas muito perfeitas, com um tom forte e cremoso e um belo fecho de brilhantes que faiscavam. Achei que era um lindo colar e provavelmente de grande valor. Mas, para mim, era apenas símbolo de indiferença. Como o bom-tom exige que o pai dê alguma coisa à filha, o meu me dava pérolas, que apesar de infinitamente mais caras do que as quinquilharias dadas por Fanny, eram, para mim, destituídas de todo o valor.
      E aqui novamente tenho de agradecer a Fanny, que foi quem teve sensibilidade para saber como se sente uma criança que procura em vão, na manhã de Natal, pelo seu saco de presentes. Foi Fanny quem me deu a conhecer o sentido de Natal, comprando para mim frutas, nozes, sacos de bombons, figurinhas para recortar e armar, brinquedos divertidos e baratos e bonequinhas de baixo custo. Enquanto ela percorria os balcões do mercado à cata de objetos vistosos e baratos, que fazem a delícia de toda criança, era quem estava trazendo alegria ao meu Natal; não o meu pai, nas salas atapetadas do joalheiro, escolhendo mais uma pérola do meu colar, que nada representava senão um divertimento.
      Em cima da cama, coloquei algumas coisas: a caixinha de música de William Lister, os meus livros - todos iriam comigo, porque me permitiram fugir de minha realidade. Elsie Dinsmore, Misunderstood, The Wide Wide World, Peep Behind the Scenes, A Basket of Flowers... histórias de crianças de destinos tão infelizes como o meu. E depois ainda: Litte Women (como me deixei levar por aquela deliciosa família, assumindo, cada vez, os papéis de Meg, Jo, Beth e Amy!), Jane Eyre e Wuthering Heights. Estes, contando sofrimentos e recompensas que, no fim, sempre chegam. Nunca poderia separar-me deles. Fanny me observava.
      - Não vai querer isso - disse ela. Era um dos baratos joguinhos de montar.
      - Fanny, me lembro quando vi isso pela primeira vez. Foi maravilhoso! Foi num Natal, às 6 horas da manhã.
      - Nesse dia você acordava cedo. Eu vinha deitar aqui esperando que fizesse algum barulho. Desde as 5 horas da manhã ficava acordada e, quando você saía da cama, ainda estava escuro.
      - E então ia pegar o saco com os presentes e voltava para a cama, tentando adivinhar o que havia dentro. Tinha feito uma promessa a mim mesma de só abrir quando aparecesse a primeira luz no céu, porque, se abrisse antes, tudo podia desaparecer e então seria só um sonho.
      - Ah, as coisas que você imaginava...
      - Se não fosse você; Fanny, nunca teria tido um saco com presentes.
      - Uma outra pessoa teria providenciado.
      - Não acredito, Fanny. No ano inteiro, era a melhor manhã. Lembro que, nos dias seguintes ao Natal, ficava muito desapontada quando acordava, teria ainda de esperar cinqüenta e tantas semanas até o seguinte.
      - Crianças - disse Fanny, sorrindo com ternura. De repente, levantei-me e atirei-me nos seus braços.
      - Fanny, Fanny querida, vamos ficar sempre juntas.
      E ela então com expressão agressiva e ar de quem ia para um combate, disse:
      - Pode apostar que vamos. Estou para ver quem vai me afastar de você.
      Afastei-me dela e fui sentar novamente na cama.
      - Depois que me desfizer dessa casa, vou ficar contente. Não me recordo de ter sido feliz aqui, a não ser nessas manhãs de Natal e numas poucas vezes com você, Fanny. Lembra-se de nossas idas ao mercado, de nossas apostas com o vendedor de pastéis e das castanhas assadas que costumávamos comprar?
      - É, você sempre gostou do mercado.
      - Tudo ali era tão excitante e tão cheio de vida, com aquela gente doida para vender as mercadorias. Eles eram pobres, e eu, rica, mas tinha inveja deles.
      - É porque não sabe a vida que levam. Pensa que vender no mercado é só uma brincadeira. Nunca teve frieiras, daquelas que deixam a gente maluca de sarna e de dor, e também nunca teve reumatismo, dos que fazem o corpo dobrar ao meio. Pensa que eles têm uma vida, mas o que está acontecendo longe dos olhos você não sabe, não é?
      - Naquele tempo, tinha muita pena de mim mesma, Fanny. Agora tudo isso acabou. Bem, estou esperando por você neste fim de semana.
      - Pode confiar, logo que arrumar isso por aqui, estarei no trem. E o que é que vai fazer com a mobília e o resto?
      - Acho que as melhores coisas vão para Menfreya, o resto será vendido. O Sr. Bevil vai tratar disso.
      - Parece que ele vai tratar de tudo no futuro, não é?
      Dei um sorriso e suponho que fosse revelador, deixando transparecer minha felicidade, pois, por um momento, ela ficou calada. Notei então que o seu rosto tinha tomado uma expressão dura, e compreendi que desaprovava o meu casamento. Fanny é daquelas que não costumam esconder o que pensam.
      - Espero que sim, Fanny. Como meu marido, é natural que faça isso.
      - Ah, já estou vendo, vai fazer tudo direitinho.
      - Fanny, por favor, pare com isso. É hora para dar parabéns e não para fazer profecias de mau gosto.
      - A gente faz profecias quando chega a hora de fazer.
      - Mas, meu Deus, o que está querendo dizer com isso?
      - É que estou preocupada. Será que você não podia esperar um pouco?
      - Esperar, Fanny? Esperar o quê?
      - Você aceitou depressa demais.
      - Depressa demais? Há anos espero que Bevil me peça em casamento.
      - Mas estou com medo.
      - Pois não precisa estar. Bem, não vou nunca mais discutir isso com você. Tudo vai dar certo. E assunto encerrado.
      - Mas há uma coisa que gostaria de saber.
      - Está bem. O que é?
      - Ele fez o pedido antes ou depois de sua madrasta morrer?
      - O que significa isso?
      - Significa uma porção de coisas para mim. Antes, tinha só a renda do dinheiro, não é? Não entendo muito disso, mas calculo que, depois da morte dela, o dinheiro ficou sendo só seu... sem nenhuma das condições antes existentes, enquanto ela vivia. Bem, preste atenção, se ele esperou até ela morrer...
      Ela me provocou tanta raiva que podia até ter batido nela, mas me conhecia muito bem para saber que, se meu acesso de raiva era tão grande, o objetivo oculto era mascarar meu medo. Por que teria Fanny transformado em palavras o que antes era só um pensamento vago e perturbador, me obrigando a não mais ignorá-lo daqui em diante? Agora não poderia passar mais por cima, tendo de pensar friamente sobre ele.
      - Que asneira! Ele ia fazer o pedido antes de ela morrer, aconteceu que fomos interrompidos, e ficou impedido.
      Tinha certeza de que, quando foi me visitar, estava a ponto de me pedir, se no momento justo tia Clarissa não tivesse entrado na sala. Mas será que estava mesmo? Se quisesse, realmente não teria achado outra oportunidade para fazê-lo?
      Fanny me olhava fixamente, e seus olhos demonstravam medo e suspeita. Estava convencida de que Bevil casava comigo por dinheiro, e o pior, as sementes de dúvida que tinha foram regadas por ela e, agora, iriam brotar com todo o vigor.
      - Você sabe, a única coisa que desejo é que seja feliz - ela disse, torcendo nervosamente as mãos. - Só quero que aconteça tudo de bom para você. E, se as coisas desde o começo não vão bem, costumam sempre acabar mal.
      - Mas, agora, o que é que está querendo dizer?
      - Não posso deixar de pensar naquela pobre moça. Não consigo tirá-la da cabeça. Fico pensando nela olhando sua pele linda no espelho, e, depois, botando veneno no copo que ia beber... aí desaparecendo daquela maneira.
      - Eu sei, Fanny, procuro nunca pensar nisso, mas também não consigo tirá-la do pensamento. Morrer desse jeito, sem estar esperando...
      - É, ela não esperava morrer, mas foi assim que aconteceu - disse Fanny baixinho. - Estava ali num dia e, no outro, não mais. Tomara que meu Billy tenha tido um aviso de que ia morrer. Mas ele estava vendo a tempestade aumentar cada vez mais, não é? Eles lutavam contra ela e sabiam que o perigo estava ali juntinho... mas ela, pobrezinha, não sabia...
      - Temos de parar de pensar nisso, Fanny.
      - É, ficar pensando não vai fazer bem - concordou.
      - Bem, agora deixe de ficar me preocupando, e tudo irá dar certo.
      - É, nós duas daremos um jeito.
      Ela havia conseguido aumentar minhas dúvidas, mas sabia que, enquanto vivesse, teria em Fanny alguém que gostava de mim.
      Mandaram nos apanhar, Lady Menfrey e eu, em Liskeard, e o caminho de lá até Menfreya, no verão, é alguma coisa de que nunca vou me esquecer. A estrada se torna mais estreita, invadida pelas ramagens saídas dos barrancos, que parecem, nessa época, mais verdes e coloridos. Quando estávamos nos aproximando do mar, aspirei a brisa quente vinda dele e, então, avistei as torres de Menfreya. Nesse momento, quase chorei. Já não era só uma casa que tinha excitado minha imaginação, só uma velha e fascinante casa. Agora era também o meu lar.
      Lá estavam a ilha com a casa e o penhasco com a muralha de Menfreya - vista do lado da costa, erguendo-se altaneíra, como se fosse parte do próprio penhasco.
      Atravessamos o pórtico encimado pelo relógio proibido de parar e entramos no pátio, onde Sir Endelion, de pé na porta principal, esperava por nós.
      - Bem-vinda, muito bem-vinda, minha querida.
      Tomou-me em seus braços e me beijou.
      Nunca uma noiva foi tão calorosamente recebida pela nova família.
      Os dias que se seguiram em Menfreya ficarão para sempre gravados em mim. Falei a eles da minha vontade de explorar a casa, de conhecer todos os aposentos e passagens, de ver cada cantinho e ângulo dela.
      - Esta é a casa mais maravilhosa do mundo - comentei com Sir Endelion e Lady Menfrey, no meu primeiro dia lá.
      - Que sorte, já que é aqui que vai morar - respondeu-me Sir Endelion.
      - Gostaria de ver tudo.
      - A ala leste, como você vai ver, está precisando de consertos.
      Sorri, lembrando da mesa com os rubis, que há muito tempo já não estavam mais lá. Do que Menfreya precisava era de que se esbanjasse dinheiro com ela, do dinheiro daqueles que foram felizes bastante para serem abrigados debaixo de seus tetos. Jamais regatearia, quando se tratasse da preservação da casa.
      Um dia depois de minha chegada, fui com Sir Endelion fazer um tour de inspeção. Mostrava-se encantado de mostrar tudo. E, enquanto examinávamos um escudo sobre a lareira do hall principal, disse-me que nada o havia deixado mais feliz do que o meu casamento com Bevil.
      - Foi o que seu pai sempre quis. E eu também. A união de nossas duas famílias. Seu nome, minha querida, vai ser inscrito neste escudo. Aí estão todos os nomes de famílias que se ligaram por casamento aos Menfrey.
      Examinei aqueles nomes, pensando no que as donas deles teriam sentido quando vieram como noivas para esta casa. Em breve o meu iria estar junto dos outros, e no futuro outros nomes virão, quando meus filhos trouxerem suas mulheres para cá.
      Era muito agradável a sensação de fazer parte, e foi isso, afinal, que sempre tinha desejado.
      Havia tanta coisa para ver e admirar, tanta coisa que nunca reparara antes e que, agora, estava vendo com especial interesse, por Menfreya ter se tornado meu lar. Coisas como o maravilhoso piso em mosaico do hall principal, a escadaria com a fileira de armaduras e também a galeria e seus inevitáveis retratos. Em muitos, descobri traços dos Menfrey atuais. Podia tanto ser Bevil ou Sir Endelion em trajes de outra época.
      Entrei na capela, nunca usada, mas sempre com velas novas no altar. O quarto secreto no contraforte foi novamente mostrado, e Sir Endelion tornou a contar a história do Menfrey que manteve a amada escondida ali, sem que a família soubesse.
      - A história é que o relógio parou, e ninguém conseguia fazê-lo andar novamente. Quando o dono da casa voltou, foi ao quarto secreto e encontrou a amante e o filho mortos. Mas correm tantas histórias sobre as coisas ruins que fizemos que dariam para fazer uma outra Mil e Uma Noites, ou pelo menos Cento e Uma Noites. Agora me diga, Harriet, você não nos considera tão maus assim, não é?
      - Já conheço todos há tanto tempo que não posso ter medo do que venha a descobrir.
      - E logo vai ficar sendo uma de nós. Bevil é um rapaz de sorte. Já disse isso a ele, e acho que você também não vai se decepcionar.
      Adorava ficar investigando Menfreya e ouvindo suas histórias.
      Mas Lady Menfrey já estava aflita para que logo se começasse a tomar as providências do casamento. Assim, fomos a Plymouth escolher a fazenda do vestido de noiva. Ao passarmos pelo teatro onde Gwennan conheceu Benedict Bellairs, pensei com tristeza nela. Não entendia por que nunca escreveu, nos deixando sem saber o que acontecera. Que divertido seria se estivesse aqui comigo. Agora, irmãs de verdade! Foi uma pena que não tivesse se casado com Harry Leveret e ido viver feliz em Chough Towers com ele. Que bom então seria!
      Para o vestido, escolhemos um cetim branco. Levaria na cabeça um véu que foi usado por Lady Menfrey e por outras predecessoras nossas.
      Surpreendi-me de ela não falar em Gwennan, pois Plymouth devia fazê-la lembrar-se da filha.
      Bevil chegou à Cornualha, e os proclamas foram expedidos.
      Quando saía com ele para visitar os senhores proprietários da redondeza, éramos recebidos com grandes demonstrações de amizade.
      - Conheci seu pai. Um homem encantador! Como ficaria feliz se visse esse dia.
      - Muito oportuno. Tenho certeza de que vai ajudar muito nas eleições.
      - Belo casamento! Estamos todos contentes.
      Enquanto íamos pelas estradas, Bevil remedava nossos anfitriões. As imitações eram um tanto maliciosas e muito engraçadas, e percebi que, na sua companhia, constantemente, estava rindo. Era riso de felicidade, o melhor de todos.
      Começava a aprender a conhecê-lo. Ele tinha presença de espírito, era de temperamento exaltado, mas doce e, quando com raiva, capaz de injustiças. Entretanto o arrependimento vinha logo depois. O orgulho era inato nele, o que não lhe deixava facilmente admitir que pudesse estar errado, mas o seu senso de justiça era maior do que esse orgulho. Nunca pude saber ao certo se estava realmente apaixonado como dava a entender. Gostava, é certo, mas será que não estaria mais apaixonado pela conveniência do casamento do que por mim? Receava que pudesse gostar da mesma forma de qualquer outra moça que também o ajudasse e tivesse dinheiro suficiente para consertar Menfreya. Às vezes, no meu quarto, me olhava criticamente. Minha aparência havia melhorado depois do noivado, pois felicidade empresta beleza a qualquer rosto, mas era impossível deixar de perceber que os seus olhos sempre brilhavam quando encontrava alguma garota bonita. Para elas, tinha um sorriso especial, até para a vendedora de leite com quem costumávamos cruzar nas estradas.
      Enquanto estávamos na casa do Dr. Syms, fazendo uma visita, fiquei curiosa de saber em que estaria pensando. Era a casa para onde Gwennan foi levada depois do acidente e onde, pela primeira vez, viu Jessica. Porém, se estava lembrando daqueles tempos, não deixou transparecer.
      - Dr. Syms - disse Bevil alegremente -, o senhor vem ao casamento?
      - Estarei lá, se o dever me deixar.
      Era um homem de meia-idade, enérgico, com rosto rechonchudo e nos deu parabéns com entusiasmo.
      - Se nenhum bebê - continuava falando - escolher aquele momento para fazer sua entrada no mundo... Bem, em todo o caso vou ficar sabendo de tudo, pois parece que ninguém sabe falar de mais nada a não ser do casamento em Menfreya.
      A Sra. Syms nos levou para a sala de visitas, onde ficamos tomando vinho, enquanto conversávamos sobre o casamento, eleitores e o que poderia acontecer nas eleições seguintes. Descobri ser ela uma entusiasta do nosso partido.
      - Tenho certeza de que você possui ótimas qualidades para o trabalho - disse-me ela. - Todo parlamentar deve ser casado, e você, sendo filha do anterior, dá um toque mais interessante à coisa. Ouvi dizer que seu pai foi excelente parlamentar, e agora que ele se foi, voltamos à velha tradição de sermos representados por um Menfrey. Fica tão charmoso o nosso atual representante ser marido da filha do último. É como se o lugar realmente nunca tivesse saído da família. E isso para a gente daqui é muito importante.
      Foi aí que comecei a ter uma visão de como seria minha vida daí em diante. Teria de trabalhar pelo partido, e isso significava abrir bazares e talvez até discursar de palanques. Devia ser emocionante, se bem que, para mim, um tanto assustador. Mas Bevil estaria comigo. Já me via até fazendo espirituosos discursos - agora vai falar a Sra. Menfrey, mulher do nosso representante... Era bem agradável o quadro que comecei a esboçar de meu futuro.
      - Estou muito satisfeita em termos vindo para cá - disse a Sra. Syms. - É mais interessante do que viver em cidade grande. Já moramos em Plymouth, mas num lugar como este parece haver muito mais obras sociais para se fazer. A vida aqui pode ser estafante. Veja o pobre Dr. Trelarken, matou-se de tanto trabalhar. Um homem tão simpático! E a filha dele também era. Naturalmente era conhecida sua, não é?
      - Não muito.
      - Que tristeza, a pobre moça ter ficado sem nada. Soube que foi ser governanta num lugar qualquer lá em Londres. Isso não é vida para uma moça levar. E depois, tão bonita como ela é. É uma beleza. Devia casar, mas isso é difícil para uma moça na posição dela. A vida pode se tornar muito mais dura nessas circunstâncias... Muito dura mesmo.
      Após sairmos de lá, eu disse:
      - Que mulher mais faladora.
      - Para político não servia, fala demais. Mas, realmente, até que podia estar no Parlamento. Pena que não deixem mulheres entrar. Talvez um dia possam.
      - Eles são completamente diferentes dos Trelarken.
      Percebi que minha voz tinha subido de tom e não sei se Bevil também se deu conta disso. Era desse jeito que o meu nervosismo se manifestava.
      Ele ficou em silêncio, e olhei com o rabo do olho para ver se estava rindo.
      - Coitada de Jessica - eu acrescentei.
      - Má sorte a dela - ele concordou.
      - Nunca vou me esquecer de minha governanta, a Srta. James. Era uma mulher tímida, parecendo sempre com medo de perder o emprego, isto é, era tímida não comigo, com quem gostava de ficar brava.
      - É, se não for numa boa casa, isso não é mesmo vida para uma moça.
      - Como será que Jessica está levando a coisa?
      Ele não respondeu, e fiquei com medo de que, se prosseguisse com o assunto, fosse perder meu controle, deixando meu ciúme e suspeitas serem percebidos.
      O tempo era pouco para cismar. Faltavam só três semanas para o casamento! Lady Menfrey resolveu encher a casa de hóspedes, principalmente com amigos vindos de Londres. Entre eles, alguns parlamentares que Bevil esperava se tornassem também amigos meus, já que futuramente iria ter uma certa participação em seu trabalho. Outros eram amigos do lugar mesmo.
      William Lister, o velho secretário de meu pai, trabalhava agora fazendo o mesmo serviço para Bevil, e era quem estava tomando a maioria das providências. Foi bom vê-lo outra vez, e fiquei satisfeita de ver que parecia mais feliz trabalhando para Bevil do que quando estava a serviço de meu pai.
      Fanny chegou para cuidar de mim. Irritou-me sua atitude de deliberada resignação, como se tivesse pela frente um desastre inevitável e fosse obrigada a fazer cara de que tudo ia bem. Mas isso não passava de uma pequenina irritação numa existência maravilhosa. Era feliz, e Bevil estava constantemente em minha companhia. Até mesmo à costureira quis ir, para me ver provar o vestido. Sua mãe, porém, indignada, proibiu-o, pois isso trazia azar. Entre nós, falávamos de nossa vida futura, como se fosse ser sempre banhada pela luz cor-de-rosa da manhã, sugerindo a luz que vi iluminando Menfreya quando fugi e vivi minha terrível noite.
      Estava cheia de sonhos e feliz. Iria surpreender Bevil com minha maneira de ajudá-lo. Lia sobre política, e ele, que antes só ficou divertido, acabou depois impressionado me vendo discutir sobre mercado livre e sistemas de proteção.
      Fiquei muito satisfeita quando resolveu dispor da casa de Londres. Disse-me que, enquanto estivéssemos em lua-de-mel, William Lister trataria de negociar tudo lá. Meu pai chegou a colecionar certos móveis bastante valiosos, e Lister, que era um entendido do assunto, iria tratar de mandá-los para Menfreya, onde havia lugar de sobra para colocá-los. O resto deveria ser vendido.
      Íamos para o Sul da França, para uma pequena cidade nas montanhas, de onde se enxergava a Riviera. Bevil já estívera lá antes, e me disse ser o lugar ideal para a lua-de-mel. Ainda mais que o tempo, nessa época do ano, é sempre perfeito.
      O casamento já estava bem em cima, e se não fosse por um certo temor, era completamente feliz. A fuga de Gwennan não me saía da cabeça, dando-me um medo atroz de que alguma coisa viesse a impedir o meu casamento. Costumava também pensar nas mulheres que Bevil já tinha tido, ficando curiosa em saber se seu sentimento por elas seria diferente do que sentia por mim. Ele jurava que era, e afirmava com tanta sinceridade, que eu acreditava. Mas estava começando a conhecê-lo melhor. Quando, por exemplo, desejava qualquer coisa, entusiasmava-se tanto, que ele próprio julgava ser a coisa mais querida no mundo. Mas o desejo passava, e logo outro vinha substituir o anterior. Entretanto, eu bem sabia que felicidade não é nenhum prêmio colocado no topo de uma montanha, que uma vez alcançado se torna seu para sempre. Felicidade é prêmio, mas só é sua por breves momentos, e guardá-la é tão difícil quanto vencer a escalada da montanha. Chega em certos momentos, esquiva, imprevisível. Chega, por exemplo, quando vejo os olhos de Bevil cheios de admiração por uma observação mais inteligente que fiz, quando me sinto feliz por vê-lo se voltar de repente para mim se dando conta de nossa ligação ou, quando comovido, diz: Harriet Delvaney, gosto de você, não há ninguém como você no mundo. Meu sobrenome era sempre usado em momentos de emoções. Acho que fazia assim para não trair a natureza de seus sentimentos. Acostumado que estava com os seus desejos passageiros, violentos e, enquanto durassem, irresistíveis, ficou surpreso ao saber que o amor pode caminhar lado a lado com a paixão. Pelo menos, era o que eu queria acreditar.
      Chegou o dia do casamento. Foi no princípio de setembro. Acordei cedo e olhei para o mar na direção da casa na ilha. O mar estava manchado de vermelho, tal como naquela outra distante manhã, e raios cor-de-rosa incidiam sobre a casa.
      Porque Sir Endelion era uma espécie de meu guardião quando meu pai fez dele seu inventariante, devia ser quem me daria o braço. A noiva conduzida pelo pai do noivo! Provavelmente, isso poucas vezes já aconteceu, e o melhor homem era Harry Leveret, que devia ter sido o marido de Gwennan. Escolha estranha, mas a sugestão foi do próprio Harry. Talvez quisesse dar a saber que ele já não se importava mais com a garota que o havia tratado tão mal.
      E lá estava eu, então, de cetim branco, com o esvoaçante véu da família Menfrey e carregando flores de laranjeira. Todos me diziam estar encantadora e, por um instante, quase cheguei a acreditar.
      Olhei-me no espelho e disse:
      - Não se preocupe, Fanny, vou ser feliz. Estou decidida que serei.
      - O que você está é tentando a Providência.
      - Ora, Fanny, não fique aí como um urubu. Você não está querendo é que eu seja uma Menfrey, não é? Bem, serei um deles, e não há nada que você possa fazer contra isso.
      - É, não vejo nada que possa fazer.
      - Bem, estou sabendo agora o que é uma desmancha-prazeres.
      Lady Menfrey havia entrado no quarto.
      - Como está tudo indo, meu bem? Ah, mas você está linda! Não está, Fanny?
      Os olhos dela se encheram de lágrimas. Talvez estivesse lembrando do tempo em que foi raptada, seduzida e casou às pressas. Como eu, também havia sido uma herdeira. Se não fosse, não haveria rapto nem sedução, ou melhor, essas duas coisas poderiam haver, de certo mesmo era o casamento que não ia acontecer.
      - Querida, já devemos ir andando.
      Enquanto estava indo para a igreja do vilarejo com Sir Endelion, ele falou:
      - Você está um encanto, minha querida! Estou orgulhoso de ser eu a conduzi-la. É um dia muito feliz para todos nós.
      Bevil já estava lá, e seus olhos se detiveram em mim. Um olhar especial só para mim, querendo dizer: pena que a gente tenha de agüentar toda essa amolação. Uma cerimônia simples seria muito melhor e, depois então, diretos para a cidadezinha com vista para o mar, onde, sozinhos, lhe direi que a amo como nunca amei ninguém antes, e que, mesmo que sua madrasta não tivesse morrido, nos permitindo dispor da fortuna de seu pai, eu ainda assim teria casado com você, Harriet Delvaney... não, agora Harriet Menfrey.
      Atravessamos, então, a nave ao som da marcha nupcial de Mendelssohn. Nas fileiras de bancos, fui passando por difusos rostos, que nos observavam com atenção. Não houve parente meu presente. Tia Clarissa deu a desculpa de não poder abandonar sua casa naquela época do ano, mas a verdade, eu sabia, era que não ia agüentar me ver casando, enquanto suas filhas ainda não tinham conseguido arranjar maridos.
      Na carruagem, de volta a Menfreya, com Bevil ao meu lado, apertando minha mão, de vez em quando rindo - era um novo Bevil, pensei, sério, cheio de expectativas para o futuro. E eu estava tão feliz que, se me fosse dado formular um desejo, seria o de prolongar aquela volta para sempre, me deixar ficar na carruagem, ele ao meu lado, grave, amoroso, falando para si mesmo (tinha certeza que estava) que uma nova vida começava. Ele ia me amar e me tratar com carinho nos bons e maus momentos da vida, como prometera fazer, e o tempo das aventuras passageiras tinha terminado. Doravante, era o farrista que se regenerou, para se tornar o melhor dos maridos.
      Depois de ter passado pelo relógio que só pára quando um Menfrey está para sofrer morte violenta e chegado ao pátio de pedras, gastas com séculos de uso pelas rodas de carruagens e cascos de cavalos, cheguei em casa como uma Menfrey.
      Bevil devia estar pensando o mesmo, pois disse:
      - Bem, Harriet Menfrey, estamos em casa.
      Mulheres felizes, como países felizes, dizem, não têm história; por isso, pouco há para contar das primeiras semanas em lua-de-mel.
      Fomos, primeiro, a Paris, onde comprei as roupas que prometi a mim mesma. E foi uma exaustiva tarefa: de pé, diante dos espelhos, ouvindo cumprimentos cacarejados em francês e inglês. Mas comprei alguns vestidos lindos, e Paris, quando se ama e se é amada, é uma das mais encantadoras cidades do mundo.
      A Torre Eíffel, o Bois-de-Boulogne, o Sacré-Coeur e o Quartier Latin até hoje são memórias, para mim, sagradas. E Bevil ao meu lado, sempre rindo, obrigando-me a falar em seu lugar, porque eu usava melhor o idioma do que ele, que se recusava a descartar-se de seu sotaque inglês. Recordo-me também com saudade das luzes suaves dos restaurantes, dos olhares dos que nos serviam que, como bons gauleses, não erravam no reconhecimento de dois amantes. Estávamos sempre nos traindo, tanta era a alegria - dele e minha.
      Mas o destino final seria a pequenina cidade nas montanhas, e assim saímos de Paris, rumando para o sul. A estação das flores na Provença já terminara, mas adorei a região com o seu magnífico cenário de montanhas e o seu soberbo litoral. Imediatamente fiquei encantada com o hotel, e junto do balcão na portaria, olhando o mar distante, pensei nunca ter visto nada tão bonito. Foram dias felizes, aqueles.
      A proprietária conhecia Bevil, que já havia antes estado lá.
      - E dessa vez traz Mme. Menfrey. Isso é formidável!
      Mas seus olhos escuros olhavam de um jeito especulativo que me fez imaginar que estivera ali com alguma outra pessoa. Talvez sozinho, mas era possível que tivesse feito amigos na cidade. Durante os 10 dias passados em Paris, não tive pensamentos dessa ordem, e achei que os superara. Ali, entretanto, voltaram ao primeiro sinal de suspeição.
      Mas, quando desci à sala de jantar que dava para um terraço com vista para as montanhas, já estava inteiramente esquecida deles. Jantando à luz de velas, toda a minha alegria foi recuperada.
      - Podemos ficar aqui por umas quatro ou cinco semanas - disse Bevil, querendo me fazer gostar tanto da Provença quanto ele já gostava.
      -A vida nesse lugar é vivida com simplicidade, e essa é a melhor maneira de se aproveitar uma lua-de-mel.
      - Nada de distrações, não que alguma coisa me possa distrair de Harriet Menfrey, mas apenas uma questão de vida simples.
      Eu me sentia bastante disposta. Pela manhã, saíamos para explorar a velha cidade, indo por becos e ruas tortuosos e escadas de degraus gastos. As crianças, com seus olhos escuros, ficavam á nos observar meio de lado. Éramos visivelmente estrangeiros, e, na praça do mercado, os vendedores se mostravam encantados quando nos viam parar para comprar frutas ou flores. Íamos muitas vezes sentar-nos do lado de fora dos cafés e nos deixávamos ficar sem pressa, observando a vida passar. À tarde, costumávamos ficar debruçados numa balaustrada de pedra, examinando ao longe as montanhas e o mar. Também alugávamos cavalos, quando então íamos pelas montanhas, passando por povoações retiradas, caminhos estreitos e perigosos, onde Bevil sempre insistia em guiar meu cavalo, apesar da boa amazona que eu era. Mas a proteção dele me dava prazer. Às vezes, parávamos em algumas estalagens para almoçar, e experimentávamos tudo quanto fosse prato e vinho da região. E só lá pelo meio da tarde é que voltávamos, após termos passado horas sentados, sonolentos e felizes.
      Raramente fazíamos planos. Isso ficava por conta dos dias dourados do sol. E como gostava daqueles dias quentes e ensolarados, e também das noites, depois do sol desaparecer e levar consigo o calor. Aí, às vezes, saía, embrulhada numa manta para receber o frio ar das montanhas.
      Uma tarde, já em adiantada hora, pegamos os cavalos e fomos às montanhas. Nossa intenção era ir jantar num lugarejo, onde a proprietária nos disse que encontraríamos um espetáculo de danças provençais.
      Ao sairmos, havíamos nos prometido que a volta seria só à noite, sob a luz do luar. E assim fomos, alegres e felizes, em nossos cavalos, cantando uma cançoneta que o marido da proprietária nos ensinou. As palavras foram arranjadas para a música Maid of Aries e se referiam a três sábios que vão a Belém. Ainda hoje, quando ouço essa melodia, sou transportada para aquele caminho montanhoso e agreste, e me vejo cantando, ao lado de Bevil... Momentos felizes que marcaram, de certa maneira, o fim de uma completa felicidade. Mas, graças a Deus, naquele instante não sabia ainda disso.
      Trois granas róis,
      Modestes tous les trois,
      Brillaient chacun comme un soleil splendide;
      Trois grands róis,
      Modestes tous les trois,
      Etincelaient sur leurs blances palefrois.
      Le plus savant
      Chevauchait devant,
      Mais, chaque nuit, une étoile d'or les guide;
      Le plus savant
      Chevauchait devant;
      J'ai vu flotter sa longue barbe blanche au vent7
      Bevil cantava fora do tom, com seu atroz sotaque inglês me fazendo rir desmedidamente. Aí, gritou:
      - Está bem, Harriet, sei que você é melhor.
      - O que não é difícil - respondi. - Não há nem como competir.
      E, enquanto cantava, ele disse:
      - É, sua voz não é má, meu amor. E você está falando francês como uma francesa.
      E, sempre cantando, chegamos ao lugarejo onde o patrão e a patroa nos deram calorosa acolhida. Disseram que estávamos sendo esperados e que teriam ficado desapontados se o lorde inglês não tivesse ido visitá-los com sua mulher.
      A proprietária do nosso hotel, que nos adotou como filhos, certamente tinha dado com a língua nos dentes a nosso respeito. Não sei o que disse, o fato é que nos foi dado, na pequena sala de jantar, o lugar de honra, junto aos músicos, que depois iriam tocar para os dançarinos.
      A refeição foi servida de acordo com um ritual a que já estávamos acostumados: o vinho era trazido e despejado como se fosse néctar dos deuses, enquanto a patroa e o empregado ficavam observando com ar de quem tinham aberto as portas do paraíso para nós. Aí, provávamos a comida e declarávamos que estava deliciosa.
      Prometia ser uma das outras tantas noites felizes, até que entrou na sala um casal de ingleses. Imediatamente, percebi o espanto de Bevil. A mulher, por sua vez, parou de repente, quando o avistou. Sua surpresa não foi menor que a dele. Visivelmente, sentia grande prazer.
      Quando se aproximou de nossa mesa, notei que tinha luminosos cabelos cor de mel, olhos grandes e cinzentos, que os lábios se abriam num sorriso, que o corpo tinha formas voluptuosas e andava com a graça de uma fera. Este último detalhe tornava-se mais evidente por causa de seu companheiro, que era desajeitado e dado mais para o gorducho.
      Bevil levantou-se.
      - Será que estou sonhando? - perguntou ela. - Bobby me dê um beliscão... Aí, pode ser que acorde.
      - Espero que não seja de um pesadelo - disse Bevil.
      - Não, é o melhor dos sonhos. O que é que você está fazendo aqui, Bevil?
      Bevil olhava e sorria para mim.
      - Esta é uma velha amiga - começou a dizer. Ela fez uma careta e disse:
      - Ouviu isso, Bobby? Uma velha amiga. Não gosto da descrição. Pode ser ambígua.
      - Só aos cegos - respondeu Bevil.
      - Precisa nos apresentar, querida - falou Bobby.
      - Mas claro - disse Bevil. - Esta é minha mulher.
      Os grandes olhos cinzentos me olharam de cima a baixo, e creio que não deixaram escapar quase nada.
      - Este é meu marido.
      Aí, deu uma risada, como se fosse uma grande piada ela ter marido, e Bevil mulher.
      - Não me diga - continuou a dizer - que vocês também estão em lua-de-mel.
      - Isso está pedindo uma comemoração - disse Bevil. Aí se virou para mim e falou: - Lisa e eu nos conhecemos há muito tempo.
      Nisso, a dona do restaurante se aproximou de nossa mesa.
      - São amigos? Gostariam de jantar juntos? - perguntou.
      - Que graça! - disse Lisa em voz alta. - Agora, Bevil, você vai me contar tudo.
      A proprietária fez sinal ao empregado para trazer cadeiras, e logo estávamos todos sentados à volta da mesa, e a confusão do serviço por novos lugares começou. Ela é Lisa Dunfrey, Bevil falou para mim. Ela ouviu e corrigiu, dizendo não ser mais, pois, agora, havia o Bobby. Ela era Lisa Manton.
      - Conhece os Manton dos biscoitos? Bobby faz biscoitos, não é, querido? Não pessoalmente, lógico, como proprietário. Mas isso é tão engraçado, Bevil! Os dois em lua-de-mel no mesmo lugar.
      Desejava que eu e Bobby também estivéssemos achando engraçado. Ele estava detestando a coisa tanto quanto eu, pois a atenção da mulher dele era toda para Bevil.
      Comentou então comigo que o tempo estava magnífico e me fez perguntas do que achava do panorama das montanhas e se eu gostava da comida francesa.
      Contudo não estava mais interessado nas minhas respostas do que eu nas suas perguntas; ambos estávamos de ouvidos atentos na conversa de sua mulher com o meu marido; e ninguém prestou atenção nos dançarinos provençais, que deram um lindo espetáculo em nossa honra.
      Conhecia o olhar de Bevil quando se sentia atraído por uma mulher; esse olhar já tinha sido para mim; agora era para Lisa. Era bem possível que, se Bobby e eu não estivéssemos ali, os dois teriam reassumido uma relação da qual pareciam saudosos.
      Num dado instante, ela voltou-se para mim e disse:
      - Então você é a filha de Sir Edward Delvaney. Vi a notícia nos jornais e me lembro de ter achado na ocasião esse casamento muito conveniente para Bevil.
      - Obrigada - respondi. - Espero que o seu seja também muito conveniente.
      Ela riu e se olhou no espelhinho da bolsa.
      - Ah, é sim. O meu também é muito conveniente, não é? Todos aqui convenientemente casados e todos juntos no mesmo lugar em lua-de-mel. E Bevil tem sua política...
      - E você tem os seus biscoitos - respondi.
      Ela me lançou um olhar frio, me examinando atentamente, e depois virou-se de costas para Bevil. Quanto a mim, olhava os dançarinos sem vê-los; o que estava diante de meus olhos era essa mulher e Bevil, os dois fazendo amor. Seria isso que me esperava no futuro? Cada vez que fosse conhecer uma amiga de Bevil teria de me roer de ciúme e atormentar-me desse jeito?
      Parecia que a noite não ia acabar mais; finalmente, não havendo outra razão para continuarmos ali, nos retiramos para voltar ao nosso hotel. Senti grande alívio ao respirar o ar da noite, mas a paz de espírito tinha sido perdida.
      Na volta, nenhum de nós cantou. Bevil estava silencioso, parecendo perdido, acho que no passado.
      - Ela é muito amiga sua? - perguntei.
      - Ela, quem? - respondeu, perguntando sem necessidade.
      - A linda Lisa.
      - Não. Conheço apenas.
      E, como não falou mais nada, achei que falou demais.
      Quando chegamos ao hotel, a proprietária estava nos esperando para saber se havíamos gostado da dança. Fora de seu costume, Bevil se mostrava calado, e eu tive de dar um jeito de responder com vivacidade que aquela havia sido a noite mais deslumbrante de todas.
      O amor que Bevil fez comigo naquela noite foi tão bruto que cheguei a perguntar-me, lá na escuridão do quarto: seria Lisa com quem estava fazendo amor? Sou sua substituta?
      Não nos encontramos mais, e logo Bevil recuperou seu bom humor. E eu pude afastar minhas dúvidas. A lua cheia ainda brilhava, mas nada pôde ser novamente como antes.
     
     
    Capítulo 7
     
      Passamos seis semanas em Provença. Foi uma longa lua-de-mel. Novembro estava começando, e a estação das chuvas se estabeleceu. A varanda de nosso quarto era inundada, constantemente, com a água se espalhando e invadindo o quarto. As nuvens tapavam completamente as montanhas e a vista do mar; e, sem sol, o ar ficava gelado de fato.
      Já era tempo de voltar para casa.
      Foi bom retornar a Menfreya. Logo que avistei a casa, senti meu ânimo se levantando, e, ao passarmos sob a torre do relógio, prometi a mim mesma que ia ser feliz no meu novo lar. Estava determinada a dar a Bevil tudo aquilo que esperava de uma mulher.
      Logo se tornou claro que uma crise ministerial se achava em fermentação. Balfour substituiu Salisbury como primeiro-ministro, pouco depois da coroação do novo rei, e Chamberlain mais seus partidários ameaçavam as propostas dos protecionistas. Precisava entender desses problemas a fundo, se queria realmente ser de alguma utilidade para Bevil. O dever do político é o de fazer leis que promovam o bem-estar do país, e essa me parecia das aspirações mais nobres. Estava, então, tomada de entusiasmo. Fui discutir essas coisas com Bevil, e ele me deu um beijo me dizendo que eu estava para tornar-me a mulher ideal de um político. Naquele momento da política, exaltava-se com certas medidas que, no seu entender, eram particularmente más para o país, e eu o acompanhava no seu zelo pela causa que defendia.
      As muitas atribuições de Bevil eram por ele levadas seriamente. Mantinha sala de audiências em Lansella e, quando estava na Cornualha, dedicava duas manhãs da semana aos eleitores que desejassem vê-lo para discutir qualquer problema que fosse. Algumas vezes, eu o acompanhava; para meu prazer, vi que podia ser de alguma utilidade e que ele percebia isso. Quanto ao incidente da lua-de-mel, que tanto me abalou, já quase me esquecera dele. Chegava mesmo a acreditar que tinha imaginado toda a coisa.
      A carreira de Bevil tornava-se uma obsessão - para ele e para mim. Mas notei com satisfação que, embora ambicioso, sonhava com o ministério e mesmo com o cargo de primeiro-ministro como consagração final - queria realmente de todo o coração o bem de seus eleitores e, para tanto, decidiu ser tão acessível quanto fosse possível. Mas isso significava enorme trabalho. Havia sempre uma avalancha de pessoas querendo ser atendidas, e uma pilha de correspondência para ser examinada. E, apesar da eficiência de William Lister, havia muitas outras maneiras em que eu podia ser útil.
      E estava mais feliz do que nunca.
      Sempre me surpreendeu o modo como ocorrem mudanças nas vidas das pessoas. Quando chegam aos poucos, vão sendo gradualmente aceitas, mas o choque repentino, sem estarmos esperando, arrebentando tanto com a existência que nada mais poderá ser o mesmo, este nos deixa intranqüilos e nos faz pensar nas incertezas da vida.
      Foi o que me aconteceu numa manhã de abril. Havia violetas sob as sebes, os campos estavam cobertos de florezinhas, e eu acordava todas as manhãs com o quarto cheio de sol, ouvindo o barulho suave das ondas no seu ritmado vaivém.
      Era dia de Bevil receber em seu escritório de Lansella, e eu me encontrava sozinha aquela manhã, pois ele tinha trabalho a fazer com William Lister. Desci para comer uns deliciosos rins com bacon, que estavam num fogareiro em cima do aparador. Em Menfreya, o café da manhã era das 7h30min às 9h; meus sogros não tinham ainda descido, e Bevil já havia saído. Desse modo, estava sozinha na sala. Examinava os jornais, quando um dos empregados entrou com a correspondência, deixando-a sobre a mesa. Dei uma olhada e, de repente, parei de respirar, ao reconhecer a letra de um dos envelopes.
      Era de Gwennan.
      Rasguei o envelope e, no alto do papel, estava um endereço em Plymouth. Então li:
      Querida Harriet. Tal como nos velhos tempos, heín? Espero que tenha curiosidade de saber o que me aconteceu durante todo esse tempo. Irei satisfazê-la, se você ainda tiver e quiser satisfazer sua curiosidade. Isso fica entre nós. Quero primeiro ver você, mas em segredo. Por favor, dirija-se a este endereço, hoje ou amanhã. Estarei lá. Há uma condição: que venha sozinha e não diga a ninguém. Espero que faça assim. Conto com você.
      Gwennan
      P. S. - É fácil de achar. Quando sair da estação, dobre à direita e depois à esquerda, e siga sempre em frente, até poder dobrar outra vez à direita e verá então o n.° 20. Estarei esperando.
      Ela sabia então que eu estava em Menfreya! E sabia que estava casada com Bevil, pois a carta era endereçada à Sra. Menfrey. Dei graças a Deus por estar sozinha ao receber a carta.
      Enquanto caminhava por aquelas ruas, que a cada passo se tornavam mais e mais miseráveis, ia preparando-me para o que pudesse encontrar. O n.° 20 era uma casa dividida em três, no último estágio de decomposição. A porta da frente estava aberta, e, ao entrar no hall, uma velha me chamou. Estava sentada numa cadeira de balanço, numa sala à direita com a porta escancarada. Vi ali uma corda de estender roupa e diversas crianças maltrapilhas.
      - Desejava ver a Sra. Bellairs - falei.
      - Lá em cima - respondeu.
      Ao subir os degraus rangendo sob meus pés, me deu uma certa náusea; não era o cheiro; não era também a visível sujeira e pobreza; era o medo do que ia achar quando abrisse a porta do lugar onde Gwennan estaria esperando por mim.
      Bati. Ouvi sua voz com um tipo de entonação que me lembrava o de Bevil.
      - Harriet. Então você veio... meu anjo!
      - Gwennan!
      E fiquei ali, de pé, olhando para ela. Onde estava a minha linda Gwennan, a de olhos cintilantes e desdenhosos, de cabelos sedosos cor de mel e com o jeito dos Men-frey? No seu lugar, uma mulher amaciada, tão descarnada que levei alguns segundos para ter certeza de que aquela diante de mim era mesmo Gwennan. Tinha enrolado no corpo um roupão que, antes, até podia ter sido vistoso. Notei que, em alguns lugares, estava rasgado.
      Era grande a sua mudança, desde a última vez em que a tinha visto, e ela me dava vontade de chorar. Então, querendo esconder dela a minha expressão de horror, puxei-a contra mim, apertando-a com força.
      - Oh, Harriet... sua sentimental! Sempre foi, sabia disso.
      - É melhor me contar tudo. Onde está Benedict Bellairs?
      - Não sei.
      - Você o deixou, então?
      Ela concordou com a cabeça.
      - O maior erro que fiz, Harriet, foi ter fugido.
      - Então deu tudo errado?
      - Quase desde o princípio. Ele pensava que eu tivesse dinheiro. Ouviu falar dos Menfrey... família antiga... cheia de tradições, e as coisas que se dizem. Bem e aí... eu não trouxe nada.
      - E percebeu que o seu casamento havia sido um engano e...
      - Não houve propriamente casamento. Pensei que houvesse, mas ele já era casado. Como eu era ingênua, Harriet, não precisava ser muito sabido para me tapear. Foi um casamento só na aparência; mas para o meu bem, nem mesmo bigamia ele cometeu. Um amigo dele fez o papel de sacerdote. Era outro ator. Assim, ele fez tudo direitinho.
      - Gwennan!
      - Você parece chocada. Li a seu respeito nos jornais. "Filha do último representante por Lansella casa-se com o atual. A Srta. Harriet Delvaney, filha do falecido Sir Edward, vai casar com Bevil Menfrey, membro do Parlamento pelo Distrito de Lansella." Então, Harriet, você conseguiu o que queria, hein? Você sempre quis Bevil, não é?
      Balancei a cabeça, concordando com ela, que deu um sorriso triste e disse:
      - Agora me conte o que aconteceu depois que fui embora.
      A Gwennan de sempre! Suas coisas nunca podiam deixar de ser menos interessantes do que as dos outros, e não fazia a menor questão de esconder isso.
      - O que aconteceu foi que todos ficaram profundamente abatidos.
      - Ah, sabia que iam ficar. E Harry?
      - Prostrado.
      - Coitado de Harry! Teria dado um bom marido para mim.
      - Mas e depois desse... desse casamento de mentira, o que aconteceu?
      - Fui largada com uma criança.
      - Você tem um filho?
      - Foi por esse motivo que pedi para você vir até aqui. Por ele, deixo o orgulho de lado.
      - E onde está ele?
      Dirigiu-se para uma porta e a abriu. Dava para um quartinho, onde havia uma cesta de vime com um bebê dentro dormindo, pálido e não muito limpo, mas com os mesmos cabelos castanhos dos Menfrey, e dava para perceber que era parecido com eles.
      - Benedict - disse ela suavemente.
      - Benedict Bellairs - acrescentei.
      - Benedict Menfrey - ela me corrigiu.
      - Claro.
      - É uma situação muito difícil, Harriet.
      Concordei que era.
      - Por que me chamou, Gwennan? Conte tudo.
      - Chamei porque você agora é da família e espero mais ajuda de você do que dos outros. Quero voltar para Menfreya, Harriet. Não posso mais agüentar esta vida por muito tempo, e quero que ele seja educado em Menfreya.
      - Mas é claro que você vai voltar para Menfreya, Gwennan.
      - E como explicar...?
      - Dá-se um jeito. Pode-se dizer que você perdeu o marido, e então voltou para casa. É uma situação delicada, mas dá para ser arranjada.
      - Não volto, a não ser que eles me queiram lá.
      - Mas, Gwennan, claro que vão querer. É sua família.
      - Ah, Harriet, querida. Onde você arrumou esses bons sentimentos? O que acontece, Harriet, é que nós, os verdadeiros Menfrey, não os por casamento, não somos tão bons assim. Quero voltar e quero que o meu bebê volte, mas não quero qualquer recriminação e nem ser admitida de má vontade.
      - Quer que se dê um banquete em honra da filha pródiga, não é?
      - Não, só quero voltar... e quero que você consiga isso. Quero que Benedict seja reconhecido como um Menfrey. E quero para sempre esquecer que um dia existiu alguém chamado Benedict Bellairs.
      - Mas o garoto tem o nome dele!
      - Bem, é que estávamos juntos quando ele nasceu. Foi só depois... quando comecei a não me sentir bem... que as coisas começaram a andar erradas entre nós.
      - Quando começou a não se sentir bem? Você está doente, Gwennan? Não parece...
      - Não pareço tão bonita agora, é o que quer dizer, não é? Tenho passado por momentos duros, Harriet.
      - Posso ver. Mas, o que é que você tem, Gwennan?
      - Ah, nada que o ar do mar não possa curar.
      - E o que está fazendo agora? De que está vivendo?
      Ela encolheu os ombros.
      - Gwennan, você tem de voltar comigo - falei, aterrorizada.
      - Ah, vai ser bonito, não vai? Quando nós sairmos juntas. A mulher do parlamentar, a rainha da elegância, com essa coisa em que me transformei.
      - Não posso deixá-la aqui.
      - Não, você vai voltar e lhes contar que me encontrou. Quero ser convidada para voltar para Menfreya. Esperava nunca ter de fazer isso, mas estou fazendo agora.
      - Vou voltar imediatamente. Mas deve vir comigo, Gwennan. Detesto ter de deixá-la aqui.
      Ela só balançou a cabeça, em negação.
      - Tem de vir comigo - insisti.
      - Quando Bevil ou o meu pai vierem me buscar, Harriet.
      - Vou direto para casa, e eles ainda hoje estarão aqui.
      - Você acha que estarão?
      - Lógico que vão estar!
      - Ah, você, Harriet - disse rindo.
      Esvaziei minha bolsa, ficando só com os trocados que ia precisar para fazer a viagem de volta, e sentia raiva de mim por não ter conseguido trazê-la comigo.
      - Logo estaremos juntas - disse, me despedindo. Corri então para a estação e, enquanto esperava o trem, sentei-me e fiquei a pensar em Gwennan, numa série de situações em que a havia visto: a cavalo pelos campos, nas cercanias de Menfreya; no baile de Chough Towers; indo a Plymouth experimentar o vestido de noiva; e tantas e tantas mais. Era insuportável a lembrança de como era e pensar em como estava agora.
      A viagem me pareceu excessivamente longa. Chegando a Liskeard, como não sabia da hora em que voltaria, tive de pegar o trem para Menfreystow e, de lá, caminhar até Menfreya.
      No momento em que entrava em casa, Bevil chegava a cavalo no pátio.
      - Bevil - gritei. - Preciso falar com você imediatamente.
      - Tenho uma coisa para contar a você - disse ele. Ele estava excitado, mas eu só via Gwennan em minha frente, sem poder pensar em mais nada. Mandou que um empregado pegasse o cavalo e, depois, me seguiu para dentro da casa.
      - Bevil, vamos para o quarto, preciso falar com você.
      Ele me segurou pelo braço.
      - Você nunca vai adivinhar - falou. - É incrível! O que é que você acha, Harriet?
      - Bevil, preciso falar com você. Estive em Plymouth...
      - Harry Leveret. Imagina só, ele está contra mim. O que é que está achando disso? Já viu uma dessas?
      - Mas Bevil, eu...
      - É claro que não vai ter muita chance, mas assim mesmo vou ter mais trabalho do que pensava. Um homem como ele, daqui mesmo...
      Não podia perceber o meu estado de aflição, não conseguindo pensar em mais nada a não ser na situação que Harry criou, pondo-se como seu adversário.
      Chegamos ao quarto, fechei a porta e disse, quase gritando:
      - Eu vi Gwennan!
      Isso o sacudiu! Por um instante ficou parado me olhando e, depois, de repente, perguntou:
      - Onde?
      - Num quarto imundo em Plymouth.
      - Deus meu!
      - Ela tem um filho.
      - E... aquele ator?
      - Ela o largou. Não chegou propriamente a se casar com ele.
      Ele estava perplexo. Percebi, então, que, ao mesmo tempo em que pensava na desgraça de Gwennan, uma outra idéia começou a interferir nesta, de preocupação com a irmã. Imaginava a volta dela para Menfreya: o escândalo, comentários e as indiscrições de seu pai que seriam relembradas.
      - Ah, esses Menfrey são uns selvagens. Será esse o tipo de gente que queremos para nos representar em Londres?
      E lá estaria Harry Leveret esperando, pronto para tomar o lugar de Bevíl.
      - Ela está doente. Quer que o filho seja criado aqui... como um Menfrey.
      - Isso não pode ser, Harriet - disse quase que sussurrando.
      - Quando for vê-la, Bevil, vai compreender que tem de poder.
      - Deve ter um outro jeito, além desse. Vamos cuidar dela, mas se vem para cá... com uma criança e sem marido... e agora, talvez, com uma eleição à vista...
      - Sei que vai ser difícil. Mas trata-se de Gwennan.
      - Deixe isso comigo - respondeu com voz firme. Olhei para ele com atenção, sem saber até onde conhecia meu marido. Estava desapontada. Havia pensado que fosse sentir-se como eu, achando que imediatamente iríamos falar do pedido de Gwennan aos seus pais e que logo ela estaria em Menfreya.
      - Vou vê-la amanhã - disse ele. - Nesse meio-tempo não diga nada aos outros.
      Tive de satisfazer-me com isso. Tinha certeza de que, quando visse Gwennan, ia ficar tão horrorizado quanto eu, e que imediatamente a traria de volta para casa.
      No dia seguinte, já era tarde quando Bevil voltou de Plymouth. Fiquei assustada ao vê-lo entrar sozinho em casa. Estava esperando por ele.
      - E Gwennan... - comecei a falar.
      - Ela está bem - respondeu. - Não precisa se preocupar.
      - Bem, como?
      - Resolveu que afinal não queria voltar.
      - Não quer voltar! Mas...
      - Percebeu o que representava sua volta. Não quer causar aborrecimentos. Acha que já causou o suficiente. Vou providenciar para que seja bem tratada.
      Fiquei, de repente, com raiva. Foi lá, falou com ela e fez com que entendesse que sua presença em Menfreya ia prejudicar-lhe a carreira. Havia tornado a volta dela impossível.
      - Vou procurá-la e falar com ela - disse eu. Ele encolheu os ombros.
      - Não está acreditando em mim, Harriet? - perguntou com frieza.
      Estava cansado - física e espiritualmente -, dava para perceber. E eu havia compreendido que a volta de Gwennan não era motivo de glória para a família, com relação à vizinhança, mas achava que a única coisa a fazer no momento era tratar dela.
      - Não sei em que acreditar.
      -- Nesse caso, pode ter certeza de que fiz tudo o que podia para ajudá-la.
      - Tudo o que podia? Por quem? Por Gwennan ou pelo bom nome da família? Agora tão importante, com uma eleição se aproximando.
      - Por Deus, Harriet, não seja tola! Não foi agradável o que vi, juro. Gwennan não quer voltar para casa, mas pode acreditar que vai ficar bem. Vai ter uma pensão, e a criança será bem protegida. Você não disse nada para mamãe, não é? Ela ia ficar muito preocupada.
      Respondi mexendo apenas com a cabeça, em negativa.
      Fui para o quarto e sentei junto da janela, contemplando o mar. Ele decidiu que ela não voltaria, achava que bastava ter dinheiro. Mas isso não era suficiente, o que ela tinha pedido era para voltar para Menfreya. E pensei na mãe deles: amável e inútil, uma mulher que aceitou a regra dos homens da família, o que eu jamais faria. Agora era uma deles, é verdade, mas não ia deixar de ser eu mesma.
      Ali estava a minha casa na ilha. Se Gwennan não podia vir para Menfreya, iria para lá, de onde ficaria vendo Menfreya e, assim, seria mais feliz.
      E tomei uma decisão. No dia seguinte iria a Plymouth ver Gwennan.
      Na manhã seguinte, Bevil parecia o mesmo, como sempre foi. Dava a impressão de que, na cabeça dele, o assunto Gwennan estava indubitavelmente classificado como concluído. Provavelmente, iria procurar seu advogado para providenciar uma pensão para ela e, mais tarde, cuidaria da educação da criança. Podia até, em intervalos regulares, visitá-la. Mas, em minha opinião, não era esse o tipo de atenção de que Gwennan necessitava.
      Não falei nada sobre o assunto enquanto tomávamos o café da manhã, e creio que isso deve tê-lo iludido, passando então a conversar de forma costumeira.
      - A campanha vai ser duríssima, Harriet; quero que apareça ao meu lado. Vamos percorrer as cidades perto daqui e também ir aos distritos mais afastados. Acho que o seu gosto pela coisa vai aumentar, sabe?
      Fiquei orgulhosa em ser incluída. Estar perto dele, compartilhar de sua vida, era afinal o que eu queria, mais do que qualquer outra coisa. Além do mais, me interessava pelas vidas de nossos eleitores e estava gostando muito do trabalho que fazia em Lansella. Muitas vezes socorremos velhos trabalhadores rurais, que estavam com medo de serem expulsos de suas casas. Bevil tinha especial talento para tratar com velhos. Segundo dizia, era um dom inerente à classe dos proprietários, que há séculos o cultivavam. Uma das coisas que desejava era modernizar as casinhas dos pescadores ao longo da costa, erguidas há centenas de anos, que, apesar de muito pitorescas, pecavam pela falta de higiene. Havia uma quantidade de assuntos como esse para serem tratados, e Bevil era um trabalhador infatigável. Podia trabalhar para essa gente, pensei comigo, e não deixava a própria irmã voltar para a casa dela, com medo da repercussão que isso poderia ter. Até certo ponto, podia entender seu medo. A batalha pela cadeira no Parlamento ia ser feroz, e o perigo surgiu da parte que menos se esperava. Sabia muito bem o que iriam dizer os seus opositores. O velho Menfrey já se envolvera num escândalo, que fez com que, durante muitos anos, não houvesse um Menfrey no Parlamento, e agora o de Gwennan Menfrey, que fugiu para Plymouth e voltou de lá com um bebê sem pai. São esses os Menfrey que são oferecidos a você. Seria a gente que gostaria que o representasse no Parlamento?
      Além disso, a força dos radicais aumentava na região. A influência de William Ewart Gladstone, embora morto já há alguns anos, era grande, e ele se transformava numa legenda, mesmo para eleitores que, por gerações, vinham de famílias notoriamente identificadas com o Tory.
      E, por fim, Harry Leveret, com uma conta a ajustar com os Menfrey e, ainda por cima, dispondo dos recursos de um milionário para sustentar a sua campanha.
      - Temos uma batalha pela frente, Harriet, e você vai me ajudar a vencê-la. Esta tarde você vai comigo a Lansella, e vamos encontrar alguns delegados e trabalhadores. Afirmei que minha mulher desejava participar da campanha.
      Ouvia pouco do que estava dizendo, pois pensava: vou a Plymouth logo que ele sair e voltarei a tempo para ir a Lansella. Mas, primeiro, tenho de ver Gwennan e saber por que mudou de idéia.
      Amava Bevil, mas precisava preservar minha personalidade. Nunca iria tornar-me a espécie de mulher que Lady Menfrey hoje é: sem vontade própria, uma escrava dos homens da família. Se Bevil e eu estávamos para construir uma relação digna, que ele entendesse que eu não ia ser sombra de ninguém, nem mesmo dele! Eu tinha de ser eu mesma.
      Imediatamente após a saída de Bevil, mandei chamar a carruagem e fui para Liskeard, onde peguei o trem para Plymouth. Voltaria no de meio-dia, e a carruagem estaria esperando por mim.
      Pela segunda vez, caminhei por aquela viela suja e abri a porta da miserável casa de cômodos, onde vivia Gwennan.
      Subi a escada e bati à porta dela. Não houve resposta. Abri a porta.
      - Gwennan - chamei. - Sou eu, Harriet.
      Não estava lá, ninguém estava. Voltei e desci. A porta que estava aberta quando estive ali da outra vez continuava do mesmo jeito. E também a mulher, ainda na cadeira de balanço. Tenho a impressão de que era a locadora ou alguma coisa como porteira.
      - Estou procurando pela Sra. Bellairs - disse eu.
      - Ela foi embora. Foi com um senhor que veio buscá-la.
      - Para onde foi?
      - Não deixou endereço.
      - Foi com o bebê?
      - Com o bebê e com o senhor que veio aqui. Ela me devia três semanas, e ele pagou certinho até o fim da semana... só o devido. A senhora vê, eu agüentava esperar esses atrasos dela.
      - Mas ela deve ter deixado algum endereço.
      - Não deixou. Saiu correndo, apressada. Foi embora com ele.
      Então, por isso, Bevil estava tão à vontade. Tinha carregado Gwennan para algum lugar e não iria deixar ninguém de Menfreya saber onde era.
      Isso de Bevil me deixou chocada e abatida. Fui caminhando para o promontório de Plymouth, e fiquei por muito tempo ali sentada, pensando em Gwennan e nele, me sentindo arrasada.
      Só me dei conta de quanto tempo permaneci ali quando olhei o relógio e vi que tinha perdido o trem. Lá pelo fim da tarde é que iria chegar em Menfreya.
      Quando Bevil chegou em casa naquela noite, eu estava no quarto.
      Estava zangado, mas não muito, pensei.
      - Você me fez passar por idiota - ele explodiu.
      - Ah, desculpe-me.
      - Então foi a Plymouth. Não acreditou no que lhe disse e teve de ir ver por você mesma, não é? Deu um passeio sem necessidade.
      -- Um passeio com a finalidade de ajudar uma amiga.
      - Tive de arranjar desculpas em Lansella por sua causa. Inventei que não estava passando bem. Agora, no próximo comício, combinei para você dizer umas palavras.
      - O que se espera que eu diga? Que tenho um marido em quem podem confiar, pois conheço a conduta que tem em relação à irmã?
      Agora Bevil realmente ficou com raiva. Vi pelo brilho de seus olhos.
      - Eu não lhe disse que Gwennan não ia voltar e que tudo foi arranjado para ela ser amparada? E o que você quer me dar a entender é que não acredita em mim, que tem de ver por você mesma. É isso ou não?
      - Como pode ser assim com a própria irmã?
      - Fiz apenas a vontade dela.
      - Dela não, Bevil, a sua. Pensa que não estou percebendo?
      Ele me agarrou pelo braço e me sacudiu.
      - Já estou cansado disso, não gosto de passar por bobo.
      - Não gosta de passar por bobo na frente dos amigos, mas não se importa de passar por perverso aos olhos da mulher.
      Ao me encolher, porque a força de sua mão me machucava o braço, ele disse:
      - Preciso me mostrar digno da opinião que tem de mim.
      - Acho que devemos ter um entendimento - propus, dando um puxão e me libertando. Ele ficou do meu lado.
      - Ah, claro, um entendimento.
      - Porque me casei com você, isso não quer dizer que tenho de ter suas opiniões. Não tenho de ser bruta, se você é assim. E Gwennan quer voltar para Menfreya.
      - Mas estou dizendo que ela não quer.
      - Queria, até você ir vê-la.
      - Já lhe disse que ela prefere as coisas como estão. Será que não pode acreditar nisso?
      Não respondi, afastando-me dele.
      - Onde você vai? - perguntou.
      - Creio que um de nós tem de dormir no quarto de vestir.
      - Mas eu não.
      - Se você pensa assim, então durmo eu.
      - Não quero que nenhum de nós durma lá.
      Ele, naturalmente, era mais forte do que eu. Nunca pensei que tivesse de lutar fisicamente contra ele, mas lutei, e quanto mais me debatia, mais resolvido ele estava a me subjugar.
      Soube ser cruel e bruto. Então, eu falei, já sem fôlego:
      - Está maluco? Não sou nenhuma dessas garotas que você estupra quando lhe dá na telha.
      Nada podia contra ele. Estava à sua mercê. Foi a experiência mais amarga de toda a minha vida.
      Fanny trouxe a bandeja com o café da manhã, botando-a do meu lado.
      - Você está com um ar cansado - disse ela.
      - É que não tive uma noite muito boa.
      - O Sr. Menfrey saiu cedo hoje. Bem, vou trazer alguma coisa para você botar sobre os ombros.
      Ela pegou uma liseuse, e quando fui enfiar o braço na manga, a da camisola suspendeu e aí apareceu um machucado bem feio no meu braço.
      - Credo! - gritou Fanny. - Onde arrumou isso?
      Ao ver o machucado, cheguei a levar um susto.
      - Eu... eu não sei.
      - Vou buscar uma boa loção para passar aí. Vai melhorar logo.
      E, ao passar a loção, descobri que meus ombros também estavam machucados.
      - Acho que também não se lembra de como arrumou esse outro.
      Seus olhos lançavam chispas de ódio. Sabia o que ela pensava. Nunca havia gostado de Bevil, e me alertara contra ele - era o que agora queria me fazer lembrar.
      E, daí por diante, mais do que nunca iria detestá-lo. Para ela, estava decidido: ele havia me maltratado fisicamente.
      No palanque, sentada ao lado de Bevil, quando olhava para baixo, via uma infinidade de caras. Aparentemente, ele estava calmo. Acabara de fazer um lindo discurso e se mostrava extremamente atencioso comigo, mas no fundo temia.
      O nosso relacionamento estava passando por certas mudanças. Éramos polidos um com o outro. Creio que se sentia até um pouco envergonhado da força que usara. Nunca mais se referiu ao incidente, mas sabia que aquela demonstração de força iria ficar como um marco em nossa relação: da mulher esperava obediência, e, enquanto ela obedecesse, seria tratada com respeito; senão, lá estava ele para dar uma lição, por mais desagradável que pudesse ser. Meu amor por ele, porém, não mudou; desde criança que existia, e acho que jamais iria diminuir. Não importava o que ele fosse, nunca deixaria de querê-lo. E ele sabia disso, porque, mesmo afrontada na minha dignidade, a necessidade que sentia dele era arrebatadora e me traía. E o que eu queria, afinal? Um herói que não existia? Bevil era o homem certo para mim, o tipo do Menfrey selvagem que sabe o que quer e como consegui-lo.
      Entretanto, odiava o que fizera com Gwennan, e, se pudesse, eu a traria de volta para Menfreya. Só me daria por satisfeita quando fizesse isso, e por mais que Bevil fosse me detestar, era o que faria.
      Conseguiu vencer essa batalha por ter sido mais esperto do que eu. Mas não deixou de se comportar como qualquer conquistador diante do vencido. E, no momento, dava mostras de que estava pronto para perdoar minha loucura e de querer que tudo voltasse ao que era antes. E, assim, sentada ao seu lado no palanque, esperando ser chamada para dizer, em poucas palavras, que adorava meu marido, que ele sempre poderia contar com o meu apoio em tudo que fizesse, que éramos devotados um ao outro e que nunca haveria escândalos nos rodeando, do tipo que obrigou seu pai a se afastar da política.
      Dava para perceber que Bevil estava se sentindo inseguro. Sabia que eu era dona de minha vontade e que, no momento, Gwennan se interpunha entre nós. Quando chegou minha vez de falar, me levantei e olhava fixamente para um passarinho de enfeite no chapéu de uma mulher sentada na primeira fila. Então, todos os olhos ali cravaram-se em mim, cheios de curiosidade. Eram fileiras de rostos. Na minha mão, um papelzinho com o discurso que o delegado escreveu e que eu decorei.
      Era o protótipo de milhares de outros discursos.
      Comecei a falar, mas não o que estava escrito. Olhei para Bevil, sentado mais à frente, e vi que parecia alarmado. Mas depois... começou a sorrir. Também as expressões nos rostos das pessoas iam se modificando, tornando-se mais atentas e interessadas.
      Não me lembro do que disse, só sei que fui espontânea. Em síntese, disse-lhes por que deviam apoiar meu marido.
      Em três minutos acabei, sendo muito aplaudida, e fui sentar-me, ligeiramente trêmula. Fui um sucesso.
      - Essa foi uma tarde esplêndida - disse Bevil. - Você é um achado, Harríet Menfrey.
      E, enquanto voltávamos para casa, ele estava terno e amoroso, fazendo com que me sentisse quase feliz. E o seria, se conseguisse esquecer-me de Gwennan.
      Não falei mais dela, e Bevil não era homem que percebesse o mau humor alheio. Para ele, as coisas eram o que tinham de ser. Casou com uma mulher que seria ótima companheira para um político, mulher que lhe trouxe dinheiro também, para que agüentasse as despesas familiares e, além do mais, tinha bastante espírito nas ocasiões em que era preciso; mas ele sabia como subjugar esse espírito, pois afinal ele era o macho todo-poderoso, e ela, apesar de sua língua afiada, apenas uma mulher. Também não era nenhuma beldade, por isso mesmo também não era mimada.
      Bevil, naquela noite, estava muito satisfeito com o casamento.
      Nas semanas seguintes, estava sempre na sua companhia. Levava-me a toda parte e, gradualmente, nossa relação voltou ao que fora no tempo da lua-de-mel. Graças ao tempo que gastei me saturando de política, podia agora discutir inteligentemente os acontecimentos, e isso me dava grande satisfação. O que me deixava mais feliz era ver Bevil, sentado, braços cruzados, rosto grave, olhos abaixados como para esconder o prazer que estava tendo por me ver fazer comentários corretos ou, então também, quando ocasionalmente ouvia os meus discursos nos palanques.
      Pela primeira vez na vida, havia conseguido esquecer-me inteiramente de meu defeito físico. Tinha certeza de que nenhuma mulher fisicamente normal teria dado mais prazer a Bevil do que eu... pelo menos nessa ocasião.
      Mas a vida não pára.
      Mais ou menos dois meses após ter recebido a carta de Gwennan, chegou outra. Esta, agora, muito curta.
      Querida Harriet. Isto é muito urgente. Preciso ver você. Por favor, venha tão logo receba esta carta. Não deixe que nada impeça sua vinda. Por favor, Harriet.
      Gwennan
      No alto da carta estava escrito um endereço em Plymouth.
      Quando abri a carta, Bevil estava no quarto de vestir, mas não tive coragem de mostrá-la a ele, temendo que fosse botar obstáculos à minha ida e, dessa vez, resolvi que não ia deixar Gwennan em falta.
      Quando entrou, indo sentar-se na beirada da cama, tagarelando sobre o programa do dia, eu já escondera a carta. Estava combinado que, pela manhã, eu passaria no escritório de Lansella, onde iria porque marcara encontro com algumas senhoras, para ouvi-las falar de seus problemas, anotá-los e depois esclarecê-las com conselhos. Era uma tarefa da qual me havia desincumbido particularmente bem.
      Não diria a Bevil que ia a Plymouth. Já me via em luta com ele, a carta sendo descoberta e talvez até ele indo em meu lugar.
      Chegaríamos de volta para o almoço em Menfreya, e à tarde, então, estaria livre, já que Bevil tinha compromissos que não me incluíam.
      A manhã parecia mais comprida do que nunca, e levei o tempo todo com medo de que pudesse surgir alguma coisa que me impedisse de ir. Mas, por fim, fiquei livre.
      Eram mais ou menos 4h quando cheguei à estação e peguei um carro de aluguel para ir ao endereço enviado por Gwennan.
      Paramos diante de um hotel pequeno, mas de aparência respeitável, onde provavelmente Bevil a instalara.
      Ao perguntar pela Sra. Bellairs, a recepcionista arregalou os olhos e me disse para esperar. Saiu e, minutos depois, apareceu a proprietária.
      - Ah, agora me sinto um pouco mais aliviada - disse ela. - Por favor, entre aqui.
      Levou-me à sala de recepção, modesta, mas agradável.
      - A senhora é parente? - perguntou.
      - Sou cunhada dela.
      Realmente parecia aliviada.
      - Ela morreu esta manhã.
      - Morreu... - repeti maquinalmente.
      - Não teve mais jeito. Estava muito fraca... Há muito tempo não devia cuidar da saúde. Quando chegou aqui, já era tarde demais, e todos estávamos sabendo que o fim não devia demorar. Já mandei avisar o irmão.
      - Quando?
      - A carta foi posta esta manhã.
      - E a criança?
      - Uma das empregadas está cuidando dela. Dou graças a Deus que tenha vindo. É claro que, para tomarmos as providências, tínhamos de ter primeiro as instruções. Por acaso é a Sra. Harriet Menfrey?
      - Sim, sou eu mesma.
      - Tenho uma carta para a senhora. Ela pediu que lhe fosse entregue em mãos, se fosse possível. Vou já buscá-la.
      Por alguns segundos fiquei parada, olhando para a letra da carta e pensando em Gwennan... morta.
      Querida Harriet,
      Escrevo no caso de não ter mais tempo para falar com você. Estou morrendo. Há meses que sei disso. Depois que Benedict foi embora, levei uma vida muito dura. Com muitas preocupações e sem dinheiro. Houve tempo em que quis voltar para Menfreya e morrer lá, mas percebi ser impossível. Quando Bevil veio ao meu encontro, compreendi isso. Não que ele tivesse dito alguma coisa, pelo contrário, achava que eu devia voltar e me tratar lá, mas vi que isso não seria bom. Não se pode voltar e querer que as coisas sejam como eram antes. O destino já estava traçado, como dizem. Sei que não ia agüentar ter de dar explicações por ter tido um filho, e toda a confusão que arranjei. Seria muito humilhante, e sou muito orgulhosa. Assim, apesar de Bevil ter tentado persuadir-me, não voltei. A decisão já havia sido tomada, e ele soube entender, porque conhecemos bem um ao outro. Bem, mas existe Benny, e se estou lhe escrevendo, Harriet, é porque você é a pessoa que quero que tome conta dele. Quero que o leve para Menfreya e cuide como se fosse a própria mãe dele. Porque você também foi órfã de mãe, Harriet, estará em vantagem e entenderá o fato melhor do que qualquer outro. Talvez possa já estar morta quando estiver lendo esta carta. Já estou, neste momento, morrendo, Harriet. Como foi diferente a vida para mim, depois que abandonei Menfreya. Noites em claro, quartos atravancados, cubículos baratos nos teatros e daí, é claro, a desgraça e a pobreza. Provavelmente não pude suportar tudo isso. Bevil tem sido bom para mim. Foi quem me trouxe para cá, e desde então, pelo menos, Benny está alimentado e agasalhado. Queria voltar, mas faltou-me forças para encarar tudo isso. Entretanto, quando não estiver mais aqui, Benny tem de ir para Menfreya.
      Bem, Harriet, este, como se diz, é meu último desejo. Pegue o meu filho, e que ele seja educado como se fosse seu. Não deixe que mais ninguém fique com ele, e, quando ele precisar de você, pense em mim. Lembre-se: é como se fosse Gwennan mesma precisando de você, Harriet... tanto agora como mais tarde. O nome dele é Benedict Menfrey. Lembre-se disso também: que ele seja conhecido pelo seu verdadeiro nome. E se você e Bevil não tiverem filhos, então Menfreya pertencerá por direito a ele.
      Esperava vê-la antes de morrer, mas não posso saber ao certo quando minha hora vai chegar. Pode ser de repente, e tal como na história da virgem boba (o adjetivo me serve, não o substantivo), posso ser surpreendida com a lamparina apagada, e o meu filho ficaria tropeçando por aí no escuro.
      Harriet, nós fomos muito ligadas uma à outra, não é? Sei que sempre foi uma amiga melhor para mim do que eu para você. É por isso que lhe peço agora para fazer isso por mim. E depois de ter lhe escrito, já estou me sentindo mais feliz de partir, porque confio em você.
      Com todo o meu amor, sua melhor amiga.
      Gwennan
      Por alguns momentos fiquei sem poder falar. A proprietária havia saído nas pontas dos pés, me deixando sozinha. Gwennan estava morta. Sentia-me profundamente abalada, mas também com raiva. Isso não precisava acontecer, ficava me dizendo. Se tivesse casado com Harry, agora estaria viva. Na verdade, ela e Benedict Bellairs nunca tiveram uma grande paixão um pelo outro. Apenas, mais uma vez, havia agido de acordo com o seu modo estouvado e irresponsável e, por isso, a maravilhosa moça agora estava morta.
      E Bevil? Eu o julgara mal, e estava envergonhada. Que estúpida tinha sido! Precipitada, tola, com suspeitas infundadas. Como devia me desprezar por tudo o que fiz! Mas me consolava o fato de ele não ter sido cruel com ela. Havia tentado trazê-la de volta, foi ela quem se recusou a vir.
      Dobrei a carta, guardei-a no bolso e me dirigi ao hall do hotel. A proprietária, que me esperava do lado de fora, animou-se a conversar comigo, ao ver que já me controlava melhor.
      - E o menino? - perguntei. - Onde está?
      - Vou levá-la até ele.
      Balancei a cabeça, concordando.
      - Mas primeiro não gostaria de vê-la?
      Hesitei. Como é que estaria depois de morta, a minha linda e orgulhosa Gwennan? Lembrei-me do choque que tive ao vê-la pela última vez.
      - Não gostaria de lembrar-me dela desse jeito.
      - Ela parece em paz - murmurou a mulher.
      Fomos, então, ao quarto em que Gwennan tinha vivido, depois de transferida por Bevil de seu alojamento miserável. O quarto era pequeno, um tanto escuro, mas arrumado e limpo. Ela jazia na cama. Parecia diferente, e os cabelos castanhos continuavam brilhantes, contrastando com a lividez da pele. O que mais me surpreendeu, no entanto, foi a expressão serena do rosto dela. Nunca tinha visto antes tal expressão facial nela. Meus olhos se dirigiram, então, para um bloco em cima de uma mesinha. Imaginei-a me escrevendo - a tampa do tinteiro na prateleira ainda estava aberta, e a caneta, atravessada sobre o bloco.
      Gwennan, disse para mim, pode contar comigo, aconteça o que acontecer. E aí retirei-me.
      - O corpo já está arrumado - disse a proprietária do hotel. - Espero que a família ache que tudo tenha sido cuidado de forma adequada.
      - Acho que sim. O irmão dela, isto é, meu marido, virá logo que receber a carta. Eu vim porque ela me escreveu. Mas ele ainda não sabe. Vai saber quando eu chegar em casa... ou logo que receber a carta.
      Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.
      - Essas coisas são sempre muito desagradáveis para os "outros hóspedes". Espero que me entenda.
      - Sim, claro.
      - E quanto à criança? - perguntou ansiosamente.
      - Vou levá-la comigo.
      - Tenho certeza de que é a melhor coisa que tem a fazer. Vou com a senhora até onde ele está.
      Benny estava sentado sobre um tapetinho vermelho, diante da lareira, quando abri a porta, e examinava as pontas de suas botinhas. Uma mocinha, sentada numa cadeira, tomava conta dele.
      Ela sorriu para mim e disse:
      - Esse menino é uma jóia.
      Atravessei o quarto e fui ajoelhar-me junto dele. Não podia haver dúvidas quanto a ele ser um Menfrey. Os mesmos cabelos e olhos castanhos e o mesmo brilho no olhar, Não devia ter mais de um ano, e era espertíssimo para a idade.
      - Olá, Benny - falei.
      - Olá.
      - Sou tia Harriet.
      Ele mexeu a cabecinha, repetindo:
      - Tia Harriet.
      Não teve dificuldades de dizer o nome, o que me fez pensar que já o teria ouvido antes.
      Agarrou meu braço para levantar, aproximando-se para mais perto de mim e me examinando com atenção. Reparei na maciez de sua pele e o nariz curto, narinas largas - uma réplica do de Gwennan. Jamais poderia esquecer-me dela, enquanto tivesse seu filho a me fazer recordá-la.
      - Você vem comigo? - perguntei.
      Ele afirmou com a cabecinha e, imediatamente, seus olhos se iluminaram. O mesmo espírito de aventura que caracterizou sua mãe e que, talvez, tenha sido a causa de sua ruína.
      - Vamos para Menfreya - disse eu.
      Seus lábios formaram o nome com felicidade, e achei que também já o ouvira.
      - Está na hora de ir. Vamos?
      Minha volta não podia ter sido mais dramática. Em Menfreystow, consegui uma carruagem, e eram quase 8h quando cheguei em Menfreya, onde começavam a preocupar-se com minha ausência. Podia passar a tarde fora sem dizer onde estava, mas não podia atrasar-me para o jantar.
      Bevil tinha convidados, e o jantar estava para ser servido. Felizmente Lady Menfrey estava lá para receber, mas naturalmente as visitas esperavam me encontrar também.
      E foi um momento de grande tensão quando entrei em casa, meio cambaleando, com uma criança adormecida nos braços. Ouvi Pengelly soltando uma exclamação de espanto e, de repente, me pareceu que Bevil, meus sogros e os convidados surgiram todos ao mesmo tempo na escada.
      Sempre que me recordo da cena, é achando graça dela. A rueira que voltava, mas não sozinha, retornava com uma criança nos braços.
      Ouvi, aí, a voz de Bevil:
      - Harriet, santo Deus, o que é isso?
      - Gwennan morreu. Trouxe seu filho para casa - falei.
      Lady Menfrey desceu correndo a escada.
      - Harriet... Harriet... o que é que você disse?
      Bevil estava ao meu lado, e eu consciente da presença das pessoas desconhecidas ali, mas me sentia tão exausta da viagem e das emoções e, ainda por cima, com medo do modo como iriam receber a criança, que vi que não ia agüentar-me por muito tempo mais.
      - Amanhã, vai ficar sabendo - disse para Bevil - irá chegar uma carta do hotel onde ela está. Morreu esta manhã. O nome dele é Benedict Menfrey. É assim que ela quer que ele se chame.
      Lady Menfrey tomou o menino de meus braços, e as lágrimas corriam pelo seu rosto. Vi que ia amá-lo, alguém pelo menos ia colocá-lo no lugar de seu coração deixado vazio por Gwennan.
      - Você está exausta - disse Bevil com a voz tensa.
      - Foi um dia exaustivo.
      - Temos visitas - ele acrescentou, com a voz menos tensa, mas parecendo estar confuso.
      Uma senhora, que sabia ser mulher de um dos que trabalhava no partido, aproximou-se de mim, segurando minha mão.
      - Não se preocupe conosco, Sra. Menfrey, a senhora está precisando descansar.
      Sorri para ela, agradecida, e Bevil então disse:
      - Você devia ir direto para a cama, Harriet. - E, voltando-se para os convidados, falou: - Por favor, desculpem-me por uns momentos.
      Seguiu comigo ao nosso quarto. Fechou a porta e esperei que a tempestade desabasse. O que, afinal, eu fizera? Apenas posto em risco as chances dele. O escândalo de Gwennan, que estava só em família, seria daqui em diante de domínio público, e tudo por minha culpa.
      Senti que em torno de minha boca formaram-se aquelas rugas características de minha obstinação, mas levantei a cabeça e fui capengando cheia de dor até a cama, onde sentei-me e o encarei.
      - Nada mais há a fazer - disse-lhe com raiva. - E nunca mais pensarei em fazer nada.
      Aí cobri meu rosto com as mãos. Pensava em Gwennan, muito branca, estendida na cama, com uma expressão de calma no rosto que, em vida, nunca teve.
      Senti, então, que Bevil segurava minhas mãos com suavidade, pronunciando meu nome com brandura.
      - Harriet.
      - Morta! Gwennan, sempre tão cheia de vida e, agora, morta...
      Ele não falou, mas me olhou com piedade.
      - A criança vai ficar aqui - disse, forçando um tom de raiva na voz para esconder minha dor. - Vou cuidar dela, e se você não quiser que fique, então... então vamos, ela e eu, embora juntos.
      - Harriet, o que é que está dizendo?
      Tentei retirar minhas mãos das dele, pois tinha medo de não poder controlar as emoções. Para mim era demais. Gwennan morta... nunca mais vê-la... e Bevil, me odiando por ter ido contra sua vontade, trazendo a criança para Menfreya.
      Mas ele me envolveu nos braços, mantendo-me perto dele.
      - Mas é claro que a criança vai ficar aqui. E você também. Ouça, Harriet Menfrey, você está pensando que se casou com um bruto... e talvez tenha mesmo. Mas o que lhe posso dizer é que só há uma coisa que não agüento: é viver sem você... Assim, ponha isso na sua cabeça de uma vez para sempre.
      - Oh, Bevil, Bevil - murmurei.
      Ele me abraçou, e só então tive uma certa sensação de consolo.
      Mas subitamente o seu senso prático reapareceu.
      - Vou mandar Fanny aqui. Mamãe está cuidando do menino. Nada temos com que nos preocupar - falou. Aí me deu um beijo e disse ainda: - Você deve saber disso.
      Voltou então para os seus convidados, que a essa altura deviam estar alvoroçados, mortos de curiosidade. Não podia imaginar que história estaria lhes contando, mas estava muito cansada para me importar com isso.
      Fanny chegou e me ajudou a aprontar-me para dormir. Fiquei deitada de costas, imóvel sobre os travesseiros, pensando. Ter trazido a criança para Menfreya me dava uma certa sensação de alívio, mas a lembrança de Gwennan era tão dolorosa como se fosse uma dor física.
      A presença de Benedict em Menfreya foi facilmente explicada. Gwennan fugira com um ator e se casou com ele contra a vontade da família. Tendo morrido, seu filho agora estava em Menfreya, fato perfeitamente natural. O nome do menino era Benedict Menfrey porque ele era um Menfrey, e não era a primeira vez que se mantinha o nome de família dessa forma. Já havia existido uma filha, única herdeira, que, ao se casar, foi o marido quem teve de mudar de nome.
      Era uma casa vivendo o luto, e quando me dirigi a Bevil para lhe pedir humildemente desculpas, ele apenas disse:
      - De uma certa maneira, Harriet, você estava com a razão, eu devia ter insistido com ela para voltar.
      William Lister, sempre discreto e eficiente, cuja maior qualidade parecida de não se fazer notado a não ser quando dele se precisasse, foi para Plymouth com Bevil, e os dois tomaram as providências para que se fizesse o enterro. E Gwennan está hoje enterrada na cripta da igreja que fica no outeiro8 junto a Menfreystow.
      A criança trouxe uma nova atmosfera para a casa, e logo ficou sendo o grande favorito dos avós e da maioria dos empregados. Há muito tempo não via Lady Menfrey com um ar tão feliz, e foi aí que percebi o quanto ela devia ter sofrido com a perda da filha.
      De vez em quando Benny perguntava pela mãe, e contávamos então para ele que ela partira para muito longe, por isso ele estava conosco. Às vezes também chorava, chamando por ela, e era a hora de inventarmos brincadeiras para consolá-lo. E, gradualmente, fomos conseguindo desviar seu pensamento do passado. Menfreya continha diversões como ele nunca tinha visto antes. Por todo lado a casa jorrava maravilhas: armaduras, velhas tapeçarias e quadros, todo um mundo novo para ele. Era o queridinho de todos. Logo fez amizade com o avô e com Bevil, e era parecido com os dois.
      Foi grande a agitação quando Lord Salisbury morreu, e imediatamente surgiu uma crise no sistema financeiro.
      Bevil foi chegando em casa e perguntando por mim.
      Estava me vestindo para jantar quando ele entrou espavorido no quarto, contando os acontecimentos.
      - Isso pode significar uma eleição a curto prazo. Não podemos brincar nessa luta.
      - Lógico que vamos vencer - respondi.
      Ele se sentou na cama e me pegou as mãos, me puxando para junto dele.
      - Você gosta de uma briga, hein?
      - Não, acho que não.
      - Hum, mas quando uma batalha tem de ser travada, você luta para valer, não é?
      - E todo mundo não faz assim?
      - Claro, no bom combate a gente se entrega de corpo e alma. Duas vezes armado está aquele que luta por uma causa justa. Está certo? Devia saber disso, Harriet. E você está doida por essa luta, não é verdade?
      - O que quero é ver você vitorioso.
      Ele riu.
      - Isso é que é. Fala como uma boa e virtuosa mulher. Oh, Harriet querida, uma boa mulher vale mais do que rubis. Isto está na Bíblia.
      - E os Menfrey já tiveram chance de testar isso.
      - O que é que quer dizer?
      - Pensava na mesa de onde arrancaram os rubis do tampo. Alguém me disse que, um a um, foram vendidos, e quando acabaram, os Menfrey foram obrigados a procurar mulheres ricas.
      - Quem lhe contou essa história?
      - Acho que Gwennan.
      - Pobre Gwennan, pelo menos seu filho está agora aqui.
      - Fico com tanta vergonha quando me lembro das conclusões precipitadas que tirei.
      Ele deu um sorriso para mim.
      - Bem, mas eu também não me comportei lá muito bem. Nisso tudo, uma coisa ficou clara, Harriet: mesmo tendo sido um animal, e por mais nojento que me achasse, você continuou gostando de mim.
      - Ora, isso porque sou uma idiota.
      - Tem razão, mas eu também continuo a gostar de você.
      Ele me beijou com força nos lábios e, então, lhe disse:
      - Nada de barulho. Fanny pode ouvir.
      Sua testa franziu-se.
      - Essa mulher não gosta de mim, não é Harriet?
      - Não, ela só desaprova um pouquinho. Lembre-se de que sou a filha que ela não teve. Acha que ninguém é suficientemente bom para mim.
      - Pode ser que ela tenha razão. Mas, se tenho a sua aprovação, para que vou querer a dos outros? E da sua eu preciso, querida. Bem, e agora nessa eleição, partimos juntos para a luta. Ah, Harriet, minha magnífica Harriet. Nos próximos meses, talvez anos, você estará ocupadíssima para passar dias inteiros cuidando de Benny.
      - Mas a avó está sempre pronta para vir em socorro.
      - Nem sempre ela está bem, e já lembrei que é mesmo tempo de se pensar numa governanta.
      - E, claro, ela concordou com você.
      - Isso é óbvio. Eu preciso mais de você do que o Benny.
      Sentia-me tão feliz por ser querida que esconder isso seria impossível.
      Mais tarde, conversou-se sobre a governanta que se queria. Sir Endelion e Lady Menfrey acharam a idéia excelente. Os dois adoravam o menino, e estavam sempre ansiosos em conseguir o melhor para ele. Entretanto, nenhuma providência foi tomada a respeito da governanta, e a impressão era de que Lady Menfrey não estava muito preocupada em arrumar alguém. Ela mesma gostava de cuidar dele.
      - Ele ainda é muito pequeno - disse certa vez.
      Mas Sir Endelion foi a Londres para visitar uns amigos e, após duas ou três semanas de seu retorno, recebeu uma carta. Não fez nenhum comentário a respeito, mas ficou evidente que alguma coisa que o alegrava muito tinha acontecido, pois ficava dando risinhos sozinho. Até que, numa noite, durante o jantar, finalmente deu a notícia:
      - Enquanto vocês falavam no que iam fazer, eu agia. Encontrei a governanta para vocês.
      Nós todos olhávamos para ele, mas sua atenção estava voltada para Pengelly, que despejava o clarete em seu copo.
      Bevil sorria. Achei que estivesse contente por ter sido o primeiro a dar a idéia da governanta de Benedict a fim de me deixar livre para ajudá-lo.
      Sir Endelion sacudia a mão.
      - Terão uma surpresa - afirmou.
      - Está querendo dizer, Endelion, que você contratou uma governanta?
      - Isso mesmo, minha querida.
      - Mas como é que sabe que ela tem qualificações para...
      - Não tenho a menor dúvida de que a pessoa vai nos trazer grandes satisfações.
      - Mas realmente...
      - Espere um pouco, ela vai chegar no fim da semana.
      - Mas não estou entendendo.
      - Você verá, minha querida.
      Lady Menfrey parecia apreensiva. Os olhos de Bevil se encontraram com os meus, e ele deu um largo sorriso para mim.
      - É o que estávamos querendo, hein? - disse ele.
      - Mas que jeito mais estranho... - comentava Lady Menfrey.
      - Ela precisava de um emprego; nós tínhamos um para oferecer. Vêem? Tudo muito simples - disse Sir Endelion, e continuou dando seus risinhos. - Esperem e irão ver.
      Fomos a cavalo, Bevil e eu, para Lansella. Era uma maneira de aliar o prazer ao trabalho, além de exercitar também os cavalos.
      Aquela tinha sido uma manhã de muito serviço e, na volta para casa, nós costu-mávamos discutir as dúvidas surgidas no trabalho, que, encaradas retrospectivamente, pareciam sempre divertidas.
      Quando íamos entrando em casa, Lady Menfrey nos chamou.
      - Ela chegou. Já está aqui. Vocês jamais vão adivinhar. Nunca tive uma surpresa tão grande.
      - Visita para o almoço? - perguntei.
      - Oh, não, a governanta.
      Corremos para dentro e começávamos a subir a escada quando ela surgiu lá no topo. Ereta, lá no alto, com seu lindo rosto oval, num vestido cinza-chumbo, simples, quase severo, que só lhe fazia realçar sua perfeição, os traços corretos - grego clássico - os cabelos escuros, fazendo ondas soltas na cabeça bem torneada, os grandes olhos cinzentos com pálpebras fundas e cílios negros. Ela sorriu, e foi o que me fez gelar. Era um sorriso tão amável e ao mesmo tempo tão discreto... mais tarde, porém, reformulei minha avaliação, o sorriso era astuto.
      - Parecem surpresos - disse ela. - Aconteceu que Sir Endelion foi à casa onde eu trabalhava, e tive oportunidade de conversar com ele. Já ouvira falar do menino. Sempre se sabe das coisas. E, quando ele me disse que precisavam de governanta, respondi que me interessava pelo emprego.
      A apreensão me paralisava e ao vê-la descer a escada, vagarosamente, toda a minha alegria foi embora. Não ousei olhar para Bevil, por medo de ver mais do que queria.
      Lembrei-me, então, de ter sido ele o primeiro a sugerir que se procurasse uma governanta. Teria planejado trazer Jessica para nossa casa? Lembrei-me da atitude que teve quando Sir Endelion deu a notícia. Será que já sabia? Teria pedido ao pai para fazer o convite a Jessica?
      Daí em diante tudo parecia tender bastante para o desconfortável. Sabia que a vida em Menfreya teria de mudar para mim, no momento em que Jessica Trelarken entrou ali.
     
     
    Capítulo 8
     
      O primeiro efeito da presença de Jessica ocorreu quase imediatamente após a chegada dela. Eu tinha posto um vestido de veludo verde-escuro, que sempre considerei bastante elegante, e também brincos, broche e pulseira - dados por Lady Menfrey. Eram jóias de família e que foram dadas a Lady Menfrey por sua antecessora.
      Estava me olhando no espelho, satisfeita com o resultado obtido, quando Bevil entrou e foi postar-se atrás de mim, com as mãos sobre os meus ombros, ficando nos mirando no espelho.
      - Impressionante - comentou -, parece ter saído de um dos quadros lá da galeria. Mas você sempre dá essa impressão.
      Esperei que fizesse algum comentário sobre a governanta, mas ele não falou nada e, desde o princípio, portanto, a coisa ficou parecendo suspeita. Certamente nada seria mais natural no mundo que ele fizesse algum comentário sobre a nova moradora da casa, ainda mais que ela já era nossa conhecida.
      Descemos, então, para jantar. Foi Sir Endelion, no seu novo modo de garoto travesso, que chamou a atenção para o fato de não haver na mesa mais um lugar.
      - Mas não estamos esperando ninguém - disse Lady Menfrey.
      - E a Srta. Trelarken?
      Lady Menfrey parecia desconcertada.
      - Mas, Endelion, agora ela é uma governanta.
      - Agora! Mas seu pai costumava vir jantar aqui. Você não pode mandar as pessoas à cozinha quando no passado se sentavam à sua mesa.
      - Ela não foi mandada à cozinha - respondeu Lady Menfrey. - Ela será servida no quarto. Este foi sempre o costume adotado com as governantas aqui. Sempre se levou bandejas para elas em seus quartos, porque naturalmente não acham que vão ser postas comendo na companhia dos outros empregados.
      Bevil nada disse, mas percebi que o bronzeado de sua pele estava mais acentuado. Parecia estar preocupado com o que ia resultar disso tudo, e tenho certeza de que, se eu não estivesse ali, teria tomado o partido de seu pai na discussão. A chegada de Jessica já começava a afetá-lo: estava menos franco, como alguém que tem coisas a esconder.
      - Mas, minha querida, você não pode pôr Jessica Trelarken junto dos empregados. Ela é uma dama.
      - Agora é uma governanta, Endelion. Ah, meu Deus... tantas damas são obrigadas a ser governantas... ou damas de companhia. É o único caminho que têm quando ficam sem dinheiro, como é o caso de Jessica.
      Eu observava Bevil. Não, não era possível, pensei. Ela todas as noites aqui, isso não. Pelo menos que fique em seu quarto.
      - Minhas governantas nunca jantaram com o meu pai - eu falei. - Sempre preferiram ser servidas nos aposentos.
      - Ora, querida Harriet - respondeu Sir Endelion -, essa não é uma de suas governantas. É Jessica Trelarken. Velha amiga da família. Não é, Bevil?
      Bevil hesitou por um segundo, e disse:
      - Os Trelarken vinham de vez em quando jantar aqui. Acho que não consideramos Jessica como empregada, e devemos demonstrar isso a ela.
      - Governantas não são empregadas, mas costumam comer junto das pessoas de quem tomam conta - retruquei.
      - Mas ela não pode jantar com Benny a esta hora - respondeu Bevil. - Só se ela ficar jantando do lado dele enquanto ele dorme.
      Pengelly ficava rondando por perto, e comecei a me assustar. O meu sexto sentido me dizia que lá pela cozinha já deviam estar fazendo comentários: "Claro que é ela quem não quer. Mas Lady Menfrey também não. Os homens é que decidiram que ela deve jantar à mesa". E daí, risadinhas maliciosas. A suspeita, então, tomaria conta da casa, penetrando cada um de seus cantinhos.
      - A comida da Srta. Trelarken já foi mandada para o seu quarto? - perguntou Lady Menfrey.
      - Não, minha senhora, seria mandada depois de terminar o jantar da família - disse Pengelly com ar grave.
      - Então - se intrometeu Sir Endelion - ponha outro lugar. E depois vá chamá-la e diga que estamos esperando por ela para jantar.
      Pengelly cumprimentou com a cabeça e fez sinal para que uma das criadas pusesse mais outro lugar, desaparecendo em seguida.
      Em cinco minutos, Jessica estava ali. Usava um vestido simples de seda preta, que deve, logo depois de ter recebido o convite, ter deixado escorregar sobre o corpo, mas não se via nela nenhum sinal de pressa.
      Chegando à porta, hesitou, mas a impressão que tive foi de que essa era uma atitude estudada.
      - Sente-se, minha querida -: disse Sir Endelion -, é claro que você janta conosco. Bandejas nos quartos! Ora, já se viu tanta bobagem. Quantas vezes se sentou seu pai conosco?
      - Obrigada - respondeu Jessica, tranqüilamente. Pengelly puxou uma cadeira para que ela sentasse. Ela sorria, recatada, serena, sem nenhuma demonstração de surpresa. Parecia não achar nada estranho uma governanta jantar com a família. E isso nunca deve ter acontecido nos outros lugares em que trabalhou. Mas aqui era diferente. Era Menfreya.
      Curiosamente, todos fomos afetados pela sua presença. Jessica Trelarken dava a impressão de iluminar a casa de modo sinistro e estranho, fazendo com que eu visse tudo e todos de modo diferente. Fiquei insegura com relação às pessoas e me perguntava se, afinal de contas, não estava sendo ingênua e demonstrando pouco conhecimento da vida.
      Ela era tão serena que às vezes pensava ser uma serenidade mortífera. À sua volta, tudo parecia quieto. Movimentava-se sem fazer qualquer ruído. Por diversas vezes, notei que, quando entrava num quarto, era tão silenciosa que as pessoas só se davam conta de sua presença depois de levantarem os olhos e se virem apanhados de surpresa por sua esfuziante beleza.
      Ah, sua beleza! Ninguém podia ignorá-la. Uma beleza rara, impossível de ser negada. Feições irrepreensíveis, sem uma falha, num rosto perfeito. Sua pele era macia e luminosa. Creio que, antes de encontrar Jessica, só uma ou duas vezes vi pele igual à dela; os cabelos eram sedosos e fartos. Tinha tudo essa mulher, exceto dinheiro.
      Assim, foi inevitável; uma presença como essa acabou produzindo efeitos em todos. Ela parecia despertar certos traços de nossa personalidade que, até então, eram mantidos latentes. Por exemplo: meu sogro sempre foi gentil comigo, e mesmo sem vê-lo muito, quando nos encontrávamos, ele se mostrava amigo e até paternal. Era uma convivência agradável, apesar de saber que fui bem-sucedida na família pelo fato de ter dinheiro. Agora, entretanto, descobri um traço em seu caráter que se podia chamar de maroto. Afinal, ele sabia que Bevil, algum tempo atrás, tinha tido uma queda por Jessica Trelarken, e então me perguntava, por que a teria posto dentro de casa? Às vezes, pensava que tivesse feito isso como um garoto travesso que junta numa bacia duas aranhas para se deliciar com o espetáculo da briga das duas. Talvez fosse porque também não se esquecesse de que, certa vez, perdeu a cadeira no Parlamento para um Delvaney e que só recentemente os Menfrey a recuperaram.
      Mas sempre que me vinham pensamentos dessa ordem, procurava descartá-los o mais depressa possível. Tinha certeza de que, se não fosse Jessica Trelarken, nunca teriam surgido.
      Bem, agora falemos de Lady Menfrey. Nunca a considerei uma mulher de personalidade forte. Sempre soube que era dominada pela família, mas, dessa vez, estava inteiramente acovardada, e notei que humilhantemente se submetia à autoridade de Jessica.
      E Fanny? Tornou-se cautelosa, quase que esquiva. Antes, nunca deixou de ser franca comigo, agora me dava a sensação de estar guardando segredos de mim.
      Bevil? Ele, que sempre foi admirador de mulheres bonitas, teria forçosamente de ser atingido pela presença dela. Já a admirava, antes, de modo todo especial, e eu não tinha dúvidas de que sua atração por ela continuava existindo.
      E eu, sobretudo. Parece que todo o charme que me dava o fato de ser mulher de Bevil foi perdido. Tinha tentado - e, diga-se, com certo sucesso -, desde a época em que usei o vestido topázio e os cabelos presos por uma rede, criar para mim um tipo estranho e defasado no tempo, E se dizia então de mim: não é propriamente uma beldade, mas seu jeito estranho e démodé é muito charmoso. Sabia que me fazia sobressair mesmo entre mulheres mais bonitas do que eu, e o que queria era que Bevil me distinguisse.
      Com a vinda de Jessica, o jeito desapareceu de mim. Sentia-me insignificante, tal como havia sido em criança, o que sempre produziu efeitos em minha aparência. Assim, meu aleíjão parecia mais visível, talvez porque quando estava feliz não me lembrava dele, e agora, decididamente, não era feliz.
      E o pior, estava me tornando uma pessoa desconfiada. A suspeita se apossava de mim sem que conseguisse afastá-la do pensamento. Estava sempre vigilante e alerta para tudo, e, dia a dia, esses sentimentos aumentavam.
      Tentava afastar os temores e o ciúme, mas eram irremovíveis.
      Desde que Benedict veio para Menfreya, fui para ele sua amiga preferida, já que parecia ter me escolhido para preencher o lugar de sua mãe. Sempre tirava umas horas do dia para passar com ele, que, por sua vez, ficava na expectativa dessas minhas visitas. Costumava levá-lo para passear e, às vezes, remava até a ilha, o que ele mais gostava. Estava sempre pedindo essas saídas, e principalmente o passeio de barco o deixava maravilhado.
      Uma semana depois da chegada de Jessica, num dia em que Bevil estava em Lansella e eu me encontrava sozinha, fui até o quarto de brinquedos ver Benedict.
      Jessica me cumprimentou com seu enigmático sorriso, que agora eu comparava com o da Gíoconda. Estava elegante e, naturalmente, linda. Usava um vestido lilás com gola e punhos de renda. Ela não possuía muitos vestidos, mas os que tinha eram de muito bom gosto. E se há uma coisa de que sabia, era como tirar o máximo do efeito de suas roupas. Talvez fosse porque uma beleza como a dela fizesse qualquer vestido parecer maravilhoso. Imediatamente me senti sem graça na sua presença, e aí me ocorreu que sua intenção fosse essa mesma, a de me fazer sentir assim, com aqueles olhares impassíveis que me lançava. Movia-se com uma graça que jamais iria conseguir imitar, e todos os seus gestos tinham um charme muito natural.
      - Vim ver Benedict - falei.
      - Está brincando com os tijolinhos dele.
      - Achei que podia levá-lo para dar uma volta. Talvez ir até a ilha, quando o vento passar. Ele adora isso.
      - Ele já saiu esta manhã. Tenho medo que fique muito cansado e que isso o faça ficar nervoso. Aí, claro, não vai querer jantar. Você sabe como as crianças são.
      Ela sorria de modo inofensivo.
      - Ah, mas... - ia começando a dizer.
      - Se soubesse antes que ia vir, faria com que ele esperasse pelo passeio. Mas acho que horário é importante para ele.
      - Bem, eu compreendo.
      Fui até a porta do quarto onde brincava. Ela me seguiu.
      - Por favor, não diga que ia levá-lo à ilha.
      - Tem medo de que ele queira vir?
      Ela tornou a dar um de seus sorrisos.
      - Claro que iria querer. Só que vai ficar muito cansado.
      Entrei, então, no quarto.
      - Olá, Benny.
      - Olá.
      Ele nem levantou os olhos. Estava absorvido, construindo uma casa de tijolinhos. Mas isso não foi nada.
      - Sua tia está aqui -: disse ela, como se o censurasse.
      - Eu sei - ele respondeu, ainda sem me olhar. Ela sorriu para mim.
      Ajoelhei-me, então, no chão e fiquei observando a casinha sendo construída.
      - Ela vai acabar caindo - falei.
      Ele concordou com a cabeça, ainda sem me olhar, e nesse instante os tijolinhos desmoronaram com estardalhaço, fazendo com que ele desse um grito de alegria. Mas o contentamento logo desapareceu quando pegou um dos tijolinhos e viu que sua pintura tinha sido estragada.
      - Ele está querendo Jessie - disse com ar triste. Peguei no tijolo e falei:
      - Mas isso é muito fácil de ser colado.
      Ele o tirou de mim e o estendeu para Jessie.
      - Coitadinho do tijolinho, ele quer Jessie.
      - Já colei outros - explicou, pegando o tijolo da mão de Benny. - Vou cuidar desse também, Benny.
      E suspendeu as sobrancelhas como que dizendo: bem, você sabe como criança é.
      Tudo isso também me pareceu bastante sintomático.
      Agora, todas as noites, Jessica se juntava a nós para jantar. Ela possuía três vestidos de noite: um preto, um cinza e um de veludo azul. Todos simples, e sem dúvida não custaram caro, mas ela dava um jeito de se mostrar magnífica neles, e, enquanto isso, eu, com os que comprei em Paris na lua-de-mel, me sentia desajeitada e muitas vezes enfeitada demais. Era o efeito que conseguia produzir em mim, e, ainda que pareça estranho, acho que era isso mesmo o que pretendia.
      Mas não havia nada de que pudesse acusá-la. Um observador de fora, por exemplo, iria dizer que o que acontecia ali era uma presença que ofuscava todas as outras. Minha impressão, entretanto, era de que ela tinha consciência disso, e de que secretamente acarinhava o próprio sucesso.
      Na mesa, era como se fosse um ímã - os homens não conseguiam desprender-se dela. Sir Endelion tomava ares galantes; Bevil, constantemente solicitando minha entrada na conversa, dava a sensação de que agia calculadamente, como querendo encobrir seus sentimentos verdadeiros, e até William Lister, que jantava sempre conosco, voltava-se para ela com uma expressão de franca admiração.
      Se fosse só bonita, frívola, bobinha como a pobre Jenny, seria suportável, mas não, era inteligente, bem-educada, e o mais desconcertante: havia decidido exibir seus conhecimentos políticos, e a política, naturalmente, era o assunto mais freqüentemente abordado.
      Com voz tranqüila e branda, falando pausadamente e pronunciando bem as palavras, se fazia ouvir de maneira clara e distinta.
      Eu ficava escutando-a, porém minha atenção estava nos homens, vendo todos eles parados, observando-a. Lady Menfrey, quando a conversa versava sobre política, tentava parecer atenta, mas eu bem sabia no que estava pensando: se devia ou não mandar comprar mais novelos de lã azul para a tapeçaria que estava bordando, ou se Benedict ia pegar resfriado por ter espirrado duas vezes durante o dia.
      - Sobre isso, já discuti muitas vezes com meu pai - estava Jessica dizendo. - Ele tinha seus pontos de vista e nem sempre, é claro, nós concordávamos.
      - A opinião do Dr. Trelarken sobre reforma tarifária era muito bem abalizada - disse Sir Endelion.
      - Minha mãe dizia que, quando meu pai decidia que uma coisa era de um jeito, ele fazia com que a coisa ficasse do jeito dele, sem mudar.
      Todos riram. 
      - Muitas vezes, quando ele estava aqui, nós íamos às turras. Bom amigo, o doutor. Não tenho muita confiança nesse novo que aí está agora - disse Sir Endelion.
      - Sua mulher é um dos baluartes do partido - disse eu, me intrometendo.
      - É verdade - falou Bevil dando um sorriso para mim.
      Talvez tenha imaginado, mas no momento tive a clara impressão de que teve de se esforçar para desviar sua atenção de Jessica para mim.
      Estava começando a abominar esses jantares, e eles já haviam sido momentos de grande prazer. A conversa sobre política me agradava, tinha ali a me ouvir William Lister, que sempre mostrou consideração por mim, além de Sir Endelion e Bevil, que me prestavam atenção, ouvindo os dois com ar sério o que tinha a dizer. Mas, agora, tudo indicava que Jessica usurpara o meu lugar.
      - Ontem à tarde, encontrei Harry Leveret - disse ela. - Tinha ido dar uma volta a cavalo e estava perto de Chough Towers. Agora ele está morando lá.
      Essa era outra das novidades. Jessica gostava de montar, e Sir Endelion lhe perguntou se ela não gostaria de levar um dos cavalos para exercitar, ao que respondeu prontamente de modo afirmativo.
      De repente todos ficaram de sobreaviso. Lady Menfrey pareceu assustada e começou a brincar nervosamente com a faca. Notei que seu rosto tomou uma expressão de dor, pensava no dia horroroso que foi o da fuga de Gwennan.
      Jessica deu um de seus sorrisos calmos, que me faziam pensar numa máscara que ia se distendendo sobre o seu rosto.
      - Ele foi muito cordial - ela continuou.
      - E por que não seria? - respondi com minha voz soando desagradavelmente. - Ele não brigou com você.
      - Ele naturalmente sabe que estou aqui. Conversou sobre o que pretende fazer no futuro. - Aí fez uma pausa, observando Sir Endelion, Bevil e William Lister, e continuou: - Contou que aceitou a candidatura pelo partido dele.
      - Então, já está decidido - disse Bevil.
      - Está, sim. Há mais uma coisa que falou. Bem, talvez seja uma impertinência minha... mas deixei que me sondasse sobre o que aqui pensam dele. Está achando que você ficou melindrado pelo fato de ele ter se posto em posição contrária à sua.
      - Não, o que estou é surpreso - respondeu Bevil. - Por que ele não joga às claras? As coisas parecem estar sendo feitas por baixo do pano.
      - É o que ele também está achando, e disse que não vê por que os Leveret e os Menfrey não podem continuar sendo amigos, coisa que sempre foram. Perguntou-me se eu achava que você aceitaria um convite dele para jantar em Chough Towers.
      Aí, Sir Endelion interveio com raiva.
      - Não gosto da política que está fazendo. Fiquei surpreso com ele. Pensava-se que fosse um homem de negócios, e por que de repente se mete em política desse modo?
      - Se ele convida e você recusa - disse Jessica, como se hesitasse -, tudo pode ficar mais incômodo para você, e de outro modo poderia ficar sabendo das coisas. Não sei se me entende...
      - Exatamente - respondeu Bevil, inclinando-se para a frente e olhando-a com ar de aprovação.
      - Uma das coisas que poderia espalhar por aí é que os Menfrey o trataram muito mal em certa ocasião - disse com um sorriso súplice.
      E pensei quanto Harry deve ter se sentido magoado com o desaparecimento de Gwennan. Mas ela continuava a falar.
      - E agora só porque está em desacordo com sua opinião política, recusa a amizade dele. Posso estar errada, mas isso pode pegar muito mal com os eleitores.
      Ela fez uma pausa, e a conversa se generalizou. Como conseqüência, ficou acertado que, se Harry Leveret nos convidasse para ir a Chough Towers, aceitaríamos o convite.
      Bevil e eu fomos jantar em Chough Towers. Era estranho estar novamente naquela casa, sobretudo porque ela estava praticamente igual ao tempo em que meu pai a alugou, havendo só umas poucas peças novas a mais. Tudo indicava que Harry pretendia dar muitas recepções.
      Ele estava diferente do homem que um dia vi na galeria, quando veio à procura de Gwennan e, pela sua aparência, calculei o quanto lhe deve ter custado a perda dela. Havia amadurecido rapidamente, e já não era o rapaz despreocupado de antes. Tinha certeza de que havia amado Gwennan com fervor e que também tinha desejado muito se ligar à tradicional família dos Menfrey. De aspecto insignificante, sentia-se contudo em Harry a ânsia do sucesso, que deve ter herdado do pai, de origem humilde, mas que foi o realizador da fortuna que o transformou num milionário.
      Em retribuição, ele foi convidado para vir a Menfreya, e a relação entre as duas famílias foi novamente restabelecida. Essas iniciativas se revelaram corretas, parecendo que nisso Jessica estava com a razão. Com certeza mesmo, ainda não se podia afirmar, mas só Harry e alguns de seus amigos não acreditavam que a eleição já estivesse bem definida; a maioria das pessoas, porém, não tinha dúvidas de que Bevil iria conservar sua cadeira no Parlamento.
      Alguns dias depois da visita de Harry a Menfreya, entrei no meu quarto e vi Fanny, muito quieta, junto da janela, escondida atrás das cortinas, de maneira a que não fosse vista.
      - O que você está olhando, Fanny? - perguntei, indo rápido à janela.
      - Nada... nada mesmo - respondeu, se virando. Mas eu já os vira, Bevil e Jessica. Benedict brincava um pouco mais afastado. O que Fanny, porém, estava vendo era o meu marido e Jessica.
      - Há alguma coisa de errado?
      - Espero que não - respondeu com azedume. Mas sabia bem o que ia na sua cabeça, e ela também o que se passava na minha. Quis censurá-la, dizer-lhe que estava sendo tola, mas quando olhei para o seu rosto tão amigo percebi que, se eu sofria, ela também sofria comigo.
      Encolhi os ombros e me retirei.
      Uma semana depois disso, mais ou menos, chegando à sala de jantar, levei um susto ao ver que Bevil e Jessica não estavam lá.
      Fomos nos sentar em nossos lugares - Sir Endelion, Lady Menfrey, William Lister e eu - esperando ver entrar a qualquer momento os retardatários. Esse fato de estarem os dois ausentes ao mesmo tempo imediatamente me deu uma sensação de enorme mal-estar.
      - O que será que está atrasando esses dois? - murmurou Lady Menfrey. - O Sr. Lister sabe de alguma coisa?
      - Não, não sei de nada - respondeu Wílliam. - Não vejo o Sr. Menfrey desde as quatro horas da tarde.
      - Espero que Benedict não esteja doente e que Jessica, por isso, tenha de ficar com ele.
      - Vou até o seu quarto - disse eu, e saí logo da sala.
      Corri até lá em cima e, ao abrir a porta do quarto, vi que Benedict dormia profundamente na sua cama. Fui ao quarto de brinquedos e depois ao de Jessica, batendo antes na porta. Não houve resposta e entrei. O quarto estava bem arrumado, como de costume. Subitamente, tive medo e puxei as gavetas da cômoda. Aliviada, vi que suas coisas estavam lá, arranjadas em perfeita ordem. Abri o guarda-roupa e também seus vestidos estavam pendurados.
      Tive, então, de aceitar o fato; acreditava realmente que os dois pudessem fugir juntos.
      Voltando à sala de jantar, comentei:
      - Benedict está dormindo, mas Jessica não está nem no quarto de brinquedos nem no dela.
      O jantar era às 8h, e já estávamos atrasados dez minutos. Pengelly, querendo saber se devia ou não servir, ficava com as empregadas rondando por perto.
      Lady Menfrey, antes de dar qualquer ordem, sempre olhava primeiro para Sir Endelion. Era um hábito que me dava certa irritação. Achava que, pelo menos, podia ter reivindicado ser dona de sua própria casa.
      - Bem - disse eu em tom decidido -, eles sabem que o jantar é às oito horas. Não estão pensando que vamos ficar esperando. Podemos começar logo.
      Parecia que estava dando mais importância à comida do que a qualquer outra coisa e, na verdade, nem sabia como ia me arranjar para mostrar que estava com fome.
      - Obrigado, minha senhora - disse Pengelly. E a sopa foi logo servida.
      - Isso é tão pouco de Jessica - falou baixinho Lady Menfrey -, ela é sempre tão pontual! E o seu pai também era, pelo que me lembro.
      - E Bevil? - perguntou Sir Endelion.
      Seus olhos tinham uma expressão especulativa, parecendo mais marota do que nunca.
      - Você tem alguma idéia de onde ele possa estar, Harriet? - ele perguntava.
      - Nenhuma - respondi -, a não ser que tenha sido chamado de repente para ir a Lansella. Mas, nesse caso, teria deixado algum aviso.
      - Em Lansella, com Jessica Trelarken? Não. Isso não é nem um pouco provável. Ora, se tivesse de ir com alguém a Lansella, seria com você, minha querida.
      - É, devia ter pensado nisso.
      - Estou pensando em Jessica - disse Lady Menfrey -, espero que nenhum acidente tenha havido. Oh, Pengelly, veja se está faltando algum cavalo na estrebaria. Estou me lembrando do acidente de minha pobre Gwennan... e do empregado do Dr. Trelarken vindo aqui nos avisar. Vá logo, Pengelly, estou muito preocupada.
      Ainda estávamos na sopa quando Pengelly voltou.
      - Não, minha senhora, nenhum cavalo está faltando.
      Sir Endelion encostou-se na cadeira, olhando para mim.
      - Estranho - ele comentou. - Sumiram os dois...
      O jantar parecia interminável. Ficava remexendo o peixe no meu prato com o garfo, fazendo tudo para que ninguém percebesse minha perturbação. Em determinado instante, notei que William Lister estava olhando para mim. Ele percebia e soube ser amável e simpático. Acho que estava tão aflito quanto eu.
      - A Srta. Trelarken conhece muita gente na vizinhança, talvez tenha ido fazer alguma visita e esquecido da hora - sugeriu.
      - É isso - disse alto Lady Menfrey com ar triunfante, passando agora a comer calmamente.
      Já era alguma coisa a que se apegar. Jessica estava visitando amigos, esquecida das horas, e Bevil, em Lansella a negócio. Pronto, tudo estaria explicado quando estivessem de volta. Desejava tanto ver sua casa em paz que fingia estar tudo tranqüilo, ainda que isso fosse mentira. Vendo-a mais calma, William Lister prosseguiu:
      - Certamente surgiu alguma coisa no escritório em Lansella que exigiu a ida dele até lá para tratar do assunto.
      - Mas ele não teria dito a alguém antes de ir?
      - Pode ser que não tenha tido tempo - respondeu de modo pouco convincente.
      - Claro - disse alto Lady Menfrey -, é isso, ele não teve tempo.
      Seu marido sorria, sardônico, para ela. Percebi que ele pensava que os dois estavam juntos. E, se era verdade, eu me perguntava: se desapareceram de modo tão espalhafatoso, o que significava isso?
      Bevil jamais abandonaria Menfreya. Como iria largar tudo? Não era nenhum rapazola cheio de idéias românticas que foge impulsivamente, deixando para trás mulher e carreira. Devia haver outra explicação. Mas, a cada minuto, ficava mais certa de que os dois estavam juntos em algum lugar.
      O jantar chegou melancolicamente ao fim.
      - Receio - falou William, me olhando com ar de piedade - que tenha havido algum acidente.
      - Oh, não, não! - insistiu Lady Menfrey. - Jessica se esqueceu da hora e Bevil foi chamado,a Lansella.
      William e eu nos entreolhamos. Não acreditávamos nisso.
      Passamos à sala de visitas, onde o café foi servido, tensos e nervosos. Falávamos desencontradamente e todo o tempo com os ouvidos voltados para a porta, esperando escutar algum barulho de chegada. Ninguém prestava atenção ao que o outro dizia.
      Não era possível manter-se segredo do desaparecimento. Era certo que a notícia, de maneira rápida e eficiente, havia se espalhado pela casa. Os criados já deviam estar fazendo conjecturas pelo fato de Jessica e Bevil estarem fora de casa ao mesmo tempo. A história iria transpirar em Menfreystow e, depois, em Lansella, o que certamente não seria nada bom para a reputação de Bevil. E era isso que não dava para entender: como ele, tão zeloso de sua carreira, deixou-se apanhar numa situação dessa? Teria sido contra a sua vontade? Ou apenas teria se esquecido das horas?
      De todo jeito, se não voltassem depressa, teríamos de tomar uma providência qualquer.
      Era uma noite constrangedora, e, de repente, percebi o quanto estava sozinha naquela casa. Sir Endelion não era confiável. Desde que trouxe Jessica, estava aprendendo a conhecê-lo melhor. Em moço, não passou de um estouvado, e imagino que tenha carregado sua irreverência pela vida afora. Se queria alguma coisa, preferia correr o risco de um desastre a ter de suportar o tédio de uma situação. Podia entender sua maneira de ser, mas sabia que não podia contar com ele. E Lady Menfrey? Lembrei-me de como foi prestativa na ocasião da morte de Jenny. Mas, então, havia agido com o consentimento da família. Desejava demais a paz para que se pudesse procurar apoio nela nos momentos de dificuldades.
      William Lister estava do meu lado com o rosto contraído, visivelmente preocupado.
      - Sei como está se sentindo - sussurrou.
      - Deve ter havido algum acidente. Temos de fazer alguma coisa - respondi.
      - É, precisamos, e depressa.
      - Mas o quê?
      - Vou a Lansella ver se ele ainda está lá. Talvez tenha se atrasado no serviço, e o aviso que nos mandou não tenha chegado.
      - Mas os dois devem estar juntos - observei.
      Ele fez um sinal de afirmação com expressão triste.
      - Um acidente com os dois, só se tivessem saído juntos a cavalo... mas não pode ser porque todos os cavalos estão aqui. É, isso não foi.
      - Mas é melhor se tomar uma providência. Só estava querendo esperar porque...
      - Sim, eu sei. Está esperando que cheguem e não quer que a coisa seja comentada por aí.
      - Sei que é disso que o Sr. Menfrey gostaria. Mas também acho que já é hora de se fazer alguma coisa. Vou imediatamente para Lansella. Será mais rápido e discreto, se for a cavalo. Vou ver se ficou no escritório e tentar saber do delegado alguma coisa. Se não conseguir nenhuma informação, teremos então de deixar a polícia ficar sabendo.
      Comecei a tremer. Ele se inclinou para mim e tocou na minha mão muito timidamente.
      - Você sabe que farei tudo o que for possível... por você.
      - Obrigada, William.
      E, nesse instante, achei que havia alguém ali em quem podia confiar.
      William foi a Lansella, me deixando tensa e ansiosa, à espera do que pudesse acontecer.
      Fomos sentar numa outra sala, compondo um desconsolado grupo. Mais ou menos uma hora depois que William tinha partido, ouvimos a voz de Bevil. Corremos à janela, mas pouco dava para enxergar na escuridão da noite, embora o céu estivesse claro e estrelado.
      - Ele voltou! - gritei, saindo pelo corredor afora, e fui até o topo da escada. Dali vi Bevil lá embaixo com Jessíca ao seu lado.
      - Bevil! - gritei e percebi que estava tão contente de vê-lo que toda a alegria transparecia na minha voz.
      - Harriet! - respondeu-me. - A coisa mais maluca aconteceu!
      Ao descer a escada, mancava de modo horrível. Jessica me observava; estava pálida, os cabelos soltos, em desalinho, e ligeiramente molhados, mas isso não lhe diminuía a beleza. Os olhos pareciam maiores e mais luminosos, dando a impressão de que ela, pelo menos, tinha apreciado a aventura.
      - O que aconteceu? - perguntei.
      Jessica mostrou alguma coisa que, no momento, não percebi o que fosse, e em seguida explicou:
      - Fomos buscar isso e... e aí tivemos a surpresa de...
      - Surpresa?
      - Nada demais - disse Bevil. - Oh, olá, mãe, olá, pai.
      - Fomos buscar essa coisa e o desgraçado do barco escapuliu para não sei onde.
      - Escapuliu?
      Eu repetia as palavras mais significativas, dando uma entonação interrogativa, hábito que sempre achei irritante nas outras pessoas, mas do qual, naquele instante, não conseguia livrar-me. Estava com medo.
      - Nada demais - disse Bevil. - Benedict e Jessica, esta manhã, foram até a ilha, e ele deixou o ursinho lá. Só foi dormir quando Jessica prometeu que o traria de volta. E ela me pediu que remasse o barco.
      Do que gostaria de saber era: por que ela havia pedido isso a ele, e não remou sozinha? Mas não soube. Não iria expor-me diante de todos.
      - Então - prosseguiu Jessica - Bevil gentilmente me levou até lá. Depois de pegar o ursinho, quando chegamos de novo na praia, o barco tinha ido embora.
      - Para onde? - perguntou Sir Endelion com uma cadência na voz, como se fosse ele quem tivesse tido o prazer da aventura.
      - Isso é o que gostaria de saber - disse Bevil tentando mostrar certa raiva na voz.
      - Então você não amarrou o barco direito - disse, pilheriando, Sir Endelion.
      - Tenho certeza de que estava firmemente amarrado.
      - E o barco se perdeu?
      - Não, foi trazido por A'Lee. Ele viu o barco sendo arrastado pela correnteza. Quando ia levá-lo de volta para a praia de Menfreya, passou em frente da ilha e aí nós gritamos por ele... que imediatamente veio nos entregar.
      - Ora essa - suspirou Lady Menfrey -, agora perderam o jantar e devem estar com fome. Vou mandar servir qualquer coisa.
      Estava sentindo que podia desabar uma tempestade e não queria estar por perto.
      - Bem, vocês não são os primeiros a ficarem perdidos numa ilha - falou Sir Endelion. - Por sinal, lá sempre foi o seu lugar favorito, não é, Bevil?
      Pensei, então, em quando estive escondida na casa da ilha, debaixo de um lençol, e o surpreendi com uma das garotas do vilarejo. Só que dessa vez não estava lá para impedir que a aventura se consumasse. E o que, me perguntava, teria acontecido durante todo esse tempo dentro da casa?
      Bevil olhava para mim, mas eu tinha o firme propósito de não deixar transparecer meus sentimentos.
      - Bom - disse eu secamente -, está de volta, é o que importa.
      Dei uma olhada no rosto de Jessica, antes de dar as costas e subir a escada. Ela sorria ligeiramente. Seria pedindo desculpas? Desafiando? Não soube dizer.
      Eram onze horas e trinta minutos quando Bevil veio para o quarto. Tinha ficado conversando em particular com William, que voltara de Lansella e, a essa altura, devia estar lamentando com toda certeza ter ido até lá. Afinal, sua viagem só serviu para espalhar ainda mais a história.
      Bevil olhou para mim com indiferença, mas já sabia que era de seu hábito, sempre que estava sem jeito, fingir despreocupação.
      - Ainda de pé? - perguntou sem necessidade.
      - Mas pronta para dormir. Como vê, estou enrolada no penhoar e também enrolada nas idéias.
      - O que é que há de errado?
      Senti que estava prestes a soltar minha língua afiada, que desde criança aprendi a usar como arma para poder me impor.
      - Não tenho muita certeza - falei.
      - O que é que está querendo dizer?
      - Sou eu que quero que me conte. O que aconteceu exatamente?
      Ele parecia impaciente. Seria um sinal de culpa?
      - Você ouviu o que aconteceu. Nós fomos buscar o brinquedo, e o barco escapuliu.
      - Então ele foi mal amarrado.
      - Suponho que sim.
      - De propósito?
      - Olha aqui, Harriet...
      - Acho que tenho o direito de saber a verdade.
      - Mas você já sabe da verdade.
      - Tem certeza?
      - Não estou em julgamento. Se você decide não acreditar em mim, então não há nada que se possa fazer.
      - Mas alguma coisa tem de ser feita. Haverá falatórios. Talvez já estejam até falando.
      - Ora, falatórios, Harriet. Achei que tinha mais com o que se preocupar.
      - Isso prova que nós dois nos conhecemos muito pouco. Pensei que você não quisesse ser objeto deles.
      - Não consegui evitar o que aconteceu esta noite.
      - Bevil, é disso que gostaria de ter certeza.
      - Mas é claro que pode ter certeza. Meu Deus! O que é que está insinuando?
      - Ela é uma mulher muito bonita.
      - E você, muito ciumenta.
      - E também haverá muita gente curiosa, quando a coisa for comentada por aí, entre os seus eleitores.
      - Seria melhor que não tentasse se mostrar tão inteligente, Harriet.
      - Não estou tentando.
      - Bem, aceitemos, sem discussão, o fato de que você seja. Mas que coisa estúpida fez Lister.
      - Tinha-se de fazer qualquer coisa, não é? Concordei com ele quando disse que ia a Lansella. A culpa, portanto, é minha. Mas ninguém tinha idéia do que poderia ter acontecido com você, Bevil.
      Minha voz tinha ficado grave, quase suplicante. Enquanto brigava, não deixei de pensar por um instante no quanto o amava e no quanto precisava dele. E, se sentia medo, era por saber que necessitava mais dele do que ele de mim.
      - Você precisa ser mais cuidadoso nessa sua relação com Jessica.
      - Minha relação? O que é que está querendo dizer? Ela é apenas a governanta de Benedict, Harriet.
      - Governantas têm aparecido tantas vezes como heroínas de romance que elas começam a ser também assim na vida real. E, se a governanta for bonita e o dono da casa não consegue esconder seu interesse por ela, ficando horas desaparecido em sua companhia - mesmo que esteja inocente - e se o clamor público se faz ouvir, aí se tem uma situação explosiva. Se o dono da casa for um grão-senhor, um rei em seus domínios, pode agir como quiser, mas se for um parlamentar, guardião da moral pública, modelo de virtudes, aí então estará sentado sobre um barril de pólvora,
      - Que discurso! - disse ele, pondo-se a rir. - Formidável, Harriet. Mas, às vezes, acho que o seu amor pela palavra faz com que perca o bom senso. Que tal colocarmos um ponto final nisso tudo?
      - Se quiser...
      - Só mais uma coisa, Harriet. O que lhe disse desta noite é verdade, ouviu? Acredita?
      Olhei nos seus olhos e disse:
      - Acredito, Bevil.
      Ele me puxou para junto dele e me deu um beijo, mas sem a paixão que eu esperava. Foi, antes, um beijo selando um ajuste, não uma demonstração de amor.
      E minha vontade foi de lhe dizer: se estou com você, acredito no que diz e talvez até seja como sua mãe - acredito só no que quero acreditar. Agora, se o ciúme surge, as dúvidas também voltam.
      Na manhã seguinte, dormi até tarde e, quando acordei, Bevil já havia saído. Fanny chegou trazendo o meu café e, depois de ajeitar a bandeja, foi ficar ao pé da cama, olhando para mim. Já devia saber de tudo sobre a aventura da noite anterior.
      - Não está com muito bom jeito esta manhã - disse ela, como se estivesse zangada comigo, tal como ficava se me visse resfriada quando eu era criança. - Acho que está preocupada com os dois que desapareceram ontem à noite, não é?
      - Agora tudo já passou, Fanny.
      Ela torceu o nariz, não acreditando.
      - Pronto, aí está - disse ela, botando uma liseuse sobre os meus ombros, e percebi que me examinava, procurando machucados.
      Nunca se esquecia do que não queria.
      Tomei o café, mas não pude comer com gosto. Continuava vendo Bevil com Jessica e ouvindo as palavras que nós trocamos neste quarto. Mas Fanny já abrira sua matraca e dizia:
      - Pode ser que não tenha razão. Mas sei que não se pode confiar neles. Melhor a gente estaria sem eles.
      - Confiar em quem, Fanny?
      - Nos homens.
      - Você não está querendo mesmo dizer isso.
      - Estou, sim.
      - Mas se Billy vivesse.
      Eu não costumava tocar no nome de Billy, esperava que ela mesma falasse nele.
      - Acho que Billy era igual ao resto. Ele não era tão meu quanto eu era dele.
      - Mas ele gostava de você, Fanny. Pelo menos sempre disse isso.
      - Bem, ele tinha uma amante, você sabe, não é? Ele me abandonou por causa dela. Os homens são assim. Não amam igual a nós.
      - Fanny!
      - Nunca contei isso, não é verdade? Não fui seu único e grande amor. Havia outra... e foi por causa de uma outra que me largou.
      Eu estava espantada. Ela nunca falara daquela maneira. Ela tinha no rosto uma expressão feroz e parecia inteiramente mergulhada no passado. Falava para si mesma.
      - Existiu um bebê, foi ele quem me deu... eu perdi o bebê... um bebezinho. E achei outro bebê...
      Estendi minha mão, que ela segurou, e o toque pareceu tirá-la do transe.
      - Não se aflija - ela disse -, não vou deixar nada de ruim acontecer a você. Nunca vou sair de perto de você, por isso não precisa pensar mais nisso.
      Dei-lhe um sorriso, dizendo:
      - Mas nunca pensei que fosse me deixar.
      - Então, está tudo bem. Agora coma o ovo, e não vamos mais fazer bobagens.
      Obedeci, sorrindo para mim mesma. Pensei que estava sozinha, mas não, lá estava a minha Fanny.
      Minha preocupação era esconder todas essas coisas que me deixavam num estado de grande ansiedade. Por isso, no dia seguinte, chamei Jessica para montar comigo, e fomos até Lansella. As pessoas nos olhavam com curiosidade, mas era isso mesmo o que queria. Achava que era a melhor maneira de dissipar as suspeitas. Jessica se comportava como se nada tivesse acontecido e, assim, me fazia sentir muito insegura a seu respeito. Cheguei a pensar que, lá no seu íntimo, estava se divertindo com minha preocupação de querer que as pessoas acreditassem que éramos grandes amigas.
      Havia prometido que, no dia seguinte, iria tomar chá com ela e Benedict no quarto de brinquedos, mas quando cheguei lá só encontrei Benedict, de pé em cima de uma cadeira.
      - Sou um macaco - disse ele -, os macacos sobem sobre as coisas, sabia?
      Respondi que sabia.
      - Agora vou virar elefante. Eles têm tromba e andam assim.
      Então desceu e ficou andando pesadamente de quatro pelo chão.
      - Agora, se quiser vou ser um leão. Quer?
      Respondi que preferia que fosse, por enquanto, ele mesmo, e riu, achando graça.
      Jessica chegou, e vi logo a afeição que ele tinha por ela, me dando vergonha do ciúme que ia dentro de mim. O que devia era estar feliz por ter achado uma boa governanta para ele. Jessica certamente tinha se mostrado jeitosa no serviço, e o fato de ter ganhado sua afeição já era motivo suficiente para merecer nosso respeito. Mas o que ela está, pensei, é usurpando o meu lugar em toda parte, em tudo quanto é canto desta casa. Fiquei, então, com vergonha e disse, apressada, que Benedict parecia muito bem-disposto e que todos estavam muito agradecidos a ela por cuidar tão bem dele.
      - É minha obrigação. Não poderia jamais imaginar, naquele dia que Gwennan foi levada à minha casa, que ainda seria governanta do filho dela.
      - Pobre Gwennan! Benedict é tão parecido com ela! Sempre que olho para ele é como se a estivesse vendo.
      Sentei-me, e Benedict se aproximou, botando as mãozinhas nos meus joelhos, olhando-me no rosto.
      - Com quem ele parece? - perguntou.
      - Ele parecia com um elefante e, agora, está parecendo com ele mesmo.
      Aí ele deu uma risada com o que falei. Jessica foi então preparar o chá num bule de louça marrom.
      - O chá fica sempre mais gostoso quando é preparado nesses velhos bules de louça - falou de modo descontraído, enquanto estava servindo. - Seria porque eles fazem lembrar nossos tempos de criança?
      Pôs-se, então, a falar de sua casa, de seu tempo de criança, quando a mãe ainda vivia. Filha única, amadíssima pelos pais, deve ter sido linda desde o dia em que nasceu. Que infância diferente da minha!
      - Costumava ficar sentada num banquinho alto no laboratório de meu pai. Enquanto ele preparava os remédios, eu ficava observando. Aí, ele dizia: este aqui é para a D. Úlcera, que vem hoje aqui, aquele é para o Sr. Resfriado. O nome de seus pacientes era o das doenças que tinham. Mamãe achava que eu não devia ficar ouvindo falar tanto de doenças, mas papai dizia que isso estava certo para uma filha de médico.
      Ela mostrava-se afável, talvez estivesse tão preocupada em me tranqüilizar quanto eu o estava em relação às outras pessoas.
      - Quer açúcar?
      Fiz que sim com a cabeça.
      - Ah, obrigada. Sou igual a uma formiga para gostar de doce.
      Benedict ficou parado me olhando.
      - Mostra como faz a formiguinha - gritou -, mostra a formiguinha que gosta de doce.
      Expliquei-lhe então que o que queria dizer é que gostava do chá muito doce, e, com isso, ele pareceu ficar pensativo.
      - Se tivesse sido possível - dizia Jessica -, teria sido médica.
      - É uma bela profissão.
      - E o médico tem, até certo ponto, poder sobre a vida e a morte.
      Seus olhos brilhavam, e eu estava impressionada com sua maneira de falar. Para que poder?
      Meu pensamento, porém, foi desviado para Benedict, que apanhara uma colher e, antes que soubéssemos o que ia fazer, encheu-a de açúcar e despejou-o no meu chá.
      - Isso é para a formiguinha - ele gritou. Tivemos de rir. Foram bons momentos aqueles.
      Estávamos no jantar discutindo o baile que seria dado em Menfreya.
      Um baile a fantasia, dissemos a Harry Leveret na noite anterior, quando veio com a mãe para uma partida de uíste. Depois da reconciliação, os Leveret vinham agora com freqüência nos visitar, e dava então para formar duas mesas de uíste, contando com William e Jessica.
      - Nunca me esqueço do baile a fantasia que seu pai deu em Chough Towers - disse Harry.
      E eu me lembrava dele em todos os detalhes. Foi quando usei o vestido que, de certo modo, teve uma importância decisiva em minha vida. Havia sido na noite daquele baile que descobri poder ser atraente, explorando um quê medieval que o vestido me dava e, a partir daí, procurei acentuá-lo cada vez mais.
      O vestido ainda estava pendurado no armário do meu quarto. De vez em quando, usava a rede de cabelo, mas o vestido, olhava para ele, muitas vezes ansiando por uma oportunidade de vesti-lo novamente.
      A perspectiva de usá-lo, portanto, me encantava, sabia porém que iria trazer dolorosas recordações de Gwennan, junto de mim na galeria - duas meninas, então, no auge de uma aventura. Tinha curiosidade de saber se Harry também ainda se lembrava disso.
      - Estou me recordando das festas de meu pai - disse sorrindo.
      Pensava na casa de Londres e nas recepções perfeitas que dava, e também numa menina, debruçada no corrimão da escada, ouvindo falarem mal dela.
      - Lembranças? - perguntou Bevil com ternura. Desde sua aventura na ilha que ele se esforçava por me demonstrar seu amor, e eu já estava sentindo-me feliz.
      E, se não fosse por Jessica, creio que seria completamente feliz.
      Mas, lá estava, sorrindo serenamente, prestando atenção na conversa e o modo como ela se desenrolava na sua presença - livre e desembaraçada - uma demonstração evidente de que tinha sido aceita como membro da família.
      - Nessas ocasiões, o que sempre é um problema são as fantasias. Mas sei de um lugar excelente que fornece trajes de todos os tipos. Era lá que costumava procurar fantasias no tempo de seu pai - disse Lister.
      - Quanto a mim, já tenho minha fantasia - fui logo dizendo. - Foi uma que usei numa das festas de meu pai.
      Jessica inclinou-se para a frente e perguntou:
      - Ela é feita de quê? Fale sobre ela.
      - Oh, é só um traje de época. Foi de uma das Menfrey, pois há um retrato de uma moça usando o vestido. Bem, se não for idêntico, é tão parecido que não dá para notar nenhuma diferença.
      - Ah, que fantástico! Espero que me mostre.
      - Mas claro!
      - Acho melhor - prosseguiu William - que eu veja logo algumas fantasias para alugar. Você precisa me dizer do que gostaria de fantasiar-se.
      - Creio que vou tentar eu mesma fazê-la - respondeu Jessica, tomando uma atitude de quem estava um pouco embaraçada, mas senti algo de falso nela, achando-a estar perfeitamente segura de si naquele instante. - Isto é, se for convidada, claro.
      - Mas naturalmente - gritou Sir Endelion.
      E ela, esboçando um sorriso meio de protesto, disse:
      - Afinal, sou apenas uma governanta.
      - Ora, ora, minha querida - disse Sir Endelion, lançando-lhe olhares lascivos -, deve pensar em você apenas como uma amiga da família.
      - Bem, sendo assim - arrematou Jessica -, como a Sra. Menfrey está providenciando ela mesma a própria fantasia, também farei o mesmo.
      Tirei o vestido e encostei-o ao meu corpo. Era verdade, meus olhos estavam mais brilhantes e minha cútis ganhou novo viço. Prendi os cabelos na rede com pequeninos topázios, peguei o vestido, que deixara cair no chão, e tornei a encostá-lo ao corpo. Sorria, olhando-me ao espelho, mas a lembrança de Gwennan era dolorosa. Nunca vou poder esquecer-me dela.
      Ah, Gwennan, sussurrei, se você não tivesse fugido e agora estivesse casada com Harry, vivendo em Chough Towers com seu filho, que bom seria. Seríamos então irmãs, e Jessica Trelarken não estaria aqui cuidando de Benedict.
      Mas a vida tinha de ser aceita do jeito que ela era.
      Deu-me, então, vontade de olhar outra vez o quartinho redondo, aquele que se dizia mal-assombrado pela pobre da governanta, e também de dar mais uma espiada no retrato da mulher com um vestido igual ao meu, tão igual que até poderia ser o mesmo.
      Pretendia falar com Bevil acerca da casa. Para mim, estava muito errado que uma grande parte dela não pudesse ser usada. Tínhamos também de dispor daqueles aposentos velhos da casa, de mandar remodelá-los, de modo que pudéssemos dar grandes festas, encher o lugar de alegria, tal como Harry em Chough Towers.
      Uns dias depois, encontrei tempo e fui ver o retrato da mulher com o meu vestido. Enquanto me encaminhava para a ala abandonada da casa, dizia a mim mesma que não era do tipo de mulher nervosa, que era até dada ao ceticismo e não acreditava no sobrenatural. Mas, ao abrir a porta que levava à ala, já não estava tão segura de mim. Talvez o que me deixava com os nervos à flor da pele fosse o gemido dado por aquela porta; já não me lembrava mais dele e, naquele silêncio, ele me deu um susto enorme. Ri de mim mesma e fui pelo corredor por onde uma vez Gwennan já havia me conduzido. Estava muito sombrio, pois só existia uma janela no alto da parede e, assim mesmo, precisando de limpeza. Era ridículo! Toda essa parte tinha também de ser cuidada. Mas já via Sir Endelion encolhendo os ombros, não querendo gastar dinheiro para transformar isto aqui num lugar habitável. Naturalmente Lady Menfrey concordaria com ele.
      Dei um pulo para trás. Era como se uma pegajosa mão estivesse tocando no meu rosto. Sem querer, gritei, ouvindo o eco de minha voz. Nesse instante, percorreu meu corpo um arrepio gelado.
      Toquei então em meu rosto e, como da outra vez, descobri que esbarrara numa teia de aranha.
      Limpei-me o melhor que pude, tentando rir de minha bobeira, mas sabia que meus nervos estavam em frangalhos e, mesmo não querendo, ficava espiando por cima dos ombros.
      Minha vontade era voltar, porém, se o fizesse, sabia que ia desprezar-me. Assim, fui em frente e cheguei à porta com o painel móvel. Outra vez o mesmo gemido de protesto da porta quando passei para a cavidade circular do contraforte. Uma nesga de luz vinha de uma fenda nas paredes maciças. Lá estavam o espelho embaçado, a arca, e era tudo.
      Por um momento parei de respirar, a porta tinha se movido na dobradiça, fazendo o ruído que soava como um gemido.
      Seria verdade, perguntei-me, que uma mulher tivesse aqui vivido, sem que o resto da casa soubesse disso? E pensei no seu amante, chegando às escondidas para vê-la aqui. Devia ser parecido com Sir Endelion. Não, como era jovem, seria mais como Bevil.
      Toquei nas paredes, estavam geladas. Conforto, ela não teve nesse lugar. Mas o que seria dela se fosse mandada embora pela dona da casa, a mulher do vestido igual ao meu? Qualquer teto serve, se não se tem para onde ir... E, além disso, ainda havia o amante para confortá-la. Dei a volta no quartinho e entrei no corredor estreito, que levava à escada apertadinha para o terraço da torre do contraforte. Depois do confinamento do quarto circular, o ar em cima parecia em tal quantidade que intoxicava. Parei, então, um pouco para respirar fundo. Longe, lá embaixo, o mar brincava nas rochas e atirava nuvens de espumas brancas para o alto. Dava para ver os picos mais altos das Sorrateiras. E também a ilha.
      Aí fiquei prestando atenção. Estava ouvindo som de passos nas pedras da escada. Mas não podia ser, tinha de estar enganada. Num lugar com uma lenda daquelas é claro que a imaginação voa longe. Não, outra vez ouvi. Seria então verdade que a governanta que morreu aqui não descansava e voltava à cena de seus últimos dias na Terra?
      Tentei rir de mim mesma, mas me sentia presa num alçapão. De um lado, a escada dando no quarto mal-assombrado, do outro, a queda direta no mar.
      Segundos pareceram minutos. Voltei-me, segurando firme no parapeito e cravando os olhos na entrada estreita que dava na escada. Ouvi o som de alguém respirando fundo, e uma sombra apareceu na entrada... era a governanta, olhando para mim. Por um instante, pensei estar vendo um fantasma, porém suspirei aliviada. Não era a governanta, saída de seu passado, que vinha me buscar, era a atual, que me seguia até aqui.
      - Jessica! - gritei. Ela riu.
      - Acho que lhe dei um susto, não é? Desculpe. É que vi a porta que dá para esta parte aberta e não pude resistir à tentação de vir conhecer isto aqui. Nunca tinha vindo antes a este lado da casa.
      Teria deixado a porta aberta? Eu achava que não.
      - Isso aqui está precisando ser reformado - falei, tentando fazer minha voz soar real.
      Ela se aproximou, ficando junto de mim no parapeito.
      - É verdade que esta parte da casa é mal-assombrada?
      - Não vai me dizer que acredita em bobagens dessa ordem, hem?
      - Sou cornualhense. Está tudo muito bem para vocês, ingleses prosaicos, mas nós, aqui, sabe como somos.
      - É, sei que essa é uma raça supersticiosa, mas pensei que pelo menos você tivesse bom senso e não acreditasse nessas histórias.
      - Durante o dia sou cética, mas depois que o sol desaparece, nem sempre. Ou então quando estou num lugar como este. A lenda é sobre uma governanta, não é?
      - Segundo a história, é.
      Ela riu.
      - Bom, naturalmente como é sobre uma governanta de Menfreya, fico interes-sada. Conte o fim dessa história.
      - Ela ficou grávida e, escondida aqui, deu à luz uma criança, morrendo depois. Ninguém sabia que estava neste lugar, a não ser o amante, mas nessa ocasião ele estava fora. Quando voltou, encontrou a criança e ela mortas.
      - Uma proeza conseguir manter escondido alguém dentro de uma casa com a família morando nela ao mesmo tempo.
      - E o quarto depois disso foi fechado para o mundo.
      - E praticamente ainda está.
      Ficamos em silêncio, e percebi o quanto estávamos isoladas. Senti um calafrio, imaginando a solidão da governanta do passado e o seu terror ao saber que estava para ter um filho.
      - Tenho curiosidade de saber o que realmente deve ter acontecido. Será que ela não foi assassinada pela mulher dele?
      - Assassinada? Mas essa não é a história.
      - Mas poderia ser. Ou você pensa que ela não sabia? Certamente que percebeu como iam as coisas entre o marido e a governanta. O que quero dizer é... será que uma mulher não desconfia?
      Meio perplexa, tornei a repetir:
      - Mas essa não é a história.
      Ela riu. Nisso, passou uma gaivota, que soltou seu grito melancólico, semelhante a uma risada zombeteira, precipitando-se no mar.
      Jessica pôs sua mão no meu braço e disse:
      - Acho que a mulher sabia. Deve ter subido até aqui e matado a governanta depois que a criança nasceu. Matou ambas. Naquele tempo não seria difícil fazer isso parecer como se ela tivesse morrido do parto. Pense só em como se deve sentir uma mulher vendo o marido amar outra. Ela é capaz de ter ímpetos assassinos, não é?
      Seria minha imaginação ou ela estava mais perto de mim do que antes? E nos seus lindos e impenetráveis olhos eu realmente estava vendo uma intenção macabra?
      Quando me segurou com mais força e se inclinou em minha direção, me senti tomada de pavor, e aí lhe dei um empurrão tão violento que ela caiu contra a muralha da torre. Vi que tentava firmar-se e que seu rosto perdeu totalmente a cor. Consegui segurá-la enquanto caía, amparando sua queda.
      - Jessica! O que está acontecendo?
      Os olhos dela estavam fechados, com os cílios longos e negros tocando a pele muito pálida. Tinha desmaiado.
      Tentei escorá-la contra a parede e forçar sua cabeça para baixo. Não sabia se devia ficar ali ou correr em busca de auxílio, quando ela abriu os olhos. Parecia completamente perdida.
      - Você desmaiou - disse eu.
      - Desmaiei? - repetiu. - Mas agora estou bem. Já está passando.
      - O que aconteceu? - perguntei, ajoelhando-me ao seu lado.
      - Não foi nada. Só um desmaio. Foi a altura... nunca pude suportar. De repente fico tonta.
      - Devo chamar alguém.
      - Oh, não, por favor. Estou bem. Cada minuto que passa fico melhor. Não foi nada, é coisa passageira. Realmente estou quase boa.
      - Sempre desmaia?
      - Oh... isso acontece de vez em quando com as pessoas. Desculpe-me que tenha acontecido.
      - Vou levá-la de volta ao seu quarto.
      - Obrigada.
      Estava um pouco vacilante, mas já se parecia mais com ela mesma. Voltou-se para mim sorrindo e falou:
      - Por favor, não faça alarde disso. Não foi nada. Só uma pequena vertigem. Vai esquecer que isso aconteceu e não vai contar nada, não é?
      - Se é assim que você quer...
      - Obrigada.
      Voltamos ao quartinho redondo e, quando estávamos saindo dele, ela disse:
      - Queria ver o retrato da Lady Menfrey de que falou.
      - Agora? Não prefere ir para o seu quarto descansar?
      - A vertigem já passou. O que queria mesmo era ver o quadro.
      - É por aqui, vamos.
      Levei-a ao quarto onde estava o quadro. Primeiro olhou para ele, depois para mim.
      - As feições não são muito parecidas com as suas. Agora, você com um vestido desses, ficaria como se fosse da mesma época.
      - E isso não acontece com todo mundo quando usa roupas de outras épocas?
      - Vamos tirar isso a limpo no baile, vendo os convidados fantasiados. Ora, então é esta a Lady Menfrey do tempo em que morreu a governanta. Ainda acho que foi ela quem matou a outra.
      - Acha que ela parece uma assassina?
      - E os assassinos têm aparência diferente? Creio que não. São as pessoas mais inesperadas que se tornam criminosas. Por isso mesmo os crimes existem. Se os assassinos parecessem diferentes, as vítimas ficariam de sobreaviso, e os crimes seriam evitados. Mas é isso, devia saber que a governanta ia ter um filho do marido dela. Imagine só como estaria se sentindo. Como se sentiria você? As duas deviam odiar-se. Não, não acho absurdo supor-se que uma tenha tentado matar a outra.
      - Não acredito nisso.
      Ela estava sorrindo, completamente calma, como se o incidente na torre nunca tivesse acontecido.
      - A história assim ficaria mais interessante - ela murmurou.
      Em Menfrey, a parte mais suntuosa da casa é o hall. O teto abobadado, com vigas de madeira esculpida; a antiga escadaria e uma armadura que, dizem, foi usada por um Menfrey que atravessou a França com Henrique VIII; a galeria com os quadros; as armas na parede; o palco onde, agora, estavam sentados os músicos. Tudo contribuía para uma linda cena, ainda mais que as estufas de plantas se esvaziaram para fornecer vasos arranjados com flores exóticas e as hortênsias dos jardins - rosa, lilás, azul, branca, multicoloridas - foram reservadas para compor enormes tinas envoltas em veludo vermelho que foram dispostas por todo o recinto a intervalos regulares. E a escada decorada com folhagens me fazia lembrar as festas dadas por meu pai.
      Fanny ajudou-me a me vestir. Estava silenciosa, e imaginei que poderia saber de alguma coisa que não dizia por medo de me magoar.
      Entretanto, quando me vi no espelho, com o vestido topázio ressaltando não sei o que nos meus olhos e a rede de pedrarias fazendo o mesmo com o meu cabelo, senti-me imbatível.
      - Esta noite está feliz - disse ela. - Rezo para que continue assim.
      Parecia um profeta, com a escova erguida na mão e olhar extremado.
      - Não demore muito, Fanny. Não se esqueça de que sou a anfitriã esta noite. Tenho de ver se está tudo em ordem.
      Os convidados não seriam anunciados como se faz nos outros bailes. Seriam introduzidos por Pengelly e outros criados, todos magníficos em casacos de cetim azul, com alamares de prata, calções brancos e cabeleiras empoadas; mascarados, iriam se misturando uns aos outros e se reuniriam para a ceia. Mais tarde seria o momento de tirar as máscaras. Havíamos optado por um baile a fantasia por ser muito mais emocionante. O ar de mistério aumenta a alegria, todos gostam de estar protegidos pelo anonimato, além de sempre haver algo de picante nas tentativas de adivinhar quem é o par de quem.
      Os Menfrey iam ficar andando no meio de todo mundo, e ninguém devia saber quem eram os donos da casa, até chegar a hora de se retirar as máscaras, quando então receberíamos os cumprimentos e os agradecimentos.
      Quanto a mim, ficaria vigiando um homem com uma toga romana. Mas, de qualquer modo, sei que posso reconhecer Bevil onde quer que esteja. Duas togas romanas foram entregues, me contou desolado William, que não sabia se devolveria uma. Para si mesmo, encomendou uma fantasia de persa e uma de romano para Bevil.
      - Já não há mais tempo para fazer mais nada - disse-lhe eu. - Vai ter, então, de haver dois romanos em Menfreya, mas pode ter certeza de que também existirão outros.
      Sir Endelion estaria de cardeal, não sei se Wolsey, Mazzarino ou Richelieu, só que poderia passar como qualquer um deles. Ironicamente Lady Menfrey estaria de Catarina de Aragão.
      E pensei na transformação de Sir Endelion. Mas seria mesmo uma transformação? Não teria sempre existido nele a maldade, apenas esperando uma oportunidade para se mostrar? Talvez ainda tivesse muito que aprender sobre essas pessoas.
      Tive um arrepio.
      - O que é isso? Passou assombração por aqui?
      - Não. A assombração parece mais com uma corrente de ar que vem da janela.
      Fanny foi fechá-la.
      - Seu cabelo está brilhando. Era assim que gostava de vê-lo. Agora, onde está aquela coisa?
      - Coisa é desrespeito, Fanny. É uma rede de cabelo ou uma jóia, se quiser.
      - Não me diga! Mas, de qualquer modo, é uma coisa bonitinha. Não sei. Combina com você. Você fica com um jeito diferente... quando a usa.
      - Como... diferente, Fanny?
      - Não sei dizer... é como se você não pertencesse a este lugar... fosse de outro.
      - O que você quer dizer?
      - Não me pergunte. Uma coisa que me passou pela cabeça, só isso.
      De repente seu rosto se contraiu, e pensei que fosse chorar.
      - Fanny - gritei - qual é o problema?
      Ela arraneou o avental pela cabeça e foi se sentar. Fui para junto dela, botando meu braço sobre os seus ombros.
      - Sou uma idiota. É que a única coisa que quero é ver você feliz...
      - Mas sou feliz, Fanny. Juro a você.
      Tinha uma expressão triste no rosto e me lembrei de como antigamente costumava me olhar, dizendo baixinho: "Você não engana Fanny".
      Imediatamente reconheci Jessica. Era a única no meio de toda aquela gente a estar vestida com simplicidade. E como foi inteligente! Desse modo atraía toda a atenção para si. Foi ela mesma quem fez o vestido. Em sua simplicidade, chegava a ser quase puritana. De seda cor de lavanda, tinha a saia caindo em cascata até os pés, e o corpete, que poderia dar idéia de afetação, nela produziu efeito oposto, só acentuando mais a perfeição do corpo. Seus cabelos escuros estavam partidos ao meio e alisados para baixo, terminando com um coque na altura da nuca. Veio fantasiada como uma governanta de outros tempos. Quando a vi, cheguei a parar de respirar.
      - Vejo que me reconheceu, apesar da máscara - ela comentou. - O que está achando de minha fantasia?
      - Ela é tão...
      - Simples? Bem, ela pretende ser de uma governanta.
      - Está um encanto! O que é que fez com que pensasse nela?
      - Ora, se você vinha como a dona desta casa de uma época passada, e é isso afinal o que é, por que então não viria eu como aquilo que sou? Era uma fantasia fácil, e achei que ninguém mais viria assim. A idéia me veio quando estávamos conversando outro dia naquela parte lúgubre da casa.
      - Ah, estou entendendo.
      - Acha que aquela governanta seria assim? - ela perguntou. - Eu acho que sim. Fiz uma pesquisa sobre trajes e este é mais ou menos da mesma época do seu. Não sei se alguém vai notar isso.
      - Acho difícil.
      - Seria divertido se notassem.
      Afastei-me dela e, enquanto atravessava o hall, aproximou-se de mim um romano que, por um momento, pensei que fosse Bevil.
      - Você fica impressionante com esse vestido - era a voz de William Lister.
      - Obrigada. Já vi mais duas outras togas. Não lhe disse que ia haver uma porção delas? Agora mesmo estamos andando pela Via Ápia.
      - Mas quase tudo quanto é época está representada aqui.
      - Vou até a sala da ceia ver se tudo está em ordem.
      - Vou com você.
      - Oh, não, por favor. Vá tomar conta daquela rainha Mary dos escoceses. Ela parece estar mais em Fotheringhay do que em Menfreya.
      Vi um cardeal passar por mim acompanhado por uma Maria Antonieta. Era meu sogro de volta à juventude.
      Enquanto me dirigia para as salas onde a ceia seria servida, tocavam o Danúbio Azul. Tínhamos decidido que seriam executadas músicas de qualquer país. Eram três salas de ceia, todas maravilhosamente decoradas com flores e folhagens, e nelas foram dispostas mesinhas forradas com lindas toalhas. Falei com Pengelly, que garantiu estar tudo em ordem. Assim, voltei ao salão de baile.
      - Quer dançar comigo?
      Era outro homem. Meu coração pulou, pensava que fosse Bevil disfarçando a voz para me divertir, mas foi só um instante de ilusão.
      A sala estava lotada para que se pudesse dançar bem. Isso, porém, não preocupava o meu par, que visivelmente não era bom dançarino e estava mesmo é querendo conversar.
      - Devo confessar que sei quem você é - disse ele.
      - Está tão evidente assim?
      - Não, de modo algum. É que já vi esse vestido, com você antes.
      Tinha conseguido reconhecer a voz e aquela boca que se calou quando Gwennan se foi.
      - Ah, é você, Harry?
      - Então me traí.
      - Você se revelou ao falar do vestido.
      - Parece que lá se vão anos, hem, Harriet?
      - Harry...
      - Vamos, continue. Está sem saber se me importo de falar disso, não é? Bom, agora virou passado, e ela está morta.
      - Oh, Harry, foi tão idiota da parte dela. Não é que...
      - Que realmente tivesse gostado dele? Talvez não mesmo. Mas também não gostou de mim. Acho que não gostou de ninguém, a não ser dela mesma. Afinal era uma Menfrey.
      Notei o tom de mágoa em sua voz e fiquei com pena dele. Não havia esquecido e também talvez não tivesse perdoado.
      - Ela sofreu demais, Harry...
      Ele ficou em silêncio, os seus lábios tomaram uma expressão como de regozijo pelo que aconteceu a ela. Pobre Harry, ele a amou. Era o poder que os Menfrey têm de conservar as pessoas sempre presas a eles. Pensei em mim e Bevil: nada que ele também fizesse iria alterar os meus sentimentos e, assim, devia ser com Harry - que ainda se sentia ligado a Gwennan.
      A decisão de entrar na política talvez fosse para desviar seu pensamento daquela tragédia. Ou, quem sabe, um certo revanchismo, pondo-se em oposição a Bevil.
      - Vejo que está com pena de mim, Harriet - disse de repente como se lendo o meu pensamento. - Acha que Gwennan me abandonou e que, mais uma vez, serei humilhado, quando os eleitores me mostrarem que não me querem no Parlamento?
      - Mas por que aqui, Harry? E por que não em outro lugar?
      - Não está gostando da idéia de me ver contra o seu marido, hein?
      - Claro que não! Apesar de tudo você é um velho amigo da família. Sei que fingimos que isso não tem importância, mas tem... de certo modo. Preferia vê-lo concorrendo em outro lugar.
      - Pensa que não tenho chance alguma aqui, não é?
      - Bom, há séculos que a cadeira no Parlamento pertence aos Menfrey.
      - Mas houve tempo em que seu pai foi o representante de Lansella. Isso pode acontecer outra vez.
      - Mas... ele era do mesmo partido.
      - A sujeição a um certo partido não tem de ser eterna.
      Os lábios dele tinham uma expressão dura, e achei que sua idéia era a de que, se vencesse um Menfrey numa eleição, a vida, de certa maneira, lhe proporcionara uma chance para se recuperar da humilhação que sofreu por causa de Gwennan. Uma idéia maluca, e eu não estava gostando dela.
      - Mas vai ficar desapontado, Harry.
      - Fala como a mulher do parlamentar reinante. Não esperava outra coisa de você, Harriet.
      - Por que não considera a possibilidade de tentar em outro lugar?
      - Este é meu lugar, tanto quanto é dos Menfrey. Será que tenho de ser expulso por eles? O que vai haver é uma luta.
      Fomos nos sentar por alguns momentos, e ele trouxe a conversa sobre Gwennan de volta. Percebia-se que continuava vivendo no passado e que não conseguia tirá-la da cabeça. Era natural, este baile devia lhe recordar o outro, quando os dois estavam juntos, ela tão alegre, no seu vestido de veludo azul feito em casa, feliz com a aventura de estar num baile proibido, e ele, encantado com o seu charme, extasiado como nunca. Não é de admirar que estivesse tão pesaroso.
      Desculpei-me por deixá-lo, pois tinha de certificar-me de que tudo corria bem; afinal, disfarçada ou não, eu era a anfitriã.
      Ele me deprimia, e me senti aliviada quando me afastei. Aí, me juntei às outras pessoas; de vez em quando dançava, ou então sentava para conversar. Evidentemente, muitos sabiam quem eu era. Talvez o meu andar me traísse. Mas conversei muito sobre política, dancei com o meu sogro e com Bevil, que estava alegre e afetuoso.
      - Você é a alma da festa, Harriet Menfrey - disse ele, rindo. - Como pensa Harry Leveret em nos vencer tendo você por perto, não imagino.
      E contei-lhe que justamente havia dançado com Harry, que ainda se remoía por causa de Gwennan. Mas Bevil não estava muito interessado nele. Disse-me que eu estava maravilhosa e era o mais fascinante fantasma que havia retornado do passado.
      - Temos de trazer aquele quadro para fora e mandar limpá-lo. Deve ficar pendurado na galeria. Você também devia ser pintada com esse vestido, para ser colocada ao lado do outro. Isso ficaria engraçado.
      Foi ótimo estar com Bevil; podia compreender a amargura de Harry.
      Mas naturalmente que ele e eu não íamos poder passar a noite toda juntos. Era nosso dever, disse, atendermos os desgarrados. Deixou-me para ir falar com uma rechon-chuda Helena de Tróia, e eu fui ter com um maduro Sir Galahad.
      De vez em quando, avistava a governanta do século XVIII. Sabia que nunca estaria sem par; nenhum disfarce poderia disfarçar sua beleza, e como foi sábia por ter vindo vestida simplesmente. Surpreendia-me o fato de sabê-la sempre inteligente.
      Numa das vezes em que saía de uma das salas de ceia, vi que dançava com Bevil. Afastei-me; não queria vê-los. Mas sempre que estava dançando, ficava imaginando o que estariam dizendo um ao outro. Juntos, como seriam? O baile, para mim, agora era um purgante, e queria que acabasse logo. Harry tinha me perturbado com a idéia de que um Menfrey, quando é amado, é para sempre, e de que não há como escapar desse sentimento. E comigo seria assim. Tinha medo de Jessica Trelarken e temia por Bevil. Ela, eu não entendia, e ele, entendia demasiadamente bem. Por que teria vindo fantasiada de governanta? Estaria tentando estabelecer algum paralelo? Será que queria insinuar que o que estava acontecendo agora já acontecera antes?
      E, subitamente, o passado tornou-se claro para mim. Não seria a governanta que viveu naquela parte da casa tão atraente e irresistível quanto Jessica? Já podia compreender aquele marido, não querendo deixá-la partir, conservando-a perto dele...
      Ora, isso era idiotice minha, não estava sendo sensata. O passado não pode impor-se dessa maneira ao presente. O problema era meu marido ser muito mulherengo; há homens que não se contentam apenas com uma mulher e, por simples casualidade, tínhamos uma governanta de extraordinária beleza. Apenas isso.
      O resto era pura imaginação.
      Deu-me vontade de sair do salão, e escapuli para os jardins. O vento soprava forte, mas meus cabelos estavam presos na rede. Um estranho impulso me levou pelo caminho das pedras que dava no jardim ao lado do penhasco. Parei e olhei para trás para ver a casa, linda ao luar com as janelas todas iluminadas. O som da música vinha de um lado e do outro, o barulho das ondas batendo na praia e nas rochas.
      Era maré alta, e a ilha ficava parecendo mais longe do que de costume. Uma onda mais forte espalhou sua espuma, molhando as pontas de minhas sandálias. Olhei para a ilha e vi luz numa janela. Por um instante parei de respirar, imóvel, observando.
      Não sei quanto tempo fiquei assim, pois mergulhei outra vez no passado me vendo escondida sob um lençol, e o vulto de Bevil erguendo-se sobre mim com uma garota da vizinhança ao seu lado.
      Quem estaria lá agora? Ora, Bevil sempre usa a casa para suas conquistas amorosas, era como se estivesse ouvindo a voz de Gwennan, rindo, falando nos meus ouvidos. A noite estava cheia de fantasmas, não os fantasmas da governanta que morreu no parto, nem da mulher que talvez a tivesse assassinado, mas de Gwennan, troçando de mim, mesmo sendo minha amiga. Sentia como se ela estivesse querendo me avisar, naquela noite, contra alguma coisa.
      Enquanto estava ali, vi uma figura saindo da casa. Difícil saber quem era daquela distância, mas uma toga branca é facilmente reconhecível, A ela se juntou uma mulher vestindo uma fantasia muito mais simples do que a dos outros, e por isso dava perfeitamente para ser identificada.
      Com que então, estavam os dois juntos na ilha. Vieram para a praia; o homem fez qualquer coisa com o braço. Iam remar de volta.
      De tanta raiva, tinha um nó na garganta. Iria esperar por eles. Estaria ali quando o barco tocasse na areia.
      Mas não... eles não estavam voltando. Apenas tinham vindo certificar-se de que o barco estava bem amarrado. Uma vez não o amarraram suficientemente bem.
      Pensei: vou até lá. Confrontarei os dois. Desta vez Bevil não vai me encontrar agachada debaixo de um lençol contra poeira.
      Estava soltando um barco das amarras, quando ouvi atras de mim uma voz.
      - Pare!
      Era Fanny, que vinha correndo pelo caminho nas pedras, chegando ofegante até onde eu estava.
      - O que é que está fazendo aqui? Vai entrar nesse barco?
      - É, me deu na cabeça de ir até a ilha.
      - Está maluca? Numa noite dessa, com o mar bravo? Se o barco virar, antes que tenha tempo de dar um ai, já foi arrastada com todas essas saias.
      Ela estava com a razão.
      - Ah, estou sabendo, também vi - disse ela com a voz seca. - Mas não tem nada de ir lá. É melhor voltar ao baile e se esquecer disso tudo.
      - Ainda não, Fanny. Quero ficar aqui um pouco mais.
      - Ora, vamos, está muito frio.
      Fomos, então, para um caramanchão e permanecemos por uns momentos sentadas ali.
      O jeito de Fanny era agressivo, queria conversar com ela, mas nem ousei. Tentava fingir que tinha imaginado tê-los visto na ilha.
      Por fim voltamos. Até o momento de se retirar as máscaras, não tornei mais a ver Bevil e Jessica, e aí já não estavam juntos.
      Só pouco antes do amanhecer os últimos convidados se foram, é então fiquei sozinha com Bevil. Ainda não tirara o vestido topázio para poder ter confiança em mim. Tinha de falar com ele, não agüentava mais continuar na dúvida. Com os braços para trás, apertava as mãos para me dar confiança. Ele cantarolava a melodia de uma valsa. Aproximou-se de mim, envolveu-me nos braços, tentando me fazer dançar com ele pelo quarto.
      - Acho que nosso baile foi um sucesso. Precisamos dar mais festas - disse ele.
      - Há uma coisa que preciso falar, Bevil.
      Ele parou e me olhou com atenção, percebendo o tom sério de minha voz.
      - Sabe, por uns momentos saí do baile e fui até a praia. Vi duas pessoas na ilha.
      Levantou as sobrancelhas e disse:
      - Você quer dizer, dois de nossos convidados, não é isso?
      - Um, era Jessica Trelarken, o outro, vestia uma toga romana.
      - Esta noite os romanos estavam onipresentes - falou de modo despreocupado.
      - Bevil, era você?
      Parecia surpreso. Hesitava, fazendo meu coração bater mais forte.
      - Na ilha? Claro que não!
      Seria também de seu hábito mentir e defender, se preciso, a amante?
      - Pensei que...
      - Sei o que pensou. Tudo por causa daquele desgraçado ursinho...
      - Não esteve mesmo lá, Bevil?
      - Eu não estive mesmo lá - respondeu imitando o tom sério da minha voz.
      Aí, tirou a rede do meu cabelo, jogando-a sobre a penteadeira. Suas mãos mexiam no meu vestido.
      - Como se desabotoa essa coisa? - ele perguntou. Virei de costas para mostrar. Tinha de acreditar nele, porque eu queria muito.
      Algumas semanas depois, Bevil teve de ir a Londres, e fui com ele. Embora gostasse muito de Menfrey, sentia-me contente por me afastar de Jessica.
      Na pequena casa dele, voltei novamente a me sentir feliz. Eu estava sempre encontrando os seus amigos e fazia, o maior sucesso entre eles, falando de política e conversando sobre o partido. Bevil mostrava-se orgulhoso da mulher.
      - Naturalmente - diziam - que, como filha de Sir Edward, você já sabia dessas coisas mesmo antes de casar.
      A opinião geral era a de que Bevil havia feito um casamento inteligente, e todos diziam invejá-lo, e, de ser invejado, ele gostava.
      Fui à casa de tia Clarissa, e essa visita me divertiu muitíssimo. Phyllis estava noiva, mas o casamento estava longe de ser aquilo com que haviam sonhado. Quanto a Sylvia, ainda não arranjara pretendente, e tive pena dela. Mas só pude achar graça do tratamento que agora me davam, devido ao meu novo status. Tia Clarissa chegou até a sugerir que eu devia a minha boa fortuna aos seus esforços. Mais tarde, sozinha com Bevil, rimos muito disso. É, felizes dias esses.
      Foi nessa minha estada em Londres que me veio a idéia de transformar a casa da ilha em colônia para crianças sem condições de passar férias à beira-mar no verão. A idéia me veio quando fazia uma peregrinação sentimental no mercado, onde costumava ir com Fanny alguns anos atrás. Mas agora observava os vendedores de lá com olhos diferentes, e achei que podia dar aos filhos deles a oportunidade de também desfrutar do ar marinho.
      Fiquei excitada com o projeto e encantada por ver Bevil concordando comigo no aproveitamento daquela casa, que jamais serviu para coisa alguma. Decidi que, ao voltar, começaria imediatamente os preparativos e, talvez já no próximo verão, o nosso esquema de férias estivesse funcionando.
      Foi em pleno outono que voltamos para Menfreya. Benedict ficou radiante quando nos viu e me deu umas florezinhas que apanhava pelos caminhos. Nessa época do ano eram raridade, mas ocasionalmente já tinha visto deIas em novembro. Era como se o clima enganasse as plantinhas, fazendo com que dessem flores, pensando que a primavera havia chegado.
      - São para você - disse ele.
      O presente me encantou, até descobrir que a idéia fora de Jessica. Às vezes, tinha a impressão de que ela fazia coisas assim para me tranqüilizar.
      Pouco depois de nossa volta, surgiram certos rumores envolvendo a ilha, e por muitos dias foi o assunto preferido das conversas.
      O que aconteceu foi que duas meninas do lugar, quando estavam vindo ao anoitecer pelo caminho nas rochas, viram um fantasma na ilha. Pelo menos afirmavam isso com toda a segurança. Segundo as duas, quando viram a aparição, uma olhou para a outra e trataram de dar no pé, correndo para casa o mais depressa que podiam.
      Seria mais ou menos esse o diálogo que mantiveram com os pais.
      - Um fantasma? Com o que é que ele parecia?
      - Com um homem.
      - Bem, talvez seja um homem mesmo.
      - Não, não era um homem, nós temos certeza.
      - Então como é que vocês têm certeza de que era um fantasma?
      - Nós vimos, não é Jean?
      - É, nós vimos.
      - Mas como?
      - A gente vinha vindo, e vimos pelo seu jeito.
      - Mas qual o jeito de um fantasma?
      - Não sei, mas não é como todo mundo. Ele estava olhando para Menfreya...
      - Como?
      - Como os fantasmas olham.
      - Como é isso?
      - Não sei. A gente sabe como eles são quando a gente vê um, não é, Jean?
      - É, a gente sabe, e é só.
      - Eu não viveria naquela casa nem por um milhão. E, a partir daí, a história começou a correr. Um homem aparecera na ilha, e mesmo sem vê-lo sabiam que não era das redondezas, ninguém que já tivessem visto antes.
      Quando Bevil ouviu a história, riu e comentou:
      - É que nada anda acontecendo por aqui, e aí se inventa qualquer coisa para falar.
      Mas a história me fez lembrar minha noite escondida sob um lençol e, também, a noite do baile. Havia visto dois de nossos convidados lá. Por acaso esses dois não estariam achando a ilha um bom lugar para seus encontros? Não seria o homem daquela noite o fantasma visto pelas duas meninas?
      Dava o que pensar.
      O pessoal da Cornualha adora um fantasma, onde os há mais do que no resto da Inglaterra. Na forma de duendes, gnomos, diabos, anões - tudo no fim vira fantasma, e quando se descobre um novo, o cornualhense não vai largá-lo muito facilmente.
      Depois que escurece, o caminho nas rochas fica deserto, mas muitas pessoas afirmavam ter visto a assombração da ilha. Ela variava. Às vezes, era um duende, que vinha como um homenzinho usando um chapéu parecido com um pão de fôrma iluminado por luz fosforescente, de modo que se podia vê-lo nitidamente; outras vezes, era um sujeito de altura descomunal com chifres apontando na cabeça; ou, então, como alguns afirmavam, um homem de aparência comum com o chapéu de oleado dos marinheiros - um homem que o mar tinha devolvido.
      Sentada na minha janela, olhando para a ilha, não me foi difícil compreender como essas fábulas foram inventadas. Existia uma luz bruxuleante que podia nos pregar uma peça, e ela, aliada à imaginação e a uma crendice ilimitada, permitia a qualquer um formar a imagem que bem entendesse.
      Nessa ocasião havia um velho, Jemmie Tomrit, vivendo numa casinha de dois cômodos em Menfreystow, que ficou muito impressionado com todas essas histórias. Era um pescador com 90 anos, uma espécie de mascote ou talismã, respeitado por sua longevidade, e o orgulho de sua família - que tinha intenção de mantê-lo vivo pelo menos até os 100 anos. Corria na cidade um ditado que rezava: "Viver tanto quanto os Trekeller". É que o velho Jim Trekeller foi até os 92, e o irmão, até os 89. E os Tomrit estavam contando em trocar, no ditado, o nome Trekeller pelo de Tomrit, se conseguissem um meio de fazê-lo.
      Por isso, jamais deixavam que o velho Jem saísse se o vento estivesse frio; todo cuidado e carinho eram poucos para o velho, e imediatamente davam alarme geral se acontecesse de ele não ser encontrado em casa.
      E é esse Jemmie Tomrit que foi um dia encontrado sentado no rochedo tperto de Menfreya.
      - Estou esperando pelo fantasma - disse ele, quando o acharam.
      Os Tomrit ficaram, então, com raiva de Jean e Mabel, as meninas que levaram para casa essas histórias de fantasmas, e agora elas eram responsabilizadas pelo velho estar sempre tentando escapulir para o rochedo e ficar, de lá, olhando a ilha. Já não era mais o mesmo, vivia resmungando baixinho, e uma noite, ao sair da cama, caiu e se machucou. Tiveram então de chamar o Dr. Syms, que disse ter sido uma sorte ele ter escapado, afinal um fêmur partido naquela idade é sempre muito perigoso. Quanto à obsessão pela ilha, o Dr. Syms lhes lembrou que todo velho é dado a falar muito sozinho. É o que se chama senilidade.
      - Vovô senil? - gritaram os Tomrit. - Essas garotas idiotas são as culpadas. Tudo não passa de uma quantidade de bobajadas. Não existe fantasma algum na ilha.
      E, daí em diante, o tópico das conversas em Menfreystow passou a ser se os Tomrit, apesar dos pesares, iriam arrebatar o título dos Trekeller; e o do fantasma ficou em segundo plano nas conversas. Depois de certo tempo, só vez ou outra era mencionado, a não ser quando as pessoas se encontrassem sozinhas no caminho das rochas.
      Em novembro, peguei um horrível resfriado, e Fanny insistiu comigo para que ficasse alguns dias na cama. Ela fazia uma infusão de limão com água de cevada, que deixava perto de minha cama; a beberagem ficava numa jarra protegida da poeira por um guardanapo de musselina, que tinha contas em suas quatro pontas. E devo admitir que a bebida me tranqüilizava bastante.
      Bevil teve de ir a Londres, e senti não poder acompanhá-lo. Mas, como me disse, tinha de estar lá e iria ficar fora só por uma semana mais ou menos.
      O tempo piorara muito, e o resfriado me deixou com uma tosse que fazia Fanny menear a cabeça e ralhar comigo.
      - É melhor ficar dentro de casa - disse-me Lady Menfrey - até passar essa ventania. Sair agora não faz bem a ninguém.
      Assim, ia permanecendo no meu quarto, lendo, examinando cartas vindas do escritório de Lansella e respondendo algumas. William me contou que estava gerindo o escritório na ausência de Bevil, e deixou escapar que Jessica o ajudava.
      Fiquei espantada.
      - Mas, e Benedict?
      - A avó fica tomando conta dele quando ela não está. Lady Menfrey se sente bem fazendo isso, e estou precisando de ajuda no escritório. A Srta. Trelarken se mostrou muito jeitosa no trabalho, e as pessoas parecem gostar dela.
      Durante esse tempo, costumava ser assaltada por temores, sentindo-me ameaçada, sem saber direito de onde partia o perigo.
      Fanny percebia isso. Via que, de vez em quando, ela ficava sentada olhando, pensativa, para a ilha, como se esperasse que de lá chegasse uma resposta. Teria gostado de conversar com ela, mas não ousava. Como odiava Bevil, não podia confiar-lhe esses temores vagos que sentia, e, assim, sua atitude em nada me ajudava.
      Uma noite acordei assustada, com o rosto banhado em suor. Escutei-me chamando por uma pessoa, embora não soubesse por quem.
      Alguma coisa estava indo mal... muito mal mesmo. Então eu soube. Estava com dores, sentia-me muito mal.
      - Bevil! - chamei, mas me lembrei que ele estava em Londres.
      Levantei-me e fui cambaleando até o quarto de Fanny, que ficava do outro lado do corredor.
      - Fanny! Fanny! - gritei. Ela pulou da cama.
      - Ora, Santo Deus! O que está acontecendo?
      - Sinto que estou muito mal.
      - Nossa Mãe!
      Veio, então, ficar perto de mim, enrolando o meu corpo, que tremia, com uma coisa qualquer. Levou-me para sua cama e se sentou próximo.
      Depois de alguns momentos, já me sentia melhor. Fiquei no quarto dela, e na manhã seguinte, apesar de não estar mais doente, sentia-me fraca e cansada.
      Fanny quis mandar chamar o médico, mas afirmei que não era necessário, que já estava bem.
      Era apenas uma fraqueza em conseqüência da gripe, disse Fanny, mas não ia permitir-me fazer mais bobagens, se isso acontecesse outra vez.
      Dias depois, esse incidente, somado ao que aconteceu a Fanny, passou a ter uma significação das mais assustadoras.
      Era costume de Fanny acordar-me de manhã puxando as cortinas e me trazendo água quente. Por essa razão, surpreendi-me quando um dia acordei, olhei o relógio, vendo que já passava da minha hora de levantar.
      E um sobressalto pavoroso me tomou. Só uma coisa impediria Fanny de vir ao meu quarto: se estivesse doente. Calcei os chinelos, me enrolei num penhoar e atravessei correndo o corredor para ir ao quarto dela.
      A aparência dela me horrorizou: deitada na cama, os cabelos tinham duas trancas mirradas, uma em cada lado, apontadas para fora da cabeça, e o rosto estava cinzento.
      - Fanny! - gritei.
      - Estou bem agora, mas pensei que fosse morrer.
      - O quê?
      Ela confirmou com a cabeça e acrescentou:
      - A mesma coisa que você teve. Senti aquela fraqueza e não conseguia levantar-me, nem para salvar minha pele.
      - Você não deve levantar, Fanny. Vou mandar chamar o médico.
      Ela agarrou o meu pulso.
      - Amoreco - disse com voz grave, lembrando-se do tratamento carinhoso que me dava quando eu era pequena - estou com medo.
      - Ora essa, Fanny, por quê?
      - É o limão com cevada. Nos últimos dias você não tomou mais dele, não é?
      - Não. Não me deu mais vontade, depois daquela noite em que não me senti bem.
      - Pois é. Vi que ficou lá o dia inteiro. Não quis que fosse desperdiçado e bebi boa quantidade dele.
      - Fanny, o que é que está pretendendo dizer?
      - Foi a limonada com cevada. Uma vez, quando estava com sua madrasta, ela teve um abalo nervoso e me disse: "Fanny, já está tudo bem. É que tomei uma dose maior do meu remédio". E você bem sabe que remédio era aquele. No inquérito, eles falaram. No fim, acabou morrendo por causa dele.
      - Fanny!
      - Era para você. Alguma coisa está acontecendo nesta casa.
      - Está sugerindo que há alguém querendo nos envenenar?
      - Eles não sabiam que eu ia tomar dele, por isso, não era para mim.
      - Meu Deus.. . Fanny!
      - É. Estou com medo.
      Fiquei em silêncio. Pensamentos me enchiam a cabeça, muito confusos e terríveis demais para serem expressos em voz alta. Estava vendo Jessica dando aquele seu sorriso insondável. Não, isso é impossível.
      - Fanny, o que é que vamos fazer?
      - Temos de apanhá-los, só isso. Vamos ficar vigiando.
      - Devemos procurar o médico.
      Ela protestou com a cabeça.
      - Não, aí iam ficar sabendo que estamos na pista. Vão tentar uma outra coisa, e então estaremos preparadas. Eles não devem saber, deixe que pensem que não tomou a bebida e que foi posta fora.
      Os olhos de Fanny estavam arregalados e fixos, coisa de que não gostei. Fiquei indecisa de chamar ou não o médico. Disse-lhe isso, e ela tornou a negar com a cabeça.
      - Não deve tomar nada em seu quarto, é o único jeito que tem de escapar.
      - Podia preparar para mim mais limão com cevada e mandarmos a bebida para ser analisada. Isso é o que deveríamos fazer.
      - Não - ele respondeu - eles são espertos. Enquanto estamos fazendo isso, já estarão tentando outra coisa.
      - Fanny, mas tudo isso é loucura!
      - Quem entrou no quarto hoje, você lembra?
      - Todo mundo. William, com papéis do escritório. Lady Menfrey trouxe flores. Sir Endelion veio saber como eu estava passando. Jessica entrou, trazendo Benedict para me ver. E mais as empregadas.
      - Vê como é difícil? E não sabemos se vão tentar outra vez. Agora, me sinto melhor, mas acho que andei esta noite perto de morrer. É, minha querida, não sei o que isso tudo quer dizer, só sei que não estou gostando nada. Jamais gostei. Sinto como se uma coisa me gritasse para ir embora... é isso que estou sentindo.
      - Mas tenho certeza de que precisamos fazer alguma coisa, Fanny.
      - É preciso tempo... um pouco de tempo para pensar.
      Estava tão agitada que prometi nada fazer... por enquanto. Passado o primeiro choque, comecei a desacreditar da teoria da água de cevada envenenada. O que tinha tido foi uma gripe e talvez, depois, uma febre intestinal, que provocou todo aquele mal-estar. Fanny também deve ter tido a mesma doença, só que agora, depois da crise da noite, estava parecendo mais doente. Isso, afinal, não passou de uma invenção de nós duas. Apenas suspeitas e ciúme sem nenhum fundamento real. Bevil afirmara que não estava na ilha, e ainda que me fosse infiel, não ia permitir que fizessem uma maldade dessa comigo.
      Veneno! Não, isso era impossível!
      Mas Fanny havia mudado; estava agora mais magra, os olhos afundados, com uma expressão de agressividade que me assustava; havia se tornado mais possessiva ainda e quase nunca me perdia de vista.
      Cerca de uma semana depois da doença de Fanny, fui ao escritório em Lansella e recebi outro choque ao ver o modo traiçoeiro com que Jessica solapava ali minha posição.
      Uma senhora que fui atender me disse depois de se sentar:
      - Da última vez que estive aqui, vi a Sra. Menfrey. Que moça encantadora. Tão amável, tão boazinha. Não admiro do nosso representante estar tão orgulhoso dela, como dizem por aí que está.
      - Eu sou a Sra. Menfrey, a mulher do representante - respondi.
      - Oh! - fez ela, corando ligeiramente. - Devo pedir desculpas. Pensei, vendo o modo da outra... mas também ela não disse que não era, quando a tratei por Sra. Menfrey. E tenho certeza de que disse isso.
      Assim que encontrei Jessica, fui lhe falar.
      - Ouvi dizer que, no escritório, foi confundida comigo.
      Ela levantou as sobrancelhas, muito bem delineadas, num sinal de surpresa. Então prossegui:
      - Uma senhora disse que, quando esteve aqui da última vez, encontrou a mulher do representante. E era você.
      - São eles que tiram suas próprias conclusões - respondeu Jessica, encolhendo os ombros.
      - Mas não é o caso. Ela disse estar certa de que estava se dirigindo à Sra. Menfrey, e você não se deu ao trabalho de corrigi-la.
      - Oh, as coisas que inventam.
      Olhei no seu rosto e vi os lábios com o mesmo sorriso calmo, os lindos olhos que nada revelam e a pele acetinada, viçosa como sempre. Se está querendo o meu lugar, pensei, tem sangue-frio bastante para fazer qualquer coisa que lhe permita alcançá-lo.
     
     
    Capítulo 9
     
      Bevil havia voltado, e era Natal. Acordei cedo com o barulho da azáfama que ia pela casa, pois os empregados, desde madrugada, já estavam de pé, preparando tortas, carnes de caça e de aves domésticas. Tão excitados que não se agüentavam calados, e também ninguém esperava que se comportassem assim em tal dia.
      Bevil me deu uma pulseira de brilhantes. Estávamos no nosso quarto, e Benedict entrou correndo para nos mostrar o que encontrara no saco para presentes que Jessica lhe deu para pendurar na cama.
      - Veja, tio Bevil. Veja, tia Harriet.
      Fomos olhar e admirar as coisas. Que prazer Gwennan ia ter se pudesse vê-lo agora, mas talvez desse um sorriso, arrependida, porque, se Jessica tinha sido introduzida nesta casa, era para atender o pedido que me fez para o seu filho.
      Ao ouvir que ela chamava por ele, segurei sua mão e o levei para fora; estava no corredor, com um vestido de sarja azul, só elegante por estar nela; os cabelos, ajeitados numa trança muito grossa, pendiam pelas costas. A cada dia, ficava mais bonita.
      Mais tarde, nessa mesma manhã, Bevil e Sir Endelion saíram para caçar, e o som das trompas ecoava pela casa; ao voltarem, segundo o costume, pôs-se fogo em toras de olmo e carvalho, que exalaram o perfume adocicado das turfeiras onde as madeiras eram curtidas.
      Para festejar, chegaram os cantores, e a casa animou-se com suas vozes simples, mas vibrantes.
      Sentei-me feliz no talude ao sol
      No talude ao sol, no talude ao sol
      Sentei-me feliz no talude ao sol
      Era uma bela manhã de Natal.
      Os raios de sol entravam pela casa, e, das janelas abertas, vinha a suave brisa do sudoeste. Provavelmente antes de anoitecer haveria chuva. Era o tempo característico do Natal cornualhense: nenhuma neve para nós. Talvez alguns flocos no Ano Novo, mas não em quantidade que desse para endurecer. Nossos Natais eram quentes e úmidos.
      No hall, decorado com ramos de azevinho e hera, nos reuníamos para festejá-lo. E Sir Endelion, se servindo de uma grande jarra cheia de cerveja aromatizada, bebia à saúde de todos quantos viviam naquela casa e, em seguida, passava-a para a frente, a fim de que todos também bebessem.
      Bevil veio me oferecer a cerveja, e seus olhos estavam repletos de ternura.
      - Feliz Natal, Harriet - sussurrou.
      E pensei se não teria passado por uma fase de insanidade para ser capaz de duvidar dele.
      Naquela noite, usei o vestido topázio, e, por ser Natal, jantamos no hall, como sempre se fez nessa data, desde quando Sir Endelion e Bevil possam lembrar-se.
      Depois foi a vez de os dançarinos mascarados aparecerem; dançamos com eles e fomos sentar-nos, enquanto o pessoal do lugar ia chegando e enchendo o hall, todos querendo ver a representação dos artistas da terra. Nós, os da casa, íamos distribuindo cerveja, ponche, bolo de açafrão e de batata, tortas e pão de gengibre, tal como há séculos vinham fazendo gerações de Menfrey. Foi um dia feliz.
      Pouco tempo depois do Natal, ocorreu um fato que veio entristecer Menfreya.
      Foi Fanny quem me deu a notícia, ao trazer a bandeja com o café da manhã. Seu rosto estava contraído num modo estranho, e percebi que alguma coisa a preocupava.
      - O que é que há? - perguntei.
      - É o relógio que parou, o da torre.
      - Não pode ser.
      - Não pode, mas aconteceu. Parou às 2h40min. E, lá em baixo, está havendo muita confusão. Dawney acabou de entrar para se encontrar com Sir Endelion e ele. Dizem... que há mais de 100 anos que isso não acontecia.
      - É muito barulho por causa de um relógio - falei. Ela olhou para mim de um modo esquisito e veio arrumar a bandeja na cama. Dei uma espiada no que trouxera. Era o de sempre: um ovo quente, fatias finas de pão, café e geléia. Desde que sarei da gripe, era meu café da manhã, e, naquele dia, não tinha apetite para comer essas coisas.
      - Você sabe o que dizem, que isso significa que alguém da família vai morrer.
      - Ora, tudo não passa de contos da carochinha.
      - Mas mesmo que seja bobo, eles estão preocupados.
      Depois que ela saiu, tratei de comer um pouco, não querendo deixar que percebessem que a notícia também me abalara. Como teria o relógio parado? A obrigação de Dawney, antes de qualquer outra, era a de jamais permitir que isso acontecesse. E exatamente para que todos estivessem seguros de seu funcionamento é que ele, de tempos em tempos, era lubrificado, muito bem cuidado e vigiado de perto.
      Pode parecer idiota deixar-se levar por superstições, mas estávamos na Cornualha, e os Menfrey eram uma família cornualhense.
      Imaginei que a notícia já devia ter se espalhado pela vizinhança: o relógio parou! Um dos Menfrey, então, está ameaçado!
      Daí em diante, íamos ser vigiados e sentir como se a morte pairasse sobre nós. Não havia dúvidas, para aquela gente, de que algum acontecimento portentoso estava para ocorrer. Primeiro, a aparição na ilha, agora, o relógio parado. Tudo a indicar maus agouros.
      É enervante se saber vigiado, com as pessoas esperando que alguma coisa lhe suceda. Quando Bevil e eu entrávamos no pátio a cavalo, os empregados surgiam correndo, querendo se certificar de que realmente éramos nós mesmos que voltávamos. Tinha certeza de que esperavam nos ver voltando em padiolas, e a sensação que me davam é a de que fora escolhida para vítima. Outro sentimento bastante inquietante decorria do fato de que estava achando que eles sabiam de algo que, para mim, era ainda só suspeitas. Não estariam muito mais por dentro da relação de Bevil com Jessica do que eu? Seria verdade que sempre que um homem trai a mulher, ela é a última a saber?
      Troçar de superstições é fácil, mas, lá no fundo, a maioria das pessoas não deixa de ficar impressionada com elas. Estava me tornando uma pessoa nervosa, sempre me lembrando dos dois incidentes com a água de cevada que, afinal, só Fanny e eu ficamos sabendo. Mas será que outros também não sabiam? Os que nos tentaram envenenar? Não, isso era absurdo, ninguém havia tentado. Apenas uma suspeita ridícula de Fanny, compartilhada por mim. Seria mesmo? Não saberia dizê-lo.
      Fanny não ajudava em nada. Não parava mais de me vigiar; se voltasse para casa fora de hora, ia encontrá-Ia num estado de ansiedade horrível. Certa vez, a surpreendi rezando... para Billy. Em momentos de crise, agora, se dirigia sempre a ele.
      Às vezes, querendo afastar-me de casa, ia perambular pelo caminho nas rochas de Menfreya a Menfreystow. Sentava-me por ali, olhando o mar e pensando nos dias passados. Em coisas como quando Bevil me descobriu na ilha na ocasião em que fugi de casa, ou quando o encontrei no baile de Lady Mellingfort, e na alegria que isso me proporcionou. Mas, no que mais pensava era o dia em que ele foi à casa de minha tia, e me atrasei para vê-lo, porque fui trocar de vestido. Isso foi antes da morte de Jenny, antes de ter herdado a fortuna de meu pai. Ah, se tivesse me pedido em casamento naquela ocasião! Como gostaria de acreditar que era o que tinha ido fazer lá.
      A suspeita deixava turvo o meu pensamento e confusa minha lembrança.
      Certa vez, estava sentada num banco de madeira, colocado nas pedras para os caminhantes cansados, quando vi A'Lee vindo pelo caminho, e ele me avistou.
      Aproximou-se para me cumprimentar, e percebi que o queixo lhe tremia, e isso era sinal de que alguma coisa o divertia naquele momento.
      - Ora, se não é a Sra. Menfrey que está aqui.
      - Como vai? - perguntei.
      - Lá em Chough Towers estamos nos preparando para a luta, e ela vai ser boa, Sra. Menfrey.
      O que pretendia com isso era me fazer lembrar da rivalidade existente e marcar bem do lado de quem estava.
      - A senhora se importa se eu parar para descansar um pouco? Já faz muito tempo que não temos uma boa conversa, hein? Que bons amigos já fomos.
      - E por que não somos mais agora? Seu queixo parou de tremer.
      - É que a senhora ficou sendo uma deles e está do outro lado agora.
      - Mas o Sr. Harry e o meu marido continuam sendo bons amigos.
      A observação fez o seu queixo tremer mais do que nunca. Mas mudou de assunto e balançou a cabeça, olhando na direção da ilha.
      - Dizem que as almas dos homens que não morreram de morte natural ainda aparecem lá.
      - Mas foram tantos homens assim?
      - Era comum homens irem à ilha e, depois, nunca mais serem vistos, só quando os corpos deles chegavam à praia é que se ia saber.
      - E como podia ser isso?
      - A casa, parece, servia de esconderijo para contrabandistas, que faziam ali os seus negócios. Uma vez chegou aqui um fiscal, que foi procurar contrabando em Menfreya Pequena, e nunca mais foi visto.
      - É uma outra lenda na Cornualha?
      - É, mais ou menos. Mas ainda há muitas outras. Bom, e agora a senhora vê esse relógio que parou. Não estou gostando da coisa, Sra. Menfrey.
      - Mas como vê, ainda estamos aqui.
      - Não fique troçando, isso não é bom. Há anos e anos que o relógio não parava. Os Menfrey nunca deixaram isso acontecer.
      - Com que, então, não há lembrança de ele ter parado um só dia...
      - Por aqui existem muitas histórias. Nunca deve sair com o tempo ruim, Srta. Harriet.
      Havia começado a usar o meu nome antigo, e acho que, depois disso, sua atitude mudou. Naquele instante estava ali a criança de quem tinha pena, não a inimiga da família dos patrões.
      - Estou me lembrando de uma história que o meu avô me contou de um dos Menfrey. É a história de um acidente. Um senhor que estava hospedado lá na casa. Um dia saiu de barco com Sir Bevil. Esse homem não sabia nadar, e Sir Bevil, como todos os Menfrey, era ótimo nadador. Eu até gostava de ficar admirando Sir Bevil, o de agora, não o outro, se atirar no mar como um raio. Era o mesmo que um peixe para nadar.
      - Bom, e o que aconteceu com esse outro Bevil?
      - Ele foi remar com o amigo, e o barco virou de cabeça para baixo. O amigo se afogou, e ele nadou até a praia.
      - E não tentou salvar o pobre do homem?
      - O mar estava forte; ele tentou, mas não foi possível. Pelo menos foi o que contou depois. Agora, a história não foi bem essa. Anos passaram, e ele deu para se apegar à religião. Isso é para a gente chorar de rir, a senhora vai ver. Tudo quanto era menino e menina que ele pegava fornicando, era essa a palavra que usava, mandava castigar. Os meninos apanhavam de chicote, as meninas, desonradas, eram mandadas para o convento. Era o jeito de ele praticar a religião, apesar de muitos daqueles meninos e meninas serem de sua carne e de seu sangue, porque ele era dado a ter aventuras... igual a todos os Menfrey. Bem, aconteceu que, quando sentiu que estava perto de morrer, ficou com medo de que todo aquele seu último tempo de homem bondoso não desse para pagar o grande pecado, e foi assim que, no leito de morte, confessou. Contou então que tinha perdido no jogo, para o amigo, todas as propriedades, até Menfreya. E não era só isso, contou ainda que queria a mulher do outro. E, desse modo, a única solução foi a de tirar o amigo do caminho. Aí, fez um buraco no barco e, depois, tapou o furo com qualquer coisa. Não sei com o que foi. Não podia mais entrar nesses detalhes porque a respiração estava cada vez ficando mais difícil... já não tinha muito tempo. Saiu com o homem para o mar e logo o barco começou a encher de água. O pobre coitado entrou em pânico, e o barco virou. Tudo o que Sir Bevil tinha a fazer era nadar para a terra e esperar que o amigo não fosse salvo. Mas também, se fosse, não tinha importância, a coisa passaria como acidente. E é essa a história.
      - Mas é possível se fazer um buraco num barco, e ele não afundar logo?
      - Ah, isso é. Se o buraco estivesse cheio de alguma coisa, era como tapar um furo num barril, não é?
      - Pode ser, mas um buraco é sempre muito visível...
      Ele deu de ombros e disse:
      - Dizem que esse Sir Bevil encheu o buraco com uma coisa que ia derretendo aos poucos.
      - Existe tal coisa?
      - Um pacotinho de sal amarrado muito apertado pode dar certo. Não, açúcar ficaria melhor. Açúcar embrulhado e amarrado não ia levar muito tempo para derreter na água fria.
      - Que idéia!
      - É, não é?
      - Bem - falei - isso aconteceu há muitos e muitos anos, ou talvez nem mesmo tenha acontecido.
      - Sempre arrumei umas histórias para contar, não é? Desde que era pequena e vinha para Towers... uma menina muito triste, porque o pai nunca tinha tempo para fazer festinhas nela. E aí eu pensava: o que é que, desta vez, vou fazer para divertir a Srta. Harriet?
      - Você foi muito bom para mim, A'Lee.
      - Ora, fui, hem?
      - E essa é uma boa história. Será que ela é verdadeira?
      - Qual delas? A dos fantasmas da ilha ou a do Sir Bevil e o barco?
      - As duas.
      - Isso é uma coisa esquisita que acontece com a gente aqui na Cornualha. Gostamos muito de uma boa história, e, quanto mais fantasmas ela tem, mais gostamos dela. Sempre penso no tempo em que éramos amigos. Foi pena...
      - Mas nós somos ainda amigos, A'Lee.
      - É, e eles não podem fazer nada contra isso.
      E havia alguma verdade nisso, pois vi que estava preocupado; sabia que pensava no relógio parado.
      Eram 11h, quando ouvi baterem em minha porta. Bevil não estava em casa, tinha ido a Plymouth fazer um serviço especial por lá.
      - Entre - falei.
      Jessica entrou, linda e sempre com seu ar distante. Usava um vestido de algodão cor de lavanda, com punhos e gola de renda. Agora, não conseguia olhar nunca para ela sem imaginá-la junto de Bevil, os dois em atitude amorosa; e era difícil para mim controlar-me nessas circunstâncias.
      - Há uma pessoa querendo ver o Sr. Menfrey. É sobre uma coisa muito estranha.
      Só então percebi que estava mais pálida do que de costume, e visivelmente perturbada. Entregou-me um cartão onde li:
      J. HAMFORTH & FILHOS, AGENTES FUNERÁRIOS Fore Street, Lansella
      - Realmente, não estou entendendo - prosseguiu. - Pensei que talvez você...
      - Vou descer e ver o que ele deseja - falei.
      Um homem esperava na biblioteca, vestido de casaco preto e com ar solene. Quando entrei, levou um susto, ficando pálido. Já nos conhecíamos ligeiramente, pois seu negócio ficava perto do escritório de Bevil, e, de uma certa forma, todos nas redondezas sabiam quem eram Bevil e eu.
      - Sr. Hamforth... de que se trata?
      - Desculpe, senhora... eu... quero dizer, foi uma surpresa horrível e nem pude acreditar quando recebi a carta.
      - Carta, que carta?
      - A carta pedindo que eu viesse... para... tratar dos... preparativos.
      - Mas preparativos de quê?
      Mordeu os lábios, abaixou os olhos, pois não conseguia encarar-me. Quando entrei na sala, tive a impressão de que ele olhou para mim como se visse um fantasma. Mas um fantasma? Alguma coisa de muito estranho estava acontecendo.
      - O senhor teria vindo para fazer os preparativos de um enterro? - disse secamente.
      - B... em, é isso mesmo, Sra. Menfrey.
      - Mas o enterro de quem?
      Ele não respondeu, mas eu sabia.
      - O senhor pensou que fosse o meu, não é?
      - Bem, minha senhora, isso foi o que...
      -- O que lhe disseram?
      - Sim, que eu viesse imediatamente a Menfreya, para começar a fazer os preparativos do enterro.
      - Do meu!
      O pobre homem ficou embaraçado. Nunca tinha tido antes a incumbência de preparar uma mulher viva para ser enterrada.
      - Ficamos muito sentidos, eu, minha mulher e os funcionários da casa. Eles já foram a alguns comícios onde a senhora falou.
      Então todo mundo sabia. Lansella inteira já devia estar comentando minha morte. Uma notícia dessa se espalha rápido. E, naturalmente, a carruagem do Sr. Hamforth foi vista vindo para Menfreya. Uma morte em Menfreya! As coisas se casavam: o relógio que não parava há 100 anos, parou, e o agente funerário indo para Menfreya.
      - Mas isso é estranhíssimo - disse eu.
      - E eu, minha senhora, nunca em toda a minha vida tive uma experiência dessa.
      - É, acho que não deve ter tido mesmo. Mas gostaria de saber como tudo começou.
      - Esta manhã chegou uma carta, por sinal muito esquisita. Mas na hora não pensei muito.
      - Uma carta esquisita? Onde ela está?
      - A carta veio comigo e foi mostrada à moça.
      - À Srta. Trelarken?
      - É, ela ficou muito surpreendida e pediu para ver a carta. Quando cheguei, disse o que tinha vindo fazer aqui, e ela não estava entendendo do que eu falava, aí mostrei a carta, e ela disse que ia chamar a senhora, pois o Sr. Menfrey não estava em casa.
      Respirei mais aliviada. Toda essa coisa devia ser algum tipo de piada, mas havendo uma carta, algo tangível, concreto, já era possível desvendar esse mistério.
      - Por favor, Sr. Hamforth, o senhor poderia me dar a carta?
      Ele tirou do bolso sua agenda e ficou nervosamente passando as páginas dela. Parecia muito surpreso, mas, de repente, o rosto pareceu iluminado e disse:
      - Mas claro, a moça pegou a carta e não devolveu.
      Imediatamente, toquei a campainha e falei para a empregada, quando ela apareceu:
      - Diga à Srta. Trelarken para vir aqui e que não demore.
      Jessica devia estar por perto, pois apareceu imediatamente.
      - Queremos a carta - disse eu.
      - A carta? - repetiu.
      - A que o Sr. Hamforth deu a você. A carta dizendo para ele vir aqui.
      - Ah, sei. Mas eu devolvi para o senhor.
      - Não, a senhorita não me devolveu.
      - Mas tenho certeza de...
      Os dois se entreolhavam, parecendo surpresos, e eu comecei a tremer por dentro.
      - Em algum lugar ela tem de estar - disse secamente, me dirigindo a Jessica. - Veja no seu bolso.
      Procurou nos dois bolsos do vestido e, depois, respondeu com a cabeça, dizendo não. Parecia aborrecida, ou será que não era uma encenação? Ela está representando, pensei.
      O que significava isso tudo? Seria arranjo dela e de Bevil? Estariam os dois num complô diabólico contra mim? É verdade, se eu desaparecesse, não haveria nenhum outro obstáculo no caminho dela e, quem sabe, também no dele.
      Estávamos procurando pela biblioteca, quando ela disse:
      - Mas foi no hall. Eu estava saindo para o jardim, quando o senhor chegou e, por uns momentos, ficamos lá. Foi depois que o senhor me entregou a carta é que passamos à biblioteca.
      Fomos para o hall e procuramos por toda parte, mas a carta não foi encontrada.
      - É muito estranho - disse, cada vez me sentindo mais aterrorizada - mas, pelo menos, os dois viram a carta. O que é que estava escrito nela?
      Um olhou para o outro.
      - Foi escrita com uma letra que não sei de quem é - disse Jessica. - Pedia ao Sr. Hamforth que viesse aqui para tratar do enterro da Sra. Menfrey.
      - Mas devia estar assinada.
      - E estava. Achei que podia ter sido escrita pelo secretário do Sr. Menfrey - falou o Sr. Hamforth.
      - Pelo Sr. Lister? - perguntei.
      - Mas não foi escrita pelo Sr. Lister - interpôs Jessica. - Conheço bem a Jetra dele. Tinha uma assinatura de B. Menfrey e mais uma inicial que não deu para entender.
      Olhei primeiro para o Sr. Hamforth e, depois, para Jessica.
      Quem teria feito isso, e por quê? Será que alguém teria se valido de um artifício tão macabro só para me deixar de sobreaviso?
      Quando Bevil chegou naquela noite de Plymouth, eu estava na cama, porém sem dormir. Deitada acordada, repassava os acontecimentos do dia. Continuava a ver o Sr. Hamforth perplexo, horrorizado, e Jessica sem o seu eterno sorriso, mas impenetrável como sempre. Bevil entrou.
      - Acordada, Harriet? Tenho grandes novidades. Balfour me convidou para o fim de semana em casa dele. Lá estarão também outros parlamentares.
      - Isso é maravilhoso! Mas você não ouviu nada sobre Hamforth?
      - Hamforth? O que tem Hamforth a ver com o convite do primeiro-ministro?
      - Nada. É que ele esteve aqui para tomar as medidas para fazer o caixão.
      - O quê?
      E expliquei o acontecido.
      - Meu Deus! Quem teria feito uma coisa dessa?
      - Isso é o que gostaria de saber. Existia uma carta, mas Jessica a meteu em algum lugar, e sumiu.
      - Mas o que é que estaria atrás disso tudo?
      - Primeiro o relógio parou... e agora isso. É evidente que a vítima sou eu.
      - Ora, Harriet, por favor! Nem pense numa coisa dessa.
      - Parece que alguém está querendo me prevenir de alguma coisa.
      - Mas vamos descobrir o que está por trás de toda essa bobajada. Amanhã, vou procurar Hamforth.
      - Mas ele não vai poder contar mais do que isso. Se ao menos pudéssemos achar a carta... Mas, veja, Jessica a pegou... e perdeu. Tudo é tão estranho!
      - Ela deve ter ficado tão nervosa quanto você.
      - Pelo menos, dela não vieram tirar as medidas para o caixão.
      - Que piada de humor negro é essa, meu Deus! Minha Harriet, pobrezinha de você!
      Ele me abraçava muito carinhosamente, e tive vontade de me entregar toda e confiar-lhe todas as minhas suspeitas e medos.
      Após apagar a luz, veio para a cama e ainda por muito tempo ficamos conversando sobre Hamforth e o que poderia significar um convite do primeiro-ministro.
      No dia seguinte, Bevil foi a Lansella. Eu não fui. Seria demais para mim ficar ouvindo as pessoas comentando minha própria morte. Daria um tempo para o assunto cair no esquecimento.
      Fanny entrou com a bandeja de café, dizendo para eu não ter pressa em levantar.
      Estava com uma aparência muito abatida, e, sem dúvida, o choque que nos deu Hamforth assustou-a tanto quanto a mim.
      - Fanny, você não precisa preocupar-se.
      - Preocupar! Não tenho nem mais cabeça para pensar no que devo fazer!
      - Acha que devemos falar da água de cevada, agora que as coisas estão tomando esse rumo?
      - Com isso, não precisa mais incomodar-se - disse, apontando com a cabeça para a bandeja. - Fui para a cozinha e eu mesma preparei o seu café.
      - Ah, Fanny, enquanto você estiver aqui, estou salva.
      - Não vou deixar que nada aconteça a você.
      --Vê, Fanny? Estão me avisando. Quem estaria fazendo isso?
      O seu rosto contraiu-se como se fosse chorar.
      - Será que a pessoa que parou o relógio e, depois, mandou a carta para Hamforth está querendo prevenir-me contra alguma coisa? Está parecendo que quem está fazendo isso quer que eu esteja preparada para morrer. E seria essa a mesma pessoa que deseja me matar?
      Ela olhou fixamente para suas mãos e balançava a cabeça. De repente parou e me encarou firme.
      - Tem uma coisa que descobri e preciso contar. É da Srta. Trelarken. A gente percebe, se reparar no rosto dela. A mulher fica sempre com um jeito diferente, sei disso.
      - Sabe de quê?
      - Fui ao quarto dela esta manhã. Antes que ela se levantasse, o menino chegou na cozinha e, então, fui levá-lo de volta. Quando entrei no quarto, ela estava sem vestido, só de anágua. Ela sempre usa saias muito rodadas, e não dá para perceber, mas só de anágua deu para ver.
      Olhei para ela atentamente.
      - Juro que é verdade, a Srta. Trelarken vai ter um filho.
      - Fanny, isso não é possível!
      - Mas estou dizendo que eu vi.
      - Não e não!
      Só em pensar no horror da coisa, tinha náuseas. Não agüentava encarar Fanny, seu olhar seria de quem tirara conclusões, revelador de minhas suspeitas.
      Tudo estava ficando tão igual à outra história, que parecia mais um pesadelo. A governanta grávida; a mulher atrapalhando; ela dizendo: "As duas deviam se odiar, uma gostaria de matar a outra".
      Não, não podia ser. Fui eu que fiquei impressionada com a história da governanta. Mas me lembrei de como ela se encostara em mim, antes de desmaiar, lá no parapeito da torre.
      Mas então é verdade. Jessica, tal como a governanta da história, ia ter um filho.
      Na minha cabeça, só havia pensamentos ruins. Não seria Bevil encontrando, em segredo, com a amante os fantasmas que as duas meninas viram na Ilha? E lá, para ele, não foi sempre um lugar de encontros? E fiquei a imaginar o desespero dos dois, as conversas sussurradas, as esperanças, os medos. E daí... para a limonada envenenada. Jenny morreu com arsênico, que talvez fosse conseguido por seus amigos do meio teatral. E Jessica? Agora, percebia como sua pele era parecida com a de Jenny - acetinada, sempre fresca e com algo de translúcido. Jessica, como Jenny, teria arsênico em seu poder? Como poderia consegui-lo? Era fácil. Seu pai devia usá-lo na preparação de remédios, e depois de sua morte, provavelmente, devia haver ainda uma certa quantidade no laboratório. Para ela não seria difícil reconhecer o arsênico. Certamente também tinha lido a respeito do tratamento de Jenny, e era bem possível que quisesse experimentar nela própria. Afinal, não é perfeitamente natural que uma mulher, sabendo do efeito que sua beleza causa à sua volta, vá querer realçar mais ainda a própria beleza?
      Se Jessica realmente possuía arsênico em seu poder, não era tão absurdo supor-se que um pouco dele tivesse ido parar na minha limonada.
      Quando chegou a Menfreya, devia estar querendo o meu lugar, mas agora, se Fanny tinha razão, precisava desesperadamente dele. E como consegui-lo, comigo impedindo?
      Seria, então, Jessica que estava tentando me matar?
      E quem estaria me colocando de sobreaviso? Só podia ser alguém que conhecia o que ela estava tramando. Mas por que não me dizer pura e simplesmente? Por que ir a esses extremos de parar relógios e mandar um agente funerário tirar minhas medidas para o caixão? Nisso tudo só uma coisa era certa: quem quer que fosse, ele ou ela, não tinha nenhuma vontade de revelar a identidade.
      Lembrei-me do jeito brincalhão de A'Lee. Será? Sempre foi meu amigo. Talvez tivesse visto os dois na ilha. Não foi ele quem foi buscá-los na noite em que ficaram presos lá?
      Minha cabeça dava voltas, e Fanny, com a testa contraída, veio sentar-se na minha cama, alisando sem parar a barra do avental.
      Nesse dia, o almoço foi sossegado, compartilhado apenas por Sir Endelion e Lady Menfrey. Estavam quietos. Calados, aliás, como todos, desde que aconteceu o negócio de Hamforth. Jessica almoçou no quarto de brinquedos com Benedict, e dei graças a Deus por isso. Tinha certeza de que, se olhasse para ela, meus olhos iam me trair - não ia deixar de transparecer neles a suspeita levantada por Fanny. William Lister não veio juntar-se a nós, ficou ocupado na biblioteca, e Bevil não tinha regressado ainda de Lansella. Suponho que estivessem discutindo outros aspectos que o convite do primeiro-ministro pudesse sugerir. Depois do almoço, voltei ao meu quarto. Menfreya, àquela hora do dia, estava quieta. Os empregados, nos seus alojamentos; meus sogros descansavam; Jessica permanecia com Benedict no quarto de brinquedos; William trabalhava.
      Bateram à porta. Era Fanny.
      - Estou indo até a ilha - disse ela. - Quer vir comigo? Queria conversar sobre as obras lá, além de...
      Já tinha conversado muito com ela sobre os projetos para a casa na ilha, e estava inteiramente de acordo com eles. Achava que ia ser de grande ajuda quando eu começasse com o meu esquema de férias. Talvez estivesse querendo mesmo discutir alguma coisa comigo, mas o mais provável era que quisesse que eu ficasse em sua companhia.
      - Vista um casaco mais pesado - ela falou - o vento está gelado. Tome, aqui tem um. Enrole-se bem nele e vá na frente, que já vou indo.
      Antes de ter chegado à praia, ela já estava ao meu lado. Pusemos o barco no mar e começamos a remar.
      - Fanny, o que você não está querendo é que eu fique longe de você, não é? - falei, dando um sorriso meio desconsolado.
      - Um pouco é isso. Mas há umas coisas que quero que veja lá.
      Tentei afastar o meu medo, e pensar só no verão, quando a casa estivesse cheia de crianças. Esse futuro parecia estar ainda longe.
      - No quarto da frente, posso botar seis caminhas, e há ainda os outros - disse eu. - A ilha vai ser um paraíso para eles. Mas temos de dar ordens para que só saiam de barco na companhia de um adulto.
      Fanny meneava a cabeça, parecia contente vendo que meus pensamentos tomavam outro rumo.
      No caminho para entrar na casa, ela disse:
      - Outro dia estive aqui e fui à cozinha. Descobri, que, levantando uma das lajes, a gente vai dar num porão. O difícil é saber qual delas, porque são todas muito parecidas umas com as outras.
      À porta da casa, Fanny parou e voltou-se, olhando para o mar em direção de Menfreya, como se relutasse a entrar na casa.
      - É uma bela vista - admitiu de má vontade.
      E era mesmo uma senhora vista, até naquele dia de janeiro, com o mar numa tonalidade verde-escuro, muito encrespado e espumoso, e lá estava Menfreya, cinzenta, parecendo quase ameaçadora à luz da tarde.
      Os olhos de Fanny brilhavam estranhamente; tinham uma expressão que não entendi.
      - Vamos entrar. Quero mostrar o porão para você. Fui com ela à cozinha; lá, com certo esforço, conseguiu levantar a laje.
      - Não é fácil abrir, a gente tem de saber como funciona.
      Depois de deixar uma abertura no chão, dirigiu-se a um armário, pegou um castiçal de ferro, fincou uma vela nele e acendeu-a.
      - A gente desce por uns degraus. Vou dar uma olhada.
      - Tenha cuidado, Fanny.
      - Estou tendo. Jem Tomrit me disse que era aqui que escondiam os barris de uísque.
      - Ele disse isso?
      - É, foi ele quem me contou. Você se lembra de como ficou preocupado, depois que acreditou haver um fantasma na ilha? Ele disse que viu um homem aqui... tão real como eu ou você. Era a alma de alguém que morreu afogado no mar. Pegue, segure por um instante o castiçal. Quando acabar de descer, você me dá.
      Chegando embaixo, esticou a mão, e passei o castiçal para ela.
      - Ei, veja! - exclamou, surpresa com alguma coisa.
      - Vou descer para dar uma olhada.
      - Tenha cuidado, os degraus são altos. Segure minha mão.
      Desci uns quatro ou cinco degraus e vi que ela estava bem. Onde estávamos era uma espécie de subterrâneo. Ao olhar para baixo, vi que havia mais degraus para descer.
      Desci mais alguns, e, diante de mim, tudo era escuridão. De repente, fez-se um barulho surdo, e a fresta de luz que passava pela porta do alçapão desapareceu.
      - A porta caiu e ficamos fechadas! - comentei.
      - É mesmo, não se preocupe, vai dar tudo certo - falou numa voz muito suave.
      - Mas está tão escuro!
      - Num minuto seus olhos vão se acostumar. Desci outros degraus, e foi como se uma coisa gelada tocasse meus pés. Era água!
      - Fanny, cuidado! Há água aqui embaixo.
      - Com a maré alta, isso tudo aqui vai ficar inundado - respondeu.
      - Então vamos ver se conseguimos abrir a porta, para entrar um pouco de luz. O castiçal não ajuda muito.
      - Olhe ali, há luz ali adiante.
      - É mesmo. Passa por uma grade.
      - A grade dá para o jardim. Estava coberta de mato, mas capinei em volta dela.
      - Para quê?
      - Achei que ia ficar melhor.
      - Então já sabia desse lugar, Fanny?
      - Ah, já. Não contei para você que fui procurar Jem Tomrit? Ficava sentado junto dele e fazia com que me contasse as histórias daqui. Você sabe como ele andava nervoso por causa de umas almas penadas que acreditou ter visto aqui na ilha... Tinha medo de que as almas fossem assombrá-lo! São dos homens que morreram aqui.
      - E por que só a ele?
      - Porque ele também já foi criminoso. Os contrabandistas traziam as mercadorias para cá, e, quando os fiscais estavam no rastro deles, davam um jeito de atraí-los para este alçapão. Deixavam-nos dar busca no lugar, aí a porta que dá para aqui ficava só encostada, para que desconfiassem que existia um esconderijo aqui embaixo. Eles desciam, e nunca mais eram vistos de novo.
      - Que lugar horrível! Para mim chega, já vi o bastante.
      - Sabe, na maré cheia a água invade tudo aqui. Vem pela grade que foi posta ali para isso mesmo. Jem Tomrit disse que este lugar já foi construído com essa finalidade. Você sabe que dia é hoje?
      - Hoje?
      - Bem, Jem Tomrit me contou também uma porção de outras coisas. Disse que, numa época do ano, a maré sobe mais do que nunca. É isso que chamam de preamar, qualquer coisa que tem ligação com o sol e a lua. Não me pergunte, que não sei. E é bem nesta ocasião. Vai ser hoje às 8:30 da noite.
      Comecei a tremer, não tanto pela umidade e frieza do lugar, mas muito mais pela estranheza que notava em Fanny.
      - Quando acontece a preamar, a água inunda tudo, chegando até o teto.
      - Fanny, vamos sair deste lugar; está frio e úmido. Depois voltamos para investigá-lo melhor.
      - E como vamos sair? - perguntou.
      - Por onde entramos, é claro!
      - Mas a laje se fecha sozinha com uma mola. Só se pode abrir pelo lado de fora. Foi feita desse jeito pelos contrabandistas.
      - Isso é absurdo!
      - Estou só dizendo o que Jem Tomrit me contou.
      - Então alguém nos trancou aqui.
      - É, alguém nos trancou.
      Ela falava devagar, sentada num dos degraus; com uma das mãos tapava o rosto e, com a outra, segurava o castiçal.
      - Tinha de ficar com você - prosseguiu.- Não podia deixá-la sozinha.
      - Fanny, você está sabendo de qualquer coisa que ainda não me contou.
      - Estou sim.
      - Sabe que alguém está tentando me matar, não é?
      - Sei.
      - E está tentando impedir isso, não é verdade? Mas o que estamos fazendo aqui? Está querendo me dizer que alguém nos fechou neste lugar?
      Ela ficava balançando-se para lá e para cá.
      - Deixou cair a vela, Fanny.
      Ainda não estava de todo com medo por ser ela, Fanny, quem estava ao meu lado. Era como se tivesse voltado ao tempo de criança, quando saía de um pesadelo gritando, e lá estava Fanny para me amparar; sua presença significava segurança para mim. E ainda era o que ela me fazia sentir agora.
      - Você soube deste lugar porque Jem Tomrit lhe falou dele, não é? Está me dizendo que é inundado nas marés cheias e que essa noite vai ser de preamar. Bom, isso é às 8:30 e ainda não devem ser quatro horas. Temos então de sair antes de a maré subir, senão estamos perdidas.
      - Quem iria pensar em nos procurar aqui, não é?
      - Há outra coisa que não estou entendendo. Se a água toma todo o lugar nas marés cheias, para onde vai depois? Uma quantidade é absorvida pelo chão, que é de terra, mas não uma outra parte dela, não é mesmo?
      - Existe uma pedra muito grande para tapar a grade. Jem Tomrít me disse como faziam para removê-la, quando traziam os prisioneiros para cá. Assim, deixavam a água entrar e sair quando queriam.
      - No momento não existe nenhuma pedra tapando a grade.
      - Ela está escondida no meio das plantas... foi retirada. Era esse o jeito de eles usarem o porão para matar.
      - Fanny, você não está falando as coisas direito. Disse que você capinou o mato. Quem, então, retirou a pedra? Quem fechou a porta do alçapão agora há pouco? Fanny, alguém está nesta casa neste momento! Devem ter ouvido quando entramos na cozinha. Sabiam que íamos descer e nos fecharam aqui.
      - É ele quem está aqui. Jem Tomrit pensou que ele fosse o espírito de um fiscal, mas não é. Ele até espanta os outros espíritos. É o meu Billy que está aqui.
      - O seu Billy? Mas Billy morreu há anos... antes que eu nascesse.
      - Billy me amava de verdade, mas existia uma coisa que amava mais ainda, o mar. Ele, sim, foi sua paixão. E me largou por sua causa. Se tivesse ouvido quando falava do mar, ia saber de quem ele gostava mais. Sempre que ia partir, dizia para mim: "Fanny, não tenha medo, eu volto para você. Um dia volto e você vai comigo para o mar. Espere por isso, Fanny, e esteja preparada para quando a hora chegar". E, de repente, isso que dizia aconteceu. Eu tive um aviso. A hora chegou.
      - Fanny, o que aconteceu com você? Vamos sair deste lugar.
      - Vamos sair daqui quando chegar nossa hora. Billy vai estar esperando por nós... com ele... estaremos salvas.
      - Não está sendo sensata, Fanny. Lembra-se de que dizia para eu ser sensata? Vou tentar abrir a porta do alçapão.
      - Vai se machucar, amoreco. Já disse que ela só abre pelo lado de fora.
      - Mas você pode ter se enganado, Fanny.
      - Não, eu tenho certeza. Não quis que nada saísse errado.
      - Fanny! Fanny! O que é que está dizendo?
      Fui sentar perto dela no degrau. Fanny, a minha babá adorada, que me fez companhia na adolescência e para quem me voltava nas horas difíceis, era, agora, uma estranha.
      - Fanny, vamos tentar entender o que está havendo. Vamos separar as coisas para ver se entendemos, será que podemos?
      - Não há nada para entender, meu bem.
      Fiquei parada, encarando a escuridão. Não dava para saber o quanto de água havia lá embaixo e também o quanto de verdade existia nessa história de contrabandistas e de fiscais. E pensei em Menfreya: os meus sogros descansando até a hora do chá, que provavelmente iriam tomar em seus aposentos; Bevil voltando, chegaria para o jantar? Não, talvez depois. Será que dariam mesmo pela minha falta na hora do jantar? Eu, não aparecendo, iam mandar uma empregada ao meu quarto para me perguntar se queria que me mandassem alguma coisa. E, quando não me encontrassem, iam começar a ficar um pouco mais preocupados. O jantar era às 8h, e a enchente, às 8:30; nunca chegariam a tempo.
      Não conseguia acreditar que fosse morrer, e muito menos pelas mãos de Fanny. Não era possível pensar que isso estava acontecendo! Era como se fosse um daqueles pesadelos do meu tempo de criança.
      Subi ao último degrau e tentei empurrar a porta, que nem se mexeu. Com certeza passou anos sem ser aberta. E o jeito de prender era para tornar isso difícil. Mas não acreditava nessa história de mola de fechar.
      Não conseguia aceitar a idéia de Fanny assassina, e fui outra vez me sentar ao seu lado. Pensava que deviam ser umas 4h. Quanto tempo faltaria para a água começar a entrar? Primeiro viria devagar até... encher tudo. Quatro horas... à espera da morte.
      Não, não podia aceitar o fato.
      - Fanny, gostaria de entender o que significa isso tudo. Quero conversar com você.
      - Está com medo, não é?
      - Não quero morrer, Fanny.
      - Deus a abençoe, você não precisa ficar aflita. Billy me contou como é morrer afogado. Ele disse que é o modo mais fácil para sair desta vida. Billy estará esperando por mim... não podia deixar que ficasse sozinha, não é? E não podia mesmo, com toda aquela gente tentando fazer mal a você. Não queria que morresse como sua madrasta. Afogada é muito melhor. É fácil. Você sabe que não queriam que ficasse no caminho deles, não é? Nenhum dos dois. A mim é que não conseguiram enganar. Ele nunca serviu para você, e bem que avisei. Ele era maluco por outras mulheres... igual a Billy com o mar. Gostaria que Billy tivesse arrumado um emprego em terra firme, mas ele não quis. Não era disso. Não conseguia abandonar o mar. Tudo igual. Com Billy, o negócio era o mar; com ele... mulheres. E, desde que ela chegou, com aquele jeito de coisa ruim, percebi que não podia ir embora sem você... eu sabia quem ela é. Ia tirá-lo de você, e agora que está com um filho na barriga, ficou desesperada. Foi da mesma maneira que sua madrasta conseguiu aquele tipo de pele que ela também arranjou a dela. A pobre da outra se matou com aquela coisa, mas ela ia matar era você.
      - Oh, Fanny, você acredita mesmo nisso?
      - Acredito só no que vejo e estava com medo por você. Às vezes, ficava deitada acordada, e minha cabeça começava a ficar esquisita... como se estivesse com tonteira; era de tanta preocupação. Foi aí que Billy apareceu para mim, e prometi a mim mesma que não ia abandoná-la. Não faria isso, se ele fosse diferente e se ela não estivesse lá. Não tenho coragem de largá-la. Você sabe que, quando perdi meu bebê, foi você quem ficou no lugar dele. Como é que ia poder abandoná-la, não é mesmo? Vai comigo para onde está Billy, e então estaremos todos juntos.
      - Fanny, foi você quem parou o relógio.
      - Queria que ficasse prevenida. Lembra-se de como ficou aflita quando sua madrasta morreu? Você, naquela ocasião, disse: e ela não teve nenhum aviso. Por isso quis avisá-la e parei o relógio.
      - E depois mandou a carta para a agência de Hamforth.
      - É, mandei. Queria que estivesse preparada para morrer, entende? Não queria que tivesse um choque muito grande.
      - E foi você quem pegou a carta?
      - Achei melhor assim. Ela deixou a carta em cima da mesa no hall; eu encontrei e peguei. Desse jeito foi melhor.
      Fiquei em silêncio. Ela estava louca, a minha adorada Fanny enlouquecera. Ia se suicidar e me matar porque gostava de mim.
      Estava me sentindo histérica e impotente. Subi e comecei a esmurrar a porta.
      - Ei, você não pode fazer nada. Ela não abre do lado de cá. Quando punham os fiscais aqui embaixo, eles arrumavam a porta desse jeito. Jem me contou tudo sobre isso. A única coisa que vai conseguir é machucar suas mãozinhas. Não pense mais nisso, nada tem a fazer, a não ser esperar. Primeiro vem um temporal, depois a enchente. Desse modo, vai ser fácil.
      Estava com medo. Mas estar lá sentada com Fanny, de certa maneira, parecia tão natural e consolador que não acreditava muito ainda nesse plano sinistro. Inteiramente calma e segura, sentada, ela esperava, paciente, pelo fim. Quanto a mim, não conseguia imaginar como seria. A água iria jorrar pela grade e, daí, o que aconteceria? Será que chegaria à altura dos degraus? Lembrei-me, então, de ter ouvido que os jardins e a cozinha muitas vezes ficavam alagados durante as marés cheias. E esta era para ser fora do comum; um vento forte já soprava, e nós num porão, no subsolo.
      Imaginei que poderiam ser 6h. Ninguém ainda teria dado pela nossa falta, e, antes que dessem, a maré já teria enchido e esvaziado.
      E ali estava eu, fechada na companhia de uma louca. Tive de aceitar o fato. Até então, ela havia sido a querida, conhecida e boa Fanny, mas agora era apenas uma mulher que queria me matar.
      - Preciso sair daqui! Preciso sair! - gritei de repente.
      Subi e empurrei a porta com toda a minha força. Inútil, não se movia. Será mesmo que Fanny tinha razão nessa conversa de fecho de molas?
      A grade!, pensei. Seria possível achar um meio de atravessá-la? Comecei a descer e dei com a água, que chegou até a altura de meus joelhos. Fanny despertou de seu sonho.
      - O que está fazendo, menina boba? Acabou se molhando! Vai pegar uma boa gripe, e temos de ficar com a roupa molhada.
      - Fanny! - gritei histérica. - Que diferença faz?
      - Pode ficar com os pulmões tomados, e isso não é brincadeira.
      - Vamos sair daqui. Preciso de roupas secas.
      - Você está tremendo, queridinha. Não fique nervosa. Logo estaremos junto dele, e tudo vai terminar.
      - Fanny, por favor, ouça, temos de sair daqui. Temos de ir embora.
      - Ora, ora, lindinha, não fique aflita, Fanny está aqui.
      Sem poder fazer nada, fui sentar-me ao lado dela, que passou o braço à minha volta.
      - Não precisa ter medo. O que está ouvindo é só o vento. Nossa mãe, vem um temporal por aí.
      Estávamos sem vela; tinha caído na água. Ouvi o barulho quando caiu, e a pequenina chama sumindo.
      Havia perdido completamente a noção de tempo. Era como se já estivesse muito tempo naquele úmido e escuro lugar.
      Aos poucos ia compreendendo que realmente estava frente a frente com a morte, e que a mulher ao meu lado queria de fato matar-me, íamos morrer, e as últimas palavras que ouviria de sua boca seriam expressões de carinho e devoção.
      Estou enlouquecendo, pensei, não pode ser verdade.
      Dava para ouvir o barulho das ondas batendo contra os rochedos. A maré subia... a preamar.
      Maré cheia às 8:30! Que horas seriam agora? Umas 7h? Mais tarde, talvez?
      Tornei a subir. Ia tentar novamente. Comecei a gritar por socorro, martelando a mais não poder a pedra que nos fechava.
      A voz de Fanny era de alguém que sonhava.
      - Lembra-se de quando lia histórias para você dormir? Lembra-se de Aladim e sua lâmpada mágica? Quando ele foi trancado numa caverna pelo mágico malvado? Essa história é igual à nossa.
      - Fanny, isso não é uma caverna. É um porão, e a água do mar está chegando.
      - Tudo deu certo para Aladim. Tudo vai dar certo para você.
      - Vão dar pela nossa falta em casa e vão nos procurar, Fanny.
      - Mas não aqui.
      Fiquei calada. Ela estava certa. O que, afinal, poderia trazê-los até onde estávamos?
      - E mesmo que soubessem, não ia adiantar muito, porque, com esse barulhão todo, o mar deve estar muito bravo, e eles vão ter muita dificuldade de remar até a ilha.
      - Mas eu não quero morrer, não quero morrer.
      Comecei a gritar por socorro. Era tolice, quem iria me ouvir?
      Já ouvia o barulho da água passando pela grade e caindo no porão.
      Num instante estaria nos alcançando.
      Arrastei Fanny para o degrau mais alto e fiquei de costas para a grade. Continuava a martelar, inutilmente, a porta do alçapão.
      Fanny estava imóvel, como que em êxtase.
      A qualquer momento, agora, seríamos varridas da escada.
      Era a morte. E, nessa hora, face a face com ela, compreendi que desejava desesperadamente viver. Gritava sem saber o que dizia. Creio que gritava: "Bevil! Bevil!"
      A água subindo, e eu presa num alçapão. Ocorreu-me, de repente, o quadro da santa mártir. Lembrei aquele rosto calmo; as mãos presas pelos pulsos e as palmas juntas em atitude de oração. Amarrada a um mastro e com água pela cintura, parecia também estar à espera da maré subir.
      Com essa mesma serenidade, a pobre Fanny, em sua simplicidade, encarava a morte.
      Ouviu-se enorme barulho quando as ondas pesadas começaram a chegar, e a água, jorrando pelas grades, ia desmoronando tudo. Fechei os olhos e esperei. Estava no último degrau de cima, com a água já atingindo meus tornozelos. Alguns minutos mais, a grade estaria submersa e seria... o fim.
      Tapei o rosto com as mãos.
      - Está por pouco, querida - sussurrou Fanny.
      - Não! Bevil, Bevil! - gritei, martelando a porta. E, miraculosamente, senti os braços de Bevil me rodearem. Uma luz muito fraca vinha do alto.
      - Deus meu! - foi o que ouvi dizer.
      E depois disso não estou certa do que aconteceu.
      Estava deitada numa cama, com Bevil ao meu lado.
      - Olá - disse ele, sorrindo.
      Sentia-me completamente desorientada. Um momento atrás, no horror daquele porão inundado de água; num outro, deitada numa cama.
      - Você está parecendo... contente por me ver - falei.
      - E estou - ele respondeu.
      Eu estava na casa da ilha. Do lado de fora, a tempestade ainda rugia. A maré descia, mas a cozinha continuava alagada. Ouvi vozes vindo da parte inferior da casa. Bevil permanecia ao meu lado. Gritei seu nome, e ele segurou minha mão.
      - Olá, está tudo bem agora - falou.
      - O que aconteceu?
      - Você estava no porão. Há anos que ele não devia ser aberto. Mas agora descanse, porque seu susto deve ter sido muito grande.
      - Mas quero saber, Bevil. A maré estava subindo, não é?
      - Logo, logo, o lugar ia ficar completamente inundado. Graças a Deus chegamos a tempo. Foi por um triz.
      - A preamar...
      - Você não deve falar agora.
      - Enquanto não souber, não vou conseguir descansar. Como chegou aqui, Bevil?
      - Estava procurando por você.
      - Mas por quê... por quê...?
      - Meu Deus, acha que ia permitir que ficasse perdida?
      - Mas como conseguiu saber?
      - Isso não tem importância agora. Estou aqui. Encontrei-a. E você está salva agora.
      - Bevil, você está contente!
      Ele levou minha mão aos lábios e beijou-a com todo amor. Nenhuma palavra seria mais expressiva do que seu gesto espontâneo. Foi o bastante para me deixar descansar. E fechei então meus olhos.
      Algumas horas depois conseguiram retirar o corpo de Fanny. Haviam tentado, mas não foi possível salvá-la.
      Quando abriram a porta do porão, ela estava junto de mim e foi vista por todos. Mas então, disseram, ela escapuliu e desapareceu. Eu sabia, porém, que não desejava ser trazida para fora do porão com vida.
      Pobre e adorada Fanny! Quando a loucura teria começado a minar o cérebro dela? Não sei dizer. Teria sido quando perdeu o marido e o filho? Suas tragédias na época de moça? Fanny, a doce criminosa que ia matar por amor. Já tinha ouvido dizer que se mata por dinheiro, por ciúme, mas por amor, nunca.
      E como pôde Bevil ter chegado a tempo? Porque ele não pretendia deixar sem explicação o caso da carta do agente funerário. Tinha de descobrir quem enviou a carta e por que o fizera. Depois de falar com Hamforth, achou que a melhor coisa era se pudesse encontrar a carta, ter algo de tangível nas mãos, e não iria descansar enquanto não soubesse quem a escreveu.
      Jessica lembrou que tinha visto Fanny no hall, enquanto falava com Hamforth, e, por isso, Bevil mandou chamar Fanny, que não foi encontrada em parte alguma.
      E onde estava eu, ele queria saber. Logo se descobriu que também havia desaparecido.
      Foram, então, Bevil, Jessica e William Lister sentar-se na biblioteca para discutir o assunto envolvendo Hamforth.
      Por que, perguntavam-se, teria Fanny feito uma coisa dessa? Estavam já certos de ser ela, pois era a pessoa mais provável de ter apanhado a carta. E, se fez isso, não seria para impedir que se soubesse onde estava? Mas por que teria escrito tal carta?
      Outras informações foram dadas por Jessica, que contou que Fanny andava procurando Jem Tomrit e que a filha dele, a Sra. Henniker, estava muito incomodada com as visitas dela. Desde que o velho viu fantasmas na ilha, tomou um susto tão grande que não parava de falar no passado, e isso não era nada bom para ele. A Sra. Henniker achava que, se fosse pela saúde física, Jem podia viver 100 anos, mas o que preocupava era o espírito, não só a ela, mas ao próprio Jem, que ultimamente não dormia por causa de sua consciência. Ficava falando e delirando. Nos delírios, dizia que ele e seus comparsas tinham deixado os fiscais trancados no porão, para morrerem afogados.
      - Vamos procurar Jem Tomrit - disse Bevil. Fizeram isso, e Bevil o obrigou a falar. Jem contou então que Fanny ficava fazendo perguntas sobre a casa e a ilha, e ele tinha de ficar contando sempre a história dos fiscais que caíram na armadilha do porão e morreram afogados.
      - Vamos à ilha, com tempestade ou não - Bevil falou.
      Naturalmente ele ignorava que o plano de Fanny fosse o de morrer comigo. Pensava que tínhamos ido lá para explorar a casa e que talvez o fecho de molas pudesse ternos deixado presas.
      De volta a Menfreya, viu que faltava um dos barcos. A essa altura, o mar estava revolto, e a maré subia rapidamente. Mas foram assim mesmo até lá - Bevil, William Lister e Jessica, chegando a tempo justo de me salvar.
      Num quarto na ilha, deitada numa cama, rememorava todos esses acontecimentos. Dizem que, quando uma pessoa está morrendo afogada, ela vê sua vida desfilar diante dos olhos. Bom, eu quase morri afogada e ali estava deitada revendo cenas de meu passado.
      Gwennan foi-se, e, com ela, também alguma coisa da antiga vida. Agora chegou a vez de Fanny, e iria acontecer o mesmo.
      Mas Bevil ficou comigo. Era a quem devia minha vida, salva pela sua determinação, sua energia e o seu desejo de me socorrer.
      Entretanto... salvando-me, perdeu Jessica.
      E esse pensamento era para mim como uma tábua de salvação no mar de dúvidas em que me encontrava.
      Se quisesse livrar-se de mim, que grande oportunidade perdeu.
      Tivemos de passar a noite na ilha, pois o tempo estava cada vez pior. Nunca tinha visto uma ventania como aquela e um mar tão bravo.
      Bevil entrou no quarto para me dizer que não havia nenhuma esperança de ir para Menfreya; só pela manhã isso seria possível.
      - De todo jeito mesmo, não era bom que você saísse. Está precisando descansar.
      Deu um sorriso para mim muito satisfeito, e percebi o quanto estava alegre por me ver salva.
      - Já dormi neste quarto uma vez, muitos anos atrás, quando fugi de casa.
      - Parece que você tem um talento todo especial para fazer coisas bem malucas.
      - E, na noite seguinte, você chegou, lembra-se? Veio me achar debaixo de um lençol, neste mesmo quarto.
      Aí, ele fez a expressão, com os olhos semicerrados, de quem está tentando lembrar-se de alguma coisa.
      - Você veio para cá com uma moça. Perdoe-me ter interrompido sua aventura.
      - Puxa, que memória você tem!
      - Desculpe.
      - O quê?
      - Por interromper naquela ocasião... e agora.
      - Agora...? Mas de que é que está falando, meu Deus?
      Tinha a testa enrugada, como se realmente não estivesse entendendo.
      - Jessica é muito bonita. Ficaria muito bem no papel de mulher de parlamentar.
      - Espero que não. É curioso como há um tipo de situação que obriga as pessoas a dizerem coisas que, normalmente, nunca confessariam. Quando estávamos vindo para cá... e achei que, com o mar do jeito em que está, jamais íamos chegar aqui, ela me contou que vai se casar com Leveret. E... que o casamento tem de ser às pressas, numa cerimônia discreta.
      - Você está dizendo que...
      - Isso mesmo. Que estavam usando a ilha para se encontrarem; daí as luzes, os vultos misteriosos vistos aqui.
      - Então era Harry!
      - Era. E, discretamente, ela admitiu que o está ajudando há meses. Uma espécie de espiã no campo do inimigo. Aquela coisa do barco escapulir foi obra de Harry, sabe? Ajudado por aquele velhaco do A'Lee... só para que eu ficasse envolvido num escândalo... se me dá licença agora de dizer. Ele vai ter de melhorar de tática, se quiser entrar na política.
      - Se... - disse eu, me sentindo muito feliz.
      Via sua felicidade e sentia que era devida ao fato de me estar vendo ali, salva. Por instantes, esqueci-me de tudo: da perda horrível de minha adorada Fanny, das horas de pesadelo que antecederam sua morte e de muitas coisas mais precisando ainda de explicações.
      Por fim, Bevil disse:
      - Oh, Senhor, acho que pensou realmente que...
      - Você e Jessica? Bem, não era uma conclusão muito difícil para se chegar, em vista dos...
      Ele ficou então com um ar sério e disse:
      - Harriet, minha pobrezinha, acho que teve de agüentar um bocado de coisas, hein? Mas o fato mesmo é que não devo ser um espécime muito perfeito.
      - E eu também.
      - Mas eu a aceito como você é, Harriet. E você me aceita tal como eu sou?
      - Você está parecendo um padre celebrando um casamento.
      - Mas veio muito a propósito, pois é de casamento que estamos falando.
      Inclinou-se e me deu um beijo, como se tivéssemos acabado de concluir um ajuste.
      Passou-se algum tempo, até que tudo entrasse nos eixos, e as coisas pudessem ser vistas com clareza. Durante meses chorei a morte de Fanny, e ainda choro. Como seria bom se não tivesse perdido a razão. Era para ela ter sido a babá de meus filhos, coisa que sempre imaginei que um dia fosse acontecer. Se ambas tivéssemos sido salvas, acho que poderia ter cuidado da doença dela. Foi o seu zelo por mim que a colocou na fronteira da razão e da loucura, oscilando entre uma e outra. Talvez quando o seu corpo tenha recebido uma dose de veneno - e já não havia mais dúvidas disso - também sua mente tenha sido envenenada. Como vimos depois, havia realmente evidências de que alguém na casa estava tentando matar-me, e foi o que a fez decidir que, quando Billy a chamasse, me levaria consigo.
      Ao descobrir a verdade, fiquei surpresa de ver que todo aquele emaranhado de suspeitas em que me enredei não passou de mera criação minha. A criança rejeitada que fui só podia ver a felicidade como algo suspeito; o fato de meu pai não se importar comigo levou-me a achar que ninguém mais se importaria também. Até então, não tinha podido compreender que minha vida dependia de mim mesma. E que revelação maravilhosa; o futuro nunca me pareceu tão cheio de possibilidades e tão emocionante. E, passando a entender-me melhor, tornei-me mais indulgente com os outros. Podia, agora, ser tolerante com Jessica, compreender seus temores e suas esperanças. Aventureira, pode ser que tenha sido e, provavelmente, até veio para Menfreya esperando encontrar uma vida fácil; era possível mesmo que tivesse contado com seduzir Bevil e tirá-lo de mim ou, talvez, casar-se com William Lister. Mas viu que, com Harry Leveret, suas perspectivas eram bem mais interessantes. Não tenho muita certeza, mas a mulher na qual me transformei é bem menos repressora do que a que fui. Afinal, Jessica tinha lutado pela felicidade dela, e eu também havia feito o mesmo, pela minha. Espero que ela haja encontrado em Harry o que andou buscando.
      Foi por acaso que descobri como Fanny e eu fomos envenenadas. Pouco depois de Jessica ter ido embora, fui tomar chá com Benedict no quarto de brinquedos, e ele, rindo muito, despejou colheradas de açúcar na minha xícara, e foi então que disse:
      - Isso é para a formiguinha. Você gosta mais deste açúcar do que do açúcar de Jessica?
      E o açúcar de Jessica, segundo me contou, ficava guardado num vidro no armário dela, e ele, de pé em cima de uma cadeira, conseguia apanhá-lo. Havia posto dele na minha limonada quando eu estava doente, para que sarasse depressa.
      Quando o filho de Jessica nasceu, fui visitá-la em Chough Towers. A maternidade, de certo modo, a havia transformado. E, como também eu estava grávida nessa ocasião, pude compreender a mudança que via nela; quase nos tornamos amigas por isso. Ela admitiu que, na época em que Jenny morreu, havia lido sobre arsênico e que, de vez em quando, andou usando a droga. Ficou horrorizada ao saber do modo como Fanny e eu poderíamos ter sido envenenadas.
      Bem, isso tudo já foi há muito tempo, mas estou sempre pensando na noite em que meu marido me salvou e que fiquei deitada na casa da ilha, ouvindo do lado de fora a tempestade, que, aos poucos, ia abrandando, até o rumor das ondas transformarem-se em murmúrio.
      Quando o dia clareou, levantei e fui à janela apreciar o nascer do sol. Numa cadeira perto de minha cama, Bevil estava dormindo, mas não quis acordá-lo. O mar estava calmo, e só o contorno marrom da orla indicava a violência da tempestade.
      E lá estava Menfreya, tocada pelo brilho rosa-pálido, fazendo-me lembrar daquela outra manhã, há muitos anos, quando achei que não havia vista mais linda no mundo do que esta à luz da aurora.
      Gwennan foi-se; também Fanny; mas eu tinha Bevil e iríamos juntos pela vida afora.
      Ele veio ficar ao meu lado, e ficamos com os olhos perdidos no mar.
      - Quem diria ser este o mesmo mar furioso de ontem à noite - comentou.
      Olhou-me no rosto, e vi que sabia o que ia no meu pensamento.
      A tragédia chegou a nos rondar, mas a sorte esteve conosco.
      E Bevil ainda tremia, pensando no milagre que foi ele ter chegado a tempo justo de me salvar.
      - É como se nos tivessem dado outra chance - disse ele.
      - O dia está começando bem - respondi. - Olhe o céu, olhe Menfreya... É tão linda pela manhã!
     
NOTAS

1 O termo Cockney tem duas associações geográficas e linguísticas. Geograficamente e culturalmente, muitas vezes refere-se a trabalhadores londrinos, em particular os do East End. Lingüisticamente, refere-se à forma do Inglês falado por esse grupo.
2 Stone: pedra em português. (N. da T.)
3 A Ginger Beer é uma bebida gaseificada que é aromatizado principalmente com gengibre e adoçado com açúcar ou adoçantes artificiais. A maior parte da cerveja de gengibre produzida comercialmente é uma bebida suave manufaturada. A versão original, raramente produzida comercialmente desde meados do século 20, mas muitas vezes caseira, é uma bebida alcoólica fabricada.
4 Chough Towers: Torres das Gralhas, em português. (N. da T.)
5 Kitchener, Horatio Herbert - marechal e estadista inglês (1850-1916). (N. da T.)
6 Elten Terry e Irving foram famosos atores ingleses na segunda metade do século XIX. (N. da T.)
7 Três grandes reis,/ Modestos todos os três,/ Todos brilhando como um sol esplêndido;/ Três grandes reis,/ Modestos todos os três,/ Refulgiam em seus brancos palafrens./ O mais sábio/ Cavalgava à frente,/ E de noite havia uma estrela de ouro a guiá-los;/ O mais sábio/ Cavalgava à frente;/ Vi ondulando sua longa barba branca ao vento. (N. da T.)
8 Outeiro (do latim altare - altar) ou lomba (do latim lumbus - lombo) é uma pequena elevação de terreno. Era nos outeiros ou lugares altos, mais próximos dos céus, que se ofereciam as preces, as oferendas e sacrifícios aos deuses.Um outeiro é menor que um morro. Porém, distinção entre os dois é pouco precisa e muito subjetiva.

 

 

                                                                  Victoria Holt

 

 

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