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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESPERTAR / Laura Gallego García
O DESPERTAR / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume III

O DESPERTAR

 

A serpente semicerrou os seus olhos irisados, mas não fez o menor movimento nem denotou nenhuma emoção em particular quando disse telepaticamente: -Já cá estão.

- Eu sei - respondeu em voz baixa Ashran, o Necromante, da outra ponta da sala. Estava à janela, como de costume, a contemplar o erguer da terceira das luas no horizonte do seu mundo.

A serpente ergueu a cabeça e desenroscou lentamente o seu longo corpo anelado. Era enorme, e nem sequer tinha aberto as asas. Cada escama do seu corpo irradiava um poder misterioso e letal, um poder diante do qual qualquer mortal tremeria de terror. Mas Ashran, o Necromante, não era um homem vulgar.

Aquela também não era uma serpente vulgar, nem sequer entre as da sua raça. Tratava-se de Zeshak, o senhor dos sheks, a mais poderosa das serpentes aladas.

- O dragão e o unicórnio - enumerou. - Dois feiticeiros: um humano e uma feérica. E um cavaleiro de Nurgon, meio humano, meio animal.

- Devem formar um grupo peculiar - sorriu Ashran. - Tenho vontade de os ver em acção. Mas isso não é tudo, pois não? Há uma sexta pessoa.

Houve um breve silêncio.

- O traidor está com eles - disse Zeshak com um gelado desprezo. Esse a quem chamavas teu filho é agora o sexto renegado da Resistência.

Ashran ignorou o tom irritado do seu interlocutor. Desde que Kirtash os atraiçoara, nenhum shek voltara a pronunciar o seu nome.

- Sei que queres vê-lo morto - disse o Necromante. - E terás essa satisfação. Mas o dragão e o unicórnio são mais importantes agora.

Zeshak não disse nada, mas Ashran percebeu o seu cepticismo.

- A profecia está a cumprir-se - atirou-lhe o feiticeiro. - Ou achas que podes lutar contra o destino?

- Não existe destino - replicou o shek. - Os dragões condenaram-nos a vaguear pelos limites do mundo durante toda a eternidade, e olha para nós, estamos aqui. Somos donos absolutos do planeta e do nosso próprio destino. E acabámos com todos os dragões.

- Não com todos - recordou-lhe Ashran.

Nos olhos matizados do shek brilhou uma breve centelha de ira.

- E, apesar de tudo nós, os sheks, desejamos mais a morte do traidor do que a desse dragão que nos escapou.

- Mas, logo que se depararem com ele, voltarão a sucumbir ao ódio

- sorriu Ashran. - Como sempre foi. Um dragão, embora seja apenas um, embora seja o último, continua a ser um inimigo perigoso.

O shek deixou escapar um cicio irado.

- Como podes considerar perigoso um dragão que está tão contaminado de humanidade?

- Como é possível que os subestimes, Zeshak? Não são criaturas vulgares. São parte de uma profecia, e por detrás das profecias está a mão dos deuses.

- Então não deverias tê-los deixado voltar - opinou Zeshak. Ashran encolheu os ombros.

- Na Terra teriam ficado longe do meu alcance. Além disso, fizesse o que fizesse, enquanto pudessem refugiar-se em Limbhad estariam a salvo. - Ergueu a cabeça para cravar na serpente os seus olhos prateados. - Agora já não estão.

- Podem sempre voltar para trás.

- Não - replicou Ashran. - Já não podem... mas ainda não sabem. Zeshak assentiu lentamente.

- Estou a ver - disse. - Se é verdade que essa profecia pode cumprir-se, se é certo que podem derrotar-nos, não deverias enfrentá-los. Agora estão aqui, em Idhún; nós, os sheks, podemos encarregar-nos de destruir a Resistência.

Ashran meditou na proposta. Em virtude de um conjuro antigo, há séculos que nem os sheks nem os dragões podiam atravessar a Porta interdimensional para a Terra. Por isso os feiticeiros renegados da Torre de Kazlunn, aqueles que se opunham ao poder do Necromante, tinham-se visto obrigados a enviar para lá apenas os espíritos do dragão e do unicórnio da profecia, para que reencarnassem em corpos humanos. Por isso o próprio Ashran tivera de mandar Kirtash atrás deles, uma criatura híbrida, um shek camuflado no corpo de um rapaz que, infelizmente para eles, havia conservado uma boa parte das suas emoções humanas e tinha acabado por unir-se aos seus inimigos.

Mas agora eles estavam em Idhún, tinham ido ali para lutar. Nada impedia os sheks de os atacar no seu próprio terreno.

- Sabes onde estão? - perguntou.

Os olhos da serpente apresentaram, por um momento, um certo brilho sinistro.

- Sei onde estão. Uma única mensagem telepática minha e os sheks atacarão.

Ashran assentiu.

- Talvez não possas vencê-los - disse, no entanto.

O shek deteve-se, ofendido. Não falou, mas deixou que Ashran percebesse a sua irritação.

- Há uma estranha força no seu interior. Olha esta torre, Zeshak. Não era mais do que um edifício morto e abandonado, e agora transborda poder por todos os lados. E foi a rapariga que fez isso... ela sozinha. Não é apenas um unicórnio. É o último dos unicórnios, toda a força da sua raça reside nela.

Percebeu o ressentimento de Zeshak e soube o que estava a pensar. O shek tinha sido a favor de acabar com a vida da jovem que se fazia chamar Victoria ao invés de a fazer prisioneira, mas Ashran optara por utilizar o seu poder... e aquela rapariga, cujo corpo albergava o espírito do último unicórnio, acabara por escapar. Agora ela e o seu companheiro, o último dragão, eram a única coisa que ameaçava a estabilidade do seu império.

- O dragão também será um adversário temível, logo que aprenda a usar o seu poder.

- Então devemos acabar com eles antes que isso aconteça.

- Há mais de quinze anos que tentamos acabar com eles, Zeshak. E não conseguimos.

- Estás a começar a pensar que não podemos evitar o cumprimento da profecia? - ciciou Zeshak na sua mente.

- Não; estou a começar a pensar que não seguimos a estratégia adequada.

A serpente não disse nada, mas cravou no Necromante os seus olhos matizados, esperando uma explicação.

- Infelizmente, Zeshak, não os conheço tanto quanto queria. Conheço bem Kirtash, muito melhor do que ele mesmo pensa. Começo a conhecer Victoria, porque tive ocasião de lidar com ela, e creio que pode ser uma peça importante para os meus planos futuros, embora ela não o saiba. Mas o rapaz, o dragão, continua a ser um perfeito estranho para mim. E isso não me agrada. Agora que estão aqui, em Idhún, vou ter a oportunidade de os observar, de os estudar, de os conhecer e compreender... e de encontrar o seu ponto fraco.

Zeshak olhou-o, com a boca entreaberta, deixando ver a sua longa língua bífida. Quase parecia que se ria.

- Estratégia básica shek - comentou. Ashran assentiu.

- De qualquer forma, não me oponho a que vocês ataquem primeiro. Poucas coisas podem escapar ao olhar de um shek, e suspeito que, para onde quer que forem, acabarão por encontrá-los. Talvez consigam acabar então com eles, com um deles, pelo menos, e aí não haverá mais nada para falar. Mas, se fracassarem, pelo menos terei tido a oportunidade de estudar a Resistência com mais pormenor, e pode ser que então já se tenham confirmado as minhas suspeitas.

O shek semicerrou os olhos e aguardou que o Necromante continuasse a falar. Ashran olhou-o e sorriu.

- Talvez - disse o feiticeiro, com suavidade - a chave para a sua destruição não esteja em nós, mas sim neles mesmos.

Zeshak compreendeu. Lentamente, o seu rosto de réptil esboçou um sorriso sinistro.

 

             A TORRE DE KAZLUNN

Quando Victoria abriu os olhos, demorou um pouco a lembrar-se de tudo o que acontecera. Imagens confusas misturavam-se na sua mente, imagens fantásticas que pareciam produto de um sonho lindo ou de um estranho pesadelo.

Soergueu-se, e viu junto a ela um rosto familiar. Jack estava estendido ao seu lado, com os olhos fechados. Victoria sentiu um baque no coração; no entanto, apercebeu-se quase de imediato de que o rapaz estava a dormir ou inconsciente, mas não ferido. A sua expressão era calma, e a respiração normal. Victoria ergueu a mão para lhe acariciar o rosto com carinho. O jovem sorriu em sonhos, mas não acordou.

Tinham-se conhecido três anos antes, quando os assassinos enviados por Ashran, o Necromante, haviam matado os pais de Jack. Na altura, ele não sabia nada de Idhún

nem da Resistência à qual Victoria pertencia, e vira-se obrigado, da noite para o dia, a assumir que de alguma maneira estava implicado na guerra pela salvação de um mundo que não conhecia. Unira-se à Resistência, que lutava para libertar Idhún do domínio de Ashran e dos sheks, as monstruosas serpentes aladas; tivera de aprender a lutar, a defender-se, a sobreviver.

Mas também conhecera Victoria. A rapariga sorriu, lembrando-se do seu primeiro encontro. Na altura eram ainda crianças, mas agora tinham crescido e a amizade que os unia convertera-se em algo mais, num sentimento mais intenso e mais profundo, que se tinha consolidado quando os dois descobriram, apenas umas semanas antes, que o seu destino estava escrito até mesmo antes do seu nascimento, e que eles os dois eram os eleitos para derrotar o Necromante e salvar Idhún. E que dentro de si pulsavam os espíritos de Yandrak e Lunnaris, o último dragão e o último unicórnio, os únicos que, segundo a profecia dos Oráculos, seriam capazes de acabar com o poder de Ashran.

Victoria estremeceu e ergueu o olhar para as estrelas. Não queria fazê-lo, porque sabia o que ia encontrar naquele belo céu violáceo.

Mas também sabia que tinham dado um passo definitivo e que não havia forma de voltar atrás.

Contemplou com resignação, quase com ódio, as três luas que brilhavam no firmamento. As três luas de Idhún, o mundo ao qual acabavam de chegar, um mundo que teoricamente era o seu, mas que ela, cujo corpo humano nascera e crescera na Terra, não recordava nem aprendera a amar. Era um espectáculo belíssimo, porque os três astros apresentavam sombras e tonalidades que fariam o satélite terrestre empalidecer de inveja, mas, ainda que uma parte do seu coração se sentisse comovida por tanta beleza, a outra estava dolorosamente consciente de que tinham ido ali para lutar... e talvez para morrer.

Observou-as durante mais algum tempo. Nenhuma das três estava cheia; a do meio parecia decrescer, enquanto que à mais pequena parecia faltar pouco para o plenilúnio, e a grande também estava crescente. Victoria deduziu que cada uma delas tinha um ciclo distinto; perguntou-se se os três plenilúnios coincidiriam alguma noite, e se chegaria a vê-lo.

Sentou-se no chão e olhou em volta. Acabavam de atravessar a Porta interdimensional; em princípio, deveriam ter aparecido na Torre de Kazlunn, o bastião dos feiticeiros que se opunham a Ashran, mas encontravam-se na clareira de um bosque. Não parecia haver nada de perigoso ou ameaçador na paisagem, no entanto, Victoria sentiu-se inquieta. As árvores eram enormes e tinham formas estranhas, de raízes torcidas e ramos que se entrelaçavam nelas formando intrincados desenhos; havia arbustos que atingiam vários metros de altura e enormes e belíssimas flores cujas pétalas se abriam em ângulos e contornos inverosímeis, envolvendo Victoria em perfumes inebriantes. Era tudo muito diferente do que ela conhecia e, não obstante, não sentia nada de anormal naquele lugar. Era como se a natureza tivesse encontrado de repente a inspiração e a força necessárias para levar a cabo as suas quimeras mais atrevidas. E, tendo em conta a enorme quantidade de energia que vibrava no ambiente, Victoria disse a si mesma que não era de estranhar.

Procurou os seus amigos com o olhar. Viu Shail, Allegra e Alexander, que, como Jack e ela própria, tinham ficado inconscientes durante a viagem interdimensional. Victoria franziu o sobrolho. Não se lembrava de grande coisa dessa viagem, tirando o facto de ter atravessado a falha... uma luz intensa... tudo a dar voltas e, de repente, perdera o sentido de orientação, não sabia o que estava em cima e em baixo... ficara zonza... soltara sem querer a mão de Jack... e a mão de Christian.

Christian.

Victoria pôs-se de pé bruscamente e olhou em volta, mas não viu a esbelta silhueta do jovem em lado nenhum. Contudo, pressentia que ele estava perto, o que a tranquilizou um pouco. Fechou os olhos, levou aos lábios a pedra de Shiskatchegg, o anel mágico que ele lhe oferecera, e deixou-se guiar pela sua intuição. Sabia que não devia embrenhar-se sozinha num bosque desconhecido, mas nunca era racional quando se tratava de Christian.

Algo se moveu entre os ramos mais altos, e Victoria, sobressaltada, sentiu um calafrio. Mas era um animal, provavelmente um pássaro. A rapariga sorriu, nervosa, e prosseguiu o seu caminho.

A clareira não era muito longe dos limites do bosque. As árvores abriam-se um pouco mais adiante e deixavam entrever as formas suaves de uma planície, iluminada pelas três luas.

E ali estava Christian. Victoria descobriu o seu vulto junto da última fila de árvores, tenso, vigiando o horizonte. Tal como de todas as vezes que o via, o seu coração debateu-se num mar de sentimentos contraditórios.

Christian era Kirtash, um jovem assassino enviado à Terra por Ashran para acabar com a Resistência e com o dragão e o unicórnio que ameaçavam o seu império. Victoria lutara contra ele, temera-o, odiara-o... mas também se sentira atraída por ele quase desde o princípio, e aquela atracção aumentara mais e mais a cada encontro, até se transformar numa emoção difícil de reprimir... e que, surpreendentemente, era correspondida. Victoria não deixara de o amar ao saber que ele era filho de Ashran, o Necronumte, o seu inimigo... nem ao saber que Kirtash não era completamente humano, mas que albergava no seu interior o espírito de um shek, uma das letais serpentes aladas que tinham conquistado Idhún. Nem sequer havia sido capaz de o odiar quando a sua parte mais negra aflorara novamente, magoando-a de forma tão dolorosa e cruel. Por sua vez, Christian acabara por atraiçoar os seus e unira-se à Resistência. Por ela. Apesar de, como ambos sabiam bem, Victoria não ser capaz de escolher entre Jack e Christian, porque, de alguma maneira, estava apaixonada pelos dois.

A rapariga não sabia como iam resolver aquilo, mas era bastante evidente que teria de esperar. Reprimiu as suas dúvidas e os seus sentimentos a esse respeito e obrigou-se a si mesma a concentrar-se e a agir não como uma adolescente apaixonada e confusa, mas sim como uma guerreira da Resistência.

Aproximou-se de Christian sem fazer o mínimo ruído. Mas ele soube que ela estava ali sem precisar de a ver ou de a ouvir.

- Já acordaram?

Victoria negou com a cabeça e juntou-se a ele.

- Só eu - disse. - Os outros continuam inconscientes. O que nos aconteceu?

- Chocámos contra uma barreira - explicou ele, a meia-voz. - Tive de reorientar o destino da Porta durante o trajecto.

- Onde estamos agora?

- Não muito longe do nosso destino. Olha.

Indicou um ponto no horizonte, e Victoria conteve a respiração.

Contra o céu nocturno recortava-se a alta figura cónica de uma torre, uma torre de fundações sólidas, terminada, no entanto, por um gracioso pináculo que parecia beliscar a maior das três luas. Encontravam-se demasiado longe para que Victoria pudesse apreciar os pormenores da estrutura, mas à primeira vista pareceu-lhe bela... e sinistra. Não obstante, havia algo nela, nos seus contornos, que lhe era familiar.

- É a Torre de Kazlunn? - perguntou em voz baixa. Christian assentiu.

- Não nos deixaram entrar. Por um lado, não é de estranhar, já que os feiticeiros protegem a torre com um conjuro muito poderoso, e em todos estes anos, nem eu, nem o meu pai, nem os sheks conseguimos conquistá-la. Por outro lado... estão à vossa espera há anos como os heróis da profecia. Deviam ter detectado que vínhamos de Limbhad. Deviam ter-vos deixado passar.

Victoria olhou para Christian, insegura. Se ele não sabia o que estava a acontecer, ninguém o saberia. O shek costumava adiantar-se a todos na hora de compreender as coisas.

- Pode ser que tenham detectado a minha presença - continuou Christian. - Talvez tenham pensado que se tratava de uma armadilha. Mas...

- Não há luzes nas janelas - disse Victoria, de repente. - É como se lá dentro não houvesse ninguém.

- Já tinha reparado - anuiu Christian, tenso. - Há aqui algo que não está bem.

Levou a mão atrás num movimento reflexo, mas deteve-a a meio, ao recordar de repente que já não levava a bainha de Haiass, a sua espada, presa às costas. Victoria viu que os seus dedos se crispavam e fitou-o, um pouco preocupada.

- Devíamos ir acordar os outros. Talvez a minha avó saiba o que está a acontecer.

Christian anuiu. Victoria deu meia-volta para regressar à clareira, mas estacou ao ver que Christian não a seguia, e que começara a deslizar com movimentos felinos em direcção à torre. Victoria voltou atrás para o deter.

- Onde pensas que vais?

Ele fitou-a por um momento, entre incomodado e divertido.

- Reconhecer o terreno. Se há algo estranho naquela torre, daqui não posso saber o que é.

- Nem penses, Christian. Não vais sozinho, estás a ouvir? Não quero que te matem.

Christian não disse nada, mas susteve o seu olhar. O coração de Victoria começou a bater desenfreadamente, e a jovem sentiu que as três luas que brilhavam sobre eles alteravam os seus sentidos e faziam com que aquele momento parecesse mais mágico do que era. Mas dominou-se e, quando Christian se aproximou mais dela, com intenção de a beijar, Victoria afastou-se dele com suavidade.

- Temos de acordar os outros - recordou-lhe.

Christian ergueu a cabeça e viu então uma sombra que os observava um pouco mais longe; reconheceu Jack. Victoria foi juntar-se a ele, com naturalidade, ignorando o semblante sombrio do seu amigo.

- Estamos perto da Torre de Kazlunn - explicou-lhe -, mas Christian não sabe porque é que a Porta não nos levou até ao interior. Já acordaram todos?

- Sim - respondeu Jack; reteve-a pelo braço e deixou que Christian se adiantasse até que ficaram os dois sozinhos. - Não voltes a fazer-me isto - sussurrou-lhe, irritado.

- O quê? - rebelou-se ela. - Não me digas que estás com ciúmes; já sabes que...

- Se estivesse não to diria, nem agiria como se estivesse, Victoria cortou Jack, um pouco magoado. - Já te disse uma vez que nunca tentarei controlar os teus sentimentos. Estava a referir-me a desapareceres de repente e ficares a sós com ele. E se ele enlouquecer, como da última vez? Fazes ideia do que é para mim acordar e não te ver em lado nenhum? Depois do que aconteceu dessa vez?

Victoria titubeou, entendendo os sentimentos do seu amigo.

- Não vai fazer-me mal, Jack - disse em voz baixa.

- Não posso saber isso, Victoria. E tu também não.

- Estou disposta a correr o risco. Ele fitou-a nos olhos, muito sério.

- Mas eu não.

Victoria ia replicar, mas não encontrou as palavras apropriadas. Procurou a sua mão e estreitou-a com força, e assim, de mãos dadas, regressaram à clareira.

Encontraram os seus companheiros já acordados e a ouvir com semblante grave o que Christian lhes expunha clara e sucintamente.

- Deveriam ter-nos deixado passar - resumiu Allegra os pensamentos de todos.

Victoria percebeu que, pelos vistos, ela decidira prescindir da sua camuflagem mágica, porque já não parecia uma humana idosa, e mostrava o seu verdadeiro rosto, o rosto etéreo de uma fada de idade incalculável, de cabelos de prata, traços exóticos e delicados e olhos completamente negros, todos pupila, que pareciam conter toda a sabedoria do mundo. À jovem ainda lhe era estranho pensar que aquela que acreditara ser sua avó era na realidade uma poderosa feiticeira idhunita.

Shail, o outro feiticeiro do grupo, negou com a cabeça.

- Não sabem que conseguimos resgatar Victoria da Torre de Drackwen - disse. - Se não me engano, o Necromante conseguiu o que queria, e a torre voltou a ser inexpugnável. - Olhou para Christian, que assentiu, confirmando as suas palavras. - Pode ser que os feiticeiros pensem que Victoria morreu na torre, e nesse caso terão perdido toda a esperança.

- Mas não podem deixar-nos aqui! - exclamou Alexander. - A Torre de Kazlunn é o único lugar seguro para nós. Aqui somos vulneráveis...

- Para não mencionar o facto de que o mais provável é que Ashran já saiba que chegámos - acrescentou Christian.

Alexander praguejou em voz baixa. Jack ergueu-se.

- Eu voto por nos aproximarmos da torre e descobrir o que está a acontecer.

- E se for uma armadilha? - perguntou Christian. Shail fitou-o.

- Uma armadilha de quem? O teu pai não controla a Torre de Kazlunn. É impossível que a tenha conquistado no tempo que passou desde que parti, e ainda mais tendo em conta que não o conseguiu em quinze anos.

Christian não disse nada, mas Victoria descobriu no seu rosto uma sombra de dúvida.

A Torre de Kazlunn erguia-se junto ao mar, ao fundo de um planalto salpicado de pequenos bosques como o que acabavam de abandonar. Havia um longo caminho que ia até à entrada, junto à escarpa.

A subida foi longa e penosa. Quando o caminho se aproximou um pouco mais do precipício, Jack quis espreitar, para ver o que havia mais à frente, mas Christian deteve-o.

- Estás doido? - disse-lhe em voz baixa. - A maré está a subir.

- E? - perguntou Jack, sem compreender. - Não entendo o que... Ainda não tinha terminado de o dizer quando uma violenta onda rebentou contra o precipício com um barulho estrondoso. Jack arquejou e retrocedeu, ensopado e sem ar. Os seus companheiros também se afastaram do quebra-mar, com prudência.

- Teria jurado que era muito mais alto, uns quinze metros pelo menos - murmurou o rapaz, perplexo.

- E é - respondeu Shail, sorrindo.

Victoria pegou no braço de Jack e indicou-lhe o céu, em silêncio. Jack compreendeu o que queria dizer. As três luas de Idhún tinham de provocar, forçosamente, movimentos oceânicos maiores do que as marés da Terra. Engolindo em seco, afastou-se ainda mais do planalto, e só se sentiu seguro quando chegaram junto da torre.

A Resistência deteve-se diante da porta, que estava fechada a sete chaves. Não se via ninguém por perto, e também não se percebia nenhuma actividade dentro do edifício.

- Isto não me agrada - murmurou Shail. - Já deveriam ter-nos visto chegar.

- Ninguém pode ter-nos visto chegar, Shail - disse Allegra, sombria -, porque não há ninguém na torre.

- O quê...?

- Abram a porta - disse então Christian. - Temos de entrar na torre rapidamente.

- Porquê? - perguntou Alexander, olhando-o com desconfiança.

- Porque Christian tinha razão - respondeu Jack, esquadrinhando as sombras enquanto desembainhava a sua espada. - É uma armadilha. Não notam?

Não tinha acabado de pronunciar aquelas palavras quando dezenas de pares de olhos brilhantes se ergueram nas sombras. Enormes corpos ondulantes e alongados surgiram do fundo do planalto, a escorrer água, e moveram-se sinuosamente, rodeando-os; e alguns deles estenderam as suas asas, cobrindo de escuridão o céu nocturno. Victoria estremeceu de frio e perguntou-se como não os tinham detectado antes: mas os sheks eram criaturas astutas e muito inteligentes, e tinham conseguido esconder-se deles, esperando pacientemente até os terem encurralados contra o muro. Agora observavam-nos fixamente, a uma distância prudente, como que a avaliá-los, mas não havia dúvida de que não demorariam a atacá-los, e que seria uma luta demasiado desigual para a Resistência poder vencer . A única possibilidade que tinham de escapar com vida era refugiar-se na torre, mas Victoria compreendeu, antes que Allegra e Shail unissem a sua magia para procurar derrubar a porta, que não o conseguiriam. Houve uma violenta faísca de luz e a magia que protegia a torre repeliu o poder dos dois feiticeiros com tanta força que os lançou para trás.

Uma das serpentes ciciou com fúria, projectando a cabeça para a frente, mostrando as presas letais. Jack, Christian, Victoria e Alexander retrocederam alguns passos, cobrindo os feiticeiros sem deixar de vigiar os sheks, procurando protecção no enorme e elegante pórtico que abrigava a entrada.

- Abram a porta ou estaremos perdidos! - sussurrou Alexander com voz rouca.

- Não reconheço esta magia - murmurou Allegra. - A porta foi selada com um poder diferente do dos feiticeiros comuns.

- É a magia do meu pai - sussurrou Christian.

Não disse mais, mas todos entenderam o que isso implicava.

A Torre de Kazlunn tinha caído. De algum modo, Ashran tinha conseguido conquistá-la. Quanto ao que teria acontecido aos feiticeiros que ali viviam... só podiam tentar adivinhar. E as possibilidades não eram propriamente tranquilizadoras.

Então, os sheks atacaram.

Lançaram-se sobre eles, com as mandíbulas abertas, os olhos a brilhar na escuridão, os seus longos corpos anelados a ondular tão depressa que mal podiam seguir os seus movimentos.

Jack teve de fazer face a duas emoções tão intensas quanto terríveis: o horror irracional que sentia em relação a todo o tipo de serpentes torturou-o outra vez; e um sentimento novo e sinistro apoderou-se da sua alma - um ódio tão negro e profundo como o centro de um abismo. Procurando reprimir o seu medo e controlar o ódio, lançou um grito e enfrentou a primeira serpente, brandindo Domivat, a espada mítica, cujo fio se inflamou de imediato com o fogo do dragão. O shek retrocedeu um pouco, sibilando, enfurecido, e observou a espada com ódio e desconfiança. Jack golpeou novamente, mas desta vez a criatura moveu-se depressa e afastou-se com um movimento elegante e ágil. Antes que pudesse dar-se conta, a cabeça da serpente estava quase em cima dele. Jack interpôs a espada entre ambos, consciente de que o shek tinha reconhecido a arma como obra dos dragões, os inimigos ancestrais daquelas criaturas. Mas teve de retroceder novamente, incapaz de acertar na serpente, cujo corpo se movia à velocidade do pensamento.

Os seus companheiros também estavam a ter problemas. Shail tinha criado um campo mágico de protecção em volta deles, mas as serpentes estavam a tentar atravessá-lo, e Jack sabia que não tardariam a consegui-lo. Victoria e Alexander lutavam com as suas próprias armas. O báculo da jovem não só estava mais letal do que o costume, dado que podia canalizar muito mais energia em Idhún do que na Terra, como também parecia mais eficaz do que qualquer espada, incluindo a de Alexander. Graças ao báculo, Victoria podia projectar a sua magia à distância e atacar as serpentes sem necessidade de se aproximar demasiado delas; mas Alexander encontrava-se com os mesmos problemas que Jack na hora de lutar contra aquelas formidáveis criaturas. No entanto, o combate voltara a despertar nele a fúria animal que o possuía nas noites de Lua cheia e também quando se via incapaz de a controlar. Os olhos do líder da Resistência brilhavam na escuridão, e Jack ouvia-o grunhir e via-o golpear com ferocidade e saltar de um lado para o outro com uma agilidade sobre-humana.

Enquanto isso, Allegra continuava a tentar derrubar a porta, e a sua voz soava sobre eles, serena e segura, recitando os seus conjuros mais poderosos. Mas a porta resistia.

Jack pressentiu um movimento sobre si e ergueu a espada por instinto. Ouviu um cicio furioso e cheirou-lhe a carne queimada quando o fio de Domivat alcançou o corpo escamoso de um shek. Viu-o retirar-se por um momento e sorriu satisfeito, mas, ao olhar para cima, o sorriso morreu-lhe nos lábios.

Havia dezenas de sheks. Talvez meia centena. Sobrevoavam aquele lugar em círculos, como abutres, esperando simplesmente que a Resistência se rendesse ou fosse destruída, preparados para descer até eles no caso improvável de os seus companheiros serem derrotados.

O terror invadiu o rapaz quando compreendeu que não tinham nenhuma possibilidade de vencer, e que a única saída era escapar... em direcção ao interior da torre, cujos muros os protegeriam, ou para qualquer outra parte... Jack perguntou-se, desesperado, por que razão Shail e Allegra não tinham utilizado ainda o feitiço de teletransporte. Em todo o caso, não havia nada que pudesse fazer.

- Jack! - gritou então Christian.

Jack voltou Se, como num sonho, e viu-o ali, de pé, desarmado. Tinha perdido a sua espada algum tempo antes, e negara-se a empunhar outra. Mas não parecia assustado.

- Transforma-te, Jack! - gritou-lhe Christian. - Assim não podes lutar contra eles!

Jack compreendeu. O seu interior albergava o espírito de Yandrak, o último dragão, e teoricamente podia transformar-se nele, se assim o desejasse. Teoricamente, pois ainda não o tinha conseguido. Nem uma única vez.

Lançou a Christian um olhar de dúvida.

- Fá-lo, maldição! - insistiu o shek. - Precisamos de ti!

Jack assentiu. Viu como Christian lhe virava as costas e iniciava a sua própria transformação. Apenas uns instantes depois, já não estava ali um jovem de dezassete anos, mas sim uma enorme serpente alada. Christian lançou um silvo de ira e liberdade e levantou voo para enfrentar, como shek, aqueles que antes tinham sido os seus companheiros, a sua família, a sua gente. Jack cerrou os dentes e esforçou-se por encontrar o dragão dentro de si.

Victoria correu até ele para lhe dar cobertura enquanto se concentrava. O campo de protecção de Shail continuava ali, mas começava a falhar e de vez em quando algum shek conseguia atravessá-lo. Victoria e Alexander lutavam para os fazer retroceder.

Enquanto isso, no ar, Christian tinha tudo a perder. Como shek era poderoso, mas enfrentava muitos como ele e estava em inferioridade de condições.

- Não consigo! - exclamou então Jack, desanimado. - Não sei o que tenho de fazer!

- Não te distraias, rapaz! - gritou Alexander. - Luta nem que seja com a espada!

Jack anuiu, aliviado, e dispôs-se a obedecer. Era certo que, como dragão, teria tido mais possibilidades de derrotar algum shek, mas pelo menos sabia lutar com a espada. Ouviu a voz de Allegra a soar sobre eles, mas a porta continuava sem se abrir.

- Christian! - gritou então Victoria; Jack viu o longo corpo metalizado do shek a ondular sobre eles; reconheceu-o porque era o único que lutava contra os outros. - Volta! Anda cá!

Jack duvidava que Christian pudesse tê-la ouvido; mas, de alguma maneira, fê-lo, dado que parou no ar e desceu em voo picado, esquivando-se de duas serpentes que se abateram sobre ele. Quando pousou junto a Victoria, Jack viu que estava ferido.

A rapariga correu para ele e trepou para o seu dorso.

- Victoria! - chamou Jack, perplexo. - O que estás a fazer?

Ela não respondeu. Jack viu, impotente, como Christian levantava voo novamente, levando Victoria no dorso. Viu-a lutar no ar, com a extremidade do báculo iluminado como uma estrela. Era uma imagem bela, mas aterradora, a jovem do báculo resplandecente, como uma heroína das lendas, no dorso da serpente alada. Christian e Victoria. Lutando juntos, voando juntos.

Jack percebeu então quão era sólido e real o vínculo que os unia a ambos e intuiu o quanto deveria ter custado ao Necromante forçar Christian a atraiçoar Victoria. De certeza que pusera em jogo todo o seu poder; no entanto, aí estava o shek, filho de Ashran, a lutar com a Resistência... apenas para proteger Victoria.

Jack sentiu-se pequeno e insignificante comparado com eles e pela primeira vez desejou, ardentemente e de todo o coração, poder transformar-se num dragão.

Mas continuava sem o conseguir.

Vários metros acima deles, Victoria sentia-se imersa num sonho estranho. Por um lado, a presença das serpentes aladas aterrorizava-a; por outro, voar sobre o dorso de Christian era uma experiência única, mágica, e lamentava não poder desfrutar dela.

Deu-se conta de que alguns dos sheks tinham abandonado a luta contra os outros membros da Resistência e voavam agora atrás deles. Victoria percebeu o ódio intenso emitido pelos olhos de gelo daquelas criaturas formidáveis, geralmente impassíveis como rochedos.

- O que se passa com eles? - murmurou, erguendo o báculo por cima da cabeça. - Porque estão tão furiosos?

Bastou querer para que a extremidade do artefacto deixasse escapar um anel de energia que atingiu vários sheks e os fez retroceder, ciciando de dor e de fúria.

- Sou eu - respondeu Christian telepaticamente. - Consideram-me um traidor à nossa raça; cometi um crime imperdoável para os sheks, por isso querem acabar comigo. Não devia ter permitido que montasses no meu dorso. Estavas mais segura com Jack e os outros.

- Não se trata de mim - respondeu ela, quase com ferocidade. Temos de os distrair como pudermos para que Shail e a minha avó abram a porta.

- A porta não se abrirá, Victoria, e tu sabes disso.

Victoria sentiu um calafrio e apertou os calcanhares contra o corpo do shek, consciente de que ele tinha razão, de que enfrentavam um inimigo demasiado formidável e que, quase com toda a certeza, ambos morreriam ali.

Mas, se tinha de morrer, decidiu, fá-lo-ia a lutar. Para que, se existisse a mais ínfima possibilidade de os seus amigos escaparem, pudessem ter a oportunidade de se porem a salvo.

Para que ao menos Jack saísse com vida daquela loucura.

- Não vamos conseguir entrar - anunciou então Allegra. - É inútil: a minha magia não consegue nem conseguirá quebrar o selo desta porta.

Falara a meia-voz, mas Jack, que brandindo Domivat lutava contra um shek que havia ultrapassado a barreira, ouviu-a e sentiu como se as suas palavras fossem uma sentença de morte.

- Então temos de sair daqui! - rugiu Alexander, mostrando as presas; a luta tinha libertado a sua força animal e estava a meio da transformação: o rosto alongara-se, como um focinho, e estava quase completamente coberto de pêlo. As garras brandiam Sumlaris, a sua espada, como se fosse uma pena.

- Mas como? - perguntou Shail, com esforço; estava a empregar toda a sua energia para manter o campo mágico de protecção, mas começava a ficar sem forças. - Somos muitos; se nos teletransportarmos a todos, não chegaremos muito longe.

- Mas é a única saída - disse Allegra.

Ouviram então um grito de agonia, e Jack ergueu os olhos precisamente para ver Christian retorcer-se de dor no ar, enquanto Victoria tentava manter-se firme sobre o seu dorso. Não havia nada a atacar o shek, pelo menos aparentemente, no entanto, a criatura parecia estar a sofrer uma terrível agonia. Jack compreendeu que os outros sheks tinham conseguido ultrapassar as suas defesas mentais e estavam a submetê-lo a um ataque telepático.

- Christian, desce daí! - gritou Jack, temendo sobretudo pela segurança de Victoria. Ainda não tinha a certeza se gostava suficientemente do shek para chegar a lamentar a sua morte, se esta viesse a acontecer.

Christian tentou. Esquivou-se como pôde das serpentes que se abatiam sobre ele e desceu num voo instável. Victoria esforçava-se por manter o equilíbrio, mas não tinha abandonado a luta. Jack viu como a ponta do báculo que segurava se iluminava de novo e ouviu o grito de uma das serpentes, que fora atingida pela energia gerada pelo artefacto.

Mas Christian não conseguia manter o voo. Jack viu-o precipitar-se no mar, embater na crista de uma onda, desaparecer debaixo das águas, e gritou:

- Victoria!

Algo se incendiou no seu interior, como um vulcão em erupção, como uma estrela a ponto de rebentar, e sentiu que o dragão desejava ser libertado, para lutar contra os sheks e resgatar Victoria. Correu até à beira do planalto, mas teve de parar porque dois sheks lhe cortaram a passagem. Jack ergueu Domivat, furioso, e lançou uma estocada que deixou escapar uma labareda violenta. Não atingiu nenhuma das serpentes, mas fê-las retroceder um pouco.

Depois, sentiu-se estranhamente vazio, e compreendeu que tinha canalizado demasiada energia através da espada. E soube que já não teria forças para despertar o dragão no seu interior.

Naquele momento, viu Christian emergir da água coroada de espuma e abrir novamente as suas asas sob a luz das três luas. Victoria continuava sobre o seu dorso; parecia estar bem. Jack golpeou outra vez, fez os sheks retrocederem um pouco mais e então viu que Alexander vinha cobrir-lhe a retirada. Os dois recuaram em direcção à torre.

Quando, por fim, Christian aterrou ruidosamente junto deles, ainda com Victoria bem segura entre as suas asas, Allegra já estava a preparar-se para os teletransportar a todo; para longe dali, enquanto Shail se esforçava, mais do que nunca, por manter activa a protecção mágica.

A voz telepática de Christian ouviu-se nas mentes de todos.

- Não podem levar-nos a todos. Allegra, leva Jack e Victoria para um lugar seguro.

- Não! - gritou Jack, voltando-se para ele. - Vamos todos.

- O shek tem razão - grunhiu Alexander. - Se a magia não pode salvar-nos a todos, é melhor irem vocês os dois. A profecia...

- Para o diabo com a profecia! - gritou Jack. - Não vou deixar os meus amigos para trás!

- E vais deixar Victoria morrer?

Jack voltou-se para responder à pergunta de Christian, que se transformara novamente em humano e o olhava com seriedade. Mas não foi capaz de encontrar uma resposta adequada à questão.

- Vamos todos - declarou Victoria com firmeza, afastando o cabelo molhado da testa.

Avançou até ficar junto de Allegra e pegou-lhe na mão, enquanto a extremidade do seu báculo palpitava como um coração cheio de energia. A feiticeira compreendeu e absorveu a magia que Victoria lhe proporcionava.

- Agora! - gritou Shail. - Apressem-se!

Jack e Alexander correram para Allegra e Victoria. Jack voltou atrás para ajudar Christian, que coxeava. As serpentes ciciaram, furiosas, ao compreender as suas intenções. Jack percebeu na sua mente os ataques desesperados das criaturas, que sabiam que as suas presas estavam a procurar escapar, mas a barreira ainda os protegia. Ainda assim, o rapaz olhou para Shail, sozinho diante dos sheks, mantendo a protecção mágica até ao fim, e pressentiu o que ia acontecer segundos antes de o feiticeiro dar meia-volta e desatar a correr na direcção deles a toda a velocidade.

A barreira desfez-se, e os sheks abateram-se sobre ele.

- Shail!! - gritou Victoria, ao ver que ele tinha ficado para trás. Allegra iniciava já o feitiço de tele transpor te.

Foi tudo muito rápido. Jack, Christian, Victoria e Alexander tinham-se agarrado a ela, pois tinham de estar em contacto físico com a feiticeira para que o conjuro também os transportasse a eles. Mas não podiam afastar os olhos do jovem feiticeiro que corria na sua direcção, e viram como a primeira das serpentes se lançava sobre ele e conseguia prender a sua perna entre as suas presas letais. Shail gritou e caiu estatelado no chão. Victoria libertou-se do contacto de Allegra e procurou correr até ele, mas Jack impediu-a segurando-a pelo braço quando já se afastava deles, e Allegra agarrou a mão do rapaz no último momento. Victoria não se rendeu e estendeu o báculo para o seu companheiro caído. Shail conseguiu agarrar a vara precisamente quando o shek já retrocedia, arrastando-o consigo.

Naquele momento, Allegra finalizou o conjuro, e a Resistência desapareceu dali.

 

                     REFUGIO

lack chocou aparatosamente contra o chão. O seu instinto disse-lhe que havia perigo, e levantou-se rapidamente, ignorando a dor surda nas suas costelas.

O feitiço de Allegra tinha-os levado a todos para longe da Torre de Kazlunn.

A todos. Incluindo o shek que se agarrara à perna de Shail e que agora tinha soltado a sua presa para se erguer sobre eles, ameaçadoramente.

Jack não esteve com meias medidas. Brandiu Domivat e, aproveitando que a serpente tinha o olhar fixo em Christian, que, tenso, a observava com cautela, desferiu um golpe, com toda a sua raiva, sobre o corpo escamoso da criatura, que sibilou de dor.

A Resistência em peso apareceu para apoiar Jack, e com uma força nascida do desespero conseguiram por fim acabar com o enorme réptil. Todos suspiraram aliviados, e Jack fechou os olhos e sorriu interiormente. Algo dentro de si sentira muito prazer com a morte daquele shek. Mas, por alguma razão, não lhe pareceu correcto exteriorizar os seus sentimentos. Uma parte de si horrorizava-se por a morte de outro ser lhe produzir tanta satisfação; ainda que esse outro fosse um shek.

Christian tinha permanecido à margem, sem intervir na luta; e, quando o corpo morto do shek caiu aos seus pés, ficou a olhá-lo, pensativo, com uma expressão indecifrável.

Victoria pressentiu o que lhe passava pela mente. Deteve-se junto dele e colocou uma mão sobre o seu ombro.

- Lamento - sussurrou.

- Não faz mal - respondeu ele, encolhendo os ombros. - Tenho de me ir acostumando a isto.

Mas tinha visto Jack a enterrar a sua espada de fogo no coração do shek, e ambos sabiam que, embora Christian entendesse e aprovasse aquela atitude, o seu instinto impelia-o a enfrentar o rapaz, o dragão, o seu inimigo, para defender a serpente. E o instinto era algo muito difícil de reprimir.

Jack também notara o olhar que Christian lhe lançara. Ao passar junto dele, ainda com a espada desembainhada, fitou-o nos olhos, como que a desafiá-lo a fazer algum comentário. Mas Christian não disse nada, e Jack também não sentiu ódio no seu olhar. Apenas... uma profunda e sincera compreensão que não era própria dele e que deixou Jack surpreendido e confuso.

Victoria inclinara-se junto a Shail, preocupada com a ferida na sua perna. O jovem feiticeiro tinha perdido a consciência e delirava, como se tivesse sido atacado por uma febre particularmente virulenta.

- Veneno shek - disse Christian em tom neutro. - Terá sorte se escapar com vida.

- Surpreende-me que não seja um veneno de efeito instantâneo comentou Jack, com um sarcasmo que pretendia disfarçar a sua raiva e impotência.

Christian lançou-lhe um olhar rápido.

- É instantâneo - disse. - A magia de Victoria protegeu-o de uma morte imediata, mas, se não receber tratamento, não tardará a morrer.

- Onde estamos? - perguntou Victoria, angustiada, olhando em volta à procura de um refúgio.

- Nos limites de Shur-Ikail - respondeu Alexander, com ar furioso.

- Não muito longe da Torre de Kazlunn.

Apontou numa determinada direcção, e os seus companheiros viram, na vasta planície púrpura onde haviam chegado, um fino pinaculo recortado ao longe, no horizonte.

Allegra moveu a cabeça, com um suspiro.

- Não consegui levar-vos mais longe. Lamento.

- Não importa - disse Jack. - Pelo menos afastámo-nos deles.

- Não por muito tempo - interveio Christian, sombrio. - Devem ter detectado a morte deste shek. Sabem onde estamos e é uma questão de tempo até nos alcançarem.

- Pouco tempo - assentiu Alexander, que ia, lentamente, recuperando a sua fisionomia humana. - Não estamos em condições de avançar muito depressa.

- Avançar para onde? - perguntou Victoria de imediato. - A Torre de Kazlunn foi conquistada por Ashran. Era o único refúgio com que podíamos contar. - Ergueu os olhos e acrescentou: - Porque não voltamos atrás, para Limbhad?

Alexander ia responder, mas Christian adiantou-se:

- Não podemos. Já tentei, procurei abrir a Porta interdimensional quando os sheks nos rodearam ao pé da torre, mas não consegui.

- Porquê? - perguntou Jack, inquieto perante a possibilidade de ter ficado preso naquele mundo.

- Porque Ashran bloqueou a Porta, incluindo para ti - interveio Allegra, olhando para Christian. - Não é assim?

O jovem assentiu, sombrio.

- Deixou-nos voltar porque sabe que, sem mim, não tem nenhuma possibilidade de acabar com a Resistência na Terra. Não pode enviar sheks através da Porta e demoraria anos a criar outro híbrido como eu. Mas, agora que estamos em Idhún, um mundo que ele controla totalmente, não quer deixar-nos escapar.

- Então, não nos resta sítio nenhum para onde ir - murmurou Jack.

- Resta o bosque de Awa - disse Christian a meia-voz. Allegra concordou.

- O bosque de Awa ainda resiste - disse, fechando os olhos por um momento.

-Posso sentir que a minha gente me chama de lá.

- O bosque de Awa fica demasiado longe - objectou Alexander, franzindo o sobrolho.

- Eu sei disso. Mas que outra opção temos?

- Vanissar, o reino do meu pai, é muito mais próximo. Talvez lá...

- Vanissar não é um lugar seguro para Victoria - cortou Christian, taxativamente.

Para ele, tudo se reduzia àquilo: proteger Victoria. Jack pensou que Christian poderia ver morrer todos os membros da Resistência sem o lamentar nem um bocadinho, desde que a rapariga estivesse a salvo.

Victoria, alheia à discussão que os seus companheiros mantinham, esforçava-se por utilizar a sua magia curativa em Shail.

- Não consigo - disse por fim, desanimada. - Consegui paralisar a acção do veneno, mas não pude fazê-lo desaparecer. Estou demasiado cansada. Não sei se Shail aguentará a viagem - acrescentou com um nó na garganta.

Christian, Allegra e Alexander trocaram um olhar casual. Jack notou que duvidavam que Shail fosse sobreviver à terrível ferida infligida pela serpente, mas não queriam dizê-lo em voz alta. E, apesar do cansaço, algo dentro de si rebelou-se ante a ideia de se render tão depressa.

- Temos de tentar - disse. - Temos de lutar até ao fim. Quanto mais depressa nos metermos a caminho, mais depressa chegaremos... a Vanissar ou ao bosque de Awa, tanto faz. O importante é afastarmo-nos daqui.

Alexander olhou-o por um momento, mas finalmente assentiu.

Começaram a caminhar para oriente. Jack e Alexander carregavam Shail, mas avançavam muito lentamente, e até Jack compreendeu logo que não conseguiriam escapar. Sobretudo porque, atrás deles, o horizonte começava a cobrir-se de longas silhuetas ameaçadoras.

Os sheks perseguiam-nos e não tardariam a alcançá-los. Jack sabia-o, mas simplesmente não podia render-se, não podia parar, apesar de estar esgotado e esperar a morte. De modo que continuava a caminhar, enquanto as sombras no horizonte se tornavam maiores.

Christian e Victoria avançavam atrás deles. Christian ainda coxeava e às vezes tinha de se apoiar um pouco em Victoria para poder andar. Jack evitava voltar a cabeça para trás para olhar para eles. Pressentia que a rapariga já tinha escolhido entre os dois e, infelizmente, não o escolhera a ele. Por isso, ficou surpreendido quando Victoria apressou o passo para se colocar junto dele e lhe pegou na mão que tinha livre. Jack fitou-a, algo perplexo. Victoria devolveu-lhe o olhar, como que tentando dizer-lhe algo importante, mas estavam rodeados de gente e aquele não parecia ser o momento mais oportuno. Contudo, a sombra das asas dos sheks cobria o horizonte, o que significava que, provavelmente, não haveria outro momento para eles. Nunca mais.

Alexander olhou rapidamente para trás e disse:

- Não podemos continuar assim. Não tardarão a alcançar-nos. Temos de dar a cara e lutar, porque...

- É melhor do que virar-lhes as costas - completou Jack com um sorriso.

Os membros da Resistência entreolharam-se. Sabiam o que isso significava. Se continuassem a andar, os sheks iriam alcançá-los e matá-los. Se parassem para lutar, os sheks acabariam de qualquer forma por matá-los. O que quer que fizessem, tinha chegado o fim para eles.

- É melhor do que virar-lhes as costas - repetiu Victoria, erguendo a cabeça com orgulho.

Os demais assentiram, sombrios. Sabiam que aquela batalha seria a última, mas estavam dispostos a travá-la. Assim, prepararam as armas e esperaram os seus inimigos, e, quando os sheks se abateram sobre eles, as mãos de Jack e Victoria procuraram-se e estreitaram-se com força, quiçá pela última vez.

Victoria ergueu o báculo, pronta para lutar. Os seus olhos detiveram-se por um momento em Christian, que aguardava um pouco mais longe, com o olhar fixo nos sheks que desciam sobre eles. O jovem percebeu o seu olhar e voltou-se para ela.

- Lamento muito, Christian - pensou Victoria. - A culpa é minha. Ele captou aquele pensamento e sorriu-lhe.

- Fui eu quem tomou a decisão de atraiçoar os meus, Victoria - respondeu telepaticamente. - E estou aqui porque assim o quis.

O coração de Victoria apertou-se. Por Jack, por Christian, por Shail, Allegra e Alexander, e por ela mesma. E ergueu o báculo, disposta a morrer a lutar.

Mas Christian semicerrou os olhos, ergueu a cabeça, como que a escutar algo que só ele pudesse ouvir, e voltou-se para este, onde apareciam as primeiras luzes da aurora.

- Ali! - exclamou.

Os seus companheiros olharam na direcção que ele indicava e viram algumas formas douradas que voavam na sua direcção. Os olhos de Allegra encheram-se de lágrimas.

- Estamos salvos - disse somente.

Os momentos seguintes foram muito confusos. Victoria apenas se lembraria de que a feiticeira os tinha reunido a todos em volta dela para realizar, uma vez mais, o feitiço de teletransporte. Não chegariam muito longe, e noutras circunstâncias teria servido unicamente para atrasar mais uns minutos o confronto com os sheks; mas a salvação aproximava-se, vinda da linha da aurora, e, se tinham uma oportunidade de a alcançar, deviam aproveitá-la.

Victoria fez funcionar o báculo, forçando-o a extrair toda a magia possível do ambiente, e ela e Allegra combinaram os seus poderes para arrastar a Resistência para o mais longe possível, em direcção a este. A jovem lembrar-se-ia de ter tido tonturas, de ter sentido que as forças a abandonavam, de se ter materializado um pouco mais longe, talvez a um quilómetro ou dois, e de umas fortes garras que a agarraram com força e a levantaram no ar. Victoria viu que o chão se afastava dela... e perdeu os sentidos.

Quando acordou, voava no dorso de um enorme pássaro dourado. Atrás dela estava Jack, segurando-a entre os braços, o que impediu a rapariga de cair com o susto de se ver naquela situação. Demorou um pouco a situar-se; quando o fez, voltou-se para olhar para o amigo.

- Jack? O que aconteceu?

O rapaz olhou para ela, sorridente, apesar do cansaço que se adivinhava nas suas feições. O vento revolvia o seu cabelo loiro, e era evidente que Jack adorava aquela sensação.

- Voámos para longe da torre. Vieram resgatar-nos, e deixámos os sheks para trás. Vê.

Victoria olhou em volta. Tinha visto aqueles pássaros dourados antes, semanas atrás, quando os feiticeiros idhunitas tinham tentado resgatá-la do Necromante na Torre de Drackwen. Agora havia cerca de uma dúzia daquelas aves, montadas por feiticeiros de raças diferentes. O pássaro que Allegra e Alexander montavam voava perto deles, e Victoria descobriu, um pouco mais além, a ave que Christian cavalgava, completamente só.

- Onde está Shail? - perguntou, inquieta, recordando que o seu amigo se debatia entre a vida e a morte.

- Ali, olha. Vai montado no pássaro que guia o bando. Victoria esticou o pescoço para olhar para a frente, e Jack instou a

montada a voar um pouco mais depressa, para chegar mais perto do primeiro pássaro. Victoria viu então Shail, mortalmente pálido, inconsciente, nos braços da pessoa que guiava a ave e que vestia uma túnica verde e prateada. O cavaleiro detectou a sua presença, porque se voltou para olhar para eles, e Victoria viu que se tratava de uma mulher cuja pele era de um azul-celeste suave e cujo crânio, ligeiramente alongado, não tinha cabelo. Os seus olhos, de um violeta muito intenso, cravaram-se em Victoria por breves instantes e depois desceram para o rosto inerte de Shail. A jovem não sabia quem ela era, mas soube, de alguma maneira, que o seu amigo estava em boas mãos.

Voltaram a ficar um pouco mais para trás, e Jack respondeu à pergunta muda de Victoria:

- Ela guiou os feiticeiros até aqui. Imagino que é uma feiticeira importante.

- Não, não é uma feiticeira - negou Victoria, que estudara os costumes dos diferentes povos idhunitas com mais interesse do que Jack. É uma sacerdotisa, e, pelas cores da sua túnica, creio que serve Wina, a deusa da terra.

- Uma sacerdotisa celeste? Pensava que o deus dos celestes era Yohavir, o Senhor dos Ventos, não?

- Sim, mas Yohavir pertence à tríada dos deuses, e as mulheres não podem entrar como sacerdotisas na Igreja dos Três Sóis.

Enquanto falava, Victoria procurou novamente Christian com o olhar. Percebeu que o pássaro dourado que montava não parecia muito satisfeito com o cavaleiro que lhe calhara, mas não se atrevia a desobedecer-lhe. A rapariga estremeceu; a ave adivinhara que carregava um shek, um dos seus inimigos. Pela primeira vez perguntou-se o que aconteceria quando os feiticeiros, especialmente os sacerdotes dos seis deuses, descobrissem a verdadeira natureza de Christian.

lack apercebera-se de que Victoria estava a olhar para Christian e, uma vez mais, sentiu-se deslocado. Lembrou-se de como tentara transformar-se em dragão, sem conseguir, e quis comentá-lo com Victoria, falar-lhe das suas dúvidas, do seu medo de não estar à altura do que se esperava dele e, sobretudo, de não a merecer. Mas não disse nada. Apesar de parecer que Victoria ainda sentia algo de muito intenso por ele, no fundo Jack estava convencido de que era demasiado tarde; de que, não importava o quanto se esforçasse, Victoria acabaria por partir com Christian, mais cedo ou mais tarde. E era algo de que não queria falar com ela porque, por muito que lhe doesse, tinha razão, não devia pôr entraves no seu caminho, não devia retê-la ao seu lado contra a sua vontade.

Desviou o olhar, incomodado. Victoria notou-o.

- Jack, o que se passa? Estás bem?

- Sim - mentiu ele. - Não é nada, estou apenas um pouco cansado. A sério - insistiu, ao ver que ela não estava convencida. - Relaxa e desfruta da viagem - acrescentou com um sorriso.

Victoria anuiu, sorrindo por sua vez. Recostou-se contra Jack, cujos braços rodeavam a sua cintura, e olhou para o céu, onde brilhavam os três sóis de Idhún. Os seus nomes eram Kalinor, Evanor e Imenor, três esferas cravadas no firmamento como jóias refulgentes. O maior, Kalinor, era uma enorme bola vermelha quase o dobro do tamanho do Sol que iluminava a Terra. Evanor e Imenor eram estrelas gémeas, brancas, e situavam-se sob o sol vermelho, de modo que os três formavam um triângulo no qual Kalinor ocupava o extremo superior.

- Dá calor só de olhar para eles - opinou Victoria, sobressaltada.

- Como é que não nos esturricamos todos?

Jack contemplou os sóis, pensativo.

- Não sei muito destas coisas - reconheceu -, mas o sol maior parece uma estrela velha. Li num sítio qualquer que as estrelas se tornam grandes e vermelhas quando envelhecem, e, precisamente por isso, aquecem menos. Ou pode ser que estejam mais longe do que pensamos, quem sabe? Ou talvez seja devido à composição da atmosfera. Talvez proteja o planeta dos raios solares com mais eficácia do que a atmosfera da Terra.

- O ar é mais... pesado - assentiu Victoria. - Não sei o que é. De qualquer forma... agrada-me. Não sei como explicá-lo. Cheira muito bem.

Jack sorriu.

- Respira-se muito bem - admitiu. - É como se cada baforada que desses te "alimentasse", como se te enchesse por dentro. É esquisito, não é?

- Achas que Idhún gira em volta de um dos três sóis? - perguntou Victoria. - Ou em volta dos três ao mesmo tempo?

- Se não fosse assim, nunca ficaria de noite, não te parece? Victoria ergueu a cabeça para os astros, com ar sonhador.

- Talvez não faça sentido tentar aplicar a este lugar as leis do universo que conhecemos - comentou. - Talvez, ao atravessar a Porta, cheguemos não apenas a outro mundo, mas sim, também, a outra realidade, outro universo. Não achas?

Jack sorriu.

- Sinceramente, intrigam-me mais outras coisas, como o mistério de um espírito se introduzir num corpo que não é o seu e fazê-lo mudar fisicamente para o adaptar à sua verdadeira essência. Por exemplo, o teu corpo humano pode transformar-se no corpo de um unicórnio. Isso não contradiz todas as leis físicas?

- Suponho que sim - sorriu Victoria.

Segura entre os braços de Jack, atreveu-se a debruçar-se um pouco para contemplar a paisagem.

Sobrevoavam uma imensa planície encaixada entre dois sistemas montanhosos: a norte, uma ciclópica cordilheira cinzenta cujos altos picos cobertos de neve surgiam envoltos em turbulentas nuvens violáceas; a sul, via-se uma cadeia de montanhas pardas e de caprichosas formas, que se elevavam em direcção ao céu como os pináculos de um gigantesco palácio. Entre ambas corria um rio que regava uma terra fértil salpicada de povoações, pequenos bosques e campos de cultivo.

- Nandelt - disse Victoria, recordando os mapas que tinha visto em Limbhad. - A terra dos humanos. Vamos para Vanissar?

Jack encolheu os ombros, mas foi Victoria quem respondeu à sua própria pergunta:

- Não, olha para aquilo! Isto não pode ser Nandelt!

Jack olhou na direcção indicada e viu uma grande massa esverdeada no horizonte, envolta numa bruma misteriosa. Parecia um enorme bosque, e o bando dirigia-se para lá.

- Não pode ser o bosque de Awa? - perguntou, sem entender a estranheza da sua amiga.

Victoria negou com a cabeça.

- Se bem me lembro, o bosque de Awa está muito longe da Torre de Kazlunn. Não podemos ter atravessado Nandelt tão depressa. Mesmo a voar, seriam precisos vários dias para o alcançar.

Jack sorriu longamente.

- Claro, não deste por isso porque estavas a dormir. Os feiticeiros fizeram-nos avançar mais depressa graças ao teletransporte. Não puderam levar-nos até ao nosso destino, mas encurtaram a viagem. Caso contrário, não teríamos conseguido deixar os sheks para trás.

Victoria assentiu, mas não disse nada. Ambos contemplaram, surpreendidos, a paisagem do bosque, que se abria diante deles, selvagem e magnífico. Repararam de imediato que, ainda que se apresentasse de longe como uma linha verde difusa, na realidade, o bosque de Awa era uma surpreendente explosão de cores. Tudo ali parecia enorme e, ao mesmo tempo, delicado como cristal. Havia árvores cujas copas adoptavam formas estranhas: árvores em bico, árvores em espiral, árvores entrelaçadas umas nas outras como um brilhante tecido multicolor, árvores de folhas tão grandes que um dragão poderia ter pousado nelas. E havia imensas flores, flores do tamanho de árvores, flores mais pequenas que se agrupavam formando cachos que de longe se assemelhavam a uma única flor, flores que se abriam como sombrinhas, flores que pareciam ouriços, flores esponjosas, flores de todas as cores - brancas, azuis, vermelhas, violetas, alaranjadas, cor de jade - e até mesmo flores transparentes como a água. Havia cascatas de plantas semelhantes a trepadeiras que caíam das árvores mais altas, montes de musgo estendidos entre os ramos sombrios. Havia colónias de fungos do tamanho de homens, tão extensas que se distinguiam claramente do ar e de tal variedade policromática que magoava a vista. E havia torrentes de águas cristalinas, cascatas que se adivinhavam entre a exuberante folhagem e cujo ruído chegava até eles como uma refrescante promessa de vida nova.

Os pássaros iniciaram a manobra de descida, e Jack e Victoria seguraram-se com força às penas da ave para não cair. Jack chegou a ver algo que se elevava das árvores como uma fonte de água dourada e percebeu que o bando mudava o rumo para se dirigir para ali, pelo que deduziu que se tratava de uma espécie de sinal. Ao aproximar-se mais, viu que era na realidade um jorro de pó dourado, pólen talvez, que se erguia em direcção às alturas. Mas, sim, era um sinal, porque o primeiro pássaro, com um grasnado, mergulhou entre as copas das árvores, precisamente no lugar indicado. "É por aqui que temos de entrar", compreendeu Jack. De imediato, todas as aves seguiram a primeira, mergulhando no bosque. Pareceu a Jack e Victoria que desciam durante muito tempo entre a folhagem das árvores, e por mais de uma vez tiveram de se apertar contra o dorso da ave para não serem derrubados pelos ramos. Parecia impossível que o bando encontrasse falhas para atravessar aquele labirinto vegetal e, no entanto, estavam a fazê-lo com uma facilidade surpreendente. Minutos depois, aterraram numa clareira do bosque que se abria junto a um ribeiro.

Jack saltou do dorso do pássaro, ainda sorrindo exultante após o voo, e estendeu a mão a Victoria para a ajudar a descer. Quando ela o fez, ambos olharam à volta e ficaram surpreendidos.

Várias dezenas de pessoas tinham-se reunido em torno deles e observavam-nos num silêncio sepulcral, quase com adoração. Havia humanos entre eles, mas também fadas, celestes, silfos, gnomos, duendes, vários yan, os habitantes do deserto, e dois varu, a raça anfíbia, que os observavam do rio, com as suas cabeças escamosas fora da água. Muitos deles eram feiticeiros, pois vestiam túnicas bordadas com símbolos místicos e adornavam-se com diversas pedrarias; mas alguns eram também sacerdotes, como a mulher celeste que tinha organizado o seu resgate, e havia também um grupo de guerreiros e mercenários. Todavia, Jack viu muitos outros que pareciam, simplesmente, refugiados: camponeses, lavradores, mercadores ou artesãos, que tinham fugido das suas terras, com medo dos sheks, para se esconderem no bosque de Awa.

Então, três personagens adiantaram-se e detiveram-se diante deles: um feiticeiro humano e dois sacerdotes, um celeste e uma varu. Ambos tinham diademas dourados a cingir-lhes as têmporas. Jack e Victoria perceberam de imediato que se tratava de gente importante, porque se moviam com autoridade e certa majestade, e porque toda a gente parecia estar a conter a respiração, à espera de que falassem. Jack apercebeu-se de que até Alexander, que em Idhún era o príncipe herdeiro de um grande reino, tinha baixado a cabeça ante eles. Mudou o peso do corpo de uma perna para a outra, incomodado. O feiticeiro olhava-os fixamente; era de meia-idade e usava o cabelo, de uma estranha cor verde-azulada, preso numa longa trança atrás da cabeça. Os seus olhos escuros pareciam ter visto muito e observavam-nos com alguma suspeita.

- São vocês aqueles de quem fala a profecia? - perguntou com alguma brusquidão.

Jack não soube o que dizer. Victoria adiantou-se uns passos, segurando o Báculo de Ayshel, e respondeu com suavidade:

- Sou Lunnaris, o último unicórnio.

Houve murmúrios entre os presentes. Jack respirou fundo antes de dizer - Eu... sou Yandrak.

Não acrescentou mais. Não era necessário. No seu nome autêntico já estava implícita a sua condição, a sua verdadeira identidade.

Os murmúrios aumentaram de intensidade. O feiticeiro assentiu, mas não disse nada. Foi a sacerdotisa varu quem tomou a palavra:

- Bem-vindos ao bosque de Awa, Yandrak e Lunnaris - disse nas mentes de todos, pois os varu, como os sheks, não tinham cordas vocais e comunicavam por telepatia. - O meu nome é Gaedalu, Venerável Mãe da Igreja das Três Luas. Comigo estão Qaydar, o Arquifeiticeiro, e o Venerável Ha-Din, Pai da Igreja dos Três Sóis.

Victoria engoliu em seco e trocou um olhar rápido com Jack. A expressão dele indicou-lhe que tinha compreendido o que estava a acontecer. A Ordem Mágica e as duas Igrejas eram os três poderes que tinham governado Idhún, acima de reis, príncipes e nobres... até à chegada de Ashran e dos sheks. E os seus líderes estavam ali, diante deles. Jack e Victoria chegavam a Idhún como os salvadores anunciados pela profecia, e o facto de serem recebidos por Qaydar, Ha-Din e Gaedalu era um sinal do quanto esperavam grandes coisas deles. E não era um sentimento agradável; no fim de contas, eram apenas dois adolescentes, e a sua verdadeira identidade só lhes tinha sido revelada há apenas três semanas.

- Vieram fazer cumprir a profecia? - quis saber Qaydar. Ha-Din pousou suavemente uma mão sobre o braço do seu companheiro para o tranquilizar.

- Calma, Arquifeiticeiro. Haverá tempo para falar da profecia... depois. Estes jovens acabam de chegar de uma longa viagem e escaparam à morte há apenas umas horas. Decerto estarão cansados.

O Arquifeiticeiro pareceu relaxar um pouco.

- Tens razão, Pai Venerável - disse. - Perdoem a minha rudeza, jovens. Foi somente há cinco dias que a Torre de Kazlunn caiu, e ainda não nos recuperámos do golpe que isso foi para nós. Já tínhamos perdido toda a esperança.

- Também falaremos disso mais tarde. Devemos atender os nossos convidados.

Os seus olhos violáceos pousaram no grupo de recém-chegados... e, de repente, a sua expressão aprazível congelou-se num semblante severo que não parecia habitual nele.

- Tu - disse apenas.

Victoria sabia a quem se referia mesmo antes de se voltar e encontrar o olhar de Ha-Din cravado em Christian. O jovem não disse nada, nem fez o menor gesto. Limitou-se a devolver o olhar, impassível.

- És um shek - concluiu o Pai a meia-voz.

Ouviram-se novos murmúrios entre a multidão e algumas exclamações surdas. Vários guerreiros avançaram com a intenção de atacar Christian, mas Ha-Din ergueu a mão, pedindo silêncio, e todos lhe obedeceram.

- Sou um shek - admitiu Christian. Mas não disse mais nada. O Arquifeiticeiro voltou-se para os recém-chegados, irritado:

- Como se atreveram a trazer uma criatura destas ao bosque de Awa?

- Ele não... - começou Victoria, mas o pensamento de Gaedalu inundou as mentes de todos, e não admitia ser ignorado:

- Este era o último lugar seguro para nós! Agora que os sheks conseguiram entrar nele, nada poderá salvar-nos. Nem sequer a profecia.

- Não, esperem! - gritou Victoria, ao ver que as palavras de Qaydar e Gaedalu começavam a sublevar a multidão. - Ele não é como os outros. Ajudou-nos a chegar até aqui. Ouçam-me todos! Christian é dos nossos. Salvou-me... a vida em várias ocasiões - concluiu em voz baixa. - Os outros sheks consideram-no um traidor por isso.

Ha-Din avançou para ela e fitou-a nos olhos. Victoria susteve o seu olhar, decidida e serena, esperando talvez uma sondagem telepática ou algo parecido, porque não tinha dúvida de que o celeste estava a tentar descobrir se dizia a verdade. Mas não notou nenhuma intrusão na sua mente. No entanto, o Pai concluiu o seu exame anunciando em voz alta:

- É verdade o que diz. E não devemos esquecer que a profecia também falava de um shek.

Gaedalu assentiu, de má vontade. O Pai aproximou-se então de Christian, que não se mexeu.

- Estás connosco, rapaz?

- Estou com ela - respondeu o jovem, indicando Victoria com um gesto. - Se isso implica estar convosco, então, sim, estou.

Ouviram-se novos murmúrios, alguns indignados e até mesmo escandalizados. Jack percebeu logo o que estava a acontecer e quis advertir Victoria, mas não tinha maneira de o fazer sem ser ouvido por Qaydar e Gaedalu, que continuavam junto deles.

- A mim, isso me basta - anunciou Ha-Din.

- A mim, não - disse Gaedalu. - Recordaste-nos a profecia, Ha-Din, e se é verdade que este jovem é o shek de quem falaram os Oráculos, então o seu papel já se cumpriu.

Seria ignóbil da nossa parte executá-lo, é certo, was também seria uma loucura acolhê-lo entre nós. Já não precisamos dele, e duvido que tenha deixado de ser o que é.

- O shek deve partir - concluiu o Arquifeiticeiro.

- Mas não pode partir! - gritou Victoria, para se fazer ouvir sobre o povo. - De qualquer maneira, se o expulsarmos daqui, estaremos a condená-lo à morte! Os outros sheks matá-lo-ão!

Ouviram-se exclamações que pediam a morte para Christian.

Gaedalu negou com a cabeça; o semblante de Qaydar continuava de pedra. Victoria voltou-se para os seus amigos, procurando apoio, mas nem Allegra nem Alexander pareciam dispostos a contrariar os líderes do seu mundo.

- Não posso acreditar - murmurou a rapariga, exasperada.

- Victoria, espera - chamou Jack, mas ela não o ouviu. Plantou-se diante de Christian, ergueu a cabeça com orgulho e declarou:

- Se ele for, eu também vou.

De imediato, reinou um silêncio sepulcral na clareira.

- Isso não está certo, rapariga - murmurou o Pai, movendo a cabeça com tristeza.

Victoria mordeu o lábio inferior. Sabia que não podia pedir àquela gente que confiasse num shek, quando estavam há mais de uma década submetidos àquelas criaturas. E também sabia que não devia ameaçar arrebatar-lhes a sua única esperança de salvação.

Mas não viraria as costas a Christian. Não, depois de tudo o que tinha sucedido.

- Vá para onde for, irei com ele - disse com suavidade, mas com firmeza. - E se o enviarem para a morte, eu acompanhá-lo-ei.

Para sua surpresa, viu como alguns pareciam decepcionados, horrorizados e até mesmo furiosos com as suas palavras.

A Mãe avançou na sua direcção e lançou-lhe um olhar frio.

- Nunca pensei que um unicórnio pudesse agir desta maneira.

Jack fechou os olhos por um momento, respirou fundo e deu um passo em frente.

- E se eles forem, eu também vou - declarou em voz alta. Todos o fitaram, incrédulos, mas Jack manteve-se firme.

Victoria lançou-lhe um olhar de agradecimento. "Não o faço por ele, estou a fazê-lo por ti", quis dizer-lhe Jack. Aquela gente tinha-a esperado como a heroína da profecia, a que os salvaria de Ashran e dos sheks. Nunca aceitariam a simples possibilidade de que Lunnaris se tivesse apaixonado por um shek; e mais, a simples ideia seria repugnante para eles, Jack nem queria imaginar como poderiam reagir os mais extremistas. No entanto, se ele interviesse, se falasse a favor de Christian... afastaria deles a suspeita de que existia uma relação especial entre Victoria e o shek. Ou, pelo menos, assim esperava.

Mas teria de o explicar a Victoria mais tarde, quando estivessem a sós.

- Passámos quinze anos no exílio - disse o rapaz, em voz alta e clara. - Sobrevivemos num mundo que não era o nosso. Este shek acrescentou, apontando Christian - traiu Ashran e os seus e foi duramente castigado por isso. Escapou de Ashran e uniu-se a nós. Permitiu-nos voltar a Idhún quando estávamos presos na Terra. Lutou ao nosso lado. Demonstrou que é um membro da Resistência.

Regressámos a Idhún com a intenção de desafiar Ashran e fazer cumprir a profecia. Chegámos a este bosque esperando encontrar apoio da vossa parte. E o que fazem?

Condenam à morte o nosso aliado!

Ouviram-se murmúrios. Mas Jack percebeu que já não olhavam para Victoria com desconfiança.

- O shek fica connosco - declarou o rapaz. - Se não estão de acordo, partiremos para situar a nossa base noutro local.

- Mas é um shek! - exclamou alguém entre a multidão.

- E eu sou um dragão - disse Jack, friamente. - O último dragão. E digo que ele deve ficar connosco.

Sentiu o olhar de gelo de Christian cravando-se na sua nuca, e perguntou-se o que pensaria ele de tudo aquilo.

- Como sabemos que és um dragão? - perguntou alguém, e vários fizeram coro com ele.

O Arquifeiticeiro ergueu uma mão para acalmar os protestos.

- É um dragão - disse. - É a criatura que enviámos através da Porta há quinze anos. Mas é mais do que isso, não é verdade? Também tens uma alma humana.

Jack não respondeu, mas susteve o olhar inquisitivo do feiticeiro.

- E o shek também não é apenas um shek - interveio Ha-Din, com suavidade. - Tenho razão?

- Sou em parte humano - admitiu Christian. Pareceu que ia acrescentar algo mais, mas pensou melhor e permaneceu calado.

- Estamos cansados e feridos - acrescentou Jack. - Escapámos à morte por muito pouco. Um dos nossos amigos está vivo por milagre e precisa urgentemente de socorro.

Vão acolher-nos... ou teremos de procurar outro lugar onde possamos descansar?

O Arquifeiticeiro e os Veneráveis entreolharam-se. Qaydar deixou cair os ombros, derrotado. A Mãe deixou escapar um leve suspiro. Também ela parecia cansada, e Jack pôde ver que a sua pele escamosa começava a fender-se, certamente por estar há demasiado tempo fora de água. Ha-Din cravou os seus olhos azuis em Jack e Victoria, e disse:

- Bem-vindos ao bosque de Awa. - Voltou-se para Christian e acrescentou, com um sorriso: - Todos vós.

O jovem agradeceu com uma leve inclinação da cabeça. Victoria respirou fundo, aliviada.

- Escaparam - disse Zeshak.

- Não esperava menos deles - sorriu Ashran. - Estão destinados a enfrentar-me. Decepcionar-me-ia muito descobrir que são fáceis de matar.

- Refugiaram-se no bosque de Awa - informou o shek.

- Não me surpreende. É o único lugar em todo o Idhún onde estariam seguros. Ou, pelo menos, é isso que pensam. - Voltou-se para o rei das serpentes. - Fizeste o que te pedi?

Como resposta, Zeshak semicerrou os olhos irisados e voltou a cabeça lentamente na direcção da porta, Uma breve ordem mental bastou para que a criatura que aguardava do outro lado entrasse na sala. Tratava-se de um szish, um dos homens-serpentes que constituíam as tropas terrestres de Ashran, e trazia um objecto alongado que depositou, com uma vénia, aos pés do shek.

- Aqui a tens - disse Zeshak com indiferença. - Completamente morta. Como pediste.

O Necromante aproximou-se para contemplar o que o szish trouxera.

- Haiass - murmurou. - É uma pena.

A magnífica espada mágica que Kirtash empunhara, que encerrava todo o poder do gelo no seu fio mortífero, agora não era mais do que uma espada vulgar. Aquele fulgor branco-azulado que a caracterizara, e que sugeria a força mística que guardava, tinha-se apagado, talvez para sempre.

Zeshak enrolara o seu longo corpo e apoiara a cabeça sobre os seus anéis, olhando Ashran com ar desinteressado, - Nunca deveria ter sido forjada - opinou. - É um erro entregar a um humano uma arma que contém o poder dos sheks e, além disso, nós não precisamos dessas ridículas espadas humanas.

- Na altura não te pareceu uma ideia assim tão má - lembrou Ashran.

Voltou-se para uma figura que aguardava em silêncio, num recanto nas sombras.

- Aproxima-te - disse-lhe.

Ela fê-lo. Era uma fada de uma beleza selvagem e perturbadora, olhos negros e um longo e suave cabelo cor de azeitona. Ashran entregou-lhe a espada, que ela aceitou com uma inclinação de cabeça.

- Já sabes o que hás-de fazer com ela, Gerde. A fada esboçou um sorriso maldoso.

- Não te falharei, meu senhor.

Zeshak observou a cena sem muito interesse. Quando Gerde abandonou a sala, levando consigo a inutilizada Haiass, comentou:

- Duvido muito que isso funcione.

- Isto é apenas o começo, amigo. A intervenção de Gerde é só a primeira parte do meu plano. Obviamente que não espero que caiam com a primeira manobra. Seria demasiado fácil. Mas esqueces um pormenor muito importante, Zeshak.

- Qual?

- O facto de que, por muito que te pese, Kirtash ainda é um shek. E já sabes o que isso significa.

Os refugiados do bosque de Awa tinham construído, com o passar dos anos, uma povoação inteira entre as raízes e os ramos mais baixos das enormes árvores que se erguiam no coração da floresta. Numa zona próxima, havia um grupo de curiosas cabanas arredondadas, feitas de um material suave, parecido com seda; quando as viu, Jack não pôde evitar pensar nos casulos em que os bichos-da-seda se envolviam para se transformar em borboletas. Naquele caso, aquelas cabanas deveriam ter sido construídas por lagartas gigantescas, do tamanho de um ser humano.

Fora para uma daquelas estranhas casas que tinham levado Shail para o curar, logo que os pássaros dourados aterraram na clareira do bosque onde a Resistência tinha

sido recebida. Victoria sabia que devia deixar as fadas curandeiras trabalhar, mas custava-lhe estar quieta na cabana que lhe tinham destinado, de modo que saiu para dar um passeio.

Encontrou Jack, Allegra e Alexander reunidos não longe dali. Qaydar e Ha-Din estavam com eles. Gaedalu tinha ido sem dúvida banhar-se.

- Os feéricos teceram um forte conjuro de protecção em volta do bosque - dizia o Pai. - É um poder que nem sequer Ashran pode anular. Aqui estivemos a salvo durante quinze anos... e espero que continuemos a estar no futuro.

- O que aconteceu à Torre de Kazlunn? - perguntou Allegra.

- Foi tudo tão repentino que nem sequer poderia explicar como ocorreu - respondeu o Arquifeiticeiro com amargura. - Os sheks atacaram-nos, e as nossas defesas mágicas caíram... Parecia que já não tinham força suficiente para resistir ao poder do Necromante. O que aconteceu, simplesmente, foi que a magia de Ashran se tornou mais forte. Sem dúvida a revitalização da Torre de Drackwen teve muito a ver com isso.

Victoria desviou o olhar, incomodada. De alguma maneira, era culpa sua. Ashran tinha-a utilizado para renovar o poder da torre, que até então tinha sido um bastião morto e abandonado. Evocar aquela experiência fez com que o estômago se contraísse de angústia, e esforçou-se por se concentrar no presente.

- Alguns feiticeiros conseguiram escapar, mas a maioria morreu no ataque. Sobretudo aprendizes. Eram os mais vulneráveis. Pensámos que destruiriam a torre, tal como tinham destruído as outras. Mas mantiveram-na de pé. Respeitaram cada pedra, e a única coisa que fizeram foi enviar esses repugnantes homens-serpentes com a missão de saqueá-la para depositar os seus tesouros aos pés de Ashran.

- Armaram-nos uma cilada - murmurou Alexander. - Por isso deixaram a torre intacta.

- As outras duas foram destruídas? - perguntou Allegra, embora já suspeitasse qual seria a resposta.

- A Torre de Awinor caiu primeiro, como já sabes. No mesmo dia da conjunção astral. A Torre de Derbhad não demorou a ter a mesma sorte - concluiu o Arquifeiticeiro após uma pausa.

Allegra semicerrou os olhos. Victoria compreendeu como se sentia. A Torre de Derbhad tinha estado a seu cargo, mas ela tinha-a abandonado pouco depois da conjunção astral para ir à Terra à procura do dragão e do unicórnio da profecia.

- Também os Oráculos foram destruídos - acrescentou Ha-Din. Os sheks não deixaram pedra sobre pedra. Apenas respeitaram, por alguma razão, o Oráculo da Clarividência, que ainda se ergue no alto dos planaltos de Gantadd.

- Sagrada Irial... - murmurou Alexander, e os seus olhos emitiram um brilho de ira.

- De resto, os sheks não provocaram demasiada destruição - prosseguiu o Pai. - Deixaram viver em paz a maior parte da população... dos reinos cujos governantes lhes juraram lealdade. Aqueles que se rebelaram contra eles receberam castigos exemplares. - Olhou para Alexander significativamente, e o jovem ergueu-se, inquieto. - Há muito que ninguém se opõe à vontade de Ashran e dos sheks. Dir-se-ia que as gentes estão a acostumar-se ao seu mando. Como já viram, não somos muitos os refugiados de Awa.

- E Vanissar? - perguntou Alexander de imediato. - O que aconteceu no reino do meu pai?

Shail dissera-lhe que tinha caído sob o governo dos sheks, mas não lhe tinha dado mais pormenores; para Alexander era óbvio que não sabia mais nada ou que então as coisas não tinham mudado muito. De qualquer forma, saber que na realidade tinham decorrido quinze anos desde a sua partida, em vez dos cinco que ele tinha contado, fora para ele um golpe que ainda estava a assimilar, e quase teria preferido não perguntar mais. Mas agora considerava que já estava preparado para saber.

- Muitos reis apareceram para lutar contra os sheks depois da invasão, príncipe Alsan. O rei Brun foi um deles. - Ha-Din fez uma pausa antes de prosseguir. - Infelizmente, morreu na batalha.

Alexander fechou os olhos por um momento. Jack colocou a mão sobre o braço do amigo, oferecendo-lhe apoio.

- A ti também te davam por desaparecido - continuou o Pai -, de modo que foi o teu irmão mais novo, Amrin, quem subiu ao trono após a morte do rei Brun.

- Ele não foi educado para governar - murmurou Alexander. - E também não estava preparado para enfrentar uma crise como esta.

- A primeira coisa que fez foi render-se aos sheks e aceitar as suas condições.

O jovem desviou o olhar.

- Não o censuro. Suponho que não podia fazer outra coisa, dadas as circunstâncias.

- A princípio, os seus súbditos recriminaram-no, mas agora encontrarás poucos que se queixem. Vanissar desfruta de paz graças a essa aliança com os sheks.

- Mas não se unirão à Resistência? As coisas mudaram; agora que o dragão e o unicórnio regressaram a Idhún, temos alguma possibilidade de vencer.

- Terás de falar com o teu irmão, rapaz. Nunca me pareceu muito disposto a ir para a guerra.

- Ou talvez não seja necessário - interveio o Arquifeiticeiro. Alsan, tu és o legítimo herdeiro do reino. Quando voltares a Vanissar, poderás reclamar o trono.

Alexander hesitou, e Jack compreendeu o seu dilema. Já não era a mesma pessoa que tinha abandonado Idhún anos antes. Um conjuro falhado tinha-o transformado numa criatura semianimal, e o seu lado selvagem por vezes ainda aflorava. Há algum tempo que o jovem tinha abandonado a ideia de um dia ser rei de Vanissar, simplesmente porque não-se via digno disso. Não importava o quanto Jack insistisse que ele era digno daquilo e de muito mais, Alexander sentia que não podia apresentar-se como príncipe naquele estado.

Naquele momento chegou um pequeno silfo a voar. Parou diante deles a arquejar, indeciso. Por um lado, parecia que trazia notícias urgentes; mas, por outro, temia interromper a conversa e sentia-se coibido ante a presença do Arquifeiticeiro, dos Veneráveis, do príncipe de Vanissar e, obviamente, dos heróis da profecia.

- Fala - disse o Pai com amabilidade. - Quem vieste procurar?

O silfo pousou no chão, nervoso; as suas asas ainda vibravam quando se inclinou diante de Victoria com profundo respeito.

- Dama Lunnaris - disse. - Zaisei enviou-me à tua procura. Necessitam da tua magia para curar o jovem feiticeiro.

- Shail? - perguntou Victoria, preocupada. - Não está bem?

- As fadas temem pela sua vida, dama Lunnaris.

 

             "O QUE DARIAS EM TROCA?"

Victoria entrou de rompante na cabana e olhou em redor. Shail estava estendido sobre uma enxerga e junto dele encontrava-se a sacerdotisa celeste que os tinha resgatado perto da Torre de Kazlunn. Segurava a mão do jovem feiticeiro, e com a outra mão refrescava a sua testa com um pano húmido. Quando a mulher celeste ergueu para ela os seus profundos olhos violetas, Victoria teve a sensação de ter interrompido algo muito íntimo e reprimiu o impulso de dar meia-volta e sair dali.

- Dama Lunnaris - disse a sacerdotisa, levantando-se com ligeireza. Era mais alta do que Victoria, e, apesar de ser completamente desprovida de cabelo, como todos os da sua raça, as suas feições suaves e harmoniosas possuíam uma beleza delicada. - Chamo-me Zaisei e sou uma sacerdotisa ao serviço da deusa Wina.

- O que se passa com Shail? - perguntou Victoria, sem rodeios. ; Zaisei levantou, sem uma palavra, o lençol que cobria o corpo de Shail. Victoria lançou uma exclamação surda ao ver que a perna esquerda do feiticeiro se tornara completamente negra.

- É veneno shek - disse Zaisei. - As fadas conseguiram evitar que o veneno se estendesse ao resto do corpo, mas receio que a sua perna já esteja morta.

Victoria fitou-a, horrorizada.

- Não podes estar a falar a sério.

Apoiou-se contra a sedosa parede da cabana, sentindo que lhe faltavam as forças. Zaisei inclinou a cabeça. Parecia tão perturbada como ela.

- As fadas curandeiras foram buscar o que é preciso para a operação e não tardarão a voltar, mas, enquanto isso, precisamos que continues a transmitir-lhe parte da tua magia.

- Claro - balbuciou Victoria, com o coração apertado.

Não cabiam todos no interior da cabana, de modo que Jack, Allegra e Alexander esperaram lá fora enquanto Victoria entrava para ver Shail- Ha-Din aproximou-se de Jack e disse em voz baixa:

- Yandrak, tens um momento? Há algo que quero falar contigo.

- Mas Shail... - começou Jack; interrompeu-se, apercebendo-se de que não podia fazer nada pelo seu amigo, e aquiesceu. - Claro.

Ha-Din guiou-o para um recanto mais afastado. Jack, inquieto, saltava de uma perna para a outra e olhava, quase sem se dar conta, para o lugar onde estavam os outros.

- Não te vou ocupar muito, Yandrak.

- Jack - corrigiu o rapaz automaticamente. - Os meus... os meus amigos chamam-me Jack - acrescentou ao ver a expressão confusa do seu interlocutor.

- Jack - repetiu Ha-Din. - Apenas queria dizer-te que sei sobre Lunnaris e esse shek.

Jack ficou gelado.

- Também sei que esse rapaz não é uma serpente qualquer. É Kirtash, o filho do Necromante. Estou enganado?

Jack apoiou-se contra o tronco de uma árvore e cerrou os dentes. Não disse nada, mas Ha-Din leu a verdade no seu rosto.

- Porque o proteges, filho?

Jack fazia a si próprio essa mesma pergunta há muito tempo, por isso tinha várias respostas preparadas. Ainda que nenhuma o convencesse realmente.

- Suponho... que seja porque deixou tudo para se unir a nós. Suponho que... todos merecemos uma segunda oportunidade - aventurou.

O Pai abanou a cabeça, preocupado.

- É um shek. Não deixou de ser um assassino, e duvido que se arrependa dos crimes que cometeu. Ele mesmo afirmou que, se está connosco, é por Lunnaris. Apenas por isso.

- Talvez seja essa a razão - murmurou Jack. - Não posso entender porque faz tudo o que faz, não posso pôr-me no seu lugar. Mas posso compreender que sinta algo por ela.

Arrependeu-se logo de ter dito aquilo, de estar a abrir o seu coração a um perfeito desconhecido. Contudo, havia algo em Ha-Din que inspirava confiança; o celeste irradiava uma estranha paz que o acalmava e reconfortava profundamente.

- Eu sei - assentiu o Pai. - Vi o laço que une Kirtash a Lunnaris, vi também o vínculo que vos une a ti e a ela. Uma estranha aliança.

- A quem o diz - sorriu Jack.

- A profecia falava disto - prosseguiu o sacerdote. - Não devíamos ficar surpreendidos.

Jack ergueu a cabeça.

- É verdade, Shail contou-nos algo acerca disso. Todos pensavam que a profecia se referia apenas a um dragão e um unicórnio, mas Shail disse-nos que também havia um shek implicado. Isso é verdade?

O Pai assentiu, com um suspiro.

- Os Oráculos também falaram de um shek. Eu era partidário de tornar pública a profecia completa, mas a Mãe Venerável não estava de acordo. Já reparaste que não confia nos sheks. Estava convencida de que se tratava de um erro de interpretação, de que era impossível que um shek pudesse salvar-nos. No final acedi a manter em segredo essa parte da profecia, mas por razões muito diferentes. Se era certo que os sheks voltariam a invadir-nos, se a profecia se cumprisse e um shek estivesse implicado nela, os nossos inimigos não o deveriam saber. Ninguém deveria sabê-lo. Seria o nosso trunfo secreto no caso de acontecer o pior. Seria um elemento que atingiria os nossos inimigos a partir de dentro.

Jack não disse nada. Continuava com o olhar perdido no vazio, sério, mas a ouvir atentamente as palavras do Pai.

- É ele, não é verdade, Jack? Kirtash, o filho de Ashran, é o shek da profecia.

- Suponho que sim.

- Mas não é por isso que o proteges.

- Não - admitiu Jack de má vontade. - É que... uma vez pensámos que ele tinha morrido, e Victoria... quero dizer, Lunnaris... - corrigiu-se; hesitou um momento antes de prosseguir - ficou muito mal. Foi como se algo morresse dentro dela. Não quero voltar a vê-la assim, nunca mais. Eu... não sei, não entendo muito bem o que há entre eles, mas às vezes... dá-me a sensação de que não sou ninguém para o estragar.

Houve um breve silêncio.

- Subestimas-te, Yandrak - disse Ha-Din por fim, utilizando propositadamente o nome do dragão que dormia no interior do rapaz. - És o outro extremo do triângulo, o terceiro elemento da tríada. És tão importante como eles os dois. O vínculo que te une a Lunnaris é tão sólido e intenso como o que une Lunnaris a Kirtash.

Jack desviou o olhar, incomodado. Estava a começar a descobrir qual era o poder secreto de Ha-Din. Talvez não fosse capaz de ler as mentes das pessoas, como faziam os sheks ou os varu mais poderosos; mas podia ler os seus corações. Jack perguntou-se se isso era algo que apenas Ha-Din, como Pai da Igreja dos Três Sóis, podia fazer ou, pelo contrário, se era uma capacidade que todos os celestes possuíam.

- São três - prosseguiu Ha-Din. - Três como os sóis, como as luas, como os deuses e as deusas. Nesse vínculo que há entre vocês está a vossa força... mas também a vossa maior fraqueza.

- Eu sou o elo fraco da cadeia - disse Jack, sem poder manter-se calado por mais tempo. - Ainda não fui capaz de me transformar em dragão.

É como se Yandrak não quisesse despertar no meu interior.

O Pai cravou o seu olhar violáceo nos olhos verdes de Jack. O rapaz esperava uma reprimenda da sua parte, e por isso a sua pergunta desconcertou-o:

- De que tens medo, Yandrak?

- De ficar só - respondeu Jack imediatamente; uma vez dito, já não pôde parar. - De ser o único. O último. De não encontrar o meu lugar no mundo. De ser... o elemento que sobra...

- Na vida da tua amiga - adivinhou o celeste.

Jack virou-lhe as costas, mordendo o lábio inferior, lamentando ter falado mais do que devia.

- O que sabes dos dragões, rapaz? Não muita coisa, pois não?

- E que mais há para saber? - replicou Jack, com mais amargura do que pretendia. - Estão todos mortos.

- Enganas-te. Tu és o último, filho, e isso significa que todos os dragões que existiram no mundo vivem agora em ti. Nunca estarás só, compreendes?

Não, Jack não compreendia. Mas não se sentia à vontade com aquela conversa, de modo que mudou de tema:

- Em relação a Christian... - começou, mas Ha-Din interrompeu-o com um gesto.

- Ninguém o saberá por mim, não tenhas medo. Mas é uma questão de tempo até que se descubra a sua verdadeira identidade. É uma pena... - acrescentou para si mesmo.

- O quê?

- É paradoxal - disse o Pai. - Esse rapaz transborda amor, Jack, e o amor, segundo sei, é uma emoção que os sheks não podem experimentar.

- É da sua parte humana. Ele...

- E isso que me preocupa. Está aqui graças à sua parte humana, mas, quanto mais intenso se torna esse amor, mais depressa agoniza o shek que há nele. Os sentimentos humanos são veneno para essas criaturas.

- Agoniza? - repetiu Jack, surpreendido. - O que quer dizer com isso?

- Que uma parte muito importante de Christian está a morrer irremediavelmente, Jack. E, quando isso suceder, é bem possível que ele morra com ela.

- Entendo - murmurou Jack, embora mal intuísse as implicações das palavras do Pai. - Então, talvez devêssemos dizer-lho, não?

- Não é preciso, filho. Ele já o sabe há muito tempo.

Três pequenas fadas chegaram naquele momento e aguardaram à porta da cabana de Shail. Zaisei e Victoria saíram para as deixar entrar.

Lá fora esperava-as o resto da Resistência, excepto Christian, que ninguém via há várias horas. Victoria voltou-se para a entrada da cabana, mordendo o lábio inferior, preocupada. Estava ao corrente do que as fadas iam fazer e uma parte dela desejava impedi-lo; mas no fundo sabia que devia deixá-las fazer o seu trabalho, porque só assim poderiam salvar a vida do seu amigo.

Fechou os olhos, cansada de tudo aquilo, daquela guerra.

Shail não merecia um sofrimento daqueles, pensou. Ao recordar a perna enegrecida do seu amigo, lembrou-se de Christian transformado num shek e pensou que as suas presas inoculavam o mesmo veneno que estivera a ponto de matar Shail.

Sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos da sua mente e juntou-se a Jack. A sua presença fazia-a sempre sentir-se melhor.

- Como está? - perguntou Alexander de imediato; Shail e ele tinham sido os líderes da Resistência em Limbhad, e, embora no princípio tivessem tido as suas diferenças, acabaram por se tornar amigos.

- Sairá desta - murmurou Victoria. - Mas as fadas dizem que perdeu a perna.

Fez-se um breve silêncio, apenas interrompido por uma maldição que Alexander soltou entre dentes.

- Não é justo - disse Jack, resumindo os pensamentos de todos. Ninguém acrescentou mais nada. Não havia palavras que pudessem expressar o que sentiam.

Shail continuava imerso num sono profundo quando as fadas curandeiras entraram para fazer o seu trabalho. Pertenciam a uma raça pouco comum dentro da grande família feérica. Eram três, de baixa estatura, cabelos como penugem de dente-de-leão e pele rugosa como casca de árvore, que as fazia parecer mais velhas do que eram na realidade. Nunca tinham saído do bosque de Awa, mas conheciam as propriedades de cada semente, cada árvore, cada erva e cada folha que crescia nele. E sabiam como utilizar os ramos de sinde, uma árvore que crescia na parte mais profunda do bosque, de ramos tão finos como os cabelos de um bebé, que caíam em torno dela formando uma cascata até ao chão, ocultando o tronco. Mas aqueles ramos estavam dotados também de uma dureza extraordinária; nada podia rompê-los. E, utilizados correctamente, podiam segar quase todas as superfícies.

A mais velha das fadas tirou do seu alforge um dos ramos de sinde que tinha trazido. Era tão ténue que tinha de o pôr a contraluz para o poder ver. Rodeou com ele a perna de Shail, um palmo acima do joelho, um pouco acima do lugar onde terminava a zona de carne enegrecida pelo veneno do shek. Enquanto isso, as outras duas entoavam cânticos a Wina, a deusa da terra. A fada apertou o laço e entregou uma ponta a cada uma das suas companheiras. Elas aguardaram um momento, enquanto a mais velha preparava a cataplasma de ervas de que ia precisar depois.

Então, ao seu sinal, puxaram as duas pontas, ao mesmo tempo, com força e segurança. O fio enterrou-se na carne de Shail, cortando-a com tanta facilidade como se fosse manteiga, de forma limpa. Um novo puxão e o ramo de sinde, mais afiado do que o fio de qualquer faca, segou também o osso.

O feiticeiro não acordou durante todo o processo. As fadas continuaram a trabalhar, aplicando na ferida a cataplasma de ervas para estancar a hemorragia, selando-a com a sua própria energia feérica, enquanto as suas vozes melódicas continuavam a entoar hinos em honra da sua deusa. Não hesitaram em nenhum momento, nem demonstraram pena pelo jovem que estavam a mutilar. Era a única maneira de o manter com vida, e as fadas amavam a vida acima de todas as coisas.

Rapidamente, a ferida fechou-se. Shail agitou-se em sonhos, mas uma das fadas aproximou do seu rosto um punhado de flores alaranjadas, e o feiticeiro, depois de aspirar o seu inebriante perfume, mergulhou de novo num profundo torpor.

As fadas recolheram as suas coisas e saíram em silêncio da cabana. Sabiam que ter perdido uma perna seria um duro golpe para o jovem, mas elas não estariam ali quando acordasse. O seu trabalho já tinha terminado.

- Os sheks não gostam de lutar em grupo - disse Christian. - Normalmente caçam melhor sozinhos, de modo que isso diz-nos algo muito importante acerca da emboscada que nos armaram na Torre de Kazlunn: ou estão desesperados ou consideram-nos inimigos muito perigosos. Eu inclino-me mais para a segunda opção.

Fez uma pausa, para o caso de alguém querer fazer algum comentário, mas ninguém disse nada.

Jack, Victoria e Alexander tinham-se reunido em volta de uma cálida fogueira que os seus anfitriões acenderam junto ao rio. Allegra tinha partido há algumas horas, à procura de sobreviventes da Torre de Derbhad que se tivessem refugiado no bosque algum tempo antes; ou de alguém que pudesse informá-la acerca da gente que tinha estado a seu cargo. Há quinze anos que não sabia nada deles.

Tinham passado o resto do dia à espera de que Shail despertasse do seu sono, pondo-se ao corrente da situação em Idhún, recuperando-se das emoções passadas e fazendo planos para o futuro imediato. Alexander propusera viajar até Vanissar para se encontrar com o seu irmão; Allegra, por sua vez, parecia relutante em abandonar o bosque tão depressa. Por alguma razão, estava inquieta, mas não partilhou os seus receios com os companheiros, embora Jack a tivesse visto a falar em privado com Alexander, comunicando-lhe algo que, a julgar pelo semblante sério dos dois, devia ser muito grave.

Por fim, tinham optado por adiar aquela conversa até que Shail estivesse em condições de participar nela e expor a sua opinião.

Ao cair da tarde, Christian tinha regressado ao acampamento dos refugiados, e, depois do jantar, composto por diferentes tipos de fruta, bagas e raízes, Victoria tinha aproveitado para lhe pedir que lhes mostrasse como enfrentar os sheks. Todos se esforçavam agora por prestar atenção ao que o jovem lhes dizia, mas os seus pensamentos estavam longe dali... com Shail.

- Poderíamos pensar - prosseguiu Christian - que, com o tamanho que têm, preferem atacar em lugares descobertos. Mas, pelo contrário, sentem-se mais à vontade nas profundezas do bosque, onde pódem camuflar-se entre a vegetação; ou nas montanhas, para se esconder nas fendas, grutas e riachos, e atacar quando a sua vítima estiver desprevenida.

- Já sabíamos que são ardilosos e traiçoeiros - grunhiu Alexander -, e que preferem atacar pelas costas em vez de dar a cara e lutar com honra.

Christian ficou a olhar para ele durante um momento, mas não respondeu à provocação.

- Não têm garras nem nada que se pareça - prosseguiu -, e as asas estorvam-nos na hora de pousar em terra. Não estão preparados para lutar contra humanos e afins, porque estes são pequenos em comparação com eles e custa-lhes cravar-lhes as presas. De modo que são bons na luta corpo a corpo, sempre e quando esta se desenvolve no ar e contra adversários do seu tamanho, ou mesmo maiores.

- Os dragões, por exemplo - disse Jack a meia-voz.

- Exacto - assentiu Christian, com suavidade.

- Têm algum ponto fraco? - quis saber Alexander.

- Odeiam... odiamos o fogo - admitiu Christian. - Temos medo dele. É algo contrário à nossa natureza, que não podemos controlar. Por isso, os dragões - acrescentou, olhando para Jack - podem por vezes vencer-nos. E por isso é importante que aprendas a usar o teu fogo de dragão.

Jack desviou o olhar, entre incomodado e aborrecido. Não achou graça que Christian lhe recordasse que como dragão não valia grande coisa. Victoria apercebeu-se do que ele sentia e mudou de assunto:

- O que nos podes contar acerca dos poderes telepáticos dos sheks? - perguntou; aquilo sempre a tinha rascinado.

Christian fitou-a com um sorriso, adivinhando o que ela pensava.

- Que são perigosos para outros cres telepáticos - respondeu. As ondas telepáticas dos sheks só podem ser captadas por outros seres telepatas, com mentes suficientemente sensíveis para as perceber.

- Mas tu podes ler as mentes das pessoas, não é? - perguntou Victoria, sem poder conter-se. - Inclusivamente, podes obrigá-las a fazer coisas que não querem fazer...

- Olhando-as nos olhos - completou Christian, assentindo. - Era o que ia explicar a seguir. Os olhos são a porta da mente das criaturas não telepatas. Um shek pode comunicar-se convosco por telepatia, pode fazer soar a sua voz na vossa mente, mas não pode manipulá-la, a menos que vos olhe nos olhos. com criaturas como os szish ou os varu, mais sensíveis ao poder mental, isso não é necessário.

- E os próprios sheks? - perguntou Jack. - Pode um shek controlar outro desta maneira?

- Nós conhecemos maneiras de proteger a nossa própria mente das intrusões - respondeu Christian a meia-voz. - Ainda que não nos seja necessário protegermo-nos contra os da nossa espécie... normalmente.

Jack compreendeu o que queria dizer e absteve-se de acrescentar algo mais. A sua preocupação com o estado de saúde de Shail impedira-o de pensar no que Ha-Din lhe dissera, mas agora lembrou-se e observou Christian com um novo interesse. Era certo que havia nele algo diferente. O seu olhar parecia mais quente do que o costume, e Jack perguntou-se se era devido a ele ser cada vez mais humano... ou se se tratava, simplesmente, do reflexo da fogueira nos seus olhos.

Christian percebeu o seu olhar e voltou-se para ele. Jack sentiu novamente que algo vibrava na atmosfera. Ambos pertenciam a duas raças poderosas que se tinham odiado desde o princípio dos tempos e até então sempre lhes tinha custado muito reprimir o instinto que os impelia a lutar um contra o outro... até à morte. Mas, naquele momento, Jack descobriu que cada vez lhe era mais difícil odiá-lo.

Christian também pareceu compreendê-lo. Jack pensou detectar nos seus olhos uma breve centelha de tristeza.

Alexander voltava à carga:

- Quer dizer que os sheks matam com o olhar. Isso é-me familiar.

Christian voltou-se para ele, com uma expressão indecifrável. Todos entenderam a que se referia Alexander. Christian tinha assassinado muita gente através de Haiass, a sua espada mágica, mas muitos outros tinham encontrado a morte nos seus olhos de gelo.

- Também a mim - respondeu sem se alterar.

Alexander olhou-o por um momento. Um bravio fogo amarelo ardia nas suas pupilas, e Jack receou que fosse perder o controlo. Há já algum tempo que as três luas brilhavam no firmamento; apesar de, teoricamente, as transformações de Alexander seguirem as fases do satélite da Terra, o rapaz não pôde evitar perguntar-se até que ponto as luas de Idhún podiam ter influência sobre ele. Por outro lado, o jovem estava furioso por causa de Shail e tinha de descarregar a sua frustração em alguém. Era lógico que atacasse Christian.

Mas Alexander conseguiu controlar-se. Sacudiu a cabeça, levantou-se e afastou-se deles, sem uma palavra.

Jack, Christian e Victoria ficaram sozinhos. Jack e Victoria estavam sentados um ao lado do outro, muito juntos, e o braço do rapaz rodeava a cintura dela. Os três perceberam de imediato que aquela situação era muito incómoda, mas foi Christian quem reagiu primeiro. Despediu-se do casal com uma inclinação de cabeça... e desapareceu entre as sombras.

Jack e Victoria entreolharam-se. Jack perguntou-se se devia dizer à sua amiga o que Ha-Din lhe contara acerca de Christian... mas não teve ocasião de o fazer, porque naquele momento chegou uma fada com a notícia de que Shail tinha despertado do seu sono.

Quando Shail abriu os olhos, apenas Zaisei estava junto dele. Sentiu-se como se estivesse a sonhar. O rosto da sacerdotisa desapareceu por um momento do seu campo de visão, e ouviu-a dizer a alguém que fosse avisar os seus amigos. Esforçou-se por se descontrair.

- O que... onde estou?

- No bosque de Awa - disse a celeste com suavidade. - A salvo.

Shail tentou recordar o que tinha sucedido. As imagens da desesperada batalha junto à Torre de Kazlunn pareciam-lhe confusas e mais próprias de um pesadelo do que de uma experiência real.

- Zai... sei? - murmurou ao reconhecê-la. Ela sorriu com carinho.

- Fico contente por voltar a ver-te.

Shail devolveu-lhe o sorriso. Conhecera-a ao regressar a Idhún, há dois anos; eram amigos desde então.

- Também eu - confessou.

Os olhos dela estavam cheios de emoção contida, e Shail tomou consciência de que estava a olhá-la da mesma forma. Incomodados, ambos desviaram o olhar.

- Os outros estão bem? - perguntou então Shail.

- Os teus amigos estão bem - respondeu Zaisei. - Era por ti que temíamos.

O sorriso de Shail ampliou-se.

- Estou bem. Apenas um pouco cansado, mas creio que posso levantar-me.

Antes que Zaisei pudesse impedi-lo, retirou as mantas que o cobriam e fez tenção de se levantar.

O tempo pareceu parar durante um eterno segundo.

Jack e Victoria chegaram à cabana de Shail, seguindo a fada, precisamente quando Zaisei saía. O belo rosto da sacerdotisa estava dominado pela compaixão. Os seus olhos estavam húmidos.

- Não quer ver ninguém - disse em voz baixa; a voz tremia-lhe.

- O quê? - surpreendeu-se Jack. - Mandaste irem buscar-nos...

- Está... Quer estar só - simplificou Zaisei. Não fazia sentido contar-lhes a reacção de Shail; não serviria de nada preocupá-los mais. Foi um golpe duro para ele.

Victoria sentiu que se lhe apertava o coração.

- Mas a nós podes deixar-nos entrar. Somos seus amigos...

- Vão, por favor - ouviu-se a voz de Shail, cansada e desfeita, do interior da cabana. - Não quero ver ninguém.

- Mas...

- Victoria, por favor. Deixem-me só.

Jack e Victoria entreolharam-se e, lentamente, deram meia-volta. Jack passou um braço em volta dos ombros de Victoria, para a reconfortar.

- É normal que esteja assim - disse-lhe. - Pensa no que lhe aconteceu. Precisa de se habituar à ideia...

Mas ela, desolada, foi incapaz de falar.

- vou procurar Alexander - decidiu Jack. - Talvez Shail queira vê-lo a ele. Vens?

Victoria negou com a cabeça, ainda comovida.

- Tenho um mau pressentimento - disse de repente.

- Acerca de Shail?

- Não, acerca de... Tanto faz - concluiu, desviando o olhar, incomodada.

Jack fitou-a e adivinhou o que pensava. Esteve a ponto de dizer algo, mas pensou melhor. Apertou suavemente a mão da sua amiga e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Tem cuidado.

Depois, deu meia-volta e afastou-se em direcção ao ribeiro, à procura de Alexander. Victoria viu-o afastar-se, suspirou e, depois de dirigir um olhar de tristeza à cabana de Shail, foi na direcção contrária, embrenhando-se na vegetação.

Christian tinha-se afastado do povoado porque precisava de estar sozinho. Sentia-se cada vez mais confuso e não estava acostumado a experimentar esse tipo de sensações.

Eram as pessoas. Não gostava de estar rodeado de gente, mas, desde que se unira à Resistência, era difícil encontrar um momento para estar sozinho. Sentia falta da solidão... não obstante, e isto era o que mais o preocupava, ao mesmo tempo temia-a cada vez mais.

Encontrou uma rocha solitária sobre o rio e sentou-se ali, para reflectir.

Percebeu então uma presença atrás de si e voltou-se à velocidade de um raio para encurralar o intruso contra uma árvore. Apenas uma fracção de segundo depois, o fio da sua adaga roçou a garganta de uma fada de sedutora beleza.

Christian reconheceu-a. Não se surpreendeu que tivesse conseguido atravessar a principal defesa do bosque de Awa, um escudo invisível tecido por feéricos, que apenas podia ser neutralizado por eles. Ninguém achara que isso pudesse ser um problema, dado que nenhum feérico se teria lembrado de os vender a Ashran.

Era evidente que ninguém se tinha lembrado de Gerde.

- É assim que recebes os amigos, Kirtash? - perguntou ela com voz aveludada, sem parecer minimamente preocupada com a sua situação de desvantagem.

Christian inclinou a cabeça e olhou-a com uma centelha de aço brilhando nos seus olhos azuis.

- Dá-me uma só razão para que não te mate - ciciou.

- No passado, Kirtash, não terias parado essa adaga; ter-me-ias matado sem hesitar. Se não o fizeste, é porque te lembro o que eras antes... essa parte de ti que essa rapariga te está a roubar pouco a pouco e pela qual, no fundo da tua alma, anseias.

O fio do punhal cravou-se um pouco mais na suave pele de Gerde.

- O que queres?

- Trouxe-te um presente.

Christian não disse nada, mas também não retirou a adaga.

- Sabes do que se trata - prosseguiu Gerde, com suavidade. - Deixaste-a abandonada na Torre de Drackwen, quando fugiste... quando nos atraiçoaste para a proteger.

- Haiass - murmurou Christian.

- Foi isso que vieste buscar, não é? Caso contrário, não compreendo como te atreveste a regressar a Idhún. Ashran pôs a tua cabeça a prémio.

Christian retirou o punhal e abeirou-se dela.

- Não duvido. Por isso surpreender-me-ia que tivesse decidido devolver-me a minha espada. Seria muita amabilidade da sua parte... uma amabilidade que não creio que esteja disposto a ter comigo, dadas as circunstâncias.

- No entanto, aqui está. Olha-a. Sentiste falta dela, não é? Gerde ergueu as mãos, e entre elas materializou-se a esbelta forma de uma espada que Christian conhecia muito bem. Apesar da bainha que protegia o seu fio, o jovem reconheceu-a imediatamente. Olhou para Gerde com desconfiança.

- O que me vais pedir em troca?

A fada deixou escapar uma suave gargalhada melodiosa. Aproximou-se mais dele, e o rapaz sentiu o seu inebriante perfume.

- O que estarias disposto a dar-me? - sussurrou. Christian semicerrou os olhos.

- Não vou trair Victoria. Não a entregarei outra vez a Ashran. Gerde riu de novo.

- E patético que não sejas capaz de deixar de pensar nela nem por um só momento, Kirtash. Estás a perder faculdades. Há algum tempo terias adivinhado logo as minhas intenções.

- Não ponhas a minha paciência à prova. Diz-me o que queres em troca da minha espada.

- Nada que não possas dar-me. - Gerde aproximou-se mais dele e ergueu a cabeça para o fitar directamente nos olhos. - Beija-me.

- O que disseste?

- Não é tão difícil de entender. Beija-me, e a espada será tua. Christian arqueou uma sobrancelha.

- Só isso? Só me pedes um beijo em troca de Haiass?

- Já te disse que está ao teu alcance.

- E qual é o truque?

- Sabes muito bem - respondeu ela, com uma gargalhada cruel. Christian abeirou-se dela com um suspiro exasperado.

- A esta altura, já devias ter aprendido que os teus feitiços não podem afectar-me, Gerde.

- Então, porque duvidas?

Ele pegou-lhe no braço e puxou-a para si, quase com violência.

- Sei qual é o teu jogo - advertiu-a. - Conheço as regras.

- Então devias saber que não podes perder - sorriu ela. - A não ser, claro... que já tenhas perdido.

Christian semicerrou os olhos. Então, sem aviso prévio, inclinou-se sobre ela e beijou-a, com raiva.

Gerde lançou os braços em volta do pescoço do rapaz, colou o seu corpo ao dele, enredou os seus dedos no seu cabelo castanho. Christian sentiu o poder de sedução que emanava dela. Conhecia-o, experimentara-o noutras ocasiões, ainda que nunca se tivesse deixado arrastar

por ele.

Daquela vez, contudo, o contacto de Gerde deixou-o louco. Procurou resistir, mas, quando deu por si, estava a beber daquele beijo como se não existisse mais nada no mundo, tinha fechado os olhos e tinha-se rendido ao desejo. Os seus braços rodearam a esbelta cintura da fada e as suas mãos acariciaram o seu corpo, com ânsia, procurando fundir-se nele.

Foi então que ouviu uma exclamação sufocada atrás de si e percebeu, de imediato, o que estava a acontecer. Furioso porque, pela primeira vez, Gerde tinha conseguido envolvê-lo no seu feitiço, Christian afastou-a bruscamente de si e voltou-se, sabendo de antemão quem encontraria ali.

Deparou com o olhar de Victoria, que os observava, profundamente magoada. Christian devolveu-lhe um olhar indiferente.

A rapariga recompôs-se e voltou-se para Gerde, com os olhos carregados de cólera gelada.

- O que estás aqui a fazer?

Gerde presenteou-a com o seu riso melodioso.

- Não é evidente?

Victoria olhou para Christian, esperando ver algo parecido com culpa ou arrependimento na sua expressão, mas o seu rosto continuava impassível. Tentou apagar da sua mente a imagem de Christian a beijar Gerde, acariciando o seu corpo...

Mas a imagem continuava ali, atormentando-a. E misturava-se com lembranças que teria preferido esquecer, lembranças que tinham a ver com uma torre onde ela estivera prisioneira, com um feiticeiro que a tinha utilizado de forma selvagem e cruel, com Kirtash a vê-la morrer, impassível, enquanto beijava Gerde.

Sentiu-se fraca, só de o lembrar. A angústia do que tinha sofrido na altura voltou a apertar-lhes as entranhas como uma garra gelada. As náuseas fizeram-na cambalear e teve de se apoiar no tronco de uma árvore para não cair. Fechou os olhos por um momento e procurou dominar-se. Não era possível que ele a tivesse traído outra vez. Tão depressa...

- E uma pena que nos tenham interrompido - comentou Gerde. Mas, enfim, cumpriste a tua parte do trato, assim...

Victoria viu como Gerde depositava a espada nas mãos de Christian e entendeu o que tinha acontecido.

- Vai-te embora - disse Christian.

Gerde pôs-se em bicos de pés para o beijar outra vez, mas Christian afastou-se dela e olhou-a com frieza.

- Não abuses da tua sorte.

- És meu, Kirtash, quer gostes quer não - sussurrou Gerde, com um sorriso encantador. - Não o esquecerás facilmente.

A fada desapareceu entre as sombras. Victoria virou as costas a Christian, a tremer, esperando uma desculpa ou, pelo menos, uma explicação. Mas quase de imediato compreendeu que ele não lhe daria nenhuma das duas coisas, de modo que foi ela quem falou primeiro:

- Então veio devolver-te a espada. Gerde também fazia parte do love?

- O que eu faço ou deixo de fazer é assunto meu, Victoria - replicou Christian.

Ela voltou-se para ele, furiosa.

- Afinal parece que Alexander tinha razão, e que não podemos confiar em ti. Perco-te de vista durante um segundo e encontro-te em pleno arrebatamento de paixão com essa... galdéria de cabelo verde!

- Victoria...

- Por pouco matava-me, maldita seja! - gritou ela. - Sabes o que ela e Ashran me fizeram, viste-o com os teus próprios olhos, estavas lá enquanto a... a beijavas! E voltas a fazê-lo agora! Como queres que me sinta depois disto? O que queres que pense de ti? Importas-te mais com essa maldita espada do que comigo!

Voltou-se novamente para que ele não a visse chorar. Não queria dar-lhe essa satisfação.

Sentiu a presença de Christian muito perto dela. Desejou por um momento que a abraçasse, que a consolasse, que lhe sussurrasse palavras de amor ao ouvido, mas sabia, no fundo, que ele não ia fazê-lo.

- Não tentes controlar-me, Victoria - advertiu Christian com certa dureza. - Não queiras ser dona da minha vida. Não me digas o que tenho de fazer. Nunca.

Ela esforçou-se por reprimir as lágrimas.

- Então, é verdade que os sheks não podem amar - disse a meia-voz.

- É isso que pensas?

A voz dele sobressaltou-a, porque tinha soado muito perto do seu ouvido. Victoria afastou-se dele, aborrecida, mas ainda profundamente ferida.

- Renunciei a tudo o que conheço - prosseguiu Christian atrás dela. - A todo o poder que me pertencia por direito. Abandonei a minha gente, o meu pai... renunciei inclusivamente à minha identidade, ao meu nome... por ti. Diz-me, que mais hei-de fazer? Talvez quando me vires cair aos teus pés, morrendo por tua causa, sejas capaz de compreender por fim até que ponto sou teu.

Tinha falado com calma, sem levantar a voz, mas Victoria percebeu a profunda amargura que se escondia nas suas palavras e não aguentou mais. Voltou-se para ele, querendo dizer-lhe, com o coração nas mãos, o muito que significava para ela... mas Christian já se tinha ido embora.

Gerde devia ter ido embora após entregar a espada a Kirtash, mas não conseguiu evitar a tentação de se aproximar da povoação dos renegados.

Não era a primeira vez que entrava no bosque de Awa para espiar para o seu senhor. Ainda que o seu poder não fosse suficiente para fazer cair as defesas feéricas e franquear aos sheks a entrada no bosque, permitia-lhe penetrar nele sem problemas. Tinha compreendido que, depois da sua conversa com Kirtash, a Resistência seria avisada, e no futuro ser-lhe-ia muito mais difícil infiltrar-se no povoado. Por isso queria aproveitar ao máximo aquela incursão, antes que Victoria os pusesse a todos de sobreaviso.

Mas sabia que ainda tinha tempo. Não duvidava de que a rapariga faria a Kirtash uma cena de ciúmes, e isso convinha aos seus planos. De momento, estaria demasiado transtornada para alertar a Resistência.

Suspirou, exasperada. Tinha conseguido seduzir Kirtash, o que significava que Ashran tinha razão, e que o seu filho se estava a tornar cada vez mais humano... e a perder poder. Se Victoria não tivesse intervindo, Gerde tê-lo-ia recuperado naquela noite, teria podido devolvê-lo ao seu pai... que se teria encarregado de extirpar dele aquela incómoda humanidade... para sempre.

Mas as coisas não tinham corrido mal de todo. Agora, Gerde sabia que Kirtash era vulnerável... Ashran também o saberia... e, sobretudo... o próprio Kirtash apercebera-se disso. Não demoraria a adivinhar porque Ashran lhe devolvera a espada... e, o melhor de tudo... saberia que não tinha outra opção a não ser fazer com ela o que todos esperavam que fizesse.

Isto para não falar de que Victoria não lhe perdoaria facilmente o que tinha visto naquela noite. Gerde franziu o sobrolho. Estúpida Victoria. Não compreenderia nunca o que implicava amar alguém como Kirtash. Não o aceitaria nunca tal como era. A fada perguntou-se, uma vez mais, o que teria ele visto nela.

Deteve-se quando o resplendor da fogueira era já claramente visível entre as árvores. Escondeu-se no mato, consciente de que ninguém poderia vê-la nem que estivesse a olhar fixamente para o lugar onde se encontrava, porque no bosque as fadas eram quase tão difíceis de surpreender como os unicórnios. Espreitou, com curiosidade, e, entre os renegados que descansavam em volta da fogueira, descobriu Jack.

Observou-o com interesse. O rapaz contemplava o fogo, imerso em reflexões profundas. Gerde semicerrou os olhos para estudar a sua aura e descobriu que, apesar de parecer abatido, o seu poder tinha aumentado muito desde o seu último encontro. Valia a pena lembrá-lo.

Deu meia-volta para se ir embora... e deparou-se com uns olhos tão negros como os seus, mas mais velhos, sábios... cheios de desgosto.

- Outra vez a tramar, pequena harpia? Gerde retrocedeu uns passos.

- Aile! - conseguiu dizer.

Allegra d Ascoli avançou para ela, muito zangada.

- O que andas a tramar desta vez? Se te atreveste a aproximar-te da minha protegida...

Gerde levantou a cabeça, serena e desafiadora. Já tinha levantado todas as defesas mágicas em torno de si e, embora soubesse que Allegra era uma rival perigosa, também intuía algo que ela tinha tentado manter em segredo.

- O quê? - atirou. - Vais matar-me? Vais arriscar-te a enfrentar-me? Allegra semicerrou os olhos.

- Não duvides, Gerde.

- A sério? - riu ela. - Lutarás contra mim... no teu estado? Sei que esses quinze anos que passaste na Terra diminuíram o teu poder, Aile. E que ainda demorarás muito tempo a recuperá-lo.

Allegra hesitou; foi apenas por breves instantes, mas bastou para que Gerde adivinhasse que tinha acertado.

- Eu sabia - riu a fada. - Não podes fazer-me mal.

Então a mão de Allegra saiu disparada e esbofeteou a face de Gerde, que gritou e recuou, furiosa.

- Pode ser que a minha magia não seja o que era, mas os meus reflexos continuam a ser excelentes, miúda - advertiu Allegra com frieza.

- vou matar-te por isto - sussurrou Gerde. - E também a essa rapariga que tanto proteges.

- És uma feiticeira, Gerde - replicou Allegra, reprimindo a sua ira. - Foi um unicórnio quem te entregou o poder que tens, quem te fez como és. Como te atreves a levantar a mão contra o último deles?

Os belos traços de Gerde contraíram-se num esgar de ódio.

- Porque, quando olho para ela... não vejo um unicórnio.

- Entendo. Vês nela a mulher que te roubou Kirtash. Ages assim por ciúmes... ou apenas por ambição? O que significa para ti esse rapaz? É para ti algo mais do que o filho do teu senhor, aquele que poderia ter sido o futuro soberano de Idhún?

A fada deixou escapar uma gargalhada melodiosa.

- Deixarei que fiques na dúvida, Aile.

Ainda sorrindo, Gerde deu um passo atrás... e desapareceu.

 

                 HUMANIDADE

Victoria deixou-se cair junto de Jack, sombria. O rapaz olhou para ela.

- O que se passa?

- Nada - resmungou ela. - Foi um dia horroroso.

- E tu que o digas - suspirou Jack. Fez uma pausa e acrescentou: Parece que Shail continua de mau humor. Alexander esteve a falar com ele. Contou-lhe tudo o que aconteceu, creio que para o distrair e dar-lhe outras coisas em que pensar.

O coração de Victoria deu um salto.

- Tenho de ir vê-lo.

- Agora não, Victoria. Está com Zaisei; parece que ela queria dizer-Ihe algo importante.

Victoria cerrou os punhos.

- E vai dizer-lhe o quê? Que é um herói por se te sacrificado pela Resistência? Maldição! Nenhum de nós quer ser um herói. E ele menos que ninguém.

Jack ficou a olhar para ela, um pouco surpreendido pela raiva que se reflectia no seu rosto. Tentou passar-lhe um braço pelos ombros, mas ela afastou-se dele, voltando a cabeça bruscamente e encolhendo-se sobre si mesma. Jack reparou que tinha estado a chorar. Era evidente que tinha procurado dissimulá-lo, secando os olhos e passando a cara por água do rio. Mas não podia enganar Jack. com um suspiro, abraçou-a, vencendo a fraca resistência dela.

- O que te fez desta vez? - perguntou em voz baixa.

Victoria pestanejou para reter as lágrimas, e Jack soube que tinha acertado em cheio. Percebeu que ela procurava falar, mas não podia, porque tinha um nó na garganta.

- Não quero falar disso - conseguiu dizer.

- Não confias em mim?

Ela baixou a cabeça. Continuava sem olhar para ele. Jack suspeitava que, se os seus olhos se encontrassem, Victoria não seria capaz de conter as lágrimas. Abraçou-a com mais força, amaldiçoando o shek em silêncio por continuar a magoar a rapariga.

- Claro que confio em ti - sussurrou ela. - Só não quero incomodar-te com estas coisas. Não tens... não tens de as aturar. Não é justo.

"Não é justo que eu tenha de curar as feridas que ele lhe faz", compreendeu Jack.

- Não me importa - disse, puxando-a para si. - Chora, se é disso que precisas.

- Não quero chorar.

Mas era tão evidente que tinha o coração desfeito que Jack não fez caso e guiou o rosto dela para o seu ombro. Sentiu-a tremer por um instante, e logo o seu corpo sofreu uma pequena sacudidela... e Victoria começou a chorar, suavemente e em silêncio, como se se sentisse envergonhada da sua própria dor. Jack deixou-a desabafar um pouco e perguntou-lhe em voz baixa:

- Foi alguma coisa que te disse?

Sabia que não devia perguntar, mas não conseguiu evitá-lo. Sentia uma curiosidade sinistra em saber o que tinha motivado a queda do seu rival.

Victoria titubeou. Não podia contar a Jack que tinha visto Christian com Gerde. Apesar da dor que isso lhe causara, tinha esperança de que o jovem não os tivesse traído, de que continuasse com a Resistência... à sua maneira, claro. Mas talvez Jack não o entendesse como ela.

Compreendeu então, de repente, que o facto de ver Christian com outra mulher não a teria incomodado tanto se essa outra não fosse Gerde.

"Posso entender que se meta com outra", reflectiu, enquanto a mão de Jack acariciava o seu cabelo com suavidade, acalmando-a. "Posso compreendê-lo e não tenho o direito de o recriminar, já que eu sei, melhor que ninguém, o que significa amar duas pessoas ao mesmo tempo. Mas porquê Gerde?"

Gerde tentara matá-la em diversas ocasiões, e voltaria a fazê-lo, se tivesse oportunidade. Tinha-a torturado brutalmente, tinha gostado de a ver sofrer.

E não era a primeira vez que Victoria via Christian a beijar Gerde. Da outra vez soubera que o tinha perdido; que, independentemente do que o shek fizesse com o seu corpo, o seu coração tinha deixado de lhe pertencer. Em contrapartida, agora...

"Talvez sejas capaz de compreender por fim até que ponto sou teu", tinha dito ele.

Victoria estremeceu. Tê-lo-ia dito a sério? Se realmente a amava, por que razão a traíra, porque estava de tão bom grado com a aliada de Ashran?

Sacudiu a cabeça, confusa.

- Odeio que te magoe - disse então Jack, interrompendo os seus pensamentos.

-Não é culpa dele...

Jack deixou escapar um suspiro exasperado.

- Quantas coisas mais lhe vais perdoar?

Victoria fechou os olhos e recostou a cabeça no seu ombro.

- Não sei, Jack. A sério, não sei. Talvez devesse ter aprendido a lição há muito tempo. Devia saber que somos muito diferentes e que o que há entre nós não pode funcionar. Sim, magoou-me, e sou tão estúpida que só consigo pensar que já sinto a falta dele e que talvez o tenha perdido para sempre...

A voz quebrou-se-lhe.

- Deves amá-lo muito - comentou Jack em voz baixa.

- Sim, Jack. Lamento. Houve um breve silêncio.

- Está bem - disse então Jack. - Posso aceitá-lo. De qualquer maneira, já o esperava..

Victoria entendeu de repente o que o rapaz lhe estava a dizer, e afastou-se bruscamente dele.

- Mas...

- Não, não digas nada. Está claro o que sentes, está claro que é a ele que amas. Oxalá tivesse a certeza de que essa serpente pode fazer-te feliz; ficaria muito mais tranquilo.

- Mas...

- Continuo sem entender como és capaz de lhe perdoar tantas coisas, mas, se consegues fazê-lo, isso só pode ser amor, de modo que não me resta outro remédio a não ser...

- Mas não entendes! - quase gritou Victoria.

Perto da fogueira havia um grupo de yan que jogava a um estranho jogo com pedras pintadas, falando depressa e gesticulando muito, mas calaram-se todos em simultâneo e voltaram-se para cravar neles os seus olhos brilhantes como brasas. Victoria corou.

- Não entendes - repetiu, baixando a voz; os yan retomaram o seu jogo. - Também te amo. com loucura. Não quero que penses nem por um segundo que não sinto nada de especial por ti, porque...

Não foi capaz de continuar a falar. Baixou o olhar, confusa.

Sentiu que Jack lhe acariciava o cabelo e deixou-se levar pela sua carícia. Antes que desse por isso, estavam a beijar-se com suavidade, com doçura. Afastaram-se, respirando entrecortadamente, e trocaram um olhar cheio de carinho e cumplicidade.

- Não quero fazer-te mal - suspirou Victoria, apoiando a cabeça no seu ombro.

Jack tinha ficado sem fala, maravilhado. Nenhuma palavra, nenhum olhar, podia revelar-lhe tanto acerca do coração de Victoria como aquele beijo que tinham partilhado.

Agora sabia que ela não estava a fingir, não estava a brincar; era a sério. O que sentia por ele continuava ali, era real e verdadeiro. E muito intenso.

- Ainda me amas - disse, feliz.

- E muito - sorriu ela, corando ligeiramente. - Seria tudo muito mais simples se pudesse amar-te só a ti. Não era?

Jack calou-se, a pensar, ao mesmo tempo que a abraçava com força e acariciava o seu cabelo negro. O coração batia muito depressa enquanto assimilava o facto de que Victoria ainda o amava.

- Creio que ainda não estás preparada para escolher - disse por fim.

- Então...?

Jack teve dúvidas. Era a sua oportunidade, não devia deixá-la escapar.

Mas Victoria sofria por Christian, sentia a falta dele, amava-o muito. Tal como ele a ela. Suspirou para si. "Diabos", pensou.

- Então, devias ir fazer as pazes com Christian - concluiu. - Além disso... - titubeou um pouco antes de continuar - não está a passar por um bom momento.

Pela mente de Victoria passou novamente, fugaz, a lembrança de Christian a beijar Gerde. Franziu o sobrolho, perguntando-se se aquela era a maneira que ele tinha de afastar os maus momentos; mas Jack não tinha acabado de falar.

- Não sei o que se passou entre vocês, mas a única coisa que sei acerca de Christian, a única que compreendo... é que está louco por ti. Acho que não deves duvidar disso nunca.

Victoria ficou a olhar para ele por um momento. -Jack, como...? -Não lhe saíram as palavras, e tentou outra vez: Porque me dizes isto? Precisamente tu?

- Porque sou o teu melhor amigo e tenho de cuidar de ti - justificou sorrindo.

Victoria sorriu outra vez. Abraçou-o com todas as suas forças e beijou-o novamente, com carinho.

- Obrigada, Jack - sussurrou.

Depois, levantou-se e afastou-se em direcção ao bosque, à procura de Christian. Jack ficou outra vez sozinho junto à fogueira, contemplando o lugar por onde ela tinha ido, perguntando-se se tinha feito bem e sentindo-se tremendamente estúpido por ter deixado passar a oportunidade.

Lembrou-se do que o Pai lhe contara acerca de Christian. O shek tinha uma forma muito particular de demonstrar o seu amor... mas amava Victoria intensa e dolorosamente. A cada dia que passava, Jack estava mais convencido disso.

Os dois eram muito diferentes, e tinham feito muito mal um ao outro. E voltariam a fazê-lo, uma e outra vez, ainda que não o quisessem. Mas nunca deixariam de se amar, por muita dor que aquela relação pudesse causar-lhes. Jack suspirou, cansado. Sabia que Christian tinha ferido Victoria em várias ocasiões, mas sabia também o muito que o shek tinha sofrido por ela. Contudo, separá-los seria pior para ambos, muito pior... Jack conhecia Victoria suficientemente bem para perceber isso e amava-a a ponto de não lhe desejar tanto sofrimento.

"Talvez seja esse o meu problema", disse para si, abatido.

De caminho, Victoria passou junto à cabana de Shail, e lembrou-se de que, se Zaisei já tivesse ido embora, poderia tentar falar com o seu amigo. Aproximou-se em silêncio, perguntando-se o que poderia dizer-lhe...

- Tens de falar com ela - disse então uma voz vinda lá de dentro. Tens de a convencer a deixar o shek para trás.

Victoria estacou e encostou-se à parede da cabana, ocultando-se entre as sombras. Tinha reconhecido aquela voz: era a suave voz da sacerdotisa celeste. E a jovem tinha a certeza de que falavam de Christian.

- Esse rapaz protegeu-a de Ashran muito melhor do que qualquer um de nós - respondeu a voz de Shail, e Victoria detectou um tom amargo nas suas palavras. - Achas mesmo que podem levá-la daqui, separá-la dos seus amigos, levá-la ao Oráculo e pensar, mesmo por um instante, que estará mais segura lá ou será mais feliz?

- O Oráculo está protegido pelas deusas - replicou Zaisei, e a sua voz, habitualmente doce, soou agora fria e severa. - Elas

guardaram-no de Ashran e dos sheks para que fosse um refúgio seguro para Lunnaris.

Shail resmungou, mal-humorado.

- Não me faças rir. Os deuses abandonaram-nos há muito tempo, sabes disso. Se o Oráculo continua de pé, é porque os sheks têm interesse em que assim seja.

- Como te atreves a duvidar dos deuses? - ralhou ela, sem levantar a voz. - Oh, vocês feiticeiros são tão arrogantes... acham que o vosso poder superior vos dá direito a questionar os Seis. Foi a vossa ambição e incredulidade que ameaçaram tantas vezes a paz de Idhún.

Shail suspirou, e Victoria adivinhou que não era a primeira vez que ele e a sacerdotisa tinham aquela discussão.

- E Jack? - perguntou o mago, mudando de assunto. - Também vais separá-la dele?

- O dragão virá connosco, obviamente. Mas não podemos permitir de maneira nenhuma que esse shek se volte a aproximar de Lunnaris.

Victoria sentiu que um punhal de gelo lhe arrancava o coração. Compreendeu que não suportaria que a afastassem de Christian, que a obrigassem a romper a sua relação com ele. "Quantas coisas mais lhe vais perdoar?", tinha dito Jack. Victoria sorriu com tristeza. "Pelo menos mais uma", pensou. Prestou atenção à conversa da cabana, porque Shail continuava a falar.

- Sabes o que Victoria sente por ele. Sabes que ele sente o mesmo. Sabes, Zaisei, leste-o no seu coração. E ainda assim falas em separá-los?

- É uma relação que apenas causará dor a ambos... e a Yandrak. Fez-se um breve silêncio. Victoria fechou os olhos.

Shail disse então:

- É um erro. Não podem ir para o Oráculo e esperar que os deuses façam o resto. Temos de lutar, organizar uma rebelião, desafiar Ashran numa guerra aberta.

- Lutar! Guerra! - repetiu Zaisei, horrorizada. - Sem dúvida não será preciso nada disso, agora que Yandrak e Lunnaris regressaram, não achas?

- Não sejas ingénua - replicou Shail, com dureza. - Porque achas que Gaedalu quer levar Victoria ao Oráculo? Os varu sempre se sentiram a salvo nas suas cidades submarinas, mas isso acabou-se. Achas que não sei? Os sheks conquistaram o continente, mas também podem mover-se debaixo de água e agora querem conquistar o mar. Atacaram Dagledu e paralisaram todos os seus habitantes com o seu poder telepático. E outras cidades do Reino Oceânico estão a render-se também. O Oráculo da Clarividência está junto ao mar, perto da capital dos varu.

- És perverso, Shail - lançou-lhe a sacerdotisa à cara. - Como podes falar assim da Mãe? Ela actua pelo bem de todo o Idhún! Estás sempre a pensar mal de toda a gente.

- É assim que a Resistência tem conseguido sobreviver - respondeu Shail secamente. - Vocês estão há quinze anos sob o domínio dos sheks e estão a acostumar-se a eles... mas para nós passou muito menos tempo e ainda temos forças para lutar. E é isso que faremos! A nossa força reside no facto de lutarmos todos juntos. Não devemos separar-nos. Christian é um dos nossos; salvou-me a vida uma vez, e os seus sentimentos por Victoria são sinceros.

Victoria tremeu por um momento, recordando que acabara de ver Christian e Gerde juntos. Tentou não pensar nisso.

- É um shek, Shail - disse Zaisei suavemente. - Não, não duvido dos seus sentimentos por Lunnaris, porque todos nós, celestes, pudemos percebê-los. Mas, diz-me, quanto tempo irá demorar a aflorar novamente essa parte do seu ser que presta adoração ao Sétimo? Quanto tempo demorará a deixar-se levar pelo seu instinto e a atacar Yandrak?

Shail guardou silêncio, o que Victoria não considerou um bom sinal.

- Fizeste um grande trabalho, amigo - disse ela com doçura. - Trouxeram-nos de volta, sãos e salvos. Agora, a vossa missão terminou. Deixem que outros mais poderosos e mais sábios cuidem deles.

- Queria estar a seu lado quando enfrentarem Ashran - disse Shail em voz baixa.

- São o último dragão e o último unicórnio. Achas mesmo que é uma boa ideia enfrentarem Ashran, correndo o risco de os perdermos?

- Mas a profecia...

- A profecia cumprir-se-á de qualquer forma, porque é a vontade dos deuses. No Oráculo, sem dúvida, revelarão como...

- Deixa de falar dos deuses! - quase gritou Shail. - Os deuses não fizeram nada no dia da conjunção astral, não nos ajudaram a enviá-los para outro mundo, e também não nos facilitaram as coisas para os encontrarmos e trazê-los de volta! Diz-me, Zaisei, se os deuses existem... onde estavam no dia em que Ashran exterminou todos os dragões e todos os unicórnios? Porque nos abandonaram?

Fez-se um silêncio tenso. Então, Victoria, contendo a respiração, ouviu o suave roçagar da túnica da sacerdotisa, e colou-se ainda mais à parede. Viu-a sair da cabana de Shail, e pareceu-lhe que tinha lágrimas a brilhar nos seus belos olhos violetas.

Esperou que se perdesse de vista, e então entrou na casa. Parou por um momento à porta, indecisa.

Shail estava estendido sobre a enxerga; uma manta suave cobria-o até à cintura, pelo que Victoria não pôde ver o resultado da operação. Mas notou a expressão de amargura do amigo e o brilho febril dos seus olhos castanhos, que se destacavam no rosto pálido.

- Olá, Vic - disse ele. - Entra.

Ela entrou, cheia de remorsos por ter estado a espiar,

- Que cara é essa? - Shail sorriu. - Por acaso não estarias a ouvir conversas alheias?

Victoria corou.

- Eu... bom, pareceu-me que, apesar de ser uma conversa alheia, me dizia respeito.

- E tinhas razão - assentiu Shail. Victoria sentou-se junto dele.

- Creio que foste um pouco duro com ela - opinou em voz baixa. A expressão do feiticeiro suavizou-se um pouco.

- Não consigo evitá-lo - admitiu. - Às vezes tenho a sensação de que os celestes não deviam existir neste mundo, é demasiado maldoso para eles.

- O Pai da Igreja dos Três Sóis é um celeste - lembrou Victoria.

- Sim, ficou muito mal, pobre homem. Ser Venerável não é mais do que outro posto de poder, tal como ter a cargo uma das torres de feitiçaria ou ser rei de um país. Ha-Din está contra todo o tipo de violência. Imagina o que é para ele ser o líder de uma Igreja em tempo de guerra.

- Dá-me a sensação de que Gaedalu lhe rouba terreno - opinou Victoria.

- Obviamente que é assim. E não ajuda o facto de tanto o Oráculo dos Pensamentos, que pertencia à Igreja dos Três Sóis, como o Grande Oráculo, que era um centro compartilhado por ambas as Igrejas, terem sido destruídos. O que resta de pé, o Oráculo da Clarividência, é a sede da Igreja das Três Luas. Muitos fiéis interpretaram que as deusas têm mais poder do que os deuses, que elas podem protegê-los muito melhor do que a tríada solar. Gaedalu ganhou muito poder ultimamente.

- Quer levar-me a mim e a Jack para o Oráculo, não é? Quer separar-nos de vocês.

- Não é a única que tem planos para vocês. Alexander contou-me que Allegra esteve a falar com ele acerca do Arquifeiticeiro. Pelos visto, está muito transtornado.

- Porquê?

- É o último arquífeiticeiro que resta. O último dos que se formaram na Torre de Drackwen. Sabes o que isso significa.

Victoria assentiu. Conhecia a história. As Igrejas tinham três Oráculos, os feiticeiros tinham três torres de feitiçaria, e assim se mantinha o equilíbrio entre o poder sagrado e o poder mágico.

Mas há algum tempo, a Ordem Mágica tinha edificado uma quarta torre no coração de Alis Lithban, o bosque dos unicórnios, o lugar mais poderoso de Idhún. O equilíbrio entre ambas as forças tinha-se rompido. Os feiticeiros que ali tinham recebido a sua educação sobressaíam em relação aos feiticeiros das outras torres; com o tempo, demonstrara-se que tinham desenvolvido mais o seu poder do que os feiticeiros normais, e tinham sido designados por arquifeiticeiros. Quando, devido à pressão dos sacerdotes, a Ordem Mágica acedera encerrar a Torre de Drackwen, havia já cerca de uma vintena de arquifeiticeiros em Idhún. Nenhum deles tinha especial interesse em reabrir a escola da Torre de Drackwen; não lhes convinha que esta gerasse mais arquifeiticeiros que pudessem disputar-lhes o poder.

Assim, com o tempo, os arquifeiticeiros, apesar da sua extraordinária longevidade, haviam desaparecido pouco a pouco. Nos tempos da conjunção astral já só restavam três. Dois deles governavam a Torre de Kazlunn e a Torre de Awinor. O terceiro era Qaydar.

- A Qaydar ofereceram-lhe o governo da Torre de Derbhad - explicou Shail -, mas ele recusou, porque não lhe interessava a política, apenas o estudo da magia. De modo que foi a tua avó quem se encarregou por fim da escola. Mas as três torres caíram, e Ashran ressuscitou a quarta torre, aquela que nunca deveria ter sido edificada. Até há pouco, os três arquifeiticeiros dirigiam o que restava da Ordem Mágica desde a Torre de Kazlunn. Sabes que há menos de uma semana Ashran conquistou-a. Alexander contou-me que os outros dois arquifeiticeiros morreram no ataque, e que apenas Qaydar sobreviveu.

- Estou a perceber - sussurrou Victoria, inquieta.

- A Ordem Mágica está a ponto de desaparecer, Victoria. Os seus símbolos de poder foram destruídos ou conquistados pelo inimigo.

A responsabilidade de salvar a Ordem recaiu sobre os ombros de Qaydar, o último arquifeiticeiro... e receio que vá levar isso muito a sério. Parece que teve a genial ideia de organizar um ataque para recuperar a Torre de Kazlunn. Victoria ficou petrificada.

- O quê? - conseguiu dizer.

- Tem a certeza de que, se vocês liderarem essa batalha, nada pode correr mal - afirmou Shail, irritado. - Enlouqueceram todos, Victoria. Vêem-vos como os salvadores que libertarão Idhún, mas, como ninguém faz a menor ideia de como nem quando isso irá acontecer, todos estão convencidos de que, o que quer que vocês façam, vai correr bem, porque são aqueles dois de que a profecia falava.

- Mas isso é... absurdo - balbuciou ela. - Além disso, porque é que toda a gente planeia o nosso futuro sem nos consultar? Não é suficiente fazermos parte de um destino que nenhum de nós escolheu?

O semblante de Shail endureceu de imediato.

- Não importa que haja ou não um destino - disse. - Todos os dias, tomamos decisões sobre coisas que nos parecem banais... e que podem mudar a nossa vida para sempre. Por exemplo, há uns anos os meus mestres concederam-me uns dias de folga. Pensei em ir ao bosque de Alis Lithban renovar a minha magia. Pensei também em visitar os meus pais em Nanetten. No final... fui a Alis Lithban.

Victoria entendeu. A conjunção astral que aniquilara os dragões e unicórnios tinha surpreendido Shail em Alis Lithban... onde descobrira um pequeno unicórnio que, milagrosamente, ainda sobrevivia à destruição. E tinha optado por resgatá-lo. E as suas vidas tinham ficado ligadas desde então, talvez para sempre.

- Muitas vezes - prosseguiu Shail, como se estivesse a pensar no mesmo que ela -, as decisões que tomas, por muito correctas que te pareçam, conduzem-te directamente ao desastre.

Houve um breve e pesado silêncio. Victoria fechou os olhos por um momento, algo desconcertada pela brusca mudança de humor do amigo, mas sentindo-se ferida e muito, muito culpada.

- Sinto muito, Shail - sussurrou; o feiticeiro voltou rudemente a cabeça. - Nunca te agradeci por tudo o que fizeste por mim. Por me teres salvo no dia da conjunção astral, por me teres ensinado tanto... por teres arriscado a vida por mim tantas vezes. Se pudesse...

- Mas isso já passou - cortou Shail. - É óbvio que não o fiz tão bem como se esperava, por isso talvez seja melhor ires com eles, com a Mãe, com o Arquifeiticeiro, com quem for. Tens por onde escolher.

- O quê?

- Talvez tenham razão - prosseguiu Shail, implacável. - E talvez deva deixar a Resistência nas mãos de outras pessoas. Ao fim e ao cabo, parece-me que já fiz bastante.

Victoria quedou-se em silêncio por um momento, mordendo o lábio inferior.

- Está bem - disse em voz baixa. - Obrigada por tudo, Shail. Não voltarei a causar-te problemas.

Não o disse com ressentimento nem com reprovação. A própria Victoria sentia-se incomodada com tanta gente que dava tudo para a proteger, e as palavras de Shail apenas confirmavam os seus próprios sentimentos. O feiticeiro tinha razão. Já tinha perdido demasiado por sua causa.

- Boa noite - sussurrou Victoria, e saiu da cabana.

Shail não respondeu. Respirou fundo e fechou os olhos, arrependendo-se imediatamente do que lhe tinha dito, mas demasiado cansado para o rectificar. Sentia-se tão impotente e tão furioso consigo mesmo que lhe custava pensar com clareza, e há bastante tempo que lhe doía a cabeça. Tinha ficado inválido e todos se empenhavam em tratá-lo como se nada tivesse acontecido; no entanto, por mais que se esforçassem, Shail continuava a ler a comiseração nos seus olhos, e isso deixava-o furioso. E Zaisei...

Enterrou o rosto nos lençóis. Tinha sido duro voltar a vê-la, ainda mais naquelas circunstâncias. Jamais esqueceria o pânico que tinha sentido ao retirar a manta e ao descobrir que lhe faltava uma perna, mas, sem dúvida, o pior de tudo tinha sido ver a compaixão no rosto da sacerdotisa.

Victoria encontrou Christian no mesmo lugar da sua última conversa. O jovem sentara-se na enorme rocha sobre o rio, e examinava a sua espada sob a luz das três luas. A rapariga deteve-se a uns metros dele e observou-o em silêncio, consciente de que, mesmo não se tendo voltado para olhar para ela, Christian sabia muito bem que Victoria estava ali. Respirou fundo e avançou para se sentar ao seu lado. Depois da dolorosa conversa que mantivera com Shail, sentia-se mais disposta que nunca a fazer as pazes com Christian.

O jovem não disse nada e também não olhou para ela. Continuou a olhar fixamente Haiass.

Victoria engoliu em seco. Não sabia por onde começar. Não sabia se devia desculpar-se ou se era ele quem tinha de o fazer, mas, sim, estava certa de que tinham de resolver as coisas rapidamente. Fitou-o por um momento e sentiu que o coração se lhe acelerava. Tentou controlar as emoções. Sabia que o amava, mais do que nunca. Mas não tinha a certeza do que devia fazer ou dizer para recuperar o seu carinho, se é que o tinha perdido.

- Recuperaste a tua espada - disse por fim, com suavidade. Christian assentiu em silêncio. Victoria reprimiu o impulso de lhe perguntar acerca do preço que tivera de pagar por ela. Desviou o olhar para Haiass e foi então que reparou que o suave brilho glacial do seu fio se tinha extinguido.

- O que se passa com ela? - perguntou. - Porque se apagou?

- Está morta - respondeu ele em voz baixa.

- Não sabia que as espadas podiam morrer.

- De alguma forma, as espadas mágicas estão vivas, por isso podem morrer. Os sheks arrebataram a Haiass todo o seu poder. Converteram-na numa espada vulgar, sem vida.

- Porquê? - sussurrou Victoria.

- É uma mensagem. Uma maneira de me dizer que já não sou um deles.

Victoria estremeceu.

- É cruel - disse.

Christian não respondeu. Victoria ficou a olhar para ele, e viu-o com a cabeça baixa, os ombros descaídos. Era como se tivesse envelhecido vários anos de uma vez.

E não se devia apenas à espada, compreendeu ela de imediato.

- Christian, o que se passa contigo? Há algum tempo que estás diferente. Estás... a mudar. Estás bem?

Por fim, o rapaz ergueu a cabeça para a olhar no rosto. À luz das três luas, Victoria viu que os seus olhos azuis estavam húmidos, carregados de emoção e de sofrimento. Sentiu que o seu coração se partia em mil pedaços.

- O que está a acontecer-te, Christian? Não gosto de te ver assim. Se puder fazer algo por ti...

Interrompeu-se logo, recordando que pouco antes tinham discutido, que lhe tinha dito coisas das quais se arrependera de imediato.

E perdoou de novo. Perdoou a dor que sentira ao vê-lo com Gerde, ao recordar a horrível experiência da Torre de Drackwen, ao evocar, sem querer, a sua gelada impassibilidade enquanto Ashran a torturava. Abraçou-o com todas as suas forças, e o jovem correspondeu ao seu abraço de boa vontade, o que também não era próprio dele. Victoria acariciou o seu suave cabelo castanho.

- Lamento, Christian - sussurrou-lhe ao ouvido. - Lamento muito. Não te compreendo, não posso entender-te... mas quero fazê-lo, realmente. Não quero perder-te.

Ele não disse nada, e Victoria pensou que estava zangado com ela.

- Não é verdade o que te disse antes - prosseguiu. - Confio em ti. Sei que me amas. Quero... quero estar contigo.

- Eu sei - respondeu Christian, com suavidade.

Victoria aproximou-se dele para o olhar nos olhos. O imenso amor que via no seu olhar comoveu-a, mas também a inquietou, recordando que ele não costumava manifestar os seus sentimentos de forma tão aberta.

- Não pareces tu. É como se...

- Como se me estivesse a tornar mais humano - completou Christian, e Victoria conteve a respiração, compreendendo que era exactamente isso o que lhe estava a acontecer.

Christian afastou-se um pouco dela e desviou o olhar.

- O shek que há em mim está a morrer - explicou. - Repudiado pelos da sua espécie, rodeado de pessoas, reprimindo o seu instinto uma vez e outra, vencido pelas emoções humanas que existem dentro de mim... agoniza cada vez mais depressa. Isto não é mais do que um aviso do que me vai acontecer - acrescentou, indicando Haiass.

Victoria calou-se por um momento, absorvendo as suas palavras.

- Devia alegrar-me - disse por fim - por os teus sentimentos estarem a matar a serpente que há em ti. Mas não posso fazê-lo. Detesto ver-te sofrer assim.

- Estou a tornar-me mais humano - sorriu Christian. - Mas tu não te apaixonaste por um humano.

Victoria quis dizer algo, mas calou-se, porque compreendeu que tinha razão.

- Estou a sentir coisas que nunca senti - prosseguiu ele. - Não só amor, mas também... dúvidas, angústia, medo... dor. Solidão. Sinto-me... cada vez mais perdido, mais confuso. É como se estivesse doente. Estou a perder poder, Victoria. Suspeitava disso, mas esta noite percebi até que ponto sou vulnerável.

- Gerde - adivinhou Victoria. Christian assentiu.

- Pediu-me um beijo em troca da minha espada. Um beijo é só um beijo, percebes? Só tem a importância que tu lhe queiras dar. Pode não significar nada... ou pode mudar tudo.

Olhou-a intensamente, e Victoria sentiu que corava, recordando o primeiro beijo que tinham trocado. E do muito que significara para ambos. E como tinha mudado tudo.

- Era uma maneira de me testar - prosseguiu Christian. - Ela sabe o que me está a acontecer. E eu sabia que, no meu estado, existia a possibilidade de que a sua magia pudesse afectar-me.

- Apesar disso beijaste-a - disse Victoria em voz baixa; mas não era uma censura.

Christian assentiu.

- Se me tivesse recusado, teria confirmado as suas suspeitas. Ter-lhe-ia demonstrado que é verdade, que tem poder sobre mim. Não me deixou outra saída. O seu feitiço nunca me tinha afectado. Quando estive com ela, fiz sempre exactamente o que queria fazer, controlei sempre a- situação. Hoje perdi o controlo, e isso significa que sou mais humano do que pensava. Se não tivesses chegado, Gerde ter-me -ia enfeitiçado por completo. E não sei o que teria acontecido depois. Não sei se teria poder para me matar ou para me levar de volta à Torre de Drackwen, para que fosse Ashran a acabar com a minha vida, Victoria respirou fundo, compreendendo muitas coisas. Aproximou-se mais dele, apoiou a cabeça no seu ombro, pegou-lhe na mão.

- Então porque é que a deixaste ir? Pode voltar a fazer-te mal. Christian tardou um pouco a responder.

- Suponho que... porque me trazia notícias do meu pai - respondeu por fim em voz baixa.

Victoria calou-se, assimilando aquela declaração surpreendente.

- Christian, já sei... que é teu pai e tudo... mas... depois de todo o mal que te fez... ainda sentes falta dele?

- Achas assim tão estranho? Tu estás aqui, comigo... depois de todo o mal que te fiz.

Victoria não soube o que responder.

- É muito mais do que isso - procurou Christian explicar. - Sabes, estou aqui, ao teu lado, porque assim quis. Mas este não é o meu ambiente, e a tua gente nunca me aceitará tal como sou. Em contrapartida, antes... - Calou-se por um momento, perdido nos seus pensamentos, e prosseguiu: - Antes era tudo claro, antes sentia-me parte de algo. Antes... de a minha humanidade começar a manifestar-se.

- Sentes falta disso - entendeu Victoria. - Gostarias de voltar a ser um shek.

Christian dirigiu-lhe um olhar penetrante.

- Deixarias morrer Lunnaris dentro de ti?

- Claro que não! - respondeu ela de imediato, horrorizada. Lunnaris é parte de mim, ela... - Calou-se subitamente, compreendendo o que Christian queria dizer.

- Se deixasse morrer o shek que há em mim - prosseguiu o jovem -, seria para mim como se me arrancassem metade do coração. Consegues perceber isso?

Victoria sentiu um calafrio. Compreendeu de repente o que Christian lhe estava a dizer: que, se se tornasse completamente humano, acabaria irremediavelmente por morrer. Que obrigá-lo a deixar de ser o que tinha sido, um ser frio e impiedoso, equivalia a condena-lo à morte. Fechou os olhos. Era demasiado cruel.

- Entendi - balbuciou. - Então, o que vais fazer?

- Parece que sei porque me devolveram a espada. Se conseguir ressuscitá-la, devolver-lhe a sua magia... a minha parte shek também reviverá. Recuperarei o meu poder...

- Mas pode ser que voltes para eles então, não?

- Ou, no mínimo, que me afaste da Resistência.

- E pode até acontecer... que voltes a ser... como antes - sussurrou ela. Não especificou mais, mas ambos sabiam ao que ela se referia. Os dois recordaram uma armadilha, um engano, uma traição. No coração de Victoria ainda ardia dolorosamente o frio olhar de Kirtash, de onde tinha desaparecido todo o rastro de emoção.

- É um risco, sim - admitiu Christian. - Mas não tenho outra opção.

Victoria estremeceu só de o pensar. Christian olhou para as palmas das mãos, abatido.

- Sinto-me tão... frágil, tão vulnerável. As emoções são cada vez mais intensas e não me deixam pensar com objectividade.

Victoria colocou uma mão sobre o braço do rapaz, tentando reconfortá-lo.

- Lembro-me de como eras - disse-lhe com carinho - com a tua espada de gelo. Implacável, poderoso, invencível. Metias-me medo. Tinhas a morte no olhar. Nada podia escapar de ti e não te arrependias de ceifar vidas. Estavas acima de tudo isso, do ódio, do medo, da culpa ou do perdão. Metias-me medo - repetiu -, e odiava-te, e pensava que eras um monstro. No entanto...

Desviou o olhar, confusa. Não podia esquecer que tinha sido Kirtash, na sua versão mais fria e inumana, quem a entregara a Ashran. com tudo o que isso implicara. Fechou os olhos e amaldiçoou Gerde em silêncio. Desde a chegada da fada ao bosque de Awa estavam a acontecer demasiadas coisas que lhe recordavam aquela experiência que procurava desesperadamente esquecer.

- Porque não te apaixonaste por um humano - repetiu Christian com um sorriso.

Ela respirou fundo. "Diabos", pensou. Mais cedo ou mais tarde iria superá-lo e, no fim de contas, ele tinha razão: humano ou shek, amava-o demasiado para o deixar morrer.

- Não gosto de te ver assim, Christian - declarou por fim, levantando a cabeça. - Se tiveres de partir para recuperar o que perdeste... não vou tentar reter-te. Não tenho o direito de te pedir que continues connosco, não posso ficar sentada a ver como morres por dentro.

- Não sei o que fazer - confessou ele. - O meu instinto pede-me que vá, que me afaste de vocês. Mas a cada dia que passa... o meu desejo de estar ao teu lado torna-se mais intenso, mais insuportável. Olhou-a fixamente. - És tudo o que tenho agora, compreendes, Victoria?

És tudo o que me resta.

Victoria, emocionada, abraçou-o com todas as suas forças. "Não lhe vou virar as costas", pensou. "Apesar de tudo, não posso virar-lhe as costas."

- Perdeste tudo por minha causa - murmurou -, e eu não posso corresponder-te de igual modo. É verdade: não tenho o direito de te exigir... fidelidade, nem nada que se pareça.

Christian tardou um pouco a responder. Quando falou, fê-lo em voz baixa:

- Já que falamos de fidelidade, quero explicar-te algo... acerca do que houve esta noite.

- Não é preciso - cortou ela. - Já não me importa. Posso aceitá-lo, só que justamente Gerde...

- Escuta, Victoria, porque quero deixar claras algumas coisas, está bem?

A voz dele soava severa, e Victoria ficou em silêncio.

- Nunca te fui fiel - disse Christian. - A minha ideia do amor não tem nada a ver com o compromisso, com as amarras, com a fidelidade. Houve outras mulheres. Sem rosto, sem nome. Para mim, tratava-se apenas de satisfazer uma série de necessidades físicas.

Nunca te fui fiel, nem o serei no futuro. Mas sou-te leal. Entendes a diferença? Lutarei por ti, ao teu lado, para defender a tua vida. Mesmo que esteja longe, pensarei em ti. Matarei e morrerei por ti, se for preciso. Faço-me entender?

Victoria ficara sem fôlego, procurando assimilar tudo o que ele lhe estava a dizer, por isso não respondeu.

- Não te deixes enganar por nada que vejas, por nada que ouças, estás a ouvir? Enquanto continuar a ser Christian, enquanto usares o meu anel, continuarei a ser teu, com mais longe que esteja, por muitos beijos que dê. Compreendes?

Victoria assentiu, mas ainda se sentia muito confusa, e afastou-se um pouco dele, enquanto esperava que as batidas do seu coração recuperassem o ritmo normal.

Christian não o permitiu. Segurou-a pelos ombros aproximou-a dele, tanto que os seus rostos quase se roçavam.

- E tu? - perguntou-lhe em voz baixa. - Tens ciúmes de Gerde? Estarias disposta a dar-me o que ela me oferecia?

Victoria arquejou, compreendendo o que lhe estava a pedir, e procurou afastar-se de Christian, mas sentia como se um poderoso íman a mantivesse colada a ele. Fechou os olhos por um momento, tentando controlar as suas emoções. Uma parte dela desejava deixar-se levar, entregar-se a ele, às suas carícias, aos seus beijos... ao que viesse depois. Mas também tinha medo, muito medo.

- Eu... - conseguiu dizer, e reparou que tinha a boca seca. - Acho que ainda não estou preparada. - Sentiu-se melhor quando o disse, mas, quando ele se afastou um pouco dela, não conseguiu reprimir um leve suspiro de decepção. - Só tenho quinze anos, Christian.

Receou que ele se a ofendesse, que a deixasse, que se desse conta, por fim, de que Victoria era apenas uma criança e não a mulher que ele esperava encontrar nela. Mas Christian sorria.

- Sabia que dirias isso. Não tenho pressa. E nunca te obrigarei a entregar-me nada que não queiras dar-me.

- Mas posso dar-te um beijo - disse ela, com um sorriso tímido. Se quiseres, claro.

Calou-se, porque Christian se tinha aproximado novamente dela, e olhava-a com uma intensidade que a deixou sem fôlego.

- Tens ideia do que seria capaz de dar por um beijo teu? Victoria quis dizer algo, mas as palavras não saíram.

Sentia-se enfeitiçada pelo olhar de Christian e, embora já não visse o gelo que costumava ver nos seus olhos, ainda os achava fascinantes.

Sorriu-lhe.

- O que serias capaz de dar? - sussurrou. - Se te desse um beijo... o que me darias em troca? - Christian ia falar, mas ela selou-lhe os lábios com os seus, suavemente. - No mínimo - concluiu, quando se separaram -, poderias devolver-mo.

Jack não conseguia dormir. Tinha arrastado a sua enxerga até à entrada da sua cabana, um buraco redondo aberto naquele estranho material sedoso, e tinha-se deitado ali, contemplando as estrelas e as três luas através das frestas da abóbada vegetal do bosque de Awa. Sentia-se como numa tenda de campismo, e teve saudades dos acampamentos de Verão onde costumava ir quando vivia na Dinamarca.

Passara toda a noite a dar voltas a uma ideia que tinha surgido na sua mente, um plano descabido, mas que, quanto mais o estudava, mais atractivo lhe parecia. O pior do projecto era, contudo, não poder compartilhá-lo com Victoria, porque sabia que, se o fizesse, ela não lhe permitiria levá-lo a cabo.

Como um fantasma, a sombra da rapariga apareceu na entrada da cabana. Jack sobressaltou-se, como se os seus pensamentos tivessem conjurado aquela presença.

- Jack? - sussurrou a sombra, e Jack apercebeu-se de que era Victoria, a de verdade. - Olá, posso entrar?

- Claro. Entra - convidou o rapaz, chegando-se para o lado para lhe deixar um pouco de espaço. A cabana não era muito grande, o suficiente para poder estender-se no chão e dormir, mas tinha espaço para os dois.

- Obrigada - murmurou ela, deitando-se ao seu lado. Depois, titubeou antes de lhe pedir: - Posso passar a noite aqui contigo?

Jack tardou um pouco a responder, e Victoria apressou-se a esclarecer:

- Passar a noite, nada mais. Conversar um pouco e dormir.

- Tinha entendido à primeira - respondeu Jack, aturdido, dando graças por estar suficientemente escuro para que Victoria não visse que corara.

Victoria também corou. Desde a insinuação de Christian, não pudera evitar pensar que Jack não tardaria a propor-lhe algo semelhante, e isso punha-a nervosa.

- Sim, bom... Vi Shail - disse ela, mudando de assunto. - Está... diferente.

O seu semblante entristeceu ao recordar as duras palavras que ele lhe tinha dirigido. Jack apercebeu-se.

- Continua de mau humor, não é? - disse, com suavidade. - O que te disse?

Victoria abriu a boca, disposta a contar-lhe que tinham discutido, mas pensou melhor. Falou a Jack da conversa que tinha ouvido às escondidas e do que Shail lhe contara acerca dos planos da Mãe Venerável e do Arquifeiticeiro.

- Não me agrada - opinou Jack. - Porque não falam directamente connosco? Não me cheira bem. E essa sacerdotisa... que pena, parecia-me que a sua preocupação com Shail era sincera.

- E é, de certeza - sorriu Victoria. - Já se conheciam antes, certo?

- É o que parece. Em todo o caso, dá-me a sensação de que, embora se dêem bem, estão em facções distintas.

- Feiticeiros e sacerdotes - assentiu Victoria. - Pelo que tenho entendido, houve sempre uma certa rivalidade entre eles. Mas creio que Shail e Zaisei gostam um do outro.

- Gostam? Mas se são de raças diferentes... Ele é humano e ela é uma celeste.

-E?

Jack deteve-se por um momento, surpreendido, assimilando aquela nova perspectiva.

- É normal que se formem casais mistos, de raças diferentes - prosseguiu Victoria. - Olha o Arquifeiticeiro, porque achas que tem o cabelo de uma cor tão esquisita?

- Num mundo onde há três sóis e as serpentes voam, não me pareceu esquisito que alguém tivesse o cabelo verde - opinou Jack, sorrindo.

- Creio que tem sangue feérico: talvez um avô ou uma avó. "Mistura de raças", pensou ela, inquieta, recordando que era meio

unicórnio e que Jack era meio dragão... Recordando que Christian, um híbrido de shek e humano, também podia sentir-se atraído por uma fada. Sacudiu a cabeça para não pensar nisso.

Jack suspirou e voltou-se até ficar deitado de barriga para cima. Puxou-a para si, e Victoria acomodou-se entre os seus braços e apoiou a cabeça no seu peito, com um suspiro.

- Acho que irei demorar bastante a aprender as regras deste lugar.

- Isso acontece-te por não teres frequentado mais a biblioteca de Limbhad.

- Nunca pensei... que tivesse de ficar aqui muito tempo - murmurou o rapaz. - Diz-me, Victoria... quando tudo isto acabar, o que faremos?

Victoria calou-se por um momento, pensativa. Em seguida disse:

- Não sei. Suponho que eu... terei de ficar aqui. O futuro da magia em Idhún depende de mim. Sou a única que pode consagrar mais feiticeiros. Ainda não sei como o fazer, mas suspeito que não deva ser muito diferente de curar. Talvez seja uma questão de conseguir canalizar maiores quantidades de energia.

- E como vais escolher os futuros feiticeiros? Farás um exame ou algo assim?

Victoria riu baixinho, mas não respondeu à pergunta.

- Quando vivia em Silkeborg - sussurrou o rapaz -, pensava que seria médico quando crescesse, ou biólogo, ou quem sabe veterinário, como a minha mãe. Então, eles vieram e mataram os meus pais, e Alexander disse-me que eu não devia voltar para casa, porque na realidade tinham ido matar-me a mim.

Victoria conteve a respiração. Após uma breve pausa, Jack prosseguiu:

- Roubaram-me a minha vida e os meus sonhos. Tiraram-me tudo. Nunca gostei particularmente de ir à escola, mas daria tudo para voltar a estudar, para recuperar estes três anos que perdi, para ir para a universidade e levar uma vida normal. Ainda tenho família em Silkeborg, sabes? Os meus tios, os meus avós... Há três anos que não sabem nada de mim, pensam que estou morto, tal como os meus pais. Durante a minha viagem pela Europa, telefonei-lhes várias vezes. Bastava-me ouvir a voz de alguém, saber que estavam bem. Marcava e esperava que alguém atendesse, mas não tinha coragem para dizer: "Sou eu, Jack, estou aqui. Tenho de ir salvar um mundo oprimido por um malvado feiticeiro, mas, quando tudo isto passar, voltarei..."

A voz quebrou-se-lhe. Victoria abraçou-o com mais força, e o rapaz concluiu, controlando-se:

- Assim, desligava, sem uma palavra. Quero crer que regressarei para junto deles um dia. Sei que tu ficarás aqui. Tem lógica, nada te prende à Terra. Até mesmo a tua avó é uma idhunita. Mas eu... sabes, às vezes penso que é por isso que não consigo transformar-me em dragão. Tenho medo de me converter em Yandrak para sempre. Tenho medo de não poder regressar a casa simplesmente como Jack. Percebes?

Victoria assentiu em silêncio. Jack agradeceu a sua presença e acariciou-lhe o cabelo. Quis falar-lhe do sonho que o acossara nas últimas noites, mas não o fez, para não a preocupar.

No seu sonho, ele e Victoria enfrentavam Ashran na batalha final. Sonhava que a sua amiga se transformava em Lunnaris, bela mas temível, e que enfrentava o Necromante com o seu longo corno perolino a tremer de ira como um relâmpago na noite. Mas não podia derrotar Ashran sozinha. E Jack ficava ali, paralisado, vendo como o Necromante matava Victoria de mil maneiras diferentes, enquanto ele continuava incapaz de ir em seu auxílio sob a forma de Yandrak, o dragão dourado.

Recordou então Victoria lutando na Torre de Kazlunn, montada sobre o dorso de Christian, que se tinha transformado em shek com insultuosa facilidade. E como Jack tinha tentado despertar o dragão no seu interior, sem êxito. E a voz de Christian: "Transforma-te, Jack! Assim não podes lutar contra eles!"

Naquele momento, Jack tinha compreendido que os seus pesadelos estavam muito perto de se tornar realidade. E tivera a fugaz visão de Christian e Victoria a enfrentar o Necromante juntos, derrotando-o, fazendo cumprir a profecia e selando o destino que os uniria para sempre.

Isto contradizia não só o vaticínio dos Oráculos, mas também os pesadelos de Jack, de alguma maneira.

Ê que, neles, o Necromante tinha sempre a cara de Christian.

Procurou afastar aqueles pensamentos da sua mente.

- Mas não falemos do futuro - disse, com um sorriso forçado. - Ainda não sabemos o que vamos fazer amanhã, pois não? Diz-me, resolveste as coisas com Christian?

- Sim - disse Victoria, e Jack viu um brilho cálido nos seus olhos. Mas não quero falar dele, Jack. Esta noite, não. Quero falar de ti... de ti e de mim.

Aproximou-se mais dele para o beijar com ternura; o gesto apanhou Jack um pouco de surpresa, mas não tardou a recuperar, para desfrutar daquele presente inesperado. Quando Victoria se separou dele, suavemente, Jack inspirou fundo e olhou para ela, estendida ao seu lado, iluminada pela luz das três luas.

- Adoro que voltes a ser carinhosa comigo - disse o rapaz, com franqueza.

Ela desviou o olhar.

- Lamento ter estado tão fria ultimamente. É que... não queria fazer-vos ciúmes. A nenhum dos dois. Mas é muito duro amar alguém e não poder demonstrá-lo, de modo que... - Calou-se por um momento e ergueu a cabeça para o olhar. - Estou só a tentar agir de acordo com os meus sentimentos - sussurrou. - Amo-te muito, Jack. E também amo muito Christian. Estou a procurar... repartir-me entre os dois, dar-vos a ambos o que querem de mim. Antes estive um bocado com Christian... também passei toda a noite a pensar nele, preocupada com o que tinha acontecido entre nós... Isso não é justo, não é justo para ti, por isso agora quero dedicar muito tempo apenas a ti, a estar contigo. Só contigo. Percebeste?

- Sim - disse Jack; sorriu ao ver a atrapalhação de Victoria.

- Mas não é um pouco complicado?

- É - confessou ela. - Mas sinto que é o que devo fazer.

Jack sorriu outra vez e continuou a olhá-la em silêncio. Acariciou-lhe o rosto, afastando-lhe o cabelo que lhe caía sobre os olhos. Fixou-se na sua esbelta figura, recortada contra a suave obscuridade da cabana.

- Essa roupa fica-te bem - comentou, referindo-se ao traje idhunita que as fadas tinham providenciado. A Resistência tinha atravessado a Porta com pouca bagagem, contando que na Torre de Kazlunn lhes emprestariam roupa que chamassem menos a atenção. Por sorte, os refugiados do bosque de Awa tinham encontrado roupa para todos, excepto para Christian, provavelmente porque não tinham peças pretas.

- Gaedalu queria que eu vestisse uma túnica. Uma túnica! - indignou-se Victoria. - Como iria lutar com isso vestido?

Jack sorriu. Victoria tinha escolhido por fim umas calças justas, mas cómodas e flexíveis, umas suaves botas de pele e uma larga blusa branca que se cruzava abaixo do peito e lhe cingia a cintura. O rapaz não conseguiu evitá-lo. Aproximou-se dela e beijou-a novamente, com intensidade, com paixão. Victoria arquejou, surpreendida, mas deixou-o fazê-lo e, quando se viu a tremer nos braços de Jack, suspirou:

- O combinado era... conversar e dormir, lembras-te?

- Tu é que começaste - lembrou Jack, sorrindo. - De qualquer forma, querias falar de nós, não era? De ti e de mim. Pois bem - acrescentou, puxado-a mais para si, com intenção de a beijar outra vez -, não me lembro de uma maneira melhor de te dizer que te amo.

Victoria sorriu. Então, os dois detiveram-se ao mesmo tempo, alerta.

- Ouviste isto? - sussurrou ela.

Jack assentiu sem uma palavra. Escutaram atentamente e perceberam passos furtivos muito perto deles.

- Vem da cabana ao lado - sussurrou Victoria.

- É a de Christian - disse Jack. Christian tinha sido acomodado numa cabana entre a de Jack e a de Alexander, certamente porque supunham que assim eles o manteriam vigiado. Mas isso implicava muitas coisas. Jack e Victoria entreolharam-se, e ambos perceberam que tinham tido a mesma ideia.

Christian era silencioso como um fantasma. Nunca ninguém o ouvia aproximar-se. Jack sabia que se encontrava na sua cabana porque estava acordado quando ele regressara do bosque, um pouco antes de Victoria, e tinha-o visto chegar, apenas uma sombra subtil deslizando entre as árvores. Mas não o tinha ouvido.

- Vamos ver o que se passa - disse Jack.

Victoria deteve-o, indecisa; por um momento, passara-lhe pela cabeça a imagem de Christian a beijar Gerde, e, se por acaso a fada tivesse regressado para fazer mais tratos com ele, Victoria não tinha vontade de voltar a surpreendê-los a meio de uma "transacção".

Então ouviu-se com clareza um gemido surdo e um golpe, e os dois souberam imediatamente que algo não estava bem.

 

               DECISÕES

Christian tinha ouvido o assassino chegar.

Pretendia mover-se em silêncio, mas, para o ouvido sensível do shek, era bastante ruidoso. Contudo, o jovem não se tinha mexido. Permanecera na sua enxerga, com os olhos fechados, respirando com normalidade. Nem sequer tinha permitido que as batidas do seu coração se acelerassem. Nada denunciava que estava acordado e alerta.

Ouviu o intruso deter-se à porta da cabana. Ouviu a sua respiração. Sabia perfeitamente que não se tratava de Victoria. E não teria permitido a mais ninguém entrar na sua cabana de noite e em silêncio. Fosse quem fosse, o intruso estava morto a partir do momento em que se atreveu a meter ali os pés. Mas ainda não o sabia.

Christian esperou que o assassino se aproximasse mais dele. Ouviu como desembainhava uma adaga, deixou inclusivamente que a erguesse sobre ele, antes de se levantar de rompante, mais rápido que o pensamento, puxar pelo seu próprio punhal e enterrá-lo no corpo do intruso, que morreu antes de saber sequer o que o tinha atacado.

Jack e Victoria chegaram à cabana de Christian precisamente quando este saía dela. Victoria, inquieta, percebeu um brilho de aço no olhar do shek.

- Christian, o que...?

Ele procurou afastá-la para se ir embora, mas Jack impediu-o.

- Eh! - Naquele momento descobriu o vulto imóvel que jazia ao fundo da cabana. - Por todos os...!

Então ouviram a voz de Alexander, que chegava com uma lanterna.

- O que se passa?

A luz banhou o interior da cabana, e todos viram a figura de um homem, estendido de bruços sobre o chão, com um punhal cravado nas costas. Victoria reconheceu imediatamente a adaga de Christian, e fitou-o, inquieta.

O rosto do rapaz permanecia impenetrável, e a sua voz soou neutra quando disse:

- Tentou matar-me.

Alexander observou-o por um momento, sério. À luz da lanterna, os seus traços possuíam algo sinistro. Mas Christian susteve o olhar sem pestanejar.

Jack tinha entrado na cabana para dar a volta ao corpo. Descobriu então o punhal que estava no chão, perto dele, e viu que Christian dizia a verdade. Ao olhar o rosto do assassino, reconheceu um dos mercenários humanos que tinham pedido, naquela mesma manhã, a morte para o shek. Jack imaginou a cena: o humano a entrar na cabana de Christian, achando que caminhava silenciosamente, pensando que a sua vítima dormia... acreditando que conseguiria surpreendê-lo ou mesmo sair dali com vida. Jack não sabia se Christian alguma vez chegava a dormir, mas era óbvio que o tinha sentido aproximar-se muito antes de o mercenário ter visto a sua silhueta ao fundo da cabana. Christian era rápido e letal quando era preciso. E tinha um sangue-frio que faria empalidecer de inveja o mais mortífero dos assassinos.

Jack ergueu a cabeça e deparou com o olhar de Alexander. Também ele tinha visto a adaga, tinha reconhecido o morto. Voltaram-se para Christian, ambos ao mesmo tempo. O seu semblante continuava indiferente, mas parecia mais sombrio do que o habitual.

Ao seu lado, Victoria esforçava-se por parecer resoluta, mas a palidez do seu rosto denunciava os seus sentimentos. Sabia que Christian era um assassino, mas talvez tivesse conseguido esquecê-lo ou simplesmente não pensasse nisso quando estava com ele. Agora a evidência atingia-a com uma força brutal, recordava-lhe que ele era capaz de tirar uma vida sem hesitar, sem o lamentar. Controlando-se, tomou a mão de Christian... e Jack surpreendeu o shek a apertá-la com suavidade, num gesto terno que não era próprio dele.

Desviou o olhar para o cadáver, inquieto. Não havia dúvida de que Christian era cada vez mais humano... mas em algumas coisas notava-se que não tinha deixado de ser um shek.

- Podias tê-lo imobilizado sem esforço - resmungou Alexander. Era preciso matá-lo?

- Era uma ameaça - disse Christian.

- Sabes perfeitamente que não era rival para ti!

- Alexander, este homem tentou assassinar Christian - protestou Victoria.

- E ele quis matar-me a mim, e ainda não lhe cravei a Sumlaris, pois não?

- Gostaria de te ver tentar - respondeu Christian sem levantar a voz.

Jack suspirou. Também não era normal que o shek, habitualmente tão frio. reagisse daquela forma às provocações de Alexander.

- Calem-se os dois por um momento, isto é sério - ordenou. - O que acham que vai acontecer quando descobrirem o que se passou?

- A que te referes? - inquiriu Victoria, perplexa. - Christian agiu em defesa própria.

- Desculpem, há algum problema que possamos...? - disse a voz melodiosa de uma das fadas mais novas. - Sagrada Wina! - exclamou a fada ao descobrir o corpo no interior da cabana.

Numa questão de minutos, metade dos refugiados de Awa tinha-se reunido ali. Victoria não se afastara de Christian nem um centímetro, e enfrentava, inquieta mas desafiadora, os olhares, carregados de ódio e desconfiança, que lhes dirigiam alguns dos presentes.

- É um shek, sabíamos que era um assassino - afirmou o Arquifeiticeiro, de mau humor. - Aqui está a prova!

- Ele era o assassino! - disse Victoria pela enésima vez. - Tentou matar Christian pelas costas!

- Divina Neliam - ouviu-se a voz sem voz de Gaedalu, profunda e pausada, como o som de uma campainha, no fundo das suas mentes.

- Então, é verdade.

Viram-na ali, ainda ensopada, com a roupa a pingar, colando-se ao corpo coberto de escamas. As fadas tinham ido acordá-la ao rio, onde dormia, como todos os varu refugiados, para que a sua pele não secasse. Victoria voltou-se para ela, inquieta. Sem dar por isso, tinha-se colado a Christian, que continuava ali, firme, sereno e, sobretudo, imperturbável, como se aquilo não fosse com ele. Victoria apercebeu-se de que Gaedalu os olhava a ambos com uma expressão de desagrado, mas não entendeu porquê. Christian, contudo, percebeu, porque semicerrou os olhos e observou a Mãe, alerta.

- Mãe Venerável, este homem entrou na cabana de Christian e tentou matá-lo - explicou-lhe Victoria.

Mas Gaedalu não a ouvia.

- Os rumores estavam certos - disse. - Sentes algo por esse shek. - A palavra "shek" soou nas suas mentes carregada de desprezo.

Houve algumas exclamações sufocadas, murmúrios escandalizados. Christian afastou-se um pouco de Victoria, talvez para a proteger, mas ela estava já cansada daquela farsa.

- Sim - disse, com orgulho. - Qual é o problema?

Os olhos oceânicos de Gaedalu estreitaram-se e a sua boca torceu-se numa expressão de desagrado.

- Não sejas impertinente, rapariga. Não fazes a mínima ideia daquilo com que estás a brincar, porque se diz por aí que Kirtash, o filho do Necromante, alberga o espírito de uma serpente no seu interior, e eu não conheço nenhum outro shek que tenha adoptado a forma humana permanentemente.

Houve mais comentários indignados, até mesmo algumas exclamações de horror. Victoria não disse nada. Tanto Jack como Alexander desviaram o olhar.

Qaydar deu um passo atrás.

- Vocês sabiam? Sabiam que este shek é o filho do Necromante?

- Sim, sabíamos - suspirou Jack.

- Não posso acreditar - cuspiu o Arquifeiticeiro. - Um unicórnio... e um shek. - Olhou para ambos com profunda repugnância. - Lunnaris e o filho de Ashran.

Victoria sacudiu a cabeça, incapaz de suportar aquilo por mais tempo. Por um lado, sentia-se desconfortável com tanta gente a comentar a sua relação com Christian, algo tão íntimo e especial para ela; por outro, queria gritar aos quatro ventos o seu amor pelo shek, dar a cara por ele, defender até à morte os seus sentimentos.

Sentiu que corava ligeiramente quando ergueu a cabeça para olhar para Qaydar e Gaedalu. No entanto, os seus olhos continuavam limpos e claros como estrelas, e a sua voz não tremeu nem por um instante quando anunciou, com firmeza:

- Estamos juntos, sim. E continuarei com ele, aconteça o que acontecer.

Fez-se um silêncio de incredulidade e surpresa. Victoria colou-se ainda mais a Christian, colocando-se diante dele para o proteger da multidão, e lançou-lhes um olhar de advertência. Foi um movimento instintivo, mas tornou-se claro para todos que a sua preciosa Lunnaris estava disposta a lutar, e talvez a matar e a morrer, pelo filho de Ashran.

Gaedalu tinha ficado sem fala. Qaydar semicerrou os olhos e ciciou:

- A Resistência aliada ao inimigo...

- Um "inimigo" que desafiou o seu próprio pai para se unir a nós - soou então, clara e serena, a voz de Allegra. - Sabes muito bem que Kirtash é o shek da profecia.

- O que é que vocês, feiticeiros, sabem das profecias? - replicou Gaedalu. - Os Oráculos falam a linguagem dos deuses, uma linguagem que vocês não entendem. Não és ninguém para interpretar uma profecia.

- Por acaso negas que ocultaste aos idhunitas uma parte da profecia? - acusou Allegra. - Essa parte da profecia... que falava da intervenção de um shek na queda de Ashran?

Houve murmúrios surpreendidos e escandalizados; surpreendidos pela revelação e escandalizados pelo tom com que Allegra tinha ousado dirigir-se à Mãe.

Gaedalu semicerrou os olhos.

- Não sei como essa informação chegou até aos feiticeiros - disse. Victoria pensou em Zaisei e perguntou-se se Shail soubera da profecia através dela.

- Obviamente não foi graças a ti - interveio o Arquifeiticeiro com frieza.

- Não vou-discutir o caso novamente, Qaydar. Já o discutimos. Em todo o caso, isso não muda nada. A profecia disse que um shek abriria a Porta. Ele já o fez, já cumpriu o seu papel, não precisamos mais dele. O que ocorreu esta noite demonstrou-nos até que. ponto é perigoso tê-lo entre nós. Não vamos esquecer... jamais havemos de esquecer... que não só é um shek, como é o filho do Necromante.

- Ele é dos nossos - replicou Victoria, mal-humorada. - Traiu o seu pai para se unir a nós, quantas vezes tenho de o dizer? Shail foi testemunha de como ambos se enfrentaram num combate até à morte.

- E Shail foi testemunha de como o shek conseguiu escapar? - perguntou Gaedalu. - É que, pelo que sabemos, nenhum dos dois morreu nesse suposto combate até à morte.

Todos se calaram, incomodados. Christian tinha aberto a Porta interdimensional nos arredores da Torre de Drackwen e tinha ficado a cobrir a fuga de Shail e Victoria, enfrentando Ashran. Horas depois, tinha aparecido em Limbhad, gravemente ferido. Ninguém sabia como tinha conseguido escapar da ira do Necromante.

- Mas ele pode sem dúvida contar-nos - afirmou Allegra.

Victoria voltou-se para Christian, esperando que falasse, mas descobriu, tal como todos os presentes, que o shek se tinha esfumado.

- Cobarde! - resmungou Alexander, e os seus olhos reluziram com um brilho selvagem.

- Fê-lo para proteger Victoria - sussurrou-lhe Jack. - Para não a meter em mais problemas.

- Temos de o encontrar - declarou Qaydar. - Agora que foi descoberto, irá informar Ashran de tudo o que viu aqui. Temos de o capturar antes que abandone o bosque.

Victoria duvidava que tivessem a mínima possibilidade de capturar Christian, nem mesmo se o atacassem todos ao mesmo tempo, mas não disse nada. Ainda estava perturbada com o súbito desaparecimento do jovem.

Sentiu a fresca presença de Gaedalu junto dela, e a sua voz sobressaltou-a.

- Não tenhas medo, Lunnaris - disse-lhe a varu. - Estás confusa, e é natural. O nosso inimigo toldou a tua mente, feZ te acreditar que existia algo entre vocês. O seu poder mental é grande, é difícil resistir-lhe. Compreendo-o. No Oráculo, poderemos purificar-te desses pensamentos envenenados, e a tríada de deusas...

- Não - interrompeu-a Victoria, alterada. - Não é verdade. O que sentimos um pelo outro é real, não é um engano.

Enquanto falava, fez girar no seu dedo Shiskatchegg, o Olho da Serpente, até que a pedra mágica ficou virada para baixo, oculta pela palma da sua mão. Agora, à primeira vista não parecia mais do que um anel de prata a adornar o seu dedo. Tinha de o esconder de Gaedalu, pois provavelmente tentaria tirar-lho se chegasse a descobrir o que era.

- Criança - continuou a Mãe a dizer. - Deixa-te guiar pelos que são mais velhos e viram mais coisas. Esse shek não te ama, não pode amar ninguém. Olha como fugiu ao ver-se descoberto, deixando-te para trás. Só esteve a usar-te.

Nos olhos escuros de Victoria, brilhou uma chama de cólera.

- Aqui os únicos que tentam usar-me são vocês - declarou, furiosa.

- Não têm o direito de decidir sobre a minha vida ou sobre os meus sentimentos.

Deu meia-volta e afastou-se dela, irritada e confusa, mas, sobretudo, preocupada com Christian, perguntando-se se ele teria decidido partir do bosque de Awa sem eles e se voltaria a vê-lo.

Jack viu-a ir, resignado. Iludira-se ao pensar que ia passar a noite junto dela, sobretudo porque no dia seguinte, ao raiar da aurora, pensava empreender a viagem que estivera a planear e pretendia fazê-la sozinho. Suspirou. Enfim, agora já não fazia sentido esperar pelo amanhecer. Talvez fosse melhor aproveitar o rebuliço causado por aquele incidente para partir sem que ninguém reparasse.

Vira Victoria a falar com Gaedalu, mas tinha ouvido somente as palavras da sua amiga, não as da Mãe, que tinha enviado o seu pensamento apenas à mente da rapariga.

Não sabia, portanto, o que a varu lhe dissera para a enfurecer tanto, mas tinha uma ideia bastante aproximada.

Também ele pensara, ao saber da sua relação com Christian, que o shek a tinha estado a usar. Mas agora sabia que não era assim.

A multidão tinha-se dispersado, e Jack dispôs-se a voltar para a sua cabana. Alexander reteve-o.

- O que achas? - perguntou-lhe, indicando com um gesto o grupo de pessoas que se embrenhavam no bosque, perseguindo Christian.

- Duvido muito que consigam dar-lhe caça - respondeu o rapaz. Creio que deveríamos ir dormir e falar amanhã com mais calma. E com Shail - acrescentou, antes que o amigo pudesse replicar.

Alexander ficou pensativo por um momento e assentiu. Mas Jack sentiu os olhos negros de Allegra cravados nele, e teve a incómoda sensação de que ela sabia o que estava a pensar.

Esperou na sua cabana que tudo estivesse mais calmo. Quando lhe pareceu que ninguém podia ouvi-lo, saiu em silêncio para a clareira do bosque, carregado com um bornal onde guardara algumas coisas úteis. Sabia que não levava grande coisa como bagagem, mas não podia demorar-se mais.

Deteve-se por um momento diante da cabana de Alexander, hesitou, mas finalmente decidiu não entrar, e desejou que ele o perdoasse por partir sem se despedir. Embrenhou-se no bosque, seguindo o curso do ribeiro. Sabia que, se o fizesse, mais cedo ou mais tarde sairia do bosque. Mas não tinha caminhado nem cinco minutos quando uma voz o sobressaltou:

- Achas que é uma boa ideia?

Jack olhou em redor, entre aliviado e aborrecido.

- Christian! - sussurrou. - Onde estás?

Descobriu a sua silhueta sobre um dos ramos baixos de uma enorme árvore, observando-o como uma pantera à espreita. - Estão todos à tua procura - disse Jack, algo inquieto.

- Eu sei, por isso não vou voltar. E contava contigo para que cuidasses de Victoria.

Jack apoiou as costas no tronco da árvore, com um suspiro.

- Não quero que venha comigo ao lugar onde vou. É demasiado perigoso. E tu? - acrescentou, levantando a cabeça. - Não vais levá-la contigo?

O shek demorou um pouco a responder.

- Não - disse por fim.

- É o seu amor que te está a matar, Christian, não a sua presença lembrou-lhe Jack. - Para onde quer que vás, continuarás a amá-la. Não vais ser menos humano por a afastares de ti.

- Eu sei. Mas também não quero que me acompanhe ao lugar onde vou.

- Também é perigoso?

- Certamente. Jack sorriu.

- Então, desejo-te boa sorte - disse-lhe. - Mas, antes de ires acrescentou, repentinamente sério -, gostaria de te perguntar uma coisa. Tenho de o fazer agora, porque não sei o que acontecerá da próxima vez que nos encontrarmos. Não sei... se seremos como agora. Não sei se seremos capazes... de falar sem tentar matar-nos um ao outro.

- Entendo. Fala, então.

Jack respirou fundo. Em seguida, perguntou em voz baixa:

- Mataste os meus pais?

Os segundos que Christian tardou a responder pareceram-lhe eternos.

- Sabes que não. A morte dos teus pais foi obra de Elrion.

- Tê-los-ias... matado, se não se tivesse adiantado?

- Se fossem idhunitas, sim. Mas não eram. De modo que ter-me-ia limitado a sondar as suas mentes e a deixá-los em paz. Ao fim e ao cabo, as suas mortes não me teriam trazido nenhum benefício. Na realidade... ia por ti.

- Eu sei - disse Jack em voz baixa, evocando o seu primeiro encontro, três anos antes. - O que fizeste... que fizeste com os seus corpos? Nunca os encontraram.

- Enviava todos os corpos dos renegados a Ashran, como prova da sua morte. Também levei os dos teus pais - acrescentou -, como prova da incompetência de Elrion.

- E depois?

- Estão enterrados junto à Torre de Drackwen. Se algum dia nos encontrarmos ali, em circunstâncias mais... favoráveis... posso mostrar-te o lugar, se quiseres.

Jack assentiu, com os olhos cheios de lágrimas. Agradeceu que estivesse escuro, para que o shek não o visse a chorar. Aclarou a garganta antes de perguntar, mudando de assunto:

- Para onde vais? Talvez tenhamos o mesmo caminho.

- Não creio. Eu vou para norte e tu para sul. Estou enganado?

- Não - resmungou Jack. - Como sabias?

- É óbvio. Só há um lugar em Idhún que possa chamar-te tanto a atenção para que decidas ir por tua conta e risco, sem dizer nada aos teus companheiros.

- Talvez - suspirou Jack. - Achas que... servirá de algo?

- Para o vosso próprio bem, espero que sim. Desejo-te... - Hesitou antes de acrescentar: - Boa sorte a ti também.

Jack assentiu e afastou-se do tronco da árvore, pensando que aquilo era uma despedida. Mas Christian não tinha terminado de falar.

- Antes de ires... gostaria de te pedir um favor.

- Qual?

- Um pouco mais além, rio acima... está Victoria, sozinha. Está muito preocupada, e não gostaria de a deixar assim.

- Então porque não vais falar com ela?

Houve unt breve silêncio, e a voz de Christian voltou a soar na escuridão:

- Porque, se a olhar nos olhos mais uma vez, já não terei coragem de partir.

- E o que te faz pensar que eu terei?

Christian não respondeu. Jack ergueu a cabeça na direcção do ramo e descobriu que o shek tinha partido. Por um momento, duvidou, mas depois optou por esconder o seu bornal e avançou um pouco rio acima, como Christian lhe dissera, até que ouviu soluços abafados e viu uma figura acocorada entre os arbustos que tinham uma textura tão suave com a do dente-de-leão. A rapariga balançava-se entre eles, deixando que a envolvessem no seu cálido abraço. Jack aproximou-se dela.

Victoria levantou a cabeça ao ouvi-lo chegar e secou rapidamente as lágrimas.

- Não estava a chorar - assegurou-lhe.

Jack aproximou-se dela e estreitou-a entre os braços.

- Odeio este sítio, Jack - confidenciou Victoria. - Tudo correu de mal a pior desde que chegámos. E não encontro Christian em lado nenhum. Espero que não o tenham

apanhado, porque não sei o que lhe farão se...

- Não conseguirão capturá-lo - tranquilizou-a.

Respirou fundo. Ali, com Victoria nos braços, a simples ideia de partir e abandoná-la tornava-se insuportável. Mas recordou Christian e Victoria juntos, relembrou as últimas palavras do shek, e soube que não era justo, que eles os dois não deviam separar-se. Sabia o que tinha de fazer.

- Victoria - disse-lhe, sentindo que cada palavra pronunciada pesava como uma lápide -, vi Christian. Vai para norte, para longe do bosque. Não foi há muito, talvez o alcances.

Victoria afastou-se dele por um momento e fitou-o, cheia de gratidão.

- Jack, isto é...

- Corre - pressionou-a.

- Jack, nunca esquecerei isto. Jack sorriu com tristeza.

- Eu sei. E agora vai, ou não conseguirás alcançá-lo.

Victoria fitou-o intensamente. Beijou-o, com infinita doçura, sorriu-lhe e afastou-se a correr, rio acima. Jack viu-a ir, com o coração feito em pedaços. Tardou um pouco a controlar-se e a dar a volta para ir, rio abaixo, à procura do seu bornal.

Christian apercebeu-se de que Victoria seguia os seus passos.

Deteve-se e observou-a por um momento da escuridão, tentando conter as emoções que inundavam o seu peito e que ameaçavam transbordar. A jovem não tinha notado a sua presença, mas ele, sim, tinha-a descoberto, e viu que caminhava decidida, com rapidez, completamente segura de que ia pelo caminho certo. Estava a segui-lo a ele, não havia dúvida, e Christian compreendeu muito bem porquê.

- Maldito dragão - suspirou para si mesmo. Podia deixar que Victoria passasse ao largo, podia partir sem permitir que ela o visse pela última vez.

Mas não teve coragem e, quando saiu das sombras, sabia perfeitamente que Jack tinha contado com isso.

- Estás a seguir-me, Victoria? - perguntou-lhe.

Ela parou e voltou-se para ele, alerta, com rapidez, como uma corça surpreendida na clareira do bosque. Quando reconheceu a sua voz e a sua silhueta, lançou-se nos seus braços. Christian sorriu e abraçou-a.

- Ias embora sem te despedires - censurou a rapariga.

- Pareceu-me que era o melhor.

- Vais tentar fazer reviver a tua espada? Christian assentiu.

- vou levá-la à pessoa que a forjou. Talvez ele possa dar-me alguma pista, já que também foi ele quem a reparou da primeira vez, quando Jack a partiu ao meio.

Victoria conteve a respiração, recordando como, apenas umas semanas antes, Jack e Christian tinham lutado num duelo mortal, e o fogo de Domivat, a espada de Jack, tinha conseguido quebrar Haiass, que até esse momento parecera indestrutível. Parecia que tinha passado uma eternidade desde então.

O shek prosseguiu:

- Longe, a norte, além de Nandelt, além de Kazlunn, fica Nanhai, as Terras do Gelo, um mundo frio de altas cordilheiras e picos escarpados. É ali que vivem os gigantes.

- Gigantes - repetiu Victoria em voz baixa.

- São seres solitários que raras vezes saem da sua pátria. Mas um deles forja espadas mágicas. Foi ele quem criou Haiass a pedido do meu pai e de Zeshak, o rei das serpentes.

- Vais encontrar-te com um aliado do teu pai? - perguntou Victoria em voz baixa. - E se for uma armadilha?

- Correrei o risco. De qualquer forma, este gigante de quem te falo não é aliado do meu pai. Não é aliado de ninguém, na realidade. Já te disse que os gigantes vivem de costas para o mundo. É-lhes indiferente quem governa Idhún, é-lhes indiferente a profecia. De modo que ele forjaria uma espada para Ashran, mas também para Jack ou para ti, se lho pedissem. Se for falar com ele, não me denunciará. Não lhe interessam as guerras, os pactos nem as traições. Só lhe interessam as espadas.

Victoria abraçou-o com mais força.

- Quero ir contigo - disse-lhe.

- Sabia que mo pedirias - respondeu Christian com suavidade. Por isso pensava partir sem te dizer nada. Não funcionou, pelo que vejo.

Victoria vacilou, e Christian adivinhou que não queria revelar-lhe que Jack o tinha delatado. O jovem sorriu, perguntando-se se devia dizer-lhe que não era preciso, porque já o sabia. Decidiu que não; além do mais, conhecia o modo de lhe devolver a jogada.

- Se vieres comigo, terás de deixar Jack para trás.

- Falarei com ele, irei pedir-lhe que nos acompanhe...

- Não o convencerás. Além do mais, ele tem os seus próprios planos. - Fez uma pausa antes de acrescentar, com voz neutra: - Ele também parte esta noite, noutra direcção.

Sentiu Victoria ficar rígida entre os seus braços.

- Não te disse? - prosseguiu Christian, sorrindo para si. - Dirige-se para sul, aos confins do mundo. Vai aprender a ser dragão, suponho.

- Não estás a falar a sério - sussurrou Victoria, aterrada.

- Vais deixar que vá sozinho? Se o deixares partir, pode ser que não voltes a vê-lo nunca mais. Claro que também é possível que tu e eu não voltemos a ver-nos, mas talvez possas superar isso.

A rapariga afastou-se um pouco dele.

- Porque me dizes isso? Porque tornas tudo mais difícil? Christian dirigiu-lhe um olhar penetrante.

- Porque tens o direito de escolher - respondeu somente. Victoria voltou-se na direcção do lugar de onde viera, angustiada.

Depois olhou de novo para Christian.

- Escolher... - repetiu com suavidade. - Então, é isso que me estás a pedir?

Christian sacudiu a cabeça.

- Não, não me entendeste. Sei o que há entre nós, e não penso renunciar a isso. Mas também sei o que sentes por Jack. De modo que não posso pedir-te que escolhas entre os dois. Só te peço que decidas quem irás acompanhar desta vez... até que voltemos a encontrar-nos. É óbvio que não podes acompanhar-nos aos dois; vamos em direcções opostas. Também podes ficar aqui, com Alexander e os demais, mas não tenho ilusões a esse respeito. Sei que preferirás ir com Jack ou comigo, em vez de ficar a salvo com a Resistência.

Victoria respirou fundo e mordeu o lábio inferior.

- Tenho a certeza de que vai subir o rio para chegar às montanhas

- prosseguiu Christian. - Se quiseres alcançá-lo, terás de encurtar caminho atravessando o povoado. Vês aquela estrela ali? - Indicou um ponto brilhante no céu.

- Atravessa o povoado e, quando saíres, logo por detrás das nossas cabanas, avança deixando-a sempre à tua direita. Se continuares nessa direcção, chegarás ao limite do bosque mais ou menos ao mesmo tempo que Jack.

Victoria voltou-se para ele, com os olhos brilhantes.

- O que te faz pensar que vou com ele e não contigo? Christian ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Trocaram

um olhar intenso, profundo.

- O que te faz pensar...? - repetiu Victoria, em voz baixa. Ele interrompeu-a:

- Parte-se-te o coração só de pensares em separar-te dele, Victoria

- disse-lhe com suavidade. - Achas que não reparei?

- Também me parte o coração pensar que te vais embora - sussurrou ela. - E que talvez não volte a ver-te nunca mais.

- Disseste que não tentarias impedir-me.

- E não o vou fazer. Quero acompanhar-te. Mas também quero ir corn Jack. Christian, Christian, oxalá pudesse estar em dois sítios ao mesmo tempo. Como posso ficar parada vendo como te vais embora? E como vou deixar que Jack vá sozinho?

- Confia em mim. Sabes que posso cuidar de mim mesmo. No caso de Jack... não tenho tanta certeza. Creio que ele precisa mais de ti do que eu nestes momentos.

Victoria fitou-o com os olhos cheios de lágrimas, mas não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Beijaram-se, entregando toda a sua alma naquele beijo, conscientes de que podia ser o último. Depois Christian sussurrou-lhe ao ouvido:

- Sê prudente. E cuida de Jack. Precisam um do outro... mais do que ambos pensam.

- Eu sei - sorriu Victoria. - Sempre soube.

- Também eu. Mas terás de lho explicar com mais clareza, porque parece que ele não entendeu ainda que é o homem da tua vida.

O sorriso de Victoria abriu-se mais.

- É isso que achas? E então o que és tu para mim? Christian devolveu-lhe um sorriso enigmático.

- Sou o outro homem da tua vida. Ainda não reparaste? Victoria sacudiu a cabeça, perplexa, mas ainda a sorrir.

- Tem cuidado - disse-lhe. - Não te deixes enrolar por Gerde. Se se atrever a fazer-te mal, arranco-lhe os olhos.

Christian sorriu de novo.

- Pelo que mais amas, regressa são e salvo - pediu-lhe Victoria.

- Por ti, Victoria, regressarei são e salvo - prometeu ele.

A jovem enterrou os dedos no cabelo castanho de Christian, acariciando-o com ternura. Os seus dedos roçaram a face dele.

- Estás... quente - disse ela com surpresa; habitualmente a pele do shek apresentava uma frieza suave de que Victoria, longe de achar estranha, gostara desde o primeiro dia.

Christian inclinou a cabeça.

- É a minha humanidade. Até nisso parece uma doença.

- Lamento, Christian - disse Victoria, com um nó na garganta. A culpa é minha. Sou eu quem te está a matar.

- Mas vale a pena - sussurrou ele. - Juro-te que, mesmo que salve a minha parte shek, farei o possível por não perder isto, Victoria, por não te esquecer. Guarda o meu anel. Enquanto o usares, estarei perto de ti. E voltarei para te buscar, não duvides nem por um só minuto. Não penses que vou deixar as coisas assim.

Christian tomou a sua mão, com delicadeza, e ergueu-a para depositar um beijo nela, sem deixar de a olhar nos olhos. Depois, com um sorriso, retrocedeu... e desapareceu na escuridão, apenas uma sombra deslizando na noite, com Haiass presa às suas costas.

E ali ficou Victoria um momento mais, sentindo que o seu coração se partia em dois e que cada uma das metades tomava um rumo distinto, talvez para não voltarem a encontrar-se nunca mais.

Allegra sabia que Christian tinha abandonado a Resistência. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, o teria feito, mas não podia evitar sentir-se aborrecida com Qaydar, Gaedalu e os demais por terem acelerado as coisas.

Também sabia que Jack planeava fazer algo, porque o tinha visto sombrio e pensativo durante toda a noite, e preocupava-a que o rapaz se precipitasse e tomasse a decisão errada.

Fazia tempo que se apercebera, com inquietação, de que Victoria não tinha regressado do bosque. Por isso sentiu-se aliviada quando a viu voltar e entrar na sua cabana, mas não tardou a dar-se conta, preocupada, de que voltava a sair com o báculo e um bornal pendurado ao ombro, embrenhando-se novamente no bosque. Seguiu-a.

Victoria estava tão preocupada em alcançar Jack que não viu a avó até quase esbarrar nela. A rapariga soltou uma exclamação de susto, deu um salto atrás e descontraiu-se quando as luas lhe mostraram as feições feéricas de Allegra.

- Um pouco tarde para passear, não? O coração de Victoria caiu-lhe aos pés.

- Avó... tenho de ir, deixa-me passar - implorou. - Vai-se embora sem mim. Tenho de o alcançar.

- Vais atrás de Christian?

Victoria vacilou, e Allegra entendeu o que estava a acontecer. -Jack? Jack partiu?

Victoria não respondeu. Allegra segurou-a pelos ombros e obrigou-a a olhá-la nos olhos.

- Diz-me para onde foi, Victoria. Não podemos deixá-lo ir sozinho.

- vou com ele - respondeu Victoria com suavidade. - Vamos juntos. Ergueu a cabeça, resoluta e desafiadora, e Allegra viu que os seus

olhos brilhavam com a luminosidade de uma estrela, e recordou que ela era Lunnaris, o último unicórnio. Soltou-a.

- A Mãe quer levar-vos para o Oráculo - disse a meia-voz;

- Não podemos ir, avó. Tens de compreender. E também não podemos..- atacar a Torre de Kazlunn, como quer o Arquifeiticeiro.

- Também sabes disso? - Allegra sorriu, entre divertida e preocupada. - Então sabes que tenho de ficar - acrescentou, mais séria - para vigiar Qaydar. Quer ressuscitar a Ordem Mágica, mas já não restam muitos feiticeiros em Idhún. E tu és a única que pode consagrar mais, percebes? Sem ti, sem o último unicórnio, a Ordem Mágica está perdida. Qaydar não quer perder-te de vista, pois pode utilizar-te para criar mais feiticeiros.

Victoria ficou sem fôlego.

- Mas não posso fazer isso - disse, horrorizada. - Avó, não posso entregar a magia assim, sem mais nem menos. Isso é algo demasiado...

- íntimo - adivinhou Allegra, sorrindo. - Eu sei. Falei disso com Alexander; tínhamos decidido afastar-vos a ti e a Jack do Arquifeiticeiro. Em contrapartida, mesmo que Gaedalu e as sacerdotisas da tríada lunar confiem na protecção das deusas, sei que também não estariam seguros no Oráculo. Assim, tínhamos pensado dirigir-nos a Vanissar, onde reina o irmão de Alexander.

- Todos juntos?

- Salvo eu, naturalmente. Se a Ordem Mágica ressurgir das cinzas, com Qaydar à frente, tenho de estar ali porque sou a única que pode enfrentá-lo. Alguns dizem - acrescentou, baixando a voz - que a tragédia da Torre de Kazlunn o transtornou. Não sei como reagirá quando souber que estás fora do seu alcance.

Victoria ficou em silêncio por um momento. Em seguida, disse em voz baixa:

- Avó, agora estou ainda mais convencida de que Jack e eu temos de partir para longe desta gente. Pelo menos até que compreendam quem somos e para que viemos, se é que alguma vez o chegarão a fazer. Vocês têm coisas a fazer aqui e, por outro lado, não sei o que pretende Jack, mas creio que é algo que deve fazer sozinho... ou, quando muito, com a minha ajuda. Percebes?

Allegra olhou a sua protegida e viu-a mais velha, mais sábia e madura. Respirou fundo, abatida, porque compreendeu que Victoria estava a ponto de voar sozinha e que não poderia impedi-la.

- Entendo, Victoria. E, se é o que realmente queres, vou deixar-vos ir. Mas diz-me só que não vais ao encontro de Ashran.

Victoria titubeou.

- Creio que não - disse por fim -, porque a Torre de Drackwen fica para leste, e Christian disse que Jack se dirige para sul, na direcção dos confins do mundo.

- Awinor - adivinhou Allegra. - Vai visitar a terra dos dragões. Victoria ficou sem fôlego. A avó olhou-a com gravidade.

- Antes foi uma terra rica e fértil, mas agora não é mais do que um imenso e macabro cemitério. Fica para lá de Derbhad, para lá da Cordilheira Cambiante, atravessando o deserto de Kash-Tar. E nos confins do mundo, como disse Christian. Ainda queres ir?

- Mais do que nunca - disse Victoria. - Não quero separar-me dele - acrescentou em voz mais baixa.

Allegra não disse nada, mas aproximou-se dela e abraçou-a, com força.

- Não me podes impedir - disse a rapariga suavemente.

- Eu sei. - Os olhos negros da fada brilhavam sob a luz das três luas, e Victoria viu que estavam húmidos. - Mas deixa que te dê um presente... de avó, de madrinha, de amiga... como queiras chamar-lhe.

Colocou as mãos sobre a cabeça de Victoria, e a jovem sentiu como se algo muito cálido a envolvesse num manto de protecção. Mas, logo que o manto se fechou sobre ela, Victoria arquejou, surpreendida, e respirou fundo, porque sentia que asfixiava.

- Não acabei - disse Allegra, e repetiu a operação.

De novo, Victoria teve aquela contraditória sensação de segurança e opressão, e viu que o seu corpo estava agora coberto com uma leve capa castanha, muito suave ao tacto, mas que à primeira vista parecia pesada, tosca e vulgar.

- É um manto de banalidade - explicou-lhe Allegra. - Enquanto o tiveres posto, reduzirás a possibilidade de que alguém repare em ti. Não te torna invisível, mas faz com que não chames a atenção de ninguém.

- Sufoca-me - disse Victoria -, mesmo não pesando nada.

- É porque reprime tudo o que há de extraordinário em ti, o que não é pouco - sorriu Allegra. - Por isso não deves abusar dele. Não o uses em lugares despovoados, só naqueles onde realmente achares que podem descobrir quem és.

- Mas Jack...

- Pus-te duas capas, uma em cima da outra. Uma delas é para ele. Victoria abraçou-a novamente.

- Obrigada, avó.

Allegra tirou então um rolo da bolsa que levava presa ao cinto.

- Toma; isto é um mapa de Idhún, bastante pormenorizado. Vai ser-vos útil, e... - Vacilou e abraçou Victoria uma vez mais. - Que os Seis vos protejam, filha.

Victoria abraçou-a também e afastou-se dela. Fitou-a ainda durante um momento antes de desaparecer entre as sombras, e foi um olhar cheio de emoção, mas também inteligente, sereno e seguro. Allegra viu-a partir e soube que a sua missão tinha terminado, que Victoria, Lunnaris, já não era responsabilidade sua; mas, por alguma razão, não se sentiu melhor.

Jack tinha subido o curso de um dos afluentes do rio que atravessava o bosque. Tinha sido difícil, muito difícil, avançar através dele; por vezes, a vegetação era tão cerrada que não tivera outro remédio a não ser entrar no ribeiro e ir água acima, lutando contra a corrente. Mas mesmo nos lugares em que o bosque lhe deixava espaço suficiente para avançar, não tinha sido uma marcha cómoda. Os sons e as formas escuras da floresta inquietavam-no; por outro lado, tinha a impressão, completamente irracional, de que todo o bosque o estava a observar...

Por fim, alcançou os seus limites quando já estava quase a amanhecer. Parou, ofegante. Tinha caminhado a um bom ritmo, porque receava que Alexander e os outros fossem à sua procura, logo que descobrissem que partira, e queria afastar-se o mais possível... para que não o alcançassem, mas, também, para acabar com toda a tentação de regressar. Pensou em Christian e Victoria, e que aquilo era o melhor para todos. Além disso, com eles a viajar em direcção a norte, Alexander e os outros a caminho de Vanissar, a Mãe no Oráculo, o Arquifeiticeiro a organizar a reconquista da Torre de Kazlunn e ele próprio a ir para sul, em direcção a Awinor, Ashran teria muitas frentes para atacar e localizá-los iria custar-lhe algum tempo.

Respirou fundo. Não sabia bem o que encontraria em Awinor, mas queria saber mais coisas sobre os dragões, queria ver o lugar onde tinham vivido e onde Alexander o encontrara quinze anos antes, salvando-o de uma morte certa devido à mortífera conjunção astral. Queria ver se realmente se tinham extinguido todos os dragões do mundo. Acima de tudo, esperava que o contacto com Awinor despertasse o dragão que havia em si.

Estava cansado, muito cansado, porque mal dormira, mas mesmo assim decidiu seguir em frente.

Então, na última fila de árvores, viu um vulto que o aguardava envolto nas primeiras luzes da aurora. Jack conteve a respiração. Tê-la-ia reconhecido em qualquer lugar.

Por um momento pensou que era um sonho, uma fantasia, uma quimera. Mas, quando ela lhe sorriu, entre tímida e afectuosa, Jack percebeu que era real.

- Victoria... o que fazes aqui?

- vou contigo. Para onde quer que vás. De início, Jack não soube o que responder.

- Mas... não estavas com Christian?

- Fui despedir-me dele. Disse-me que tinhas partido. Disse-me como te alcançar.

- Maldita serpente - resmungou Jack, compreendendo a jogada do shek; sorriu, pesaroso.

Victoria pegou-lhe na mão e fitou-o nos olhos.

- Disseste-me que não voltarias a ir embora. Que estarias sempre comigo, lembras-te? Não podia perder-te outra vez.

Jack fitou-a, confuso e emocionado. Aquilo não podia ser real.

- Mas, Victoria... vou para muito longe. A Awinor. Isso fica...

- Nos confins do mundo - cortou ela. - Sim, eu sei, mas é-me indiferente: quero ir contigo. Para lá dos confins do mundo, se for preciso. Nunca mais quero voltar a separar-me de ti.

Jack abraçou-a, com todas as suas forças.

- Eu também não - reconheceu com voz rouca -, mas que podia eu fazer senão partir?

- Confiar em mim - sussurrou ela. - Acreditar que sou uma digna companheira de caminho, que sou sincera quando te digo que te amo, que realmente queria passar a noite contigo.

Jack sorriu, mas não conseguiu responder porque a emoção tinha-o deixado sem palavras.

 

               O INÍCIO DE UMA VIAGEM

- A culpa foi minha - disse Shail, cheio de remorsos. - Por tudo o que lhe disse. Fi-la pensar que era uma carga para mim, e... não era verdade. Maldição...

Tinham-se reunido junto ao rio, longe de ouvidos indiscretos.

Sabiam que não tardaria a chegar ao Arquifeiticeiro e aos Veneráveis a notícia de que Jack e Victoria tinham partido; e, nessa altura, eles, o que restava da Resistência, teriam de responder a muitas perguntas. Talvez não tivessem outra oportunidade para falar a sós e decidir o que deviam fazer.

- A culpa não é tua, Shail - murmurou Allegra. - Por muito que nos custe aceitá-lo, creio que tomaram a decisão certa.

- Então, Victoria foi com Jack - disse Alexander, para se assegurar.

- Não com Christian.

Allegra assentiu. Shail ainda parecia confuso, mas o seu companheiro sorriu, satisfeito.

- Jack cuidará dela - assegurou. - Sabe desenrascar-se.

Shail negou com a cabeça, apoiando-se desajeitadamente no bordão que lhe tinham arranjado e que ainda não manejava com facilidade.

- Não é o mesmo. Este não é o seu mundo, Alexander. Mesmo que os dois procedam de Idhún, nunca viveram aqui, não conhecem este lugar. Para Jack e Victoria é um mundo novo, tal como a Terra foi para nós, quando lá chegámos. Mas nós tínhamos Limbhad, e eles não têm nada. Para não falar do facto de que, logo que Ashran saiba que abandonaram o bosque de Awa, revolverá céu, terra e mar para os encontrar.

- Acham que consegue adivinhar para onde vão?

- Ashran deve saber para onde se dirige Christian - disse Allegra.

- Começo a pensar que Gaedalu tinha razão, e que esse rapaz não escapou da Torre de Drackwen por acaso. O seu pai ainda devia ter planos para ele, de modo que afastar-se de nós foi a coisa mais inteligente que pôde fazer, se realmente quer proteger Victoria. Em relação a eles...

- Todos esperam que Jack e Victoria liderem a rebelião contra o Necromante - reflectiu Alexander -, não que se escondam no lugar mais remoto do mundo, onde ninguém pode acolhê-los nem apoiá-los na sua luta.

- Então, o que devemos fazer?

- Levá-los a acreditar que vão fazer o que se espera deles - decidiu Alexander. - Ir a Vanissar, iniciar uma rebelião, apoiar o Arquifeiticeiro na sua cruzada absurda se for preciso... Todos devem pensar que o dragão e o unicórnio não estão longe de nós e que chegarão para lutar ao nosso lado no momento oportuno. Que a Resistência continua unida, e que toda a gente saiba exactamente onde está. Para que Ashran se centre em nós na hora de ir à procura de Jack e de Victoria.

- Achas que cairá na armadilha?

- Não sei, mas temos de tentar. E, mesmo que assim não seja, se lhe dificultarmos as coisas, não terá outro remédio senão prestar-nos atenção.

- De acordo - aceitou Allegra. - Sigamos com o plano e vamos a Vanissar. Shail?

O mago fitou-a, duvidoso.

- Isso implica ir na direcção contrária à que eles tomaram - disse.

- Nós sabemos. Querias ter ido com eles? - perguntou Allegra com suavidade.

- Tê-los-ia atrasado - admitiu Shail a contragosto, olhando para o lugar onde antes tivera a perna esquerda. - Ainda assim... há outra coisa que me preocupa, e é essa ditosa profecia. - Ergueu os olhos castanhos, olhando fixamente para os amigos. - Demorámos anos a saber que também havia um shek implicado nela. Pergunto-me que outras coisas nos ocultam os sacerdotes... e se há algo mais nessa profecia que devamos saber.

Allegra e Alexander assentiram, sombrios.

Foi um dia muito complicado para a Resistência. Assim que as fadas informaram que, juntamente com o shek, também tinham desaparecido Yandrak e Lunnaris, tanto a Mãe como o Arquifeiticeiro pensaram que Kirtash lhes tinha armado uma cilada e arranjado maneira de acabar com eles. Mas os seus amigos, mesmo que parecessem preocupados, não se mostravam minimamente tristes ou desesperados, pelo que Gaedalu não demorou a perceber que eles sabiam mais do que queriam admitir. Quando os interrogou a esse respeito, foi Alexander quem tomou a palavra:

- Kirtash não tem nada a ver com isto - declarou. - Jack e Victoria partiram por vontade própria.

- Os dois sozinhos? - perguntou Qaydar, semicerrando os olhos. Alexander fitou-o por um momento. Não confiava no Arquifeiticeiro, e a sua obsessão por reconquistar a Torre de Kazlunn não melhorava as coisas. Mas teria de o convencer, pelo menos a ele, a apoiar a Resistência. De modo que disse, escolhendo as palavras com cuidado:

- Partiram sozinhos porque aqui estavam em perigo. Ashran sabia onde se escondiam, e é uma questão de tempo até que o bosque de Awa caia nas suas mãos, como caiu a Torre de Kazlunn.

O rosto do Arquifeiticeiro contraiu-se numa expressão de ódio. Mas calou-se e esperou que Alexander continuasse a falar.

- Temos de organizar uma rebelião - prosseguiu o jovem. - Temos de reunir um exército para lutar contra Ashran. E, quando estivermos preparados, Yandrak e Lunnaris voltarão para liderar o ataque e... e reconquistar a Torre de Kazlunn se for preciso - acrescentou. - Mas não agora. Ainda não somos fortes, ainda não estamos organizados. Se Ashran nos atacar, é melhor que o dragão e o unicórnio não estejam connosco, porque há muitas possibilidades de conseguir acabar com eles.

- Ashran não poderá acabar com eles - disse Gaedalu. - São os heróis da profecia.

- Até os heróis podem morrer - replicou Alexander com frieza. Eu vi crescer estes miúdos, vi-os enfrentar situações difíceis e sair triunfantes; mas também sei que são vulneráveis. Se Yandrak e Lunnaris são a única esperança que nos resta, devemos protegê-los até que estejam preparados, não lançá-los às garras de Ashran à primeira oportunidade. Hoje em dia, o nosso inimigo ainda é mais forte do que nós.

- Teriam estado seguros no Oráculo...

- O primeiro sítio onde Ashran os iria procurar - interveio Allegra. Os olhos oceânicos de Gaedalu centraram-se neles.

- Por acaso sabem para onde oram? - perguntou.

Alexander ergueu a cabeça e olhou-a fixamente e não titubeou quando disse:

-Não.

Shail esforçou-se por disfarçar a sua perplexidade. Alexander nunca mentia. Era algo que era proibido pelo código de honra da ordem de cavalaria à qual pertencia.

O feiticeiro obrigou-se a recordar que nos dois anos que passara longe da Resistência tinham mudado muitas coisas... e que o seu amigo já não era o príncipe Alsan que conhecera.

Gaedalu semicerrou os olhos, tentando sondar os seus pensamentos. Mas deparou-se com uma barreira impenetrável. Talvez um shek pudesse ter lido a verdade na mente de Alexander, mas os poderes mentais dos varu eram limitados, e Alexander tinha uma vontade de ferro.

Ha-Din, contudo, desviou o olhar, atrapalhado. Sabia perfeitamente que Alexander estava a mentir, e o jovem perguntou-se se os denunciaria. Mas o Pai permaneceu calado.

- Porque deveríamos acreditar em ti? - interveio o Arquifeiticeiro.

- És um príncipe sem reino. E já não és o cavaleiro que partiu para o outro mundo. Recordo como eras na altura. Não tinhas o cabelo grisalho e os teus olhos eram diferentes. Detecto em ti uma onda de magia negra.

- Os esbirros de Ashran fizeram de mim o que sou agora - admitiu Alexander; mas não deu pormenores. - Não lhes estou grato por isso. Ardo em desejo de os fazer pagar.

Vingança - aquela era a linguagem que Qaydar entendia. Assentiu; mas ainda o olhava com desconfiança. Allegra deu um passo em frente.

- Eu estou com ele, Qaydar. Se não consegues confiar num iniciado, pelo menos ouve-me a mim. É certo que não sou arquifeiticeira, mas tive a meu cargo uma torre de feitiçaria e sei o que é perdê-la. Desejo recuperar o que Ashran nos arrebatou. Eu vou com o príncipe Alsan para norte, para Vanissar, a fim de iniciar uma rebelião a partir dali.

Gaedalu olhou-os com ressentimento.

- Feiticeiros - disse. - Sempre a pensar nos vossos próprios interesses. Não vos apoiarei na vossa loucura. Regressarei ao Oráculo e rezarei aos deuses para que Yandrak e Lunnaris recuperem o bom senso e venham ter connosco.

Shail ergueu a cabeça bruscamente para olhar para Zaisei, que estava de pé atrás de Gaedalu, juntamente com o resto das sacerdotisas do seu séquito. A jovem celeste susteve o seu olhar por um momento, mas depois voltou a cabeça para o outro lado. Shail sabia que Zaisei não os acompanharia a Vanissar, pois o seu lugar era no Oráculo, com os seus superiores. Isso significava que teriam de se separar, apenas dois dias depois de se terem reencontrado. Uma vez mais, o feiticeiro apercebeu-se da muralha que os separava.

Gaedalu deu meia-volta e afastou-se em direcção ao rio, seguida das sacerdotisas. Zaisei não voltou a cabeça uma só vez, mas Shail não afastou o olhar dela até que o grupo se perdeu nas sombras da floresta.

- Não deviam ter deixado Lunnaris partir - censurou-os então o Arquifeiticeiro, com um brilho de cólera a faiscar nos seus olhos. - Ela poderia ter outorgado a magia a mais gente, poderia ter sido uma arma muito valiosa para a nossa luta...

- Não está preparada - cortou Allegra, taxativamente. - Ainda não sabe como entregar a magia como os unicórnios fazem, Qaydar. Precipitar as coisas implicaria perdê-la para sempre. Sabes disso tão bem como eu.

O Arquifeiticeiro olhou-a por um momento, sombrio. Então disse secamente:

- Reunirei os feiticeiros para lhes comunicar o que aconteceu. Olhou para Allegra, esperando que replicasse ou que exigisse ser ela mesma a porta-voz da Ordem. Mesmo que Qaydar fosse um arquifeiticeiro e o seu poder fosse maior do que o dela, Allegra estivera à frente de uma escola de feitiçaria e era, portanto, superior a ele em categoria, segundo a hierarquia da Ordem Mágica. Mas Allegra sorriu e inclinou a cabeça, em sinal de conformidade, aceitando assim Qaydar como líder do que restava da comunidade de feiticeiros. O Arquifeiticeiro olhou-a durante um momento, desconfiado, perguntando-se talvez se Allegra procuraria arrebatar-lhe o comando no futuro. Em todo o caso, agora não parecia ter interesse em indispor-se com ele, de maneira que assentiu e afastou-se do grupo, na direcção oposta à que tinham tomado Gaedalu e as suas acompanhantes.

Allegra viu-o ir e suspirou, preocupada. Não via Qaydar com capacidade para liderar a Ordem Mágica; mas a sua longa estadia na Terra tinha diminuído muito o seu poder, e de momento não estava em condições de o enfrentar.

- Acabámos de nos reunir e já estamos divididos - soou uma voz suave atrás deles, sobressaltando-os. - Isso é mau.

Shail, Allegra e Alexander repararam então que Ha-Din, o Pai da Igreja dos Três Sóis, continuava ali.

- E tu, Pai? - perguntou Alexander, inquieto. - Irás acompanhar a Mãe até ao Oráculo?

Ha-Din negou com a cabeça.

- Estamos a construir um novo templo no coração do bosque

- explicou. - Os trabalhos avançam lentamente, porque temos de respeitar o desejo dos feéricos de não destruir uma só árvore, mas, em todo o caso, devo estar aqui para dirigir tudo. A Igreja dos Três Sóis precisa de um novo Oráculo.

- Talvez tenha chegado o momento de voltar a reunir as Igrejas numa só - disse Allegra com suavidade.

Ha-Din riu com gosto.

- Temo que os meus olhos não o vejam, feiticeira. Se o Grande Oráculo continuasse de pé, talvez houvesse alguma possibilidade de isso acontecer. Mas a Mãe tem medo, muito medo, e irá encerrar-se em si mesma no seu templo, sem forças para procurar mudar as coisas...

- À espera de que Jack e Victoria façam o trabalho todo - cortou Shail com brusquidão.

Ha-Din dirigiu-lhe um olhar de profunda compreensão.

- Sim; e receio que esses dois jovens tenham uma tarefa colossal pela frente. Esperemos que Jack encontre em Awinor o que procura, senão... ninguém mais poderá enfrentar Ashran, nem agora nem nunca.

Shail e Alexander olharam para ele, perplexos. Allegra sorriu.

- A tua fama não te faz justiça, Pai - disse. - É verdade que lês no coração das pessoas como num livro aberto. Estiveste apenas duas vezes com Jack e já conheces as dúvidas que o seu coração alberga.

Ha-Din sorriu com doçura.

- Pobres jovens. Às vezes é difícil aceitar os desígnios dos deuses. E o caminho que traçaram para eles faria vacilar pessoas mais poderosas, mais velhas e sábias.

- Pai - disse então Shail, respirando fundo. - Precisamos de saber. O que diz exactamente a profecia?

Houve um breve silêncio.

- Ninguém o sabe - disse então o celeste. - Os Oráculos falam e nós ouvimos. Entendemos algumas coisas... nunca tudo o que dizem. Quando os Oráculos falaram acerca de Ashran, compreendemos o essencial da mensagem: que uma nova Era Negra chegaria a Idhún e que só a magia de um unicórnio e o poder de um dragão combinados conseguiriam

fazer-lhe frente... E que seria um shek quem lhes mostraria o caminho.

- Que lhes abriria a Porta?

- Talvez. Os Oráculos não falam como nós, rapaz. Podemos interpretar as suas palavras de muitas maneiras. Meses antes da conjunção astral, as vozes dos Oráculos

solicitaram a comparecência dos superiores de ambas as Igrejas. Quando lá estivemos, reunidos sob a cúpula do Grande Oráculo, os deuses falaram de novo. Só seis pessoas ouviram a profecia dos Oráculos, Shail. Dessas seis pessoas, três estão mortas. A quarta era alguém próximo de Gaedalu, que eu apenas conhecia de vista. As outras duas são a Mãe e eu. E cada um de nós te recitaria a profecia com palavras diferentes... mesmo que estejamos de acordo no essencial.

- Isso não me basta - disse Shail. - Preciso de saber o que vai acontecer exactamente e qual é o papel de Victoria em tudo isto. Se lhe acontecer algo, será responsabilidade minha... por a ter tirado do seu mundo para a trazer até aqui, por a ter obrigado a participar numa guerra que não é a sua.

Houve um breve silêncio.

- Essa alma humana que bate neles... - suspirou Ha-Din. - Pode ser a sua salvação ou a sua desgraça.

- Há alguma maneira de voltar a ouvir a profecia dos Oráculos? perguntou Alexander.

- Como só resta um Oráculo de pé e esse pertence à Igreja das Três Luas, teriam de falar com a Mãe. De qualquer forma, em quinze anos, as vozes dos Oráculos só voltaram a mencionar a profecia uma vez.

- Ninguém registou aquelas primeiras palavras por escrito? - quis saber Shail.

- Sim, houve alguém que o fez... O Grande Oráculo foi destruído tempos depois, mas conseguimos salvar esse registo, que se encontra no Oráculo de Gantadd, junto com a transcrição do que chamamos a segunda profecia.

- A segunda profecia? - repetiram Shail e Alexander, ao mesmo tempo.

Ha-Din assentiu, com um sorriso sereno.

- Ainda não compreenderam? Da primeira vez que os Oráculos falaram, mencionaram apenas um dragão e um unicórnio. Comentei-o muitas vezes com Gaedalu, consultámos os registos da profecia em muitas ocasiões e concluímos que os Oráculos não falaram do shek em nenhum momento. Foi muito tempo depois, quando a conjunção astral já se tinha produzido, quando os dragões e os unicórnios tinham sido quase completamente exterminados, quando Yandrak e Lunnaris já habitavam noutro mundo, que as vozes dos Oráculos falaram novamente. Repetiram a profecia que já conhecíamos... e acrescentaram a intervenção do shek. Dessa vez, só três pessoas a ouviram: Gaedalu, uma sacerdotisa de Irial e eu. Essa sacerdotisa também tinha estado presente na primeira profecia. Pelo que sei, faleceu há dois anos. De modo que só restamos Gaedalu e eu, e o registo que se fez por escrito daquelas palavras e que permanece no Oráculo de Gantadd. Pode ser que essas anotações sejam mais fiáveis do que a nossa memória, dado que foram realizadas por alguém acostumado a ouvir a voz dos deuses. Não sei.

Houve um breve silêncio, enquanto todos reflectiam sobre aquelas palavras.

Allegra olhou para Shail.

- Alguém devia acompanhar as sacerdotisas de volta ao Oráculo disse de modo elucidativo.

Shail entendeu o que queria dizer. Voltou-se para Ha-Din e Alexander, e viu que ambos o olhavam também. Corou.

- Porquê eu? - perguntou, mesmo sabendo qual era a resposta. Ha-Din olhou-o com um lampejo de riso nos seus enormes olhos azuis.

- Lunnaris também viaja para sul - disse. - Terás possibilidades de te encontrar com ela se te juntares ao séquito da Mãe.

Mas não era essa a única razão pela qual devia ser Shail a acompanhá-las, e todos o sabiam. Sentiu o coração acelerar.

- Irá permitir?

- Sim, porque eu lho pedirei - respondeu o Pai. - Deve-mo; ao fim e ao cabo, mesmo que os Oráculos da tríada solar tenham sido destruídos, os três deuses ainda existem e eu continuo a ser o Pai da sua Igreja.

Jack e Victoria demoraram o dia todo para alcançar as montanhas próximas da Cordilheira Móvel. Tinham-se coberto com as capas de banalidade e haviam caminhado rio acima, o mais depressa que podiam, quase sem parar para descansar. Tinham a sensação de que estavam a fugir... e não necessariamente de Ashran. Não se sentiram a salvo senão quando encontraram refúgio debaixo de uma grande rocha no sopé da cordilheira. Então, deixaram-se cair no chão, ofegantes, e tiraram imediatamente as capas.

- Detesto esta coisa - disse Jack. - Sufoca-me; parece mentira que pese tão pouco.

Victoria não disse nada. Estava demasiado cansada. Jack olhou para ela com carinho.

- Ainda estás a tempo de voltar atrás.

- Não te livrarás de mim tão facilmente - sorriu ela.

Tirou da sua bolsa o mapa que a avó lhe dera e estendeu-o no chão, em frente deles, enquanto Jack rebuscava no seu próprio bornal até encontrar dois grandes frutos azulados. Estendeu um a Victoria, que o aceitou, agradecida.

- Isto é Awinor - disse ela, assinalando o extremo sul da terra representada sobre o mapa. - Nós estamos aqui. - Assinalou outro ponto, uma enorme mancha verde no nordeste.

Os dois observaram em silêncio a distância que separava os dois pontos. Era mais de meio continente.

- Vamos demorar semanas a chegar - disse Jack, abatido. - Oxalá pudesse transformar-me em dragão; então poderia levar-te a voar.

- E atrairias a atenção de todas as serpentes de Idhún - observou Victoria ajuizadamente. - Não me parece boa ideia. Mesmo que seja um longo caminho... estou disposta a percorrê-lo contigo. - Fitou-o durante um momento, séria. - Sabes disso, não sabes?

- Ainda me custa um pouco aceitá-lo - reconheceu Jack, sorrindo. Centraram-se novamente no mapa. Sabiam que podiam seguir duas rotas até Awinor: uma atravessava a Planície Celeste e o deserto de Kash-Tar; a outra implicava percorrer de norte a sul Derbhad, a terra dos feéricos. A primeira vista, esta opção parecia a mais segura, mas Victoria tinha consciência de que seriam facilmente encontrados num lugar mais povoado e que, pelo que sabia, estava muito vigiado pelos sheks, o que já era de esperar, pois os feéricos negavam-se a reconhecer Ashran como senhor e, por conseguinte, o seu império classificava-os como renegados. Já o deserto, sendo mais perigoso, parecia o melhor lugar para passarem despercebidos.

Finalmente, optaram por uma solução intermédia. Seguiriam a Cordilheira Móvel em direcção a sul, sem se afastarem dela e, portanto, sem se embrenharem em Derbhad, caminhando, pois, ao longo da fronteira entre o país dos feéricos, a este do continente, e Celestia, a grande região central. Além disso, lembrou Jack, aos pés da cordilheira havia rochas e grutas, para se esconderem, e um sem-número de ribeiros que desciam por entre as pedras, que lhes proporcionariam água em abundância e, certamente, também comida.

Quando voltaram a guardar o mapa, já havia anoitecido, e as três luas brilhavam sobre eles. Ayea, a mais pequena, um astro de uma suave cor avermelhada, acabava de se erguer no horizonte. Jack estendeu a sua capa sobre o leito de musgo e deitou-se sobre ela, a uma distância prudente de Victoria, para lhe dar privacidade. Mas a rapariga encolheu-se junto dele, procurando o seu calor, e apoiou a cabeça no seu peito. Sorrindo, Jack abraçou-a.

- Estás bem assim?

- Muito - suspirou ela, já meio a dormir. O sorriso de Jack tornou-se mais rasgado.

- Descansa; amanhã temos um longo caminho a percorrer...

"Ao longo da Cordilheira Móvel", lembrou. Pensou de repente que aquele era um nome estranho.

- Victoria, porque lhe chamam Cordilheira Móvel?

- Não sei - bocejou ela. - vou perguntar a Shail da próxima vez que o vir.

Jack viu como, antes de adormecer, Victoria beijou com carinho a pedra do anel que usava, o anel que Christian lhe oferecera. Mas, por uma vez, não sentiu ciúmes. Sabia que era a sua maneira de desejar boa noite ao amigo ausente, alguém de quem se separara para o acompanhar, a ele, Jack, numa longa e incerta viagem.

"Cuidarei dela, Christian", pensou. "Tal como tu cuidarias."

Christian não tivera muitos problemas ao atravessar o bosque de Awa, apesar de andar toda a gente à sua procura. Tinha deslizado por entre as árvores como uma sombra e não demorara a alcançar o limite da floresta.

Uma vez ali, tinha-se transformado em shek.

Sabia que era arriscado, pois os outros sheks iriam descobri-lo mais facilmente do que se avançasse por terra, sob o seu aspecto humano. Mas sentia uma urgente necessidade de se transformar, de voar, de esquecer por uns instantes aquela dolorosa humanidade.

Foi como se algo rebentasse no seu interior. A serpente que havia nele gritou de júbilo, mas, sobretudo, de alívio. Os últimos dias tinham sido cheios de emoções, emoções que tinham consolidado o domínio da sua alma humana, e o shek tinha-se sentido oprimido por ela.

Batendo as suas poderosas asas, lançou-se no imenso céu violáceo, banhado na luz das três luas, em direcção a Nanhai, a terra de gelo, o país dos gigantes.

Por precaução, decidiu desviar-se em direcção ao mar e seguir a linha da costa. Era um caminho um pouco mais longo, mas sabia que, se sobrevoasse o oceano, tinha menos possibilidades de se encontrar com outros sheks do que se atravessasse os céus do país dos humanos.

Mesmo assim, transformado em shek, não conseguiu evitar lembrar-se de Victoria. Fechou os olhos por um momento para perceber as emoções que Shiskatchegg, o anel que brilhava no dedo da rapariga, lhe transmitia. Sentiu calma, serenidade, descanso... felicidade.

Christian assentiu para si. Era assim que devia ser. Victoria estava a salvo com Jack, ele cuidaria dela. Aquele dragão irritante não podia sequer imaginar que o único motivo pelo qual continuava vivo, a única razão pela qual Christian não o matara quando tivera a oportunidade, eram aqueles sentimentos que provocava em Victoria. Jack daria à jovem companhia, amizade, confiança, segurança... tudo aquilo que Christian nunca lhe poderia oferecer.

"Mas, se acontecer algo a Victoria", prometeu a si mesmo, sombrio, "juro que serei eu mesmo o encarregado de te matar."

Gaedalu e as suas sacerdotisas puseram-se em marcha ao anoitecer, e Shail juntou-se ao seu grupo. Todos montavam paskes, enormes animais de pelagem raiada e três cornos na fronte, surpreendentemente cómodos e rápidos. Claro que nenhuma montada seria suficientemente veloz para eles se os sheks os descobrissem, mas nisto a presença de Shail provou desde logo ser útil ao grupo: apesar de ainda se sentir muito fraco, realizou um feitiço de camuflagem que os fez mimetizar-se contra o chão sobre o qual se moviam. De perto, um observador atento poderia ver a comitiva; mas, do céu e de noite, passaria despercebida aos olhos irisados de um shek.

Zaisei não disse nada quando viu que Shail se juntava a elas. O feiticeiro também não tentou aproximar-se. Sabia que estava zangada com ele por ter deixado que Jack e Victoria abandonassem o grupo. Zaisei estava convencida de que Gaedalu tinha razão e que o lugar mais seguro para eles era o Oráculo de Gantadd, supostamente protegido pelas três deusas.

Shail não podia culpá-la por isso. A fé de Zaisei nos deuses era sincera e profunda, e ele não era ninguém para procurar tirar-lha. Afinal de contas, pensou com amargura, era melhor acreditar em algo, em qualquer coisa, do que não acreditar em nada.

E ele já estava a deixar de acreditar na profecia.

Quando Victoria abriu os olhos naquela manhã, viu-se ainda nos braços de Jack. Demorou um segundo a recordar onde estava e tudo o que tinha acontecido. Sentiu-se inquieta, mas a presença de Jack reconfortou-a. Ergueu a cabeça e viu que ele estava a olhar para ela.

- bom dia - sorriu o rapaz.

Victoria pestanejou e esfregou um olho, sorrindo por sua vez.

- bom dia. Há quanto tempo estás acordado?

- Há um bocado. Dormiste bem?

Victoria recostou-se contra ele e respirou profundamente. Parecia mentira. Estava perdida num mundo estranho, com um poderoso necromante e toda uma raça de serpentes aladas a quererem matá-la, no entanto, sentia que aquela manhã era a mais feliz da sua vida.

- Muito bem - disse ela com sinceridade; tinha a vaga sensação de que tivera frio, mas a cálida presença de Jack tinha-a resguardado do relento da noite. - Agora só preciso... de uma casa de banho - brincou. - vou agora mesmo procurar-te uma - respondeu Jack sorrindo. Afastou-se dela e levantou-se. Victoria lamentou que o momento tivesse terminado. Obrigou-se a si mesma a lembrar-se de que não estavam de férias e que tinham uma longa viagem pela frente.

Jack parecia radiante. Sorria de orelha a orelha enquanto sacudia a capa para lhe tirar os restos de terra e ramos. Victoria pensou que nunca o tinha visto tão feliz.

Viu-o sair do refúgio, assobiando baixinho. Sorriu de novo. Apesar de tudo o que acontecera, sentia que não podia parar de sorrir.

Então, de repente, Jack deixou de assobiar e soltou uma exclamação de surpresa. O sorriso de Victoria congelou nos seus lábios. Levantou-se rapidamente, pegou no seu báculo e saiu a correr para se juntar a ele.

Mas o seu amigo não estava ou, pelo menos, não parecia estar em perigo. Tinha ficado de pé, uns metros mais à frente, e olhava em volta, atónito. Victoria juntou-se a ele.

-Jack , o que...?

As palavras morreram-lhe nos lábios.

Estavam rodeados de montanhas - por todos os lados. Picos altos e escarpados pareciam ter engolido a suave planície que tinham atravessado na tarde anterior. Aquela paisagem não se parecia em nada com a que eles recordavam. Os dois voltaram a cabeça ao mesmo tempo para olhar para a rocha que lhes tinha servido de refúgio. Estavá ali, continuava a ser a mesma. Não, eles não se tinham mexido; fora a cordilheira inteira que tinha mudado de sítio durante a noite.

- Já sabemos porque lhe chamam Cordilheira Móvel - conseguiu dizer Victoria.

Jack desatou a rir. Victoria olhou para ele, desconcertada.

- O que é que tem tanta graça? O rapaz tentou acalmar-se.

- Desculpa, é que isto é tudo muito esquisito. Se o levar a sério, ainda acabo por enlouquecer.

Victoria acabou por desatar a rir também. Quando os dois se acalmaram, a rapariga procurou pensar com objectividade.

- Mas, se vai continuar a mudar, como vamos orientar-nos?

- Pela posição dos sóis. Nascem a este, tal como o Sol da Terra. A boa notícia - acrescentou, sorrindo novamente - é que as montanhas trouxeram a casa de banho que procuravas. Vê, aquele ribeiro não estava ali à noite. Pelo menos, poderemos lavar-nos.

Victoria sorriu. O bom humor de Jack era contagioso. Nem sequer aquele lugar desconcertante conseguia toldar a sua felicidade. "Está contente porque estamos os dois juntos, sozinhos", pensou, comovida. Também ela se sentia feliz por estar com ele. Pensou então em Christian, e perguntou-se se estaria bem. De imediato, percebeu que sim. "Se lhe acontecesse algo de mal, eu saberia imediatamente", disse para si, acariciando com um dedo o Olho da Serpente. Sentiu uma onda de nostalgia, fechou os olhos e viu os olhos azuis de Christian. A dor da sua ausência atravessou-a como um punhal afiado, mas esforçou-se por se controlar. "Christian está bem", lembrou a si mesma. "Sabe cuidar de si. E está comigo... de alguma maneira." Voltou a beijar o anel e sentiu-se um pouco melhor.

Sorrindo, seguiu Jack até ao ribeiro.

Ao fim de vários dias a viajar através da Cordilheira Móvel, Jack e Victoria perderam a noção do tempo.

Ao longo dos dias viam as montanhas mover-se. Ou, melhor dizendo, não as viam, mas percebiam as mudanças. Um pico que tinham tido à direita toda a manhã, de repente, aparecia atrás deles; uma montanha vedava-lhes a passagem, obrigando-os a desviar-se para procurar outro caminho; os ribeiros sucediam-se e alguns repetiam-se, e tinham de os atravessar várias vezes. Aqui e além, as montanhas juntavam-se, fechando caminhos; noutros casos, separavam-se, abrindo vales encantados.

No princípio, Victoria não conseguia evitar perguntar constantemente:

- Não nos teremos perdido? Mas Jack negava com a cabeça.

- Não te deixes enganar. Concentra-te nos sóis.

Mas até isso era desconcertante, pensava Victoria, vendo como os três astros projectavam não uma, mas sim três sombras de tudo aquilo que banhavam com a sua luz.

No fundo, Jack não tinha maneira de saber até que ponto tinham avançado. Na Cordilheira Móvel, o mapa que levavam não lhes servia de muito. Mas não queria preocupar Victoria. As montanhas continuavam a mudar, trocando de sítio, aparecendo e desaparecendo, e ele continuava a avançar, infatigável, em direcção a sul, guiando-s pela posição dos três sóis, ao longo de jornadas que pareciam eternas, de dias e noites mais longos do que os da Terra.

Depressa aprenderam a mover-se por ali. Já não contornavam os obstáculos; quando uma montanha lhes cortava a passagem, limitavam-se a acampar no sopé e esperar, simplesmente, que se afastasse. Geralmente, quando acordavam no dia seguinte, já tinham o caminho desimpedido. E continuavam a avançar.

Mas aquela estranha paisagem parecia não acabar nunca.

Jack ensinou Victoria a pescar e a caçar. Era especialmente hábil a lançar pedras, e tinha tanta pontaria que podia alcançar um alvo em movimento a mais de vinte metros de distância. Detestava fazê-lo, contou a Victoria; a sua mãe tinha sido veterinária e ensinara-o a cuidar dos animais, não a matá-los. Mas, no decurso da sua longa viagem pela Europa, tinha atravessado zonas agrestes como aquela e tivera de aprender a sobreviver, a caçar e pescar de vez em quando para poder comer.

Era certo que os animais dali eram diferentes dos que conheciam. Havia, por exemplo, uma espécie de mamífero de pele cor de jade, patas finas, pescoço comprido e focinho achatado, que saltava pelas rochas com a agilidade de uma cabra montesa. Mas nunca conseguiram aproximar-se de nenhum deles. Apareciam e desapareciam de forma surpreendente e, não importava o quanto os jovens se aproximavam, aquelas criaturas pareciam estar sempre um pouco mais longe. Havia também uma raça de animaizinhos peludos, de enormes olhos redondos e longa cauda de leão, que eram fáceis de caçar porque não corriam muito sobre as suas patas curtas. Mas eram difíceis de localizar. O seu pêlo possuía uma curiosa capacidade mimética e, quando ficavam quietos, era muito difícil distingui-los do fundo em que se encontravam. No entanto, ao longo da sua viagem, Jack e Victoria conseguiram caçar dois ou três. Assados, tinham um sabor parecido ao do coelho, com um curioso gosto picante.

Nos ribeiros encontraram uma espécie de peixes rosáceos, muito saborosos assados na brasa, e outros esverdeados cheios de espinhas, que depressa descobriram não serem comestíveis.

De início, tudo lhes parecia novo e estranho. Mas com o tempo acostumaram-se a ver sempre a mesma vegetação, os mesmos animais, as mesmas montanhas. Apenas avançavam e avançavam, como num sonho... até que uma tarde aconteceu algo que os tirou da sua sonolência.

Foi quando atravessavam uma estreita garganta entre dois picos que tinham ultrapassado pelo menos cinco vezes cada um, desde o começo da sua viagem. Jack deteve-se de repente, com um calafrio. Victoria parou junto dele e abriu a boca para perguntar algo; mas percebeu o perigo antes de as palavras saírem dos seus lábios.

Os dois jovens entreolharam-se. Jack estava sombrio, e os seus olhos mostravam um brilho estranho, como se atrás das suas pupilas ardesse um fogo furioso. Victoria entendeu imediatamente o que estava a suceder e deteve a mão de Jack sobre o punho de Domivat. Olhou o amigo nos olhos e disse que não em silêncio, muito séria. Jack procurou controlar-se.

Procuraram um refúgio numa fenda entre as rochas. Jack entrou primeiro, de gatas, para se certificar de que era um lugar seguro. Fez um sinal a Victoria, que entrou depois dele, sem fazer barulho. Uma vez dentro, agacharam-se no buraco e cobriram-se com as capas de banalidade.

Viram-no imediatamente através da fenda, o seu corpo a serpentear sobre as rochas, as asas fechadas, a língua bífida a produzir um cicio aterrador, os olhos irisados perscrutando os espaços entre as pedras. Jack olhou para Victoria, que espiava por uma brecha. Ela parecia assustada, pelo que o jovem deduziu que aquele shek não era Christian. A ele pareciam-lhe todos iguais, mas Victoria teria sido capaz de distinguir o seu amigo de entre todos os sheks do mundo.

Jack e Victoria não sabiam de onde tinha saído aquele; talvez descansasse nalguma gruta dos arredores, talvez tivesse chegado das alturas, talvez tivesse vindo até ali à procura deles. Não o sabiam, mas o que parecia evidente era que tinha de alguma maneira captado a sua presença.

Jack ouviu o som do corpo anelado da criatura a deslizar entre as rochas, cada vez mais próximo; fechou os dedos em volta do punho de Domivat e apertou-o até se magoar, esforçando-se por reprimir o seu instinto que o impelia a sair, a libertar-se daquela capa opressora e a lutar até à morte contra aquele shek. Lutou para se dominar, mas a presença do shek alimentava o fogo que ardia no seu interior, e Jack sentiu que Yandrak exigia ser libertado.

Victoria percebeu então o que estava a acontecer e fitou-o, preocupada. Jack reprimira o seu instinto durante demasiado tempo. Agora que Christian já não estava por perto, agora que havia outro shek nas imediações, um shek contra o qual podia lutar, o rapaz parecia desejar que o dragão que dormia nele tomasse as rédeas.

Victoria teve dúvidas. Isso era o que todos queriam, que Jack aprendesse a transformar-se em dragão; e, a julgar pelo fogo que ardia no seu olhar e pela temperatura do seu refúgio, que subia de forma alarmante, estava a consegui-lo. Mas a rapariga não tinha a certeza de que aquele fosse o momento oportuno. O shek iria descobri-los e, mesmo que os dois juntos conseguissem derrotá-lo, isso alertaria Ashran para a sua localização, já que todos os sheks estavam ligados entre si por fortes vínculos telepáticos. Não, se Jack se transformasse, deveria ser longe de qualquer shek, pelo menos até que estivessem preparados para enfrentar o Necromante.

Victoria ouviu o cicio da língua bífida da serpente muito perto deles. O poder de Jack estava a transbordar e a capa de banalidade já não era capaz de o conter. O shek pouco demoraria a perceber a sua presença.

O rosto de Jack tinha-se contraído numa expressão de ódio e os seus olhos verdes ardiam de fúria. Victoria soube que tinha de fazer algo e depressa.

Precisamente quando Jack estava prestes a retirar a capa para se lançar para fora do refúgio, Victoria segurou na sua mão e lançou-se sobre ele. Jack tentou afastá-la, ainda com o sangue a ferver de ira, mas a rapariga pegou-lhe no rosto com as mãos e beijou-o com paixão. Jack sufocou um arquejo, surpreendido. De imediato, esqueceu-se do shek, esqueceu-se da sua fúria, do dragão que pulsava no seu interior. Fechou os olhos, abraçou Victoria e correspondeu ao seu beijo; para ele tudo deixara de existir, excepto a presença da rapariga que amava. Victoria colou-se mais a ele e cobriu as cabeças de ambos com as capas de banalidade, de maneira que nenhuma parte do seu corpo ficasse de fora do tecido. Jack nem sequer reparou no gesto. Voltou a beijar Victoria quase com desespero, puxou-a mais para si, enredou os dedos no seu cabelo negro. Quando se separaram, ofegantes e com as faces a arder, o shek tinha ido embora.

Não comentaram o episódio durante todo o dia, mas à noite, quando pararam para descansar ao abrigo de uma colina, os lábios de Jack voltaram a procurar os de Victoria, e ela abraçou-se a ele de boa vontade.

Em todos aqueles dias, Jack tinha sido muito respeitador com Victoria. Sabia que estavam sozinhos, sabia que a sua presença o alterava muito, e não queria perder o controlo e fazer algo de que pudesse arrepender-se depois. Mas o beijo daquela tarde tinha estimulado todos os seus sentidos, e o rapaz percebeu que queria mais. Muitos mais.

Também Victoria. A cada dia que passava estava mais apaixonada por Jack, sentia-se cada vez melhor na sua companhia e notava que precisava de o ter perto dela, quanto mais perto, melhor. Também para ela aquele beijo tinha sido uma espécie de libertação.

De modo que os dois continuaram a beijar-se e a acariciar-se durante algum tempo à luz das três luas, bebendo do amor que sentiam, desfrutando da presença do outro. Quando Victoria, alarmada, procurou encontrar maneira de parar com aquilo, foi o próprio Jack quem se afastou dela, ofegante, com o cabelo revolto.

- Espera, espera - disse com esforço. - Tens a certeza de que queres continuar?

Victoria olhou-o, agradecida. Também ela respirava entrecortadamente, e o coração batia-lhe a mil à hora.

- Na realidade... creio que ainda não. - Corou; não fazia muito tempo que vivera com Christian uma situação semelhante, e tentou recordar quais as palavras que utilizara na altura. - Não sei se estou preparada.

Jack assentiu. Afastou-se um pouco dela, fechou os olhos e respirou fundo.

Houve um silêncio, que os dois aproveitaram para se acalmarem. Então, Victoria perguntou:

- Não te importas?

Jack acenou que não com a cabeça.

- És a minha primeira namorada - disse-lhe, sorrindo. - Quero fazer as coisas bem.

Victoria sorriu e aproximou-se novamente dele para apoiar a cabeça no seu ombro. Jack rodeou-a com o braço, e os dois contemplaram durante um momento o belo céu idhunita. Naquela noite, Ayea estava cheia e a sua luz avermelhada banhava a cordilheira com uma suave luminosidade. Ilea, a lua média, era quase um fino sorriso verde suspenso sobre o disco prateado da lua maior, Érea, que estava crescente. Victoria perguntou-se quantas noites faltariam para a ver cheia.

- Às vezes penso - disse Jack, quebrando o silêncio - que gostaria de fazer o que fazem todos os casais na Terra. Levar-te ao cinema, convidar-te para jantar num restaurante bonito, oferecer-te rosas no Dia dos Namorados. Coisas tão simples, tão tolas... que não fizemos nunca e que, provavelmente, nunca faremos.

- Começas a aceitar - disse Victoria a meia-voz.

- Que não voltaremos à Terra, que nunca levaremos uma vida normal? Referes-te a isso? - Victoria assentiu; Jack sacudiu a cabeça. Este é um mundo incrível, cheio de coisas novas, e adoraria explorá-lo a fundo. Mas para mim continua a ser um mundo hostil: um mundo que não me permite ir com a minha namorada jantar à luz de velas; um mundo no qual tudo o que lhe posso oferecer é uma viagem incómoda e perigosa até uma terra morta.

Falou com amargura, e Victoria estreitou-o, com o coração triste. Jack parecia muito mais maduro, mais adulto, do que há apenas uns dias, quando haviam atravessado a Porta interdimensional a caminho deIdhún.

- Levas-me a explorar um mundo mágico cheio de surpresas e aventuras emocionantes - sussurrou com carinho. - Que outro rapaz poderia ter-me oferecido isso?

Jack sorriu e abraçou-a com força.

- Lembro-me de um nome - comentou -, mas receio que teria os mesmos problemas que eu se quisesse levar-te ao cinema.

Por um momento, ambos imaginaram Christian no cinema, rodeado de humanos terráqueos que comiam pipocas e riam. No coração de Victoria, contudo, pulsava ainda a dor pela ausência de Christian, de quem continuava a sentir muita falta. Mas esforçava-se por disfarçá-lo, porque ao mesmo tempo sentia-se feliz por estar com Jack e

não queria estragar isso. Aninhou-se junto dele com um suspiro. Suspeitava que, se fosse ao contrário, se fosse Christian a estar ao seu lado naquela noite, ela sentiria saudades de Jack. Sorriu novamente. Sabia exactamente o que sentia, estava a aprender a assimilá-lo, e sabia que Christian o compreendia também; isso tranquilizava-a um pouco. No entanto, não conseguia deixar de se perguntar se Jack o entenderia da mesma maneira.

Não demoraram a adormecer, ainda com um sorriso nos lábios.

Porém, não tinham esquecido o shek com que se tinham deparado à tarde, de modo que, pela primeira vez, naquela noite dormiram aninhados debaixo das suas capas de banalidade.

Nenhum dos dois dormiu bem.

Alexander e os seus companheiros sabiam que a melhor maneira de não chamar a atenção dos sheks era não fazer nenhuma magia, pelo que tinham decidido viajar a cavalo, munidos também de capas de banalidade. Os três eram personagens importantes naquele mundo, e Ashran pusera as suas cabeças a prémio.

Há vários dias que viajavam através de Nandelt, em direcção a Vanissar, e até àquele momento não tinham tido nenhum problema.

Naquela noite, contudo, Alexander teve de enfrentar uma situação imprevista.

Ayea, a mais pequena das luas, estava cheia.

Em princípio, aquilo não tinha porque o afectar, já que as suas transformações estavam sujeitas ao satélite da Terra. Mas aquela lua encontrava-se demasiado longe, e Alexander sentiu que a essência do lobo que pulsava no seu interior se deixava levar pela influência do astro idhunita.

Por sorte, Ayea era demasiado pequena, e a transformação não chegou a consumar-se. Mas Alexander teve de recorrer a toda a sua força de vontade e autocontrolo para impedir que o lobo despertasse no seu interior.

Durante toda a noite, esteve de mau humor, os seus olhos brilharam de forma estranha e a sua voz soou mais rouca do que o habitual. Também os seus sentidos se tinham alterado. Alexander viu-se a si mesmo a reprimir o instinto que o levava a uivar às três luas e, ao voltar o olhar na direcção de Allegra, descobriu que os sábios olhos da fada estavam cravados nele. "Apercebeu-se", pensou. Teria gostado de partilhar com ela os seus receios e dúvidas, mas o Arquifeiticeiro olhava-o com desconfiança desde o princípio e não queria que soubesse o que lhe estava a acontecer, dando-lhe mais motivos para duvidar dele.

No entanto, havia outros problemas que o preocupavam mais do que agradar a Qaydar, e um deles era o novo ciclo das suas transformações. Se o plenilúnio de Ayea o tinha afectado, o que sucederia quando Érea estivesse cheia? A lua prateada entrava na fase de plenilúnio uma vez em cada setenta e sete dias. Era um ciclo mais longo do que o da Lua da Terra, mas a sua influência era muito mais poderosa. Se Ayea estivera a ponto de despertar o lobo, Érea fá-lo-ia sem dúvida. Restava saber se Ilea, a lua média, a lua verde, tinha força suficiente para o obrigar a transformar-se.

Os plenilúnios de Ayea marcavam o final de cada um dos onze meses do calendário idhunita. Aquele era o plenilúnio do sétimo mês. Alexander calculou em silêncio os dias que faltavam para o plenilúnio seguinte e praguejou em silêncio quando calculou que em apenas seis dias Érea estaria cheia. Depois, daí a quatro meses, Idhún assistiria ao plenilúnio triplo que, a cada duzentos e trinta e um dias, assinalava o final de um ano e o começo do seguinte. O que aconteceria nessa noite à sua alma de lobo?

Longe dali, nas ameias de um imponente castelo, um rei admirava também o brilho das três luas. Cada uma delas associava-se, segundo a tradição, a uma das três deusas. Érea, a maior, era a lua de Irial, a deusa da luz, a divindade dos humanos que, como ele, contemplavam as estrelas e erguiam o olhar para as alturas, querendo sempre chegar mais longe, fugindo da escuridão. Ilea, a lua média, tinha uma tonalidade esverdeada e era a lua favorita de Wina, a deusa da terra, a quem rendiam culto os feéricos, cujos grandes olhos rasgados olhavam sempre em volta de si, das suas árvores e dos seus bosques, cuidando do chão que pisavam, sem se preocupar com o céu que se erguia sobre eles. Por último, no vértice inferior do triângulo estava Ayea, a lua mais pequena ou, como lhe chamavam, a Lua das Lágrimas. Era a lua que representava Neliam, soberana das profundezas oceânicas, deusa-mãe dos varu.

Havia também três sóis, um por cada um dos deuses. O rei não pôde evitar perguntar-se se existiria também um sétimo astro dedicado àquele deus de nome desconhecido que era a origem de todo o mal e da forma mais negra de magia. Interrogou-se igualmente se, por aquelas alturas, ele próprio teria começado a servir os propósitos do Sétimo; e, caso assim fosse, quando teria ele atravessado a linha que separava ambos os lados da realidade.

- Majestade - disse uma voz fria atrás de si.

O rei estremeceu. Não o ouvira chegar, contudo, tinha a sensação de que o deveria ter percebido, porque a temperatura ambiente parecia ter descido.

Voltou-se. Diante dele havia um homem, aparentemente um dos cavaleiros da sua guarda - mas só na aparência.

Os seus olhos eram uma parede de gelo e a sua expressão fria e severa como a de uma estátua de alabastro. E havia algo nele que inspirava terror. O rei esforçou-se por deixar de tremer, por reprimir o impulso que o levava a dar a volta e sair a correr, saltando das ameias e precipitando-se no vazio, se fosse preciso, desde que escapasse dali.

A única coisa que aquela criatura tinha de humano era o aspecto.

- Eissesh - disse o rei com a boca seca, pronunciando o nome do shek.

Inclinou a cabeça ante ele, em sinal de submissão. Eissesh era o lugar-tenente de Ashran no seu reino, o que o informava de possíveis focos de rebelião e se assegurava de que ali se governava conforme os sheks ditavam. Eissesh e o seu exército de homens-serpentes estavam há anos instalados no reino. Geralmente não eram injustos e, mesmo sendo muito severos com os renegados, costumavam deixar em paz a população que simplesmente se ocupava dos seus assuntos. Mas o monarca ainda não se acostumara a eles.

A presença de Eissesh naquela noite nas ameias deixou-o desconfiado. Não por ter ido vê-lo de surpresa, mas sim por se ter disfarçado sob uma aparência humana. Em tantos anos que o conhecia, o rei só o vira recorrer àquela ilusão duas vezes. Eissesh detestava rebaixar-se mostrando-se como humano.

Mas era óbvio que naquela noite queria ser discreto.

- Temos instruções para ti - disse com uma voz gelada, desprovida de emoção.

Eissesh nunca empregara o tratamento majestático na hora de falar com o rei, nem seguira nenhum tipo de protocolo. Para o shek, aquele não era mais do que um humano, por muito soberano que se considerasse.

- Os teus desejos são ordens para mim - murmurou o rei, recordando a si mesmo, uma vez mais, que graças àquela humilhação ainda continuavam vivos e a usufruir de uma paz relativa.

- Vais receber visitas - prosseguiu Eissesh. - Um grupo de renegados muito perigoso. Deves acolhê-los no teu reino e fingir que os apoias.

Estaremos a observar e, quando chegar o momento, dir-te-emos o que hás-de fazer.

O rei tremeu ante as palavras do shek. Contudo, não lhe pareceu nada de mais. Tinha traído muitos renegados. Os seus soldados estavam à cabeça da busca e captura dos Novos Dragões, o grupo rebelde de Nandelt que mais dores de cabeça dera a Ashran e aos sheks.

Mas, em troca, as suas gentes viviam em paz. Tinha de continuar a lembrar-se disso.

- Como irei reconhecê-los?

- Irás reconhecer. Agora tens a oportunidade de demonstrar até que ponto nos és fiel. Não nos falhes... Estaremos a obser... var-te...

A última palavra não soou completamente nos seus ouvidos, mas sim na sua mente.

O rei levantou a cabeça e reparou que a figura humana já não estava ali. No seu lugar, algo semelhante a um relâmpago prateado cruzava o céu, envolto na luz sangrenta de Ayea, em direcção às montanhas.

Gerde passou um dedo pela mesa presidencial, com suavidade. Sentou-se no assento que pertencera a Zimanen, o arquifeiticeiro que governara aquele lugar e que morrera apenas duas semanas antes no ataque dos sheks.

- Senhora da Torre de Kazlunn - ronronou, semicerrando os seus enormes olhos negros. - Que bem que isso soa.

Olhou à sua volta com um suspiro de satisfação. Aquela era a sala de reuniões da Torre de Kazlunn, o lugar onde os feiticeiros de maior categoria costumavam discutir assuntos de diversa índole respeitantes à Ordem Mágica. Gerde era ainda jovem, mas tinha chegado muito longe na sua carreira como feiticeira e não tardara em assegurar um assento naquela mesa - uma mesa sempre presidida por Zimanen, Senhor da Torre de Kazlunn.

Gerde recordava bem a reunião que tivera lugar naquela mesma sala no dia da conjunção astral. Os feiticeiros tinham decidido salvar um dragão e um unicórnio, mas a fada tinha a sensação de que era tudo inútil, de que estavam do lado dos vencidos. Retirou-se para segundo plano e limitou-se a observar os esforços dos feiticeiros. Foi testemunha da viagem de Yandrak e Lunnaris para outro mundo. Também sabia que, imediatamente depois, antes mesmo de os feiticeiros terem enviado Alsan e Shail, a feiticeira Aile Alhenai, Senhora da Torre de Derbhad, conhecida mais tarde pelo nome terrestre de Allegra d Ascoli, tinha atravessado a Porta em segredo, em nome dos feéricos da Ordem Mágica. Gerde não se tinha oferecido como voluntária. Para quê? Duvidava muito que aquela iniciativa fosse ter êxito, embora o lamentasse especialmente pelo unicórnio, a pequena Lunnaris. Lembrava-lhe o unicórnio que lhe tinha dado a magia quando era criança.

Tivera pena por Lunnaris, sim. Mas na altura não conhecia Kirtash. Na altura, Lunnaris não tinha um corpo humano nem um alma que pudesse atrair o filho do Necromante.

Franziu o sobrolho. Apesar de tudo, custava-lhe crer que aquela irritante Victoria fosse o mesmo unicórnio que os magos tinham salvado tempos atrás.

A Torre de Kazlunn resistira a Ashran durante quinze anos. Mas o resto do continente, à excepção do bosque de Awa, tinha caído em poder dos sheks.

E Zimanen continuava à espera de Yandrak e Lunnaris, com fé inquebrantável. Mas fazia tempo que Gerde se tinha cansado de esperar. A torre cairia e, com ela, o resto de Idhún.

Decidiu aliar-se aos vencedores. Abandonou a torre e foi falar com Ashran.

Na altura não imaginara que ele a recompensaria daquela maneira pela sua fidelidade. O seu próprio filho tinha-o abandonado, mas Gerde continuava ali, ao seu lado. Zimanen estava morto e a Torre de Kazlunn tinha caído. Ashran podia tê-la destruído, como já fizera com a Torre de Awinor e a Torre de Derbhad; não obstante, tinha preferido entregá-la a Gerde intacta e criar assim um novo quartel para o seu império.

Gerde não tinha ilusões. Sabia que convinha a Ashran tê-la ali. Ambos estavam ao corrente da obsessão de Qaydar, o último arquifeiticeiro, por recuperar a Torre de Kazlunn. Enquanto o que restava da Ordem Mágica se centrasse nesse objectivo, esqueceriam por um tempo a Torre de Drackwen, verdadeiro foco de poder do império dos sheks. Por outro lado, Kazlunn estava perto de Nandelt, onde se tinham originado vários episódios de rebelião ao longo daqueles anos; aquela torre era o lugar ideal para estabelecer a base a partir da qual se coordenaria a luta contra todos os grupos rebeldes, desde a Resistência até aos Novos Dragões.

Mas, entretanto, ela era dona e senhora daquele lugar. Recostou-se no assento, sorrindo. Nunca simpatizara com Zimanen. Não lamentava a sua morte e tão-pouco o massacre da Torre de Kazlunn. Tinham-no merecido por não a terem ouvido, por não terem acreditado nela quando os advertira de que não se podia lutar contra os sheks. Agora, Zimanen estava morto e ela ocupava o seu posto.

Então um sopro gelado sacudiu a divisão e Gerde viu, de imediato, a sombra da imagem de Ashran, o seu senhor, a flutuar junto à janela.

- Estás confortável? - sorriu o Necromante ao vê-la naquela cadeira. Gerde levantou-se para se inclinar ante ele.

- Os sheks detectaram algo estranho na Cordilheira Móvel - disse Ashran sem rodeios. - Um dos batedores que Zeshak enviou diz ter percebido uma presença que lhe foi muito desagradável... algo que, segundo as suas próprias palavras, "tresandava a dragão". Mas foi apenas durante um instante, perdendo de imediato a pista. Se se tratava do dragão de que estamos à procura, é estranho que consiga esconder-se da sua percepção.

- Essa bruxa da Aile protege-os - murmurou Gerde, recordando o seu encontro com Allegra no bosque de Awa. - Nós, feéricos, podemos esconder o extraordinário à sensibilidade de qualquer criatura, incluindo dos sheks. E Aile é poderosa. Tenho a certeza de que também poderia ocultar algo assim.

- É o que pensava - anuiu o Necromante. - Se as informações forem correctas, então o dragão e o unicórnio dirigem-se para sul.

- Em direcção ao Oráculo de Gantadd - compreendeu Gerde.

- Ou a Awinor - indicou o Necromante. - E, se é essa a rota que seguem, quero que faças algo para o impedir.

Ela estremeceu.

- Não posso segui-los até ali, através do deserto... - protestou; as fadas não sobreviviam muito tempo longe dos seus amados bosques.

- Não será preciso. É muito provável que atravessem Trask-Ban para chegarem ao seu objectivo.

Gerde concordou, pensativa. Trask-Ban era o bosque dos trasgos, o ramo mais desagradável da família feérica, e a maior parte daquelas criaturas traiçoeiras servia a nova Senhora da Torre de Kazlunn.

- Os feiticeiros da Torre de Derbhad abriram há tempos uma passagem segura através da Cordilheira Móvel - disse, todavia. - O que acontecerá se o dragão e o unicórnio encontrarem essa passagem?

- Isso depende de ti, Gerde - disse o Necromante com suavidade. A fada compreendeu. Os seus olhos negros faiscaram com um brilho sombrio.

- A passagem é um lugar perfeito para uma emboscada. Se atravessarem Trask-Ban, os meus trasgos apanhá-los-ão. E se atravessarem a Cordilheira através da passagem, encontrarão uma desagradável surpresa do outro lado. Mas... o que acontecerá se o seu destino for o Oráculo?

- Os sheks irão ocupar-se dessa parte. Gerde inclinou a cabeça.

- Far-se-á como desejas, meu senhor.

Ashran assentiu, e a sua imagem desvaneceu-se no ar.

Os trasgos chegaram ao local indicado quando o último dos sóis já se punha no -horizonte. Examinaram o lugar: havia um caminho estreito que atravessava as montanhas e desembocava num pequeno vale. Mais adiante, as terras começavam a ser secas e ermas: os limites do deserto de Awinor.

Os trasgos posicionaram-se à entrada do vale, e então um deles extraiu um objecto da sua bolsa andrajosa. Parecia uma bola mole e bolorenta, que palpitava na mão do trasgo como se tivesse vida própria. Outro dos trasgos esgaravatou na terra até abrir um buraco de tamanho considerável. Então, o primeiro trasgo deixou cair a estranha semente no seu interior.

Voltaram a tapar a cova, enquanto entoavam com as suas vozes sussurrantes o canto que guiaria a sua magia telúrica, aquela que todos os feéricos, até mesmo eles, possuíam de forma inata, até à semente para a fazer germinar.

Observaram como a planta crescia trémula sob a luz do crepúsculo. Quando deixaram de cantar, a semente tinha-se convertido numa árvore jovem, cujos ramos brancos flutuavam ao seu redor como se fossem os tentáculos de uma medusa.

Um dos trasgos soltou uma gargalhada maldosa. Os outros imitaram-no.

 

               YDEON, O FABRICANTE DE ESPADAS

Christian demorou dois dias a avistar ao longe os altos cumes do Anel de Gelo, a grande cadeia montanhosa que rodeava Nanhai e o separava de Nandelt. Ele sentia-se mais seguro a voar de noite, e assim devia ser, dado que não encontrou problemas nem contratempos no caminho. Só se cruzou uma vez com uma shek quando sobrevoava a populosa cidade de Porto Esmeralda. A shek detectou-o antes que ele pudesse perceber a sua presença, o que era mais uma prova de que estava a perder faculdades. Aproximou-se dele, talvez com a intenção de lhe pedir notícias. Quando Christian quis retroceder, já era demasiado tarde; de modo que esperou por ela, para não levantar suspeitas.

Era uma fêmea velha; talvez tenha sido por isso que não o enfrentou, quando o reconheceu como o renegado que os tinha traído. Limitou-se a lançar-lhe um cicio furioso, mostrando as suas presas letais. Christian dirigiu-lhe um demorado olhar, mas seguiu o seu caminho sem lutar. Sentiu sobre si os olhos da criatura até estar bem longe dela.

Agora, os sheks já conheciam a sua posição. Christian esteve alerta, à espera de que viessem ao seu encontro, mas ninguém o interceptou. Sorriu para si. Cada vez era mais evidente que estava a fazer o que Ashran queria que fizesse e que por isso ninguém o incomodaria na sua viagem. A razão por que o Necromante desejava que Christian ressuscitasse a sua espada, quando fora ele mesmo a arrebatar o seu poder, era ainda um mistério para o rapaz. Não obstante, tinha uma suspeita quanto a essa razão.

Não lhe agradava a ideia de estar a satisfazer as expectativas de Ashran, de estar a servir os seus propósitos, mas não tinha outro remédio. De qualquer forma, prometeu a si mesmo que faria os possíveis por descobrir quais eram exactamente as intenções do seu pai... para não fazer nada de que pudesse arrepender-se depois.

O Anel de Gelo estava sempre envolto em turbulentas tempestades de neve. Christian sabia que era uma loucura tentar atravessá-lo a voar, pelo que procurou uma passagem por terra. Mesmo assim, não se transformou em humano, ainda não. O seu espírito shek não teria suportado voltar tão depressa à sua prisão. De modo que se aventurou pelos estreitos desfiladeiros da cordilheira com as asas fechadas e o seu longo corpo ondulante a deslizar sobre a neve.

Os sheks aguentavam bem todo o tipo de temperaturas extremas. Em climas quentes, os sóis aqueciam o seu corpo de sangue frio. Em lugares mais inóspitos, a sua dura pele escamosa isolava-os perfeitamente do frio e da humidade. Eles mesmos eram capazes de criar gelo à sua volta, pelo que aquele era um elemento que não podia fazer-lhes mal.

Apesar disso, Christian compreendeu de imediato porque é que os sheks nunca se tinham interessado em conquistar Nanhai. Aquele era um mundo desolado de gelos eternos e picos escarpados, que tornavam as montanhas impossíveis de escalar. Além do mais, era difícil aceder a ele, porque os seus céus turbulentos não podiam atravessar-se a voar e porque, por terra, as passagens que se abriam ocasionalmente não tardavam a ser invadidas pelas avalanchas de neve e pelos glaciares. Contudo, Christian deixou-se levar pelo seu instinto e encontrou fendas nas paredes de gelo, gargantas estreitas entre montanhas e cavernas labirínticas que atravessavam os maciços de lado a lado.

Contudo, depressa a fome começou a atormentá-lo.

Os sheks eram capazes de passar vários dias sem comer, porque os seus movimentos, medidos e calculados na perfeição, sem um único gesto impreciso, ajudavam-nos a poupar energias. Mas naquele mundo de gelo não parecia haver nada vivo, e Christian começou a duvidar que pudesse sobreviver àquela viagem.

Quando já estava prestes a perder a esperança, as montanhas abriram-se para dar lugar à alta meseta de Nanhai.

Também ali havia montanhas, mas estavam mais distanciadas umas das outras e as tempestades de neve não eram tão frequentes. Naquele preciso momento, adivinhavam-se mesmo os três sóis através da neblina gelada que cobria o céu. Nos vales e nas vertentes das montanhas, onde os raios solares chegavam mais facilmente, tinha-se desenvolvido vegetação e várias espécies de animais tinham-se adaptado àquele desolado lugar. Christian respirou fundo, sabendo-se já perto do seu objectivo.

Teve de fazer um esforço para levantar voo, mas fê-lo, e deu graças por poder sair novamente do chão.

Demorou um bom bocado a avistar um gigante um pouco mais adiante, ao pé de uma montanha; e descobriu-o porque estava a chover, de contrário ter-lhe-ia passado despercebido. Ao longe, parecia mais uma rocha da cordilheira.

O gigante não pareceu muito surpreendido quando viu o shek descer junto dele. Olhou-o impassível e limitou-se a esperar que falasse.

- Procuro Ydeon - disse somente.

O gigante assentiu, sem uma palavra. Então, levantou o braço, um braço enorme como um tronco e duro como uma rocha, e indicou-lhe um pico distante.

Para Christian, foi o suficiente. Não agradeceu a informação; de qualquer maneira, o gigante também não esperava que o fizesse. Levantou voo e mergulhou novamente no vento gélido de Nanhai.

Érea, a lua branca, já aparecia no horizonte quando alcançou a morada de Ydeon. Não lhe custou localizar a abertura na rocha, uma grande caverna orlada de agulhas de gelo. Hesitou antes de voltar a adoptar a forma humana.

Sentia-se estranho. Há vários dias que estava transformado em shek e tinha a sensação de que o seu corpo humano era insuportavelmente fraco e pequeno. Controlou-se e esticou os braços e as pernas para voltar a acostumar-se à sua outra forma. Depois, entrou no túnel.

Não conseguiria dizer quanto tempo esteve a descer na escuridão. Os seus sentidos de shek ajudavam-no a orientar-se nas entranhas daquela montanha, mas, ainda assim, por mais de uma vez esteve a ponto de resvalar no gelo.

Depressa descobriu que aquilo era um labirinto de túneis. A galeria em que seguia ramificava-se à direita e à esquerda, e algumas das novas condutas tinham um aspecto mais cómodo do que o corredor que estava a seguir, mas não se desviou do seu caminho. Percebia algo quente mais adiante.

Ao fim de algum tempo, começou a ouvir golpes rítmicos que pareciam proceder do coração do mundo. O eco fazia-os soar por todos os túneis, de modo que não conseguia detectar o lugar de onde provinham. Mas o shek tinha uma ideia bastante aproximada. Pouco depois, o túnel iluminou-se com uma suave luz avermelhada, e Christian soube que já estava muito perto. A temperatura ambiente foi aumentando e passou de um calor agradável a um pesado ar abafado. Também a luz avermelhada se tornou mais intensa, e os golpes mais fortes.

Finalmente, Christian virou uma curva e chegou a uma enorme arcada. Os golpes cessaram de súbito. O jovem avançou com precaução e viu que a arcada dava lugar a uma grande caverna iluminada por um brilho alaranjado. Ficou ali, no umbral, percorrendo a divisão com o olhar.

Era um espectáculo estranho. A caverna inteira estava coberta de gelo, e acumulavam-se montes de neve contra as paredes. E era estranho porque, mais adiante, deslizava lentamente um pequeno rio de lava, tórrido, borbulhante. Era como se ambos os elementos, fogo e gelo, não se afectassem um ao outro, como se algo mantivesse separadas ambas as essências que, como Christian sabia muito bem, tendiam a destruir-se mutuamente. O calor emergente do rio de lava deveria ter fundido o gelo há muito, mas não o fizera; e o intenso frio do glaciar também não tinha conseguido petrificar aquela língua de fogo que deslizava através dele.

Christian decidiu que resolveria aquele mistério depois. É que junto ao rio de lava erguia-se uma enorme rocha plana, negra como o azeviche.

E junto à rocha estava Ydeon.

Teria perto de três metros de altura. A sua pele era cinzenta, dura e rugosa como a rocha das montanhas. Os seus olhos, redondos e completamente vermelhos, pareciam brilhar com luz própria. A sua cabeça, desprovida de cabelo, erguia-se sobre um pescoço curto mas largo, assente entre os seus poderosos ombros. Vestia roupas de pele que deixavam a descoberto os seus braços de pedra e as suas grandes manápulas; segurava com uma delas o punho de uma espada cujo fio, no meio da forja, repousava, vermelho-vivo, sobre a pedra negra. Christian perguntou-se onde estava a maça que o gigante estivera a usar para temperar a arma.

- Bem-vindo, príncipe Kirtash - disse Ydeon, o fabricante de espadas; a sua voz soou como uma avalancha de rochas que se precipitava pela ladeira de uma montanha. - Estava à tua espera.

Christian não se moveu. Os seus olhos estudaram o gigante com calma.

- Conheces-me? - perguntou, com suavidade.

- Poucos humanos seriam capazes de chegar até aqui - respondeu Ydeon. - Mas tu não és um humano vulgar.

Christian não viu necessidade de responder. O gigante ergueu então a sua manápula com o punho fechado e desferiu-a contra o metal vermelho. Christian observou-o com interesse, enquanto Ydeon dava forma à espada sem outras ferramentas a não ser o seu poderoso punho. É claro que conhecia a extraordinária força dos gigantes, mas duvidava que muitos fossem capazes de fazer o que o fabricante de espadas estava a fazer naquele momento. Esperou com calma até que Ydeon terminou, ergueu a arma e enterrou-a num monte de neve para a arrefecer. O ar encheu-se de vapor de água.

Ydeon voltou-se para Christian, numa atitude que lhe indicava que estava à sua disposição.

- Venho por causa de Haiass - disse o rapaz a meia-voz. - Já o sabias, não é verdade?

Ydeon assentiu sem uma palavra. Christian desembainhou a sua espada e mostrou-a ao gigante.

- Foste tu quem lhe tirou o seu poder? - perguntou.

- Não lhe posso tirar um poder que nunca lhe outorguei - respondeu o gigante. - Limito-me a forjar espadas... espadas que reunam a máxima dureza com toda a sensibilidade, o que lhes permite absorver e assimilar a magia que lhes dá vida. Mas insuflar-lhes essa magia é trabalho dos feiticeiros... e de criaturas semidivinas, como os dragões, os unicórnios ou os sheks.

Não havia amargura nas suas palavras quando mencionou os dragões e os unicórnios, quase extintos por causa de Ashran e das serpentes aladas. Provavelmente, Ydeon lamentara mais a morte de Haiass, uma espada mítica, do que a de toda uma raça de criaturas inteligentes.

- Então, não há maneira de a reparar? Não se pode despertá-la de novo?

O olhar vermelho de Ydeon encontrou-se com os frios olhos azuis de Christian.

- Isso deverias ser tu a dizer-me. Ao fim e ao cabo, és um shek.

- com que então sabes... Pensava que a Nanhai mal chegavam notícias do resto do mundo.

- Soube-o desde o princípio. Há pouco mais de quinze anos, Ashran e Zeshak vieram pedir-me que forjasse uma espada que pudesse conter todo o poder dos sheks. - Os olhos de Ydeon continuavam cravados nele. - A espada era para ti, rapaz. Nenhum humano teria conseguido brandir uma arma como essa; tinhas forçosamente de ser um deles. Sempre senti curiosidade em relação a ti. Não por seres o filho de Ashran. Não porque estavas destinado a governar Idhún. Simplesmente, porque uma das minhas espadas mais poderosas te pertencia, tinha-te aceitado como dono. Há uns dias deixei de ouvir a canção de gelo de Haiass na minha alma. Soube que tinha morrido. Também soube que não tardarias a aparecer por aqui e que poderia conhecer-te em pessoa. Devo dizer que não me pareces tão impressionante como tinha imaginado.

Christian sorriu, sem se sentir minimamente ofendido.

- Perdi grande parte do meu poder - reconheceu. - Talvez isso esteja relacionado com a morte da minha espada. Não tenho a certeza.

Ydeon estendeu a mão para ele, e o rapaz soube de imediato o que ele lhe pedia. Hesitou apenas por um segundo antes de lhe estender Haiass.

O gigante ergueu a espada como se fosse uma pena e examinou o seu fio à luz alaranjada do rio de lava.

- Não esperava que voltasse aqui tão depressa - murmurou. - Reparei-a há menos de um mês. - Voltou-se para Christian, com um estranho fogo a arder-lhe nos olhos. - Preciso de saber: o que foi que a quebrou na altura?

- O meu pai não te disse?

Apercebeu-se de imediato do absurdo da sua pergunta. Obviamente Ashran nunca comentaria que havia alguém que era capaz de derrotar o seu filho.

- Poucas coisas poderiam quebrar Haiass - disse o fabricante de espadas. - Imagino que quase ninguém seria capaz de te vencer.

Os olhos vermelhos do gigante continuavam fixos nele, expectantes. Christian pronunciou a palavra que Ydeon desejava ouvir.

- Domivat - disse a meia-voz.

O enorme corpo de pedra do gigante estremeceu.

- Domivat, a espada de fogo - repetiu. - Há vários dias detectei a sua presença nalgum lugar de Idhún. Há séculos que não sabia nada dela. Pensei que a minha percepção

me estava a enganar, mas... agora vejo que tinha razão. Alguém a encontrou e trouxe-a de volta. E consegue empunhá-la... sem se queimar.

- Também forjaste Domivat? - perguntou Christian, embora o suspeitasse há muito.

- Há mais de trezentos anos - assentiu Ydeon. - A tua espada é muito jovem comparada com essa. Contudo... Haiass tem mais experiência; fizeste-a provar o sangue de muita gente. Além disso, consigo perceber daqui que Domivat mal foi utilizada durante este tempo todo.

- A tua percepção é correcta, fabricante de espadas.

- Quem é ele, Kirtash? Quem domou a espada de fogo?

Christian reprimiu um suspiro de cansaço. Sentou-se sobre uma rocha e apoiou as costas na parede gelada da caverna.

"É um homem morto", dissera ao seu pai não há muito tempo. Agora, via-o de uma perspectiva diferente.

- É o homem que um dia me matará - murmurou.

Quantas coisas podiam mudar em pouco tempo. Recordou novamente os luminosos olhos de Victoria e perguntou-se até que ponto ela tinha consciência do quanto era antinatural tentar que um shek e um dragão fossem amigos.

"Não mais do que lutar por manter vivo um sentimento que nunca deveria ter nascido em mim", pensou de imediato.

Ydeon olhava-o com gravidade.

- És um shek estranho.

Christian não respondeu. "Não imaginas até que ponto", pensou. Ydeon moveu a cabeça, pesaroso.

- Não tenho poder para ressuscitar a tua espada. Mas talvez haja um modo de o conseguir. Estás disposto a descobri-lo?

Christian ergueu a cabeça e dirigiu-lhe um olhar indecifrável.

- Estou aqui, não?

- Chegaste até aqui - assentiu Ydeon -, mas isso não basta. Não basta chegar; tens de ficar.

- Por quanto tempo?

- Até que descubramos a maneira de reavivar Haiass.

Vanissar prosperava.

Alexander notou-o de imediato. Enquanto atravessavam o reino que outrora tinha sido a sua casa, o jovem descobriu aqui e ali restos dos estragos que a guerra contra os sheks tinha causado no passado: casas destruídas, um ou outro bosque morto por causa da geada... Mas aqueles tempos pareciam já esquecidos. As culturas cresciam altas e vigorosas, e as pessoas, apesar dos semblantes graves, pareciam viver razoavelmente bem.

- Os sheks são criaturas inteligentes - murmurou Allegra ante a pergunta muda de Alexander. - Sabem que não faz sentido conquistar um mundo para o deixarem morrer.

Tinham passado cinco anos para o jovem, mas tinham sido quinze para o povo de Vanissar. Perguntou-se se o reconheceriam. Mal tinha envelhecido, embora o seu cabelo se tivesse tornado grisalho. Por via das dúvidas, tanto ele como os seus companheiros evitavam as povoações e avançavam com o rosto oculto sob o capuz da capa.

Dois dias depois chegaram a Vanis, a capital do reino.

Alexander sorriu, emocionado ao voltar a ver os edifícios de tijolos bicolores típicos de Vanissar, as cúpulas vermelhas do palácio real, os arcos que conduziam à praça do mercado, as varandas adornadas com as flores violetas que tanto agradavam às mulheres da cidade. Deixou-se arrastar pela multidão, pelos seus sons, pelas suas cores, encantado por estar novamente em casa, embora uma parte dele se sentisse um estranho.

O domínio shek era ali mais evidente do que nas zonas rurais. Soldados szish controlavam as ruas e a praça do mercado, observando tudo com os seus olhos negros e redondos como botões. Alexander notou que as pessoas se tinham acostumado à sua presença e viu que alguns até aclamaram dois homens-serpentes que capturaram um ladrão.

Alexander meneou a cabeça, assombrado.

- Às serpentes interessa-lhes que funcione tudo bem - sussurrou Qaydar. - Deixam em paz a gente honrada que se ocupa dos seus assuntos e trabalha para que o reino prospere. Até os favorecem e lhes facilitam as coisas. Pelo contrário, o tratamento que dispensam aos criminosos e aos rebeldes é duro e impiedoso.

- Como vamos chegar ao castelo? - perguntou Allegra em voz baixa. Qaydar respondeu algo, mas Alexander não o ouviu.

Tinha ficado a olhar para uma velha que entrançava canastras numa banca do mercado. Chamou-lhe a atenção porque as canastras eram feitas de um tipo de junco de tom azulado, muito resistente, que apenas crescia nas margens do rio Raisar, que separava os reinos de Vanissar e Raheld. Há muito tempo que não via objectos fabricados com aquele material e a nostalgia inundou o seu coração.

Então, a tecelã idosa ergueu a cabeça para ele e sorriu.

A sua pele enrugada mostrava listas pardas, sinal de que a mulher procedia de Shur-Ikail, onde habitava uma raça de bárbaros humanos de pele listada.

- Desejas comprar uma canastra, senhor? Não encontrarás melhores em nenhum dos cinco reinos...

Alexander sorriu; ia declinar a oferta quando a mulher se fixou no seu rosto e empalideceu como se acabasse de ver um fantasma.

- Alteza! - exclamou.

Alexander retrocedeu, movendo a cabeça.

- Enganaste-te na pessoa.

- Príncipe Alsan! - insistiu a mulher; caiu de joelhos ante ele e tentou beijar-lhe as mãos, mas Alexander não lho permitiu. - Regressaste!

- Repito que me estás a confundir com outro.

O comportamento da tecelã atraiu a atenção de alguns curiosos, entre eles um menino de olhar pensativo, que estudou Alexander de cima a baixo, assentiu para si mesmo e depois se perdeu entre a multidão. Allegra puxou o amigo e levou-o para longe dali. Alexander conseguiu ver como dois szish levavam a velha de rastos, que chorava de alegria enquanto continuava a pronunciar o nome do príncipe Alsan. E soube que ninguém mais voltaria a vê-la com vida.

Allegra e Alexander juntaram-se a Qaydar, cujos olhos relampejavam de ira.

- Queres que nos matem? - ciciou, furioso.

Os olhos de Alexander faiscaram com um selvagem brilho amarelado.

- Não me fales nesse tom, Arquifeiticeiro - advertiu-o. - Estás em Vanissar, o reino que me pertence por direito. Aqui, mais do que em qualquer lugar, exigirei que me trates com o respeito que se deve ao herdeiro do trono.

- Basta - disse Allegra com suavidade. - Sejamos práticos: reconheceram Alexander; não tardarão a vir à nossa procura.

Procuraram refugio numa viela, de onde esquadrinharam a rua principal. Mas não descobriram qualquer actividade anormal nos guardas szish.

- Parece que não acreditaram nela - murmurou Allegra, soltando um suspiro de alívio.

Mas Qaydar negou com a cabeça.

- Estas criaturas não deixam nada ao acaso. Se alguém acreditar ter visto o príncipe, irão investigar, não tenhas dúvida. Só que não o farão abertamente, mas às escondidas, sem que ninguém saiba. Não irão permitir que a população acredite que deram crédito a algo assim. Se agirem como se não tivesse importância, todos se convencerão de que não tem, de que foi apenas o desvario de uma velha louca. - Meneou a cabeça, irritado. - Há muito que estudo os szish. São tão matreiros como os monstros a quem servem.

- Então, que sugeres que façamos?

- Acompanha-nos ao castelo, por favor, senhora - disse de repente uma voz nas suas costas, sobressaltando-os. - O rei Amrin está à vossa espera.

Junto deles estava um homem de uns trinta e cinco anos. A sua pele tinha um suave tom azulado; o seu cabelo crescia muito fino e escasso, e era tão loiro que parecia quase branco. Sorria, e o seu rosto era agradável e jovial.

"Um semiceleste", pensou Alexander. Recordou-se imediatamente de Shail e Zaisei, e perguntou-se se o grupo da Venerável Gaedalu já teria chegado ao Oráculo.

- Chamo-me Mah-Kip, e trabalho para Sua Majestade - apresentou-se. - Os szish estão à vossa procura. Enviaram-me para vos guiar até ao castelo sãos e salvos.

Os três entreolharam-se. Mah-Kip era um semiceleste, o seu olhar era limpo e puro como o de todos os filhos de Yohavir; não os enganaria nem trairia.

Seguiram-no através de um labirinto de ruas, até uma velha estalagem que parecia abandonada. Mah-Kip fê-los descer até à cave, e ali revelou um túnel que se abria atrás de um pesado armário, que tiveram de afastar todos em conjunto.

- Este túnel é completamente seguro - disse Mah-Kip - e vai até ao palácio. Descobri-o há uns meses e informei Sua Majestade, mas ele não quis que lhe revelasse o sítio exacto da sua localização. Assim, podia assegurar-se de que nem Eissesh nem os szish descobririam o seu paradeiro.

- Eissesh? - repetiu Alexander em voz baixa.

- O governador de Vanissar - grunhiu Qaydar. - O shek que dirige o reino em nome de Ashran e do senhor das serpentes. Na realidade, Amrin é rei apenas de nome. É Eissesh quem mexe os cordelinhos aqui.

- Sua Majestade faz o que pode - suspirou Mah-Kip. - Se organizasse uma rebelião, Eissesh sabê-lo-ia imediatamente. Só tem de ler os seus pensamentos, como os sheks sabem fazer. Essa é a razão pela qual os rebeldes actuam nas costas do nosso soberano. Ele não quer saber nada do assunto para não os comprometer.

- Então, o meu irmão apoia a rebelião? - perguntou Alexander. Mah-Kip sorriu.

- Por acaso não está a proteger três renegados procurados por todo o Nandelt? - perguntou com suavidade.

Alexander sorriu também, avistando, por fim, um raio de esperança na escuridão. Mas Allegra mordeu o lábio inferior, pensativa.

Por fim chegaram ao fim do túnel. Subiram por alguns degraus talhados na rocha e foram sair atrás de uma enorme tapeçaria que cobria toda uma parede. Alexander olhou à volta, bebendo com os olhos todos os pormenores do lugar onde fora criado. Sentira muitas saudades de Vanissar e sentia-se feliz por estar novamente em casa; no entanto, sentia-se inquieto.

Mah-Kip guiou-os até um enorme salão onde eram aguardados por alguém que se encontrava de pé junto à janela. Alexander reprimiu uma exclamação de surpresa.

Era o seu irmão, mas não o rapaz que ele recordava. Só tinham dois anos de diferença; Amrin era um rapaz não muito mais velho do que Jack quando Alexander o vira pela última vez. Mas agora era um homem que rondava os trinta, não muito alto, de cabelo castanho encaracolado e os mesmos olhos escuros de Alexander. Para o rei de Vanissar, tinham passado quinze longos anos, enquanto o desajuste temporal da viagem através da Porta tinha congelado Alexander durante dez anos, de maneira que todo aquele tempo tinha sido apenas um lustro para ele. Antes era o príncipe Alsan, o herdeiro do trono. Agora, era Alexander, tinha vinte e três anos e, surpreendentemente, era mais jovem do que o seu irmão mais novo.

- Fico contente por voltar a ver-te, Alsan - disse o rei. - Por um lado mudaste, mas, por outro, o tempo parece não ter passado por ti. Uma estranha forma de conservação.

Alexander encolheu os ombros.

- As viagens interdimensionais podem por vezes pregar-nos partidas. Os dois irmãos estudaram-se durante um momento, com cautela e certa desconfiança. Alexander sabia que, apesar da nova diferença de idades, ele tinha nascido antes de Amrin. O trono de Vanissar pertencia-lhe por direito.

E Amrin também o sabia. Agora que passara tantos anos sendo rei de Vanissar, como reagiria ante o regresso do herdeiro legítimo do rei Brun?

No entanto, ao fim de uns instantes, Amrin sorriu abertamente.

- Bem-vindo a casa, irmão - disse.

Jack deitou-se sobre a relva, junto ao ribeiro. Estava aparentemente tranquilo, mas os seus olhos verdes percorriam a paisagem, atentos.

Ao longo da sua viagem através da Cordilheira Móvel, aprendera a estar sempre vigilante. Eram demasiadas as coisas que não conhecia ou não compreendia naquele lugar.

Victoria ficara um pouco mais longe, rio acima. Tinha encontrado uma pequena cascata que caía sobre um local tranquilo e aproveitara para tomar banho. Jack tinha-se afastado um pouco para lhe dar privacidade... e, ao mesmo tempo, vigiar para que não fosse surpreendida por nenhum visitante indesejado.

Observou sem grande interesse como as montanhas se moviam. Era um fenómeno que já lhe parecia perfeitamente normal.

Todavia, algo chamou a sua atenção e fê-lo endireitar-se, surpreendido.

Uma das montanhas desaparecia pouco a pouco. E atrás dela... não havia mais montanhas, mas sim uma vasta extensão de bosque. Pôs-se de pé para estudar a posição dos sóis. Estavam precisamente em cima daquele bosque. A este.

Respirou fundo. Aquilo só podia ser Derbhad. Que azar. Agora que as montanhas se abriam o bastante para deixar ver o que havia mais adiante, era do lado contrário àquele por onde queriam sair. Em qualquer caso, pensou, talvez tivesse chegado a hora de abandonarem a cordilheira e continuarem a avançar por um lugar menos desconcertante.

Deu meia-volta e dirigiu-se à cascata para contar a Victoria.

Os dois puseram-se a caminho de imediato. Quando o bosque se tornou claramente visível no horizonte, ambos apressaram o passo. Tinham de o alcançar antes que desaparecesse de vista, antes que as montanhas voltassem a fechar-se diante deles.

Por sorte, não se fecharam. Chegaram à sombra fresca da floresta um pouco antes do meio-dia e deixaram-se cair debaixo das árvores, cansados e famintos. Contemplaram a ameaçadora silhueta daquela estranha Cordilheira Móvel da qual tinham escapado. Jack não conseguiu evitar perguntar-se quanto teriam avançado em todo aquele tempo que levavam de marcha.

- Temos de decidir o que fazer agora - disse. - Podemos seguir por Derbhad em direcção a sul ou tentar atravessar a cordilheira para chegar ao deserto.

- Não sei se quero lá voltar - disse Victoria, - Às vezes, tenho a sensação de que é como um labirinto do qual não poderemos escapar.

- E talvez seja assim - disse de repente uma voz próxima deles, sobressaltando-os. - Os bosques mudam, mas as montanhas não deveriam mudar. Não é natural.

Os dois jovens descobriram então um silfo a observá-los de um ramo.

Os silfos eram o equivalente masculino das fadas. A maioria deles costumava encontrar-se nas copas das árvores. Apesar de servirem Wina, a deusa da terra, também se sentiam, em parte, criaturas do ar.

Aquele em concreto tinha a pele cor de azeitona e o cabelo parecido com um manto de folhas secas. Os seus olhos negros, enormes e rasgados, observavam-nos com curiosidade.

- Há muito tempo, quando o mundo era ainda bastante jovem disse o silfo, antes que os jovens conseguissem falar -, os primeiros feiticeiros vieram a estas terras. Falaram a toda a gente com entusiasmo acerca do seu novo dom, que lhes era outorgado pelo unicórnio, uma criatura da qual ninguém ouvira falar antes. Os sacerdotes escutaram-nos com desconfiança. Não havia poder maior do que o dos deuses, disseram. Outros pediram àqueles primeiros feiticeiros que lhes mostrassem até onde chegava aquela nova invenção chamada magia. Eles disseram que podiam mover as montanhas.

O silfo calou-se. O seu olhar fixara-se no horizonte, onde se viam as altas montanhas da Cordilheira Móvel. Tanto Jack como Victoria intuíram qual fora o final da história.

- Na altura, a magia também era jovem - prosseguiu o silfo. - Os feiticeiros mudaram as montanhas de lugar, mas não calcularam o alcance do seu poder. Hoje em dia, as montanhas continuam a mudar. É por isso que os feiticeiros dizem frequentemente que "a magia move montanhas".

- Não conhecia essa história - disse Victoria, fascinada. - Obrigada por nos teres contado.

O silfo respondeu com uma inclinação de cabeça. Victoria pôs-se de pé.

- Passámos muitos dias na Cordilheira Móvel e receio que estejamos perdidos. Poderias indicar-nos o caminho?

- Isso depende de para onde querem ir.

- Vamos para sul - interveio Jack. - Há algum tempo que partimos do bosque de Awa, mas não sabemos se o deixámos para trás.

- Muito para trás - confirmou o silfo. - Se seguem para sul, depressa chegarão a Gantadd.

Jack sorriu. Eram boas notícias, tinham avançado muito apesar de tudo.

- Há alguma maneira de atravessar as montanhas? - perguntou. Não queríamos atravessar o bosque dos trasgos.

O silfo riu suavemente.

- Oh, sim, há. Os feiticeiros criaram uma passagem segura através da cordilheira; um caminho que nunca muda. As montanhas movem,se em seu redor, mas nunca o bloqueiam, nem podem mudá-lo de lugar.

Os Olhos de Neliam era o nome do conjunto de lagos cristalinos formado pelos afluentes do rio Mailin em pleno coração de Derbhad. Aqueles lagos eram o habitat de náiades, ondinas, silfos aquáticos e demais fadas dos rios e nascentes. Mas nos maiores também habitavam algumas tribos de varu, que séculos antes se tinham adaptado à água doce, e que chamaram Olhos de Neliam àquele lugar em honra da sua deusa.

Era uma terra agradável, fácil de percorrer, porque a vegetação era fresca sem ser densa, e o terreno era mole sem ser lamacento. Além disso, Gaedalu precisava de estar na água regularmente, pelo que agradecia a presença dos lagos e ribeiros.

A Mãe e a sua escolta não tiveram grandes problemas ao longo da viagem. Certa vez, estiveram prestes a ser descobertos por um shek que se banhava num dos lagos, mas as náiades ajudaram-nos guiando-os até uma parte da margem onde a vegetação era suficientemente espessa para se poderem esconder.

Shail ainda não tinha falado com Zaisei. Nos primeiros dias, esteve mais preocupado em manter activo o feitiço que os mimetizava com o chão que pisavam e também com o equilíbrio sobre o seu paske. Apesar de as fadas terem improvisado um ames que o mantinha preso à sela, era difícil montar sem uma das pernas.

Gaedalu também não lhe dava conversa. Só falava com ele quando era estritamente necessário; no resto do tempo ignorava-o, como se não estivesse ali.

Por esta razão, o jovem feiticeiro mostrou-se surpreendido quando, uma noite, a Mãe fez retroceder a sua montada até ficar junto dele.

- Venerável Gaedalu - murmurou Shail.

A varu respondeu à saudação com uma inclinação de cabeça. Por um momento não disse nada. Ambos continuaram a cavalgar debaixo da luz clara das três luas.

- Tu estiveste do outro lado - disse então Gaedalu.

Shail demorou um pouco a compreender a que se referia.

- Na Terra? Gaedalu assentiu.

- Muitos feiticeiros viajaram para a Terra antes de vocês. Nenhum regressou. Shail mordeu o lábio inferior, perguntando-se aonde queria ela chegar.

- Idhún não era um lugar seguro para eles - disse. - Muitos integraram-se na vida da Terra, fizeram-se passar por humanos terrestres. Era muito difícil localizá-los, até mesmo para nós, que contávamos com a ajuda da Alma de Limbhad.

- Mas encontraram alguns deles?

- Alguns deles, sim. Infelizmente... - interrompeu-se.

- Infelizmente, Kirtash encontrou-os primeiro - concluiu a Mãe com frieza. - Era isso que ias dizer?

- Sim - murmurou Shail.

Os olhos da Mãe estreitaram-se numa expressão de ira.

- A minha filha é uma grande feiticeira - disse. - Vivia na Torre de Derbhad e fugiu para a Terra antes de os sheks a destruírem, há quinze anos. Não voltei a saber dela.

Shail não encontrou palavras para lhe responder.

- Talvez a minha filha esteja agora morta - prosseguiu Gaedalu -, assassinada por essa criatura a quem a Resistência protege.

- Ou talvez esteja segura do outro lado - objectou Shail. - A Terra tem imensos oceanos, uma superfície de água maior do que a de terra firme. De todos os idhunitas exilados, os varu eram os que mais possibilidades tinham de passar despercebidos.

Gaedalu permaneceu em silêncio durante uns instantes. Depois disse:

- Se for verdade que esse shek protege Lunnaris, posso entender que tenham feito uma aliança temporária com ele. Mas o que irá suceder quando a profecia se cumprir? Irão continuar a apoiá-ío ou permitirão que pague pelos crimes que cometeu?

Shail desviou o olhar, incomodado.

- Nessa altura irei encarregar-me de que seja julgado - disse Gaedalu.

- E, se a minha filha Deeva encontrou a morte às suas mãos... asseguro que nem Lunnaris o poderá salvar.

Shail continuou calado. Uma parte dele dava razão à Mãe.

Demoraram mais um dia a percorrer a garganta.

com as indicações do silfo, tinham-na encontrado facilmente: um desfiladeiro estreito que se abria como uma fenda entre as montanhas, que se encavalitavam de ambos os lados como se quisessem invadir aquele espaço.

Jack percebeu de imediato que era um caminho perigoso. Se as montanhas se movessem, poderiam esmagá-los, porque não havia refúgio possível. Mas, se o silfo tinha dito a verdade, as montanhas não ultrapassariam os limites do caminho.

Decidiram arriscar.

Foi agradável poderem seguir um caminho que permanecesse estável, e isso animou-os a continuar com vontade, apesar de não terem encontrado durante todo o dia uma gota de água; a que levavam nos odres depressa se acabou. Por sorte, quando por fim o desfiladeiro se abriu um pouco mais, descobriram um pequeno ribeiro que corria sobre as pedras. Pararam para descansar, esgotados, mas triunfantes. Mais adiante, havia algum arvoredo e, depois dele, uma terra vasta e erma - sem montanhas.

- Será Kash-Tar? - perguntou Victoria depois de saciar a sede.

- Deve ser - respondeu Jack, enxugando o rosto. - Queres que nos aproximemos para ver?

Como resposta, Victoria avançou para as árvores. Eram perto de uma dúzia. Os seus troncos eram claros, quase brancos, e os seus ramos flutuavam em volta delas como movidos por uma brisa. Victoria embrenhou-se pelo arvoredo e notou de imediato que os ramos lhe acariciavam a cabeça e os ombros. Soltou uma gargalhada e afastou-os.

Mas um dos ramos enredou-se no seu pulso. Victoria puxou a mão e deu um salto para trás, com o coração a bater-lhe com força. Os ramos moveram-se na sua direcção, à procura dela.

Não era a brisa que os movia. Moviam-se sozinhos.

-Jack...

- Eu vi - disse ele. - Vamos embora daqui.

Victoria sentiu outro ramo acariciar-lhe o rosto. Retrocedeu... mas os ramos de outra árvore envolveram-na num abraço. Victoria gritou.

Jack correu para ela, disposto a ajudá-la. Mas deteve-se, perplexo.

Os ramos não faziam mal a Victoria. Apalpavam-na, acariciavam-na com curiosidade, como que querendo saber que tipo de ser estranho ela era. A rapariga acabou por sorrir.

- Parece que só querem brincar - comentou.

Jack sentiu que os ramos de outra árvore o tacteavam a ele também. Ergueu um braço. Um dos ramos enrolou-se em volta dele para comprovar a sua forma e textura. Logo o soltou e brincou com os seus dedos. Jack reprimiu uma gargalhada.

- Não sabia que as árvores podiam ser tão curiosas - comentou. Continuaram a avançar, deixando-se inspeccionar pelas árvores.

Parecia até que ficavam tristes quando eles se afastavam, deixando cair os ramos com desalento.

- São como crianças - comentou Victoria, surpreendida.

Por fim, chegaram ao fim do arvoredo. Ante eles, abria-se uma vasta terra plana e despovoada. Contemplaram-na por instantes.

- Não temos de continuar já - disse então Jack, sentando-se numa rocha branca. - Podemos descansar aqui esta noite e prepararmo-nos para a viagem.

- Não tenho a certeza de conseguir dormir tranquila com essas árvores aí - opinou Victoria.

- Porque não? Como tu própria disseste, são como crianças que só querem... - Calou-se de repente. Podia jurar que a rocha sobre a qual se apoiava tinha estremecido. Perguntou-se se teria sido algum tipo de movimento sísmico.

- Jack! - gritou então Victoria, olhando para cima. Jack seguiu a direcção do seu olhar e viu-a.

A rocha branca não era uma rocha, mas sim parte da raiz de uma enorme árvore que se erguia sobre eles. Era igual às arvorezinhas curiosas que acabavam de conhecer... mas muito, muito maior.

- Deve ser a mãe - sussurrou Victoria. - Jack... sai daí.

Jack moveu-se lentamente, afastando-se da árvore, desejando não ter atraído a sua atenção. Havia algo nela que não lhe inspirava confiança. Os seus ramos flutuavam como as serpentes da cabeça de uma górgona, como os tentáculos de Medusa.

Victoria gritou. Jack viu como um dos ramos, que se aproximara dela por trás, a agarrava pela cintura e a erguia no ar.

- Victoria! - gritou, desembainhando Domivat.

Os ramos pareceram afastar-se um pouco ao sentirem o fogo da espada. Victoria esperneava, procurando libertar-se.

-Jack, está a apertar-me, está a apertar-me, vai partir-me ao meio...!

Ficou sem fôlego e não conseguiu continuar a falar. Jack olhou em volta, procurando uma maneira de a tirar dali. Viu então algo em que não reparara antes: à volta das raízes da árvore havia vários cadáveres de animais, e todos eles pareciam rachados e, até, partidos em pedaços. Estremeceu. E se aquelas árvores tivessem optado por se "alimentar" a si próprias? E se aquela árvore gigantesca, que tinha uma dúzia de arvorezinhas para alimentar, tivesse decidido que Victoria enriqueceria a terra de todas elas?

com um grito de fúria, Jack lançou-se sobre a árvore e enterrou a sua espada no tronco. Os ramos tremeram, mas não libertaram Victoria. Jack arremeteu novamente contra o tronco, procurando parti-lo ao meio. Abriu um golpe profundo na madeira, que começou a arder.

Por fim, os ramos soltaram Victoria. A rapariga caiu sobre Jack, arquejante e a tossir, e tacteou em volta em busca do seu báculo. Um pouco afastadas, as árvores pequenas agitavam os ramos, assustadas.

Jack levantou-se e tentou arrastar Victoria para longe dali.

Mas os ramos abateram-se outra vez sobre eles.

A árvore estava a arder e depressa morreria. Sentia-se furiosa, furiosa com aquelas criaturas que lhe tinham feito mal, e tentou capturá-las para as lançar no mesmo fogo que a devorava.

Jack e Victoria sentiram que os ramos os aprisionavam de novo. Jack, desesperado, lançou um golpe com a espada, tentando cortá-los. Alguns desprenderam-se, mas outros não.

Victoria, por sua vez, tinha pegado no báculo e procurava lançar um raio mágico ao tronco. Ambos sentiam que os ramos os asfixiavam, ou talvez não fosse isso, mas sim as chamas para onde a árvore os arrastava.

Jack pensou que aquilo era absurdo. Não era possível que uma árvore o tivesse vencido.

Viu Victoria junto dele, debatendo-se, desesperada; a estrela da sua testa brilhava intensamente. Não podia deixá-la morrer agora, não daquela maneira.

Algo rebentou no seu interior. E depois...

Foi tudo muito confuso. Viu-se de repente a elevar-se no céu, arrastando Victoria consigo, para longe da árvore. Viu-se a cair a pique para aterrar com estrépito sobre o chão poeirento. Viu-se a si mesmo a alongar uma garra... não, uma mão até Victoria, para ver se estava bem. Mas a rapariga, estendida de bruços sobre o chão, ainda agarrada ao báculo, tinha perdido os sentidos.

Ao longe, uma coluna de fumo indicava o lugar onde a árvore-mãe ardia até às raízes.

Jack desmaiou.

Zeshak estremeceu e abriu os olhos.

- Sentiste? - perguntou.

Ashran assentiu.

- O último dragão despertou - limitou Se a dizer.

- Isso vai trazer-nos problemas - opinou o shek.

- Ou talvez não - sorriu o Necromante. - Também implica que será mais simples para Kirtash matá-lo.

 

             NOVOS DRAGÕES

Alexander voltou-se sobre a garupa do seu cavalo para farejar o caminho que deixavam para trás. Baixou as orelhas e emitiu um som rouco.

Amrin observava-o, nervoso, mas Allegra agia como se não se passasse nada de anormal.

- O que é, Alexander? O que pressentiste?

- Seguem-nos - disse o jovem. - Creio que não devíamos seguir em frente.

- Não confias em mim, irmão? - perguntou Amrin, muito sério. Alexander voltou-se para ele e olhou-o fixamente. Os seus olhos

faiscavam com um brilho amarelado na obscuridade.

- E tu? - perguntou por sua vez. - Confias em mim... irmão?

O rei não foi capaz de responder àquela pergunta. Desviou o olhar, incomodado.

Alexander assentiu, como se esperasse aquela reacção.

- Os rebeldes observam-nos há algum tempo - disse o rei, encolhendo os ombros. - É normal, estamos no seu território. Não tardarão a aparecer.

Alexander franziu o sobrolho, mas não disse nada. Ergueu a cabeça para o céu nocturno, inquieto. Ayea estava já a erguer-se no horizonte. Ao vê-la, lembrou-se subitamente de que dia era. Naquela noite, Érea estaria cheia. Ainda não tinha a certeza se a sua influência o levaria a transformar-se, mas já começava a notar os seus efeitos. É que, se não tivesse calculado mal e aquela noite fosse de plenilúnio, devia ter-se transformado já na noite anterior. Na Terra, a Lua cheia obrigava-o a transformar-se três noites seguidas. com um pouco de sorte...

Amaldiçoou em silêncio o seu descuido. Devia ter ficado isolado até ao nascer dos sóis...

Teve de reconhecer, a contragosto, que não tivera outra opção.

Amrin tinha-se oferecido para os pôr em contacto com os rebeldes que se escondiam nas montanhas. com eles, disse-lhes, estariam mais seguros do que na capital e, além disso, se unissem as suas forças poderiam obter melhores resultados. Depois de passarem dois dias escondidos nas dependências secretas do castelo real, o rei anunciou-lhes que tinham um encontro com o líder dos Novos Dragões naquela mesma noite. Assim, tinham saído do castelo às escondidas depois do terceiro entardecer, e agora percorriam os frios caminhos das montanhas, montados em cavalos que pareciam cada vez mais nervosos.

Aquilo não era um bom sinal, pensou Alexander. Em Idhún, só os humanos de Nandelt domavam cavalos; conheciam-nos na perfeição, e ele não era uma excepção. Os cavalos idhunitas eram um pouco mais pequenos do que os da Terra, mas muito mais inteligentes. O seu nervosismo não obedecia a um terror cego, mas sim a um instinto parecido com o dos cães. Erguiam as orelhas e perscrutavam as sombras com os seus enormes e sagazes olhos, sem fazerem o menor ruído que pudesse denunciá-los - não se comportariam assim se fossem humanos a espreitá-los na escuridão. De facto, naquela noite nem sequer se tinham sentido inquietos com a presença de Alexander, embora o tivessem observado com cautela, e certamente seriam os primeiros a fugir se chegasse a transformar-se por completo. Corri preendiam que de momento o humano não representava um perigo para eles, e mesmo a égua que o próprio Alexander montava, um exemplar de patas fortes e pêlo espesso e azulado, tinha parecido satisfeita com o cavaleiro que a guiava e só agora mostrava sinais de preocupação.

Trocou um olhar com Allegra e leu a dúvida nos seus grandes olhos negros. No entanto, meneou a cabeça. Apesar de todos os indícios, custava-lhe a crer que o seu irmão pudesse tê-los traído. A feiticeira titubeou, compreendendo o seu dilema. Mas Qaydar não foi tão compreensivo.

- Isto não me agrada - declarou. - É melhor voltar imediatamente à cidade. Cheira-me a emboscada.

- Talvez devêssemos... - começou Allegra, mas calou-se de repente. Alexander quis voltar-se para ela para ver o que a interrompera, mas não foi capaz. Apercebeu-se, então, de que algo o tinha paralisado.

A égua relinchou com suavidade, aterrada, O animal que havia em Alexander rugiu, furioso, mas não se manifestou. O seu corpo estava completamente imóvel e pelo canto do olho descobriu que se passava o mesmo com o Arquifeiticeiro.

Por sua vez, o rei desmontou sem problemas e voltou-se para um recanto nas sombras. Alexander viu-o inclinar a cabeça em sinal de submissão.

- bom trabalho, Amrin - sussurrou uma voz gelada nas suas mentes.

Alexander sentiu que ficava com pele de galinha.

Um shek. Tinham intuído a sua presença durante todo aquele tempo, mas aquelas criaturas eram muito astutas e não era fácil detectá-las se não o permitissem. Alexander teve então a certeza de que o irmão os conduzira directamente a uma armadilha, entregando-os aos inimigos. Há algum tempo que o suspeitava, mas não quisera acreditar.

Afinal de contas, por muito que ambos tivessem mudado, continuavam a ser irmãos.

Ou, pelo menos, era isso que pensara até então.

O shek deixou-se ver, deslizando das sombras, permitindo que a luz avermelhada de Ayea banhasse a sua imponente figura. Nem Alexander neln os feiticeiros fizeram o menor movimento. Não conseguiam, e isso não era um bom sinal. O jovem recordou tudo o que Christian lhes contara acerca dos sheks. Podiam paralisar as suas vítimas se as olhassem nos olhos, mas os sheks mais poderosos eram capazes de o fazer sem necessidade de contacto visual. Reprimiu um calafrio. Era evidente que aquela não era uma serpente qualquer. Devia ser Eissesh, o governador de Vanissar.

De qualquer das formas, estavam perdidos.

Das sombras surgiram também cerca de vinte szish, os homens-serpentes, que os cercaram, cortando-lhes a retirada. "Uma emboscada a sério", pensou Alexander com amargura.

O shek deslizou até eles, com movimentos calmos, estudados. Observou-os com certa curiosidade.

- O que me trouxeste, Amrin? - perguntou.

- Os líderes da Resistência, senhor - respondeu o rei. - A feiticeira Aile, o Arquifeiticeiro Qaydar e... uma criatura que se faz chamar Alexander e que diz ser meu irmão.

Alexander sentiu que a ira o inundava por dentro e conseguiu libertar-se do controlo do shek o suficiente para poder gritar, furioso:

- Sou teu irmão, traidor! Não mereces ser o rei de Vanissar, não mereces chamar-te filho do teu pai!

Amrin voltou-se para ele.

- O meu irmão morreu há quinze anos - disse com frieza. - Não esteve ao nosso lado quando lutámos contra os sheks, não viu o nosso pai morrer nem o nosso povo agonizar. Partiu para outro mundo em busca de uma quimera e nunca regressou. Tu pareces-te com ele, mas não és mais do que um demónio.

- Silêncio - interveio Eissesh, aborrecido. Ergueu-se um pouco mais, ocultando as luas nascentes atrás das suas enormes asas. Tanto o rei como os szish retrocederam um pouco, dando-lhe espaço para examinar os prisioneiros. A serpente ciciou e deixou entrever as suas presas venenosas. Um movimento breve e tudo terminaria para eles.

Mas o shek deteve-se por um momento para observar Alexander.

- Que tipo de ser és tu? - perguntou. - Tens dois espíritos.

O jovem não respondeu. A serpente semicerrou os olhos e dirigiu-lhe um olhar pensativo.

- Contigo já são quatro as criaturas com dois espíritos de que tenho notícia - prosseguiu Eissesh. - Todos eles renegados. É evidente que vocês, os híbridos, nos trazem problemas de sobra. Não obstante...

Baixou um pouco a cabeça para o observar com mais atenção. O corpo escamoso da criatura vibrou com um riso abafado.

- Não, já estou a ver. A tua alma humana não partilha o corpo com um espírito superior, mas sim com a essência de um animal. Não és exactamente como os outros três. Quem faria semelhante trabalhinho contigo?

Alexander sentiu que a consciência do shek invadia a sua e esforçou-se por pensar em coisas banais. Mas depressa se deu conta de que Eissesh parecia mais interessado nas lembranças sobre a sua origem do que em averiguar coisas sobre Jack e Victoria. Perguntou-se porquê. Sabia que os sheks ficavam muito intrigados com tudo o que não conheciam ou compreendiam, mas... seria a sua curiosidade maior do que o desejo de acabar com aqueles de quem a profecia falava?

Alexander percebeu que a consciência do shek se retirava de repente da sua mente. A criatura ergueu a cabeça na direcção das estrelas com um cicio perigoso.

Atrás das montanhas, elevou-se a figura de um dragão, que se recortou contra o céu nocturno e desceu com rapidez sobre eles. Alexander sentiu que o seu coração acelerava. Não era possível...

Houve murmúrios de desconcerto entre os szish.

- Silêncio! - ordenou Eissesh. - É apenas uma das ilusões criadas pelos renegados. Já as conhecem.

O dragão continuou a descer e pareceu que parava para tomar fôlego. Alexander soube o que ia acontecer e gritou:

- Cuidado!

Porém, os cavalos já tinham desatado a correr, sem se preocupar com o shek, cujos olhos irisados reflectiram o jacto de fogo que a boca do dragão expulsou. Os szish retrocederam, aterrorizados, a ciciar, e Eissesh conseguiu levantar voo no último momento, antes de o fogo explodir no chão, muito perto de si.

Todos sentiram o calor. Não era uma ilusão, era fogo de verdade.

"É impossível, não pode ser Jack", pensou Alexander, confuso. "Está muito longe daqui."

Mas... não existiam mais dragões no mundo. Ou existiam?

Noutras circunstâncias, Eissesh teria agido com mais frieza, teria esperado para compreender o que estava a acontecer antes de levantar voo e arremeter contra o dragão. Só que os sheks ficavam loucos de ódio quando se tratava de dragões. E, pelo que Alexander sabia dos dragões, o sentimento era mútuo.

com um grito de ira, a serpente elevou-se no ar, esquecendo os seus prisioneiros, e voou directamente até ao dragão, que o recebeu com um rugido.

- Alexander, aqui! - gritou a voz de Allegra.

O jovem voltou-se e viu-a um pouco mais adiante, junto ao Arquifeiticeiro, defendendo-se dos szish que os atacavam. O efeito hipnótico do shek rompera-se, e ambos eram já capazes de se mexer e utilizar o seu poder. Alexander desembainhou a espada e instou a égua a juntar-se a eles. De passagem, a lâmina de Sumlaris atravessou os corpos de vários homens-serpentes que o atacavam.

Então o disco prateado de Érea assomou por fim de detrás das montanhas. Alexander notou, de imediato, que algo se revolvia no seu interior, acordando de um sono profundo. Soltou as rédeas da sua montada para levar as mãos à cabeça, gritou...

A égua empinou-se e lançou-o ao chão. Alexander rolou por terra, mas não se magoou. O seu corpo não era completamente humano. Ergueu a cabeça, aterrado; a luz prateada de Érea banhou as suas feições...

A transformação foi rápida e brutal. Érea era quase duas vezes maior do que a Lua da Terra e reclamou como seu o espírito do animal. Antes que Alexander percebesse o que estava a acontecer, já se tinha metamorfoseado num lobo enorme e selvagem. Estremeceu por um momento e depois ergueu-se sobre as patas traseiras, usufruindo da nova força e poder. Uivou às luas, inebriado de liberdade.

Allegra previra-o ao longo de toda a tarde e estava preparada. Contudo, para o Arquifeiticeiro foi uma surpresa desagradável.

- Por todos os deuses... o que é isso?

A criatura olhou-o por um momento e esboçou um terrífico sorriso cheio de dentes. Na Terra, Alexander fora um lobo normal; um pouco maior do que o habitual e muito perigoso, mas, de qualquer forma, nada mais do que um animal.

Ali, em Idhún, onde a magia fluía no ar, na terra, na água... o espírito do animal encontrou mais força para ser o que deveria ter sido desde o princípio, o que o mago Elrion sonhara fazer dele, aquilo em que dissera a Alexander que o converteria: um dos homens mais poderosos de ambos os mundos.

O ser que se erguia naquele momento sob as três luas tinha feições de lobo, mas era bastante maior do que um homem, mais robusto, mais forte e mais letal.

E estava cheio de ódio.

No céu, o shek e o dragão continuavam com a sua batalha e não lhe prestaram atenção. Mas os restantes combatentes, incluindo os szish, ficaram por instantes a olhar para ele, aterrados e perplexos. O rei avançou dois passos até ele, incrédulo.

- Ir... mão? - perguntou, inseguro.

O animal olhou-o com o fogo selvagem a brilhar nos seus olhos amarelos. Amrin apercebeu-se de que não o reconhecera. O lobo rosnou, mostrando as presas letais, e saltou sobre ele...

O rei gritou e cobriu-se com os braços. Mas algo impediu o animal no ar e fê-lo cair ao chão com estrépito. A criatura revirou-se, uivou, procurando libertar-se do feitiço.

Amrin ergueu a cabeça e olhou em redor em busca do seu salvador. Descobriu Allegra, que continuava com as mãos erguidas, levemente iluminadas na obscuridade, concentrando-se para manter activa a magia que retinha o que momentos antes tinha sido Alexander.

Mas não teve ocasião de dizer nada, porque naquele instante o Arquifeiticeiro indicou à fada o cume de um monte próximo, onde uma figura agitava uma bandeira que brilhava na escuridão.

Uma bandeira que mostrava o símbolo de um dragão com as asas abertas.

Foi tudo muito rápido. O rei ainda conseguiu ver como o dragão que tinha resgatado os renegados caía ferido sobre as montanhas, e conseguiu ouvir o grito de triunfo de Eissesh, antes de o feitiço de tele transporte dos dois feiticeiros levar os três para longe dali.

Shail acordou de um sono inquieto e cheio de pesadelos quando uma das sacerdotisas lhe sacudiu o braço com suavidade:

- Feiticeiro, acorda; chegámos.

O jovem sacudiu a cabeça para acordar e percebeu, surpreendido, que adormecera em cima da sua montada. Por sorte, o arnês mantivera-o preso à sela e, além disso, o paske tinha-se limitado a seguir os seus companheiros, sem se desviar da rota, apesar de não ter guia.

- Chegámos? - murmurou Shail, ainda aturdido. Levantou a cabeça e viu diante de si a sombra das cúpulas do Oráculo, erguendo-se sobre um alto planalto contra o qual rebentavam enormes ondas coroadas de espuma. A comitiva, no entanto, parara, com Gaedalu à cabeça.

Shail procurou Zaisei com o olhar e viu-a junto de si. Mas os olhos dela estavam virados noutra direcção, para o Oráculo. O seu rosto estava sério e os seus delicados ombros tinham-se contraído numa atitude tensa.

- O que se passa? - perguntou Shail num sussurro.

- Olha para o Oráculo com atenção, feiticeiro - respondeu a outra sacerdotisa.

Shail fê-lo. Então vislumbrou uma sombra sinuosa que deslizava em volta do edifício, quase o envolvendo com o seu longo corpo. A luz das três luas arrancava lampejos prateados das escamas da criatura.

- Um shek! - murmurou Shail, aterrado. - Atacaram o Oráculo? Foi Zaisei quem respondeu.

- Não. As irmãs sacerdotisas que nos aguardam no interior continuam ilesas, embora estejam muito assustadas. Eu diria que o shek está à nossa espera.

Uma pontada de angústia trespassou o coração de Shail. "Procura Jack e Victoria", pensou. "Está à nossa espera porque suspeita que possam estar connosco."

Tal significava que a viagem da Mãe não passara despercebida a Ashran e seus aliados. A boa notícia era que, pelos vistos, não tinham a certeza do paradeiro de Jack e Victoria, tendo-se visto obrigados a colocar vigias nos lugares onde consideravam mais provável que pudessem esconder-se. Isso queria dizer que talvez houvesse gente de Ashran também em Vanissar, espiões que estivessem ao corrente do desaparecimento do dragão e do unicórnio e que os procuravam por ali. Shail desejou que ninguém tivesse pensado em Awinor... e imediatamente apercebeu-se de que, se aquele shek o capturasse, poderia obrigá-lo a revelar o que sabia sobre Jack e Victoria.

- Temos de fugir - disse a Zaisei em voz baixa. A sacerdotisa negou com a cabeça.

- Iria alcançar-nos - respondeu no mesmo tom. - Já nos viu; a única coisa que podemos fazer é falar com ele. Os sheks deixar-nos-ão passar se quiserem que continuemos a manter o Oráculo. Se assim não fosse, tê-lo-iam destruído há muito.

Shail sacudiu a cabeça.

- Não entendes, Zaisei. Não pode interrogar-nos. Se o fizer...

- Se o fizer, o quê? Não há nada sobre nós que os sheks não saibam já. Não temos nada a esconder... - Interrompeu-se de repente e olhou para o feiticeiro, atemorizada ao ler a inquietação e a culpa nos seus olhos. - Tu sabes! - compreendeu. - Sabes para onde foram Yandrak e Lunnaris!

Shail respirou fundo.

- Tenho de ir, Zaisei. Foi um erro vir convosco. Coloquei-vos em perigo.

A celeste desviou o olhar. Não disse nada quando o jovem puxou as rédeas do paske para o obrigar a retroceder.

O shek tinha avançado até à comitiva e erguia-se agora diante de Gaedalu, fazendo vibrar ligeiramente o seu corpo de serpente. Os seus olhos estavam fixos no rosto da Mãe, e ela também o olhava. Parecia que ambos estavam a manter uma conversa telepática que ninguém mais podia ouvir. Gaedalu erguia-se sobre a sua montada, serena e majestosa como uma rainha, aparentemente muito segura de si mesma. Mas o shek semicerrara os olhos e olhava-a como se estivesse a decidir se a mataria ou não.

No entanto, a manobra de Shail não lhe passou despercebida. Ergueu a cabeça com brusquidão e, com um movimento das suas enormes asas, elevou-se por cima do grupo para ir pousar um pouco mais longe, cortando a retirada a Shail.

O feiticeiro puxou as rédeas e procurou tranquilizar a sua montada. Buscou com o olhar uma via de escape, mas não a encontrou. Perguntou-se se devia teletransportar-se para longe dali e de imediato entendeu que não se atreveria a fazê-lo, que não deixaria Zaisei e as demais sacerdotisas para trás, à mercê de um shek que poderia castigá-las se Shail ousasse fugir.

- Conheço-te - disse então o shek na sua mente. - És o feiticeiro da Resistência, o que veio do outro mundo.

Se Shail tinha alguma esperança de passar despercebido, aquela afirmação fê-lo ver a dura realidade. O shek moveu a cauda como se fosse um chicote e puxou-o da montada, que bramiu, aterrada, e fugiu. Shail caiu ao chão estrondosamente.

- Shail! - gritou Zaisei; cobriu a boca com as mãos, repentinamente consciente de ter cometido um erro, mas já era demasiado tarde. O shek observou-a de soslaio, sorrindo ligeiramente enquanto apontava aquele novo dado na sua memória.

Shail não olhou para ela e também não procurou levantar-se. Sabia que não o conseguiria sem magia e queria reservar o seu poder para coisas mais úteis, no caso de lhe ocorrer algum plano descabido para escapar daquela situação.

- Ficaste aleijado - observou o shek. - Não serás muito útil aos renega dos a partir de agora, de modo que não te servirá de nada fazeres de herói. Onde estão o dragão e o unicórnio?

- Não penso dizer-to - murmurou Shail.

- De qualquer maneira, vou sabê-lo - disse o shek. - Olha-me nos olhos. O feiticeiro sentia-se paralisado pela presença letal da criatura, mas encontrou forças para voltar a cabeça com brusquidão e olhar para outro lado.

Então a cauda do shek deslizou até às sacerdotisas, que procuraram fugir, aterradas, e enroscou-se em volta da cintura esbelta de Zaisei. A jovem gritou e esperneou, mas a serpente arrastou-a para longe da sua montada e ergueu-a no ar, ante Shail.

- Gostas dela, não é? - disse o shek. - Mais do que de Lunnaris? Trairias o unicórnio para lhe salvar a vida? Levanta a cabeça e deixa que explore a tua mente, feiticeiro. Deixa que as tuas lembranças me falem do dragão e do unicórnio. Fá-lo, e a sacerdotisa viverá. Caso contrário...

Os seus anéis apertaram com mais força a cintura de Zaisei, que gritou de dor. Shail cerrou os dentes.

Então, de repente, o shek ergueu a cabeça como se estivesse a ouvir um chamado distante. Os seus olhos brilharam na escuridão e atirou Zaisei ao chão, como se de repente tivesse perdido todo o valor. Nem sequer prestou atenção a Shail quando este tentou arrastar-se para junto dela.

Com um grito de triunfo, a criatura levantou voo, sem voltar a preocupar-se com o feiticeiro e as sacerdotisas, e afastou-se na noite, em direcção a oeste.

Zaisei conseguiu pôr-se de pé e chegar até Shail. Os dois rundiram-se num abraço, e por um momento todas as barreiras que os tinham separado desapareceram por completo.

- Lamento, Zaisei - disse-lhe ele ao ouvido. - Não queria...

- Eu sei - sussurrou ela. - Sei como Lunnaris é importante para todos. Também para ti.

- Não como tu - respondeu Shail com ardor. - Zaisei, eu... A voz da Mãe, inundando as suas mentes, interrompeu-o:

- Foi-se embora. O que terá chamado a sua atenção? Shail levantou-se, apoiado em Zaisei.

- Aquele shek sabia que eu podia revelar onde se escondem Jack e Victoria - disse. - Só me ocorre um motivo para que tenha decidido abandonar o interrogatório com tanta pressa.

Zaisei estremeceu, mas foi Gaedalu quem falou.

- Estás a insinar que, de alguma maneira, lhe comunicaram onde estão?

- É isso que receio - murmurou Shail. - E espero estar enganado, para o bem de todos. Não os podem ter descoberto ainda... é demasiado cedo.

Alexander acordou quando o primeiro dos sóis já se erguia no horizonte. Não o viu, dado que se encontrava encerrado numa espécie de câmara subterrânea, acorrentado à parede. Mas soube que o dia tinha chegado, porque voltara a ser ele.

Olhou para si mesmo e descobriu que tinha as roupas feitas em farrapos. Fechou os olhos por um momento, esgotado. Transformara-se outra vez.

- Porque não me contaste? - censurou-o uma voz vinda das sombras.

Alexander ergueu a cabeça e viu Allegra, que o contemplava com seriedade. Desviou o olhar.

- Não sei - murmurou. - Suponho que pensava que me podia safar sozinho. Ou talvez não quisesse envolver mais ninguém.

Allegra suspirou. Fez um gesto, e as correntes que prendiam o jovem desvaneceram-se no ar. Alexander deixou cair os ombros, derrotado.

- Não chegaste a fazer mal a ninguém - informou-o a fada, com suavidade. - E o próximo plenilúnio de Érea é só daqui a quatro meses e meio. Nesse tempo todo, podem acontecer muitas coisas.

- Suponho que sim - suspirou Alexander. - Mas...

Não terminou a frase. Recordava vagamente que o Arquifeiticeiro e o seu irmão, Amrin, estavam presentes no momento da sua transformação. Pouco lhe importava o que Qaydar pensasse dele, mas Amrin...

Amrin tinha-os traído com os sheks.

Alexander levantou-se, relembrando o que sucedera com Eissesh.

- Havia um dragão! - exclamou de repente. - Como é possível?

- Denyal responderá a todas as tuas perguntas - respondeu Allegra.

- Mas agora veste-te. Esperamos-te lá fora - acrescentou, saindo da sala e fechando a porta atrás de si.

Alexander avistou a roupa que lhe tinham deixado e apressou-se a trocar os farrapos que o cobriam. Quando saiu da divisão, foi dar a um corredor onde Qaydar e Allegra o esperavam.

O Arquifeiticeiro dirigiu-lhe um olhar de profunda repugnância.

- Aile contou-me que tipo de criatura és - disse-lhe.

- Então também sabes que foram os esbirros de Ashran que fizeram de mim o que sou agora - replicou ele com frieza. - E entenderás por que razão anseio vingar-me. Apesar do que viste esta noite, ou justamente por isso, sou mais fiel à Resistência do que alguma vez fui.

O ódio também ardia nos olhos de Qaydar. No entanto, o feiticeiro permitiu-se censurá-lo:

- Por isso aceitaste Kirtash entre os teus. Porque é como tu.

As suas palavras deixaram Alexander sem fala, e reflectiu sobre elas. Não havia pensado nisso antes.

Lembrou-se do olhar pensativo que o jovem shek lhe dirigira pouco antes de Elrion começar a fazer experiências com ele. "Não gostaria de estar na tua pele", comentara. Pouco antes tinha dito a Elrion: "Nunca sai bem." Sabia que Ashran fizera com Christian algo parecido ao que ele próprio sofrera às mãos de Elrion.

Pensou também em Jack e Victoria. Eles eram híbridos por natureza, tinham nascido assim. Os seus corpos tinham aceitado um segundo espírito quando ainda estavam no ventre materno. Não obstante, tanto Alexander como Kirtash tinham sido "fabricados" com magia negra... de forma artificial.

Seriam realmente muito diferentes?

- Não - disse por fim. - Não, não é como eu. Ele orgulha-se de ser o que é. Eu, não. E não perdi a esperança de algum dia me livrar da alma do animal que pulsa dentro de mim.

Qaydar não fez nenhum comentário. Alexander prosseguiu:

- Aceitei Kirtash entre nós porque era um aliado valioso. Nada

mais.

- E porque eu lhe pedi - acrescentou Allegra com um sorriso enigmático. - Deves saber, Qaydar, que cuidei de Lunnaris desde criança. Kirtash não luta pela Resistência. Luta por ela, para a salvar. Para mim, é um de nós.

O Arquifeiticeiro olhou para ambos com desagrado.

- Estão loucos, os dois - declarou. - A viagem ao outro mundo transtornou-vos.

Alexander não teve oportunidade de replicar, porque naquele momento aproximou-se deles um homem moreno, de aspecto decidido e olhar inteligente. Tinha uma barba de vários dias e não se vestia como um cavaleiro nem como um nobre, mas movia-se com a atitude de um líder.

- Vejo que já te encontras em situação de me atender, Alteza disse a Alexander, com um sorriso cansado. - Chamo-me Denyal e comando o grupo rebelde conhecido como Novos Dragões.

- Sim - assentiu Qaydar. - Ouvi falar de vocês. Um grupo de camponeses que se escondem nas montanhas e que incomodam as serpentes de vez em quando.

Denyal não pareceu ofendido.

- Somos algo mais do que isso - respondeu com simplicidade. Alexander pegou-lhe no braço.

- O dragão - disse com urgência. - O que aconteceu ao dragão? O rosto de Denyal ensombrou-se.

- Uma grande perda - murmurou. - Mas a nossa luta é arriscada, e os que se unem a nós fazem-no sabendo que cada batalha pode ser a última.

- Enlouqueceste? - rugiu Alexander. - Estamos a falar de dragões! Nada vale tanto como a vida de um dragão.

O rebelde retrocedeu uns passos e olhou-o com uma certa desconfiança.

- Já comprovei por mim mesmo o quanto mudaste, Alteza - disse com suavidade. - Mas a dama Aile assegurou-me que podemos confiar em ti, apesar das aparências. Não podemos?

Alexander relaxou um pouco e o brilho dos seus olhos apagou-se.

- É - disse. - Lamento. Mas os dragões...

- Irei explicar-te se tiveres a bondade de me acompanhar. Tenho algo para te mostrar.

Seguiram-no através de um labirinto de túneis e divisões interligadas. Denyal explicou-lhes que se encontravam no interior da montanha e que todas as saídas tinham sido habilmente escondidas e seladas com magia. Enquanto seguiam o seu anfitrião através do corredor, Alexander perguntou-se há quanto tempo os rebeldes se escondiam naquele lugar e quanto tempo demorariam os sheks a descobri-los.

Chegaram por fim a uma sala espaçosa de tectos altíssimos, onde os três visitantes contemplaram um espectáculo surpreendente.

Era uma oficina enorme. Nela, dezenas de artesãos serravam, pregavam ou montavam pranchas de madeira. Outros cobriam armações enormes com lenços que pareciam feitos de escamas ou montavam grandes asas feitas do mesmo material.

Alexander e os feiticeiros demoraram um pouco a aperceber-se do que se estava ali a fabricar.

- Constróem dragões! - exclamou o jovem, surpreendido. - Dragões de madeira!

Denyal sorriu.

- Engenhoso, ha? Devo confessar que a ideia não foi minha, mas sim de Rown, o meu cunhado. É ele quem dirige os artesãos.

- Estás a tentar dizer-me que essas coisas voam?

- De início não o faziam - disse uma voz atrás de si. - Demorámos muito tempo a conseguir levantá-los do chão e perdemos vários protótipos que se despenharam nas montanhas. Mas agora podemos dizer com orgulho que sim: voam e fazem-no muito bem.

Um homem aproximou-se deles, sorridente. Tinha o rosto coberto de fuligem e parecia muito satisfeito consigo mesmo.

- Rown, o engenheiro que tornou possíveis os nossos prodigiosos dragões - apresentou-o Denyal.

Alexander, que vira na Terra aviões gigantescos voar muito mais alto e muito mais longe sem a ajuda de magia, achou aqueles artefactos toscos e primitivos; mas teve de reconhecer que, de certo modo, Denyal tinha razão: nunca se vira nada parecido em Idhún.

O homem pigarreou. Ficara muito sério de repente.

- Rown, esta noite perdemos Garin - murmurou. O fabricante de dragões empalideceu.

- Garin! Não é possível... o azul caiu? Denyal assentiu, pesaroso.

- Eissesh abateu-o nas montanhas. Rown suspirou.

- Maldição... pobre rapaz. Como vou dizê-lo à sua mãe?

Denyal colocou uma mão sobre o seu ombro, tentando animá-lo. Voltou-se para Qaydar, Allegra e Alexander, que assistiam à cena sem entender o que estava a acontecer.

- Os nossos dragões de madeira são pilotados - explicou. - De cada vez que um cai, perdemos um homem ou uma mulher corajosos. Podemos construir mais dragões, mas não podemos devolver a vida àqueles que morrem com eles. Garin era um dos melhores pilotos de dragões que alguma vez tivemos. Tinha apenas vinte anos.

Alexander inclinou a cabeça.

- Agora percebo. Lamentamos a vossa perda. Sobretudo tendo em conta que esse dragão caiu procurando salvar-nos. Quando o vi... Franziu o sobrolho, desconcertado. - Quando o vi pareceu-me um dragão verdadeiro. Como conseguem que pareçam tão reais?

- A resposta a essa pergunta poderá ser dada pela minha irmã Tanawe - respondeu Denyal; voltou-se em todas as direcções, procurando-a com o olhar.

- Atenção, fogo! - gritou então uma voz feminina, que parecia proceder da barriga de um dos dragões artificiais.

- É melhor afastarem-se - disse Rown, preocupado.

Denyal empurrou-os para o lado sem cerimónias. Do focinho do dragão surgiu então um jacto de fogo que se desfez contra uma das paredes de rocha da caverna.

Ouviram a voz da mulher lançar um grito de triunfo, e de seguida o seu rosto assomou a uma abertura no dorso do dragão. Era de meia-idade, e tinha o cabelo curto e revolto e expressivos olhos azuis. O rosto estava coberto de fuligem, tal como o de Rown, mas isso não parecia incomodá-la. Desceu de um salto do dragão artificial e correu para eles.

- Viste, Denyal? Quase sai sozinho! Em breve todos os modelos poderão lançar fogo pela boca. E com tudo isto, onde está Garin? Ainda não trouxe o seu para a revisão...

Interrompeu-se ao ver Qaydar, Allegra e Alexander.

- Tanawe... - murmurou Rown, puxando-a para si. Sussurrou-lhe algo ao ouvido; imediatamente, a expressão da mulher mudou e os seus olhos nublaram-se.

- Oh, não, Garin - murmurou.

Enterrou o rosto no peito do marido e os ombros convulsionaram-se num soluço silencioso. Denyal tomou-lhe o braço.

- Tanawe, temos visitas - disse-lhe com suavidade. - É importante.

- Não, deixa-a... - começou Allegra, mas Tanawe ergueu a cabeça. Embora os seus olhos ainda brilhassem, afastou-se de Rown e deu um passo para eles, com serenidade.

- Desculpem a minha indelicadeza - disse; procurou sorrir. - Chamo-me Tanawe e sou uma feiticeira de terceiro nível de... - Interrompeu-se de repente ao reconhecer o Arquifeiticeiro. - Tu!

- Qaydar, Arquifeiticeiro, chefe supremo da Ordem Mágica - apresentou-se o feiticeiro.

- Eu sou Aile Alhenai - disse Allegra. - Fui a última Senhora da Torre de Derbhad.

- E eu chamo-me Alexander.

- Príncipe Alsan de Vanissar - corrigiu-o Denyal. - Eram... hóspedes do rei Amrin... que obviamente lhes armou uma cilada para os entregar a Eissesh. Acabámos de os resgatar nas montanhas.

- Esse traidor miserável - praguejou Tanawe. De repente, calou-se e dirigiu um olhar comprometido a Alexander. - Quero dizer...

- Que é um traidor miserável - tranquilizou-a ele, com um sorriso.

- Eu sei. Em seu favor, só posso dizer que me parece que faz o que considera mais correcto.

- Entregando o próprio irmão? - Denyal meneou a cabeça com desaprovação.

- És uma feiticeira? - perguntou então Allegra, mudando de assunto. A mulher rebelde não vestia a túnica própria dos feiticeiros, mas sim umas calças folgadas e uma camisa comprida, roupa de homem demasiado grande para ela, mas que parecia cómoda para se mover naquele lugar.

- Recebi a minha formação na Torre de Awinor - respondeu Tanawe. - Passava horas a olhar para o céu a ver os dragões. Estudei-os tanto quanto pude. Achava-os fascinantes, e tive muita pena que se extinguissem.

- E agora nós os dois construímos os dragões dos rebeldes - disse Rown, rodeando com o braço os seus ombros. - É a magia de Tanawe e dos seus aprendizes que lhes dá um aspecto tão real. É apenas uma ilusão, mas há algo de sólido por detrás deles. Por isso funciona tão bem.

- Mas como conseguem enganar os sheks? - quis saber Alexander.

- O seu instinto deveria dizer-lhes que não são dragões reais.

- Nós sabemos - assentiu Tanawe. - Quando vivia em Awinor, coleccionava escamas de dragões que encontrava no chão. Foi uma boa ideia trazê-las para casa, porque com elas fabrico um unguento com o qual unto a pele artificial dos meus pequeninos. Os sheks percebem o cheiro do dragão, e isso deixa-os loucos. É precisamente o seu instinto assassino que faz com que estas coisas funcionem.

- Mas nunca tínhamos conseguido enganar Eissesh, até ontem interveio Denyal. - É demasiado esperto e...

- Eissesh caiu na armadilha? - interrompeu Tanawe. - com o Cuspidor de Fogo azul?

Denyal anuiu.

- E foi Eissesh quem abateu Garin.

Tanawe baixou a cabeça. Denyal continuou a falar, a meia-voz.

- Eissesh nunca tinha visto um dos nossos dragões a deitar fogo pela boca, e foi isso que o enganou. Da próxima vez, não se deixará iludir.

- O fogo é uma melhoria muito recente - explicou Tanawe, dominando-se. - Tentámo-lo desde o princípio, mas todos os feitiços de fogo que lhes incorporávamos acabavam sempre por calcinar o próprio dragão.

- Agora usamos um tipo de madeira resistente ao fogo - acrescentou Rown. - E difícil de conseguir porque a árvore de onde se extrai só cresce em Nanhai, e os túneis que vão até lá não são nada seguros. Por isso, a maioria dos nossos dragões continua sem lançar fogo pela boca. De momento, temos apenas três com essa capacidade. Chamamos-Ihes Cuspidores de Fogo. Contávamos com um quarto Cuspidor de Fogo, que Garin pilotava; o que vos resgatou esta noite.

Os recém-chegados continuavam perplexos.

- Sabíamos que só os dragões podiam enfrentar os sheks - explicou-lhes Denyal. - Mas os dragões extinguiram-se, de modo que esta foi a única possibilidade...

- Nem todos os dragões se extinguiram - cortou Alexander. Fez-se um pesado silêncio.

- Então a lenda é verdadeira? - perguntou Tanawe com timidez.

- A que fala do dragão que regressará para nos salvar?

Alexander assentiu.

- Chama-se Yandrak, e não é um dragão normal. Agora mesmo está algures em Idhún, oculto num corpo humano. Se os sheks não o descobrirem, depressa regressará para se juntar a nós.

- Um dragão de verdade? - perguntou então uma voz infantil.

- De carne e osso?

Repararam então num menino de uns oito anos que os escutava atentamente. Ninguém tinha notado antes a sua presença. Alexander lembrou-se de o ter visto na praça do mercado de Vanissar, durante o incidente com a tecelã idosa.

- O nosso filho Rawel - disse Rown. - Nasceu anos depois da conjunção astral e nunca viu um dragão vivo, mas está obcecado por eles... tal como a mãe.

Alexander observou o rosto expectante de Rawel e assentiu, sorrindo.

- Se tudo correr bem, não tardarás a ver voar um dragão de verdade, um magnífico dragão dourado.

- Vai matar Eissesh? - perguntou o menino. - Vai fazê-lo, príncipe Alsan?

Alexander lembrou-se do escasso interesse que o shek mostrara pela situação de Jack e Victoria. Há algum tempo que pensava nisso e tinha chegado à alarmante conclusão de que talvez já soubesse onde os encontrar. Não era uma ideia tranquilizadora, mas naquele momento decidiu que guardaria as suas suspeitas para si, que não as partilharia com aquela gente.

Eles precisavam de esperança, a esperança simbolizada na figura do dragão que chegaria para os salvar a todos, a esperança que aquelas pessoas tinham tratado de manifestar numa armação de madeira com escamas de dragão, a esperança que se reflectia nos olhos daquele menino.

Talvez Amrin tivesse salvado a vida dos habitantes de Vanissar, mas os rebeldes tinham conservado o seu espírito. Sorriu.

- Claro que sim, miúdo - disse-lhe. - Yandrak irá derrotar Eissesh. E veio com uma donzela-unicórnio que o ajudará a matar também Ashran, o Necromante.

Rawel lançou uma exclamação de surpresa. -A sério?!

- Foi o que os Oráculos predisseram, rapaz. Mas não é por isso que tenho essa certeza. A verdadeira razão pela qual confio neles é porque os conheço a ambos. Sei que são valentes. E sei que estão preparados para nos guiar na batalha.

Victoria acordou já o primeiro dos sóis se erguia no horizonte. Pestanejou e sacudiu a cabeça, confusa. O que acontecera?

Fechou os olhos e procurou lembrar-se. A sua mente evocou imagens de uma árvore monstruosa, e perguntou-se se tinha sido um pesadelo.

Levantou-se e olhou em volta. Descobriu Jack, estendido junto dela sobre o chão empoeirado. Mais adiante viu uma coluna de fumo ao pé das montanhas, e soube que eram os restos da árvore e que não fora um sonho. Sentiu um calafrio.

Sacudiu Jack com suavidade, mas o rapaz não acordou. Uma garra gelada apertou o coração de Victoria, que não bateu novamente até que, ao voltá-lo para cima, descobriu que o rapaz ainda respirava. Suspirou, aliviada.

Parecia profundamente adormecido. Voltou a tentar acordá-lo, sem êxito. "Talvez esteja doente", disse a jovem para si. Colocou as mãos sobre ele e transferiu-lhe parte da sua magia, para tentar curá-lo. Mas viu que Jack não precisava de mais energia. De facto, Victoria detectou nele uma estranha e nova vitalidade que ardia no seu interior como se se tratasse de um sol. Então, porque não acordava?

Um pouco mais calma, a rapariga olhou em redor com atenção. Continuavam não muito longe das montanhas que antecediam a Cordilheira Móvel. A oeste estendia-se a terra erma de KashTar.

Victoria sabia que não era boa ideia embrenharem-se naquele lugar.

Esperou algum tempo, para ver se Jack acordava, mas não teve sorte. Finalmente, quando o segundo dos sóis já assomava de detrás das montanhas, a rapariga tomou uma decisão.

com um suspiro de resignação, levantou-se e recolheu as suas coisas. Ajustou o báculo às costas e só então levantou Jack e passou-lhe o braço pelos ombros. O rapaz não reagiu. Depois de se assegurar de que Domivat continuava na sua bainha, às costas de Jack, Victoria iniciou a marcha em direcção a sul.

Os primeiros passos foram complicados. Jack pesava muito e era difícil arrastá-lo. Mas reuniu forças, respirou fundo e assim, pouco a pouco, foram-se afastando da árvore branca e dos seus rebentos.

Os dias eram longos em ídhún, mas para Victoria aquele tornou-se eterno. Continuou a carregar Jack, caminhando em direcção a sul, sem se afastar da cordilheira, sem se atrever a embrenhar-se em Kash-Tar. Teve de parar diversas vezes para recuperar o fôlego. Ao meio-dia, fez uma pausa mais prolongada junto a um ribeiro e aproveitou para beber; não encontrou nada para comer, mas isso não a deteve. Apesar de estar faminta, logo que descansou um pouco continuou o seu caminho.

Kalinor começava já a declinar quando a jovem não pôde mais e caiu no chão, arrastando Jack consigo. "vou só descansar um pouco", disse para si, esgotada. Mas fechou os olhos e adormeceu sem dar por isso.

Quando os abriu novamente, o terceiro dos sóis já não era mais do que uma unha branca no horizonte. Victoria ouviu vozes, mas não reconheceu a língua que falavam. Distinguiu figuras escuras, altas e esbeltas, à sua volta, mas não teve forças para se levantar. Não obstante, rodeou o corpo de Jack com um braço, tentando protegê-lo de qualquer ameaça.

- Estás a dizer-me que traíste o teu pai e a tua gente por uma mulher? Uma mulher que, além disso, tens de partilhar com um dragão?

Christian sorriu. Dito assim, soava muito mais absurdo do que quando parava para pensar no assunto.

- Ela não.é uma mulher qualquer - replicou. - É única em todo o mundo. É o último unicórnio; um unicórnio num corpo humano.

- Então, é parecida contigo nesse sentido. E com esse dragão.

- Não há ninguém como nós os três. Por isso há algo invisível que nos une aos três e nos obriga a estar juntos. Embora isso, a longo prazo, signifique a nossa própria destruição.

Ydeon inclinou a cabeça, pensativo.

Tinham saído para caçar naquela manhã e agora descansavam sobre uma rocha gelada de onde se avistava parte do vale e a montanha onde o gigante morava. Junto deles repousava o enorme corpo de um barjab, um animal de pele branca, cornos curvados e afiados, e garras poderosas, cuja carne era um verdadeiro manjar para os gigantes, cozinhada na brasa. Christian não costumava comer muito, mas não estava preocupado com o facto de sobrar carne. Estava convencido de que Ydeon acabaria com todo o almoço.

Estava em Nanhai há vários dias. Sentia-se em paz e à vontade; às vezes, quando fechava os olhos e deixava que o frio daquela terra acariciasse o seu corpo, perdia a noção do tempo. Aquele retiro voluntário a pouco e pouco ia-o curando por dentro e reavivando o shek que havia nele.

E havia Ydeon.

Christian nunca tivera nada parecido com um amigo e não sabia se podia considerar o gigante como tal. Ydeon perguntava-lhe frequentemente sobre o seu passado, a sua vida e os seus sentimentos humanos.

No início, o rapaz sentira-se renitente em responder, dado que interpretava aquelas perguntas como uma invasão da sua privacidade. Nunca dissera a ninguém o que pensava ou o que sentia, à excepção de Victoria, e também não tinham passado tanto tempo juntos para chegarem a conhecer-se bem.

Contudo, pouco a pouco, Ydeon ia aprendendo coisas sobre aquele jovem extraordinário e ia resolvendo o quebra-cabeças da sua existência.

Christian sabia que o gigante não se interessava pela sua vida por se preocupar com ele. Simplesmente estava a tentar encontrar nele a chave que lhe permitiria descobrir o modo de ressuscitar Haiass.

Naquela manhã, Christian tivera vontade de falar de Victoria.

- Onde está ela agora? - quis saber Ydeon.

- com Jack - respondeu Christian. "A salvo, de momento", pensou.

Na tarde anterior, sentira através de Shiskatchegg que Victoria estava em perigo de vida. Sobressaltado, estivera a ponto de voar em direcção a sul, atravessando mais de meio continente se fosse preciso, para a salvar. Mas compreendeu que não chegaria a tempo e obrigara - se a si mesmo a esperar e a confiar.

Apenas um momento depois, sentiu, através do anel, que Victoria estava a salvo - inconsciente e esgotada, mas a salvo. E a essência do dragão que era Jack pulsava ao seu lado com mais força que nunca.

À distância e através de Shiskatchegg, Christian podia inclusivamente perceber que o amor de Victoria por Jack se tornara mais sólido e mais intenso, mas isso não lhe importava.

- Renunciaste a ela? Depois de tudo o que fizeste por sua causa?

- Não, não renunciei a ela. Não preciso de estar ao seu lado para... para a amar - admitiu com esforço. - Também não duvido dos seus sentimentos por mim. Por isso não me preocupa que ame também outra pessoa. Tinha de me separar dela para vir aqui, e sabia que estaria melhor com Jack do que sozinha ou comigo. Mas tenciono ir buscá-la quando tudo isto acabar.

- O que irá acontecer então? Vais lutar com esse dragão por ela?

- Lutaria para a defender, até à morte se fosse preciso, mas não para a ter, como se fosse um objecto, uma possessão minha. Essa atitude é demasiado humana; posso ter uma alma humana, mas ainda não desci tão baixo. Não, Ydeon. Se lutar contra Jack, será porque ele é um dragão. Nada mais.

- Hum - reflectiu o gigante. - E o que sente essa tua parte shek por ela?

- Respeito - disse Christian sem hesitar. - Respeito, fascínio... não amor. Isso é coisa da minha parte humana.

- Era o que eu supunha.

O gigante levantou-se e ficou por instantes ali, de pé sobre a rocha, a meditar.

- Esse amor está a fortalecer a tua parte humana e a enfraquecer a tua parte shek - disse -, isso é evidente. Mas devia haver uma maneira de revitalizar esse instinto shek que estás a reprimir. Se a serpente que há em ti não tem nada contra essa rapariga, duvido muito que tenham sido os teus sentimentos por ela a enfraquecê-la.

Christian fitou-o, surpreendido.

- Tens a certeza do que dizes?

- Respeito. - Ydeon cravou nele os seus olhos vermelhos. - Isso não entra em conflito com o amor. Há outra coisa que tenhas tido de fazer ultimamente, algo que tenha repugnado a tua parte shek a ponto de ela se ter sentido traída na sua essência?

- Muitas coisas - sorriu Christian. - Suportar a presença constante de humanos à minha volta... ou lutar contra os meus, por exemplo.

Mas fora em legítima defesa, recordou de imediato. E os sheks também tinham lutado contra ele. E não estavam a morrer. Mas ele sim.

Tinha de ser outra coisa.

"Por favor", soou a voz de Victoria na sua mente, trazida pelos ventos da lembrança. "Por favor, não mates Jack esta noite."

A sua expressão crispou-se num esgar instintivo de ódio. E compreendeu.

Desde aquela noite em que acedera ao pedido de Victoria, nada voltara a ser igual. Aquela tinha sido a primeira vez que se traíra a si próprio... algo que tempos antes jurara nunca fazer.

Na altura não conhecia a verdadeira identidade de Jack, embora sentisse já um ódio profundo por ele. Depois tinha havido mais ocasiões, podia ter acabado com a vida do último dragão, porque a sua natureza shek assim o exigia. Mas não o fizera, porque sabia quão importante era Jack para Victoria e intuía o que poderia acontecer se ele morresse.

- É o dragão - disse então. - Converteu-se em meu aliado. A minha parte shek não suporta a ideia de estar perto de um dragão e não o matar.

- E reprimiste esse instinto uma vez e outra, enquanto ias alimentando os teus sentimentos humanos. Desequilibraste a balança, Kirtash. Sabes o que isso significa?

- Que devia ter matado aquele maldito dragão quando tive a oportunidade.

- Então tê-la-ias perdido.

Christian não respondeu, mas Ydeon leu a verdade no seu rosto, habitualmente impassível.

- Vamos voltar para casa - disse de repente. - Quero fazer uma prova. Christian seguiu-o novamente até à gruta, intrigado.

Ydeon guardou o cadáver do barjab numa câmara gelada, na qual sabia que seria conservado em boas condições até à hora de comer, e guiou o seu convidado pelo labirinto de túneis até uma grandiosa caverna cujo tecto estava crivado de enormes pedaços de gelo, que estremeciam a cada passo do gigante. Christian olhou para cima, calculando os movimentos que teria de realizar para se pôr a salvo no caso de alguma daquelas agulhas letais se desprender do tecto, mas Ydeon não parecia preocupado.

Levou-o até um monte de gelo de cerca de dois metros e meio de altura, que se erguia ao fundo da caverna. Quando Christian o observou melhor, viu que se tratava de uma estátua de pedra coberta de geada. As suas feições eram imprecisas. Parecia humanóide ou talvez representasse um gigante. Não tinha rosto.

Ydeon golpeou a estátua com o canto da mão, e o gelo desprendeu-se. Agora, podia ver-se com maior nitidez, mas Christian descobriu que as suas primeiras impressões tinham sido correctas. A estátua não representava ninguém. Inclinou a cabeça e franziu o sobrolho, alerta. Aquela coisa destilava magia, podia percebê-lo. Perguntou-se quem teria encantado uma estátua de pedra e para quê.

- Acorda - disse então Ydeon, e a estátua ergueu-se e deu um passo em frente.

Christian retrocedeu e olhou-a com desconfiança.

- É um golem - explicou Ydeon. - Só os gigantes feiticeiros sabem como os fabricar, dado que nascem da pedra, que é o nosso elemento. Também se podem fazer a partir do barro, mas os feéricos, que são quem melhor domina a terra, acham-nos desagradáveis. Há quem diga que alguns feiticeiros humanos conseguiram animar golens de barro em tempos remotos. - Ydeon encolheu os ombros. - Este, em particular, encontrei-o há dois séculos, esquecido pelo seu criador por alguma razão que desconheço. Tem uma propriedade curiosa... Aproxima-te.

Christian tardou uns segundos a avançar. Ainda olhava para o golem com receio.

- Toca-lhe - disse Ydeon - e pensa no teu inimigo. Christian ergueu uma sobrancelha.

- O que pretendes?

- Queres recuperar a tua espada, sim ou não?

Como resposta, o rapaz colocou a mão sobre a superfície fria do braço do golem. Quis pensar em Gerde, em Zeshak e até mesmo no seu pai, mas a imagem de Jack não lhe saía da cabeça.

O seu inimigo, agora convertido no seu aliado.

Mas Jack não deixara de ser um dragão, portanto, continuava a ser seu inimigo.

Então, sem aviso prévio, o golem bramiu e desferiu o punho contra Christian. O jovem saltou para trás com a agilidade de uma pantera e esquivou-se ao golpe. Retirou Haiass da bainha. Apesar de agora não ser mais do que uma espada normal, nunca se separava dela. O golem rugiu novamente e procurou atingir Christian. Este, esquecendo por um momento que Haiass já não possuía a força gélida de outrora, interpôs a sua espada entre ambos.

Para sua surpresa, não foi o braço de pedra do golem que encontrou, mas, sim, o fio de Domivat, a espada de fogo de Jack. E o golem já não era um golem, mas sim o jovem humano que ocultava sob as suas feições o espírito de Yandrak, o último dragão.

Embora a parte racional de Christian tivesse imediatamente entendido que não era mais do que uma ilusão e que aquela era a "propriedade curiosa" a que Ydeon aludira, o instinto do shek soltou-se como uma torrente de águas transbordantes. De repente, o jovem viu-se a lutar contra aquele Jack que se assemelhava tanto ao original que podia reconhecer os seus movimentos, as suas técnicas, os seus golpes, tão parecidos com os de Alexander, que fora seu mestre. Mesmo sabendo que era uma perda de tempo, Christian deixou-se levar pelo ódio e pelo ardor da luta, porque percebeu logo que lhe agradava, que se sentia mais vivo do que nunca lutando até à morte contra aquele falso Jack. E não tardou até a esquecer que era falso.

A ira do shek pulsava na sua alma como um ânimo gélido. Christian deixou que a serpente tomasse conta do seu corpo, transformando-se para se lançar com um grito selvagem contra o inimigo.

Mas já não o esperava um rapaz. Christian verificou, com surpresa e secreto prazer, que o falso Jack se tinha metamorfoseado num jovem e soberbo dragão dourado. A serpente ciciou com fúria, mas também com alegria. Era muito mais gratificante matar um dragão verdadeiro do que um que se ocultava num frágil corpo humano.

As duas formidáveis criaturas envolveram-se numa luta que fez estremecer o chão e as paredes da caverna. Alguns pedaços de gelo caíram, e Christian retorceu o seu longo corpo de serpente para os evitar. Contudo, um deles perfurou a asa esquerda do dragão, que rugiu de dor. Christian aproveitou para enterrar as presas letais no seu ombro.

com um uivo, o dragão transformou-se novamente em Jack.

Christian também recuperou a forma humana. As duas espadas só se encontraram uma vez mais. Jack estava ferido, e Christian, com um grito selvagem de triunfo, enterrou Haiass no coração do seu inimigo.

A serpente silvou no interior, celebrando a morte do último dos dragões.

Christian demorou um pouco a voltar à realidade. Arquejando, viu como o falso Jack se transformava de novo, pouco a pouco, no golem de pedra. Haiass estava cravada no peito da criatura.

Palpitava com um ténue brilho branco-azulado.

- É o que eu pensava - assentiu Ydeon. - O teu poder de shek ressuscitou Haiass.

Christian retirou a espada do corpo do golem e examinou o fio.

- A sua luz é muito fraca - disse.

- Não conseguiste enganá-la completamente. Esta coisa de pedra é um pobre substituto do que precisa na realidade.

- O que precisa é... - perguntou Christian, embora soubesse a resposta.

- Sangue de dragão. Dá-lhe a provar sangue de dragão e a espada recuperará toda a sua força. E tu recuperarás o poder que tiveste outrora. Apesar do que sentes por essa rapariga.

Ydeon parecia muito satisfeito consigo mesmo por ter resolvido o problema. Christian lembrou-se de como se sentira a lutar contra o golem. Fechou os olhos para procurar recuperar aquela sensação.

Se matasse Jack, salvaria a sua vida e recuperaria o seu poder.

Parecia tão simples...

Contemplou por instantes o golem de pedra, caído sobre o chão gelado da caverna. Ydeon colocou-o novamente de pé. Não parecia ter sofrido muitos estragos. Christian pensou, com amargura, que, se Haiass estivesse em perfeitas condições, a sua última estocada teria feito o golem estilhaçar-se em mil pedaços.

Ydeon observou-o.

- Além de se transformar no teu pior inimigo - disse -, também pode adoptar a forma da rapariga que amas.

Christian contemplou o rosto sem feições do golem.

- É repugnante - opinou.

Virou-lhe as costas e saiu da caverna. Haiass ainda palpitava com um brilho tão ténue como a luz de uma vela ao vento. Sangue de dragão. Parecia tão simples, tão óbvio...

Jack abriu lentamente os olhos. Ouvia a voz de Victoria ao longe, mas não entendia o que dizia. Conseguiu levantar a cabeça e olhar em volta. Descobriu que se encontrava no interior de uma tenda de peles avermelhadas que libertavam um odor particular, penetrante mas ligeiramente balsâmico, que era um pouco desconcertante. Jack perguntou-se a que animal pertenceriam as peles e reparou que, apesar do calor, o seu corpo estava coberto com uma delas. Afastou-a com um puxão e gatinhou até à entrada em busca de Victoria.

A primeira coisa que viu foi um par de poderosas pernas de pele escura, assentes sobre uns pés descalços cujos tornozelos estavam rodeados por diversas contas de metal. Ao erguer os olhos, viu que as pernas pertenciam a um homem muito alto, de tez de azeviche e com uma surpreendente cabeleira de madeixas brancas e vermelhas, que vestia uma túnica às riscas e lhe dirigia um sorriso mostrando uns dentes branquíssimos.

Jack sentiu um calafrio e procurou retroceder, mas ficou sentado sobre a areia, uma estranha areia rosada.

Foi então que reparou que Victoria estava junto daquele homem. Sorria, pelo que o rapaz supôs que não corriam nenhum perigo. A rapariga trocou umas palavras com o homem, que lhe sorriu também e depois se afastou com passos calmos. Jack olhou em volta, com curiosidade, e descobriu mais tendas como a sua e mais homens e mulheres da mesma raça daquele que tinha visto. Todos eram altos e de pele escura, vestiam roupa às riscas e andavam descalços; os seus cabelos tinham duas cores, sempre branco misturado com madeixas vermelhas, azuis, negras ou verdes. Jack perguntou-se se pintariam o cabelo, mas de imediato compreendeu que não, que era uma característica da sua raça.

- São os limyatí - explicou-lhe Victoria, sentando-se junto dele. O Povo da Margem.

- Da margem de quê?

- Do deserto. São uma raça de humanos que vive nos limites de Kash-Tar. Não se embrenham no deserto, porque esse é o território dos yan, mas viajam pelas suas margens, procurando as terras mais favoráveis da zona.

- E como chegámos até aqui? - perguntou Jack, confuso; a última coisa que recordava era um pesadelo que tinha a ver com árvores.

Victoria fitou-o com um sorriso cheio de carinho. -Abandonámos a Cordilheira Móvel. Lembras-te disso? Jack franziu o sobrolho.

- Mais ou menos.

- Uma árvore gigante atacou-nos. Não sei como conseguimos escapar com vida, porque desmaiei ou algo parecido. Quando acordei, estávamos juntos, a salvo; tu tinhas perdido os sentidos e a árvore tinha ardido por completo.

- Então não era um sonho - murmurou Jack. - É verdade que uma árvore quase nos matou - sacudiu a cabeça. - Parecia-me demasiado absurdo para ser real.

- Não creio que essas árvores estivessem ali por acaso. Tenho quase a certeza de que foi uma cilada que nos armaram.

Jack não a ouvia. Havia algo que o desconcertava, algo acerca das lembranças que guardava daquela batalha. Mas eram apenas imagens confusas, e por fim rendeu-se, pensando que, se o que esquecera era algo importante, não tardaria a lembrá-lo novamente.

- O que aconteceu a seguir? Victoria contou-lhe.

- Por fim, os limyati encontraram-nos - concluiu - e acolheram-nos no seu acampamento, onde estamos desde ontem à tarde.

Jack ergueu a cabeça, recordando algo, mas antes de o perguntar, Victoria adiantou-se:

- Não sabem quem somos - disse em voz baixa. - Não lhes contei.

- Não confias neles? - perguntou Jack com surpresa; tinham-lhe parecido boa gente.

Victoria negou com a cabeça.

- Não é isso. É que viajam para norte, porque Ashran está a concentrar tropas no Sul de Kash-Tar.

- Sabe para onde vamos e quer interceptar-nos - compreendeu Jack, com um calafrio.

Victoria assentiu.

- Não quero causar-lhes problemas. É melhor que não saibam quem somos, para o caso de as serpentes os interrogarem. Se souberem que nos acolheram conhecendo a nossa identidade, matam-nos.

- Em todo o caso acolheram-nos. Achas que as serpentes terão isso em conta?

- Se agiram na ignorância, deixam-nos ir. Só lhes farão mal se suspeitarem que são cúmplices voluntários da Resistência.

- Como tens tanta certeza?

Ela hesitou durante um momento antes de responder em voz baixa:

- Porque é o que Christian faria.

Jack esteve quase a perguntar-lhe se conhecia Christian tão bem a ponto de poder prever como agiria ele numa situação semelhante; mas decidiu que era melhor mudar de assunto.

- De qualquer maneira, se viajam para norte, teremos de nos separar deles.

- Já lhes disse. Ofereceram-nos um explorador para nos guiar até Awinor.

- A sério? - disse Jack, animado. - Que gente tão amável.

- Espera, o explorador ainda não disse que sim. Encontra-se fora há vários dias, mas asseguraram-me que voltará esta tarde. Só então irão perguntar-lhe se está disposto a acompanhar-nos através de Kash-Tar.

Jack olhou-a, sorrindo.

- Como fizeste para falar com eles? Eu não entendo o que dizem.

- Isso é porque o dialecto que utilizam é muito arcaico. De qualquer maneira... - Levou a mão ao pescoço e mostrou-lhe um amuleto que pendia dele, um amuleto em forma de hexágono. - Espero que não te importes por to ter tirado.

Jack levou a mão ao pescoço e descobriu que o pendente de Victoria era o seu próprio amuleto de comunicação, o que ela lhe dera na noite em que se conheceram. Sorriu novamente.

- Claro que não - disse.

Levantou-se e espreguiçou-se à luz do crepúsculo. Sentia-se mais forte, mais desperto e com mais energia do que nunca. Olhou para as palmas das mãos, perguntando-se de onde vinha aquela sensação.

- Já estás bem? - perguntou-lhe Victoria.

- Melhor do que nunca - sorriu o rapaz.

Ela sorriu por sua vez e aproximou-se mais dele, com a intenção de o beijar. Jack correspondeu-lhe de bom grado.

Então, algo lhes chamou a atenção. O chefe da tribo aproximava-se, atravessando o acampamento e falando com alguém que, pelos vistos, acabara de chegar. Estavam demasiado longe para ouvir o que diziam, mas Victoria distinguiu que o desconhecido falava muito depressa e que a sua voz era suave e feminina. Observou-o com curiosidade, perguntando-se se se trataria de uma mulher, mas era difícil dizê-lo, dado que usava uma peça que lhe cobria a cabeça e parte do rosto.

- Será o explorador? - perguntou Jack.

Victoria encolheu os ombros, mas ambos viram como o chefe os indicava por duas vezes durante a conversa. O outro movia a cabeça em sinal de desacordo.

- Acho que teremos de viajar sozinhos até Awinor - murmurou Victoria.

Os dois limyati aproximaram-se então da entrada da tenda onde os jovens se encontravam. Victoria observou o explorador com atenção e apercebeu-se de que o vento colava as suas folgadas roupas ao corpo, revelando formas femininas por baixo. Porém, o seu andar era rápido e enérgico, muito diferente dos movimentos elegantes e delicados das mulheres limyati. Adiantou-se para falar com o chefe da tribo.

- Não queremos incomodar - disse. - O meu amigo já se encontra bem, de maneira que partiremos ao amanhecer... embora sem guia.

O chefe moveu a cabeça, preocupado.

- É perigoso, rapariga. Desistam; têm muito poucas possibilidades de chegar com vida ao outro lado do deserto.

- Não têm nenhuma hipótese - disse rapidamente o explorador, e Victoria teve então a certeza de que era uma mulher.

Olhou para ela com curiosidade. Esperava ver nela os olhos escuros dos limyati, mas teve uma surpresa, dado que as íris eram avermelhadas e brilhavam como se alimentadas por algum estranho fogo interior. Procurando não deixar transparecer o desconcerto que sentia, para não parecer indelicada, Victoria disse:

- Mesmo assim, temos de prosseguir. Compreendemos que seja um incómodo para ti acompanhar-nos, não vamos insistir. Seja como for, partiremos ao amanhecer.

- Não vou acompanhar-vos - reiterou a mulher. Falava muito depressa e gesticulava bastante; Victoria perguntou-se, pela primeira vez, se não seria uma yan, embora fosse muito mais alta do que todos os yan que conhecera. - Tenho coisas melhores para fazer do que acompanhar dois jovens estranhos através de um ninho de serpentes...

Calou-se de repente e os seus olhos estreitaram-se por instantes ao olhar para algo atrás de Victoria. A rapariga voltou-se, intrigada, e viu Jack, que se juntara a ela e assistia à cena com interesse, procurando descobrir o que estava a acontecer ao certo.

A exploradora dirigiu ao rapaz um olhar demorado, intenso, e então retirou o véu do rosto, com lentidão. As luzes do crepúsculo iluminaram um rosto humano, mas de feições estranhas. Os olhos eram grandes e avermelhados, como Victoria já notara, e a sua pele morena parecia ter a textura da areia do deserto. O cabelo espesso, branco com madeixas azuis, não caía solto pelas costas, como o dos limyati, estando antes preso em inúmeras pequenas tranças, ao estilo yan.

Contudo, era jovem, e bela à sua maneira. Também Jack ficara a olhar fixamente para ela. Nunca vira ninguém como aquela rapariga tão exótica.

- Sou Kirriara, a semi-yan - disse a exploradora, com os olhos de fogo ainda fixos em Jack, - Mudei de ideias: irei acompanhar-vos.

 

                 FILHA DO DESERTO

Ao terceiro dia de caminhada no deserto, Victoria tropeçou e caiu.

Não voltou a levantar-se.

Jack correu para junto dela, chamando-a pelo nome. Ergueu-a nos braços e procurou fazê-la reagir.

Kimara, a exploradora semi-yan, observava-os com curiosidade.

- Não esperava que aguentasse tão pouco - comentou. Jack sacudiu a cabeça.

- Não, ela é forte - explicou. - É este lugar, falta-lhe... falta-lhe vida, percebes? Victoria precisa de estar em locais com energia porque... - Interrompeu-se ao ver que Kimara não o entendia. - É parecida com os feéricos nesse aspecto. As fadas não podem afastar-se dos bosques.

- Ah - disse então Kimara, compreendendo. - Achas que resistirá mais um pouco? Há um oásis não muito longe daqui.

- Espero que sim - murmurou Jack, preocupado.

Há dois dias que esperava que acontecesse. No início, Victoria tinha aguentado bem. No entanto, depressa começara a sentir-se fraca e, apesar de se arriscar a ser descoberta pelos seus inimigos, utilizou o báculo para recolher energia do ambiente, aquela energia de que ela, como canalizadora, necessitava para sobreviver. Mas aquilo era um deserto, e a energia solar que o báculo podia captar não a alimentava da mesma maneira que a energia da vida que flutuava num meio com mais vegetação.

Deviam ter previsto que aconteceria algo assim, dissera Jack para si enquanto a carregava. Kimara guiara-os até ao coração do deserto, evitando as margens, que era onde se concentravam mais patrulhas de szish. Não a preocupava o facto de os sheks poderem localizá-los se sobrevoassem aquela zona, completamente plana e quase sem lugares para se esconderem, porque levava um manto da mesma cor da areia rosada que pisavam e dera a Jack e Victoria peças semelhantes. Quando se lançavam na terra cobertos com aqueles mantos, eram quase invisíveis do ar. Além disso, embora Jack não o tivesse comentado com a guia, eles os dois contavam também com as capas de banalidade que dissimulavam a sua identidade à percepção apurada dos sheks.

Kimara movimentava-se pelo deserto como se estivesse no seu elemento. Jack surpreendera-se mais de uma vez a observar os seus rápidos e ágeis movimentos sobre as dunas, os seus olhos avermelhados a esquadrinhar o horizonte, completamente abertos, sem que a luz lacerante dos sóis a incomodasse minimamente, o seu cabelo branco e azulado sacudido pelo vento, os seus pés descalços avançando pela areia sem se queimar, com tanta facilidade como se se tratasse de chão firme. Achava-a fascinante e depressa percebeu que o sentimento era mútuo. Kimara olhava constantemente para ele, e, naqueles olhares que ambos trocavam, Jack descobria que algo se agitava no seu interior, como se os dois partilhassem um segredo, uma mesma essência.

Queria livrar-se daquela atracção que a semi-yan exercia sobre ele, porque desejava de coração ser fiel a Victoria, mas, em contrapartida, queria também averiguar o que havia em Kimara para o alterar tanto.

Victoria tinha consciência daqueles olhares, de que a voz de Kimara se suavizava quando se dirigia a Jack, de que ela fazia o possível por caminhar perto dele e de que o rapaz a aceitava ao seu lado de bom grado. Mas não disse nada, e Jack não sabia se devia agradecê-lo ou sentir-se ferido por a amiga parecer não se importar por ele reparar noutra mulher.

Jack quis acreditar que era o deserto. Fazia-os a todos comportarem-se de uma maneira estranha.

De qualquer forma, naquele momento não podia pensar noutra pessoa que não fosse Victoria. Kimara avançava à frente deles, dirigindo-os para o oásis que renovaria a magia da rapariga e lhe salvaria a vida. Jack tinha o olhar fixo na guia, mas, pelo menos por enquanto, os seus pensamentos não podiam afastar-se de Victoria.

Pouco mais tarde, Kimara parou.

- Chegámos? - perguntou Jack, mas a semi-yan indicou-lhe com um gesto que fizesse silêncio.

- Para o chão! - disse então.

Jack obedeceu sem fazer perguntas. Naqueles dias tinha aprendido que Kimara nunca pronunciava aquelas palavras sem uma boa razão. Cobriu Victoria com a capa de banalidade e lançou-lhe por cima o manto cor de areia que a guia lhe dera. Só então se preocupou em esconder o próprio corpo.

com a cara colada à areia e um braço à volta de Victoria, num gesto protector, Jack seguiu com o olhar a direcção onde se encontrava aquilo que chamara a atenção de Kimara.

Ao longe, viu uma espécie de nuvem avermelhada, informe, que se movia na direcção deles flutuando sobre as dunas. Kimara cobriu-se ainda mais com o manto. Jack imitou-a, tendo bastante cuidado para tapar bem Victoria.

A nuvem aproximou-se, e Jack descobriu, surpreendido, que eram insectos.

Todo um enxame de insectos de asas vermelhas zumbia furiosamente e percorria o deserto... à procura de algo? Jack conteve a respiração e não se sentiu tranquilo até que a nuvem se perdeu de vista no horizonte e Kimara retirou o seu manto de areia.

- O que era aquilo? - perguntou Jack, pondo-se de pé.

- Chamamos-lhes kayasin, "espiões" - explicou Kimara. - Por si sós são inofensivos, dado que se alimentam de carcaças e não matam presas vivas. Mas avisam os swanit da presença de viajantes solitários, e nada nem ninguém pode escapar de um swanit. São muito vorazes... embora deixem sempre alguma coisa para o enxame de kayasin que os guiou até à presa. É por isso que a sua aliança funciona tão bem.

Jack não se atreveu a perguntar que diabo era um swanit.

Intuiu que não gostaria de saber e ficou contente por Victoria não estar consciente para ouvir aquelas palavras.

Ao cair da tarde chegaram ao oásis, um grupo de árvores em forma de guarda-chuva que dava uma sombra deliciosa. Jack agradeceu a mudança. Não aguentava bem o calor; nisso, pensou, não se parecia com Kimara.

Não havia ninguém nos arredores. Jack depositou Victoria com cuidado ao pé de uma árvore, no lugar que lhe pareceu mais frondoso, e ficou junto dela. Kimara desapareceu entre as árvores e regressou ao fim de algum tempo com um odre cheio de água. Jack molhou as têmporas de Victoria, derramou um pouco de água sobre os seus lábios ressequidos e depois bebeu de bom grado. Quando baixou o odre, encontrou os olhos de fogo de Kimara fixos nele. Sorriu, incomodado, e estendeu-lhe o odre, mas ela recusou-o. Moveu-se para se sentar junto dele, muito perto.

- Sei quem és - disse então a semi-yan, com suavidade. Jack arrepiou-se.

- O que queres dizer?

- O fogo arde dentro de ti como se tivesses um sol no coração disse ela. - Posso vê-lo nos teus olhos. Embora não seja completamente yan, o fogo é o meu elemento. Sei do que estou a falar. Reconheço-o quando o tenho diante de mim. Outros talvez não te reconheçam porque esperam ver-te com outra forma, mas a mim não conseguiste enganar-me: és um dragão.

Jack abriu a boca para negar, mas percebeu que era absurdo. Não fazia sentido negá-lo.

- Há quanto tempo sabes, Kimara?

- Desde a primeira vez que te vi. - Aproximou-se mais dele e voltou a dirigir-lhe um dos seus olhares intensos. - És metade dragão, metade humano. Também eu sou metade humana; a minha outra metade, a minha parte yan, é filha do fogo, como os dragões.

- Temos muito em comum, então - sorriu Jack, ainda um pouco desconcertado, mas compreendendo por fim porque se sentira tão atraído por ela.

- Não tanto como pensas. Nunca poderei estar à tua altura. És um dragão, mas, pela maneira como tratas os humanos, dir-se-ia que não entendes o que isso significa.

- E o que significa?

- Significa que estás muito acima de todos nós. Os dragões são o escalão intermédio entre as raças mortais e os deuses. Sinto-me... estranha a falar disto precisamente a ti - acrescentou, corando um pouco.

Jack fitou-a por um momento, tentando entender o que ela estava a dizer-lhe. Baixou então a cabeça para olhar para Victoria.

- Sabes quem ela é? - perguntou. Kimara negou com a cabeça.

- Não. Não encontro nada de especial nela. Não vejo fogo no seu olhar.

- Mas há luz - disse Jack. - Então é verdade que só os feéricos, os sheks e os dragões conseguem ver a luz dos olhos de uma criatura como Victoria.

Kimara esperou que Jack explicasse algo mais acerca da rapariga, mas ele não o fez. A semi-yan dirigiu-lhe um sorriso rasgado.

- A única coisa que sei dela é que tu lhe pertences - disse. - Merece-te?

Jack fitou-a, surpreendido com a pergunta. O olhar de fogo de Kimara continuava cravado nele. A jovem estava tão perto que Jack pôde sentir o seu odor, selvagem e almiscarado. Esforçou-se por se concentrar na resposta que devia dar-lhe.

- Se não fosse assim, não estaria com ela - respondeu.

Parecia-lhe uma resposta um pouco arrogante, mas tinha a sensação de que era o que Kimara estava à espera de ouvir e, além disso, não queria revelar a identidade de Victoria dando demasiados pormenores sobre ela.

A semi-yan afastou-se um pouco dele.

- Claro. É verdade - disse.

Levantou-se e deu uns passos em direcção ao coração do oásis. Voltou-se brevemente para ele. Parecia que hesitava, mas a sua voz não tremeu quando disse a Jack, olhando-o nos olhos:

- Não aspiro a obter o teu amor porque sei que não sou digna dele. Sou apenas uma semi-yan, enquanto que pelas tuas veias corre o autêntico fogo dos senhores de Awinor. Mas, se alguma vez desejares uma companhia diferente da dela... seria para mim um orgulho e um prazer passar a noite contigo.

Jack ficou sem fôlego. Quis falar, mas tinha a boca seca. Quando recuperou a voz, Kimara já se afastava dele e Victoria gemia debilmente, antes de abrir os olhos, ainda aturdida.

No oásis havia uma pequena lagoa da qual provinha uma água morna e de um azul intenso, quase violáceo. Jack e Victoria deram, graças por poderem banhar-se e tirar de cima de si a areia do deserto.

- Como é possível que haja aqui uma nascente? - perguntou Jack naquela noite, enquanto estavam os três reunidos em volta da fogueira.

- É magia, não é? - disse Victoria. - Posso percebê-lo. Esta lagoa não é natural.

- É obra dos feiticeiros yan - disse Kimara. - Não há muitos feiticeiros entre a gente do deserto, porque os unicórnios não gostam dos desertos, pelo menos é o que se diz. - Jack e Victoria desviaram o olhar, mas Kimara continuou a falar depressa, não o notando. - Por isso não existem muitos oásis como este no deserto. São muito difíceis de criar além de que os sacerdotes yan não gostam que alteremos a nossa terra.

- Porque não? - quis saber Jack. - Se têm o poder de criar oásis, poderiam fazer do deserto um lugar melhor para viver.

Kimara sorriu.

- Nunca digas isso a um yan de sangue puro - avisou. - É quase uma blasfémia. Vai contra as nossas crenças. Diz-se que, quando os deuses chegaram a Idhún, a deusa Wina apaixonou-se tanto por este mundo que desceu nele e o cobriu por completo com um manto de vegetação. Todos os deuses colaboraram com ela: Irial conduziu até ao mundo a luz das estrelas; Karevan fez crescer as montanhas; Neliam povoou os oceanos de criaturas aquáticas e utilizou o poder das luas para criar as marés; Yohavir fez o ar que respiramos, as nuvens, os ventos, os odores e os sons bonitos; Aldun alimentou os três sóis, mas não se contentou em ver Idhún dos céus e decidiu descer para ver de perto o resultado da criação.

Kimara fez uma pausa. Os seus olhos de rubi percorreram as dunas silenciosas que se estendiam para lá do oásis.

- Foi aqui que aterrou, neste que é hoje o deserto de Kash-Tar. O seu corpo de fogo abrasou uma grande extensão de terra, destruindo toda a obra dos outros cinco deuses. Não fez de propósito, mas Wina nunca lho perdoou.

Victoria desviou o olhar para as estrelas, para as luas.

Reparou que Érea começava já a minguar. Por sua vez, segundo lhe pareceu, Ilea depressa estaria cheia. Victoria recordou que, de acordo com as lendas, aquela era a lua favorita de Wina, talvez por ser tão verde como os bosques que ela protegia. Suspirou. Diziam que Wina era uma deusa alegre, despreocupada e caprichosa; no entanto, quando se tratava de castigar aqueles que destruíam os bosques, a sua ira não conhecia limites.

- Mais tarde - prosseguiu Kimara -, quando os deuses criaram os seus filhos, todos estiveram de acordo em que as terras que tinham ardido por culpa de Aldun seriam o lar da raça que ele tinha criado: os yan, os filhos do fogo e, desde então, filhos do deserto. Por isso, não nos é permitido abandonar o deserto nem convertê-lo em algo que ele não é. Esta é a terra que Aldun criou, é o legado que nos deixou. Fizemos dela a nossa casa, e aprendemos a amá-la.

- É uma história muito bonita - disse Victoria.

Jack não disse nada. Os olhos de Kimara estavam fixos nos seus, e o rapaz contemplava, hipnotizado, o reflexo das chamas nas íris avermelhadas da jovem. Victoria olhou para eles durante um momento, mas não fez qualquer comentário.

- Descansem - disse então Kimara. - Amanhã espera-nos um longo dia.

- Isto é o que queria mostrar-te, príncipe Alsan - disse Mah-Kip em voz baixa.

Alexander contemplou a vista do alto do outeiro a que acabavam de subir. Junto dele, Denyal mostrava-se inquieto e olhava para o semiceleste com desconfiança.

Tinham cavalgado durante dois dias, seguindo as montanhas, para chegar até ali, e apenas porque, de alguma maneira, Mah-Kip, um dos conselheiros do rei Amrin, arranjara maneira de chegar até aos rebeldes dizendo que tinha algo importante a falar com Alexander.

Denyal achava que era uma armadilha. Tinha de ser, já que Mah-Kip era um dos homens de confiança do rei e este trabalhava para os sheks. No entanto, Alexander acedera a encontrar-se com Mah-Kip e decidira acompanhá-lo para ver o que ele tinha para lhe mostrar. O líder dos Novos Dragões começava a pensar que o príncipe no qual depositara as suas esperanças não era grande coisa como estratega nem tinha o mínimo da sensatez que seria desejável em alguém que, como ele, aspirava a um dia recuperar o trono de Vanissar. Porém, por via das dúvidas, decidira acompanhá-lo. Se fosse uma armadilha, decerto não permitiria que caísse nela.

Tinham atravessado o rio há algum tempo e tinham-se embrenhado no reino de Shia. Alexander lembrava-se de Shia, uma terra florescente cujos habitantes valorizavam a cultura e as artes. O rei de Shia possuíra uma das bibliotecas mais completas de Idhún; ficava apenas atrás das bibliotecas das Torres de Kazlunn e de Derbhad, e a de Rhyrr, a Cidade Celeste.

Mas a paisagem que Mah-Kip lhe mostrava não se parecia em nada com a Shia que Alexander recordava. Os pastos verdes e os campos férteis eram agora terras ermas e escuras. As casas, quintas e cabanas que antes salpicavam os caminhos tinham-se convertido em simples montes de cinzas e ruínas tristes. Não se via nada vivo.

- O que aconteceu aqui? - perguntou Alexander, consternado.

Mah-Kip suspirou.

- Suspeitava que não o sabias - disse.

- Shia foi o primeiro reino a rebelar-se contra Ashran e os sheks explicou Denyal. - Antes de podermos sequer reagir, antes que o rei Brun conseguisse organizar o seu exército, os shianos tinham já começado a lutar contra os homens-serpentes que nos invadiam. Obviamente, foram os primeiros a ser castigados.

- Não se renderam - prosseguiu Mah-Kip em voz baixa. - Nem sequer consideraram a possibilidade de pactuar com Ashran. Sabem porquê? Pela simples razão de que o rei de Shia tinha ouvido falar da profecia. Havia rumores que falavam de um dragão e de um unicórnio que se salvaram da destruição e que regressariam para acabar com o Necromante, e ele acreditou neles. Em nome do dragão e do unicórnio, enfrentaram as serpentes com fé inquebrantável, esperando vê-los aparecer a qualquer momento. Mas eles não chegaram, e os sheks foram particularmente severos com os shianos. Como vês, já não resta nada de Shia nem daqueles que acreditaram na palavra dos Oráculos.

- Precisamente por eles não devemos render-nos! - exclamou Denyal. - Se o fizéssemos, o sacrifício de Shia teria sido em vão. Os Novos Dragões continuarão a lutar... com ou sem o apoio do rei Amrin.

Mah-Kip suspirou de novo e voltou-se para Alexander.

- O rei não sabe que estou aqui - disse. - Eu também não sabia que ele tinha intenção de te entregar a Eissesh. E não aprovo a sua maneira de actuar... mas compreendo-a. Se não se tivesse rendido aos sheks depois da morte do teu pai, se não tivesse aceitado o governo de Eissesh... era isto o que terias encontrado ao regressar a Vanissar concluiu, indicando a paisagem desolada de Shia com um gesto largo da sua mão.

Fez-se um demorado e pesado silêncio.

- Sei que a minha presença aqui põe em perigo tudo o que o meu irmão tentou proteger durante todos estes anos - assentiu finalmente Alexander. - Mas também não vou renunciar àquilo em que acredito, àquilo por que luto há tanto tempo. Se tiver de enfrentar o meu irmão... que assim seja.

Deu meia-volta para se ir embora, e Denyal seguiu-o. Mah-Kip permaneceu por um instante sobre a colina. Depois, desatou a correr atrás de Alexander.

- Príncipe Alsan! - chamou-o. Alexander voltou-se para olhar para ele, e Mah-Kip engoliu em seco antes de dizer: - Eu... preciso de saber.

É verdade que há um dragão e um unicórnio? É verdade que regressaram a Idhún?

Alexander susteve o seu olhar durante um momento. Depois, deu a volta e continuou a caminhar até ao seu cavalo, sem responder à pergunta.

Quando se levantaram, no dia seguinte, descobriram que o oásis fervilhava de actividade. Acabara de chegar uma caravana proveniente de Kosh e havia gente a descansar debaixo das árvores e a beber e a banhar-se na lagoa. Jack não viu Kimara em lado nenhum; esteve quase para ir à sua procura, quando viu algo que lhe gelou o sangue nas veias.

As pessoas que viajavam na caravana eram, sobretudo, humanos e yan. Mas havia também um grupo de szish, os homens-serpentes que serviam Ashran, e que observavam tudo com os seus sagazes olhos negros. Jack e Victoria cobriram-se com as capas de banalidade e esperaram por Kimara no acampamento. Os szish passaram junto deles. Victoria sentiu como o corpo de Jack ficava rígido. "Serpentes", pensou a jovem. Jack sempre tivera uma curiosa fobia de serpentes, mas naquele momento não era nojo nem medo o que se lia no seu rosto, mas sim... ódio. Victoria notou que a tensão do amigo não se devia ao medo, mas ao facto de estar a conter-se para não desembainhar a espada e saltar sobre os szish. "Que esquisito", pensou Victoria. Olhou para ele, preocupada. Jack andava há uns dias a comportar-se de uma forma um pouco estranha.

Um dos szish voltara para eles a sua cabeça de serpente. Victoria conseguiu ouvir claramente o cicio produzido pela sua língua bífida. Jack fitava-o com expressão desafiadora.

- Jack, não olhes para eles - sussurrou Victoria.

O rapaz esforçou-se por desviar o olhar. Victoria puxou a capa de banalidade dele para o cobrir ainda mais.

"Não repares em nós, não repares em nós...", desejou ela com todas as suas forças.

Por fim, os szish afastaram-se em direcção à lagoa. Quase de imediato, regressou Kimara.

- Tive de regatear um pouco - disse -, mas consegui dois torkas que parecem fortes e saudáveis.

Jack quis perguntar o que era um torka, mas supôs que o descobriria muito em breve e, de facto, assim foi. Tratava-se de grandes lagartos vermelhos, parecidos com iguanas. Os jovens olharam-nos com desconfiança quando Kimara saltou para o dorso de um deles, apetrechado com uma sela e rédeas que se apertavam no corno que crescia sobre o nariz da criatura.

- Subam para o outro, vamos - apressou-os a semi-yan. - Lamento, não consegui uma terceira montada, mas esta fêmea é forte e aguentará com os dois.

Jack acariciou com cautela a pele do réptil e sentiu a sua respiração pesada debaixo das escamas de um vermelho desmaiado, como que empoeirado. O torka voltou-se para olhar para ele com os seus olhos rasgados. Não pareceu achá-lo interessante, porque fechou os olhos, indolentemente, e bocejou com um curioso som gutural. Jack deixou escapar uma gargalhada. Ouviu o riso suave de Victoria ao seu lado e olhou-a, ainda sorridente.

- O quê, atreves-te? - desafiou-o ela.

Como resposta, Jack subiu de um salto e, para sua surpresa, o torka mal se mexeu. Ajudou Victoria a montar atrás dele e pegou nas rédeas.

Depressa descobriram que era muito simples montar no torka, uma vez acostumados aos movimentos ondulantes dos corpos daqueles curiosos répteis. Segundo lhes explicou Kimara, os torkas eram os animais que melhor resistiam ao calor do deserto. Além disso, eram muito fáceis de domar.

- Se não fossem tão preguiçosos... - suspirou a semi-yan, impaciente, enquanto fustigava a sua montada para que caminhasse mais depressa.

Não tardaram a deixar o oásis para trás e, com ele, o perigo imediato da patrulha szish.

Ydeon, o fabricante de espadas, estava a dar forma a um poderoso machado de guerra quando Ashran, o Necromante, se materializou na sua gruta.

O gigante percebeu a sua presença e saudou-o com um gesto, mas não deixou de trabalhar. Ashran estava acostumado a que todos se lançassem ao chão na sua presença, em sinal de submissão, mas não se incomodou com a indiferença de Ydeon. Os gigantes eram assim. Não reconheciam senhores nem amos e também não compreendiam os laços emocionais que podiam unir as pessoas. Conceitos como a amizade, o ódio, o amor ou a lealdade não tinham para eles o mesmo sentido que para o resto das pessoas, a partir do momento em que implicavam a ligação a outros seres. Podiam entender a união que aqueles sentimentos provocavam em gente de outras raças, conheciam-na e inspirava-lhes certa curiosidade; mas não a compreendiam, porque não podiam experimentar nada parecido. Sim, tinham emoções e sentimentos, mas não sentiam a necessidade de estar unidos às pessoas que os inspiravam. Não existia gente mais independente e amante da solidão do que os gigantes.

Os sheks, pelo menos, possuíam uma clara consciência de raça e estavam unidos entre si por fortes laços telepáticos. Essa era a razão por que gostavam tanto da solidão; não precisavam de estar fisicamente juntos para se saberem parte de algo.

Tal não acontecia com os gigantes; não tinham espírito de grupo e não sentiam falta dele. Portanto, não fazia sentido exigir a Ydeon que prestasse vassalagem a Ashran e aos sheks. Tomar partido numa guerra implicava estar unido a um bando, a um grupo, e isso era algo que o gigante nunca conseguiria fazer. Simplesmente porque não fazia parte da sua natureza.

- Vim ver o meu filho - disse Ashran.

Ydeon indicou um túnel lateral que se afundava na escuridão.

O Necromante assentiu em silêncio e embrenhou-se nele.

Ydeon continuou a trabalhar, impassível. Em nenhum momento lhe ocorreu pensar que talvez Christian não tivesse vontade de se encontrar com o pai. E, mesmo que lhe tivesse ocorrido, não era assunto seu.

Ashran chegou à câmara do golem e deparou-se com uma cena curiosa.

Christian estava envolvido numa luta até à morte contra um magnífico dragão dourado. Não se tinha transformado em shek, mas dava a sensação de que não precisava de o fazer. O fio de Haiass cintilava na penumbra procurando a carne do dragão, abrindo feridas na sua pele escamosa, fazendo-o sangrar uma vez e outra. O jovem movia-se com rapidez e agilidade, mas golpeava com contundência e lançava gritos selvagens de fúria; os seus olhos estavam cheios de ódio gelado. Ashran contemplou com interesse como o dragão dourado, ferido de morte, se transformava no rapaz chamado Jack. Viu Christian lançar um grito de triunfo quando, desferindo uma última estocada, cortou de forma limpa a cabeça do seu oponente.

O Necromante semicerrou os olhos, interessado. Nunca tinha visto Christian cortar cabeças. Era uma forma de matar demasiado tosca, demasiado crua e desagradável para ele. O rapaz costumava ser muito mais discreto e elegante na hora de ceifar vidas. Perguntou-se o que podia significar aquilo. Era evidente que o seu ódio por Jack se tinha intensificado até àquele ponto, e isso era bom. Mas também podia implicar que se tornara suficientemente humano para se deixar levar pela ira, e isso não era bom.

O corpo decapitado de Jack caiu ao chão e transformou-se numa enorme criatura de pedra. O brilho do fio de Haiass palpitou por um momento e depois esmoreceu visivelmente, como se a espada se sentisse esgotada depois do combate e, sobretudo, decepcionada porque o adversário não era um dragão autêntico.

Christian respirou fundo e ergueu-se, procurando recuperar a calma. Foi então que percebeu atrás de si a presença de Ashran.

- Sentes prazer em destruir essa coisa? - perguntou ele com suavidade. O jovem voltou-se sobre os seus calcanhares com agilidade felina.

Não disse nada. Limitou-se a observar o pai com desconfiança.

- Podes guardar essa espada - disse Ashran. - Se quisesse matar-te, tê-lo-ia feito há muito tempo. De qualquer forma, mesmo que tivesse mudado de ideias a esse respeito, não poderias fazer nada para o evitar.

Christian não se mexeu nem afastou o olhar dele. Também não embainhou a espada.

- O que queres? Ashran indicou o golem.

- Que faças exactamente o que estavas a fazer há pouco. Mas com um dragão de verdade.

Christian relaxou um pouco. Fazia tempo que imaginava que lhe proporia algo assim. Já tinha ensaiado a resposta que lhe ia dar.

- Não vou servir os teus interesses. Pensei que estava claro, não?

- Sim, isso pensava eu - sorriu Ashran. - Mas dá-se o caso de que os meus interesses são também os teus. De contrário, não passarias o tempo a assassinar uma vez e outra o homem que quero que mates. Qual é o problema de fazer o mesmo com o autêntico? Deseja-lo. Sabes disso.

Christian respirou fundo, embainhou a espada e sentou-se sobre o chão de pedra. Apoiou as costas na parede e fechou os olhos, procurando acalmar-se, tentando acabar com o ódio que continuava a pulsar no seu interior e que o podia levar a aceitar a proposta de Ashran. O feiticeiro apercebeu-se disso.

- Continuas a reprimir o teu instinto? Isso acabará por te matar, filho. Porque não queres assumir que és um shek? Porque não actuas em conformidade?

Desta vez, Christian também não respondeu nem abriu os olhos. Há dias que sabia qual era o jogo de Ashran e compreendia que, a longo prazo, não teria outro remédio senão fazer o que ele esperava que fizesse.

Tinha perdido a conta das vezes que "assassinara" o golem sob a forma de Jack ou de dragão, era indiferente. Quanto mais vezes o fazia, mais intensamente pulsava o ódio no seu interior. Mas de cada vez que lutava sentia-se muito melhor, mais livre, mais poderoso, mais seguro de si mesmo, por isso não deixava de o fazer.

Além disso, era a única coisa que podia fazer ali.

Ydeon e ele não passavam muito tempo juntos. Cada um fazia a sua vida, sem dar explicações ao outro, sem avisar se ia sair, onde ia nem quando voltaria. Agora que tinham resolvido o mistério da espada, as suas conversas tinham-se tornado cada vez mais breves e raras. Christian sabia que, se Ydeon o tolerava na sua casa, era porque o shek não o estorvava. Ambos eram seres solitários e independentes; respeitavam-se um ao outro e não se incomodavam.

Também Christian agradecia aquela atitude. Às vezes, saía para explorar o mundo gelado de Nanhai e só regressava ao fim de um ou dois dias. Ao voltar percebia que Ydeon não sentira a sua falta; provavelmente nem sequer dera pela sua ausência. De facto, o jovem estava convencido de que, se abandonasse Nanhai sem dizer nada, para nunca mais voltar, o gigante não se surpreenderia com a sua ausência. Limitar-se-ia a perguntar-se para onde teria Christian levado a sua estimada Haiass e se alguma vez voltaria a ver aquela prodigiosa espada.

A sua parte shek preferia assim: liberdade, solidão, independência. Mas às vezes a sua parte humana sentia falta de alguém com quem falar. Já nada o retinha em Nanhai e no fundo desejava abandonar aquele lugar para ir ao encontro de Victoria, ajudá-la no seu emprendimento, estar ao seu lado para a proteger.

Mas com Victoria estava Jack, e Christian sabia muito bem o que podia suceder se ambos se voltassem a encontrar. Especialmente se, como suspeitava, a sua essência de dragão já tivesse vindo à superfície.

Assim, obrigava-se a permanecer naquela espécie de retiro voluntário. Entretanto descarregava a cólera e frustração contra o golem, para manter desperta a sua parte shek e a vida frágil da sua espada, que continuava ferida e doente, faminta de vítimas reais.

- Quero manter-me à margem - disse calmamente. - É tudo.

- Posso entender que continues a querer proteger a rapariga - disse Ashran. - Foi um erro da minha parte procurar forçar-te a traí-la. Mas nada te impede de matar o dragão, pois não?

Christian não respondeu.

- Se o dragão morrer, impediremos definitivamente que a profecia se cumpra. Sem necessidade de fazer mal à rapariga.

- Eu sei - respondeu Christian. - Foi o que quis propor-te desde o princípio.

- Na altura, não quis correr riscos. Talvez tivesse sido esse o meu erro. Subestimei até onde podiam ir os teus sentimentos por ela, mas estou disposto a conceder-te outra oportunidade. Se matares o último dragão, Kirtash, voltarás a ser um dos nossos. Até mesmo os sheks perdoarão a tua traição. E garanto-te que a rapariga sairá ilesa. Darei ordem para que ninguém lhe faça mal. Além disso, quem sabe, talvez não seja má ideia conservar com vida o último unicórnio do mundo.

Nos olhos de Christian surgiu um brilho de nostalgia.

- Em tempos sonhei que era possível - murmurou. - Imaginei um mundo governado por nós. Sem dragões, sem profecias que ameaçassem o nosso futuro. Jack morto e Victoria ao meu lado. Para sempre.

"Ao meu lado, serás a minha imperatriz", dissera dois anos antes a uma rapariguinha aterrada que não suspeitava ainda do poder incrível que guardava no seu interior. "Juntos governaremos Idhún."

Evocou o momento em que ela pegara na sua mão. Teria dado tudo para voltar àquele instante, lutar para que ninguém o estragasse, levar Victoria consigo antes que os interrompessem...

Mas o momento tinha passado e Victoria tinha soltado a sua mão. Naquele instante, Christian devia ter sabido que não voltaria a pegar-Ihe nunca mais, que o laço que a unia a Jack era demasiado forte para que ele pudesse rompê-lo. Por muito intensos que fossem os sentimentos de Victoria pelo filho do Necromante.

- O que te faz pensar que não é possível? - perguntou Ashran com suavidade.

Christian sorriu.

- Sei-o. A morte de Jack não resolveria as coisas, pai. Victoria nunca mo perdoaria. Além disso, eu... - vacilou.

- Não queres fazê-la sofrer. Kirtash, Kirtash, às vezes surpreende -me o quão ingénuo podes ser. Quando o dragão morrer, o shek reviverá com mais força dentro de ti. Então não te importarás com o seu sofrimento. Além disso, vai passar-lhe; acabará por voltar para ti. Christian esboçou um sorriso céptico.

- Não acreditas? - sorriu Ashran. - Pensa em quem ela é. Imagina-a sem o dragão ao seu lado. A sua vida já não terá nenhum sentido. Acabará por ir ter contigo, porque és o único que a pode compreender, o único a quem pode entregar o seu amor. Os unicórnios precisam de amar, filho. E não existe ninguém que possa comparar-se a ela, ninguém excepto vocês os dois. Separa-a para sempre desse dragão e ela será tua. Por muito que te odeie na altura, serás a sua única opção, ela sabe-o. E tu também.

- Não seria a sua única opção. Não conheces Victoria.

- Tu achas que a conheces, mas esqueces-te de que é um unicórnio. O último unicórnio. Nunca se deixaria morrer voluntariamente. Também não suportaria a ideia de estar sozinha o resto da sua vida.

Christian respirou fundo.

- E porque não esperar que seja outro a matar Jack? - perguntou.

- Porquê voltar a implicar-me numa guerra que já não me interessa?

- Poderia enviar outro para acabar com a sua vida - admitiu Ashran.

- Mas sei que tu tens mais possibilidades, porque eles confiam em ti. Os teus sentimentos por essa rapariga são a tua melhor arma para te aproximares da Resistência, porque são sinceros e eles sabem disso.

Christian não disse nada. Voltou-lhe as costas, dando a entender que não tinha vontade de continuar com aquela conversa.

- Pensa nisso, Kirtash - concluiu Ashran. - Vê no que te converteste, olha para tudo o que perdeste. E pensa em tudo o que podes ganhar se acabares com o último dragão. Recuperarias o teu lugar entre nós e garantirias a segurança dessa rapariga de quem tanto gostas.

- Não quero voltar a ser uma marioneta às tuas ordens, pai - disse Christian com suavidade. - Não lamentarei a morte do último dragão, mas não serei eu a acabar com a sua vida. Estou cansado de ser apenas um peão no teu jogo de poder.

- É isso que achas? Agora mesmo és uma ameaça, Kirtash, e, como tal, deveria matar-te sem hesitar. Tenho outros servidores mais fiéis que não me dão tantos problemas

como tu. No entanto, estou aqui, a oferecer-te outra oportunidade. Queres saber porquê? Porque sei que estás a morrer, filho. Por isso quero que sejas tu a acabar com esse dragão. Sabes... tal como eu... que isso te salvará a vida. Apesar do muito que me decepcionaste, apesar desses sentimentos humanos que te tornam tão fraco e que tanto me desagradam... no fundo não deixaste de ser meu filho.

Christian sentou-se, surpreendido, e ergueu o olhar para o Necromante.

Mas Ashran tinha desaparecido.

Ainda viajaram durante mais dois dias através do deserto. Victoria aguentou bastante bem, em parte devido ao facto de que montar um torka era menos esgotante do que caminhar sobre as dunas. Mas não falava muito, e Jack não sabia como interpretar o seu estranho silêncio.

Kimara não voltara a insinuar-se. Tinha sido muito clara e sincera no oásis, coisa que Jack agradecia, mas suspeitava que não voltaria a insistir no assunto para não o incomodar. Também ele procurou esquecer o que tinham dito. Mas continuava a sentir uma forte atracção por aquela fascinante jovem e não sabia muito bem como agir.

Além disso, tinha a certeza de que Victoria o notara. Talvez fosse por isso que estava tão fria e calada com ele. Mas, se isso a incomodava, porque não lhe dissera nada a esse respeito? Porque não tentava impedir que se aproximasse de Kimara, porque se mostrava tão indiferente, como se não se importasse com o que pudesse acontecer entre eles? Às vezes, Jack não conseguia evitar sentir-se magoado com a sua atitude. Outras vezes, censurava-se a si mesmo por se sentir culpado por pensar em Kimara. Por acaso Victoria não mantinha uma relação com um shek? Victoria, que supostamente estava com ele, com Jack? Então, por que razão devia ele rejeitar Kimara?

Jack atravessava um estado de grande confusão, e não ajudava em nada o facto de há vários dias notar que se passava algo de estranho dentro dele. Algo que nada tinha a ver com mulheres.

Estava mais forte, mais resistente, mais seguro de si mesmo. Surpreendia-se frequentemente a olhar para o céu e a imaginar que abria as asas e começava a voar, num movimento que, de repente, lhe parecia estranhamente familiar. E, sobretudo... o seu medo das serpentes tinha desaparecido. Agora odiava-as, simplesmente.

Ao entardecer do segundo dia depois de abandonarem o oásis, chegaram a um acampamento yan. Kimara conduziu o seu torka até lá, e a montada de Jack e Victoria seguiu-o sem hesitar.

Contudo, eles não se sentiam à vontade. O único yan que tinham conhecido, um tal Kopt que vivia exilado na Terra, acabara por se revêlar um traidor. Não tinham a certeza se queriam conhecer mais algum.

Kimara desmontou e lançou-se nos braços do yan que veio recebê-la. Falaram muito depressa, e nem Jack nem Victoria conseguiram entender o que diziam. Mas, quando Kimara se aproximou deles, seguida pelo yan, Victoria intuiu que estavam num lugar seguro.

- Apresento-vos o meu pai, Kust - disse ela com um sorriso.

O yan observou-os com atenção. Retirara do rosto o véu que todos os yan costumavam usar e que ocultava as suas feições, à excepção dos olhos avermelhados da sua raça. E Jack e Victoria viram pela primeira vez o rosto de um yan.

Tinha um aspecto ainda mais humano do que ambos haviam imaginado. A sua pele era áspera e rugosa, de um cinzento-avermelhado, e o seu nariz achatado parecia ainda mais pequeno por baixo dos enormes olhos redondos e ardentes como brasas que sobressaíam nas suas feições. Tinha o cabelo grisalho penteado em inúmeras pequenas tranças que lhe caíam sobre os ombros.

A Victoria lembrou-lhe vagamente uma espécie de duende. Talvez isso tivesse também a ver com o facto de que, em geral, os yan eram gente de baixa estatura.

De qualquer forma, não tiveram muito tempo para o observar, porque Kust não parava de se mexer e depressa se cansou de esperar que os estrangeiros falassem.

- Bem-vindosaHadikah - disse, com um sorriso estranho -, quenonossoidiomasignifica"Refúgio".

Hadikah não era um lugar, ou, pelo menos, não um lugar fixo. Hadikah era onde a tribo instalasse o acampamento e montasse as suas tendas, em qualquer lugar do deserto, porque, como Kimara lhes contou, todo o Kash-Tar era o lar dos yan.

Naquela noite, dançaram freneticamente em volta do fogo, em honra dos convidados. Os yan eram gente estranha e misteriosa, mas hospitaleira quando queria. Contudo, Victoria não pôde evitar perguntar-se se os teriam acolhido da mesma maneira se não se tivessem apresentado ali com Kimara.

No início, a jovem não quis dançar, embora as mulheres yan insistissem com ela, dando a entender que, apesar do seu sangue mestiço, Kimara sabia aquelas danças tão bem como qualquer rapariga yan. Mas a exploradora limitou-se a admirar os que dançavam junto à fogueira, sozinha e em silêncio.

De vez em quando, contudo, ela e Jack trocavam olhares intensos.

Ao fim de algum tempo, iniciou-se uma nova dança. Tinham ficado apenas duas mulheres, e chamaram Kimara por gestos. Por fim, ela acedeu a levantar-se. Despiu a camisa, ficando vestida como as outras bailarinas: com as calças folgadas, uma espécie de soutien que se atava às costas mediante uma série de tiras finas de tecido, deixando a descoberto o ventre e os ombros. com um grito selvagem de alegria, juntou-se às outras.

As três começaram a girar sobre si mesmas ao compasso da música dos tambores, em volta do fogo, como planetas que rodavam em torno de um sol, com os braços estendidos para os lados e as tranças a flutuar no ar, com os pés descalços a bater ritmicamente na areia.

Então aproximou-se um homem yan, dançando ao ritmo dos tambores e fazendo malabarismo com seis tochas acesas. Passou junto das mulheres, que continuavam a girar, e foi-lhes entregando as tochas. Quando cada uma delas segurava uma tocha em cada mão, começaram a mover-se ainda mais depressa, agitando as tochas em volta dos seus corpos, com o fogo quase a tocar-lhes a pele. E continuaram a girar e a girar, quase envoltas em chamas.

Jack observou Kimara, extasiado. Pareciam brotar chispas dos seus pés. Toda ela parecia uma faísca a dançar em volta da fogueira.

Alguém o empurrou de repente e o obrigou a pôr-se de pé.

Quando deu por si, estava no meio do baile das tochas, junto de Kimara e das outras duas mulheres, e dos homens yan que se tinham também juntado a elas. Ficou parado, sem saber o que fazer. Mas imediatamente viu Kimara à sua frente, fazendo vibrar as tochas em volta do seu corpo, traçando arcos de fogo no ar, sobre os dois. Jack sorriu e deixou-se levar. Sabia que se movia desajeitadamente, mas mesmo assim procurou seguir os passos da dança, imitando os outros dois homens.

Dançaram em torno da fogueira, ao compasso dos tambores, uma volta e outra mais, cada vez mais depressa, enquanto o fogo das tochas enlaçava figuras surpreendentes em redor deles, como relâmpagos a entrecruzar-se no céu. Jack seguiu os movimentos do corpo de areia de Kímara, atrevendo-se, com ela, a mover-se entre os arcos de fogo, cada vez mais depressa, cada vez mais próximo, sentindo que os olhos da semi-yan queimavam tanto como o fogo da fogueira, mergulhando neles sem medo de se ver consumido pelas chamas.

Quando, por fim, atordoado, tropeçou nos seus próprios pés, afastou-se da fogueira, rindo às gargalhadas. Kimara dirigiu-lhe um olhar de troça e continuou a dançar, sozinha. Jack inclinou a cabeça e ficou a olhar para ela. Ele já estava esgotado, mas tinha a impressão de que a vitalidade da semi-yan não conhecia limites.

Sentiu a presença de Victoria junto dele.

- Tenho sono - disse ela suavemente. - Parece-me que vou dormir. Jack voltou à realidade. Olhou para Victoria e sentiu-se culpado.

- vou contigo - disse, mas ela sorriu com doçura.

- Não é preciso, sei que estás a divertir-te. Não pareces ter sono.

Jack ficou perplexo. "Não é possível que não nos tenha visto", disse para si mesmo. "Não é possível que não se aperceba de nada. Então, não se importa?"

Sentiu-se repentinamente magoado e furioso. "Merecia o que pudesse acontecer", pensou com rancor. - bom, pois então descansa - disse com certa frieza. - Boa noite.

Victoria olhou-o por um momento, e um lampejo de tristeza brilhou nos seus olhos escuros. Mas ele tinha os olhos fixos na fogueira e não reparou, de modo que a rapariga se pôs de pé e afastou-se em direcção à tenda que lhe tinham atribuído a ela e a Jack.

O rapaz respirou fundo, sentindo-se cada vez mais confuso.

A dança terminou com um último retumbar de tambores.

As três yan lançaram as tochas à fogueira, cujas chamas se ergueram ainda mais alto.

Então, Kimara voltou-se para Jack.

Não lhe disse nada. Simplesmente fitou-o uma vez mais com os seus olhos de fogo, e Jack entendeu-a sem necessidade de palavras. Quando Kimara desapareceu no interior da sua tenda, Jack levantou-se para a seguir.

Victoria tinha-se aninhado num canto da sua tenda.

Sabia perfeitamente que ia dormir sozinha naquela noite; habituara-se à ideia e compreendia, mas não podia evitar sentir-se ciumenta e muito triste.

"Não sejas estúpida", disse a si mesma. "Estás farta de saber que Jack tem todo o direito do mundo de olhar para outra rapariga. Gostam um do outro, querem estar juntos e tu não és ninguém para os estorvar."

Recordou o que Christian lhe contara no bosque de Awa acerca das "necessidades físicas". Ele já deixara claro o que pensava a respeito da fidelidade nas relações. Se ela era capaz de aceitar aquilo no caso de Christian, devia conseguir tratar Jack da mesma maneira. Além disso... que diabo... não aceitara Jack a sua relação com o shek?

Ao pensar em Christian, a nostalgia invadiu-a de novo e o seu coração estremeceu, sentindo a falta dele como tantas outras vezes. Perguntou se ele dormiria sozinho naquela noite. Por alguma razão, isso deu-lhe forças. Talvez Christian estivesse com outra mulher naquele momento, embora o seu coração pertencesse apenas a Victoria. E ela entendia e aceitava-o, porque Christian entendia e aceitava que a jovem amasse duas pessoas ao mesmo tempo. Assim, não era tão estranho nem tão terrível que Jack fizesse o mesmo.

E se Christian não tinha companhia... Victoria sorriu com suavidade. Não duvidava que ele a amava com loucura. No entanto, tivera de passar sozinho muitas noites, noites em que ela dormira junto de Jack. "Agora cabe-me a mim estar sozinha, como tu, Christian", pensou. "Ensinaste-me muitas coisas, e uma delas é que o amor não implica possessão. Não te pertenço, disseste-me uma vez. Só te pertence o que sinto por ti... que não é pouco. E como tinhas razão... Tão-pouco Jack e tu me pertencem. Só é meu o que vocês os dois sentem por mim."

De modo que... se Jack sentia algo por Kimara... não era também um pouco dela?

"Devo-lho", pensou. "Devo-lho por todas as vezes que me viu partir com Christian, por tudo o que teve de sofrer por minha causa."

Doía muito, era certo. Mas estava decidida a não se interpor entre Jack e Kimara. Se Jack sentia algo pela semi-yan, se precisava dela ao seu lado, Victoria estava disposta a aceitá-lo. "É uma boa rapariga", repetiu a si mesma pela enésima vez. "Não é como Gerde. Sente realmente algo por Jack, é bonita, esperta, valente e... E é mais velha do que eu", pensou. "Mais... mulher."

Não sabia que idade tinha Kimara, mas aparentava cerca de vinte.

"Está tudo bem", disse para si. "É justo. É justo."

Sentiu que os olhos se humedeciam e fechou-os, mordendo o lábio inferior. Acontecesse o que acontecesse, não podia chorar. Através da lona da tenda qualquer pessoa

poderia ouvi-la, e essa pessoa poderia ser Jack. E Victoria tinha de ser invisível naquela noite. Porque Jack precisava de se esquecer dela.

Então alguém abriu a tenda com violência e ficou por um momento plantado à entrada. Victoria fungou e sentou-se. A sombra recortada contra a luz do exterior era de Jack.

- Jack! - exclamou ela, secando os olhos com precipitação.

- O que...?

Ele deixou-se cair junto dela, a tremer. Puxou-a para si e tomou-lhe o rosto com as mãos. Fitou-a na penumbra. Victoria rezou para que não notasse que tinha os olhos

húmidos. Mas ele estava demasiado alterado para se dar conta. Os seus olhos brilhavam de maneira estranha na escuridão, como que alimentados por um poderoso fogo interior.

-Jack, o que se passa contigo? - sussurrou ela, um pouco assustada.

O rapaz não disse nada, mas beijou-a de repente, intensamente. Victoria ficou sem fôlego. Havia algo na sua atitude que lhe fazia medo.

Jack abraçou-a com força e entrelaçou os dedos no cabelo castanho da amiga.

- Não consigo, Victoria - disse-lhe ao ouvido com voz rouca. Não a amo a ela! És tu quem amo. Só a ti.

Victoria arquejou, emocionada, sentindo como o seu amor por ele rebentava dentro de si inundando todo o seu ser. Quis pronunciar o seu nome, mas as palavras não lhe saíram.

Jack beijou-a novamente, com urgência, com paixão. Victoria fechou os olhos e deixou-se levar, compreendendo que naquela noite e naquele momento seria capaz de se render a ele. Tinha a sensação de que era isso que ele queria. De modo que deixou que a beijasse, que bebesse dela; estremeceu quando o rapaz a deitou sobre as mantas e se colocou sobre ela, mas não o afastou de si.

No entanto, Jack limitou-se a apoiar a cabeça no seu peito e a rodear-lhe a cintura com os braços, a tremer. E ficou assim, nessa posição, como se tivesse encontrado um lugar para repousar depois de um dia esgotante.

- Amo-te - sussurrou.

Victoria respirou fundo e fechou os olhos, tentando controlar os sentimentos que ameaçavam transbordar-lhe do peito.

Tornou-se então mais consciente do que nunca de que também ela o amava com loucura. Acariciou-lhe o cabelo com ternura e apercebeu-se de que a pele dele estava muito quente. Muito mais quente do que o habitual.

- Jack, estás a arder - disse, preocupada. - Estás bem?

O rapaz não respondeu. Tinha adormecido. Victoria suspirou e abraçou-o, aproximando-o mais de si. Pareceu-lhe notar que algo pulsava no interior de Jack, algo quente, latejante, que ameaçava rebentar a qualquer momento. "Não é o mesmo", pensou, inquieta. "Está a acontecer-lhe algo esquisito."

Fechou os olhos e aninhou-se junto dele. O seu calor sufocava-a, mas não se importou.

- Aconteça o que acontecer - sussurrou-lhe -, não te vou abandonar. Não quero separar-me de ti nunca mais, Jack. Nunca mais.

 

         CEMITÉRIO DE DRAGÕES

Alguém arrancou Jack de um sono pesado e profundo.

- Acordem, depressa! - sussurrou uma voz no seu ouvido.

O rapaz abriu os olhos, pestanejando. Sentiu algo suave e quente a tocar-lhe o pescoço e viu que se tratava da face de Victoria, que descansava entre os seus braços, muito colada a ele. Também ela estava a acordar do seu sonho.

Soergueu-se e descobriu o olhar de fogo de Kimara fixo nele. Sacudiu a cabeça, atordoado, recordando de repente o que acontecera na noite anterior. Não fora um sonho? Tinha entrado na tenda de Kimara e depois...

Após um breve momento de pânico, lembrou-se, aliviado, de que saíra imediatamente para regressar para junto de Victoria. Por isso ela estava ao seu lado, por isso tinham acordado juntos, como todas as manhãs desde que tinham partido do bosque de Awa; e isso era algo, compreendeu, que não queria mudar por nada no mundo. Respirou fundo. O que fazia então Kimara na sua tenda?

A semi-yan sacudiu-o de novo e acordou-o completamente.

- Levantem-se, rápido! - sussurrou com urgência. - Temos de sair daqui.

Victoria levantou-se, esforçando-se por acordar.

- Ainda é de noite?

- Os exploradores dizem que os szish estão a registar todas as povoações yan - explicou Kimara sussurrando rapidamente. - Chegarão a Hadikah ao amanhecer.

Jack levantou-se imediatamente.

- Quanto tempo temos?

- Muito pouco. E temos de sair em silêncio, porque, se os yan vos descobrem, entregam-vos às serpentes.

- Porquê? - perguntou Victoria. - Pensava que estavam do nosso lado!

- Os yan fazem sempre o que melhor convém aos seus interesses, Victoria. Se vos encobrirem, vão meter-se em muitos problemas. Entendes, não entendes? O meu pai advertiu-nos da chegada dos szish; é tudo o que podem fazer por vocês, e é muito, acredita. Jack já tinha recolhido as coisas e estava de pé, pronto para partir. Recuperaram os seus torkas, que estavam presos perto dali, e abandonaram Hadikah em silêncio. Ao amanhecer, encontravam-se longe lia povoação yan.

Nenhum dos três pronunciou uma palavra durante algum tempo, Jack não podia evitar perguntar-se, preocupado, quanto tempo mais tooderiam esquivar-se dos szish que passavam o deserto a pente fino à sua procura. E então reparou que Kimara continuava com eles, apesar de tudo.

- Sabias que nos procuravam a nós - disse-lhe de repente. Ela assentiu.

- Há dias que o sei.

- E sabes porquê? Ouviste... ouviste falar da profecia?

- Não sei nada de profecias. Só sei que há quinze anos morreram todos os dragões e que tu, por alguma razão, regressaste. Não sei se há mais dragões como tu, mas é óbvio que não agradas aos sheks.

Victoria olhou para Jack, desconcertada.

- Eu não lho disse - esclareceu rapidamente o rapaz. - Chegou a essa conclusão sozinha.

Victoria anuiu, compreendendo, mas não fez nenhum comentário.

- Mas, se o sabes - insistiu Jack -, porque continuas connosco?

Corres um grave perigo. Porque nos acompanhas apesar de tudo?

Kimara cravou nele um olhar que disse tudo. Depois voltou a cabeça para o outro lado; mas Jack tinha visto que a sua pele arenosa se tinha ruborizado levemente.

- Deixa, Jack - murmurou Victoria com suavidade. - Não insistas.

E Jack não insistiu. Apenas pressentia o que Victoria entendia com total clareza: que Kimara se apaixonara por Jack, a ponto de arriscar a sua vida por ele, de se implicar naquela loucura, contrariando o costume yan de cuidar unicamente de si mesma e dos seus. E tudo isso apesar de saber que ele não lhe correspondia.

Victoria reprimiu um suspiro. Por instantes, imaginou o que acontecera entre eles na noite anterior. Imaginou a dor de Kimara ao ser rejeitada por Jack, ao dar-se conta de que ele não passaria a noite com ela, porque o seu coração pertencia a outra pessoa. E, apesar de tudo, a semi-yan em nenhum momento a olhara com ódio ou rancor; tinha aceitado a situação com naturalidade, por mais desfavorável que lhe fosse. Victoria sentiu-se de repente muito próxima dela. compreendia perfeitamente que nutrisse algo tão intenso por Jack, porque se passava o mesmo com ela. Fechou os olhos por um momento, notando os braços de Jack em volta da sua cintura, a sua presença atrás de si, sobre o dorso do torka que ambos partilhavam, e sentiu-se feliz por ele lhe corresponder. Mas não pôde evitar entristecer-se por Kimara, a independente e intrépida Kimara, a sofrer por alguém que não conseguia amá-la da mesma forma.

De qualquer modo, a semi-yan comportou-se durante todo o tempo como se nada tivesse acontecido, tratando Jack e Victoria com naturalidade e confiança; mas Victoria podia ler a dor no fundo dos seus olhos de rubi e admirou-a ainda mais pela sua força interior.

A atitude de Jack em relação a Kimara, pelo contrário, mudou. Victoria apercebeu-se de que aquela atracção que ele parecia sentir por ela tinha desaparecido, que já não a olhava daquela forma tão intensa, que já não se mostrava fascinado por ela. No entanto, tratava-a com carinho e respeito, como a uma irmã. Victoria sabia que Kimara agradecia que Jack não a afastasse de si, agradecia a sua presença, e podia compreendê-lo: a companhia de Jack, a suavidade da sua voz, a sua amizade sincera... podiam curar qualquer ferida. Victoria sabia-o por experiência própria.

Shail esperou pacientemente sobre o seu paske enquanto, uns metros mais adiante, Zaisei dialogava com dois caçadores ganti. Os ganti falavam uma língua estranha que, apesar de parecer uma amálgama de todos os dialectos conhecidos de idhunaico, tinha um tom próprio e singular, tornando-se muito difícil de compreender. Contudo, Zaisei conversava com eles sem problemas. Os celestes eram filhos de Yohavir, o Senhor dos Ventos, que era também o deus da comunicação e da empatia. Talvez por isso fossem incapazes de fazer mal a alguém, reflectiu Shail. Compreendiam o mundo demasiado bem, não conseguiam evitar pôr-se no lugar dos outros e, portanto, não podiam odiá-los.

Talvez por isso e apesar de tudo, Zaisei tivesse decidido acompanhar Shail na sua viagem.

Depois do ataque do shek, tornara-se evidente à Venerável Gaedalu que Shail era um perigo para a segurança das sacerdotisas, e, apesar do que combinara com o Pai Ha-Din, proibira-lhe terminantemente a entrada no Oráculo. Se as serpentes procuravam Shail, decidiu Oaedalu, não o encontrariam ali.

As Igrejas não podiam dar-se ao luxo de perder o seu último Oráculo, e a Mãe não queria dar aos sheks motivos para o destruir tal como fizeram com os outros.

Na altura, Shail já não se importava com a profecia. Sabia que esse não era o plano que tinham traçado, mas estava muito preocupado com Jack e Victoria e censurava-se uma vez e outra por os ter deixado partir. Disse a Zaisei que iria procurá-los até Awinor, se fosse preciso.

- Mas Shail, não podes andar - respondera-lhe ela, preocupada.

O feiticeiro tinha retorquido com maus modos. Detestava que lhe lembrassem que tinha ficado inválido, quase tanto como insinuarem que deixara de ser útil à Resistência, e Zaisei fizera ambas as coisas, embora sem intenção. Shail não recordava exactamente o que lhe dissera, mas sabia que lhe dirigira palavras duras e que por pouco não a fizera chorar. Odiava-se a si mesmo por isso. Estava a portar-se muito mal com ela, apesar de a sacerdotisa só lhe ter dado carinho e compreensão desde que a conhecia. Esperara que ela gritasse, que o insultasse por ser tão mau, que discutissem; provavelmente, até se teria sentido melhor. Mas Zaisei tinha desviado o olhar em silêncio.

"Malditos celestes", pensara Shail, entre furioso e comovido. Zaisei compreendia-o, sabia porque se comportava assim e não lhe guardava rancor. Conhecia-o melhor do que ele mesmo.

"Tornei-me um autêntico canalha", pensou o jovem. "O que se passa comigo? Eu antes não era assim. Agora não faço outra coisa senão dizer coisas que não sinto e magoar

as pessoas de quem gosto."

Pedira desculpa a Zaisei. Mas não mudara de ideias a respeito da sua busca. Para sua surpresa, a jovem tinha pedido autorização a Gaedalu para abandonar o Oráculo

e acompanhá-lo até Awinor.

Agora atravessavam as colinas de Gantadd, o país dos ganti, os mestiços.

Eram gente estranha. Dizia-se que há muitos séculos, no início dos tempos, quando as seis raças tinham começado a conhecer-se e a relacionar-se entre si, tinham

nascido os primeiros mestiços. No princípio correu tudo bem, mas depressa surgiu um movimento que defendia a pureza das raças: humanos, feéricos, gigantes, celestes, varu e yan não deviam misturar-se entre eles. Os mestiços tinham sido expulsos de quase todas as tribos e tinham-se concentrado em Gantadd, onde tinham assentado, formando uma curiosa comunidade. Agora eram eles que não queriam relacionar-se com os de sangue puro. Depois de séculos a misturar-se entre eles, o resultado era um grupo de indivíduos que nalguns casos tinham características de todas as raças e noutros não se pareciam com nenhuma.

Em geral eram amáveis com os viajantes, desde que só estivessem de passagem, sem intenções de se estabelecer entre eles. Contudo, os viajantes preferiam evitar as suas terras, inclusive os novos mestiços que tinham nascido no seio de outras sociedades e que agora eram aceites em todo o lado.

Os dois caçadores com quem Zaisei falava eram uma amostra da mistura de sangues dos ganti. Um deles tinha os olhos enormes, negros e amendoados, dos feéricos, mas tinha aspecto humano, apesar do seu grande tamanho, que sugeria algo de sangue gigante nas suas veias. O outro, uma mulher, exibia o nervosismo e a rapidez de movimentos e de palavra própria dos yan, e também tinha antepassados feéricos, como mostrava o seu longo cabelo cor de azeitona; mas a sua pele tinha tons azulados, como a dos celestes.

Zaisei inclinou finalmente a cabeça calva e com um sorriso delicado despediu-se deles. Regressou até onde Shail estava e subiu para a sua montada com um movimento ágil.

- Não passaram por aqui - informou. - Ninguém os viu em Gantadd. Os caçadores acham que, se se dirigiam a Awinor, é muito provável que tenham atravessado a Cordilheira Móvel pela Passagem.

- Escolheram o caminho do deserto - compreendeu Shail, inquieto.

- Mas Victoria não pode embrenhar-se num sítio assim. Precisa de magia em seu redor, ela...

Reparou que começara outra vez com o mesmo e obrigou-se a calar-se. Ultimamente, estava a tornar-se muito maçador, preocupando-se a toda a hora com a segurança de Victoria. Ele próprio tinha consciência disso, mas não conseguia evitá-lo.

Zaisei sorriu-lhe. Pelos vistos, ela não se incomodava.

- Deve estar bem - disse. - Jack está com ela.

Noutras circunstâncias, isso ter-lhe-ia bastado. Mas Shail sabia o que se passava. No fundo, sentia-se culpado... por tantas coisas...

Por não ter permanecido junto de Victoria durante todo aquele tempo. Por ter perdido aquela misteriosa viagem durante a qual ela deixara de ser uma menina para se converter numa mulher. Por não ter estado ao seu lado para a aconselhar, para a guiar, para lhe mostrar os segredos da sua natureza de unicórnio, para a ajudar a decifrar os confusos sentimentos que lhe inundavam a alma. E, sobretudo... por a ter afastado de si e ter dito coisas que não sentia naquela noite tão estranha em que ela e Jack se tinham distanciado da Resistência. Na altura, não sabia que não ia voltar a vê-la. Mas isso não era desculpa.

- Posso chamar os pássaros haai - disse então Zaisei. - Viajaremos mais depressa.

Shail entendeu a que se referia.

Os celestes conheciam um cântico misterioso que, entoado por eles, atraía as aves douradas que lhes serviam para se deslocar pelo ar.

Chamavam-lhes haai, "amigos", e não sem motivo. Os pássaros haai viviam apenas em Celestia, onde, de quando em quando, agulhas de pedra estilizadas rompiam a paisagem suave da planície. No alto daquelas formações rochosas, os haai faziam os seus ninhos, tão alto que ninguém podia alcançá-los. Só os celestes, que nasciam com o dom da levitação, eram capazes de flutuar até eles; com o tempo, tinham aprendido a sua linguagem, o seu melodioso canto, e os haai apareciam de bom grado quando os celestes os chamavam. Em troca, estes cuidavam das belas aves, levavam-lhes manjares deliciosos e curavam-nos quando adoeciam.

O feiticeiro considerou por um momento a ideia de voar até Awinor, mas obrigou-se a ser sensato: se os sheks já sabiam para onde se dirigiam Jack e Victoria, patrulhariam sem descanso os céus sobre Awinor. Sem dúvida, chamariam menos à atenção se viajassem por terra.

Negou com a cabeça.

- Não, Zaisei. É mais seguro continuar a viajar nos paskes. Iremos alcançá-los de qualquer forma. Eles vão a pé e...

Interrompeu-se, angustiado.

- Não penses nisso - disse-lhe Zaisei, entendendo-o; inclinou-se para ele e beijou-o na face, com suavidade.

O jovem ficou surpreendido. Era a primeira vez que ela fazia aquilo. Os dois tinham consciência do que sentiam um pelo outro, sobretudo Zaisei, tão hábil a ler os corações dos demais. Mas ambos sabiam também que eram demasiadas as coisas que os separavam e, além disso, Shail tinha uma missão a cumprir; estava envolvido na Resistência até aos ossos e não queria implicá-la, pois era demasiado perigoso.

No entanto, naquele momento apercebeu-se de que estavam a viajar juntos e que ela já tinha escolhido implicar-se. Fitou-a nos olhos, aqueles límpidos olhos violetas, e sentiu, pela primeira vez em muito tempo, que um raio de esperança lhe iluminava o coração.

Os últimos dias do trajecto decorreram sem contratempos. Demoraram um pouco mais do que o previsto a chegar aos limites do deserto, porque Kimara teve de fazer um desvio para incluir na rota todos os oásis próximos. Victoria precisava frequentemente de renovar a magia e, embora a semi-yan não tivesse feito perguntas a esse respeito, aceitara aquela necessidade da sua companheira de viagem e actuava em conformidade.

Graças à experiência da guia, o grupo iludiu todas as ciladas que o deserto podia armar ao viajante incauto. Também os sheks vigiavam de cima, mas, felizmente para eles, Jack podia senti-los à distância: ficava com pele de galinha quando um deles se aproximava e o fogo que ardia dentro de si parecia avivar-se de imediato. Assim, ele e as companheiras tinham sempre tempo de sobra para se camuflar entre as dunas antes de as serpentes aladas chegarem. Mas Jack tinha a sensação de que as capas de banalidade funcionavam cada vez pior, porque às vezes os sheks sobrevoavam várias vezes a zona onde se encontravam escondidos, como se pudessem pressentir que havia algo ali, embora não soubessem exactamente o quê, nem onde. Quando o comentou com Victoria, ela moveu a cabeça, preocupada.

- Não são as capas, Jack; és tu. Há algum tempo que a tua energia se tornou tão intensa que é cada vez mais difícil à capa ocultá-la.

Jack ficou surpreendido, mas falou-lhe então das coisas estranhas que lhe tinham vindo a acontecer desde que se tinham embrenhado no deserto.

- Será porque nos aproximamos cada vez mais de Awinor?

- Talvez - respondeu ela após uma breve hesitação. - Mas creio que há algo mais.

- O quê?

Mas Victoria sacudiu a cabeça. Era apenas uma intuição e não conseguia explicá-lo.

Por fim, uma tarde, avistaram ao longe as montanhas que eriçavam a pele arrasada de Awinor, o reino dos dragões. Kimara indicou-lhes um ponto que parecia uma aresta retorcida.

- Vêem aquilo? - sussurrou. - São as ruínas da Torre de Awinor, uma das sedes da Ordem Mágica. Quando existiam dragões, não era permitido a nenhum mortal ir mais além. Os yan chamavam a essa torre Wenawinor, as Portas de Awinor. Mas agora... enfim, está em ruínas há mais de uma década. Eu era muito pequena quando foi destruída. Não me lembro dela de pé.

Jack ficou a olhar para o horizonte por um momento.

- Awinor - disse simplesmente. - Eu nasci ali... uma parte de mim nasceu ali - corrigiu-se.

Esporeou o torka para o fazer avançar, mas Kimara reteve o animal pelas rédeas.

- Espera.

Saltou da sua montada e acocorou-se sobre o chão. Enterrou as mãos na duna e retirou-as cheias de areia, aquela fina areia cor de salmão que cobria a superfície de Kash-Tar. Jack e Victoria viram-na trepar ao cimo da duna, erguer as mãos e largar a areia ao vento, que a recolheu e a levou em direcção a Awinor.

Kimara baixou os braços e esperou. Jack quis perguntar o que estava a fazer, mas Victoria aguardava-a num silêncio respeitoso, como se não quisesse quebrar a concentração da semi-yan, e Jack imitou-a.

Passou bastante tempo antes que o vento soprasse de novo, revolvendo o seu cabelo e a sua roupa. Kimara não se tinha movido do local, mas naquele momento levantou as mãos outra vez.

Então, Jack e Victoria viram como o vento trazia consigo grãos de areia e os deixava cair sobre ela. A semi-yan fechou os olhos e deixou que aquela areia lhe acariciasse o rosto e as palmas das mãos. Depois, o vento voltou a acalmar. Kimara abriu os olhos e disse:

- Esperam-nos na fronteira com Awinor. Cerca de uma centena de szish. Vários sheks. É claro que sabem que nos aproximamos e querem cortar-nos a passagem.

Victoria lançou uma exclamação sufocada. Jack perguntou, confuso:

- Como sabes isso?

- O deserto disse-mo - disse Kimara simplesmente.

Jack decidiu que não valia a pena perguntar mais e optou por acreditar indubitavelmente no que ela lhes dizia. Levou uma mão à têmpora, notando que algo palpitava no seu interior, um impulso assassino que o levava a acicatar o torka para que o conduzisse directamente até às serpentes, para lutar contra elas, para matar...

Esforçou-se por se controlar. Não podia lançar-se às cegas daquela maneira e ainda menos naquelas circunstâncias. Tinha de cuidar de Victoria e de Kimara, não devia pô-las em perigo.

- Muito bem - disse, lutando por manter a cabeça fria. - Como podemos passar sem que nos vejam?

- Não podemos - respondeu Kimara, negando com a cabeça. Teremos de lutar.

- Contra uma centena de szish e vários sheks? Nós os três? - Jack abanou a cabeça, perplexo.

Kimara cravou nele o seu olhar de fogo.

- Mas tu és um dragão - disse com fervor e uma fé inquebrantável.

- Podes enfrentá-los a todos.

Jack reprimiu uma gargalhada sarcástica.

- Poderia enfrentar um shek de cada vez - explicou-lhe. - Mas não seis ou sete ao mesmo tempo. Os sheks não são inferiores aos dragões, são seus iguais. Só um shek pode derrotar um dragão.

- E um dragão poderia vencer um só shek?

Pela mente de Jack passou, como um relâmpago, a lembrança do som de Haiass ao ser quebrada pela sua própria espada, o rosto de Kirtash, a sua expressão de ódio e desconcerto ao saber-se derrotado...

- Onde queres chegar?

- Conheço um desfiladeiro - disse Kimara. - É uma passagem muito estreita, e certamente que também o têm vigiado, mas não há espaço para muita gente; quando muito um shek ou dois e uma patrulha de szish. Se atacarmos de surpresa, teremos alguma possibilidade de passar.

- Mesmo que conseguíssemos, depressa nos cairiam todos em cima.

- Em Awinor não. Se conseguirmos entrar na terra dos dragões, eles não nos seguirão.

- Porque tens tanta certeza?

- Porque ninguém entra na terra dos dragões, Jack - disse Kimara com suavidade. - Nem sequer os sheks.

Jack franziu o sobrolho, desconcertado. Era-lhe muito difícil imaginar que houvesse algum lugar onde os sheks não se atrevessem a aventurar-se. Mas decidiu, uma vez mais, confiar em Kimara. Olhou para Victoria.

- O que achas?

Ela assentiu, decidida. Jack lembrou-se de que naquela altura Victoria poderia estar junto de Christian ou simplesmente a salvo no bosque de Awa, mas tinha optado por acompanhá-lo e agora apoiava-o sem reservas. E amou-a ainda mais do que antes. Sorriu e acariciou-lhe a face.

- Muito bem - disse então, levantando os olhos para Kimara.

- Tentaremos pelo desfiladeiro.

Shissen não estava à vontade naquele lugar.

O local era perfeito para uma emboscada; isso não o podia negar. Estreito e cheio de recantos onde se esconder e aguardar a presa. Durante o tempo que fosse preciso,

isso não era problema. A paciência era uma das grandes virtudes dos sheks.

Mas, ainda assim, o sítio provocava-lhe uma profunda inquietação. É que na sua proximidade, mais à frente, o desfiladeiro abria-se e dava lugar a um imenso e macabro cemitério.

Como todos os sheks, Shissen celebrava a extinção dos dragões e, ao fim e ao cabo, a paisagem de Awinor era mais um símbolo da retumbante vitória das serpentes aladas. Mas havia algo naqueles esqueletos brancos que a fazia estremecer e despertava uma estranha nostalgia dentro de si. Talvez fosse porque a natureza dos sheks exigia que odiassem os dragões e lutassem contra eles. E, agora que já não restavam dragões para matar, a balança tinha-se desequilibrado, era como se uma parte das vidas dos sheks, um aspecto da sua própria essência, já não tivesse nenhum sentido.

Semicerrou os olhos e concentrou-se na situação. Segundo a tinham informado, um dragão, o último dragão, ia a caminho de Awinor. Shissen desejou que passasse pelo seu desfiladeiro. Como a maioria dos sheks, nunca tinha lutado contra um dragão. E ansiava fazê-lo.

Deslizou por entre as rochas para comprovar que os szish da patrulha continuavam nos seus postos. Sabia de antemão que assim era, mas, de qualquer modo, decidiu fazê-lo.

Levantou a cabeça de repente e semicerrou os olhos. O que era aquilo? Sentia uma força estranha ocultando-se entre as rochas um pouco mais longe, algo... quente. Ergueu-se um pouco mais, abrindo as asas para manter o equilíbrio. Calor.

Demasiado calor para se tratar de um mamífero qualquer.

Ciciou de novo, furiosa.

Os szish tinham percebido a tensão de Shissen, mas não se mexeram, aguardando instruções. Ela transmitiu-lhes uma série de ordens telepáticas: deviam estar atentos e não abandonar as suas posições. Podia ser uma armadilha.

A fonte de calor palpitava cada vez com mais força. Intensa, muito intensa, mas pertencia a um corpo demasiado pequeno para se tratar de um dragão. Lembrou-se de que lhe tinham dito que o dragão de que estavam à espera andava camuflado num corpo humano.

Aproximou-se ainda mais, com os seus hipnóticos olhos cravados nas rochas. Tinha-o descoberto, e o dragão devia sabê-lo.

Não teria outro remédio a não ser deixar-se ver e defender-se. O corpo escamoso de Shissen estremeceu só de pensar nisso.

Então sentiu a energia atrás de si brotando como uma fonte transbordante e voltou-se com a rapidez de um relâmpago, mas era demasiado tarde.

Do outro lado do desfiladeiro, surgiu uma espécie de raio de luz que procurou o seu corpo. Shissen lançou-se para o lado, furiosa, mas o jacto acertou-lhe numa asa, perfurando-a. A shek guinchou de dor e de ira, procurando com o olhar aquilo se se atrevera a atacá-la. Foi então que o dragão saiu do seu esconderijo e a enfrentou com um grito selvagem e todo o fogo do mundo a brilhar nos seus olhos verdes. Shissen contemplou por um instante, aturdida, a espada de fogo que pairava sobre ela. Mas reagiu de imediato e ergueu-se, com os olhos cheios de fúria gelada, para enfrentar o rapaz que cheirava a dragão, enquanto ordenava mentalmente aos szish que se encarregassem da outra ameaça.

Ouviu um grito parecido com o piar de uma coruja, o grito de guerra dos yan, mas mal lhe prestou atenção. Só o dragão era importante.

Um pouco mais longe, os szish defrontavam-se com uma rapariga que tinha um estranho báculo luminoso e com uma sombra veloz que saltava de rocha em rocha, disparando dardos parecidos com arpões, que lançava de uma pequena besta com notável pontaria.

Eram apenas duas mulheres, e Shissen encarregar-se-ia do rapaz da espada de fogo. No entanto, os szish não se iludiram; eram seres inteligentes e sabiam que alguém capaz de os surpreender como aqueles três o fizeram era um rival a ter em conta.

A rapariga do báculo tinha-se escudado num lugar onde só se podiam aproximar dela dois a dois, e a yan era praticamente inalcançável porque se movimentava pela parte alta do desfiladeiro, disparando os seus mortíferos dardos a partir dali. Os szish depressa aprenderam a manter-se afastados do báculo, mas não podiam fazer nada perante as poderosas faíscas que ela lançava contra eles.

Jack sentiu a fúria do dragão a palpitar nas suas têmporas, notou que o seu corpo emitia mais calor do que o habitual e deixou que o seu fogo fosse canalizado através da espada. O corpo ondulante da shek rodeava-o por todos os lados, envolvendo-o, confundindo-o, mas o rapaz mantinha-o afastado com o fio de Domivat. A serpente silvou e lançou-se sobre ele, como um relâmpago letal; Jack desferiu uma estocada e obrigou-a a retroceder.

Parecia desconcertada, e Jack depressa entendeu porquê. Notou os esforços da shek para o paralisar com o seu poder hipnótico, que, por alguma razão, não o afectava. O rapaz lembrou-se de como, não há muito tempo, a força mental de Kirtash o mantivera imóvel como uma estátua, preso como um insecto numa teia de aranha. Na altura, só a intervenção de Victoria o salvara da ira do shek. Mas tinham acontecido muitas coisas desde aquela noite; Jack tinha mudado, e sentia-se mais forte e poderoso do que nunca. E já não voltaria a temer as serpentes, porque sabia que não era inferior a elas, sabia que estavam em plano de igualdade. Portanto, elas não conseguiam infundir nele o terror paralisante que inspiravam noutras vítimas.

com um grito selvagem, Jack debruçou-se sobre a criatura e conseguiu cortar o seu longo corpo ondulante. O shek guinchou de dor e retorceu a cauda para apagar as chamas. Jack notou que o dragão exigia ser liberado.

- Jack! - A voz de Victoria trouxe-o de volta à realidade. Percebeu que ela e Kimara tinham aberto caminho entre os szish e corriam pelo desfiladeiro, para o interior de Awinor. Esforçou-se por se controlar e começou a correr atrás delas.

Não devia ter virado as costas ao shek. Jack sentiu como a serpente se erguia atrás de si, ouviu o seu inconfundível sibilar e voltou-se para lhe fazer frente...

Mas algo se interpôs entre ambos e um raio luminoso acertou no shek em cheio. A serpente ciciou, enfurecida, e retrocedeu. Cravou o seu olhar em Victoria, que ainda erguia o báculo ao alto, e observou-a com cautela, a uma distância prudente.

- Não te atrevas a tocar-lhe - advertiu a rapariga, muito séria.

Jack pensou que continuariam a lutar e uma parte dele estremeceu de alegria. Desejava com toda a sua alma matar aquele shek, dar rédea solta ao ódio irracional que aquelas criaturas lhe inspiravam.

Mas Victoria deu meia-volta e desatou a correr, puxando-o e obrigando-o a pôr-se a caminho.

E os dois correram em direcção ao coração de Awinor, deixando as serpentes para trás.

Shissen viu-os partir. Passou a língua bífida pelo rosto para lamber a ferida produzida pela magia do báculo. Também tinha lesões na cauda e na asa direita. Nunca ninguém a ferira daquela maneira.

- Perseguimo-los? - perguntou o capitão dos szish.

Shissen passeou o olhar pelo que restava da sua tropa. Sete homens-serpentes, dois deles feridos.

- Não - disse por fim. - Daremos o alarme e pediremos reforços. Conseguiram entrar, mas não conseguirão sair dali vivos.

Os seus olhos matizados brilharam por um instante, recordando o fogo daquela espada detestável. com um pouco de sorte, os seus superiores permitiriam que voltasse a enfrentar aquele dragão. Queria ser ela a ter o prazer de o matar.

Kimara agachou-se junto a uma rocha, a tremer.

- Eu não vou seguir mais adiante - disse. Jack inclinou-se junto dela.

- Mas não podes ficar aqui. É perigoso. Ela negou com a cabeça.

- Não posso, Jack. Não entendes? Os yan admiram e respeitam os dragões como irmãos mais velhos, mas também como seres superiores. Awinor era um lugar sagrado e, agora, que é tudo o que resta dos dragões... mais ainda. Nenhum yan se atreveria a profaná-lo com a sua presença. Não me obrigues a fazê-lo.

Jack assentiu, embora não totalmente convencido.

- Então vais esperar por nós? Kimara olhou-o com intensidade.

- Esperarei por ti - prometeu-lhe.

Jack sorriu e apertou-lhe a mão, com carinho.

- Não demoramos. Tem cuidado, está bem?

Juntou-se a Victoria um pouco mais à frente e juntos prosseguiram o seu caminho até ao coração de Awinor.

A paisagem que os recebeu era desoladora. O chão era cinzento e poeirento, ainda coberto pelas cinzas causadas pelo fogo que quinze anos antes fizera arder aquela terra pelos quatro cantos. O céu estava coberto por uma neblina sinistra que não deixava ver os sóis. Ocasionalmente, uma rajada de vento levantava remoinhos de pó à volta dos seus tornozelos.

Depressa viram o primeiro dragão, ou o que restava dele, apenas um enorme esqueleto esbranquiçado semienterrado na cinza. A mão de Jack procurou a de Victoria e apertou-a com força. A rapariga tinha o coração apertado e olhou para o amigo, preocupada.

- Tens a certeza de que queres continuar, Jack? - perguntou-lhe, com suavidade.

Jack cerrou os dentes e assentiu, com firmeza.

Caminharam durante todo o dia sobre o pó cinzento, entre esqueletos de dragões. Alguns estavam despedaçados, sinal de que tinham caído do céu por causa da luz mortífera da conjunção. Outros ainda tinham as mandíbulas abertas, num grito mudo de terror, ou de socorro, ou, simplesmente, de morte.

Jack não disse uma palavra durante todo o trajecto. Limitava-se a caminhar, como um autómato, mas Victoria viu que tinha os olhos húmidos e não lhe soltou a mão durante todo o tempo. Era o único consolo que lhe podia oferecer, porque sentia que não havia palavras que pudessem acalmar a amargura, a perturbação e a impotência do rapaz perante aquele espectáculo desolador. Compreendeu então porque é que Christian lhe dissera, ao despedir-se dela, que naqueles momentos Jack precisava mais dela do que nunca. E, embora tivesse muitas saudades do shek, ficou contente por ter ido com Jack e soube que era ali, em Awinor, que devia estar.

Apercebeu-se então de que Jack caminhava numa determinada direcção. E era estranho, porque dava a sensação de que o rapaz não sabia muito bem para onde ia, pelo menos não de maneira consciente. Finalmente, quando a neblina se tornou avermelhada devido à luz do último entardecer, Jack deteve-se diante da colina e olhou-a, com emoção contida.

- E aqui - disse apenas.

Victoria ergueu o olhar e viu uma gruta que se abria no alto.

Tinham visto muitas como aquela a perfurar as montanhas, ninhos de dragões, dos quais a vida fugira há algum tempo; contudo, Jack não lhes tinha prestado atenção. Victoria engoliu em seco, compreendendo porque é que aquela era especial. E olhou para Jack, inquieta, surpreendida por o seu instinto ser tão certeiro.

Jack chegou à base da colina e começou a trepar pelos penhascos. Victoria hesitou. Sabia que aquele era um momento muito importante para ele e não tinha a certeza se deveria esperá-lo fora, para lhe dar privacidade, ou acompanhá-lo e estar ao seu lado para lhe oferecer o seu apoio. Por fim, optou por o seguir.

Assim que conseguiu alcançar a entrada da gruta, Jack embrenhou-se nela. Desembainhou Domivat para que o seu fogo iluminasse o interior, como uma tocha. Victoria reprimiu um pequeno grito de horror.

Restos de ovos, pequenos esqueletos de dragões em miniatura... aquela era como uma versão reduzida do que tinham visto lá fora, mas pior, muito pior. No fim de contas, os dragões eram seres poderosos e ver os seus restos inspirava tristeza e respeito. Mas aquelas criaturas, mortas logo à saída do ovo, não tinham chegado a ver a luz dos três sóis. Era tão horrível e injusto que os olhos de Victoria se encheram de lágrimas.

Reuniu-se a Jack no fundo da caverna. O rapaz tinha-se ajoelhado junto dos restos poeirentos de um ovo de dragão, grande e às manchas, tal como os outros. Mas para Jack não era só mais um ovo.

- É este? - sussurrou Victoria, agachando-se junto dele.

Jack assentiu em silêncio. Tinha os olhos húmidos e, quando os fechou, as lágrimas percorreram as suas faces. Victoria abraçou-o com todas as suas forças.

- Nasci deste ovo - disse Jack, entre entristecido, maravilhado e perplexo. - Sei-o, tenho tanta certeza como se tivesse o meu nome escrito na casca.

Victoria embalou-o entre os seus braços, afagando-lhe o cabelo carinhosamente.

- Mas também... nasci de uma mulher humana - prosseguiu Jack, confuso. - Num hospital, como tantos outros bebés humanos do nosso mundo. É muito... estranho.

Victoria não conseguiu evitar pensar em si mesma. Não tinha conhecido os seus pais humanos; se viajasse a Alis Lithban, também não encontraria evidências do seu nascimento como unicórnio, não havia nada parecido com as cascas de um ovo.

Afastou aqueles pensamentos da sua mente. Não queria criar dúvidas sobre as suas origens, era demasiado desanimador. Decidiu centrar-se no presente... e no futuro, e em ambos via o rosto de Jack. Também o de Christian... mas, naquele momento, era com Jack que devia estar.

Desta vez foi ela quem procurou a mão dele para a estreitar com força. Juntos, saíram do ninho do dragão e desceram pela encosta da montanha.

Então, uma rajada de vento levantou a neblina em seu redor e viram ali perto os restos de outro dragão. Já tinham visto tantos esqueletos que Victoria nem ligou, mas Jack estacou e ficou a olhar para ele. Então largou a mão de Victoria e desatou a correr para lá. A rapariga seguiu-o, com o coração apertado.

Encontrou-o de joelhos sobre as cinzas, junto ao enorme crânio do dragão, uma caveira que exibia uns dentes poderosos e, na fronte, dois cornos que se projectavam para trás. Era algo tétrico e ameaçador; no entanto, Jack acariciava-o como se fosse a coisa mais bela do mundo. Ergueu para Victoria os seus olhos verdes, inundados de lágrimas.

- É... é a minha mãe, Victoria.

Ela levou uma mão aos lábios, comovida.

- Jack... - sussurrou.

O rapaz sacudiu a cabeça, e os seus ombros agitaram-se num soluço.

- Tive quatro pais, pais humanos, pais dragões, e os quatro estão mortos - olhou para Victoria. - Tu sabes do que estou a falar, a ti aconteceu-te o mesmo. Não sentes a falta deles?

- Nunca os conheci - respondeu ela com simplicidade. - Não sei o que perdi.

Jack levantou-se, com o rosto congestionado num esgar de raiva e de dor, e olhou em volta. Quase conseguiu ouvir os sussurros dos espíritos dos dragões que tinham povoado aquela terra, outrora bela, agora um cemitério sinistro. Cerrou os punhos e lançou um grito do fundo do seu ser, um grito cheio de tristeza e de impotência, um grito que se ergueu em direcção ao céu enevoado e que soou como o lamento de todos os dragões do mundo.

Sentiu as batidas do seu coração, lentas, mas que soavam com tanta força que troavam nos seus ouvidos como o ritmo de um tambor. Sentiu que o sangue lhe fervia e que o fogo se espalhava desde o coração, inflamando-o por dentro. Deixou que o dragão se apoderasse do seu corpo e fluísse através das veias, de dentro para fora, regenerando-o, fazendo-o reviver. Voltou a gritar, e desta vez foi um rugido de liberdade.

Quando abriu os olhos outra vez, soube que já não era um ser humano. A sua respiração era muito mais pesada, o seu corpo maior e algo ardia no seu interior como o núcleo de uma estrela. Estendeu as asas e deixou escapar um som curioso, parecido com um ganido. Viu Victoria perto de si. Pareceu-lhe mais pequena e mais distante, e inclinou a cabeça para a ver de perto.

A rapariga contemplava-o, maravilhada e emocionada.

Jack viu o seu rosto de dragão reflectido nos seus grandes olhos castanhos. Sentiu-se um pouco envergonhado, sem saber porquê. Mas Victoria ergueu a mão e acariciou a pele escamosa, uma pele que brilhava, mesmo sob aquela luz esbatida, com uma suave auréola dourada. Os seus dedos roçaram o longo pescoço, a membrana das asas, os cornos, a crista. E a voz dela transbordava amor e ternura quando sussurrou o seu nome:

- Yandrak...

Longe, muito longe dali, no Norte, um jovem lutava uma vez mais contra uma representação do seu inimigo. O ódio pulsava no seu interior com mais força do que nunca e, com um grito selvagem, o rapaz desferiu a espada contra o dragão, com todas as suas forças.

A imagem do dragão piscou durante um breve instante. Então, o golem partiu-se em mil pedaços.

Christian ficou a observá-lo, com uma expressão indecifrável. Haiass palpitava, ansiosa, sedenta de sangue, sangue de dragão.

- Sim, Haiass - murmurou o shek, sombrio. - Eu sei. Também eu notei.

Nos seus olhos de gelo, brilhava o frio sopro da morte.

 

   A COISA MAIS PRECIOSA QUE UM UNICÓRNIO PODE ENTREGAR

Kímara não se mexera do lugar onde a tinham deixado. Estava encolhida sobre si mesma, ao pé da rocha, muito quieta, e isso não era habitual nela, sempre tão activa e nervosa. Ergueu a cabeça ao vê-los aparecer entre as brumas.

Ficou sem fôlego. Victoria avançava na direcção dela, séria e serena. E junto dela, caminhando em silêncio, devagar...

A semi-yan deixou-se cair de joelhos sobre o pó, com os olhos cheios de lágrimas. Quando a jovem e o dragão chegaram à sua frente, baixou a cabeça, a tremer, com reverência.

- Kimara - disse o dragão, com uma voz profunda e cadenciada, que, no entanto, tinha a suavidade e o carinho da voz de Jack -, por favor, não faças isso. Levanta-te.

Kimara tardou um pouco a levantar a cabeça. Mas continuou de joelhos diante dele. Lágrimas de emoção sulcavam as suas faces.

- Sabia que eras tu - murmurou. - O dragão que voava sobre as montanhas. Pensei que tinha sonhado, mas não, vi-o de verdade. E quando te vi com os limyati... soube que eras tu, embora já não parecesses um dragão. Disse-mo o coração.

Victoria olhou-a, intrigada.

- O que queres dizer com voava sobre as montanhas?

O dragão esticou o pescoço e deixou escapar um suave ruído gutural. Então fechou os olhos e voltou a transformar-se em Jack.

Foi simples, pelo menos no princípio; mas, quando regressou ao seu corpo humano, viu-se tomado por uma estranha debilidade, as pernas cederam e teve de se apoiar por um momento em Victoria. E sentiu-se oprimido, como se estivesse encarcerado numa cela demasiado pequena. Respirou fundo e, pouco a pouco, aquela sensação angustiante foi-se dissipando.

- Vi um dragão a voar sobre as montanhas - estava Kimara a explicar -, dois dias antes de vos conhecer.

Jack e Victoria entreolharam-se.

- Mas isso é impossível - disse Victoria. - Jack nunca se tinha transformado em dragão, esta é a primeira vez... e não há mais dragões em Idhún. Certamente confundiste com outra coisa, talvez um shek.

- Não, não, não - negou Kimara, abanando a cabeça com nervosismo. - Era um dragão. Eu sei. Era... era Jack - concluiu, olhando para ele com uma certa timidez.

Victoria ia responder, quando Jack disse de repente:

- Sim. Sim, é verdade, era eu. - Voltou-se para Victoria, um pouco desconcertado. - Era disso que não me lembrava, Victoria. Foi assim que escapámos da árvore. Transformei-me em dragão e levei-te a voar... e depois... depois perdi os sentidos.

- Esqueceste tudo? - Victoria inclinou a cabeça, perplexa. - Estás a dizer-me que há dez dias te transformaste em dragão pela primeira vez e não te lembravas? E tu - acrescentou, voltando-se para Kimara -, porque não nos disseste?

- Como podia saber que Jack nunca se tinha transformado? Victoria não sabia se havia de rir, chorar ou zangar-se.

- Podíamos ter-nos poupado a toda esta viagem através do deserto.

- Mas eu tinha de vir aqui, Victoria - disse então Jack. - Não me arrependo de ter conhecido o lugar onde nasci.

Ela olhou-o e sorriu, compreendendo.

Procuraram refúgio nas ruínas da Torre de Awinor, debaixo dos elegantes arcos que tinham presidido à entrada. A maioria há muito que tinha tombado, mas as grandes pedras proporcionaram-lhes abrigo naquela terra de ossos e cinzas.

Jack sabia que não seria fácil sair dali; as gentes de Ashran estariam de guarda em cada caminho e cada carreiro que saísse da terra dos dragões, mas não quis tocar no assunto naquela noite: os três precisavam de descansar. No dia seguinte, decidiriam o que fazer.

Contudo, custou-lhe adormecer. Mesmo quando Victoria já tinha adormecido há algum tempo entre os seus braços, como todas as noites, ele continuava a olhar para as fagulhas da fogueira, com ar preocupado.

Kimara também não tinha adormecido.

- Estás bem? - perguntou ela.

Jack sacudiu a cabeça.

- Não, é este lugar. Lembra-me constantemente que todos os dragões estão mortos; que sou o último da minha raça. É... - Tentou encontrar palavras para se expressar.

- É como se todo o Awinor me sussurrasse que o nosso tempo já passou, que estou deslocado, que não devia existir. Que devia ir... para junto de todos os outros dragões,

onde quer que estejam. No céu dos dragões, se é que existe algo assim.

Kimara assentiu, embora não tivesse entendido completamente as suas últimas palavras.

- Tenho um mau pressentimento - disse. - Os ventos movem-se, as areias mudam. Temos de estar alerta.

Jack fitou-a, interrogativo, mas ela não disse mais nada. Acabou por adormecer, sentindo junto dele a presença quente de Victoria. Kimara, por sua vez, permaneceu acordada durante toda a noite, vigilante.

Acordou de repente horas mais tarde, com o coração a bater-lhe com força, e olhou à volta, alerta. Ainda era de noite, mas uma fina linha rosa começava a pintar o horizonte.

Levantou-se, acordando Victoria. Kimara estava perto; trepara a uma das gigantescas lajes que os arcos haviam formado e dali, de cócoras, esquadrinhava o horizonte, ouvindo com atenção. Jackjuntou-se a ela.

- Ouves alguma coisa? - sussurrou.

- Não, e também não vejo nada. Aparentemente não há nada a temer, mas...

- Shek - cortou Jack, sombrio. - Há um shek aqui perto, sinto-o.

- Mas os sheks não se atrevem a entrar em Awinor.

- Eu conheço um que se atreve a isso e a muito mais - resmungou o rapaz.

- Não é ele - replicou Victoria, roçando o seu anel com a ponta do dedo. - Christian está muito longe daqui.

Como resposta, Jack desembainhou a espada e voltou-se em todas as direcções, carrancudo.

- Cheira a serpente - insistiu. - Não notam o frio?

Victoria anuiu. Percebia-o; talvez não com tanta clareza como Jack, mas sentia a presença de um shek, como teria sentido a presença de Christian sem necessidade de o ver.

Kimara não, por isso, talvez, em vez de olhar para todos os lados, como faziam os seus companheiros, cravou os olhos em Jack, indecisa.

O rapaz tinha abandonado os restos do pórtico e caminhava ao ar livre. Quiçá tempos antes tivesse ido com mais cuidado, tivesse tentado esconder-se; mas agora era um dragão e o que sentia pelos sheks não era medo, mas sim ódio. Estava desejoso de que a serpente saísse do seu esconderijo e se mostrasse, para que pudesse lutar e matá-la, tal como lhe exigia o seu instinto.

Não contou que um shek não atacaria de frente, mas por trás. Assim, não viu a serpente que se agachava sobre a abóbada, por cima dele, e à qual acabava de virar as costas.

Shissen cansara-se de esperar que o dragão voltasse a sair de Awinor. Sentia a sua presença por perto, muito perto, e desejava fazê-lo pagar pelas feridas que lhe provocara. O ódio e a sede de vingança tinham sido mais fortes que o respeito pelo cemitério dos inimigos ancestrais, de modo que tinha abandonado o seu posto de vigia e deslizara até às ruínas da torre, onde o seu instinto lhe dizia que o dragão se escondia.

Viu-o sair do seu refúgio. Levava aquela abominável espada de fogo desembainhada, mas estava de costas para ela, e Shissen não queria desperdiçar a oportunidade.

Lançou-se sobre ele do alto, silenciosa e letal, com as mandíbulas abertas, disposta a triturar aquele ridículo corpo humano que ocultava o último dragão.

Kimara viu a sombra da shek recortar-se sobre a cinza que cobria o chão e soube o que ia acontecer. Sem pensar no que fazia, gritou o nome de Jack e desatou a correr para ele. Jack voltou-se, com a espada ao alto, e viu a serpente abater-se sobre si. Dispôs-se a lutar, mesmo sabendo que o tinham apanhado de surpresa, mas uma sombra veloz interpôs-se entre ele e o seu atacante, numa tentativa desesperada de o proteger. Aterrado, Jack viu como as mandíbulas da shek se fechavam sobre o corpo de Kimara, como a criatura erguia a cabeça e cuspia a presa para o lado, com desprezo, ao perceber que não era o dragão que procurava. Jack ouviu Victoria gritar o nome de Kimara, percebeu que corria para ela, mas dos seus próprios lábios não saiu nem uma só palavra. A tremer de cólera, de ódio, de raiva e de desespero, o rapaz atirou a espada para o lado. Shissen lançou-se sobre ele, com um silvo de ira; Jack rugiu, sentindo que a força do dragão se apoderava do seu corpo, e abandonou-se a ela de bom grado.

Shissen viu-se de repente a lutar contra um furioso dragão dourado. A surpresa durou apenas uns segundos; de imediato, a fêmea shek enrolou o seu longo corpo anelado em volta do seu inimigo, tentando asfixiá-lo com o seu abraço, enquanto as presas letais procuravam um lugar onde se cravar entre as escamas douradas.

Jack estava louco de raiva. Não sabia se Kimara estava viva ou não, mas a simples possibilidade de que a corajosa semi-yan tivesse morrido por culpa daquela serpente, que nem sequer a procurava a ela, enfurecia-o até o fazer perder o controlo. Sentiu as suas presas a fincar-se no seu ombro, sabia que o seu veneno era mortal, mas não se importou. Enterrou uma garra numa das asas de Shissen, rasgando-a. Os seus olhos encontraram-se durante um momento, e Jack sentiu uma pontada aguda e brutal no cérebro que o fez rugir de dor. Voltou a cabeça, sentindo que esta ia rebentar, e lançou uma violenta labareda na direcção da serpente, que sibilou de agonia.

A shek soltou momentaneamente a sua presa. Jack não hesitou: abriu as mandíbulas e mordeu com fúria o esbelto pescoço do inimigo. Ouviu-o sibilar, mas isso só o fez cerrar as mandíbulas com mais força. Sacudiu a cabeça com fúria. Notou que lhe partia o pescoço...

E a pressão cedeu de repente. Ofegante, Jack desembaraçou-se do corpo da shek. Estava esgotado, e o veneno que a criatura lhe inoculara espalhava-se pelo seu corpo, retesando-o. Mas sentia-se maravilhosamente bem... porque matara um shek.

Se parasse para pensar nisso, era pavoroso.

Mas não o fez. Arrastou-se como pôde até ao lugar onde Victoria procurava curar Kimara. A rapariga ergueu para ele os seus olhos cheios de lágrimas.

- Vai morrer, Jack.

Jack deixou-se cair no chão, sem forças, mas bateu a cauda com fúria.

- Não! Victoria, cura-a, faz alguma coisa, não a deixes... não podes deixá-la morrer. Não é justo!

Victoria contemplou o rosto da semi-yan, o seu corpo destroçado pelas presas da serpente, e sentiu um nó na garganta. Gostava muito de Kimara, e, além disso, agora sentia-se em dívida para com ela. Soube como podia ajudá-la e que o devia fazer.

- Afasta-te um pouco, Jack - disse. - Deixa-nos sozinhas.

Jack olhou-a e abriu a boca para replicar, mas havia algo nos seus olhos que o fez mudar de ideia. Assentiu e arrastou-se para se afastar, com o coração apertado. O veneno do shek percorria as suas veias; mas os dragões lutavam há séculos contra os sheks e o seu corpo estava preparado para suportar aquilo, pelo menos durante mais uns minutos.

Ele tinha esses minutos; Kimara, provavelmente, não. De modo que Jack deixou cair a cabeça entre as garras e esperou.

Victoria embalou Kimara entre os braços. Algo na sua fronte brilhava como uma estrela quando começou a falar-lhe ao ouvido:

- Deste tudo por nós, Kimara. Perdeste Jack e, apesar disso, continuaste ao nosso lado e salvaste-lhe a vida. Não imaginas o muito que te devo. Poderia curar-te,

poderia devolver-te a vida, mas isso não saldaria a dívida que tenho para contigo, porque ele é para

mim muito mais importante do que a minha própria vida. Por

isso quero dar-te algo mais, a coisa mais valiosa que te posso oferecer, a coisa mais preciosa que um unicórnio pode entregar.

Quando acabou de falar, já não era uma rapariga de quinze anos, mas sim um unicórnio cor de pérola, e a sua longa crina acariciava o rosto da semi-yan. Sentiu que a vida se escapava rapidamente do seu corpo, mas também percebeu que Kimara continuava a lutar por cada gota de energia, por cada segundo de existência, com coragem, com tenacidade. O unicórnio sorriu e inclinou a cabeça sobre ela. Tocou-a com suavidade, deslizando o seu corno em espiral sobre a pele dela. A energia fluiu através do unicórnio, através do seu corno, pura, limpa e vivaz como um ribeiro das altas montanhas, chegando ao interior de Kimara, expulsando o veneno do shek e curando as feridas da jovem. Victoria fechou os olhos, ainda a sorrir. Era lindo, era uma experiência maravilhosa que as duas estavam a compartilhar, e soube que naquele momento tinha criado um vínculo entre ambas que nada poderia romper.

Sentia-se esgotada, porque aquele lugar estava morto e tivera de usar todo o seu poder para extrair o máximo de energia do ar, os restos de magia que flutuavam no ambiente, libertados das ruínas da torre, que não era por acaso que fora um dos núcleos de poder da Ordem Mágica. Mas não quis transformar-se novamente em humana, ainda não. Aguardou pacientemente até que Kimara abriu os olhos e a viu.

Os olhos da semi-yan esbugalharam-se de surpresa. Depois, o seu olhar adoçou-se e duas lágrimas de alegria rolaram pelas suas faces. Ergueu a mão, vacilante, para acariciar o corno do unicórnio, mas deteve-se a meio. Olhou para os dedos, assombrada. Havia neles algo faiscante, algo novo, vibrante. Ergueu a cabeça ao perceber que esse formigueiro a enchia por dentro, fazendo-a sentir-se maravilhosamente viva.

- O que... que se passa comigo?

- É a magia - disse a sua companheira com suavidade. - És uma feiticeira, Kimara.

Ela voltou-se para a olhar, mas o unicórnio tinha desaparecido. Ao seu lado só estava Victoria.

Os olhos das duas encontraram-se. E Kimara compreendeu muitas coisas.

- Obrigada - disse simplesmente.

- Obrigada eu - respondeu Victoria com franqueza.

Algo se abateu sobre elas, abraçando-as, e por um momento tiveram a sensação de que asfixiavam. Mas era apenas Jack, transformado novamente em humano, que as estreitava louco de alegria.

Victoria curou Jack com as suas últimas forças e depois dormiu muitas horas seguidas. Jack amparou-a durante todo o tempo, enquanto ela ia, lentamente, recuperando a energia que perdera. Kimara sentia-se ainda perplexa com tudo o que acontecera.

- Sou uma feiticeira - disse, maravilhada. - E agora, o que vou fazer?

- O pouco que sei dos feiticeiros é que aperfeiçoam a sua arte nas torres de feitiçaria - disse Jack, enquanto ainda descansavam no pórtico em ruínas e Victoria dormia profundamente entre os seus braços.

- Como esta em que nos encontramos agora. Mas já não restam torres. Todas as que havia foram destruídas ou conquistadas por Ashran.

Kimara contemplou em silêncio os restos da Torre de Awinor.

- Um dia - prometeu a si mesma -, reconstruirei esta torre. Para que volte a ser a porta do reino dos dragões.

- A magia pode ressuscitar no mundo - disse Jack, olhando para Victoria com carinho -, mas receio que os dragões não.

- Tu podes ter filhos - replicou Kimara descaradamente.

Jack corou até à raiz do cabelo. Pensou imediatamente em Victoria e, pela primeira vez, perguntou-se que tipo de bebés nasceria de um casal formado por um dragão e um unicórnio. Sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos.

Não pôde evitar pensar, com inquietação, que já tinha começado, que Victoria já estava a consagrar mais feiticeiros em Idhún. Kimara era só a primeira de uma nova geração de feiticeiros num mundo que não vira nascer nenhum em quinze anos e que no futuro só contaria com aqueles a quem Victoria entregasse o seu dom. Perguntou-se se não seria demasiada responsabilidade para ela. De momento tinha escolhido bem, pensou. Kimara merecia o dom da magia. Mas no fundo sabia que Victoria não a tinha escolhido com a cabeça, mas, sim, com o coração. E muitas vezes o coração é cego nas suas escolhas.

Como o instinto.

Os olhos de Jack detiveram-se por um momento na sombra do corpo do shek que matara... e ocorreu-lhe uma ideia, uma ideia descabida, mas que, se tivesse êxito, poderia tirá-los aos três dali.

A ponte de Namre, que se estendia sobre o grande rio Adir, que delimitava a terra de Nandelt, costumava estar sempre vigiada. Não só porque unia dois reinos importantes, como o eram Dingra e Raheld, mas também porque era a única ponte suficientemente larga para deixar passar as grandes carroças carregadas de armas fabricadas pelos artífices de Thalis para os estudantes da Academia de Nurgon.

A Fortaleza de Nurgon tinha sido destruída há algum tempo pelos sheks, mas as carroças ainda continuavam a atravessar a ponte de quando em quando, abastecendo o grande exército do rei Kevanion.

Naquela noite estava prevista a passagem de um novo carregamento. Apesar disso, a vigilância na ponte era a habitual... pelo menos aparentemente. E que, embora os guardas fossem os de sempre, três szish e dois humanos, havia um shek agachado na água, enviado por Ziessel, a governante de Dingra, para se certificar de que as armas atravessavam a fronteira sem contratempos.

No passado tinham tido problemas com bandidos, ladrões e rebeldes. Os sheks não se sentiam ameaçados por eles; mas, por via das dúvidas, mantinham em segredo as datas de entrega das armas e enviavam um dos seus para vigiar a ponte na noite em que a carroça a atravessava... também em segredo, dado que a sua presença teria posto os rebeldes de sobreaviso.

De modo que ali estava Kessh, escondido debaixo da ponte, com as asas encolhidas em volta do seu corpo de réptil, aguardando a chegada do carregamento. Os guardas humanos não o tinham detectado; os szish sabiam que ele estava ali, mas não o deixavam transparecer.

O carregamento chegou à hora prevista. Kessh ouviu as rodas no caminho muito antes de passarem a curva e de as luzes da ponte iluminarem a carroça. Ouviu como a capita, uma fêmea szish, pedia os dados do transporte. Ouviu o condutor, meio a dormir, explicar que o seu destino era o Palácio Real de Aren.

Tudo se passou de forma breve e rotineira. Kessh continuava em silêncio debaixo da ponte, estudando a cena com atenção.

- Vem aí uma barcaça! - anunciou então o vigia.

Kessh ergueu a cabeça e ciciou baixinho. A capitã também ciciou, surpreendida e aborrecida. As barcaças que percorriam o rio estavam sempre atracadas à noite.

O shek viu-a de imediato. Era certamente grande e parecia pesada, a julgar pela forma como se afundava na água. Tinha todo o aspecto de ser um dos barcos que transportavam

mercadorias das cidades gémeas de Lês e Kes para Porto Esmeralda, o centro portuário mais importante de Nandelt.

Desconfiou imediatamente.

A capitã correu para o meio da ponte.

- Essstejam atentosss! - ordenou à sua guarda.

Todos prepararam as armas e permaneceram de sobreaviso, enquanto a barcaça deslizava indolentemente rio abaixo. Viram-na aproximar-se e esperaram que parasse. Se não erguessem a ponte, a barcaça não poderia passar.

- Quem vem lá? - exigiu saber o vigia.

Todos aguardaram que o capitão da embarcação, ou algum outro oficial, viesse à coberta para dar explicações. Mas não se ouviu nada.

- Não pára - avisou um dos guardas humanos, inquieto.

- Pode ser que se tenha soltado das amarras e vá à deriva - disse outro.

- Ssssilêncio! - ordenou a capitã.

Kessh percebeu na sua mente que ela estava à espera de instruções. Os szish eram muito capazes de resolver as coisas sozinhos, mas estavam acostumados a obedecer cegamente às ordens do shek que tivessem mais perto.

E foi isso que perdeu naquela noite a guarnição da ponte de Namre.

Kessh não estava em condições de assumir o comando. Erguera um pouco a cabeça sobre as águas e continuava com o olhar cravado na barcaça. Sabia que não era um barco à deriva. Havia gente dentro, percebia o calor dos seus corpos. Mas havia algo mais, algo grande, que também emitia calor e que despertava nele um sentimento difícil de controlar.

Kessh procurou reprimir o ódio ancestral que palpitava dentro de si, tentou pensar com clareza, mas não foi capaz. Aquilo que se escondia na barcaça enlouquecia-o de raiva; precisava de ver o que era, precisava de o matar. E, abandonando toda a precaução, saiu da água com um cicio furioso e lançou-se contra a embarcação, disposto a esmagá-la entre os seus anéis.

Antes que desse por isso, abriu-se um alçapão na coberta do barco e uma bola de fogo saiu disparada dela. Kessh ciciou, apavorado, e quis retroceder, mas era demasiado tarde. O fogo acertou-lhe em cheio e o shek caiu pesadamente à água, numa nuvem de vapor. Ainda conseguiu erguer a cabeça para a barcaça antes de um grupo de humanos sair para a coberta, armados até aos dentes, e começar a atacá-los. A última coisa que conseguiu fazer, antes que um homem que cheirava como um animal enterrasse no seu crânio uma espada que faiscava com o brilho de uma arma mítica, foi enviar um aviso telepático a Ziessel, alertando-a de que um dragão viajava rio abaixo oculto numa barcaça de mercadorias.

A capitã szish viu a morte do shek sem acreditar nos seus olhos, mas reagiu rapidamente.

- Rebeldesss! - gritou. - Defendam a ponte!

"E as armas", pensou. Mas em nenhum momento os seus olhos se voltaram para a carroça que tinha de atravessar a ponte naquela noite. Sabia que os dois soldados humanos o tinham feito, mas estava acostumada a lidar com a sua estupidez.

Os rebeldes estavam já na coberta da barcaça. Eram cinco, como eles, mas eram liderados por um homem de aspecto estranho, cujos olhos brilhavam como os de um animal.

Ilea, a lua média, estava cheia naquela noite, e. a capitã pôde ver, sob a pálida luz esverdeada, que as suas feições não pareciam totalmente humanas. As suas orelhas

eram maiores, o seu rosto parecia mais peludo do que era habitual entre os varões da sua raça, inclusive entre aqueles que usavam barba, e umas presas animalescas assomavam da sua boca, que se arreganhava com ferocidade. Aquele era o homem (se é que se tratava de um homem) que matara Kessh, e a szish soube que devia ter cuidado com ele.

Mas havia outra coisa mais urgente: a embarcação não tinha parado e a corrente arrastava-a na sua direcção.

- Subam a ponte! - gritou alguém. - Vão chocar contra nós!

- Não! - ordenou ela. - Deixem a ponte como essstá!

Se não parassem, chocariam contra eles e os estragos seriam consideráveis; mas então seriam seus. Pôs a besta ao ombro e disparou.

Os outros dois szish imitaram-na. Os humanos foram um pouco mais lentos.

Uma chuva de projécteis caiu sobre a barcaça. Os rebeldes protegeram-se debaixo dos seus escudos. Depois, alguns deles responderam com flechas.

- Preparem osss ganchosss! Vamosss abordar!

Sentiu então uma vibração no chão. Ouviu o ruído da roldana. Voltou-se com rapidez.

- Deixem issso, pela sssombra do Sssetimo! - gritou, furiosa. - Disssse para não sssubirem a...!

Interrompeu-se ao ver que não eram os seus homens que tinham activado o mecanismo. Havia alguém ali, uma feérica, e junto dela encontrava-se um dos rebeldes, empurrando a enorme manivela que movia a roldana. Tinham matado o operário encarregado de subir e baixar a ponte.

"Uma feiticeira", compreendeu a capitã de imediato.

O chão sofreu uma nova sacudidela, e a szish esteve a ponto de perder o equilíbrio. Saltou para a beira da ponte e dali, desembainhando a espada, lançou um grito

para que os seus homens a seguissem.

Impulsionou-se com força e saltou para a coberta da barcaça.

Só um soldado szish e um humano a seguiram. Os outros dois estavam mortos, um abatido por uma flecha e o outro pela magia da feiticeira feérica.

Os três aterraram sobre a coberta e lançaram-se num ataque desesperado. Restavam quatro rebeldes na barcaça, e um deles era o homem animal. A capitã compreendeu

que, se não o derrotassem, não teriam nenhuma possibilidade. com um cicio furioso, lançou-se sobre ele.

As estocadas da szish eram rápidas, mas logo percebeu que aquele homem era muito mais ágil do que parecia. Partira do princípio de que o seu manejo da espada se basearia na força bruta; no entanto, o humano semianimal lutava com uma técnica extraordinária, uma técnica que só poderia ter aprendido em Nurgon. Mas a academia tinha sido destruída há quinze anos, e aquele humano, ou o que quer que fosse, não aparentava ter mais de vinte e cinco.

Não se deteve a resolver aquele mistério. Continuou a investir, usando toda a sua velocidade e rapidez de pensamento. Teve de se agachar uma vez porque a espada do seu oponente esteve a ponto de lhe cortar a cabeça.

- Não passsarásss esssta ponte - ciciou a szish, furiosa.

Pelo canto do olho, viu como o seu soldado humano tombava, mas não se rendeu. Veloz como um relâmpago, tirou a adaga do cinto e lançou-se contra o inimigo. O rebelde uivou quando o punhal se enterrou na sua carne, e a capita girou sobre si mesma para dar uma última estocada.

Para sua desgraça, naquele momento a barcaça passava debaixo da ponte, que não tinha sido retirada por completo. O casco tocou a estrutura que bamboleou perigosamente.

A szish perdeu momentaneamente o equilíbrio.

Mal o tinha recuperado quando a espada do seu inimigo se enterrou no seu coração.

Tinham conquistado a ponte de Namre.

Alexander estava ferido e esgotado, mas eufórico. Tirou Sumlaris do corpo da szish e correu até à proa, que estava já do outro lado da ponte.

- Apressem-se! - gritou a Allegra e a Denyal, que, depois de içarem a ponte, se tinham apoderado da carroça de armas. - Depressa teremos aqui meia cidade!

Ajudados pela magia de Allegra, não demoraram a carregar na barcaça o conteúdo do carro. Ainda tiveram de resolver outra pequena escaramuça um pouco mais abaixo, mas momentos depois deixavam Namre para trás.

- Um shek - resmungou Denyal. - Maldição, um shek! Quem diria que ia haver um desses monstros a guardar a ponte? Por pouco não nos matou!

Alexander não disse nada. Pusera um pano na ferida que sangrava. Denyal olhou-o, inquieto. Embora o jovem os tivesse avisado das mudanças que sofreria naquela noite, ainda lhe custava ver o príncipe Alsan com aquelas feições animais.

No entanto, não havia dúvida de que a sua transformação o ajudara a lutar melhor na ponte; vira-o matar nada menos que um shek, e não podia evitar olhá-lo agora com um profundo respeito.

Suspirou. Apesar de tudo, aquela aventura continuava a parecer-lhe uma loucura.

Tinham saído das montanhas vários dias antes, descendo naquela barcaça ao longo do rio Raisar, primeiro, e pelo Adir, depois. Levavam no porão da embarcação um dos

dragões de madeira, um Cuspidor de Fogo. Ao mesmo tempo que eles, tinham partido outras duas barcaças da base rebelde, de pontos diferentes, cada uma com um dragão no seu interior: uma delas descia o rio Estehin; a outra desceria pelo mesmo rio Adir, entre Lês e Kes, as cidades gémeas, e acabaria por chegar também a Namre. Tinham de se reunir as três mais ou menos na região de Even, onde se juntavam três grandes rios. No início, Denyal partira do princípio de que Alexander levaria os dragões para o bosque de Awa, a morada dos feéricos, que ainda resistia ao império dos sheks. Contudo, as intenções de Alexander eram outras.

- Nurgon! - gritara o líder dos Novos Dragões ao saber dos seus planos. - Queres levar os meus dragões a Nurgon?

- Quero que a Fortaleza de Nurgon seja a nossa base, sim - replicara Alexander calmamente.

- Nurgon já não é uma fortaleza! Outrora foi um grande castelo, sim, mas hoje em dia é apenas um monte de ruínas. E além disso em terra inimiga!

Kevaniort de EHngra tinha sido o único rei de Nandelt a aliar-se aos sheks sem reservas. Dizia-se inclusivamente que tinha ido prestar vassalagem ao próprio Ashran à Torre de Drackwen. Não era, como Amrin de Vanissar, um vassalo por obrigação. Também não era um vassalo por medo, como a rainha Erive de Raheld. Era leal às serpentes a ponto de se ter negado a apoiar os cavaleiros de Nurgon nos primeiros dias da rebelião... o que resultou na destruição da Fortaleza, sendo que a Ordem de Nurgon podia dar-se por desaparecida.

- Nurgon pode ser reconstruída - respondeu Alexander. - E está muito perto do bosque de Awa. Estabelecendo ali a nossa base, toda a Resistência estará reunida num só sector. Não faz sentido estarmos divididos.

Denyal tinha acabado por confiar nele, uma vez mais. Mas não podia evitar sentir-se inquieto. Os Novos Dragões nunca haviam saído das montanhas e aquela excursão arriscada pelo rio deixava-os muito mais a descoberto do que teria desejado.

Um vulto apareceu na coberta, mas não se juntou a eles e permaneceu na proa, austero. Tratava-se de uma jovem de pouco mais de vinte anos, de cabelo negro encaracolado, que usava sempre apanhado. Vestia roupa escura, cómoda, que usava de qualquer maneira, como se o seu aspecto físico não lhe importasse minimamente. Tão-pouco parecia ter um especial interesse em agradar aos outros. Geralmente, mantinha-se séria e franzia levemente o sobrolho, como se se sentisse incomodada com alguma coisa; mas os que a conheciam sabiam que aquela era a sua expressão habitual. Era muito raro vê-la sorrir.

Denyal olhou para ela.

- O Cuspidor de Fogo está bem, Kestra?

- Nenhum estrago - disse ela com voz neutra. - Mas esse maldito shek esteve a ponto de o alcançar.

Dirigiu a Alexander um olhar cheio de antipatia. Este permaneceu impassível.

Kestra era uma jovem estranha, solitária e às vezes esquiva. Mas também era o melhor piloto de dragões com que os rebeldes contavam. Estava encarregada daquele Cuspidor de Fogo, que tinha baptizado de Fagnor, "Centelha", e gostava dele quase como se fosse uma pessoa.

No entanto, chocara com Alexander praticamente desde o princípio. Não só questionara o facto de estar no comando juntamente com Denyal, como também demonstrara, desde o primeiro momento, que por alguma razão que só ela conhecia não simpatizava com o líder da Resistência. E a transformação que ele sofrera naquela noite, por causa do plenilúnio de Ilea, não tinha contribuído para melhorar as coisas.

Alexander sentia curiosidade em relação a Kestra. Tinha a certeza de que não a conhecia de lado nenhum. Não obstante, havia nela algo que lhe era familiar.

Tinha feito perguntas a Denyal sobre ela. Mas ninguém sabia nada das origens de Kestra. Só se sabia que se tinha juntado aos rebeldes vários anos antes, que não tinha família e que nos seus olhos ardia um ódio ao império de Ashran tão intenso e profundo como o seu orgulho. Não gostava de falar de si mesma, mas havia rumores de que era shiana. Só os shianos, cujo reino tinha sido totalmente devastado pelos sheks, eram capazes de sentir tanto ódio por eles.

Alexander também não sabia que idade tinha Kestra, mas calculava que tivesse pouco mais de vinte anos, o que significava que era apenas uma criança de não mais de sete anos quando Shail e ele abandonaram Idhún em direcção à Terra. Não podia conhecê-la de então, no entanto...

A jovem ergueu a cabeça e encontrou os olhos de Alexander fixos nela.

- Para onde estás a olhar? - invectivou-o.

- Fala-lhe com mais respeito, Kestra - interveio Denyal, muito sério. - É o príncipe Alsan de Vanissar.

- Vanissar - cuspiu Kestra. - Povo de traidores.

- Kestra!

Ela dirigiu a Denyal um olhar breve e depois cravou os seus olhos, repletos de desprezo, em Alexander.

"Conheço-a", pensou ele, de novo. "Mas de onde?"

A jovem não disse mais nada. Desapareceu no interior do barco, em direcção ao porão onde dormia Fagnor, o dragão artificial.

Jack demorou todo o dia a aprender a voar.

No princípio, até duvidou que conseguisse elevar-se no ar. Apesar de as suas asas serem enormes quando as estendia completamente, o seu flexível corpo escamoso era demasiado grande para poder erguer-se do chão. Ou, pelo menos, era o que lhe parecia, pois depressa descobriu que na realidade era algo muito fácil. Bastava-lhe bater as asas para que as suas garras se afastassem um metro do chão; era como se algo dentro de si fosse tão leve como uma pena, como se o seu próprio espírito, que desejava voar até às nuvens, erguesse o seu corpo. E elevava-se, elevava-se como as chamas de uma fogueira, com tanta facilidade como se tivesse nascido para aquilo.

Manter-se no ar e manobrar uma vez lá em cima já era mais complicado. Sofreu várias quedas, algumas muito dolorosas; mas quando o terceiro dos sóis começou a declinar anunciou que já estava preparado para prosseguir viagem... pelo ar.

Quando revelou as suas intenções, Victoria e Kimara trocaram um olhar duvidoso.

- Tenho a certeza de que poderias levar-nos pelo ar sem nos deixar cair - disse Victoria -, mas, que me dizes dos sheks? Esperam-nos lá fora, na fronteira. Vão cair sobre nós logo que te virem no céu.

- Já pensei nisso - respondeu o dragão. - vou arranjar maneira de não me verem, nem me perceberem... pelo menos, não como eu sou.

Era descabido. Era uma loucura, pensaram os três enquanto discutiam o plano de Jack. Mas era a única possibilidade que tinham.

As três luas já estavam altas no céu quando Victoria e Kimara subiram para o dorso de Jack... ou Yandrak (Victoria não sabia muito bem como devia chamá-lo quando apresentava aquele aspecto). O dragão assegurou-se de que as duas estavam bem seguras entre as suas asas, e então avançou até ao cadáver da shek que matara naquela manhã. Baixou a cabeça e passou-a por debaixo do corpo da serpente, pendurando-o em volta do pescoço. Prendeu-o entre as suas garras e enrolou a cauda na do shek.

Victoria estendeu a mão para tocar a pele escamosa da serpente. Achou-a muito fria ao tacto e desviou o olhar, com tristeza. Aquela shek estivera prestes a matar Jack e Kima, contudo, a rapariga não podia deixar de lamentar a sua morte. Porque lhe recordava alguém de quem gostava muito e, por um momento, ao olhar para o cadáver da shek, tivera uma breve visão de Christian tendo a mesma sorte. Procurou não pensar nisso.

- Consegues carregar com ela? - perguntou. - É muito grande.

- Cá me arranjo - disse Jack, embora não estivesse muito certo. Bateu as asas e elevou-se no ar, com um poderoso impulso. Tal como Victoria temia, o peso do shek desequilibrou-o um pouco. Caíram novamente por terra, mas o dragão voltou a bater as asas e elevaram-se outra vez. Avançaram pelo ar, num voo instável, até que, pouco a pouco, Jack conseguiu equilibrar-se. Tinha de fazer um grande esforço para voar carregando os três: Kimara, Victoria e aquela shek, cujo contacto lhe provocava uma profunda repugnância. Mas esforçou-se por seguir em frente.

Victoria continha a respiração. Viu que o chão ficava para baixo, cada vez mais longe, e agarrou-se com força ao dorso do dragão. Kimara, por sua vez, tremia de medo. Não sabia o que era voar.

- Calma - sussurrou Victoria, procurando tranquilizá-la. - Não tenhas medo. Jack não nos deixará cair.

- Victoria, aproximamo-nos da fronteira - avisou-a ele.

Ela assentiu, compreendendo. Ergueu o báculo e deixou que a sua magia fluísse através dos seus corpos para os esconder debaixo da camuflagem mágica.

A ideia de Jack não era má de todo. Tanto Victoria como Kimara tinham-se coberto com as capas de banalidade, pelo que era bem possível que as serpentes não detectassem a sua presença. Os sheks perceberiam então um dragão e um shek. Mas, graças ao feitiço que Victoria lançara sobre ambos, o dragão apresentava agora a aparência de um shek, e o shek a de um dragão... de maneira que, da terra, o que se via era uma serpente alada carregando o corpo inerte de um dragão.

Era bem possível que os outros sheks viessem felicitar a sua companheira por ter capturado o último dragão; também era possível que procurassem estabelecer contacto telepático com ela e só recebessem o silêncio por resposta, o que os poria de sobreaviso. Talvez até já tivessem percebido a sua morte naquela mesma manhã.

Mas Victoria duvidava. Aquela shek não actuava como os outros: tinha-se embrenhado na terra dos dragões quando nenhuma outra serpente o fizera. Talvez tivesse desobedecido a ordens directas, ordens que a obrigavam a permanecer na fronteira.

Portanto, teria sido ela a primeira a romper o vínculo telepático. Se tivesse continuado em contacto com os seus companheiros, eles não lhe teriam permitido ir lutar sozinha contra o dragão.

E agora deixariam que enfrentasse sozinha o julgamento dos seus superiores. Tinha desobedecido, mas, aparentemente e contra todos os prognósticos, tivera êxito. Os sheks deixariam que fosse o seu senhor a julgar se devia ser castigada ou recompensada.

Victoria desejava ter compreendido o suficiente dos costumes dos sheks para poder prever o seu comportamento. Caso contrário...

Sobrevoaram as últimas montanhas de Awinor, aquelas montanhas avermelhadas dos limites do deserto que de longe pareciam envoltas em sangue. Os três viram do céu as tropas que Ashran concentrara na fronteira. Patrulhas de szish vigiavam todas as passagens. Os sinuosos corpos dos sheks deslizavam entre elas, traçando ondas sobre a areia. Todos eles levantaram a cabeça ao vê-los passar. Victoria quase conseguiu ouvir os seus sussurros ao reconhecer o dragão e a shek. Agarrou no seu báculo, tensa, esperando que as serpentes levantassem voo a qualquer momento para ir atrás deles. Junto dela, Kimara tremia, mas esforçava-se por manter uma expressão resoluta. Jack fervia de ódio ao sentir os sheks tão perto. Victoria acariciou o seu pescoço escamoso, procurando acalmá-lo.

- Pensa noutra coisa - disse-lhe. - Pelo que mais amas, pensa noutra coisa.

Pouco a pouco, foram avançando em direcção a norte e a fronteira ficou para trás. Mas sentiram os olhos dos sheks cravados neles durante todo aquele tempo.

Victoria respirou fundo, sem conseguir acreditar que aquilo tinha funcionado.

Então, Kimara deu o alarme.

- Estamos a ser seguidos!

Victoria voltou-se sobre o dorso do dragão e sentiu o sangue gelar nas veias ao comprovar que alguns sheks tinham levantado voo e seguiam-nos a uma certa distância.

- Mais rápido, Jack!

- Não consigo! Esta maldita serpente pesa demasiado!

As serpentes estavam cada vez mais perto e não havia dúvida de que não demorariam a alcançá-los. A rapariga perguntou-se se valeria a pena desfazer-se do cadáver do shek, para que Jack pudesse voar mais leve, e desfazer a ilusão, para aproveitar a vantagem que levavam e fugir dos sheks... ou arriscar-se e continuar a fingir um pouco mais, na esperança de que os seus perseguidores se limitassem a escoltá-los de longe.

Jack decidiu por ela. Abriu as garras, baixou a cabeça e deixou cair o corpo do shek.

Victoria sufocou uma exclamação ao ver o cadáver da serpente precipitar-se em direcção ao chão. A ilusão desfizera-se, os sheks já sabiam o que acontecera. Não tardou a ouvi-los silvar de ira nas suas costas.

Mas Jack voava agora com muito mais facilidade e dirigia-se, veloz, para norte. Victoria olhou em volta, à procura de um lugar para se esconder dos seus perseguidores. Mas diante deles só se abria o eterno deserto de Kash-Tar.

- Ali! - disse então Kimara, apontando para oeste.

Jack e Victoria também o viram: um pequeno maciço rochoso que se erguia ao longe no meio do deserto. Não era grande coisa, mas, se tinham de aterrar em algum lado, era melhor que fosse num lugar onde pudessem proteger-se. Jack virou, atabalhoado, naquela direcção.

Os sheks estavam cada vez mais perto. Victoria podia sentir o sopro gelado que a sua presença provocava no ar e encolheu-se sobre o dorso do dragão, preocupada.

- Estão a aproximar-se! - disse Kimara.

Victoria viu os corpos dos sheks ondulando no ar, reluzindo sob as luas como relâmpagos de metal líquido, as asas membranosas batendo no ar, os seus hipnóticos olhos cravados neles, faiscando de ira. Procurou libertar-se do fascínio que provocavam nela e ergueu o báculo, cuja extremidade começara a palpitar tenuemente. Uma das serpentes assobiou, furiosa. Victoria deixou escapar uma faísca de energia na direcção dos sheks mais próximos, mas eles esquivaram-se do ataque com elegância, torcendo os seus corpos anelados. Retrocederam um pouco e estudaram o báculo com cautela, avaliando o poder daquele novo contratempo.

No entanto, não tardaram a lançar-se novamente sobre eles. O dragão voava desesperadamente em direcção às montanhas, que ainda pareciam muito distantes. Os sheks seguiam-nos a uma distância prudente, e, de cada vez que se aproximavam um pouco mais, Victoria fazia-os recuar com a magia gerada pelo seu báculo.

Porém, se nalgum momento chegou a pensar que conseguiriam escapar das serpentes, enganava-se redondamente.

Jack começava a descer em direcção às montanhas, quando Kimara disse:

- Já só nos seguem três; onde estão os outros?

Victoria olhou em volta, inquieta. Então viu que o grupo de serpentes se tinha dividido e que, sem que ela soubesse muito bem como, tinha conseguido cercá-los. Havia quatro sheks à sua direita e outros três à esquerda, e todos se lançavam sobre eles, conscientes de que o dragão não podia lutar contra tantos adversários ao mesmo tempo. Victoria fez o seu báculo funcionar e conseguiu ferir na asa um dos mais adiantados, mas isso não intimidou os outros.

-Jack! - exclamou a rapariga.

O dragão não pôde responder-lhe. De repente um shek atacou-o, por baixo, arremetendo contra ele com as mandíbulas abertas, e Jack parou bruscamente para o receber com as garras para a frente e um rugido de ira. Victoria e Kimara estiveram a ponto de perder o equilíbrio e gritaram, assustadas. Jack recuperou a posição horizontal, tendo rasgado a pele escamosa do shek; mas tinha parado e, nesse breve instante, o grupo que o perseguia alcançou-o.

O dragão voltou-se para eles, furioso, e vomitou uma violenta labareda que atingiu as duas primeiras serpentes. Victoria viu, aturdida, como os sheks sibilavam enquanto os seus corpos eram devorados pelas chamas.

O fogo atemorizou as serpentes, mas também inflamou o seu ódio pelo dragão. Jack viu-se rodeado por todo o lado de sheks que, suspensos no ar, faziam vibrar os corpos ondulantes, ciciando de fúria. Victoria ergueu o báculo e lançou um novo ataque em direcção a oeste. A barreira de sheks abriu-se por ali para evitar a sua magia ofensiva e Jack não desperdiçou a oportunidade; voou desesperadamente até à brecha aberta por Victoria. Ainda sentiram o contacto frio da cauda de um dos sheks.

A perseguição prolongou-se durante mais algum tempo. Os sheks acossaram o dragão, cercando-o, sem se aproximar dele o suficiente para o abater, mas conseguindo feri-lo mais de uma vez e impedindo-o de descer. Quando o primeiro dos sóis já assomava no horizonte, Victoria começou a ver com clareza qual seria o resultado daquela corrida, pois as montanhas tinham ficado para trás, Jack estava esgotado e os sheks eram perseguidores implacáveis.

Um deles conseguiu iludir a vigilância de Victoria e lançou a cabeça para a frente, num movimento rapidíssimo. A rapariga deu o alarme, mas era demasiado tarde: as presas da serpente tinham-se fechado sobre uma das patas traseiras do dragão.

Jack rugiu de dor e, embora Victoria conseguisse fazer o shek retroceder, o dragão perdeu o equilíbrio; ferido e exausto, precipitou-se no chão.

Kimara gritou, aterrada. Os sheks sibilaram, triunfantes, e perseguiram a sua vítima, dispostos a abatê-la definitivamente.

- Jack, à tua frente! - gritou-lhe então Victoria. - Jack, mais um esforço!

Jack ergueu o olhar e viu uma mancha azul e brilhante diante de si. "Água", pensou com as suas últimas forças. Fez um esforço e bateu as asas. Aquilo era um lago enorme, talvez um mar interior, e, se conseguisse chegar até ali e cair na água, talvez tivessem alguma possibilidade de se salvar.

Os sheks aperceberam-se das suas intenções e procuraram afastá-lo daquela direcção. Mas Victoria conseguiu mante-los à distância.

Aquele trajecto foi para Jack o mais longo e difícil da sua vida. Quando o seu corpo de dragão se precipitou sobre a superfície da água, produzindo um violento estrondo, os seus últimos pensamentos, antes de perder os sentidos, foram para Victoria.

Shail e Zaisei chegaram aos limites de Awinor naquela mesma manhã. Tinham contornado o bosque dos trasgos, tendo para isso atravessado uma perigosa região pantanosa, mas agora as montanhas avermelhadas que rodeavam a terra dos dragões erguiam-se diante deles, no horizonte.

Os pássaros contaram a Zaisei que as serpentes haviam formado um cordão em volta de Awinor, mas que na noite anterior tinham partido em perseguição de um shek que surgira a voar por cima das montanhas, que capturara algo igualmente grande e com asas, mas que não era um shek. Os pássaros não eram muito fiáveis como informadores porque, apesar de recordarem com bastante pormenor tudo o que viam, não entendiam metade do seu significado. Além disso, viviam há muito pouco tempo para ter conhecido os dragões e, portanto, não podiam assegurar que aquela imensa criatura que tinham visto era um deles. Mas, pela descrição, ambos souberam de imediato que os pássaros falavam de um dragão.

O coração de Shail deu um salto. Significaria isso que os sheks tinham capturado Jack? Não, não podia ser verdade. Não queria acreditar.

De qualquer maneira, continuaram a avançar, contornando a terra dos dragões, evitando os grupos de homens-serpentes que ainda patrulhavam as margens. Conforme se iam aproximando do deserto, era cada vez mais difícil obter informações, porque nem sequer os pássaros sobrevoavam Kash-Tar.

Dois dias depois, encontraram um explorador limyati. Este contou-lhes que, aparentemente, o dragão que sobrevoara aquelas terras continuava vivo. Uma tribo de yan vira-o voar dias antes em direcção a Kosh, acossado por um grupo de sheks. Diziam que o tinham visto precipitar-se nas águas do mar de Raden; mas devia ter arranjado maneira de sair dali, dado que os szish estavam a controlar todas as caravanas que saíam da cidade.

- Como se um dragão pudesse esconder-se numa caravana - concluiu o limyati, sorrindo abertamente. - Além disso, toda a gente sabe que já não existem dragões. Na minha opinião, todos esses rumores são falsos, e o que sobrevoou o Sul de Kash-Tar há três dias não foi outra coisa senão uma dessas horrorosas serpentes.

Shail e Zaisei não disseram nada, mas trocaram um olhar cúmplice.

- Temos de chegar a Kosh quanto antes - disse o feiticeiro quando se afastaram do explorador. - Cada dia que passa estou mais convencido de que não devemos deixá-los seguir sozinhos.

A sacerdotisa procurou acalmá-lo colocando a mão sobre o seu braço, com suavidade.

- Tem fé - disse somente.

Jack acordou numa cave escura, estendido sobre uma espécie de lona de um material muito grosseiro ao tacto. Demorou um pouco a recordar o que acontecera, mas isso não fez mais do que mergulhá-lo num mar de confusão. Lembrava-se da perseguição dos sheks, recordava ter caído à água e, depois, o que se passara? Ergueu uma mão e olhou-a por um momento. Voltara a ser humano, e Victoria...

Victoria.

Levantou-se sobressaltado. Ficou tonto, mas não se importou. Olhou em volta e não viu a rapariga em lado nenhum. Descobriu sim, num canto, dobrado de qualquer maneira, o manto cor de areia de Kimara.

A semi-yan entrou naquele momento na divisão. Trazia uma tigela com algo que cheirava a ervas, e alguma coisa no subconsciente de Jack achou aquele odor ligeiramente familiar. "Há quanto tempo estou aqui?", perguntou-se.

Kimara dirigiu-lhe um sorriso radiante.

- Já acordaste - disse. - Temia que não sobrevivesses ao veneno do shek, mas não é à toa que és um dragão. O teu corpo cura-se muito depressa.

- Onde está Victoria? - perguntou Jack de imediato.

- Toma, bebe o caldo - disse-lhe Kimara. - Vai fazer-te bem.

- Onde está Victoria? - repetiu Jack, desta vez mais alto. Kimara olhou-o durante um momento e depositou a tigela numa prateleira.

- Caímos no mar de Raden - disse - há três dias. Quando fugíamos dos sheks. Lembras-te disso? Bem, pois... recuperaste a tua forma humana mal caíste na água, o que foi uma sorte, porque assim os sheks não conseguiram localizar-nos. Dois varu que nos viram cair rebocaram-nos até à margem. Só a nós. De Victoria não sabiam nada. - Jack ia dizer algo, mas Kimara ergueu uma mão para lhe indicar que não tinha acabado de falar. - Agora estamos na cidade de Kosh, em casa de um amigo meu. De momento estamos a salvo, mas os szish estão a passar toda a cidade a pente fino à vossa procura. bom... na realidade procuram-te só a ti. Todos pensam que Victoria está morta. Mas hoje descobri que não é assim. Falei com um pescador que diz que há três dias viu puxarem uma jovem inconsciente para a barcaça de Brajdu.

- Brajdu? - repetiu Jack.

- É dono de mais de meia cidade - explicou Kimara a meia-voz.

- Era um vigarista de segunda há pouco mais de uma década, mas nos últimos tempos enriqueceu a traficar restos de dragões.

Jack ficou boquiaberto.

- O quê?

Kimara tremia de raiva.

- É um ser sujo e mesquinho. Nunca respeitou a terra de Awinor e foi o primeiro a embrenhar-se ali para a saquear após a tragédia da conjunção astral. Presas, cornos, escamas, ossos, cascas de ovo... sempre foram muito caros, mas, depois da extinção dos dragões, ainda mais. Ele não teve nenhum escrúpulo em profanar o túmulo dos dragões para enriquecer à sua custa. Assim, foi acumulando a sua fortuna e agora grande parte de Kosh pertence-lhe. Tem às suas ordens os melhores guerreiros e mercenários deste lado do continente, e toda a gente sabe que não convém desafiá-lo.

- É aliado das serpentes?

- Às vezes sim e às vezes não. Se Brajdu caísse, a economia de Kosh também cairia, porque ele controla todo o negócio das caravanas. Convém aos sheks que continue no poder, de modo que Sussh, o shek que governa Awinor em nome de Ashran, tolera-o enquanto lhe for útil. Mas nem sequer Brajdu poderá esconder por muito tempo que mantém Victoria prisioneira. As serpentes não demorarão a descobri-lo.

Jack levantou-se repentinamente.

- Leva-me a falar com ele.

- Jack, não sabes o que dizes. Brajdu não é um tipo com quem se possa brincar.

- É-me indiferente. Não vou permitir que ninguém ponha as mãos em cima de Victoria, estás a ouvir? Nem as serpentes nem essa ratazana, do Brajdu.

Kosh era uma populosa cidade fronteiriça, de onde partiam todas as caravanas que atravessavam o deserto, mas também aquelas que se embrenhavam em Drackwen, a grande região que ocupava toda a parte oeste do continente.

Contudo, Jack achou-a suja, poeirenta e muito pouco recomendável. As casas eram todas da cor daquela areia rosada de Kash-Tar, ou talvez um pouco mais escuras, e tinham uma forma cilíndrica, com telhados em cúpula que as fazia assemelhar-se a estranhos cogumelos gigantes. As ruas não estavam empedradas, ou talvez antes tivessem estado, pensou Jack, mas agora tinham ficado sepultadas debaixo de uma camada de areia.

De qualquer forma, não passaram muito tempo na rua.

Kimara guiou Jack para uma loja de comida cuja dona, uma mulher yan, era também sua amiga. Nas traseiras havia uma cave muito parecida com a que acabavam de abandonar, e Jack comprovou, com surpresa, que comunicava com a cave da casa ao lado por uma porta escondida... e o mesmo acontecia com a maioria das caves das casas de Kosh. Assim, as habitações da cidade estavam unidas por uma rede subterrânea que, segundo lhe contou Kimara, ninguém conhecia em profundidade. E que aquele acesso que a mulher yan acabava de lhes mostrar era, certamente, um dos dois ou três com que a sua cave contava. E pelo menos metade daquelas portas eram secretas.

- É a natureza dos yan - disse Kimara. - São desconfiados e gostam sempre de ter uma porta traseira por onde escapar e um buraco onde esconder as coisas de valor, ou até eles mesmos, em momentos de perigo.

Através das caves chegaram aos arredores da cidade e não tardaram a avistar ao longe o palácio de Brajdu.

Jack sentiu uma pontada de nostalgia quando o viu. A arquitectura de cúpulas suaves, como um aglomerado de semicírculos brancos, lembrou-lhe a casa de Limbhad. Só que aquele palácio tinha sido reforçado com muralhas e torreões de vigia, que eram, evidentemente, um acréscimo posterior.

- Quem construiu o palácio de Brajdu? - perguntou a Kimara.

- É uma antiga construção celeste - respondeu ela. - Antigamente, havia em Kosh várias comunidades celestes, mas pouco a pouco foram abandonando a cidade. Ao fim e ao cabo, isto está a converter-se num ninho de ladrões, assassinos e vigaristas - suspirou. - Não é um lugar apropriado para os celestes.

Para surpresa de Jack, deixaram-nos entrar imediatamente. Permitiram-lhe inclusivamente ficar com a sua espada. Estava a começar a pensar que Kimara tinha exagerado a respeito de Brajdu, quando os guardas lhes abriram a porta da sala onde o cacique local os esperava.

Não havia ali nada parecido com uma corte, que era o que Jack esperara encontrar. O ambiente era tenso e o caminho diante de Brajdu, sentado ao fundo da sala, estava ladeado de guardas armados.

Jack avançou, sem hesitar. Até ao momento, tinha conseguido manter a cabeça fria, mas agora estava furioso. Aquele era o indivíduo que tinha Victoria prisioneira. Se lhe tivesse feito mal, pagaria muito, muito caro.

Ninguém o impediu de chegar até ao fundo da sala. Deteve-se a poucos passos do lugar onde Brajdu o esperava e fitou-o, carrancudo.

Brajdu era um humano de pele morena, sulcada de cicatrizes, e de constituição forte. Vestia roupa cara, coberta de jóias, e ocupava uma espécie de trono erguido sobre três degraus. Havia vários guardas em volta dele, e ao seu lado erguia-se também um homem de cabelo grisalho que vestia a túnica dos feiticeiros.

Brajdu estudou Jack com atenção, esboçando um sorriso astuto.

- Perguntava-me quanto tempo demorarias a aparecer por aqui - comentou.

- Onde está Victoria? - intimou Jack.

Os olhos de Brajdu brilharam de maneira estranha.

- Ah, a rapariga. Então não me enganei a teu respeito. És o dragão de quem todos falam.

Jack levou a mão ao punho de Domivat, disposto a desembainhá-la, mas Brajdu acrescentou calmamente:

- Ela não está aqui. Está presa numa câmara subterrânea no deserto, num lugar ao qual nem eu próprio sei chegar sem um guia yan... que, obviamente, também não se encontra no palácio neste momento. Se me acontecer algo, não voltarás a vê-la.

- Uma câmara subterrânea? - repetiu Jack, aterrado. - Em pleno deserto? Mas isso vai matá-la!

- Sim, já notei que não está a ser muito bom para ela. Jack cerrou os dentes, furioso.

- O que queres dela? Vais entregá-la aos sheks?

- Talvez o faça - sorriu Brajdu. - Sussh tornou-se muito insistente. Até ao momento consegui iludi-lo, mas mais cedo ou mais tarde irá descobrir o que tu descobriste

tão depressa e, então, quer queira quer não, terei de lhe entregar a rapariga. E não é algo que me apeteça, acredita. É uma prisioneira muito valiosa. Sei quem é na realidade: a única criatura no mundo capaz de outorgar o dom da magia. Um dom que agora se tornou muito escasso... e muito cobiçado.

Jack ficou sem respiração.

- Bastardo! Como te atreveste a pôr-lhe as mãos em cima...!

- Sei que és poderoso... se o que ouvi dizer de ti for verdade sorriu Brajdu. - Mas isso não te servirá de nada aqui, não enquanto quiseres manter a rapariga com vida.

Jack fechou os olhos por um momento, esgotado e louco de raiva e impotência.

- O que pretendes? - perguntou. - Sabes quem sou, deixaste-me chegar até aqui. Porquê? Vais denunciar-me aos sheks?

Brajdu coçou o queixo, pensativo.

- Sabes, rapaz, poderia fazê-lo, e tenho a certeza de que me traria grandes benefícios. Mas a rapariga não está muito disposta a colaborar e pensei que talvez possamos chegar a um acordo. Se me trouxeres algo que me interesse mais que do que o que ela me pode oferecer, poderemos fazer uma troca.

Jack olhou-o com desconfiança.

- Eu no teu lugar não pensaria muito - sorriu Brajdu. - A rapariga agoniza nalgum lugar do deserto e os sheks estão à procura dela. Não tens muito tempo.

Jack respirou fundo. Suspeitava que se estava a meter numa armadilha, mas não via maneira de solucionar aquilo sem abandonar Victoria à sua sorte.

- De que estamos a falar em concreto?

- De uma carapaça de swanit.

O semblante de Jack permaneceu inexpressivo, mas Kimara lançou uma pequena exclamação de horror.

- Oh, não sabes o que é um swanit - compreendeu Brajdu. - A tua amiga mestiça poderá explicar-te; de momento adianto-te que são os senhores do deserto, venerados pelos yan desde o princípio dos tempos. Mas a mim o que mais me interessa deles são as suas carapaças. Nada pode atravessá-las, portanto, podes imaginar o quanto são eficazes as armaduras e as couraças fabricadas com as placas da carapaça de um swanit. Além disso, correm rumores de que se prepara uma guerra no Norte; é boa época para vender armas. A má notícia é que as carapaças dos swanit amolecem com a idade, pelo que não serve de nada esperar que morram de velhos: há que matá-los quando ainda são jovens. E, como suponho que já terás adivinhado, são muito difíceis de matar. Por isso, uma carapaça de swanit é algo tão valioso... tanto que eu a trocaria pela vida da tua amiga.

Jack olhou-o durante um instante, tremendo de raiva. Depois, sem uma palavra, deu meia-volta e começou a andar em direcção à saída. Parou por um momento à porta.

- Terás essa carapaça, Brajdu - disse, com expressão irada. - Mas se acontecer alguma coisa a Victoria, juro-te que te arrancarei a pele às tiras.

Brajdu viu-o sair com um sorriso nos lábios.

- Enviaste-o para a morte - disse o feiticeiro.

- Eu sei - respondeu Brajdu. - E muito em breve a rapariga também o saberá. De certeza que então se mostrará muito mais razoável.

- Enlouqueceste? - explodiu Kimara. - É um suicídio!

Jack não fez caso. Continuou a preparar a sua mochila com um semblante furioso, seleccionando as coisas de que precisaria para se meter novamente no deserto.

- Jack, ouve-me! - insistiu a semi-yan. - Brajdu enganou-te. Aproveitou-se do facto de seres forasteiro e não conheceres os habitantes do deserto. Enviou-te para uma morte certa: não se pode matar um swanit!

- Também me disseram, não há muito, que não se podia matar um shek - respondeu Jack calmamente. - E eu fi-lo.

- Não é a mesma coisa. - Os olhos avermelhados de Kimara estavam cheios de lágrimas. - Jack, Jack, não entendes. Nunca ninguém caçou um swanit. Jamais.

Jack titubeou apenas por um breve instante. Kimara descrever a-Ihe os swanits, insectos gigantescos e espantosamente vorazes que eram indestrutíveis debaixo das suas carapaças de couro. Mas pensou em Victoria, pensou no muito que lhe doía a alma desde que se separara dela e compreendeu que não tinha outra saída.

- É-me indiferente - disse. - vou à procura dessa coisa e voltarei com a carapaça.

Kimara desviou o olhar.

- Não sei muito de unicórnios - disse ela com suavidade. - Mas creio que o que ela e eu partilhamos, aquilo que me entregou, jamais deve ser arrebatado à força. E é o que Brajdu pretende.

- Então já sabes porque é que não posso permitir que lhe toque respondeu ele, muito sério. - Quer obtenha o que quer de Victoria ou não... será terrível para ela. Mas - acrescentou, olhando-a com carinho - não quero que venhas comigo. Já te arriscaste demasiado por minha causa.

Kimara olhou-o, roída pela angústia.

- Mas não posso deixar-te sozinho - gemeu. - Quero... quero ajudar-te.

- Há algo que podes fazer por mim, se realmente me queres ajudar: vai ao Norte, a Vanissar, e procura Alexander. Conta-lhe o que aconteceu, tudo o que viste. Diz-lhe... diz-lhe que já posso voar e que Victoria já sabe como entregar a magia. Ficará muito contente e orgulhoso, e assim, aconteça o que acontecer... pelo menos saberá que valeu a pena o esforço.

Kimara assentiu, sem compreender inteiramente as suas palavras.

- com Alexander - prosseguiu Jack - está a feiticeira Aile. Ela poderá ensinar-te a usar o teu poder. Se não voltar - acrescentou -, Victoria morrerá e então a sua magia ter-se-á perdido com ela. Por isso... por isso é importante que aproveites o dom que ela te ofereceu, que o desenvolvas para que continue viva em ti. Não faz sentido que morras comigo, entendes?

Kimara lançou-se nos seus braços e estreitou-o com força.

- Não quero perder-te - disse-lhe ao ouvido.

- O que farias se fosse eu a estar em poder de Brajdu?

- Eu... - Kimara afastou-se um pouco dele para o fitar nos olhos. Morrerias por ela? - perguntou, sem responder à pergunta.

- Sem duvidar um instante - respondeu Jack, muito sério. Kimara assentiu em silêncio. Então pôs-se em bicos de pés e deu-Ihe um suave beijo de despedida nos lábios; foi apenas um roçar, mas Jack sentiu o sabor inebriante do deserto e todo o poder do fogo que ambos partilhavam.

Deu uns passos atrás, pondo a mochila ao ombro. Olharam-se, quem sabe se pela última vez.

- Volta vivo, Jack - disse ela. - Quero ver-te voar outra vez.

- Não te preocupes - disse o rapaz, sorrindo, e piscou um olho carinhosamente.

Depois deu meia-volta, saiu da casa e afastou-se em busca do coração do deserto.

Christian já sobrevoava Nandelt quando sentiu que Victoria estava em perigo. Parou durante um momento, suspenso no ar, e procurou decifrar a informação que lhe chegava através de Shiskatchegg. Percebeu como a vida se escapava da jovem, gota a gota, como os grãos de areia de uma ampulheta. Estava ferida, talvez doente, ou quiçá estivesse a ficar sem energia.

Em qualquer caso, não resistiria muito tempo.

O shek semicerrou os olhos e seguiu o seu caminho para sul. Há três dias que abandonara Nanhai, deixando para trás Ydeon, o fabricante de espadas. A despedida fora breve e sem emoção. Ambos tinham coisas a fazer e sabiam que o tempo de Christian em Nanhai já havia terminado.

Agora viajava para sul para se juntar a Victoria... ou para matar Jack. Não tinha muita certeza de quais eram as suas verdadeiras motivações. Ambas as possibilidades o atraíam por igual, embora por razões bem diferentes. Às vezes, perguntava-se se não seria melhor desistir e deixar que eles os dois se arranjassem sozinhos. Jack cuidaria de Victoria, e, se ele próprio se mantivesse afastado, não enfrentaria o dragão, como Ashran e o seu instinto lhe exigiam.

Mas naquele momento soube que continuaria a sua viagem até ao fim, com tudo o que isso implicava, e que devia alcançar a rapariga rapidamente. Não sabia onde andava Jack nem por que razão Victoria estava a morrer; mas, se existia a mais ínfima possibilidade de chegar a tempo de a salvar, tinha de o fazer.

 

           "SE NÃO ME PODES DAR A MAGIA..."

Drajdu foi vê-la novamente quando caiu a tarde. Victoria jazia num recanto, sem forças para se mexer. A câmara onde a tinham encerrado era ampla, mas não tinha janelas, e a luz do candeeiro era fraca e doentia.

No início, a rapariga tinha procurado escapar, mas depressa se apercebera de que sem o báculo encontrava-se indefesa. Não a preocupava o facto de o objecto ter caído nas mãos daquele canalha do Brajdu; sabia que ele jamais conseguiria utilizá-lo, e Feinar, o feiticeiro que trabalhava para ele, também não. Além disso, rapidamente descobriu, alarmada, que tinha coisas mais urgentes em que pensar.

Tudo à sua volta estava morto. Não sabia o que havia para lá das paredes de pedra, mas claramente não era nada que pudesse alimentá-la da energia de que precisava para subsistir.

Em Idhún, a sua magia funcionava muitíssimo melhor do que na Terra, e ela sentia-se mais forte e desperta, porque a energia flutuava no ambiente, faiscante, electrizante. Embora não pudesse vê-la, Victoria sentia-a, percebia-a com tanta clareza como podia sentir o vento acariciar a sua pele. Mas, naquele compartimento horrível onde a tinham encerrado, o ar estava silencioso e morto.

Da primeira vez que Brajdu a visitara, Victoria ainda tivera forças para lutar e tinha-se atirado a ele furiosamente. Talvez Brajdu não esperasse que ela atacasse, talvez não tivesse previsto os seus velozes pontapés, assestados com uma força e rapidez aprendidas nos seus treinos de taekwonda. O caso é que ela o atingiu várias vezes antes que ele e os seus guardas conseguissem dominá-la.

Depois dissera-lhe o que queria que fizesse em troca da sua liberdade... e da sua vida.

Victoria ouvira-o, horrorizada. Tinha-se negado rotundamente.

De forma que Brajdu a tinha deixado ali encerrada, deixando que se consumisse lentamente. Todas as manhãs ia vê-la e insistia na sua exigência. Victoria continuava a negar-se, embora já não tivesse forças para se mexer.

Da terceira vez, tinha procurado explicar-lhe:

- Não é algo que possa decidir. É algo que surge de dentro, do coração. Só se realmente o desejar. Se houver um laço que me ligue a essa pessoa.

- Os unicórnios nunca se sentiram ligados a ninguém - replicara Feinar, o feiticeiro. - Não se misturam com os mortais.

- Porque a sua natureza lhes exige que não se deixem ver. Se toda a gente pudesse vê-los e tocar-lhes, todos seriam feiticeiros ou semifeiticeiros. E tem de haver um equilíbrio, caso contrário a magia transbordaria e o caos provocado acabaria por destruir o mundo. É uma grande responsabilidade. O dom dos unicórnios também é a sua condenação à solidão perpétua. Mas eles observam os mortais das sombras, de cada recanto do bosque, tendo saudades da sua companhia e desejando poder conhecê-los, partilhar as suas vidas com eles...

Feinar inclinou a cabeça e nos seus olhos pareceu brilhar por um instante uma centelha de compreensão. Mas as palavras de Victoria não afectaram Brajdu.

- Não te preocupes - disse, com um sorriso dissimulado. - Depois de mais dois dias aqui, desejarás de todo o coração entregar-me a magia. Tenho a certeza disso.

Victoria chegou a pensar que ele tinha razão. Mas na sua visita seguinte descobriu que a simples ideia de entregar a magia àquele homem provocava tal repulsa que preferia morrer antes de outorgar o seu dom à força. E foi o que lhe disse.

- Voltarei amanhã - disse Brajdu. - Se estiveres viva, irás converter-me num feiticeiro. É que, se não o fizeres... não voltarás a ver a luz dos sóis nunca mais. Os sheks estão à tua procura, miúda, e querem-te morta, por isso também obterei benefícios se lhes entregar o teu cadáver.

Victoria fechou os olhos e ficou ali inerte, estendida no seu canto. Não o disse, mas duvidava que pudesse resistir até ao dia seguinte.

Não obstante, Brajdu apresentou-se novamente na sua prisão antes do previsto, ao cair do último dos sóis. Victoria aguardou que ele lhe formulasse o pedido que estava acostumada a ouvir. Contudo, desta vez as palavras do homem foram diferentes:

- Jack veio à tua procura.

Victoria abriu os olhos; sentiu o coração acelerar de imediato e procurou levantar-se, mas não teve forças.

- Obviamente, foi-se embora com as mãos vazias - prosseguiu Brajdu com indiferença.

Começou a relatar-lhe, com todos os pormenores, o seu encontro com o jovem dragão. A cada palavra que pronunciava, tornava-se cada vez mais claro a Victoria que ele não estava a mentir. A descrição que fez de Jack e da semi-yan que o acompanhava era correcta e muito pormenorizada.

- De maneira que já sabes - concluiu Brajdu. - Enviei-o para uma morte certa. Não sei se ouviste falar dos swanit, linda, mas creio que deveria bastar-te saber que até os sheks procuram não se atravessar no caminho dessas criaturas.

Victoria respirou fundo. Quis falar, mas não tinha forças.

- Ainda podes salvá-lo - sorriu Brajdu. - Não partiu há muito tempo. Entrega-me a magia e deixar-te-ei livre para que vás ao seu encontro. com um pouco de sorte, chegarás a tempo de evitar que cometa uma loucura. É que esse rapaz está um pouco maluco, sabes? Faria qualquer coisa por ti, até mesmo deixar-se triturar pelas mandíbulas de um swanit... o que não deve ser muito agradável e que na realidade não desejo nem aos meus piores inimigos.

Victoria fechou os olhos, que se lhe tinham enchido de lágrimas. Sim, não duvidava que Jack fosse capaz disso e de muito mais.

- Como sei que não me mentes? - conseguiu então dizer, com esforço. - Como sei que Jack continua vivo, que não o entregaste aos sheks?

- Boa pergunta - admitiu Brajdu. - A resposta é simples: não o entreguei porque então os sheks saberiam que te tenho prisioneira. Sussh não demoraria a vir reclamar-te. E é demasiado cedo, percebeste? Ainda não obtive o que quero de ti.

- E... como sei que me deixarás partir depois? - conseguiu perguntar Victoria. - Como sei que não me vais trair?

- Não podes saber - sorriu Brajdu. - Mas vê as coisas por outro lado: que outra opção tens?

- Posso negar-me...

- E, enquanto o fazes, o teu amigo dragão aproxima-se cada vez mais de uma morte certa.

Victoria cerrou os dentes, mas não disse nada. Brajdu sorriu e deu meia-volta para se ir embora.

- Espera! - chamou-o então Victoria. - Irei fazê-lo. Brajdu voltou-se novamente para ela, ainda sorridente.

- Linda menina.

A um gesto seu, Feinar ajudou-a a sentar-se. O contacto com o feiticeiro fê-la sentir-se um pouco melhor. Como todos os feiticeiros, o corpo de Feinar emitia um suave halo de energia mágica, limpa, vibrante, que não podia ver-se com os olhos, mas que Victoria podia perceber com clareza... uma magia que lhe fora entregue por um unicórnio muitos anos antes. Victoria deixou que parte da energia do feiticeiro a percorresse por dentro, renovando-a.

Mas não era suficiente. E muito menos se tinha a intenção de converter Brajdu num feiticeiro.

- Aqui não posso fazê-lo - disse. - Preciso que me levem a um lugar com vida, um oásis talvez...

Mas Brajdu negou com a cabeça.

-Não, linda. Não vais sair daqui até que me convertas num verdadeiro feiticeiro... e num poderoso.

Victoria voltou-se para Feinar, desesperada.

- Aqui não posso fazer nada! Diz-lhe!

- Nós sabemos - disse o feiticeiro -, mas está tudo pensado. Tirou algo brilhante de um dos bolsos da sua túnica.

Victoria observou-o com cautela. Era uma gema parecida com um ovo de estrias avermelhadas, que, segundo conseguiu perceber, emanava uma grande quantidade de energia.

- Um canalizador artificial - explicou Feinar. - Actua de modo similar ao dos unicórnios, embora não seja capaz de converter ninguém em feiticeiro, infelizmente. Cada uma destas maravilhas tem uma pedra gémea fabricada com o mesmo material. Se deixares uma delas num lugar com muita energia, essa energia irá transmitir-se à sua pedra gémea, não importando a distância a que estiver. Percebeste?

Victoria tocou o ovo com a ponta do dedo e sentiu a grande quantidade de magia que acumulava.

- A sua pedra gémea está em pleno coração do maior oásis de Kash-Tar - prosseguiu o feiticeiro. - Recolherá a energia dali e irá transmiti-la a esta gema que tenho nas mãos... de maneira que, se lhe pegares, será como se estivesses lá. Os feiticeiros utilizam estes canalizadores como reserva de magia, para o caso de terem de fazer muitos feitiços em pouco tempo. Mas, claro... os magos podem utilizar a magia para fazer feitiços. Tu não, ou estou enganado? Para isso necessitas daquele báculo que levavas preso às costas quando te recolhemos. Assim, a única coisa que podes fazer com este canalizador é captar a energia que transmite e transferi-la para outra pessoa, quer seja para a curar ou... para a converter num feiticeiro.

Victoria estremeceu.

- A cada segundo que perdes - interveio Brajdu -, Jack está um pouco mais próximo da morte.

Victoria engoliu em seco. Podia conceder a magia àquele homem, mas nada o impedia de a entregar depois aos sheks e inclusivamente esperar que Jack regressasse com a carapaça de swanit... se é que regressava. Em qualquer dos casos, Brajdu sairia sempre a ganhar.

Mas havia a possibilidade, por mínima que fosse... de que ele cumprisse a sua parte do trato.

Ergueu a cabeça.

- De acordo - disse.

Feinar entregou-lhe o canalizador. Victoria segurou-o entre as mãos e fechou os olhos, sentindo que a energia a percorria por dentro, enchendo-a, renovando-a. Era de facto como se se encontrasse num lugar repleto de vida.

Permaneceu assim durante uns minutos mais. Teria necessitado de horas para recuperar por completo, mas não dispunha de tanto tempo. Tinha de ir ao encontro de Jack e evitar que cometesse uma loucura.

Abriu os olhos, ainda com a gema entre as mãos.

- Estou pronta - disse, olhando para o feiticeiro. - Deixa-nos a sós. Tinha de se transformar em unicórnio para entregar a magia, mas sentia-se desconfortável com mais gente a olhar. Já era suficientemente horrível ter de o fazer para Brajdu.

Feinar olhou para Brajdu, indeciso. Este assentiu, levando uma mão de forma elucidativa ao punho do sabre que pendia do seu cinto. O feiticeiro levantou-se e abandonou a câmara, fechando a porta atrás de si.

Victoria respirou fundo várias vezes. A energia continuava a percorrê-la por dentro, e por um momento teve a sensação de se encontrar no meio de um bosque. Sentia saudades dos bosques.

Esforçou-se por se concentrar. Procurou Lunnaris dentro de si e deixou que a essência do unicórnio fluísse para a transformar.

Contudo, e ante o desconcerto de Victoria, Lunnaris negou-se a sair e ficou agachada num recanto da sua alma, a tremer. Victoria, desesperada, chamou com mais insistência a sua parte unicórnio, chorou interiormente, suplicou-lhe, ameaçou-a... mas a transformação não teve lugar.

Victoria abriu os olhos. Brajdu observava-a expectante.

- Então?

- Estou a tentar - murmurou a jovem. - Geralmente não tenho problemas em transformar-me, mas hoje...

Interrompeu-se porque Brajdu tinha-a agarrado pelo pescoço e olhava-a fixamente, com um brilho ameaçador nos olhos.

- Pois mais vale que o faças, linda, porque caso contrário tu e o teu amigo irão morrer muito rapidamente, fiz-me entender?

Victoria assentiu. Brajdu soltou-a, e ela respirou fundo e tentou de novo. "Tenho de o fazer", disse para si. "Não é tão difícil entregar a magia pela força. Já o fiz uma vez."

Ficou nauseada ao recordar-se de como o Necromante a tinha utilizado na Torre de Drackwen. Sentiu-se doente só de se lembrar, mas cerrou os dentes e disse a si mesma que por Jack estava disposta a voltar a passar por isso... e por muito mais.

Então compreendeu que não poderia fazê-lo simplesmente desejando-o, tal como não podia parar os batimentos do seu coração só por querer. Por mais que fosse capaz de lhe enterrar um punhal se com isso pudesse salvar a vida de Jack. Mas, por mais intensamente que o desejasse, era preciso que lhe arrebatassem a magia pela força se não sentisse aquele chamamento, aquela estranha empatia que sentira por Kimara e que a levara a entregar-lhe o seu dom. Sentiu falta daquele horrível artefacto que Ashran usara tempos antes para lhe roubar o seu poder. Sentiu falta porque entendeu que sem ele não poderia fazer o que Brajdu lhe pedia. Porque, apesar do muito que aquela coisa a fizera sofrer, com ele teria tido alguma oportunidade de salvar Jack.

Tinha um nó na garganta quando confessou em voz baixa:

- É inútil. Não sinto nenhum tipo de empatia por ti. O unicórnio jamais se manifestará para ti, Brajdu.

O homem não disse nada. Arrebatou-lhe o canalizador, e Victoria notou que ficava novamente sem energia. Brajdu levantou-se e olhou-a de cima, sério.

- Acabas de assinar a tua sentença de morte - disse. - Se não me podes dar a magia, não a darás a ninguém.

Quando fechou a porta com estrondo, Victoria soube que acabava de ser enterrada viva e que não sobreviveria àquela noite.

Mas só conseguia pensar em Jack, no perigo que corria, no facto de não poder chegar até ele. Lembrou-se também de Christian. Tinha pensado muito nele, tal como em Jack, durante os seus dias de cativeiro. Sentia a sua presença através do anel, sabia que ele continuava ali, do outro lado, nalgum lugar... demasiado longe para salvar Jack...

Jack viu a nuvem avermelhada que se aproximava no horizonte. Da última vez que tinha visto algo semelhante, Kimara instara-o a esconder-se entre as dunas para não ser descoberto e Jack tinha obedecido sem fazer perguntas. Mas desta vez ficou bem à vista, no alto de um montículo de areia, e esperou.

O enxame de insectos, a que Kimara chamara kayasin, "espiões", não tardou a chegar até ele. Jack deixou que o rodeassem, não demonstrou nenhuma inquietação perante os seus furiosos zumbidos nem se mexeu quando alguns deles pousaram sobre a sua pele e o tactearam com as suas longas antenas vibrantes.

Quando a nuvem de insectos se afastou, Jack sentou-se tranquilamente na duna e continuou à espera.

Sabia que os kayasin informariam em breve alguém muito maior e perigoso da sua presença naquele lugar.

Teve de esperar até ao anoitecer. Então avistou finalmente o swanit a aproximar-se no horizonte, sob a luz das luas, e pareceu-lhe muito grande.

Quando a criatura chegou até ele, apercebeu-se de que era gigantesca.

Tratava-se de um enorme insecto em forma de fuso que se arrastava por entre as dunas sobre uma dúzia de patas, tacteando o chão e o ar à sua frente com um par de longas antenas que não pareciam, contudo, tão aterradoras como os múltiplos apêndices bocais que procuravam alimento. O seu corpo estava coberto por placas córneas que o protegiam como se fosse uma armadura. Jack procurou esquecer-se do aspecto aterrador do swanit e manter a cabeça fria. Aquelas placas, que formavam a carapaça do insecto, eram o seu objectivo, precisava delas para salvar Victoria. Esforçou-se por lembrá-lo a todo o instante.

Teve tempo de observar o swanit enquanto este se aproximava. Perguntou-se se poderia enfiar a sua espada nalguma das linhas de união existentes entre as placas que o cobriam, mas descartou a ideia. Aquele ser era demasiado grande. Até mesmo a ferida de uma espada mítica como Domivat não seria para ele mais perigosa do que a picada de um mosquito para um ser humano.

Jack compreendeu que não tinha nenhuma possibilidade de o vencer daquela maneira. De modo que cravou a bainha de Domivat na areia e transformou-se em dragão.

com um rugido, levantou voo, e a cabeça cega do swanit também se levantou; os seus apêndices agitaram-se no ar, procurando-o. Jack estava agora suficientemente perto para ver como se moviam as suas quatro pinças bocais, capazes de o triturar num instante. Voou um pouco mais alto, para se pôr fora do seu alcance. O swanit pareceu procurá-lo até com mais entusiasmo do que antes, e Jack achou que compreendia porquê: aquelas criaturas viviam num deserto e eram demasiado grandes para o resto dos seres que habitavam nele. Por mais animais, humanos ou yan que conseguissem caçar, para eles não eram mais do que um pobre aperitivo. Por isso os swanit estavam sempre famintos.

Mas um dragão era outra coisa.

Jack bateu as asas com energia e expeliu uma baforada de fogo. Ficou decepcionado ao ver que a carapaça do swanit o protegia das chamas. Não lhe restava outro remédio senão lutar corpo a corpo.

Lançou-se sobre ele, com as garras em riste. Tentou cravá-las no corpo do insecto, mas as unhas resvalaram sobre a carapaça sem conseguir fazer-lhe um só rasgão. Jack elevou-se no ar antes de os apêndices bocais do swanit se fecharem sobre ele.

Deu duas voltas no ar, a pensar. Começava a perceber por que razão Brajdu tinha tanto interesse naquela carapaça. O fogo não a afectava e era dura como um diamante, ou talvez mais. Não fazia sentido procurar mordê-la. Estava a ficar sem opções.

Mas tinha de matar aquela criatura. Por Victoria.

O swanit ergueu-se sobre as suas patas traseiras e procurou alcançá-lo no ar, mas não conseguiu. Jack esquivou-se, enquanto continuava a traçar o seu plano.

Ao descer sobre a criatura, tinha visto de perto as placas da carapaça. Talvez pudesse enterrar as suas garras no espaço que havia entre as placas. com isso, não o feriria, mas talvez pudesse enganchá-lo e puxá-lo até o virar de patas para cima. Se aquele insecto era o que parecia ser, uma espécie de cochonilha gigante, talvez estivesse desprotegido por baixo. Era bastante provável, de facto. O swanit praticamente arrastava-se sobre a areia, as suas patas mal o elevavam acima do solo. Era lógico que tivesse desenvolvido a carapaça apenas na parte que ficava a descoberto.

Desceu em voo picado sobre o insecto e fincou as garras sobre as suas costas. Não conseguiu enganchá-lo, mas o swanit moveu-se com rapidez e ergueu várias das suas patas na sua direcção.

Jack comprovou, com horror, que eram pegajosas. As extremidades de duas das patas colaram-se ao seu flanco, arrastando-o para o chão... e para a boca do swanit... enquanto ele batia desesperadamente as asas, procurando elevar-se de novo.

Voltou-se e cuspiu uma labareda na boca do swanit. Isto pareceu surpreendê-lo, porque o soltou. Mas imediatamente a seguir lançou-se outra vez sobre o dragão e fechou os seus apêndices bocais em volta da sua cauda.

Jack rugiu de dor. Debateu-se furiosamente e conseguiu libertar-se, mas as mandíbulas do swanit rasgaram a sua pele escamosa. A arquejar, Jack elevou-se um pouco mais para ficar longe do seu alcance.

E voltou a descer, desta vez por trás, para procurar enganchar as suas garras na carapaça do swanit. Voltou a falhar, mas o insecto não conseguiu apanhá-lo.

À terceira vez, sentiu que as suas unhas roçavam a junção. Porém, não foi capaz de as cravar na carne da criatura. Não teve tempo de se animar com os seus progressos, porque o swanit retorceu-se sobre si próprio e lançou-se sobre ele. Jack retrocedeu no ar... e as patas traseiras do swanit agarraram-no e atiraram-no ao chão.

Jack revirou-se, furioso e desesperado, batendo a cauda contra as dunas e lutando com garras, dentes, cornos e fogo. Mas nada daquilo parecia afectar a enorme criatura. Além disso, descobriu que a parte interna das patas do swanit era dentada. As suas pontas cravavam-se no seu corpo, rasgando dolorosamente a pele dourada. Voltou a vomitar fogo no focinho da criatura, mas esta não o soltou. Quando viu as mandíbulas do swanit fecharem-se sobre ele, Jack soube que não sobreviveria àquela batalha.

Victoria sentia uma angústia horrível dentro de si, e não se tratava apenas do facto de estar a morrer. Tinha a terrível sensação de que Jack estava em perigo. Levantou-se e, a cambalear, chegou até à porta. Arremeteu contra ela, procurando derrubá-la com as suas últimas forças. Bateu, bateu, uma e outra vez, embora soubesse que era inútil. Mas negava-se a ficar ali fechada enquanto Jack estava a morrer.

E continuaria a bater contra a porta, sem parar, até que fosse vencida pelo esgotamento ou até que conseguisse deitá-la abaixo. Quando já não pôde mais, caiu desfalecida junto à porta, com os olhos cheios de lágrimas.

E foi ali que a pessoa que entrou, algum tempo depois, para a resgatar, a encontrou.

Por Victoria.

Jack retorceu-se pela última vez entre as patas pegajosas do swanit; as suas pontas enterraram-se profundamente na sua pele, mas não se importou. Sacudiu a cauda furiosamente e lançou fogo novamente ao focinho da criatura. Não lhe causou danos, mas confundiu os seus sentidos por um instante, permitindo-lhe escapar.

Jack elevou-se no ar tanto quanto pôde, mas o seu voo era instável: tinha uma asa rasgada. Respirou fundo duas vezes e procurou avistar o swanit no meio da poeira

que levantara ao descolar. Viu-o; era apenas uma sombra difusa na areia.

Voltou a descer. Sabia que aquela tentativa bem podia ser a última, mas evocou o olhar de Victoria, lembrou a si mesmo que ela era prisioneira daquele miserável Brajdu e já não lhe pareceu um sacrifício tão grande arriscar a sua vida se com isso conseguisse salvá-la.

De alguma maneira, as suas garras enterraram-se desta vez na fina linha de separação entre duas placas da carapaça. Enganchou-se nele e bateu as asas com força. Puxou e puxou. Teve de parar durante um momento para se esquivar de uma nova investida; o swanit tinha-se erguido sobre as suas patas traseiras para o alcançar, então Jack deu um puxão brusco. Conseguiu desequilibrá-lo. Puxou novamente com todas as suas forças.

O swanit virou-se sobre a areia rosada, agitando as patas no ar. Jack, esgotado, sentiu-se inundado por uma onda de alegria e lançou um rugido de triunfo: como suspeitara, a parte inferior do swanit não estava protegida pela carapaça. Lançou-se sobre ele e sentiu um profundo alívio quando as suas garras se enterraram na carne da criatura.

Momentos depois, o swanit jazia sobre a areia, morto, e o dragão tinha-se deixado cair ao seu lado, gravemente ferido e sem forças para se mexer.

Victoria abriu os olhos quando sentiu que a arrastavam.

Luz... alguém a estava a retirar do seu cativeiro, compreendeu de imediato. O coração deu um salto. Jack? Não, não era Jack. Também não era Christian.

Soltou uma pequena exclamação de angústia quando o reconheceu.

Era Feinar, o feiticeiro que trabalhava para Brajdu.

- Silêncio - disse ele em voz baixa. - As sentinelas estão a dormir por causa de um feitiço de sono, e não queremos que acordem, pois não?

Victoria, aturdida, não disse nada. Não entendia o que se estava a passar, mas Feinar tirara-a daquela prisão, e ela não tencionava questionar qualquer acção que a aproximasse de Jack. De modo que se deixou levar pelos corredores daquela fortaleza subterrânea, até que ambos saíram para o ar livre. Então Feinar soltou-a, e Victoria, ainda muito fraca, caiu sobre a areia banhada pela luz das três luas. Ele estendeu-lhe o báculo de Ayshel, e Victoria pegou-lhe, confusa.

- Vai-te - disse o feiticeiro.

- Porquê...? - perguntou Victoria.

Feinar demorou um pouco a responder, mas não a olhou directamente quando o fez:

- Porque vi um unicórnio há muitos anos, quando era jovem. E ainda não consegui esquecer os seus olhos, esses olhos que me visitam nos meus sonhos mais bonitos.

Victoria fitou-o, surpreendida, mas o feiticeiro virou-lhe as costas com brusquidão e voltou a entrar pela porta. Ela não parou para analisar o seu comportamento. Levantou-se e, muito a custo e com obstinação cega, arrastou-se em direcção ao interior do deserto, apoiando-se no báculo, à procura de Jack.

A manhã surpreendeu Jack ainda junto do cadáver do swanit. Devia ter perdido a consciência, compreendeu. Amaldiçoou-se a si mesmo por isso. Talvez não restasse muito tempo a Victoria e, por outro lado, agora teria de arrastar o corpo da criatura sob a luz abrasadora dos três sóis.

Não tinha tempo a perder. Pegou na espada com uma das garras dianteiras e na mochila com a outra, e enrolou a cauda numa das patas do swanit. E puxou.

Ao princípio não foi capaz, não conseguia movê-lo. Mas insistiu e, lentamente, foi arrastando o corpo da enorme criatura sobre a areia. Não lhe ocorreu nem por um momento que lhe seria impossível regressar a Kosh com semelhante carga; tinha de o fazer e ponto.

Arrastou o swanit durante várias horas através do deserto.

Não conseguiu avançar muito, mas era melhor do que nada. Além disso, sabia que cada passo que dava o aproximava mais de Victoria.

Ao meio-dia, quando o maior dos sóis estava no seu ponto mais alto, Jack distinguiu ao longe uma figura solitária que se aproximava dele por entre as dunas. Parou durante um momento, a pestanejar, perguntando a si mesmo se não seria uma miragem. Devia ser, pensou, porque se tratava de uma rapariga que avançava muito a custo, apoiando-se num bordão.

Ou num báculo.

"É uma miragem", disse Jack para si mesmo.

Mas dirigiu-se a ela, esquecendo o cadáver do swanit atrás de si, e enquanto caminhava voltou a transformar-se num rapaz. Quando ela, a arder em calor, suja e exausta, se deixou cair nos seus braços, Jack abraçou-a, pensando por um momento que tinham morrido os dois e estavam no céu. Tê-la entre os seus braços soube-lhe tão bem como se lhe tivessem deitado um balde de água fresca pela cabeça abaixo. Fechou os olhos, bendizendo aquele momento, sem conseguir acreditar que estavam juntos de novo. Mas a sede e o calor tinham-lhe secado a garganta e nem sequer foi capaz de pronunciar o seu nome nem de dizer o quanto sentira a falta dela.

Ela apoiou-se nele, a arquejar, mas com um sorriso nos lábios ressequidos e gretados. Jack apercebeu-se de que não tinha forças para continuar a caminhar, por isso levou-a para junto do cadáver do swanit e depositou-a ali, sobre a areia. Victoria sorriu de novo, agradecendo a sombra que o enorme corpo da criatura lhe dava. Jack estreitou-a, procurando transmitir-lhe parte da sua energia.

No entanto, apesar de ser inesgotável o fogo interior dos dragões, naquele momento as suas reservas estavam muito baixas e ainda precisaria de descansar durante muito tempo para as recuperar. Mas ele, ao contrário de Victoria, podia descansar num deserto.

"Tenho de a tirar daqui", pensou. Não obstante, apercebeu-se de que estava exausto. Agora que a tinha junto dele, grande parte da tensão que o mantivera de pé tinha desaparecido. "Mais tarde", disse para si. "Agora temos de descansar." E, quase sem dar por isso, mergulhou num sono profundo, junto a Victoria, os dois estendidos sobre a areia, à sombra do corpo do swanit.

Quando as três barcaças alcançaram Nurgon dias depois do ataque a Namre, Alexander agradeceu aos deuses de todo o coração.

Não fora uma viagem simples. Depois do que ocorrera em Namre, Ziessel, a shek que governava Dingra, estava já ao corrente dos seus movimentos. Camuflada entre as outras barcaças que se dirigiam para Porto Esmeralda, a dos Novos Dragões era difícil de detectar... por todos, excepto pelos sheks.

A cobertura especial de Fagnor, que o fazia parecer um dragão verdadeiro aos sentidos dos sheks, era neste caso uma desvantagem: qualquer shek que sobrevoasse o rio reconheceria a embarcação que continha o dragão de madeira entre todos os outros barcos. E atacaria, impulsionado pelo ódio cego e instintivo que fazia dragões e serpentes aladas enfrentarem-se.

Desde o ataque à ponte de Namre, eram vários os sheks que sobrevoavam o rio em busca da barcaça dos rebeldes. Allegra cobrir a-a com um poderoso feitiço de banalidade permanente, que no início tinha funcionado bem; mas as fadas eram particularmente sensíveis à banalidade e, oculta pelo mesmo feitiço que camuflava a embarcação, Allegra começou a enfraquecer.

Para Alexander, também não era nada bom.

O trajecto até Even foi um autêntico inferno para ambos. Não obstante, nenhum dos dois sugeriu sequer a possibilidade de retirar o feitiço.

Sabiam que os sheks procurariam interceptá-los em Even. Por sorte, o rio Iveron, que deviam subir para chegar a Nurgon, desembocava no Adir pouco antes de chegar à cidade.

- Estejam atentos - disse Denyal, enquanto observava como da barcaça se estendiam seis imponentes pares de remos para navegar contra a corrente. - Há muitas barcaças que sobem o rio até à capital, mas não se trata de um rio muito navegado em comparação com o Adir. Se nos encontrarmos com um controlo, será fácil sermos detectados.

Contudo, a viagem decorreu sem incidentes. E assim, por fim, numa tarde em que o primeiro dos sóis se punha, os rebeldes avistaram ao longe os contornos da Fortaleza de Nurgon.

Alexander sentiu-se invadido por uma onda de emoções contraditórias.

Se Vanissar o vira nascer e crescer, os altos muros da Fortaleza tinham visto a sua transformação em guerreiro e em homem. Até àquele momento, não se tinha apercebido

das saudades que sentira de Nurgon. Todavia, teria preferido não voltar a vê-la do que ter de a ver naquele estado.

A imponente Fortaleza, o orgulho de todo o Nandelt, fora reduzida a um monte de ruínas e escombros. Os muros continuavam ali, em parte; mas o tecto caíra há algum tempo, as torres tinham sido derrubadas e nas ameias já não se agitava a bandeira de Nurgon: um dragão branco coroado que se erguia sobre duas espadas cruzadas num fundo vermelho. Aquele não era o emblema de nenhuma das casas nobres de Nandelt. Era, simplesmente, o símbolo de Nurgon. E em Nurgon apareciam jovens de todos os reinos, de todas as casas reais, de todas as famílias nobres; a academia aceitava até plebeus se estes conseguissem superar as difíceis provas de acesso. Também não fazia distinções entre rapazes e raparigas. Sim, havia mulheres entre os cavaleiros de Nurgon, e algumas delas ocupavam postos importantes na hierarquia da Ordem.

Alexander reprimiu um suspiro. Entre aqueles muros não aprendera só a lutar. A educação que a academia proporcionava aos seus pupilos era muito abrangente, como era devida aos jovens que estavam destinados a ocupar postos importantes nos seus respectivos reinos. Outrora, a Fortaleza fervilhava de actividade. Sempre dentro da mais estrita disciplina, os estudantes da academia trabalhavam de sol a sol; e, em volta dos muros do castelo, a aldeia de Nurgon tinha crescido e prosperado, atendendo às necessidades daqueles aspirantes a guerreiros e aos seus nobres mestres.

Agora, nada restava da aldeia; e os restos silenciosos da Fortaleza dificilmente evocavam ecos de dias passados, dias de glória e grandeza.

Alexander desviou o olhar, enquanto a barcaça continuava a deslizar lentamente rio acima.

- O que aconteceu aos cavaleiros? - perguntou com voz rouca. Denyal encolheu os ombros.

- No princípio, lutaram todos juntos contra a invasão dos sheks disse. - Mas perderam as primeiras batalhas e foram-se dispersando para defenderem os seus respectivos reinos. Os sheks não tiveram piedade deles. Mesmo em reinos que se lhes renderam incondicionalmente, como Dingra e Nanetten, os cavaleiros foram perseguidos e exterminados, um a um. Alguns reis, aqueles que renegaram a Ordem de Nurgon, foram perdoados. Em especial Kevanion, o rei de Dingra.

- Pronunciou o nome como se cuspisse. - Diz-se que os últimos cavaleiros se reagruparam para lançar uma derradeira ofensiva desesperada. Diz-se que Kevanion os traiu entregando-os a Ziessel.

- Ouvi os rumores - murmurou Alexander. - Recuso-me a acreditar que um cavaleiro de Nurgon traísse os seus irmãos da Ordem.

- Os cavaleiros foram exterminados - replicou Denyal com aspereza. - A mim parece-me mais do que um simples rumor.

Alexander não respondeu. Ficara a olhar para a Fortaleza, repentinamente alerta e com o sobrolho franzido.

- Kevanion não era só um cavaleiro da Ordem - prosseguiu o líder dos rebeldes. - Também era, e continua a ser, o soberano de Dingra. E, pelo que se conta, nunca lhe caiu bem que Nurgon tivesse mais prestígio e importância do que a capital do reino. Nem que, na prática, o Grande Mestre da Fortaleza superasse o seu próprio rei em autoridade. Por outro lado...

- Silêncio - cortou Alexander com voz rouca. - Não notas?

- O quê?

- O frio.

- É uma armadilha - sussurrou Allegra de imediato, aparecendo atrás deles na coberta. - Os sheks armaram-nos uma emboscada na Fortaleza.

- Não é possível - murmurou Denyal, pálido. - Não podiam saber...

- Não precisam de saber - replicou ela. - Basta-lhes pensar... deduzir... e tirar conclusões.

- Às armas - ordenou Alexander. - Preparem-se para lutar.

O movimento na coberta não passou despercebido à criatura que se ocultava nas ruínas da Fortaleza. Antes que os rebeldes conseguissem reorganizar-se, Ziessel elevou-se sobre o que restava do castelo, cobrindo o rio e a barcaça com a imensa sombra das suas asas e lançando um silvo que lhes gelou o sangue nas veias.

Dizia-se de Ziessel que era a mais bela e letal das sheks. Extraordinariamente inteligente, inclusivamente entre os da sua raça, Ziessel ganhara por direito próprio um posto entre as hierarquias mais altas das serpentes aladas, apesar da sua juventude. Embora ninguém falasse disso, também não era segredo entre os sheks que tinha sido cortejada nada menos que por Zeshak, o senhor das serpentes aladas; mas ela dera-se ao luxo de o rejeitar e de momento não parecia que necessitasse de um companheiro. O próprio Zeshak encomendara-lhe a tarefa de acabar com a ameaça dos cavaleiros de Nurgon, e ela cumprira-a eficazmente. Além disso, era suficientemente hábil para governar Dingra sem necessidade de submeter o legítimo rei a ameaças ou incómodas cadeias mentais. Poucos sabiam, de facto, que ela era a causa da traição do rei Kevanion. Sim, certamente o monarca estava ressentido com a ordem de Nurgon; mas fora Ziessel quem, através de promessas de eterna glória, o levara a trair os cavaleiros e prestar vassalagem a Ashran. Fora tão simples enganar Kevanion que Ziessel até se sentira decepcionada. Agora, o rei vivia confiante no seu triunfo, acreditando ser uma figura imprescindível no império do Necromante, sem saber que, quando deixasse de ser útil á Ziessel, ela se livraria dele sem nenhum remorso. De momento mantinha-o com vida porque, para governar um país de humanos, era bastante prático que houvesse um rei humano, embora o fosse apenas de nome. Mas todos em Nandelt sabiam que era Ziessel, a bela e mortífera Ziessel, quem regia os destinos de Dingra.

Todos o sabiam... excepto o próprio rei Kevanion.

Ziessel estava ao corrente do regresso da Resistência a Idhún. Sabia que no grupo estava Alexander, antes Alsan, príncipe herdeiro de Vanissar, um cavaleiro de Nurgon que não se vergaria à vontade dos sheks. Um cavaleiro que ia apresentar-se para a batalha.

Teve notícias da chegada de Alexander ao reino do seu irmão. Mas Vanissar obedecia a Eissesh, e Ziessel sabia que não devia imiscuir-se no território de outro shek.

Não obstante, após a batalha da ponte de Namre e da morte de Kessh, o shek que a guardava, Ziessel soube que chegara o seu momento.

Alexander, o renegado, um dos últimos cavaleiros de Nurgon, tinha entrado nos seus domínios.

Alguns sheks acreditaram que se dirigiam ao bosque de Awa. Não era por acaso que aquele fora um dos primeiros destinos da Resistência, para não mencionar o facto de que Aile, a feiticeira feérica, ainda os acompanhava. Mas Ziessel lutava há tempo suficiente contra cavaleiros de Nurgon para saber que qualquer um deles sentiria o impulso de regressar à Fortaleza onde tinham aprendido a ser o que eram.

Mesmo que a Fortaleza já não existisse.

De modo que, enquanto os outros sheks vigiavam Even, Ziessel aguardava pacientemente em Nurgon. Por fim, a sua paciência tinha sido recompensada.

Outras barcaças tinham subido o rio rumo a Aren, a capital do reino. Mas só naquela se demonstrara um especial interesse pelas ruínas da Fortaleza. A maioria dos barcos afastava-se da margem onde se erguera o imponente castelo, como se os seus tripulantes acreditassem que a sua mera proximidade pudesse acarretar-lhes o mesmo destino em que tinham incorrido os cavaleiros da Ordem. Mas aquela embarcação tinha-se aproximado da margem, para ver melhor as ruínas parcialmente ocultas pelas árvores. E Ziessel suspeitava que tencionavam desembarcar.

O movimento sobre a coberta indicou-lhe que os rebeldes tinham detectado a sua presença, o que confirmou as suas suspeitas. Não, aqueles não eram marinheiros comuns.

A sua visão apurada descobriu imediatamente Alexander sobre a coberta do barco. Reconheceu-o instantaneamente. Erguia-se com o porte e o orgulho de um cavaleiro de Nurgon, mas os seus olhos tinham um brilho estranho, um brilho selvagem que denunciava nele a presença do espírito do animal. Veloz como um raio da lua, Ziessel lançou-se sobre ele, sem se preocupar com o resto dos renegados. Sabia que contava com a vantagem da surpresa, que Alexander era um rival a ter em conta e que, se ele caísse, os outros cairiam.

Por um momento esteve a ponto de o alcançar, porque o jovem ficara paralisado pela súbita aparição da shek, que se erguia em toda a sua grandeza.

Mas naquele instante ouviu-se uma voz potente e melodiosa a gritar as palavras de um feitiço, e Ziessel chocou no ar contra um escudo invisível. Ondulou o seu longo corpo de réptil num rapidíssimo desvio e procurou os limites do escudo. Embora soubesse que a feiticeira Aile estava por detrás daquilo e que ela era uma feiticeira poderosa, suspeitava que não teria tido tempo de fechar o conjuro em volta de toda a barcaça.

Não se enganou. Allegra mal tinha conseguido proteger com a sua magia o corpo de Alexander, que viu as presas letais de Ziessel perigosamente perto e só foi capaz de reagir quando ela guinou bruscamente e procurou o seu corpo de outro ângulo. Ergueu Sumlaris precisamente quando a shek encontrava de novo o caminho para chegar até ele, evitando a protecção mágica. A serpente atacou. Alexander lançou uma estocada, mas Ziessel foi mais rápida. Alexander detectou, porém, o brilho calculista do olhar dela concentrando-se em Sumlaris e adivinhou o que estava a pensar. Aquela era uma arma mítica, uma espada que matara um shek não há muito tempo. Ziessel era suficientemente inteligente para saber que devia ter cuidado com ela.

Aproveitando essa breve hesitação, Alexander atacou de novo, com um rugido de raiva. Percebeu, atrás de si, que Denyal e os outros rebeldes vinham ajudá-lo. Mas Ziessel ignorou-os. Para ela, só Alexander e talvez Allegra eram rivais de peso. Sem perder o jovem de vista, e enquanto se esquivava da sua estocada com um ágil desvio, desfez-se do primeiro atacante com um contundente golpe de cauda, lançando-o borda fora.

Alexander considerou as suas possibilidades. Tinha apanhado de surpresa o shek da ponte, mas aquela fêmea estava alerta, demasiado alerta. Enquanto segurava Sumlaris com firmeza, perguntou-se como sairia vivo daquele confronto.

Subitamente, uma sacudidela brusca fê-lo perder o equilíbrio. E isso poderia ter sido a sua perdição, se não fosse ter surpreendido também Ziessel, que deixou escapar um agudo cicio e cravou os seus olhos irisados no alçapão que conduzia ao porão da barcaça.

Allegra entendeu imediatamente o que estava a acontecer.

- Kestra, não... - murmurou.

Houve um novo golpe e o alçapão saltou em mil pedaços. Um soberbo dragão vermelho ergueu-se na direcção do crepúsculo trissolar, com um rugido de liberdade. Alexander ficou sem fôlego. Sabia que Fagnor não era um dragão verdadeiro, sabia que não era mais do que uma armação de madeira de olenko recoberta de magia e um unguento feito à base de escamas de dragão, manobrado por uma rapariga destemida, mas parecia tão real...

Ziessel também o sabia. Estreitou os olhos e ciciou novamente ao ver Fagnor. Alexander detectou, contudo, o ódio que pulsava no seu olhar e quase sentiu a luta interior da shek na própria pele.

A razão dizia a Ziessel que aquele dragão não era real. Mas o seu instinto impelia-a a lançar-se sobre ele para o matar.

Kestra, no interior de Fagnor, aproveitou muito bem aquele instante de hesitação. Dirigiu o seu dragão para a shek e activou o mecanismo, mistura de magia e engenharia, que o fazia vomitar fogo pela boca. com um silvo de terror, Ziessel afastou-se bruscamente da trajectória da chama. E o instinto ganhou a batalha: a shek precipitou-se sobre o dragão, louca de ódio, com as suas mandíbulas mortíferas abertas de par em par.

Kestra fez virar Fagnor para se esquivar da investida de Ziessel. O dragão rugiu novamente e lançou outra baforada. com um movimento elegante, Ziessel evitou o fogo e rodeou o seu rival com o seu longo corpo ondulante, esperando um descuido para fechar os seus anéis em volta dele.

Do interior de Fagnor, Kestra viu o movimento da shek e adivinhou as suas intenções. Movimentou as alavancas adequadas e fez com que o dragão batesse as asas com mais força para se elevar ainda mais alto, enquanto lançava uma feroz dentada na direcção de Ziessel.

Os rebeldes observavam a luta da coberta da barcaça, aturdidos. Foi Denyal o primeiro a reagir.

- Rápido, arpões, arcos e bestas! - ordenou.

Em apenas uns minutos, um forte grupo de pessoas tinha-se reunido na coberta. Cada um deles levava uma arma de projécteis, e foi o próprio Denyal o encarregado de ir acendendo as pontas com uma tocha acesa.

- Estender cordas! - gritou, e os arqueiros, besteiros e arpoeiros obedeceram todos ao mesmo tempo, formando uma temível fileira de chamas ao longo da coberta do barco. - Disparar!

Uma chuva de projécteis em chamas atravessou o céu em busca do alvo certo entre os corpos enormes que lutavam sobre eles, envolvidos numa luta encarniçada. A própria Allegra colaborou lançando um feitiço de fogo, que se elevou com os outros como uma bola envolta em chamas. Por um momento, Alexander receou por Kestra, encerrada no interior de Fagnor, mas logo se lembrou de que aquele dragão era um Cuspidor de Fogo, fabricado com madeira de olenko, que era resistente ao fogo.

O jovem sentiu-se de repente deslocado. Os Novos Dragões lutavam há anos contra os sheks, tinham desenvolvido estratégias para esse fim. No entanto, ele próprio não se sentia preparado para enfrentar aquelas criaturas. A luta corpo a corpo que lhe haviam ensinado na academia não servia no caso dos sheks. Nem sequer armado com uma espada mítica tinha possibilidades de derrotar um shek, a não ser que o apanhasse de surpresa pelas costas.

Um pouco aturdido, viu como Ziessel procurava afastar-se da trajectória do fogo lançado contra ela... distraindo-se por um breve instante de Fagnor.

Kestra aproveitou a oportunidade. Fez o dragão lançar uma última baforada de fogo, ainda mais violenta do que as anteriores.

Chegado a este ponto da batalha, até Alexander sabia que o fogo dos dragões artificiais não era inesgotável. Depois daquela labareda, Fagnor não poderia lançar mais nenhuma, não até que os feiticeiros rebeldes tivessem renovado a sua magia. Kestra estava a arriscar tudo numa só cartada.

Por um momento, pareceu que fora bem-sucedida. com um silvo de pânico, Ziessel deu meia-volta e fugiu do fogo que os sheks tanto odiavam e temiam. E a chama tê-la-ia alcançado se não se tivesse lançado em voo picado sobre o rio.

A barcaça balançou perigosamente quando o enorme corpo de Ziessel rompeu as águas para mergulhar abaixo da sua superfície, a salvo do fogo. Denyal soltou uma maldição em voz baixa.

- Arpões, arcos e bestas! - gritou de novo.

Os rebeldes prepararam-se para disparar. O seu líder acendeu outra vez as pontas dos projécteis. Os arqueiros esticaram as cordas, os arpoeiros e besteiros carregaram as suas armas. Todos esperaram, inquietos, que o corpo prateado de Ziessel emergisse do rio. Fagnor continuava suspenso sobre eles, e Kestra fê-lo lançar um rugido de ira. "com um pouco de sorte", disse Alexander para si, "o shek não se vai aperceber de que o dragão perdeu o fogo."

Contudo, não tinha muitas ilusões a esse respeito.

Ziessel emergiu da água um pouco mais adiante e por um momento pareceu uma imensa fonte cristalina que se erguia em direcção às primeiras estrelas. Abriu as asas e ainda a escorrer água, mas muito mais segura de si mesma, precipitou-se de novo contra o dragão artificial, com um cicio que lhes gelou a todos o sangue nas veias.

- Disparem! - ordenou Denyal.

Novamente a chuva de projécteis se abateu sobre Ziessel.

Desta vez, a shek estava preparada e esquivou-se com alguma facilidade. Depois voltou-se para Fagnor, com as mandíbulas abertas e a morte a brilhar nas pupilas irisadas.

Kestra não teve tempo de manobrar. De imediato deparou com os anéis de Ziessel a oprimir o corpo de madeira de Fagnor; movimentou desesperadamente as alavancas que manejavam as asas, mas estas estavam firmemente presas no corpo da shek. Então, Kestra soube que estava presa e que só as asas de Ziessel os sustinham no ar, a ela e ao seu dragão artificial.

Em baixo, na barcaça, os rebeldes também o compreenderam.

- Não pode ser - murmurou Alexander, desconcertado. Se Fagnor caísse, eles cairiam também; se aquela barcaça não chegasse até à Fortaleza, nenhuma outra o faria. A sua luta teria terminado no preciso momento em que começara.

De pronto, um grito potente elevou-se sobre as árvores da margem:

- Suml-ar-Nurgon!

Algo parecido com uma enorme lança brilhante fendeu o céu em direcção a Ziessel. A shek voltou-se bruscamente e os seus olhos reflectiram a luz daquela coisa que parecia procurá-la. Quis afastar-se da sua trajectória, mas carregava Fagnor, que impedia os seus movimentos. Bateu as asas com fúria...

O projéctil atravessou claramente uma asa. Ziessel sibilou, dorida, e deixou cair Fagnor.

Kestra conseguiu tomar o controlo do dragão artificial precisamente um segundo antes de cair na água. Uma das asas tinha-se partido no asfixiante abraço de Ziessel, de modo que, quando levantou voo, fê-lo de forma desastrada e irregular; mas tinha levantado, e procurou afastar-se de Ziessel... e da barcaça.

A shek ciciou e dispôs-se a seguir o dragão; mas novamente se ouviu aquele grito que evocava tantas coisas em Alexander, e, do mato, alguém disparou meia dúzia daqueles

projécteis. Um deles perfurou a asa esquerda de Ziessel; outro rasgou a pele escamosa.

A shek hesitou por um instante. Parecia não saber se devia averiguar de onde saíam aquelas coisas ou fugir enquanto podia. Kestra aproveitou a oportunidade: voltou para Ziessel as mandíbulas abertas de Fagnor e fê-lo mover-se de maneira que parecesse preparar-se para lançar uma nova baforada de fogo sobre ela. Noutras circunstâncias, talvez a shek não se tivesse deixado enganar; mas estava ferida e confusa, sentia-se encurralada. com um silvo de ira, bateu as asas para se elevar ainda mais alto, para longe do alcance das lanças de luz... e afastou-se na noite, em direcção à maior das três luas, que já se erguia no céu violáceo.

Houve um breve momento de tensão.

Então Fagnor pareceu dar um suspiro de alívio, e Kestra conduziu-o para a margem e procurou fazê-lo aterrar no que havia sido o pátio da Fortaleza. Não se pode dizer que tenha sido uma aterragem suave.

Quando perceberam que estavam a salvo, por enquanto, alguns dos passageiros da embarcação lançaram vivas em honra de Kestra e do seu Cuspidor de Fogo. Mas Denyal fê-los calar rapidamente. Ordenou aos tripulantes que dirigissem a barca para a margem e juntou-se a Allegra e Alexander. Os dois pareciam ter esquecido Kestra e a shek que os atacara; tinham os olhos fixos nas sombras das árvores da outra margem e conversavam em voz baixa.

- Então? - perguntou Denyal, subitamente inquieto. - O que há ali?

- Aliados, supomos - respondeu Allegra. - O que vimos eram lanças de madeira da árvore de luz. Só os feéricos sabem onde e como encontrar estas árvores. E do outro lado do rio estende-se o bosque de Awa.

- Não, não é bem assim - replicou Denyal, consultando um mapa.

- Do outro lado do rio, para lá dessas árvores, há uma planície que demoraríamos três dias para atravessar a cavalo. E depois começa o bosque de Awa.

Allegra riu suavemente.

- As fronteiras feéricas não são como as fronteiras humanas. O bosque cresce. Expande-se até onde as fadas quiserem e nem sequer os sheks são capazes de travar o avanço do reino de Wina. É a nossa maneira de conquistar território numa guerra. Awa está há quinze anos a expandir-se e, acredita, um bosque como este pode crescer muito, muito depressa.

Por alguma razão, Denyal sentiu um calafrio.

- O bosque de Awa está a chegar a Nurgon? Os cavaleiros jamais o permitiriam,

- Os cavaleiros tiram proveito disso - respondeu Alexander, com um sorriso feroz. - Foram membros da Ordem que dispararam aquelas lanças. Só um cavaleiro de Nurgon iniciaria um ataque com o grito de guerra da Ordem: Suml-ar-Nurgon!

O seu sorriso tornou-se ainda mais amargo ao repetir aquelas palavras que, de alguma maneira, sentia já não ter direito a pronunciar.

Suml-ar-Nurgon. Pela glória de Nurgon. Alexander voltou-se por um momento para observar o que restava da Fortaleza e sentiu que aquelas ruínas silenciosas o chamavam com ecos de grandeza longínqua. Nesse momento, decidiu que, acontecesse o que acontecesse, lutaria por elas, pelo que a Ordem fora, embora aquilo fosse tudo o que restava dela.

Suml-ar-Nurgon.

As palavras de Denyal fizeram-no voltar à realidade.

- Quem quer que fossem, não parecem dar mais sinais de vida. O importante agora é instalarmo-nos no castelo e levantar todas as defesas possíveis, físicas e mágicas. com um pouco de sorte, Tanawe e os outros chegarão antes de o shek regressar com reforços. Mas, para o caso de isso não acontecer, quero estar preparado.

Não tinha acabado de falar quando a barcaça tocou a margem com uma breve sacudidela. Allegra e Alexander dirigiram um último olhar à outra margem do rio; mas a vegetação continuava em silêncio. Os seus misteriosos aliados não queriam deixar-se ver, de momento.

Jack acordou quando as três luas já iluminavam o firmamento, porque o seu instinto lhe disse que estavam em perigo. Abriu os olhos muito a custo e olhou em volta.

Reconheceu o deserto, o cadáver do insecto e Victoria, que jazia ainda sobre a areia, junto dele.

E viu as serpentes.

Uma patrulha de szish. Uns vinte. Tinham-nos cercado, e Jack sabia que, se eles os tinham encontrado, os sheks não demorariam a aparecer. com um esforço supremo, levantou-se e lançou a mão à sua espada para os enfrentar.

Apercebeu-se de imediato de que nem sequer tinha forças para se transformar em dragão, de que o seu fogo não se tinha restaurado por completo, de que mal podia manter-se de pé. Cambaleou e caiu no chão, o que lhe salvou a vida, porque uma flecha que ia directa ao seu coração cravou-se-lhe no ombro, um pouco acima do seu alvo. Jack sentiu o veneno szish penetrar no seu sangue. Viu a sinuosa sombra de um shek aproximar-se no céu. E soube que estavam perdidos. Deixou-se cair junto de Victoria e a última coisa que conseguiu fazer, antes de perder os sentidos, foi passar um braço em volta da sua cintura, num esforço inútil para a proteger.

Victoria ouviu um barulho à distância, mas isso não conseguiu arrancá-la do seu estado de inconsciência. Percebeu uma fresca presença junto dela, e recebeu-a com alívio porque acalmava o ardor que ainda sentia na pele, abrasada pelos três sóis e pelo calor do deserto. Era tão agradável que Victoria suspirou em sonhos. Notou então que algo a levantava, separando-a de Jack, o que já não era tão agradável. Gemeu e procurou debater-se debilmente; mas afastavam-na de Jack e isso era tão doloroso que acordou completamente.

Deparou-se com uns olhos azuis que conhecia muito bem.

- Chris... tian? - murmurou.

Olhou-o, inquieta. Os olhos dele tinham voltado a ser tão frios como a geada.

- Fico contente por voltar a ver-te, Victoria - disse ele, e a rapariga suspirou ao descobrir um brilho cálido por detrás daquela parede de gelo.

- Eu também - sussurrou ela, pestanejando para conter as lágrimas de alegria que lhe vinham aos olhos. Deixou-se cair nos seus braços, feliz, deixou que ele a levantasse e levasse consigo; mas enquanto Christian caminhava, carregando-a, Victoria viu, por cima do seu ombro, o cadáver do swanit e o corpo que jazia junto dele e que estavam a deixar para trás.

- Espera! - disse a Christian. - Não podemos deixar Jack!

O shek não disse nada; continuou a andar, levando-a nos braços. Victoria compreendeu exactamente as suas intenções e, com as suas últimas forças, contorceu-se até conseguir que a soltasse.

- Eu não vou sem Jack - disse.

- Se ficares aqui, morrerás - replicou Christian calmamente. - De forma que vou levar-te para um lugar seguro, quer gostes quer não.

- Não vou sem o Jack - insistiu ela.

Christian olhou-a com uma expressão indecifrável..

- Não tenciono salvar a vida a um dragão.

Victoria respirou fundo. A simples ideia de se separar de Christian agora que se tinham reencontrado era-lhe insuportável, mas não tinha alternativa.

- Então não me salves a mim.

Christian avançou para ela. Victoria retrocedeu.

- Não, Christian - advertiu. - Terás de me levar à força. Nos olhos do shek brilhou uma centelha de aço.

- Que assim seja - disse, e desembainhou Haiass.

Victoria viu que o fio da espada tinha um débil fulgor sobrenatural. Apercebeu-se então de que a paisagem estava semeada de cadáveres de szish que pareciam ter experimentado a gélida mordedura de Haiass.

Victoria cerrou os dentes, mas aceitou o desafio. Levantou uma mão e o báculo veio até ela, obedecendo à sua ordem silenciosa. Os dois olharam-se. Victoria pensou que aquilo era absurdo, que amava demasiado Christian para o enfrentar daquela maneira ou imaginar sequer a possibilidade de o magoar. Mas os olhos dele brilhavam de forma estranha ao olhar para Jack, e Victoria soube que tinha de lutar contra o shek para salvar a vida do dragão.

Christian atacou. Victoria deteve a sua estocada com o báculo, e ambas as armas míticas cintilaram por um momento. Os dois trocaram um olhar breve. Victoria pensou em Jack e, com as escassas forças que lhe restavam, empurrou para fazer Christian retroceder. Ele moveu-se com rapidez, e a rapariga perdeu-o de vista. Sentiu-o junto dela e descarregou o báculo nessa direcção.

Deteve o seu ataque, empurrando-o para trás. Estudaram-se durante um momento. Victoría arquejava, esforçando-se por se manter de pé.

- Não podes mais, Victoria - disse Christian. - Estás tão fraca que mal consegues mexer-te.

- Mas lutarei - replicou ela. - Até ao último fôlego. Tenho detenho de ajudar Jack, não entendes?

- Se vieres comigo agora, sem oferecer resistência, não o matarei. Mas se me obrigares a ficar e a lutar, não posso garantir-te que consiga reprimir o meu instinto por muito mais tempo.

Victoria cerrou os dentes.

- De qualquer forma, morrerá se o abandonar. Tenho de o salvar...

- Morrerás com ele. Não posso permiti-lo.

Moveu-se com rapidez e atacou novamente. Victoria girou sobre si mesma, erguendo o báculo... Mas deparou com uma poderosa estocada de Haiass, desferida de onde ela não esperava. A espada de Christian arrancou-lhe o báculo das mãos. Instantes depois, o seu fio acariciava o pescoço de Victoria.

Ela fechou os olhos por um segundo, tremendo sob o poder gelado de Haiass. Recordava demasiado bem uma cena semelhante há dois anos. A primeira vez que Christian e ela se tinham olhado nos olhos... naquele momento, compreendeu Victoria, tinha começado a sua história juntos, embora na altura ela não o soubesse. Será que ele o soubera?

Victoria ergueu a cabeça para o encarar, serena e desafiadora. Não tinha medo de Haiass. Desta vez, não.

Christian susteve o seu olhar com calma. Victoria descobriu um rasto de emoção nos seus olhos azuis e compreendeu que também ele estava a recordar os velhos tempos. Então sentiu a consciência dele a introduzir-se na sua mente e percebeu o que pretendia fazer.

- Não - sussurrou, mas ele não se deteve. - Não!! - gritou Victoria. Afastou-se de Christian, sem se preocupar com a espada, que ele retirou sem a magoar, como ela suspeitava. Mas Christian agarrou-a pelo braço e reteve-a junto de si, largando Haiass para a segurar com as duas mãos e aproximá-la mais dele.

- NÃO! - gritou Victoria, e, apesar de estar tão fraca que mal podia manter-se de pé, a estrela da sua testa brilhou com mais intensidade do que nunca. - Não, Christian, não me afastes dele!

Estava a chorar, mas as suas lágrimas não comoveram o shek. Victoria sentiu que um profundo sono se apoderava dela, lutou para resistir, lutou com todas as suas forças... mas a única coisa que conseguiu dizer, antes de cair adormecida nos braços de Christian, antes de se render ao seu poder, foi:

- Por favor...

 

                 REUNIÕES

Os rebeldes trabalharam depressa. Exploraram as ruínas da Fortaleza e estabeleceram a base no sector sul, que era o que estava mais bem conservado. Descarregaram as armas da barcaça, levantaram barricadas, estabeleceram postos e turnos de guarda. Allegra, por sua vez, encarregou-se das defesas mágicas que protegeriam a nova base dos rebeldes. Depressa percebeu que era demasiado para ela sozinha. Qaydar e Tanawe, os outros dois feiticeiros do grupo, viajavam naquele momento em direcção a Nurgon, em barcaças como a que os levara até ali. Não tardariam a chegar, mas Allegra não tinha tanto tempo. Assim, subiu ao ponto mais alto da muralha mais alta e dirigiu os seus olhos negros para a outra margem, onde se erguiam os limites do bosque de Awa, e escutou a canção das árvores, tentando captar nela sinais da sua gente. Sabia que o escudo de protecção do bosque de Awa ainda funcionava; se os feéricos pudessem estendê-lo um pouco mais, fazer com que cobrisse a Fortaleza com o seu manto protector, a Resistência estaria a salvo uma vez mais.

Detectou então algo curioso na outra margem: uma luz que se movia de um lado para o outro, fazendo-lhes sinais.

Mais abaixo, um dos vigias também a tinha visto. O seu grito de alerta soou sobre as ruínas do castelo.

Allegra desceu ao pátio, onde se reuniu com os outros. Denyal e Kestra chegaram juntos; a feiticeira percebeu imediatamente a expressão sombria da jovem e soube que o líder dos rebeldes a tinha repreendido pela sua ousadia. Ao fundo, junto a uma parede semiderrubada, descansava Fagnor. O feitiço tinha-se quebrado e agora não parecia mais do que uma estranha armação de madeira. Uma das armações das asas estava torcida num ângulo estranho. Allegra supôs que Rown e Tanawe teriam de trabalhar muito para voltar a pô-lo em condições.

- O que se passa? - perguntou Denyal, carrancudo; desde que os Novos Dragões tinham abandonado o seu refúgio nas montanhas de Nandelt, o seu humor piorara muito. Allegra não podia culpá-lo por estar tão preocupado. O plano de Alexander era tão arriscado como a manobra de Kestra naquela mesma tarde. Mas Denyal tinha autoridade sobre Kestra e podia repreendê-la, enquanto que, como vanissardo que era, sentia que devia lealdade cega a Alexander.

- Estão a fazer-nos sinais do outro lado do rio - respondeu Allegra.

- Parece que por fim vamos conhecer os nossos aliados.

Não deixou de olhar para Kestra enquanto falava. Reparou que a rapariga se voltava constantemente para olhar para o seu Fagnor, mal prestando atenção a Denyal e à feiticeira. Pensou, de imediato, que não parecia uma jovem acostumada a receber ordens, e começou a pôr em causa que Denyal tivesse realmente assim tanto domínio sobre ela como pensava.

Não teve tempo de continuar a reflectir, porque Denyal começou a andar em passos largos em direcção à margem do rio. Allegra seguiu-o. Descobriram a silhueta de Alexander a saltar de rocha em rocha, demonstrando a sua agilidade sobre-humana. Alcançaram-no quando já se juntava aos vigias no lugar onde tinham atracado a barcaça.

A luz continuava ali, vibrante e instável, como se tivesse vida própria. Voava de um lado para o outro, nervosa, iluminando com o seu brilho ténue um grupo de sombras que estavam ali paradas, no meio do mato, do outro lado do rio.

- É um fogo-fátuo - disse Allegra, surpreendida. - É muito raro vê-los tão longe do coração do bosque.

Levou as mãos a ambos os lados da boca e emitiu um som claro e agudo que soou como o canto de uma ave nocturna. Do outro lado do rio, alguém lhe respondeu da mesma maneira.

- São amigos - concluiu Allegra. - Mas querem saber quem somos e que direito temos de pisar a Fortaleza.

- Foi o que te disseram? - objectou Alexander, franzindo o sobrolho. - Estranhas palavras para um feérico. Deixa-me experimentar uma coisa.

Avançou dois passos e gritou aos que aguardavam na outra margem:

- Suml-ar-Nurgon, Nandelt caminha sob a luz de Irial!

- Sob a luz de Irial defendemos a nossa gente! - respondeu-lhe uma potente voz masculina.

Soou familiar a Alexander, mas não conseguiu situá-la.

- Pela glória de Nurgon, irmão! Quem és?

- Quem o pergunta?

Foi Denyal quem tomou a palavra no lugar de Alexander:

- Estás a falar com Alsan de Vanissar, um dos reis de Nandelt! Houve um breve silêncio.

- Alsan de Vanissar está morto! - respondeu a voz, e desta vez Alexander reconheceu-a. - O cobarde do seu irmão é quem reina agora na sua terra!

- Por todos os deuses, Covan! - exclamou Alexander. - Isso é maneira de receber um amigo? Anunciando a sua morte?

Ouviu-se um sonoro palavrão.

- Alsan, rapaz! És mesmo tu?

- Porque não vens comprová-lo?

Houve um movimento do outro lado do rio. Pareceu que conferenciavam. Ao fim de uns instantes, ouviu-se de novo a voz de Covan.

- Icem a ponte!

Algo se moveu na mata e as águas agitaram-se. Os rebeldes demoraram algum tempo a compreender o que estava a acontecer: os da outra margem puxavam cabos que estavam dentro do rio. E, à medida que puxavam, algo emergia à superfície.

Alexander e os seus observaram como estendiam as cordas até as tábuas da ponte ficarem firmes sobre o rio. Denyal procurou o sítio de onde partiam os cabos na margem em que eles estavam e encontrou-os solidamente amarrados às rochas, não longe do lugar onde tinham ancorado a sua barcaça, escondidas entre a mata da margem. Quando no outro lado acabaram de atar a segunda extremidade dos cabos nas árvores, a ponte de tábuas, ainda a escorrer, unia já as duas margens.

- Covan! - gritou Alexander. - Tens a certeza de que queres atravessar por aí?

O homem da outra margem riu-se.

- Faço-o há anos, rapaz. Se realmente és tu e não um fantasma, não te vais livrar de um bom puxão de orelhas.

Os rebeldes observaram, entre atónitos e receosos como Covan e os seus atravessavam a ponte com passo ágil. Eram quatro: três homens e um silfo. À sua frente ondulava o fogo-fátuo, iluminando o caminho. A visão apurada de Allegra detectou que tinha ficado mais gente do outro lado do rio, mas ninguém o mencionou.

Covan saltou para a margem com grande agilidade, apesar de aparentar ter idade suficiente para ser avô de Alexander. O seu rosto magro parecia cinzelado em pedra e o seu corpo, duro e musculoso, tinha sido treinado na academia há muito tempo.

Sob a luz do fogo-fátuo e das três luas, os dois estudaram-se mutuamente.

- Pelo amor de Irial - murmurou Covan. - Se não és o espectro de Alsan, pareces-te muito com ele. Há quinze anos que não sei nada de ti, mas não pareces ter envelhecido muito desde então. No entanto, estás muito diferente daquilo de que me lembrava.

- Aconteceram muitas coisas, velho amigo - sorriu Alexander, cansado. - Também eu fico contente por te ver com vida. Disseram-me que todos os cavaleiros de Nurgon haviam sido exterminados.

- Ziessel - cuspiu Covan. - Essa maldita shek encarregou-se de nos perseguir e matou muitos cavaleiros como se fossem animais. Mas nós sobrevivemos e escondemo-nos nos arredores da Fortaleza, como mendigos. Quando não há serpentes pelos arredores, atravessamos o rio, como fizemos agora, e regressamos ao nosso lar.

- Ou ao que resta dele - murmurou Alexander com pesar.

- Onde estiveste durante todo este tempo? - quis saber Covan, receoso de repente.

- Fui à procura da nossa última esperança. Para a trazer de volta. Covan abanou a cabeça.

- Não quis acreditar nos rumores. Pareceram-me demasiado fantásticos. Algo acerca de um dragão e um unicórnio que sobreviveram à maldita conjunção... Mas vimos esse dragão vermelho esta tarde...

- Não era um dragão autêntico - esclareceu Alexander. - Esse não.

- Um dragão artificial, eh? Ouvi falar deles. Não irão derrotar os sheks.

- Talvez não, mas irão ajudar. Existe um dragão verdadeiro, Covan, um autêntico. Eu mesmo o encontrei e trouxe de volta. E depressa se juntará a nós. Por isso voltámos; para fazer deste lugar a base da Resistência, o ponto a partir do qual reconquistaremos Idhún.

- Mesmo que isso seja verdade... o que pode fazer apenas um dragão contra Ashran e todos os seus sheks? Já viste o que pode fazer um único desses monstros.

- E tu viste que um só dos nossos dragões pode fazer-lhe frente interrompeu uma voz com orgulho.

Todos se voltaram para Kestra, que era quem tinha falado. Exasperado, Denyal ia mandá-la calar-se, mas uma exclamação sufocada de Covan interrompeu-o.

O velho ficara a olhar para a rapariga, pálido e transfigurado.

- Dois fantasmas num só dia - murmurou. - Miúda, miúda, onde te meteste?

Avançou para ela, mas Kestra retrocedeu e dirigiu-lhe um olhar de advertência.

- Não - disse. - Já não sou a mesma de antes. Não pronuncies o meu nome. Não lembres quem fui. Isso pertence ao passado.

Deu meia-volta e perdeu-se na escuridão. Houve um silêncio desconcertado.

- Covan - murmurou então Alexander. - Mestre-de-armas da Fortaleza. Esta rapariga esteve a teu cargo, não foi? Estudou em Nurgon.

O cavaleiro negou com a cabeça e suspirou pesaroso.

- Não, Alexander, enganas-te. Passaram quinze anos desde que a Fortaleza foi destruída. Ela é demasiado jovem para ter estudado em Nurgon. Mas a sua irmã mais velha não era. - Cravou o seu olhar nele. - Esteve na mesma altura que tu na academia, mas é provável que não te lembres dela, porque tinha acabado de entrar quando tu estavas quase a graduar-te. E talvez seja melhor que a tenhas esquecido. E que a irmã mais velha provavelmente está morta e em relação à mais nova... acho que tem razão: é melhor para ela que o seu nome e a sua história não voltem a ser lembrados. Como tudo o que existiu uma vez sobre o reino de Shia.

Alexander esperou que continuasse a falar, mas o velho mestre-de-armas encerrou-se num severo silêncio.

- Temos de nos apressar - interveio então Denyal. - Não nos resta muito tempo. Os sheks já sabem que estamos aqui e não tardarão a atacar.

- Precisamos que ampliem o escudo que protege o bosque - disse então Allegra, dirigindo-se ao silfo. - Sei que a Fortaleza é uma construção humana e que não está viva, mas peço-vos que abram uma excepção neste caso.

O silfo inclinou a cabeça.

- Podemos fazê-lo. Mas têm de dar algo em troca.

- Na luta contra Ashran, devemos todos aliar-nos! - quase gritou Denyal.

Allegra fê-lo calar-se com um gesto.

- É justo e é a maneira de actuar dos feéricos. - Voltou-se para Alexander, Covan e os outros cavaleiros. - Protegem a Fortaleza em troca de estender um pouco mais o bosque.

Eles agitaram-se, incomodados.

- Durante todo este tempo - disse Covan -, mantivemos uma relação estreita com os feéricos da orla do bosque. Eles acolheram-nos e nós colaborámos com a sua luta. Cedemos os terrenos do outro lado do rio para que Awa fosse crescendo. Mas não podemos dar-lhes a Fortaleza.

- A Fortaleza não - precisou Allegra. - Só o terreno em volta. A aldeia de Nurgon não voltará a ser habitada por humanos; deixem que o manto verde de Wina cubra as ruínas. Deixem que o bosque cresça nas antigas terras de lavoura. Respeitarão a vossa Fortaleza e irão protegê-la com o escudo feérico, porque será, de alguma maneira, parte do bosque.

Os cavaleiros ainda duvidavam. Alexander foi o primeiro a ceder.

- O escudo feérico foi a única coisa que resistiu a Ashran nestes quinze anos - reconheceu. - Nem sequer os poderosos feiticeiros da Ordem Mágica foram capazes de defender o seu último bastião. A Torre de Kazlunn caiu, mas o bosque de Awa continua livre.

Covan suspirou e assentiu.

- Que assim seja - disse. - Espero que saibas o que estás a fazer.

- Sabemos o que estamos a fazer - sorriu Alexander. - Estão a ouvir isto?

Fizeram silêncio e ouviram então o chapinhar dos remos de uma embarcação que subia o rio.

- Dragões! - chamou uma voz na noite. Denyal sorriu. Era a voz de Tanawe.

- Chegaram os reforços - disse somente.

- Podias ter sido minha. Só minha. Para sempre - sussurrou uma voz na sua mente.

Victoria abriu os olhos, pestanejando. A voz soara muito distante e, apesar de ter esperado durante um momento, não voltou a escutá-la, pelo que supôs que teria sido apenas parte de um sonho. Respirou fundo. Sentia a energia fluir dentro de si, enchendo-a de novo, retemperando-a e reconfortando-a. Estava viva.

Semicerrou as pálpebras para proteger os olhos dos raios solares que se filtravam por entre as folhas das árvores. O que acontecera?

As lembranças vieram-lhe então à mente...

"Não tenciono salvar a vida a um dragão..."

"Não vou sem Jack..."

"Que assim seja..."

"Se ficares aqui, morrerás..."

"Fico contente por voltar a ver-te..."

"Terás de me levar à força..."

"Por favor..."

Ergueu-se repentinamente, com o coração a bater com força. Jack, tinha de ir à procura de Jack, não importava onde estivesse, tinha de regressar...

Um movimento ao seu lado chamou-lhe a atenção. Alguém jazia junto dela, debaixo da mesma árvore. O coração parou de bater por um instante quando o reconheceu.

Era Jack.

Estava num estado lastimável, sujo, ferido, inconsciente e muito pálido, mas vivo. Ambos jaziam sobre a relva, um ao lado do outro. com os olhos cheios de lágrimas, Victoria abraçou-se a ele e estreitou-o com força, cobrindo-o de beijos e carícias. Ainda não se sentia totalmente recuperada, mas não perdeu tempo e iniciou o ciclo de cura para aliviar Jack. Só quando lhe pareceu que ele já estava melhor, que as feridas mais graves tinham sarado, que o veneno szish tinha desaparecido por completo do seu corpo, se deteve a pensar no que acontecera e no que isso significava.

Christian também salvara Jack, apesar de tudo. Estremeceu só de pensar nisso.

Percebera-o mal o olhara. O exílio de Christian em Nanhai tinha dado os seus frutos, e o jovem tinha conseguido equilibrar a sua parte humana e sua parte shek. Mas agora voltara a reprimir o seu instinto para ajudar Jack... e Victoria perguntou-se quanto mal teria aquele gesto feito ao shek que habitava no interior de Christian.

Levantou-se, disposta a descobri-lo. Assegurou-se de que Jack estava bem, dormindo um sono profundo e reparador, e afastou-se à procura de Christian. Sabia que não andava longe.

Para lá das árvores corria o leito de um rio. Victoria esqueceu-se por um momento de Jack e de Christian e olhou para a água com avidez. Correu para a margem e subiu o curso do rio durante algum tempo até que encontrou um charco calmo e delicioso. Entrou na água, sem sequer tirar as botas; bebeu durante bastante tempo e lavou a cara, desfrutando da frescura da água.

Percebeu então Christian atrás de si, embora ele não tivesse feito nenhum ruído, voltou-se para olhar para ele. O shek observava-a da margem, sério.

O coração de Victoria deu um salto de alegria e começou a bater com força. Sorrindo, dirigiu-se a ele, feliz de o ver e agradecida pelo que tinha feito por eles. Mas Christian retrocedeu e olhou-a com frieza.

- Tresandas a dragão - limitou-se a dizer, como explicação.

Victoria ficou calada. Olhou-o desolada. Christian sabia que a ferira, mas não conseguira evitá-lo. Virou-lhe as costas para voltar a embrenhar-se no bosque.

Então ouviu um chapinhar atrás de si e voltou-se novamente. Victoria tinha saltado para a parte mais profunda da água. Inquieto, correu para a margem; ela assomou a cabeça fora da água e nadou até ele. Christian estendeu-lhe a mão para a ajudar a sair do rio, mas Victoria recusou a sua ajuda e trepou sozinha até à margem. Ergueu-se diante dele, a pingar da cabeça aos pés. Dirigiu-lhe um olhar intenso.

- E agora? - perguntou. - Já tirei o cheiro do dragão? Christian olhou para ela. O cabelo caía-lhe pelas costas como uma

cascata, escorrendo água para o chão. A blusa molhada colava-se ao seu corpo. O jovem perguntou-se se Victoria teria consciência da situação. Compreendeu de imediato que não e sorriu para si mesmo. Os grandes olhos- de Victoria fitavam-no, suplicantes, esperando a sua aprovação e autorização para se aproximar dele, embora fossem apenas mais uns passos.

Christian puxou-a para si, sem uma palavra, e beijou-a.

Só então se apercebeu do quanto sentira a sua falta.

No início, o gesto apanhou Victoria de surpresa; mas, de seguida, fechou os olhos e abraçou-se a ele, saboreando o momento.

- Christian - sussurrou, quando ele se afastou para a olhar. Quis dizer-lhe que tivera muitas saudades dele, que se sentia feliz por voltar a vê-lo e aliviada por comprovar que estava bem; quis contar-lhe muitas coisas, mas não encontrou palavras. Tentou novamente.

- Christian, eu...

- Ssssh, cala-te - disse ele em voz baixa. - Não fales.

Victoria obedeceu, compreendendo que as palavras estragariam o momento. Enterrou o rosto no peito de Christian, sentiu os braços dele a rodeá-la em silêncio e os seus dedos a brincar com o cabelo molhado. Fechou os olhos e deixou que a sua suave frieza lhe refrescasse a alma e a enchesse por dentro. "Senti tanto a tua falta", pensou.

Notou que Christian respirava profundamente. Foi a sua única reacção, mas a rapariga sabia que, por dentro, o shek estava a sentir o mesmo que ela. E que o que ambos sentiam era algo muito, muito intenso. Engoliu em seco e perguntou a si própria como tinha aguentado tanto tempo longe de Christian.

- Muito obrigada - sussurrou então.

Christian ficou tenso. Victoria sabia que deitara o momento a perder, lembrando-lhe Jack, mas precisava de o dizer.

- Não o fiz por ele. Sabes que o quero morto.

- Eu sei - respondeu ela com suavidade. - Por isso é tão importante para mim o que fizeste hoje. Sei o muito que te custa.

Christian dirigiu-lhe um olhar frio.

- Não - disse. - Não creio que o saibas.

Virou-lhe as costas e afastou-se dela; depressa desapareceu entre as árvores.

Victoria não o seguiu, nem procurou retê-lo. Tiritou, subitamente consciente de que estava ensopada, e voltou para o lugar onde deixara Jack.

Dedicou-se a cuidar dele, a limpar o sangue seco da sua pele, a verter água sobre os seus lábios, a arrefecer-lhe a testa e as têmporas, com infinito carinho. Sentia-se feliz porque estavam de novo os três juntos e descobriu que cada vez lhe era mais simples amar Jack e Christian, os dois ao mesmo tempo. Mas não era tão ingénua que não percebesse que, agora que Christian parecia ter recuperado a sua parte shek, o seu ódio por Jack se tinha renovado igualmente. Pensou, inquieta, que também Jack era agora mais dragão do que nunca.

Percebeu então que, se Christian ficasse com eles, os seguintes iriam ser muito, muito difíceis.

Jack acordou ao fim de algum tempo. Estava aturdido, e Victoria não quis falar-lhe do que tinha acontecido para não o confundir mais. Só lhe disse que estavam a salvo, agradeceu-lhe por ter enfrentado o swanit para a salvar, mas também o repreendeu por ter posto a sua vida em perigo daquela maneira. Jack deixou-se mimar, feliz por a ter de novo junto de si. Mas, à medida que foi ficando mais consciente, não tardou a perguntar como tinham saído do deserto.

Victoria desviou o olhar.

- Fomos resgatados.

- Por quem?

Naquele momento, a sombra de Christian surgiu próxima deles, de entre as árvores. Jack fungou e procurou sentar-se, mas Victoria reteve-o junto de si.

O shek dirigiu-lhe um olhar breve e atirou algo para o colo de Victoria.

- Descansem - limitou-se a dizer. - Partiremos amanhã ao amanhecer.

- O quê? - conseguiu dizer Jack, receoso. - Partir? Para onde? Não penso...

Mas Christian já se tinha ido embora.

Victoria examinou o que o shek lhe tinha dado. Era uma bolsa que continha víveres e um odre com água. Havia o suficiente para Jack e para ela.

- Faz o favor de ser um pouco mais educado, Jack - disse com suavidade. - Christian salvou-nos a vida aos dois. Se não fosse por ele, estaríamos mortos.

Jack fechou-se num silêncio de aborrecimento. No fundo, Victoria compreendia-o. Tinham passado muitos dias juntos, partilhando tudo, e o rapaz tivera a sua amiga só para ele. Como se não bastasse, acabara de arriscar a vida por ela, como um autêntico herói, e Victoria não o culpava por esperar em troca algo que não fosse ter de suportar a presença do seu inimigo, ter de assumir, de novo, a relação que existia entre Christian e ela.

Victoria perguntou-se como resolveriam aquele quebra-cabeças.

Tempos antes tinha escolhido partir com Jack, mas agora ela e Christian tinham-se encontrado de novo e a rapariga soubera, desde o preciso momento em que o olhara nos olhos no deserto, que não era tão simples romper o laço que os unia a ambos, que, por muitas voltas que dessem, por muitas vezes que se separassem, tornariam sempre a encontrar-se, uma vez e outra...

Brajdu inclinou-se a tremer diante de Sussh, o shek. Nem sequer um homem poderoso como ele ousava olhar a grande serpente alada nos olhos.

Sussh era um dos sheks mais velhos que tinham chegado a Idhún. Tinha lutado contra os dragões no passado. No dia da conjunção astral, tinha sido o primeiro a seguir Zeshak através da Porta interdimensional que conduzia a Idhún desde o mundo escuro das serpentes, uma Porta que se tinha aberto de novo graças ao poder dos seis astros. Tivera tanta pressa para atravessar o umbral porque desejava encontrar algum dragão com vida para o matar. E tivera a satisfação de lutar contra um, uma fêmea verde bastante jovem. Mas a luta não tivera emoção, dado que ela estava já quase morta. O prazer que Sussh sentiu ao matá-la fora apenas momentâneo. Ao fim e ao cabo, compreendeu, aquela fêmea de dragão não teria sobrevivido muito mais tempo ao poder da conjunção astral, de modo que a intervenção do shek apenas tinha acelerado as coisas.

Agora havia um dragão jovem, forte e perfeitamente saudável a deambular livremente por Kash-Tar. Escondia-se no interior de um corpo humano, por isso era difícil de localizar. Mas era um dragão, não havia dúvida. Os sheks que vigiavam a fronteira de Awinor tinham-no visto cair ao mar de Raden dias antes. Sussh sabia que, a partir do momento em que aquele dragão tinha caído à água, estava no seu território e, portanto, à sua responsabilidade.

Os seus szish tinham-no encontrado moribundo em pleno deserto, junto ao cadáver de um swanit. O shek semicerrou os olhos ao recordá-lo. Nada menos que um swanit.

Aquele maldito dragão era um rival a ter em conta, não havia dúvida.

Mas algo salvara aquele dragão e o unicórnio que o acompanhava. Sussh recebera os confusos relatórios telepáticos dos homens-serpentes, os últimos antes de uma sombra veloz e letal se abater sobre eles. A Sussh tinha-lhe parecido um shek.

Não conseguira contactar mentalmente com aquele shek, nem com ninguém da patrulha depois daquilo. Deslocara-se até ao local para averiguar o que tinha sucedido. Tinha visto o corpo do enorme insecto e os cadáveres dos homens-serpentes.

Reconhecera neles a marca de Haiass.

Precisamente nesse momento, chegara Brajdu e a sua gente, sem dúvida com a intenção de ficar com a valiosa carapaça do swanit. As notícias corriam depressa no deserto, mas Sussh sabia que nem mesmo Brajdu poderia ter-se inteirado tão depressa... a não ser que o soubesse de antemão.

Tinha informado Zeshak de que o traidor Kirtash se interpusera no seu caminho, salvando a vida do dragão. Aquilo era inconcebível e qualquer shek o acharia repugnante. Mas Zeshak não lhe dera importância.

Sussh suspeitava que o Necromante tinha algo a ver com isso, que continuava, por alguma razão que desconhecia, a proteger o seu filho. Podia entendê-lo, afinal de contas não era mais do que um humano fraco, por muito poder que a magia lhe tivesse conferido. O que não entendia... e jamais chegaria a entender... era que o grande Zeshak, rei dos sheks, seguisse o jogo dele, submetendo-se à sua vontade.

Agora descarregava o seu mau humor em Brajdu. Ao sondar a sua mente, descobrira que o grande canalha mantivera a rapariga-unicórnio prisioneira em vez de a entregar aos sheks; que se tinha encontrado com o dragão, aquele maldito dragão, apesar de ter tido a oportunidade de o capturar também.

- Peço-te perdão, meu senhor - balbuciou o humano. - Sou apenas um homem fraco, dominado pela cobiça... mas ainda posso ser-te útil...

- Tiveste uma oportunidade de me ser muito útil, Brajdu - respondeu o shek. - E deixaste-a escapar.

- Posso procurar a rapariga para ti! - exclamou Brajdu, desesperado. - A semi-yan que estava com o dragão, ela...

Sussh não estava a ouvi-lo. Acabara de receber uma mensagem na sua mente, uma mensagem de Zeshak, o seu rei. Semicerrou os olhos, ignorando o humano, e concentrou-se na mensagem telepática que o senhor das serpentes lhe enviava.

Eram instruções. O dragão e o unicórnio dirigiam-se para norte, para Vaisel, e o traidor acompanhava-os. "Bem", pensou Sussh, "então será fácil alcançá-los e acabar com eles." Mas, para sua surpresa, Zeshak proibiu-o.

- Não podes aproximar-te deles - disse. - A profecia protege-os... aos três, e é essa a razão pela qual ninguém conseguiu matá-los até agora. Mas existe uma maneira...

Sussh prestou atenção. O que Zeshak propunha era interessante e era muito possível que desse resultado. Mas isso significava que ele não teria o prazer de matar o último dragão pessoalmente.

Quando Zeshak se retirou da sua mente, o governador de Kash-Tar voltou à realidade. Aquelas notícias tinham-no deixado de muito mau humor.

Ouviu ainda a voz de Brajdu:

- (...) todos os meus homens a esquadrinhar o deserto à procura da semi-yan...

Estas foram as últimas palavras que Brajdu pronunciou. O shek, irritado pelo novo curso dos acontecimentos, descarregou sobre ele a sua poderosa cauda, esmagando o humano como se fosse um insecto irritante.

Shail e Zaisei tinham conseguido um par de torkas nos limites do deserto e agora contornavam Kash-Tar em direcção a Kosh.

Ao segundo dia de caminhada, chegaram a um oásis e ali se encontraram com uma caravana que descansava debaixo das árvores antes de prosseguir viagem. Os dois percorreram as bancas da feira rudimentar instalada junto à lagoa, com intenção de comprar alguns víveres. Enquanto Zaisei examinava os géneros exibidos por um vendedor de fruta, Shail inspeccionou o lugar, para se assegurar de que não havia por perto nenhum szish que pudesse reconhecê-los.

Junto deles, uma mulher yan explicava algo em rápidos sussurros a um grupo de pessoas que se tinham congregado em volta dela. Shail não estava a prestar atenção à conversa, mas a dada altura ela pronunciou a palavra "unicórnio" e o jovem voltou-se para o grupo como se movido por uma mola.

- O que disseste?

Eles olharam-no com desconfiança. Shail aproximou-se deles, apoiado no seu bordão, e falou com suavidade:

- Os unicórnios extinguiram-se há muito, não é verdade? Mas contam-se muitas lendas sobre eles. Estavas a contar um conto? Gosto de histórias. Importam-se que eu ouça?

- Esumfeiticeiro - disse a yan. Shail assentiu.

- Vi um unicórnio quando era criança - respondeu em voz baixa. O teu conto fala de unicórnios?

- Faladeumadonzela-unicórnio - disse a mulher yan, cravando nele os seus olhos de fogo.

-Mastambémfaladeumamulherdodesertoaquementregouoseudom.

O coração de Shail deu um salto.

- O que diz a história acerca dessa mulher do deserto?

-Quefoiaprimeiraachegaràluzdepoisdemuitosanosdeescuridão. QueempreendeuumaviagemportodooKash-Tarfalandoaosyandaluzdounicórnio.Queanunciavaqueamagiavoltariaaomundo.Equenós,osyan,amados"osúltimos",fomososprimeirosdestavez,porqueadonzela-unicórnioentregouamagiaaumamulheremcujasveiascorrresanguedanossaestirpe.

Shail teve de se esforçar muito para entender tudo o que ela estava a dizer, mas captou o essencial: que Victoria tinha começado a consagrar feiticeiros e que o primeiro tinha sido uma mulher yan.

- E o que aconteceu àquela que viu a luz na escuridão? Ela dirigiu-lhe um olhar desconfiado e replicou:

- Nãoconheçoofínaldahistória.

Shail abriu a boca para insistir, mas compreendeu imediatamente que não lhe iria responder, de modo que se despediu com uma inclinação de cabeça e se juntou de novo a Zaisei, que conversava com o vendedor de fruta.

- Shail - disse ela quando o feiticeiro se colocou ao seu lado -, este homem diz que, se não se atrasar, ao anoitecer chegará ao oásis a caravana que cobre a rota de Lumbak a Kosh. Se nos juntarmos a ela, poderemos atravessar o deserto de forma segura e... - interrompeu-se ao ver a expressão do amigo. - Passa-se alguma coisa?

Shail levou-a para o lado para lhe contar o que descobrira. Estava a acabar o seu relato quando sentiu que lhe puxavam a manga e voltou-se. Era a mulher yan.

- EstáemKosh - sussurrou em voz baixa.

- O quê?

- EstáemKosh - repetiu ela. - Aquelaqueviualuznaescuridão.Asserpentesprocuram-naporqueanunciaachegadadodragãoedounicórnioquesalvarãoIdhún.TalvezaafaçamprisioneiramasassuaspalavrasjácorrempelodesertoeasuamensagemdepressaseráconhecidaemtodooKash-Tar.

- Como se chama? - sussurrou o feiticeiro com urgência.

- Chamam-lheKimara,asemi-yan.

Não disse mais. Afastou-se do casal com a rapidez própria dos yan, evitando olhar para eles, como se tivesse medo do que dissera.

De início, Shail não disse nada. Depois ergueu a cabeça para olhar para Zaisei.

- Disseste uma caravana em direcção a Kosh?

Os rebeldes não perderam tempo. Enquanto os feéricos expandiam o bosque até aos arredores da Fortaleza e teciam sobre ela o seu escudo protector, Allegra e Qaydar encarregaram-se de reforçar a velha muralha com a sua magia.

Rown e Tanawe já tinham começado a trabalhar em mais dragões artificiais. Tinham trazido três, a contar com Fagnor, que se apressaram a reparar logo que chegaram a Nurgon. Mas sabiam que não seria suficiente se os sheks contra-atacassem. As caves da Fortaleza, relativamente intactas, acabaram por ser um lugar perfeito para instalar a oficina.

Entretanto, Alexander e Denyal organizavam as defesas do castelo. com a ajuda de todos, levantou-se uma nova muralha, um tanto improvisada e rudimentar, mas que por enquanto serviria. Repartiram as armas, colocaram vigias e discutiram diferentes estratégias de defesa.

Quando as primeiras tropas chegaram, os rebeldes estavam prontos para as receber.

Faziam parte do exército do rei Kevanion de Dingra, mas todos sabiam que na realidade fora Ziessel quem as enviara.

Não obstante, ela não as dirigia. Tinha enviado outro shek no seu lugar, um shek que estava no comando de perto de uma centena de humanos e de szish. Talvez pensassem que aquilo bastava para reconquistar as ruínas de Nurgon e esmagar os rebeldes, mas não contaram com os feéricos e o seu escudo. As árvores de Awa, abençoadas pelas sacerdotisas de Wina e regadas com o poder feérico, cresciam depressa. E as tropas de Ziessel depararam-se com uma barreira vegetal que se erguia entre elas e o que restava da Fortaleza.

Não conseguiram passar.

Alexander e os seus contra-atacaram. Os três dragões artificiais atacaram o shek a partir dos céus, os arqueiros e besteiros dispararam das muralhas e dos ramos das árvores, e Allegra e o Arquifeiticeiro contribuíram com a sua magia mais mortífera.

Os cavaleiros, por sua vez, atacaram todos juntos.

Da poderosa Ordem de Nurgon já só restavam cinco representantes: Covan, Alexander e outros três cavaleiros, dois homens e uma mulher. E nem sequer tinham cavalos.

Mas lutaram a pé, cobrindo-se uns a outros, e poucos dos guerreiros de Dingra os igualavam no manejo da espada. Capitaneavam um grupo de duas dúzias de voluntários, que não sabiam lutar tão bem como eles, mas que estavam dispostos a fazer o que fosse preciso para defender o bastião rebelde.

À frente de todos eles estava Alexander. A luta tinha libertado a sua fúria animal, que alterara os seus traços, o que foi uma surpresa desagradável para muitos dos seus aliados. Mas lutava com ferocidade, abrindo uma brecha entre as linhas inimigas, e a maioria seguiu-o para o coração da batalha.

De qualquer forma, sabiam que sozinhos não poderiam vencer os seus inimigos. A sua maior esperança eram os dragões.

No céu, os três dragões artificiais concentraram-se em atacar o único shek do exército inimigo. Os soldados de ambos os lados procuravam não prestar atenção à batalha que se desenrolava por cima das suas cabeças, mas era difícil, dado que a maioria deles nunca vira nada semelhante. Os dragões cercavam o shek, deixando-o louco de ódio, vomitavam as suas labaredas sobre ele, toldando os seus sentidos, rasgavam as suas asas com unhas, cornos e dentes...

Quando, finalmente, o shek se precipitou contra o chão, morto, deixando assim os soldados de Dingra sem o seu líder, foi tudo muito mais simples. Os rebeldes tinham perdido um dos dragões, mas os outros dois começaram então a fustigar as tropas de terra inimigas, planando sobre elas, lançando o seu fogo e mergulhando-as no mais absoluto terror.

Abrigados pela muralha, o escudo e as árvores, e protegidos pelos dois dragões que patrulhavam o céu, os rebeldes lutaram para defender Nurgon, a sua última esperança de estabelecer uma base que enfrentasse Ashran e os seus.

Ao anoitecer, o que restava das tropas enviadas por Ziessel retirou-se para Aren, a capital do reino.

Os rebeldes tinham vencido a primeira batalha. Mas sabiam muito bem que não seria a última.

Durante os dias seguintes, Jack, Christian e Victoria avançaram para norte, seguindo o curso do rio Yul, que separava Drackwen, o país do Oeste, do território central do continente. Jack supusera que Christian os guiava de volta a Vanissar, onde se juntariam ao resto da Resistência, por isso não se tinha pronunciado a esse respeito; afinal de contas, eram também esses os seus planos e, de qualquer maneira, não lhe apetecia nada trocar uma só palavra com Christian. A simples presença do shek irritava-o.

Na primeira noite, perguntou-se o que teria acontecido à camaradagem que ambos haviam partilhado no bosque de Awa, naquela conversa que mantiveram antes de se separar. O rapaz chegara a pensar que eram amigos... tanto quanto podiam ser, dadas as circunstâncias. Contudo, desde que Christian voltara, Jack tinha de reprimir constantemente o impulso de desembainhar Domivat e lançar-se contra ele, ou de se transformar em dragão e desfazê-lo com as suas garras (estava muito orgulhoso das suas garras; era algo que os sheks não tinham, apesar de serem parecidos com os dragões noutros aspectos). O que tinha mudado naquele tempo?

As coisas não melhoraram nos dias seguintes. Jack e Christian não se falavam e, se o faziam, era apenas o imprescindível, sempre com palavras secas e cortantes; tinham deixado de se chamar pelos nomes. Para Christian, Jack era "o dragão", e Jack não conseguia esquecer que o seu companheiro de viagem não era mais do que "a serpente".

Victoria acabou por se fartar daquela situação. Após compreender que não conseguiria chamá-los à razão, comportava-se agora com eles de forma mais fria do que o costume. Uma vez mais, acabaram-se os beijos, os mimos e as carícias para ambos. Acabou-se o dormir abraçada a Jack, acabaram-se os momentos a sós com Christian. Este não parecia importar-se; continuava a ser atencioso com ela, continuava a preocupar-se com a sua segurança, mas não fez menção, em nenhum momento, ao sentimento que os unia nem ao afastamento da rapariga. Para Jack era mais difícil aceitar aquela nova situação, embora soubesse bem que, com a sua atitude, Victoria estava a castigá-los aos dois por serem tão pouco razoáveis.

A viagem prolongou-se por vários dias. Nas duas margens do rio crescia um bosque que os ocultava do olhar dos sheks que pudessem sobrevoar a zona. Por via das dúvidas, Victoria insistiu que continuassem a usar a capa de banalidade. Tinha perdido a sua capa ao cair ao mar dias antes, mas Jack ainda tinha a dele, dado que, durante o voo, todas as suas coisas tinham sido guardadas na bolsa que Kimara levava. Houve uma breve discussão acerca de quem devia proteger-se debaixo da capa. Jack insistiu em colocá-la em Victoria.

- Não, dragão, és tu quem deve levá-la - interveio Christian. - És mais fácil de detectar do que um unicórnio. Além disso, se a levares posta, és menos desagradável para mim.

Jack levou a mão ao punho da sua espada, e Christian fez também um gesto parecido.

-Já chega, os dois! - cortou Victoria, exasperada. -Jack, estou de acordo com Christian, creio que és tu quem deve utilizá-la.

Jack acabou por ceder de má vontade.

Não se tratava de uma terra desabitada. Às vezes encontravam pequenos povoados à beira do rio. Embora normalmente os evitassem, para o caso de estarem sob vigilância szish, Victoria podia ver de longe que as gentes que viviam neles eram humanos e celestes na sua maioria e que também, por vezes, havia um ou outro semifeérico.

Uma tarde, aconteceu algo que tornou ainda mais profunda a antipatia que Jack e Christian sentiam.

Atravessavam um terreno algo mais acidentado. O rio tinha desníveis, rápidos e pequenas cascatas, e os três jovens trepavam pelas rochas, subindo o seu curso. Num dado momento, Christian voltou-se para estender a mão a Victoria com a finalidade de a ajudar a subir e ela aceitou de maneira mecânica.

Os dois estremeceram e entreolharam-se.

Há dias que não se tocavam. O contacto despertou sensações intensas no seu interior. Ficaram imóveis por um momento, perdidos nos olhos um do outro.

- Sobem ou quê? - chamou-os Jack de cima, gritando para se fazer ouvir sobre o barulho da água.

Christian e Victoria voltaram à realidade. Apressaram-se a subir. Victoria olhou para o shek de soslaio, mas ele continuou tão impassível como sempre.

Jack detivera-se no alto de uma rocha e olhava em volta, sombrio.

- O que se passa? - perguntou Christian.

- Tresanda a serpente por aqui.

-Jack, não comeces outra vez... - protestou Victoria, mas Christian interrompeu-a com um gesto.

- Não, espera. Tem razão.

Antes de conseguirem impedi-lo, Jack saltou da rocha e correu para o rio, enquanto desembainhava Domivat com um entusiasmo sinistro. A espada de fogo flamejou diante de si.

Christian e Victoria apressaram-se a segui-lo. Guiando-se pelo seu instinto, Jack foi directo a um pequeno espaço vazio entre as rochas. Christian franziu o sobrolho.

- Aí não cabe um shek! - exclamou Victoria, surpreendida.

Mas ouviu-se um cicio e Jack, sem hesitar, ergueu a espada sobre a serpente.

A mão de Christian impediu o seu braço, com autoridade.

- Larga-me! - protestou o rapaz. - É um shek!

- Olha outra vez - disse Christian com calma.

Jack sacudiu a mão do companheiro, exasperado, e olhou com mais atenção para a criatura que se escondia entre as pedras.

Era uma serpente, sinuosa como um ribeiro, de escamas prateadas como raios de Érea, não maior do que uma píton terrestre. Do seu dorso nasciam duas pequenas asas membranosas.

Sibilava, furiosa, enquanto as agitava, esforçando-se por se erguer no ar, sem conseguir.

- É um shek - concluiu Jack, levantando novamente a espada.

- É um bebé! - interveio Victoria. - Jack, é muito pequeno, não pode fazer-nos mal.

- De certeza que estes bichos são venenosos desde que saem do ovo. Não é mais do que um projecto de serpente gigante assassina...

Não tinha acabado de falar quando a cria se atirou a ele e fincou as presas no seu braço. Jack sacudiu-a de cima de si, com um grito, e desferiu a sua espada sobre ela, furioso.

O fio de Domivat chocou contra a gélida Haiass.

Jack retrocedeu um passo, tremendo de raiva. Christian colocara-se entre ele e o pequeno shek, e parecia disposto a defendê-lo. A serpente tinha-se enroscado em volta da sua perna e dali, sentindo-se mais segura, mostrava as suas presas, ciciando ameaçadoramente.

- Queres luta? - perguntou Jack, sombrio. - Muito bem; por mim, encantado.

- Não sejas estúpido - respondeu Christian com calma. - É apenas uma cria. Além disso, convém que Victoría te cure ou o braço vai inchar e em breve não poderás usá-lo.

- Mas mordeu-me!

- Assustaste-o! O que esperavas que fizesse se o ameaçavas com essa espada?

Jack, a tremer de raiva, dominou-se a custo. Embainhou a espada e afastou-se de Christian e do pequeno shek, para se sentar sobre uma rocha. Dali, dirigiu-lhes um olhar assassino.

Sentiu que Victoria se colocava atrás de si, sentiu as mãos dela sobre os seus ombros e como a energia fluía através do seu corpo. Fechou os olhos para saborear o momento. Uma parte de si até agradeceu à cria de shek por aquela mordidela oportuna, que lhe permitia agora partilhar um momento íntimo com Victoria. Ser curado por ela era como receber uma doce carícia.

Além disso, a cura veio acompanhada por uma carícia de verdade. Quando Victoria terminou o seu trabalho, as suas mãos roçaram, ao retirar-se, o pescoço de Jack com carinho.

O rapaz sorriu. Sentia-se muito melhor.

Deu uma olhadela a Christian e deparou-se com uma cena curiosa.

O jovem tinha-se sentado junto do rio. A pequena serpente que salvara tinha trepado pelo seu braço e agora erguia-se diante dele, olhando-o fixamente nos olhos. Jack apercebeu-se de que ambos estavam a partilhar algum tipo de informação telepática. Isso inquietou-o.

- Tens a certeza de que é prudente olhar essa víbora nos olhos, shek? - perguntou-lhe quando romperam o contacto visual.

- É demasiado pequeno para estar unido à rede telepática dos sheks adultos - respondeu Christian. - Só queria saber como chegou até aqui.

- E? - perguntou Victoria.

- Perdeu-se. O seu ninho está muito longe daqui. Está sozinho e confuso...

- Não me digas que queres adoptá-lo - soltou Jack. Christian susteve o seu olhar, mas não disse nada.

- Por favor, é uma serpente!

Christian levantou-se e retomou a marcha, sem uma palavra. A cria de shek descansava sobre os seus ombros e tinha enrolado a cauda em volta do seu braço esquerdo. Parecia sentir-se cómoda e segura ali.

Jack resmungou baixinho. Victoria riu-se.

- É só um bebé.

- E se a mãe voltar?

- Não entendes, dragão - chegou-lhe a voz de Christian, um pouco mais adiante. - A mãe não voltará nunca mais.

Shail e Zaisei encontraram Kosh mergulhada no caos. Parecia que um dos chefes locais, um tal Brajdu, fora executado pelo shek que governava a região, e tudo o que construíra naqueles anos estava a vir abaixo. Os que haviam trabalhado para ele assistiam, com confusão crescente, às lutas entre os que tinham sido os lugares-tenentes de Brajdu e que agora disputavam o seu posto.

Entretanto, os szish estavam a trabalhar arduamente para pôr ordem na cidade. Havia rumores de que os aspirantes a herdar o pequeno império de Brajdu estavam a lutar em vão, porque seria Sussh, o shek, quem acabaria por assumir o comando de forma definitiva.

Kosh nunca tinha sido uma cidade especialmente acolhedora, mas naquele momento era mais hostil do que de costume. Dizia-se também que a aparente intenção pacificadora dos soldados szish que percorriam a cidade encobria uma busca, a busca de A Que Viu a Luz na Escuridão.

Naqueles dias, Shail tinha assistido, com surpresa, ao nascimento de uma lenda entre os yan. Os rumores acerca da mulher mestiça a quem tinha sido entregue a magia conheciam-se já por toda a Kosh. Ninguém se atrevia a contar a história em voz alta, por medo dos szish; mas, ainda assim, relatava-se em rápidos murmúrios pelas esquinas, no mercado ou na taberna, quando não havia nenhuma serpente por perto.

Cada vez se conheciam mais pormenores. Qualquer um teria pensado que eram devidos à imaginação dos que relatavam aqueles feitos, que cada narrador acrescentava um elemento da sua autoria; mas Shail sabia que todas as coisas que contavam eram verídicas: a descrição da rapariga-unicórnio e do báculo que levava, assim como do jovem dragão que a acompanhava... eram demasiado precisas e ajustavam-se tanto à realidade que Shail entendeu que era certo que a mulher mestiça, a nova feiticeira consagrada por Victoria, permanecia na cidade e, apesar de as serpentes estarem à sua procura, continuava a relatar a sua história a quem quisesse ouvi-la.

Era uma história cheia de esperança e de fé no futuro, algo que os yan nunca tiveram. Acostumados desde tempos imemoriais a habitar no tórrido deserto que era o seu lar, os yan só se preocupavam com o presente e desconfiavam de tudo o que o futuro pudesse trazer. Mas a mensagem de A Que Viu a Luz na Escuridão dizia claramente que a magia tinha voltado ao mundo, que um unicórnio continuava vivo, que a profecia podia cumprir-se... e que Kash-Tar tinha sido o lugar que os eleitos haviam escolhido para manifestar o seu poder pela primeira vez.

Shail não queria passar a noite em Kosh, visto que até a pousada mais honrada da cidade era pouco recomendável, e teria gostado de oferecer a Zaisei um lugar melhor onde pernoitar. Mas ela insistiu que era importante que permanecessem em Kosh até poderem encontrar-se com Kimara, a semi-yan, a quem as gentes do deserto chamavam A Que Viu a Luz na Escuridão - a primeira feiticeira em Idhún depois de quinze anos.

Demoraram algum tempo a descobrir que Kimara recebia, de quando em quando, as pessoas que quisessem ouvir a história dos seus lábios. E custou-lhes ainda mais que alguém lhes revelasse a hora e o local da reunião seguinte. Foi uma anciã semifeiticeira humana quem acedeu a dar-lhes aquela informação; e fê-lo porque sabia que Shail era um feiticeiro e, portanto, eles os dois partilhavam com Kimara o segredo que só conheciam aqueles que, alguma vez na sua vida, tinham visto um unicórnio.

Pelo que tinham ouvido, cada reunião celebrava-se num sítio diferente. Daquela vez, o encontro teve lugar nas ruínas de um templo antiquíssimo, dedicado ao deus Aldun, nos arredores da cidade.

Shail surpreendeu-se com a quantidade de gente que apareceu naquela noite para ouvir Kimara. Todas aquelas pessoas estavam a arriscar a vida naquela reunião, apenas para que a mulher mestiça, A Que Viu a Luz na Escuridão, fizesse renascer a chama da esperança nos seus corações.

Shail e Zaisei sentaram-se num canto, um junto ao outro, e ouviram a história que Kimara fora contar àquele lugar. Cheia de entusiasmo, a jovem dos olhos de fogo contou uma vez mais como tinha conhecido Jack e Victoria num acampamento limyati; como os acompanhara através do deserto, evitando as serpentes, em direcção a Awinor. Relatou todos os pormenores da viagem, mas também falou do carácter e da determinação do rapaz dragão, da serenidade e da valentia da rapariga-unicórnio, e do intenso amor que os unia a ambos.

Shail e Zaisei entreolharam-se e sorriram. A sacerdotisa não escapou o brilho de nostalgia que iluminava os olhos de Kimara quando falava de Jack. E ela, que podia ler com facilidade os sentimentos das pessoas, soube que Kimara tinha o coração partido, mas que não guardava rancor a Jack, que a tinha tratado sempre com carinho e respeito; e tão-pouco a Victoria, que, em vez de ter levado o jovem para longe dela, tinha-lhe entregado a coisa mais valiosa que alguém, naqueles tempos, podia possuir.

A mão de Shail procurou a de Zaisei durante a narrativa e estreitou-a com força. A jovem celeste sorriu com doçura.

- Jack pediu-me que fosse ao Norte, a Nandelt - concluiu Kimara -, para dizer a toda a gente que o dragão e o unicórnio regressaram e que em breve enfrentarão Ashran e os sheks. Em Nandelt, o príncipe Alsan iniciou uma rebelião para reconquistar os reinos humanos. Em breve, viajarei até ali para me juntar a ele. Mas antes - acrescentou, cravando na audiência o olhar intenso dos seus olhos avermelhados - queria dizer à minha gente, às gentes de Kash-Tar, as gentes do deserto, que a magia regressou ao mundo aqui, na nossa terra. Que, por uma vez na história, os yan, os filhos de Aldun, não foram os últimos... mas sim os primeiros.

No final da reunião, Shail e Zaisei aproximaram-se para falar com Kimara e contaram-lhe quem eram e o que procuravam.

A semi-yan sorriu, contente por encontrar alguém que conhecia Jack e Victoria. Relatou-lhes o que não contava nas reuniões: que Brajdu tinha capturado Victoria, e que de seguida fizera Jack realizar uma tarefa impossível para a salvar.

- Sei que Victoria escapou - concluiu -, porque Sussh executou Brajdu. Não o teria feito se ela estivesse morta ou se ele a tivesse entregado aos sheks. Por outro lado, também me inteirei de que alguém está a fazer um grande negócio com placas de carapaça de swanit no mercado negro - acrescentou -, de modo que creio... quero acreditar... que Jack conseguiu matar uma dessas criaturas. Não sei se foi por isso que Brajdu decidiu libertar Victoria... mas duvido muito.

- Não - disse de repente uma voz nas suas costas. - Não foi por isso.

Voltaram-se, com um ligeiro sobressalto e viram o velho feiticeiro que assistira à reunião.

- Chamo-me Feinar - disse o feiticeiro -, e asseguro-vos que a rapariga escapou de Brajdu. Eu mesmo lhe abri a porta. Não sei se é verdade que esses jovens têm poder para desafiar Ashran e os sheks, e sou demasiado cobarde para me juntar abertamente à rebelião. Mas há uma coisa evidente para mim, e é que... - hesitou por um momento antes de acrescentar, em voz baixa - eu não podia ficar quieto a ver morrer o último unicórnio que resta no mundo.

Christian acordou de madrugada, inquieto. Olhou em volta, procurando aquilo que o tinha tirado do seu sono, mas tudo parecia estar em ordem. As luas iluminavam suavemente a noite, a fogueira tinha-se apagado há algum tempo e Victoria dormia num canto; tremia de frio, mas não quisera aproximar-se de Jack.

O dragão.

Christian franziu o sobrolho ao ver que não estava com eles. Levantou-se e deslizou entre as árvores, como uma sombra, disposto a encontrá-lo.

Viu Jack um pouco mais longe, num lugar onde o bosque se abria um pouco. As luas iluminavam o seu vulto, e Christian viu o fogo que ardia nos seus olhos quando se voltou para o fitar.

O jovem soube que ele estava à sua espera. E era evidente para quê.

Desembainhou Haiass e sentiu que a sua parte shek estremecia de alegria. Todo o seu corpo, a sua alma, o seu ser, exigiam-lhe que lutasse contra o dragão. Jack tirou Domivat da bainha e enfrentou-o, com um sorriso sinistro. Os dois sabiam que tinham de se matar um ao outro, era irremediável. E, agora que Victoria não estava para se interpor entre eles, ninguém ia impedir o confronto que as suas respectivas naturezas lhes exigiam violentamente.

Foi uma luta breve, mas intensa. O dragão era poderoso, não havia dúvida. Mas Christian estava há demasiado tempo à espera daquele momento, sonhando com ele, e não pensava deixá-lo escapar. Quando, com um grito de triunfo, enterrou Haiass no coração de Jack, os olhos do seu inimigo abriram-se por um instante, surpreendidos... e o seu sangue banhou o fio de Haiass, que palpitava, satisfeita.

com um sorriso, Christian tirou a sua espada do corpo de Jack e viu como ele caía ao chão sem vida. Sentiu a vibração da sua espada, exultante de poder e de energia.

Olhou para as mãos e viu-as cobertas de sangue.

Sangue de dragão.

Christian acordou, com o coração a bater com força, e olhou para as mãos. Estavam limpas.

Respirou fundo e dominou-se. Fora apenas um sonho.

Olhou em volta e viu Victoria, a dormir, aninhada sobre si mesma a tremer de frio, longe dele, longe de Jack, que também dormia perto dos restos da fogueira. O ódio palpitou de novo dentro de si, mas esforçou-se por o reprimir e voltou a deitar-se.

Perto dele, o pequeno shek que resgatara ergueu-se por um momento no seu canto, ao abrigo de uma rocha, e os seus olhos brilharam hipnoticamente na escuridão.

 

           O ULTIMO DOS DRAGÕES

- Vais dar-lhe um nome? - perguntou Victoria.

Christian olhou para a cria de shek, pensativo. Enovelara-se no colo da rapariga e parecia gostar de estar ali. Por outro lado, não suportava Jack, e o sentimento era mútuo.

- Chama-lhe "serpente" - sugeriu este, mal-humorado.

- Então chamar-se-ia Kirtash - disse Victoria, quase rindo. - Em todo o caso, teríamos de lhe chamar Kirtash Júnior.

Jack não percebeu a piada, mas Christian sorriu à rapariga. O pequeno shek olhava-os, a uns e outros, com um brilho de inteligência nos olhos.

- Entende o que dizemos? - perguntou Jack, um pouco inquieto.

- Ainda não, mas está a aprender - respondeu Christian. - Ainda demorará algum tempo a descobrir como chegar às vossas mentes. De momento, está a estudar-vos.

- Que chatice - comentou Jack, com um calafrio.

- Para se comunicar convosco, não para vos controlar. Para comunicar com Victoria, melhor dizendo. Imagino que, quando crescer, a única coisa de que se lembrará de fazer contigo é tentar matar-te.

- Que bom.

- Não entendo - interveio Victoria, levantando a cria para a olhar de perto; ela cravou os seus olhos matizados nos seus, com um suave cicio, e a rapariga percebeu as suas tentativas débeis para alcançar a sua mente, como os primeiros balbucios de um bebé. - Já odeia os dragões? Tão novinho?

- O ódio aos dragões não é uma questão de educação ou de cultura, Victoria. Não é algo que nos ensinam quando somos pequenos. Faz parte de nós, tal como o facto de os dragões odiarem os sheks. É um impulso que nos leva a lutar até à morte uns contra os outros, tão natural para nós como beber quando temos sede ou dormir quando estamos cansados.

- É horrível - opinou Victoria, sombria.

Christian não respondeu. A rapariga fitou-o.

- Estiveste todo o dia muito sério - disse. - Há alguma coisa que te preocupa?

Christian ergueu a cabeça e dirigiu a ambos um olhar frio como o gelo.

- O instinto, precisamente. Preocupa-me que nos matemos um ao outro antes de chegarmos ao nosso destino.

Não lhes falou do sonho. Não lhes disse que, de cada vez que se recordava de si a enterrar a espada no peito de Jack, o sangue fervia-Ihe e tinha de fazer grandes esforços para não levar a mão ao punho de Haiass. Tinha sido diferente, muito diferente lutar contra o golem nas terras gélidas do Norte, porque sabia que o golem não era o verdadeiro Jack. Contudo, aquele sonho parecera-lhe tão real que tivera a certeza absoluta de que estava a matar o dragão. E tinha saboreado o momento.

Sabia que Jack também desejava matá-lo; mas Christian duvidava que tivesse consciência da importância de controlar o impulso assassino. Até à noite anterior, o shek acreditara que ele próprio conseguia dominar o seu instinto muito melhor do que Jack, que sempre lhe tinha parecido irritantemente impulsivo.

Agora, depois daquele sonho, já não tinha tanta certeza.

- Não se pode fazer nada para o evitar? - perguntou Victoria. Christian dirigiu-lhe um olhar breve. Também ele se perguntara o mesmo e acreditava ter uma resposta.

- Talvez - respondeu enigmaticamente.

Aproximou-se dela, e Victoria olhou-o, interrogativa, procurando adivinhar quais eram as suas intenções. Mas não esperava o que aconteceu a seguir: Christian tomou-a pelos ombros com suavidade, aproximou-se e beijou-a. Victoria sufocou uma exclamação de surpresa, mas todo o seu corpo respondeu àquele beijo, e, quando deu por isso, tinha fechado os olhos e lançado os braços ao pescoço dele, enquanto sentia que se derretia completamente. Os beijos de Christian costumavam produzir aquele efeito nela.

Procurou voltar à realidade e afastou-se dele, com um suspiro.

- O que... porque fizeste isso? - conseguiu perguntar. Christian ergueu uma sobrancelha e voltou-se para fitar Jack, que os olhava, furioso.

- Então, gostaram?

- Eh, eh, um momento - protestou Victoria, levantando-se rapidamente; a cria de shek abandonou o seu colo com um cicio sobressaltado.

- Pode saber-se o que pretendes, Christian? Que tipo de jogo retorcido estás a fazer?

Sempre se tinha esforçado muito para não se mostrar carinhosa com Christian à frente de Jack. Não pretendia esconder de Jack o que sentia pelo shek, ele sabia-o de sobra; mas também não era preciso esfregar-lho na cara. Christian nunca se mostrara ciumento; Jack, sim. E Victoria não queria mexer mais na ferida. Pensara que Christian o entendia e apoiava. De facto, sempre mantivera as distâncias com ela quando Jack estava presente. Aquele beijo súbito tinha sido um golpe inesperado para os dois.

- Não, deixa, vou-me embora e dou-vos privacidade - cortou Jack, aborrecido.

- Espera. - Christian deteve-o. - Tens vontade de me matar agora? Jack voltou-se para ele com alguma violência.

- Estás a provocar-me ou quê?

- Pensa. Serias capaz de matar alguém... por ciúmes?

Jack deteve-se por um instante, surpreendido pela pergunta. Pensou nisso seriamente.

- Claro... claro que não. Não, por ciúmes não. Isso não é motivo para matar ninguém. Mas dar-te-ia um belo murro - acrescentou, carrancudo. - Disso, sim, tenho vontade.

- Uma reacção muito humana e muito natural - assentiu Christian.

- Foi a tua parte humana que se incomodou agora. É o que sentimos por Victoria que nos torna mais humanos, de modo que, para o nosso bem, creio que não o devíamos reprimir.

- Sim, e que mais? - protestou ela. - Agora sou parte de uma espécie de experiência?

Jack olhou para o shek, sombrio.

- Pensaste muito nisso, não foi?

- Há semanas que penso nisso.

"Mas hoje mais do que nunca", acrescentou em silêncio. Olhou para Jack durante um momento, muito sério, antes de acrescentar:

- Tenho perfeita consciência de que a única coisa que nos mantém com vida agora é o que sentimos por ela. O amor e os ciúmes já estão incluídos no love de emoções humanas que controlam a nossa outra parte, essa parte que nos leva a atacar-nos um ao outro, a lutar até à morte. O equilíbrio entre as nossas duas naturezas, os laços que nos unem aos três, é algo muito delicado. Se esse equilíbrio se rompe, jamais venceremos Ashran.

Jack não disse nada.

Naquela noite, aproximou-se de Victoria e ela não o rejeitou.

Dormiram juntos, abraçados, como antes de Christian ter regressado. Falaram em voz baixa, reiteraram os seus sentimentos, trocaram palavras doces, palavras de amor. Isso fez com que Jack se sentisse um pouco melhor.

Mais adiante, Christian dormia, com o sono leve que lhe era próprio.

Sonhava, de novo, que Jack e ele se enfrentavam num combate até à morte. E sentia prazer em assassinar o dragão; a sua parte shek gritava de júbilo em sonhos.

Antes de amanhecer, rebentou uma forte tempestade. Procuraram abrigo, mas o terreno era completamente plano, e Jack fez notar que não deviam ficar junto do rio, para o caso de transbordar. Retomaram a marcha, a meio da noite, molhados até aos ossos sob uma chuva impiedosa.

Até que viram ao longe a sombra de uma pequena cúpula e, quando se aproximaram, descobriram que se tratava de uma casa celeste.

Christian pareceu indeciso.

- Só até a chuva passar - disse Victoria, e o jovem acabou por concordar.

Uma casa celeste era um bom lugar para descansar. O seu proprietário não os trairia, porque seria incapaz de o fazer. De qualquer forma, Christian deixou a cria de shek abrigada num coberto que havia junto à casa, antes de se juntar aos companheiros à porta.

Os donos da casa eram um casal jovem, celestes, como os três jovens presumiram, e, embora ficassem surpreendidos por receber visitas àquelas horas da noite, acolheram-nos imediatamente.

Jack e Victoria aproximaram-se rapidamente do fogo. Victoria espirrou.

- Tens de tirar essa roupa molhada, rapariga - disse a mulher celeste - ou vais ficar doente. Vem comigo, creio que tenho roupas que podem servir-te.

Enquanto isso, o seu companheiro preparava uma infusão quente para os jovens. Jack ergueu as palmas das mãos sobre o fogo da lareira, desfrutando do seu calor, mas Christian manteve-se a um canto, nas sombras, e limitou-se a sacudir a cabeça para afastar o cabelo molhado da testa. Observava Jack com um brilho sombrio no olhar.

- Má noite para andar por aí ao relento - comentou o dono da casa.

- Não há nenhuma cidade perto - murmurou Christian.

- É certo, mas, assim que atravessarem o rio que separa Kash-Tar de Celestia, encontrarão muito mais povoações. Vaisel não é longe e há uma aldeia a menos de meio dia de caminho daqui.

Christian assentiu, sem uma palavra. O celeste estendeu-lhes as respectivas tigelas da infusão. Jack aceitou agradecido. O líquido quente reconfortou-o.

A mulher celeste regressou, com mantas para cobrir os ombros dos rapazes. Atrás dela entrou Victoria, mas deteve-se à porta, tímida e corada como um tomate.

Jack voltou-se para ela e ficou sem respiração. Claro, não tinha pensado que lhe dariam roupa celeste.

Os celestes costumavam vestir peças coloridas feitas de um tecido muito leve que, contra todas as expectativas, acabava por agasalhar bastante. Mas era tão fino como uma gaze. Os celestes achavam aquilo perfeitamente natural, estavam acostumados a revelar os seus corpos debaixo da roupa, tal como era normal para os humanos andar com a cara descoberta, algo que, por exemplo, os yan não compreendiam, já que só mostravam o seu rosto às pessoas em quem confiavam. Jack tinha visto alguns celestes no bosque de Awa e todos, excepto Zaisei e o Pai, que, como sacerdotes, vestiam as túnicas próprias do seu ofício, usavam aquelas peças tão leves que chocavam as pessoas habituadas a tapar os seus corpos.

Naquele momento Victoria vestia uma daquelas túnicas, uma fina túnica verde que revelava muitos pormenores da sua figura, mais do que estava acostumada a mostrar.

A rapariga não sabia para onde olhar. Jack também corou e desviou o olhar, aturdido, mas Christian ergueu uma sobrancelha e olhou-a de cima a baixo com interesse. Victoria ficou ainda mais corada; queria tapar-se, mas temia ofender a sua anfitriã se o fizesse.

- Nirei - disse então o celeste, com uma alegre gargalhada -, pelo amor de Yohavir, olha como estes rapazes ficaram nervosos.

Ela ruborizou-se delicadamente.

- Perdão, que tonta fui... esqueci-me de que os costumes humanos são diferentes dos nossos. Mas, Victoria, porque não me disseste?

Victoria sorriu e aceitou, agradecida, a manta que ela lhe estendeu. Pô-la por cima dos ombros e sentiu-se mais resguardada, mas ainda não se atrevia a olhar para os seus companheiros. Percebeu então a voz de Christian, que sussurrou na sua mente:

- Não tens nada de que te envergonhar.

O coração de Victoria começou a palpitar loucamente. Ergueu a cabeça e olhou para Christian, que se tinha sentado num banco junto à parede e a observava com um sorriso. Perguntou-se o que havia nele que a alterava daquela maneira. Apenas duas semanas antes, quando viajava com Jack, os dois sozinhos, tinha chegado a pensar que, talvez num futuro, poderia esquecer Christian e ser feliz para sempre com o que era, e sempre fora, o seu melhor amigo. Mas agora Christian voltara, e a sua voz, o seu olhar, o seu contacto, a sua simples presença, confundiam-na e faziam com que o coração batesse com tanta força que parecia que lhe ia sair do peito.

Pouco antes do meio-dia, a chuva cessou; Victoria voltou a vestir a sua roupa, que já estava seca, e, depois de almoçarem, os três prosseguiram o seu caminho.

O casal de celestes viu-os partir da porta de sua casa. Quando os jovens já estavam longe, ela perguntou:

- Viste?

O seu companheiro assentiu.

- Vi. Jamais teria imaginado que existissem laços tão fortes entre três pessoas.

- Não são humanos normais. Não podem ser, e esses laços... são muito mais do que vínculos de amor e de ódio. São sentimentos muito mais intensos, mais sólidos do que aqueles que um humano ou um celeste conseguem sentir. Oh, pobres rapazes, o que será deles?

O celeste meneou a cabeça com tristeza. Não tinha resposta para aquela pergunta.

Numa noite em que se tinha afastado um pouco do acampamento para reconhecer o terreno, Victoria foi ao seu encontro.

Christian deixou-se encontrar. Sentiu-a muito antes de ela se juntar a ele ao pé da árvore debaixo da qual parara por um momento.

- Tenho de falar contigo - disse ela com suavidade.

Christian anuiu sem uma palavra. Intuía sobre o quê. Sentou-se sobre a relva e convidou-a com um gesto a sentar-se ao seu lado.

Victoria fê-lo. Olhou-o durante uns instantes em silêncio, antes de lhe perguntar:

- Porquê?

O jovem sorriu.

- Já devias saber.

Victoria hesitou. Parecia estar a lutar contra o impulso de se aproximar mais dele. Christian olhou-a intensamente. Tinha sido assim desde que se tinham reencontrado no deserto. Victoria estava profundamente apaixonada por Jack, mas havia algo que a arrastava irremediavelmente para o shek.

Por fim, com um suspiro, Victoria aproximou-se um pouco mais, quase com timidez. Fechou os olhos, com um estremecimento, quando os dedos de Christian lhe acariciaram o pescoço, o rosto, o cabelo. Entregou-se ao beijo, bebendo dele, usufruindo de cada instante. Os dois aproximaram-se ainda mais um do outro, mas, quando os lábios de Christian já percorriam o seu pescoço, despertando nela sensações imprevisíveis, Victoria disse com suavidade:

- Pára, por favor.

Christian parou. Victoria apoiou a cabeça sobre o seu ombro, fechou os olhos e respirou fundo, tentando superar o que ele tinha provocado dentro de si.

- Pensava que conseguia deixar de te amar - disse ela em voz baixa.

- Pensavas mesmo? - sorriu Christian.

- Não - confessou Victoria após um breve silêncio. - Mas quis convencer-me de que era possível.

- Então quiseste escolher. Ainda queres renunciar a uma parte de ti?

- És uma parte de mim?

- Sim, sou. Tal como Jack. Não sabias?

- É pela profecia?

- Não sei. E não me importa. Sei o que sinto por ti e isso não vai mudar, com profecia ou sem ela. Tu sabes o que sentes, Victoria? Está claro?

- Sempre esteve claro. Mas a razão...

- A razão diz-te que não podes amar duas pessoas ao mesmo tempo. Mas amas, Victoria. Porque é que o teu senso comum não aceita os factos?

Ela sacudiu a cabeça.

- Porque me dizes tudo isso?

- Estou a tentar ajudar-te, é tudo.

Victoria não perguntou mais nada. Encostou-se a ele, apoiando a cabeça no seu peito. Ambos saborearam a presença um do outro, durante uns momentos, nos quais Victoria sentiu que o seu amor por Christian a inundava de novo por dentro com mais intensidade do que nunca.

- Amo-te, Christian - sussurrou.

- Eu sei - sorriu ele.

- Achas que Jack o aceitará algum dia?

- Terá de o fazer. Terá de aceitar o que há entre nós ou renunciar a ti. O que sentes por mim é tão teu como o teu olhar, como o teu sorriso, como a tua voz. Não podes desfazer-te disso, como quem se despoja de uma capa velha. E não continues a tentá-lo, porque só causará dor aos dois.

Victoria calou-se por um momento. Depois, ergueu a cabeça para olhar para Christian.

- E tu? O que pensas de tudo isto? Diz-me, o que é que eu sou para ti?

O jovem respondeu sem duvidar:

- Luz.

Victoria esperou que acrescentasse algo mais, mas Christian permaneceu em silêncio.

- Não entendo - disse ela.

- Não é preciso que entendas. Por agora, basta-me que saibas. Após um breve silêncio, Victoria falou novamente:

- É estranho. Espera-nos um destino que talvez acabe com todos nós, porém, não consigo deixar de pensar no quanto senti a tua falta e em como encontrar uma solução para o que sinto.

Christian olhou-a com um sorriso.

- Porque complicas tanto? Ama-nos aos dois, e ponto. O que tem isso de mal?

- Estás a dizer-me que poderíamos conviver os três juntos? - replicou Victoria, quase a rir. - Tendo em conta como tu e Jack se dão bem?

- Em nenhum momento disse que podia conviver convosco, Victoria. De facto, duvido muito que conseguisse conviver com alguém; até contigo. E que uma coisa fique bem clara: apesar do que Jack possa acreditar, não é por ti que nos enfrentamos, pelo contrário. Se não fosse por ti, ter-nos-íamos matado um ao outro há muito tempo. Entendes?

- Creio que sim. E sei o que sinto, sei que é belo e que deveria aceitá-lo como um presente, e fico contente por compartilhar algo tão especial com duas pessoas que significam tanto para mim. Mas, então, porque me sinto culpada por estar agora contigo?

- Porque Jack te faz sentir assim com os seus estúpidos ciúmes. E o pior de tudo é que na realidade uma parte dele aceita-o e compreende. Mas odeia-me por instinto e, como tem de encontrar uma explicação racional para esse ódio, utiliza-te como desculpa para o justificar. E não é assim. Se alguma vez lutarmos um contra o outro, quero que saibas que não é por tua causa. De facto, que eu saiba, com o teu amor conseguiste algo que ninguém tinha conseguido antes: que um shek e um dragão pudessem lutar do mesmo lado.

Victoria olhou-o fixamente durante um momento antes de perguntar:

- Por quanto tempo, Christian?

Ele hesitou, e a rapariga soube que tinha acertado em cheio.

- Deste conta - murmurou o shek.

- Regressaste mais poderoso, mais frio e mais seguro de ti mesmo do que quando partiste do bosque de Awa - disse ela em voz baixa. Recuperaste a tua parte shek. E ainda queres matar Jack. Agora mais do que nunca.

- Sim, desejo-o com todo o meu ser - confessou Christian, e nos seus olhos brilhou uma centelha de ódio. - Quase tanto como te desejo a ti - acrescentou, e cravou novamente nela o seu olhar de gelo, com tanta intensidade que Victoria arquejou e retrocedeu um pouco, com o coração a bater com força.

Mas não se moveu quando ele se aproximou dela para a beijar e ficou à espera, a tremer como uma folha. Também ela desejava com toda a sua alma deixar-se levar. E certamente não teria tido forças para resistir a Christian, se ele não se tivesse afastado dela para a olhar com o seu sorriso sereno. Compreendeu então que ele continuaria a controlar-se pelos dois e agradeceu-lhe interiormente. A simples ideia de a presença de Christian a alterar a ponto de a fazer perder o domínio de si mesma apavorava-a.

- Se sobrevivermos a isto - disse ele, trazendo-a de volta à realidade -, se sobrevivermos ao ódio, e a Ashran, e aos sheks...

- O quê? - sussurrou ela.

- Não me importará que permaneças junto de Jack. Que vivas com ele, se é isso que desejas. Mas - acrescentou, com um sorriso -, enquanto continuar a ver no fundo dos teus olhos que sentes algo por mim... irei ver-te de quando em quando. Às vezes, irei procurar o calor do teu corpo, a suavidade da tua pele... outras vezes precisarei somente de falar contigo, ou de te olhar nos olhos, ou simplesmente desfrutar da tua companhia... Aceitarei sempre o que quiseres dar-me. Não preciso de mais. Mas também não me irei conformar com menos.

Olhou-a intensamente, e Victoria sentiu que corava. Sacudiu a cabeça, com um sorriso, entre perplexa, aturdida e divertida.

- Achas graça? - prosseguiu ele, muito sério. - Uma parte do teu coração pertence-me. E não penso renunciar a ela, acredita! Podias escolher-me, claro. Mas já te pedi uma vez que viesses comigo, e os teus sentimentos por Jack impediram-te de aceitar; não creio que as coisas tenham mudado e sei que não vão mudar no futuro. Ou poderias pedir-me que me afastasse de ti para sempre, para não atrapalhar a tua relação com Jack. E fá-lo-ei, se for o que desejas. Mas não é isso que queres, pois não?

Victoria desviou o olhar, confusa.

- Não, não é o que queres - prosseguiu Christian. - E Jack sabe, no fundo, que, mesmo que renunciasses a mim, jamais serias completamente sua. Olha para mim.

Victoria virou a cabeça, mas ele obrigou-a, com suavidade, a olhá-lo nos olhos. Os dois partilharam, de novo, um olhar intenso, profundo.

- Vês? - sussurrou Christian. - Uma vez disse-te que não me pertences. Podes fazer o que entenderes com a tua vida e com os teus sentimentos, e jamais irei exigir-te que te prendas a mim. Mas, no fundo da tua alma, há algo que é inteiramente meu. E regressarei para o buscar... enquanto estiver aí. Não me importa quantos Jacks haja ao teu lado, não me importa quantas vezes procures negá-lo ou afastar-me de ti. No dia em que deixares de me amar desaparecerei da tua vida, mas, enquanto continuar a ver esse sentimento nos teus olhos quando me olhas, voltarei para buscar aquilo que é meu e que pertence unicamente a mim.

Victoria deixou escapar um suave suspiro. Deixou que ele a beijasse de novo. "Enquanto estiver aí", pensou. Lançou-lhe os braços ao pescoço e aproximou-se mais dele, desta vez sem dúvidas, sabendo que não podia negar que continuava a amá-lo e que, de qualquer maneira, nunca poderia enganar Christian a esse respeito.

- Um unicórnio e um shek - murmurou o jovem, rodeando com os braços a cintura de Victoria. - É estranho, não achas? No entanto... de alguma maneira era inevitável, apesar de tudo o que aconteceu.

- Sei o que és e o que fizeste - sussurrou ela. - Ainda assim... não, não consigo evitá-lo, não sou capaz de deixar de sentir o que sinto.

Tens razão: não posso negá-lo. E continuarei a amar-te sempre, Christian. Por muito mal que possas vir a fazer-me. Só há uma coisa que jamais poderia perdoar-te. Sabes o que é, não sabes?

- Sim - respondeu ele com suavidade. - Sei.

Victoria enterrou o rosto no seu ombro, com um suspiro, mas não chegou a ver a sombra que atravessou fugazmente a expressão de Christian.

Alexander não perdeu tempo com celebrações. Tinham tido muitas baixas, e sabia que depressa haveria mais batalhas. Que Ziessel mobilizaria todo o exército de Dingra e que provavelmente pediria ajuda aos outros sheks; a Eissesh, por exemplo. Se os seus superiores lhe dessem autorização, o governador de Vanissar não hesitaria em enviar a Nurgon todo o exército do rei Amrin. Eissesh ainda se lembraria de como a Resistência se lhe tinha escapado nas montanhas, como a gente de Denyal o enganara com um dragão artificial, o dragão que Garin pilotara. E não perdoaria facilmente a ofensa.

Por outro lado, a notícia de que o príncipe Alsan tinha regressado e estava a iniciar uma rebelião tinha corrido por Nandelt e continuava a espalhar-se com rapidez. Nos dias seguintes, apareceu mais gente em Nurgon para se juntar aos rebeldes. A maioria eram refugiados do bosque de Awa, que responderam ao chamamento do povo feérico. Mas também veio muita gente da arrasada Shia, que fora duramente castigada pela sua revolta contra os sheks - muitos dos seus habitantes tinham emigrado para outros reinos e, aprendida a lição, tinham-se integrado na vida quotidiana das nações submetidas pelos sheks, não obstante, nos corações de muitos outros ardia ainda o desejo de vingança, e foram estes que viram em Alexander e no seu grupo de rebeldes a oportunidade de lutar pela memória da sua terra e das suas gentes. Apresentou-se também gente fugida de Dingra e mesmo de Nanetten e Vanissar.

Em menos de uma semana, a Fortaleza fervilhava de gente.

Os sheks tardaram bastante a dar sinais de vida, e os espiões de Alexander informaram-no de que o seu irmão, o rei Amrin, estava a preparar os seus exércitos para a batalha.

- É cruel - opinou Denyal quando o soube. - Os sheks enviam os homens de Vanissar e Dingra para lutar contra nós. Querem enfrentar-nos numa guerra fratricida.

- Não é cruel - respondeu Alexander com calma. - É prático. Muitos dos sheks que vigiavam Nandelt estão agora em Awinor, à procura do dragão e do unicórnio. Eissesh e Ziessel não podem reunir um exército de sheks, mas podem dirigir um formado por humanos e szish.

Alexander, por sua vez, também se preocupou em procurar aliados noutros lugares. Há tempos, antes de abandonar Vanissar, tinha enviado dois emissários para negociar com os bárbaros de Shur-Ikail. Os mensageiros tinham regressado com menos uma orelha cada um, e a resposta de Hor-Dulkar, o mais poderoso senhor de guerra da região: os bárbaros não uniriam as suas forças às de um príncipe estrangeiro, a não ser que este lhes demonstrasse que era realmente um digno aliado contra as serpentes. Aqueles emissários tinham ido propor-lhes uma aliança com as mãos vazias, o que era uma tremenda ofensa para os bárbaros, pois, se alguém se considerava suficientemente poderoso para ousar pactuar com Hor-Dulkar, devia apresentar-lhe antes um brilhante historial de vitórias que avalizasse os seus méritos.

Os mensageiros tinham tido sorte em regressar com vida; se Hor-Dulkar se tinha contentado com cortar-lhes uma orelha como castigo pelo seu atrevimento, era porque no fundo sentia curiosidade em relação a Alexander e estava disposto a esperar para ver o que fazia.

Alexander sabia o que estava em jogo e deixara bem claro que era perigoso lidar com os bárbaros; os mensageiros que tinham ido a Shur-Ikail estavam cientes do risco que corriam e tinham-se apresentado como voluntários para a missão. Mas Alexander não se teria incomodado em procurar ganhar o apoio dos bárbaros se não soubesse que estes, após a queda da Torre de Kazlunn, se encontravam numa situação muito delicada. Até então tinham conseguido manter alguma independência ante a invasão shek - ao fim e ao cabo, não eram mais do que um aglomerado de tribos que passavam o tempo a lutar umas contra as outras, por causa de desavenças antigas de cujas origens se tinham esquecido há séculos, demasiado desagregadas para formar um exército que lutasse contra as serpentes e que constituísse para elas algo mais do que um pequeno incómodo, além de que, apesar de nunca terem confiado inteiramente nos feiticeiros, até Hor-Dulkar reconhecia, embora a contragosto, que a proximidade da Torre de Kazlunn lhes tinha outorgado um certa protecção. Só que agora Kazlunn tinha sido conquistada pelos sheks e a sua nova senhora era leal a Ashran, por isso a independência dos bárbaros corria sério perigo.

Assim, Hor-Dulkar estaria mais receptivo do que usualmente a uma possível aliança com um príncipe de Nandelt. E, dada a disposição que costumava ter habitualmente, perder uma orelha não era o pior que podia ter acontecido aos mensageiros.

Alexander estava disposto a dar ao chefe bárbaro o que lhe havia pedido. Então, quando achou que a notícia da reconquista de Nurgon se tinha espalhado suficientemente de um lado a outro de Nandelt, enviou novos mensageiros a Shur-Ikail, para negociar com o chefe bárbaro.

Sabia que, desta vez, regressariam com as duas orelhas no sítio.

Numa noite em que Christian se perdera na escuridão para passar uns momentos sozinho, como era seu costume, deixando-os a ambos junto à fogueira, Jack não conseguiu

aguentar mais e disse a Victoria:

- Um dia vais ter de tomar uma decisão, não?

Ela ergueu a cabeça e olhou-o longamente. Por um instante, pareceu a Jack que os seus olhos eram tão profundos como a noite que os rodeava.

- Ainda não percebeste... - disse a rapariga com suavidade. - Há muito tempo que tomei uma decisão.

Jack pestanejou, um tanto desconcertado.

- Ah, sim? Essa é nova.

Mas o coração batia-lhe com força. Talvez ela quisesse dizer que tinha escolhido no bosque de Awa e que, ao decidir acompanhá-lo até Awinor, lhe tinha entregado o seu coração... a ele e não ao shek. Não obstante, algo no olhar de Victoria fê-lo suspeitar que não era isso o que ela tinha em mente.

- Há muito tempo que tomei a minha decisão - repetiu ela. - Agora és tu quem tem de decidir.

- Decidir o quê?

- Se a aceitas ou não. Estás no teu direito de não concordar. Eu respeitarei a tua decisão, seja ela qual for. Só te peço que respeites a minha.

Jack compreendeu, de súbito, o que ela lhe estava a dizer: que já tinha escolhido. E tinha escolhido os dois. Ficou sem fala.

- Não, não, isso não pode ser. Não podes ficar com os dois.

- Não decidi ficar com ninguém, Jack. Decidi amar-vos aos dois, quer estejam comigo ou não, porque é o que me diz o coração. Se correspondem ou não ao meu amor, é assunto vosso. Christian ama-me independentemente disso. E tu?

Jack levou as mãos à cabeça, atordoado.

- Não podes pedir-me que te partilhe com um shek.

- Não to pedi, Jack. Podes fazer o que quiseres; irei amar-te na mesma, quer aceites quer não. vou entender se não conseguires suportar a situação.

- No entanto, de alguma maneira obrigas-nos a estar os três juntos.

- Porque temos de lutar juntos. Se o nosso vínculo se romper, seremos vulneráveis.

- Vulneráveis? - repetiu Jack. - Queres dizer, perante Ashran? Pela profecia?

Mas Victoria não respondeu.

Jack compreendeu que, na situação em que se encontravam, era muito mais importante planear a sua estratégia contra Ashran do que solucionar a sua complicada relação amorosa. A contragosto, reconheceu que-precisavam do shek ao seu lado para saírem vivos dali e dispôs-se a fazer o possível por se dar bem com ele.

No dia seguinte, contudo, já estavam outra vez a discutir.

- Enlouqueceste! Queres matar-nos ou quê?

- Jack, acalma-te.

- Não, não me peças para me acalmar, Victoria! Este maldito shek voltou a trair-nos!

- Deixa ao menos que se explique, não?

- Precisas de mais explicações? Leva-nos direitos a Ashran!

- É óbvio que vou levar-vos direitos a Ashran. Para onde pensavam que vos conduzia?

- Mas...

- Vês, Victoria? Sabia que não podíamos fiar-nos nele!

- Nunca te pedi que te fiasses em mim, dragão. Mas, se o teu cérebro limitado é incapaz de compreender porque temos de ir a Drackwen, então não vou perder tempo a tentar explicar-te.

- Já aguentei o suficiente, shek!

com um rugido, Jack transformou-se em dragão e voltou-se para Christian, no meio de uma violenta labareda. O jovem manteve a sua forma humana, mas desembainhou Haiass, com um brilho de aço nos olhos.

A cria de shek, que os observava, ciciou ao ver Jack sob a sua outra forma e escondeu-se atrás de uma rocha, sem deixar de olhar para o dragão com os olhos carregados de ódio.

Victoria interpôs-se entre Jack e Christian. Não tinha o báculo, não brandia nenhuma arma. Só havia o seu corpo entre as garras e o bafo do dragão e o gélido fio de Haiass. Mas não titubeou nem por um só momento, nem baixou o olhar, nem lhe tremeu a voz quando disse:

- Se se matarem um ao outro, também me matarão a mim. Christian olhou-a por um momento e, com um supremo esforço, embainhou de novo a sua espada. Jack emitiu algo parecido com um grunhido e voltou a transformar-se. Respirou fundo várias vezes, para se acalmar, mas nos seus olhos ainda ardia o fogo do dragão.

- Bem... - começou então Victoria, voltando-se para Christian. Porque nos fizeste atravessar o rio? Porquê esta mudança de rota?

- Não mudei a rota - respondeu o shek. - Desde o princípio tive a intenção de vos levar até à Torre de Drackwen e é exactamente isso que estou a fazer.

- Para nos entregar a Ashran! - acusou Jack.

- Para o enfrentarmos - corrigiu Christian. - Vais fazê-lo mais cedo ou mais tarde, de modo que, quanto antes, melhor. O vosso amigo Alexander iniciou uma rebelião no Norte, e com um pouco de sorte os sheks ainda vos procuram no Sul. É o melhor momento para atacar Ashran.

- Tão depressa... - murmurou Victoria. Christian fitou-a.

- Temos de o fazer antes que seja demasiado tarde, Victoria. O meu pai espera que eu mate o dragão; foi por isso que me devolveu Haiass, foi por isso que se encarregou de ressuscitar a minha parte shek. E se isto continuar assim, acabarei por fazê-lo.

- Achas realmente que ganharias numa luta contra mim? - replicou Jack, carrancudo; mas Christian não fez caso.

- Então o melhor é acabar com isto o mais rápido possível: matar Ashran antes que nos matemos uns aos outros.

Victoria estremeceu. Jack ia replicar, mas deteve-se por um instante, consciente de imediato das palavras de Christian.

- Estás a falar de matar o teu próprio pai? Serias realmente capaz disso?

Christian voltou-se para ele.

- A outra saída que tenho, e é de facto muito tentadora, é matar-te a ti e acabar com a maldita profecia. Então Victoria estaria a salvo. Os sheks não têm nada contra ela, e o meu pai também não. Mas se te matar, dragão... uma parte de Victoria morrerá contigo. E, acredites ou não, importa-me realmente o que ela sente. Essa é a única razão pela qual ainda continuas vivo.

Jack abriu a boca para retorquir, mas não lhe saíram as palavras.

- Importas-te com os seus sentimentos, importas-te mais com ela do que com o teu ódio por mim? - prosseguiu o shek. - Ou será que esse amor que dizes que sentes não é mais do que um acumular de palavras sem sentido?

Jack virou-lhe as costas, mal-humorado. Christian pegou no pequeno shek, meteu-o aos ombros e pôs-se novamente em marcha. Ao passar junto de Jack, este ouviu a voz dele na sua mente:

- Não, não estou a enviá la para a morte. Juro-te que matarei e morrerei para a proteger; e, se Victoria tiver de morrer, morrerei com ela.

Jack não disse nada. A cria de shek lançou-lhe um cicio furioso, mostrando-lhe as presas, mas o rapaz não reagiu até que Victoria se pôs ao seu lado e lhe pegou na mão.

- Estou preparada - disse ela com suavidade. - E tu?

O rapaz fitou-a nos olhos, e Victoria não leu neles o medo da morte. Não; o que angustiava Jack, o que o fazia hesitar, era um profundo medo de a perder. E a jovem apercebeu-se de que sentia exactamente o mesmo, o mesmo medo que tivera no deserto, quando Christian estivera a ponto de a levar consigo, deixando Jack para trás. Sentiu que uma cálida emoção a inundava por dentro ao dar-se conta, uma vez mais, do muito que os dois a amavam.

Jack dominou-se e devolveu-lhe um sorriso afectuoso; e, por um momento, pareceu o Jack de sempre, o rapaz carinhoso e agradável que era quando não o toldava o seu ódio pelo shek.

Os três prosseguiram, pois, a sua viagem, embora desta vez já não seguissem para norte, mas sim em direcção a oeste.

- Dirigem-se para aqui - disse Zeshak, semicerrando os olhos.

- Bem - respondeu Ashran, sem se alterar.

- Não era isso que esperávamos - objectou a serpente.

- Subestimas Kirtash. É esperto, sabe que não lhe resta muito tempo. Por muito obstinado que seja, por muito que se importe com aquela rapariga, não tardará a sucumbir ao seu instinto. Sabe-o perfeitamente.

- Se fosse um verdadeiro shek teria matado o dragão há muito tempo opinou Zeshak com desprezo.

- Sem dúvida. Mas uma parte dele continua a ser um shek. Ainda lhes falta uma longa viagem até à Torre de Drackwen. Quanto tempo achas que poderá resistir?

Perderam-lhes a pista em Vaisel.

Aquela era a cidade mais importante de Celestia, depois de Rhyrr, a capital. Shail, Zaisei e Kimara, que os acompanhara na sua viagem para o Norte, esperavam obter ali notícias de Jack e de Victoria. Dias antes, numa pequena aldeia junto ao rio Yul, um celeste dissera-lhes que tinha alojado o casal em sua casa numa noite de tempestade. Só que não eram dois, mas sim três.

- Christian está com eles - disse Shail, inquieto. Por um lado ficava contente, já que o jovem shek era um aliado valioso, e, lutando juntos, teriam mais possibilidades de sair com vida; mas, por outro, sabia que Jack já era um dragão. E Christian, se não se enganava, tinha abandonado a Resistência para voltar a ser um shek.

O celeste disse-lhes que os três jovens iam para norte, em direcção a Vaisel; mas eles estavam já há dois dias na cidade e ninguém parecia ter visto ali nenhum dos três. Shail não entendia: se viajavam para Nandelt seguindo o rio Yul, teriam forçosamente de ter passado por Vaisel. Naquela noite, na pousada, examinando um mapa do continente e assinalando com o dedo a rota que tinham seguido, Shail concluiu que, se não iam para Nandelt, só restava uma possibilidade.

- A Torre de Drackwen - murmurou, horrorizado. - Atravessaram o rio e vão ao encontro do Necromante.

Procurou levantar-se, esquecendo-se por um momento da sua incapacidade, e caiu ruidosamente ao chão, magoando-se no cotovelo. Zaisei ajudou-o a sentar-se e, por uma vez, ele não a rejeitou com dureza.

- Temos de os alcançar antes que seja demasiado tarde. Não pode ser assim, não vão conseguir atacar a torre sozinhos.

- Se calhar o shek está a levá-los direitos a uma armadilha - disse Kimara, franzindo o sobrolho.

- Deixaria que o matassem antes de entregar Victoria.

- Victoria, talvez não. Mas, e Jack?

Shail não queria esperar nem mais um minuto, de modo que abandonaram a pousada naquela mesma noite. E, apesar de saber que era mais seguro viajar por terra, Shail pediu à sacerdotisa que chamasse as aves douradas.

Não havia ninhos de pássaros haai perto da cidade, mas não importava. As aves conseguiam ouvir quando alguém as chamava, por muito longe que estivessem.

Quando dois magníficos pássaros dourados pousaram em terra, junto aos viajantes, Shail voltou-se para Kimara.

- Vens connosco?

A semi-yan hesitou. A ideia de voltar a ver Jack era tentadora; mas não esquecia as últimas palavras que ele lhe dirigira e soube que não podia desapontá-lo.

- Não; seguirei o meu caminho rumo a Nandelt. Tenho de entregar uma mensagem.

Shail compreendeu. Assentiu e não disse mais nada. Kimara ficou a ver como as duas aves douradas se afastavam na direcção do horizonte, de costas para a aurora, e enviou-lhe um beijo.

- Para ti, Jack - murmurou. - Recorda a tua promessa, recorda que me disseste que voltarias vivo.

Os sonhos continuaram a repetir-se todas as noites.

De manhã, Christian acordava com uma única ideia na cabeça: matar Jack. Cada dia era um pouco mais difícil resistir àquele impulso.

Contudo, havia uma maneira de o conseguir. A primeira coisa que fazia ao acordar era voltar a cabeça para olhar para Victoria.

Encontrava-a sempre a dormir nos braços de Jack. Desde a noite em que Christian lhes dissera que não deviam reprimir os seus sentimentos, eles os dois estavam sempre muito juntos, como se aqueles dias de distanciamento tivessem sido insuportáveis para ambos e agora quisessem recuperar o tempo perdido.

Christian não se incomodava. Os ciúmes nascem das dúvidas, da insegurança, e Christian, que lia com tanta clareza os pensamentos dos outros, era incapaz de se sentir ciumento. Bastava olhar para os olhos de Victoria para saber com absoluta certeza o que ela sentia por ele, para ver no seu olhar um amor tão intenso como inquebrantável. E isso era suficiente.

Além disso, também eles tinham os seus momentos íntimos. Jack sabia-o, mas não dizia nada quando ambos se adiantavam para reconhecer o terreno ou quando iam juntos buscar água ao rio. Sabia muito bem que Christian e Victoria aproveitavam para trocar beijos, carícias, e aquilo enervava-o, mas, ao mesmo tempo, acalmava o ódio no seu interior. É que naqueles momentos via Christian mais humano do que shek, apenas um jovem apaixonado por uma rapariga, tal como ele. E, embora lhe agradasse poder esmurrá-lo, não encontrava motivos para o matar. Além disso, desde a sua conversa com Victoria, tinha deixado de se preocupar com os sentimentos que ela professava pelo shek, para pensar no que ele mesmo sentia na realidade. Victoria já lhe deixara claro que os amava aos dois e continuaria a amá-los, acontecesse o que acontecesse. Agora ele tinha de decidir se aceitava ou não aquela situação; se se conformava em partilhá-la com Christian ou se, pelo contrário, preferia renunciar aos seus sentimentos por ela e encontrar outra mulher que não tivesse de partilhar com ninguém, e pensava em Kimara. Então apercebeu-se de que também ele teria de escolher.

No entanto, as coisas não tinham mudado desde aquela noite, em Hadikah, em que Jack rejeitara a semi-yan.

Não, não tinham mudado. Gostava de Kimara. Mas não a amava.

E a Victoria, sim.

Era muito confuso e complicado, de modo que decidiu adiar a sua escolha e simplesmente usufruir dos instantes que passava com Victoria, ignorando quando ela desaparecia com Christian. Jack tentava vê-lo pelo lado bom: ela continuava a dormir ao seu lado todas as noites e dedicava-lhe mais tempo do que ao shek, de maneira que, em princípio, saía a ganhar...

Christian, por sua vez, obrigava-se a si mesmo a olhar para Jack e Victoria quando estavam assim, a dormir, um nos braços do outro. Não era apenas para manter viva a sua parte humana. Era também porque aquela imagem o ajudava a recordar como fora duro para ele salvar Jack no deserto e, sobretudo, a razão pela qual o fizera: à medida que se afastava, com Victoria às costas, tinha sentido a sua intensa dor, tinha sabido que, se a afastasse de Jack, algo no seu interior morreria irremediavelmente.

Então evocava, uma vez mais, o olhar de Victoria quando lhe suplicara que a deixasse com Jack. Não podia esquecer nunca o que vira naqueles olhos, não podia esquecer que, se Jack morresse, Victoria acabaria por morrer com ele.

Não podia esquecê-lo, porque, no momento em que o fizesse, mataria aquele dragão... tal como nos seus sonhos.

Intrigava-o que o desejo de acabar com o seu inimigo o obcecasse a ponto de sonhar com o mesmo todas as noites. No princípio, pensara que se devia ao facto de os dois terem voltado a encontrar-se e passarem todo o dia juntos. Mas Jack não parecia ter sonhos semelhantes, e Christian começou a perguntar-se se o seu ódio se manifestava de forma diferente... ou se havia algo estranho em tudo aquilo.

Depressa avistaram no horizonte a cordilheira conhecida como Picos de Fogo.

Era um espectáculo aterrador, porque se tratava de uma longa cadeia de vulcões que quebravam o horizonte com os seus cones incompletos. Alguns ainda estavam activos e lançavam espirais de fumo para o céu alaranjado.

Logo que viu as montanhas, Jack ficou a olhar para elas com uma expressão estranha no rosto.

- O quevé? - perguntou Victoria, inquieta. - O que tens?

- Drackwen - disse Christian. - Os Picos de Fogo. Dizem as lendas que foi aqui que se viu o primeiro dragão em tempos remotos.

- Eu sabia - respondeu Jack de imediato. - bom, não sabia - rectificou. - Pressentia-o.

- Vamos ter de atravessar aquelas montanhas? - perguntou Victoria.

- Podemos contorná-las, mas parece-me mais seguro atravessá-las. Dentro de cada um dos vulcões há uma caldeira, para não falar do fosso que percorre a cordilheira de norte a sul e por cujo fundo corre um rio de lava. Demasiado fogo para os sheks. Nunca vêm por aqui.

- E não fará demasiado calor para nós? - inquiriu Jack. - E o ar? É respirável?

- Victoria pode proteger-nos com a magia do báculo. Ela assentiu com a cabeça.

Ainda demoraram mais dois dias a alcançar o sopé da cordilheira. Christian guiou-os através de uma passagem estreita entre os vulcões. Explicou-lhes que o enorme fosso que partia a cordilheira em duas começava um pouco mais a norte, de forma que não teriam de o atravessar.

De qualquer modo, fazia calor, muito calor. Christian avançava à frente, com Haiass desembainhada, e esforçava-se por transmitir todo o seu poder à espada, para que arrefecesse o ar à volta deles. A cria de shek estava sempre com ele, o mais perto possível da espada, e parecia evidente que não estava bem. Mas preferira continuar com Christian em vez de ser deixada no sopé das montanhas, como ele lhe sugerira mentalmente. Tanto ele como Victoria estavam a aguentar o trajecto bastante bem.

Contudo, Jack sentia-se cada vez mais inquieto.

- Tenho uma sensação estranha - disse por duas vezes. - É como se estivesse rodeado de sheks por todos os lados.

- Aqui só estamos nós os dois - respondeu Christian calmamente, referindo-se a ele e à pequena serpente que tinha "adoptado".

- Não, é muito mais do que isso - insistiu Jack. - Não notas? Christian sacudiu a cabeça.

- Sim, um pouco, mas não dês importância. É o calor que tolda os nossos sentidos. Se te concentrares, vais perceber que não há serpentes aqui.

- Não, de facto - concedeu Jack.

Porém, à medida que as horas foram passando, tornou-se cada vez mais arisco e agressivo. Christian percebia o seu ódio, sentia que crescia dentro dele, como o faria a lava de um vulcão prestes a entrar em erupção. E sentiu, não sem inquietação, que algo nele desejava que o dragão o provocasse para iniciar uma luta até à morte ao menor pretexto. "É o calor", disse a si mesmo. Mas era verdade que se percebia algo estranho no ar, algo que lhe recordava a sua gente, os outros sheks. Contudo, não era isso que o induzia a atacar Jack; era o seu instinto, todas aquelas vezes que o matara em sonhos, todas as vezes que sentira prazer nisso.

Anoiteceu, mas não se detiveram ali porque a cordilheira não lhes pareceu um bom lugar para pernoitar. De modo que continuaram a caminhar durante toda a noite e ao amanhecer já tinham saído das montanhas.

Sentaram-se a descansar. Jack deixou-se cair sobre o chão gretado, mas respirava entrecortadamente e os seus olhos continuavam fixos na cordilheira. Victoria detectou, inquieta, que ardia novamente no seu olhar o fogo do dragão.

- Jack, estás bem? - perguntou-lhe, com suavidade, mas ele afastou-a bruscamente de si.

- Não, não estou bem - replicou com maus modos. - Maldição! Não sentem as serpentes? Estão por todo o lado, ou estiveram aqui, ou aproximam-se...!

Christian semicerrou os olhos e dirigiu o olhar para as montanhas. Agora que o calor não era tão intenso, percebeu que, efectivamente, Jack tinha razão: havia algo da essência shek no ar e parecia que era mais acentuada um pouco mais a norte, onde começava o fosso de lava.

Mas isso não fazia sentido. Estava convencido de que os sheks jamais se aproximariam tanto de um lugar cheio de fogo. No entanto, o seu instinto dizia-lhe...

- É absurdo - declarou, sacudindo a cabeça. - Este lugar é demasiado quente para um shek.

Jack olhou-o, irritado. Até Victoria notou como o fogo do dragão se tornava cada vez mais intenso no seu interior.

- Tu estás aqui! E essa repugnante serpente em miniatura também! Vais negar que não cheiras os outros sheks? Ou será que me tomas por idiota?

Christian dirigiu-lhe um olhar gélido.

- Sinto essa presença - admitiu. - Mas... Jack não o deixou terminar.

- Eu sabia! - gritou, furioso. - Maldita serpente! Então reconheces! Trouxeste-nos para uma armadilha!

Desembainhou Domivat, que brilhou com uma violenta labareda.

- Estúpido - ciciou Christian com uma cólera gelada. Também ele tirou Haiass da sua bainha. Jack lançou-se contra ele, com um grito. As duas espadas chocaram e o ar estremeceu.

Foi Christian quem contra-atacou primeiro. Jack foi ao seu encontro.

Porém, uma vara tão luminosa como a aurora interpôs-se entre ambos. Produziu-se uma faísca intensa quando os fios das duas espadas tocaram o Báculo de Ayshel. Os dois rapazes retrocederam um pouco.

- Enlouqueceram? - explodiu Victoria. - Guardem isso imediatamente! Não temos tempo para...!

Jack não a ouviu. A fúria do dragão pulsava nas suas têmporas, o instinto assassino dominava os seus actos e impelia-o para o shek. Para ele, não existia mais nada naquele momento. Nem sequer Victoria.

Afastou-a do seu caminho, sem cerimónias, para voltar a investir contra Christian. O shek respondeu à sua estocada com determinação sinistra.

- Chega! - gritou Victoria.

Interpôs-se entre os dois; sabia que arriscava a vida, mas não se importou. Jack afastou o báculo com a espada, impaciente, deixando escapar um rugido de fúria. Mas Victoria continuava ali, entre ambos, serena e segura de si. Jack semicerrou os olhos, retrocedeu uns passos e atirou a espada para o lado. Victoria respirou fundo...

Mas o seu alívio durou pouco. Os olhos de Jack continuavam sem a ver, continuavam sem ver outra coisa a não ser o shek que devia matar. O rapaz rugiu de novo e o seu poder libertou-se de repente, transformando-o em dragão. Lançou a cabeça para trás para soltar um poderoso rugido, estendeu as asas, bateu a cauda contra o chão e lançou-se sobre Christian, saltando por cima de Victoria, com as garras projectadas.

- JACK! ! - gritou Victoria. - Jack, NÃO!

Christian também não hesitou por um só instante e levou a cabo a sua própria metamorfose, com um obscuro prazer. Não se lembrou de Victoria, não pensou em mais nada a não ser em matar o dragão, quando arremeteu contra ele, com um cicio ameaçador, as presas que destilavam o seu veneno mortífero.

Victoria gritou, correu para eles, suplicou-lhes que parassem; mas as duas formidáveis criaturas não a escutaram. Era demasiado pequena, demasiado insignificante, comparada com o ódio ancestral que os devorava por dentro. Uma parte de Christian sabia que tinha sucumbido aos planos do seu pai; mas naquele momento não lhe importava.

O dragão levantou voo e a serpente seguiu-o. Encontraram-se no ar. O dragão procurou prendê-lo entre as suas garras, mas o sinuoso corpo do shek era demasiado escorregadio, e não o conseguiu. Kirtash voltou-se e fincou as presas no corpo dourado de Yandrak; este rugiu, furioso, e lançou uma baforada de fogo. A serpente sibilou quando, apesar da sua tentativa para se esquivar, a labareda a atingiu numa asa. Yandrak procurou morder Kirtash, que voou em volta dele, rodeando-o. Quando o dragão deu por isso, a serpente asfixiava-o entre os seus anéis.

Yandrak perdeu o equilíbrio. Kirtash bateu as asas, mas não podia sustentar o peso de ambos.

Os dois caíram ao chão, com os corpos enredados, mordendo-se, desfazendo-se um ao outro, com sinistro prazer, como se tivessem nascido para aquele confronto e a sua vida não tivesse nenhum sentido sem ele.

Victoria pensava estar no meio de um pesadelo. Continuava a chamá-los pelos seus nomes, procurando fazer-se ouvir. Mas os bramidos do dragão e os silvos da serpente afogavam a sua voz. Victoria não se apercebeu, mas estava a chorar. Ver naquela situação os dois seres que mais amava no mundo despedaçava-lhe o coração.

Yandrak libertou-se do sufocante abraço da serpente e levantou novamente voo. Kirtash foi atrás dele.

Victoria soube que não podia alcançá-los. Agora sobrevoavam os vulcões, perseguindo-se um ao outro, atacando-se, ferindo-se... matando-se.

- Victoria! Vic!

Por entre um véu de lágrimas, Victoria viu duas formas douradas que desciam até ela daquele céu alaranjado. Mal lhes prestou atenção. O seu coração, todo o seu ser, estava pendente da luta que mantinham Yandrak e Kirtash, o dragão e a serpente, sobre os Picos de Fogo.

Assim, mal se apercebeu de que os dois pássaros haai aterravam junto dela. Apenas tomou consciência da voz de Shail, que lhe dizia:

- Vic! Graças aos deuses que estás bem. O que aconteceu? Victoria voltou à realidade.

- Vão matar-se, Shail, vão matar-se! Temos de os impedir!

- Sobe a um dos pássaros, vamos!

Zaisei desmontou para lhe ceder o seu lugar, e Victoria trepou ao dorso da ave de um salto, agradecida.

Depressa os dois sobrevoavam os Picos de Fogo, com a extremidade do báculo de Victoria acesa como uma estrela, em direcção às duas criaturas que, alheias a tudo, continuavam a procurar matar-se mutuamente.

Aos seus pés, o fosso serpenteava como uma cobra de fogo; era um espectáculo aterrador, mas Victoria mal se apercebeu da sua existência. Só tinha olhos para os dois seres que, momentos antes, tinham sido Jack e Christian.

Kirtash conseguiu, por fim, fincar as suas presas no pescoço do dragão, que lançou um bramido de dor. Sentiu então uma chamada distante.

"Ah, Haiass", pensou.

Afastou-se do dragão e ali mesmo, sobre o abismo de lava que se abria ao longe, aos seus pés, transformou-se novamente em humano.

A espada materializou-se na sua mão logo que a chamou.

com um sorriso de satisfação, Kirtash enterrou-a no peito do dragão, que deixou escapar um rugido de surpresa e de dor.

Brotou sangue. Vermelho, brilhante, envolveu o fio de Haiass.

A espada de gelo bebeu, ávida.

Kirtash retirou-a do corpo do dragão... que agora era o corpo de um surpreendido rapaz de quinze anos...

Kirtash via como Jack, ferido de morte, se precipitava no fosso, como caía com um pesado estrondo ao rio de lava, que sepultou o seu corpo no abismo de fogo.

Ouviu o grito de dor infinita de Victoria e só então tomou consciência do que fizera.

Tudo tinha acontecido muito rápido - a transformação, o golpe de misericórdia... - mas o poder de Christian só poderia mante-lo durante uns segundos no ar sob a forma humana, de modo que, quando começou a cair, transformou-se outra vez em shek.

Uma única ideia martelava na sua cabeça.

"Matei o dragão. Matei o último dragão que restava no mundo."

No fundo da sua mente, ouvia as vozes de todos os sheks do mundo que celebravam, agora sim, a extinção de todos os dragões.

- Finalmente - disse Zeshak. Ashran sorriu, satisfeito.

- Derrotámos a profecia. Vencemos os deuses, amigo.

O rei das serpentes respondeu com um sorriso de triunfo.

Christian aterrou, ainda aturdido, e transformou-se de novo em humano. Haiass tinha caído no chão, perto dele. Pegou nela. O seu fio tinha recuperado aquele suave brilho branco-azulado, que agora não vacilava, tendo-se tornado mais firme que nunca. Fechou os olhos. Apesar de estar gravemente ferido, sentia-se poderoso, muito poderoso. Jamais se tinha sentido assim e saboreou o seu triunfo.

Então percebeu que alguém o fitava. Era um olhar tão intenso que Christian o sentiu como se lhe queimasse a nuca. Abriu os olhos e voltou-se.

Era Victoria.

Poucas coisas podiam impressionar Christian, mas o rosto de Victoria naquele momento, o seu olhar, fez estremecer a sua alma.

A rapariga tinha descido do pássaro dourado, a cambalear, e agora estava de joelhos no chão, incapaz de se manter de pé. Levara as mãos ao peito, como se lhe custasse respirar... ou como se lhe tivessem arrancado o coração. O seu rosto mostrava uma grotesca mistura do sofrimento mais profundo com o mais manifesto desconcerto, como se não conseguisse acreditar no que acontecera.

Jack tinha morrido, sabia-o. Estava tão ligada a ele que sabia quando estava bem, quando estava em perigo, quando se sentia feliz e quando, simplesmente, tinha deixado de existir no mundo. Sabia-o sem necessidade de anéis mágicos que a vinculassem a ele.

E Jack já não existia. Fora-se. Para sempre.

Christian tomou então consciência de que, se a tivesse matado, se a tivesse torturado até à morte, não a teria magoado mais do que acabara de fazer. Odiou-se a si mesmo por não ter conseguido controlar o seu instinto. Partiu-se-lhe o coração; quis correr para junto dela, abraçá-la, pedir-lhe perdão e fazer o que fosse para compensá-la, para apagar aquela dor tão profunda do seu olhar que o fazia estremecer até à última fibra do seu ser.

Mas não havia nada, absolutamente nada, que pudesse fazer para remediar aquilo.

Perdera-a para sempre, tal como ela perdera Jack.

Sentiu um cicio perto de si e voltou-se. Ali estava a cria de shek. Parecia contente e satisfeita, e olhava-o com uma expressão velhaca que o surpreendeu numa serpente tão jovem. Então, de repente, apercebeu-se de quem aquele olhar lhe recordava, quem lhe tinha estado a falar em sonhos durante todo aquele tempo através daquela criatura.

- Zeshak - murmurou.

Sem mais palavras, sem hesitação, desferiu a sua espada sobre o pequeno shek, que se encolheu sobre si mesmo num cicio aterrorizado. Mas a ponta de Haiass cravou-se no chão, perto dele, congelando a terra em volta debaixo de uma fria capa de geada que era um reflexo da ira e da impotência que o seu dono sentia.

- Vai - disse o jovem. - Vai, antes que. te mate por te atreveres a manipular-me.

Sabia que tinha sido Zeshak quem lhe falara em sonhos através da mente daquela cria, que não tinha culpa do que acontecera. Mas não pôde evitá-lo.

A pequena serpente semicerrou os olhos e afastou-se dele, deslizando a toda a velocidade. De imediato, desapareceu entre as rochas.

Victoria observou a fuga da cria de shek sem que houvesse a menor variação na expressão do seu rosto. Estava fora dali, incapaz de se mover, de falar, de reagir. Christian olhou-a. Havia dor nos olhos dele, uma dor profunda, mas Victoria não o notou. Devolveu-lhe um olhar ausente.

Christian compreendeu, naquele preciso instante, que matando Jack também a matara a ela. Fechou os olhos, mas não conseguiu evitar que um par de lágrimas rolasse pelas suas faces.

Não era capaz de recordar a última vez que chorara.

Foi uma sensação muito estranha, mas não aliviou a sua dor.

Matara o último dragão. Estava feliz, contente, satisfeito. Os sheks iriam aceitá-lo de novo entre eles, regressaria para junto do seu pai, tinha, de novo, um lugar no mundo para ele.

Mas tinha perdido Victoria. Teria suportado perdê-la de qualquer outra maneira; que ela desaparecesse para sempre com Jack, por exemplo, ou até mesmo que morresse.

Nada teria sido tão horrível como o que acontecera agora à rapariga.

Victoria estava viva, mas por dentro estava morta. Não sobreviveria à perda de Jack. Christian sabia que nem sequer ele poderia preencher aquele vazio, muito menos depois de ter sido a causa da sua dor.

Então a rapariga levantou-se e Christian olhou-a, surpreendido. Deu um passo para ela, mas não avançou mais. Não se atreveu.

Aos tropeções, como se não fosse mais do que uma marioneta movida por fios invisíveis, Victoria avançou até ao lugar onde tinha ficado, abandonada, Domivat, a espada de fogo. Pegou-lhe.

Não se queimou.

A espada tinha-se apagado, estava morta, tal como o seu dono. Victoria ficou a olhar para ela, com o olhar perdido, sem a ver realmente.

Continuava sem aceitar. Simplesmente, não podia. Então, a rapariga ergueu de novo a cabeça para olhar para Christian. O jovem viu o imenso vazio dos seus olhos, a dor, o desconcerto. "Não compreendo", parecia dizer o seu olhar.

- Victoria - sussurrou ele. - Lamento. Juro-te que lamento... muito. Não queria magoar-te, acredita-me. Nunca quis fazer-te mal.

Victoria não o ouviu. Estava demasiado longe.

Christian deu meia-volta e afastou-se, caminhando com o passo sereno que o caracterizava, com Haiass a brilhar na sua mão direita, em direcção à Torre de Drackwen. Victoria viu-o partir, ainda sem compreender o que estava a acontecer.

Então perdeu os sentidos.

Caiu ao chão, suavemente, como uma folha de árvore, com as mãos ainda a agarrar o punho de Domivat.

Shail não aguentou mais e correu para ela. Até ali não se tinha atrevido a interromper aquele momento tão importante, a troca de olhares entre Victoria e Christian, o assassino de Jack. Algo tinha estremecido no ar quando aqueles dois jovens, seres extraordinários, criaturas sobre-humanas, se tinham olhado nos olhos.

O bordão do mago prendeu-se num buraco do chão, e ele caiu ao comprido, magoando-se. Zaisei dirigiu-se a ele para o ajudar.

Chegaram junto de Victoria. A jovem continuava desmaiada no chão, pálida.

- Oh, Vic - suspirou Shail, com os olhos cheios de lágrimas.

A estrela da sua testa brilhava com suavidade, transmitindo, de maneira misteriosa, uma dor tão intensa que Zaisei levou as mãos ao coração e sufocou um soluço.

 

                                                                                Laura Gallego García  

 

                      

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