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O DESTINO - P.2 / Laura Gallego García
O DESTINO - P.2 / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume IV / Segunda Parte

O DESTINO

 

                           A PROFECIA DO SÉTIMO

Ninguém via Alexander desde a tarde anterior. Recolhera-se pouco depois do anoitecer e já era quase meio-dia. Denyal tinha ido procurá-lo ao seu quarto, mas encontrara a porta fechada. Do outro lado, Alexander dissera-lhe que se encontrava um pouco indisposto, mas que não tardaria a voltar ao trabalho diário da Fortaleza.

Assim, Denyal substituíra-o nessa manhã. Ainda havia muito para organizar, muito para reconstruir, muito para aprender e muito para ensinar. Embora no fundo Denyal soubesse que era tudo inútil, que a profecia não se iria cumprir porque o último dragão estava morto, a maior parte da gente que se tinha juntado a eles esperava ainda o seu regresso com uma fé inabalável.

Denyal já não sabia se devia acreditar ou não na profecia. Mas descobrira que acreditava em Alexander, que em cerca de três meses conseguira mais do que os Novos Dragões em vários anos. Pensava muitas vezes que com ele no comando tinham mais possibilidades de derrotar Ashran do que aguardando o regresso de um dragão dourado que quase ninguém tinha visto.

Por isso sentiu-se inquieto quando teve de substituir Alexander naquela manhã. Conhecia-o o suficiente para saber que não era homem de abandonar as suas obrigações por uma indisposição qualquer.

Também Shail achou estranho. Mas, ao contrário de Denyal, suspeitou logo o que podia ser aquilo que mantinha o amigo no quarto. Foi visitá-lo após o terceiro amanhecer.

A porta estava trancada, mas isso nunca fora um obstáculo para Shail. Abriu-a sem problemas, deslizou para dentro do quarto e voltou a fechá-la atrás de si, com delicadeza.

- Alexander? Estás bem?

Um leve grunhido respondeu à sua pergunta. Shail descobriu o amigo acocorado num canto, com o rosto entre as mãos. Avançou um pouco, mas a voz de Alexander deteve-o, rouca:

- Não te aproximes mais. Shail respirou fundo.

- Alexander... como é que estás assim? Estamos em plena luz do dia! O jovem ergueu a cabeça e Shail recuou um passo, sem conseguir evitá-lo. O rosto de Alexander era uma estranha mistura de feições humanas e animais.

O feiticeiro esforçou-se por manter a calma. Já o tinha visto naquele estado poucos dias depois de chegar a Nurgon, da última vez que Ilea estivera cheia. Fez um cálculo e descobriu que, efectivamente, faltava pouco para um novo plenilúnio da lua média. Contudo, pelo que sabia, a influência que as luas exerciam sobre Alexander só se fazia sentir de noite e nunca com tanta antecipação.

- É por causa de Ilea? - perguntou, preocupado. - Só estará cheia daqui a uns dias, acho eu. Supostamente, não era para te afectar ainda.

- Três dias exactamente - grunhiu Alexander. - Mas não é só por isso. Sabes o que acontece dentro de três dias, Shail?

- Além do plenilúnio de Ilea? - Shail reflectiu. - Não tenho a certeza, não sei bem às quantas ando.

- Dentro de três dias, Shail - disse Alexander, com uma voz profunda e gutural -, será a noite de fim de ano.

Shail demorou uns segundos a relacionar as coisas.

- A noite de fim de... Não! Por todos os deuses!

- Sim - confirmou Alexander, com um sorriso sinistro. - Por todos os deuses e por todas as deusas e as suas malditas luas.

Shail sentiu que perdia as forças. Teve de se sentar.

- De facto, daqui a três dias é o plenilúnio de Ilea. E também de Ayea e de Érea... - Ergueu a cabeça para Alexander, muito sério. Espera! Se dentro de três dias Érea estará cheia, isso significa que já passaram... - fez um rápido cálculo mental - setenta e quatro dias desde o seu último plenilúnio. Já estávamos em Idhún nessa altura?

- Sim. Tu devias estar a caminho do Oráculo. A mim surpreendeu-me em Vanissar.

- O que te aconteceu nessa noite?

Pela mente de Alexander passaram, fugazes, cenas de quando Amrin os traíra, entregando-os a Eissesh. Tinha-se transformado de repente e não recordava o que acontecera

depois. Mas Allegra contara-lhe.

- Não queiras saber - grunhiu. Sobreveio um silêncio tenso.

- Fim de ano - murmurou então Shail. - Triplo Plenilúnio.

- Não quero nem pensar no que me pode acontecer nessa noite. Ou o que pode acontecer a qualquer um que estiver perto de mim.

- Eu também não - murmurou o feiticeiro. - Então, o que vais fazer?

- Não sei. Falei com Allegra, e ela garantiu-me que ia procurar uma solução... mas o tempo passou depressa demais e temos estado ocupados a recuperar Nurgon. Confesso que isto me apanhou um pouco de surpresa.

- E Allegra ainda não voltou de Shur-Ikail - acrescentou Shail. Alexander, és tão organizado e disciplinado para outras coisas... - suspirou. - Surpreende-me que não tenhas mais controlo sobre o calendário lunar.

Alexander desviou o olhar.

- Suponho que, apesar do tempo que passou, ainda me custa digerir tudo o que me aconteceu. Sobretudo desde que voltámos para Idhún. É tudo tão familiar e ao mesmo tempo tão diferente... Tento agir como se nada tivesse mudado, mas no fundo... somos estranhos na nossa própria terra. Não sentes isso às vezes?

- Sim, sinto - anuiu Shail. - Mas depois lembro-me de Jack e de Victoria e não consigo evitar pensar em como se terão sentido eles num mundo que nunca conheceram.

O silêncio imperou de novo.

- Às vezes penso que o shek tinha razão - disse então Alexander e que não devíamos ter passado pela Porta. Se tivéssemos ficado em Limbhad, Jack ainda estaria vivo. E tu não terias perdido a tua perna.

- Na altura, fizemos o que tínhamos de fazer. Tal como agora. Vais ficar aqui o dia todo? Para muitos dos nossos não é novidade que de vez em quando sejas um pouco mais feio do que o habitual.

Alexander sorriu.

- Não é isso. É que tenho medo de perder o controlo. Se estou assim agora, de dia... o que irá acontecer à noite, quando surgirem as luas?

Shail não respondeu de imediato.

- vou procurar Qaydar - disse então. - Ele saberá o que fazer.

- Shail, isso não me parece boa ideia.

- Sim, eu sei que Qaydar não confia em ti; mas é um arquifeiticeiro. Se ele não puder ajudar-te, ninguém mais poderá. É ou não é?

Alexander assentiu.

Shail saiu do quarto, fechando cuidadosamente a porta atrás de si. Ia tão absorto que não entreviu a sombra que estava agachada num canto e que estivera a ouvir com muita atenção toda a conversa, do outro lado da porta.

"Triplo plenilúnio", disse Sheziss, pensativa.

Tinham-se encontrado nas termas, agora desertas. Jack sabia que ninguém os incomodaria. Depois da luta da noite anterior, Victoria não voltaria a descer ali. Christian tinha-se trancado num dos salões superiores e não o tinham visto o dia todo.

Quanto ao resto dos habitantes da torre... tinham partido. Victoria conversara com os feiticeiros e dissera-lhes que podiam ir-se embora se quisessem. Já nenhum deles tinha vontade de permanecer do lado de Ashran, não depois de terem olhado o último unicórnio nos olhos. Mas também não tinham coragem suficiente para ficar com a Resistência.

Só um deles, um humano, afirmara querer combater junto da dama Lunnaris e defendê-la do Necromante que antes tinha sido seu senhor.

Jack falara com ele em privado e pedira-lhe que, se realmente queria fazer algo por eles, levasse uma mensagem a Nurgon da sua parte: que contasse a Alexander que ele e Victoria continuavam vivos, que estavam bem e, acima de tudo, que avisasse os rebeldes do que iria acontecer no Triplo Plenilúnio. Talvez não lhes servisse de nada sabê-lo quando o escudo de Awa caísse, mas pelo menos tinha de os avisar.

O feiticeiro partiu após o terceiro amanhecer. Foi o último a abandonar a torre.

Agora estavam apenas os três, Jack, Christian e Victoria, na enorme e desolada Torre de Kazlunn. Mas Jack sentia-se seguro porque sabia que Sheziss andava por perto. Se parasse para pensar no assunto, chegaria à conclusão de que era um absurdo e o seu instinto dir-lhe-ia que não devia confiar num shek. No entanto... desde que chegara àquele mundo caótico, apenas Sheziss lhe tinha dado respostas às perguntas que a sua alma fazia.

- Ashran quer voltar a utilizar o poder dos astros - murmurou o jovem. - Mas há uma coisa que não entendo. Se foi capaz de provocar algo da dimensão de uma conjunção astral, como é que até agora não conseguiu anular o escudo feérico?

- Se foi capaz de provocar a conjunção astral, não é de estranhar que tenha necessitado de todos estes anos para se recompor. O pouco que sei da magia é que não é inesgotável. E, por maior que seja o poder de Ashran, abrir a Porta de Umadhun e provocar a conjunção astral deve ter implicado um tremendo esforço. Mas teve bastante tempo para recuperar forças e, além disso, agora tem uma nova fonte de magia.

- Estás a referir-te à Torre de Drackwen - compreendeu Jack. Desde que renovou a energia da torre, está mais poderoso. Conquistou Kazlunn numa questão de dias, quando andava há anos a tentar. Ainda não conseguiu vencer o escudo de Awa... mas consegui-lo-á, se somar à sua própria magia o poder do Triplo Plenilúnio.

- Certo. E estou de acordo com o híbrido quando ele defende que essa deve ser a noite em que terão de o enfrentar. A noite em que a profecia se cumprirá, se é que tem de se cumprir.

Jack ergueu-se.

- Mas faltam apenas dois dias e meio para o Triplo Plenilúnio. Não sei se Christian estará em condições.

- Então que fique para trás - sugeriu ela. - Se está fraco, não passará de um peso morto.

- Não pode ser; precisamos dele para derrotar Ashran. Ao contrário do que pensa a Mãe e o Arquifeiticeiro, creio que ainda não se cumpriu a parte da profecia que falava dele.

Sheziss endireitou-se bruscamente, interessada.

- A profecia falava dele? Não me tinhas contado isso.

- Pensei que sabias. Pelos vistos, "só um dragão e um unicórnio poderão derrotar Ashran; e um shek abrir-lhes-á a Porta".

- Não conhecia essa última parte.

- Porque os sacerdotes mantiveram-na em segredo. Nós também só soubemos no último momento. Claro que - acrescentou de imediato - esse shek não tem de ser Christian. Podias ser tu, Sheziss. Conduziste-me à Porta de regresso a Idhún quando...

- Silêncio, rapaz - cortou ela. - Não me deixas pensar.

Jack calou-se, um pouco aborrecido. Mas passou-lhe depressa quando viu que Sheziss balançava suavemente a cabeça, com os olhos fechados, mergulhada em profundas reflexões. Percebeu que era algo grave.

Teve de esperar ainda algum tempo antes de voltar a ouvir a voz dela na sua mente.

- As profecias são as ordens dos deuses. Perante a ameaça de Ashran, os Seis ordenaram aos dragões e aos unicórnios que lutassem contra ele. Por isso Ashran matou-os a todos. Mas não matou os sheks.

- Claro que não. São seus aliados. Além disso, Ashran não conhecia essa parte da profecia.

Sheziss cravou nele os seus olhos irisados.

- Tens a certeza?

Jack emudeceu, perplexo.

- Nunca subestimes o teu inimigo, Jack - prosseguiu ela. - Achas mesmo que os Seis têm autoridade para dar ordens a um shek?

- É por isso que são deuses, não é?

- Jack, Jack, lembra-te de tudo o que te ensinei. Numa guerra cada oponente pode movimentar as suas próprias peças. Não as do adversário.

Quando Jack entendeu o que ela queria dizer, as pernas falharam -lhe e teve de se apoiar na parede para não cair.

- Não é possível - murmurou.

- Os Oráculos são a voz dos deuses. De todos os deuses, Jack. Dos Sete. Jack engoliu em seco e fechou os olhos.

- Estás a insinuar que o teu deus, o Sétimo, também anunciou a sua própria profecia? Que a intervenção de Christian é obra sua? Mas... isso não faz sentido! Porquê dizer "um shek abrir-lhes-á a Porta"? Porque não dizer "um shek destrui-los-á"?

- Porque os Seis já tinham revelado a primeira profecia e as suas palavras não podiam desfazer-se.

- Queres dizer que foi uma contraprofecia? Ou que a profecia nos foi revelada em duas partes?

-Ambas as coisas. Porque achas que os sacerdotes dos sangues-quentes lhes ocultaram a última parte da profecia?

- Porque chegou depois - concluiu Jack. - De facto, se a profecia original tivesse falado de um dragão, um unicórnio e um shek, os próprios sacerdotes teriam duvidado da sua autenticidade. Teriam desconfiado. E não teriam tido tanta pressa em salvar-nos, a Lunnaris e a mim. É isso que estás a tentar dizer-me?

- Os planos dos deuses são intricados, mas têm um sentido, embora nos custe a entendê-lo. Só posso fazer suposições...

- Continua, por favor - suplicou Jack, roído de curiosidade.

- Ashran foi escolhido pelo Sétimo para ser o general da sua nova batalha, para ser o seu novo sacerdote em Idhún. Mas os Seis perceberam o perigo e ordenaram aos seus dragões que atacassem. Também os unicórnios foram convocados através da profecia.

Jack imaginou centenas de dragões a atacar a Torre de Drackwen, centenas de unicórnios a cercá-la.

- Não se pode revogar uma ordem dos deuses. Se dragões e unicórnios foram enviados para a batalha, nem sequer o Sétimo podia ordenar-lhes que parassem. Só tinha uma opção: destruí-los. Por isso Ashran movimentou os astros para acabar com eles, antes que a luta começasse. E também trouxe os sheks de volta.

- Duas jogadas numa só - murmurou Jack.

- Mas Ashran subestimou os sangues-quentes, porque eles salvaram-vos, a ú e a Lunnaris. Nessa altura, percebeu que a profecia se cumpriria. Desse por onde desse, vocês iriam enfrentá-lo. Não podia acabar com a profecia, mas podia tentar modificá-la. Desse modo, pediu ao seu deus e as suas preces foram ouvidas. O Sétimo formulou a sua própria profecia. Foi então que os vossos sacerdotes escutaram uma alteração na voz dos Oráculos, uma alteração que não souberam como interpretar. Por isso ocultaram-na.

- A profecia continuava a ser essencialmente a mesma - entendeu Jack. - O Sétimo não podia mudá-la. Mas podia, sim, acrescentar algo. Mas por que razão o teu deus enviaria Christian para nos abrir a Porta? Ashran enviou-o para nos matar.

- Não kves tão à letra. Abrir a Porta, mostrar o caminho... Esse híbrido de shek estava destinado a ser o vosso guia, Jack. E foi-o durante muito tempo. Continua a sê-lo.

- A sua verdadeira missão consiste em conduzir-nos a Ashran depreendeu Jack, com um calafrio. - Para quê? Para que o derrotemos?

- Achas mesmo que é assim tão simples derrotá-lo? Não, rapaz, a, jogada era perfeita. Vocês

tinham-lhe, escapado, de. maneira que enviou um shek. Ordenou-lhe que vos matasse... mas a voz do Sétimo, que sabia que não poderia lutar contra a profecia, na realidade sussurrava: "Tra-los de volta." Ambos esperavam que o instinto fosse mais poderoso do que a profecia. Sabiam que era inevitável que tu e Kirtash se enfrentassem. Ele estava mais preparado do que tu. Acreditavam que, apesar da profecia, Kirtash te mataria...

- Esteve prestes a fazê-lo - disse Jack a meia-voz, mas Sheziss não tinha acabado de falar.

- Ao passo que seria incapaz de acabar com a vida do último unicórnio do mundo.

Jack ficou estarrecido.

- Queres dizer que Ashran já sabia que Christian não mataria Victoria? Não faz sentido. Se o torturou quando soube que o tinha traído!

- Ele fez mesmo isso? Bem, tens a certeza de que o castigou por amar o unicórnio e não por poupar a tua vida?

Jack reflectiu.

- Como sabias que teve a oportunidade de me matar e não o fez?

- É óbvio. Na altura não estavas preparado para o enfrentar. Assim sendo, teve de te poupar a vida. Caso contrário, estarias morto.

Jack virou a cabeça, aborrecido. Mas lembrava-se perfeitamente de quando Christian tivera a oportunidade de os matar a ambos, no jardim de Allegra, e não o fizera.

- Ashran tinha-lhe ordenado que vos matasse aos dois. A profecia dizia-lhe para vos conduzir até

ele. E Kirtash não tinha feito nem uma coisa nem outra. Se te tivesse matado, teria cumprido a sua missão. Se vos tivesse entregado a Ashran, também. Mas os seus sentimentos pelo unicórnio impediram-no de obedecer. Diz-me, o castigo

surtiu efeito?

- Suponho que sim. Christian traiu-nos e entregou Victoria ao pai dele. Victoria diz que Ashran fortaleceu então a sua parte shek. Que esteve a ponto de o matar ao fazê-lo.

- Isso não me surpreende. Os sentimentos humanos de Kirtash tornam-no demasiado fraco. Por causa deles, poupou-te a vida, Jack. Se Kirtash não voltasse a ser um shek, teria deixado de lhe ser útil. Portanto, creio que o teria matado, sim.

- Mas é seu filho - sussurrou Jack.

- Achas mesmo que um ser capaz de assassinar todos os unicórnios do mundo teria escrúpulos em matar um meio shek, mesmo que fosse seu filho?

Jack suspirou.

- Não - murmurou; não deixou de notar, contudo, que Sheziss não incluía a extinção dos dragões na lista de crimes cometidos por Ashran. "Ódio. Instinto", pensou com pesar.

- Pensa, Jaclc: qual é o papel de Kirtash na profecia? Pensa no que o seu pai lhe ordenou. E pensa no que o Sétimo lhe pediu através do Oráculo.

Jack reflectiu.

"Mata o dragão e o unicórnio."

"Trá-los de volta."

E então entendeu.

- Tinha de me matar a mim e levar Victoria consigo. Entregá-la a Ashran.

- Correcto. Pensa nisso, Jack. Essa jovem é o último unicórnio do mundo. Detém um poder incrível. Ashran quer Victoria. para si.

- Mas enviou Gerde para a matar.

- Gerde? Vejo a sua imagem nas tuas lembranças. Uma fada. Nem mesmo Ashran é estúpido a ponto de pensar que uma fada podia derrotar-vos a vocês dois, um dragão e um unicórnio. Decerto, enviou-a com outro propósito.

Jack pensou em tudo o que a intervenção de Gerde implicara para a Resistência. Victoria contara-lhe que Gerde tinha revelado a Ashran que ela era o unicórnio, algo que na altura nem a própria Victoria sabia, algo que Christian ocultara ao seu pai. Depois, Gerde e os seus trasgos tinham atacado a mansão de Allegra... enquanto Christian era selvaticamente torturado por Ashran. Recordou que Victoria tinha um anel, o anel de Christian, através do qual tomara dolorosamente consciência do sofrimento do shek na Torre de Drackwen, a um milhar de mundos da Terra. Relembrou que Victoria tinha tirado o anel para poder lutar junto à Resistência e defender a mansão. E que ela sempre pensara que, ao tirar o anel, tinha perdido Christian, que voltara a transformar-se em Kirtash.

- Se é verdade que estavam unidos pelo anel - reflectiu Jack -, Ashran recuperou Kirtash quando Victoria o tirou. Quer dizer que enviou Gerde para nos distrair. Para obrigar Victoria a lutar e a abandonar Christian à sua sorte.

"Se não o tivesse feito", acrescentou o rapaz para si mesmo, "provavelmente Christian teria resistido até ao fim. Então Ashran tê-lo-ia matado."

Estremeceu.

- Allegra disse que sequestrar Victoria tinha sido ideia de Kirtash - murmurou. - Que Ashran teria preferido matá-la.

- Talvez, talvez. Mas o ideal para ele, Jack, teria sido que tu morresses. Ashran resistirá até ao úZtimo momento a matar Victoria.

- Porquê?

- Ah, é o sonho de qualquer feiticeiro. Nunca ninguém conseguiu apanhar um unicórnio. Mas um unicórnio ocuíto no frágil corpo de uma jovenzinha... é muito mais fácil de capturar.

Jack sentiu que explodia de raiva.

- Teve-a nas suas mãos e fez-lhe algo... algo tão terrível que ela nem quer falar disso. Nunca me contou o que realmente aconteceu quando esteve prisioneira de Ashran.

Sheziss compreendeu de imediato.

- Obrigou-a a entregar a sua magia. Foi assim que restabeleceu o poder da Torre de Drackwen. Graças à magia roubada de Lunnaris. Forçar um unicórnio a entregar a sua magia... ah, isso deve ser o mais horrível e humilhante que podia acontecer a uma dessas criaturas. Deve ter-lhe deixado na alma uma marca para toda a vida.

- Além disso, por pouco matava-a - resmungou Jack, apertando os punhos com raiva.

Sheziss olhou-o com interesse.

- A sério? bom, isso explica porque é que a deixou escapar.

- Deixou-a escapar? Christian e Shail resgataram-na.

- Pensa nisso, Jack. Um unicórnio morto não serve para nada. Se o facto de lhe arrebatar a magia pela força quase a matou, a única alternativa era de consegui-lo de outra forma, como é óbvio.

- Como?

- Fazendo exactamente o que fez- Deixando Kirtash partir para que se unisse à Resistência. Calculava que mais cedo ou mais tarde te mataria e, então, Lunnaris seria sua. Ou do seu filho, melhor dizendo, o que significa que seria sua de qualquer forma. Só Kirtash podia matar-te e, se o fizesse, talvez o unicórnio não lho perdoasse. Porém, se o amor de Lunnaris por Kirtash conseguisse suplantar o ódio, então ela acabaria nos braços desse meio shek e não tardaria a unir-se a ele e ao seu pai. Também podiam ter-se matado um ao outro, é certo. Fosse como fosse, teria sido indiferente, porque a profecia não se cumpriria. Afinal de contas, tu estavas morto.

Jack sentou-se, procurando assimilar as suas palavras.

- E agora? - murmurou.

- Agora a profecia vai cumprir-se. Kirtash irá conduzir-vos até Ashran. Eu diria que tu vais morrer, se não fosse por te agarrares tão insistentemente à vida. O que sei... é que Ashran está à espera de Lunnaris de braços abertos. E bem provável que por esta altura já tenha encontrado a forma de a utilizar sem a matar. Caso contrário, teria acabado com ela quando teve a oportunidade.

Jack tremia violentamente.

- Como podes ter tanta certeza?

- Porque é a única explicação que faz sentido, Jack. Vai atacar Nurgon com tudo o que tem. Na noite do Triplo Plenilúnio. Sabe que vocês irão aproveitar para chegar a ele, está à vossa espera. Sabe que Kirtash lhe entregará Victoria. Porque já o fez uma vez. Também sabe que tu morrerás. Porque já morreste uma vez. Segundo a profecia dos Seis, vocês irão enfrentar Ashran. Na profecia do Sétimo, um shek entregar-vos-á a ele. Embora Kirtash não tenha consciência disso, ele nunca passou de um peão. Até mesmo o seu amor por Victoria estava previsto.

- Não pode ser - sussurrou Jack.

- Mas é - disse ela. -E tu sabes disso.

Sim, Jack sabia. Todas as peças se encaixavam.

Fechou os olhos, atordoado. Inspirou fundo. Então tomou uma decisão.

- Não vou levar Victoria a Ashran - decidiu. - Se temos de lutar, lutaremos tu e eu, e Christian, mas não ela. Não o vou permitir.

Sheziss fechou as asas.

-Tu e Kirtash - corrigiu. - Eu não vou acompanhar-vos.

Jack voltou-se como se o tivessem beliscado.

- O quê? O que queres dizer com isso?

- Que não vou convosco.

Jack demorou um pouco a digerir aquilo. Quando o fez, sentiu-se traído, decepcionado, enganado e furioso, tudo ao mesmo tempo. "Espero que saibas discernir em quem deves confiar ou não", dissera-lhe Christian. Porque é que aquele maldito shek tinha sempre razão?

O frágil controlo que exercia sobre o seu ódio por Sheziss desfez-se em mil pedaços. com um rugido de raiva, precipitou-se sobre a shek enquanto deixava aflorar o espírito de Yandrak.

Mas não teve tempo de se transformar. Sheziss deixou cair a sua pesada cauda sobre ele e, com uma poderosa chicotada, derrubou-o no chão.

Jack ficou sem fôlego. A frieza das escamas da shek moderou um pouco a sua raiva. Respirou fundo, várias vezes, como Sheziss lhe tinha ensinado, e pensou em Ashran.

Ashran. O homem que torturara Victoria e que queria ainda utilizá-la. O homem que tinha enviado Kirtash para os matar a ambos.

Ou para o matar a ele.

Recordou então que Sheziss o odiava.

-Já não queres vingar-te?

- Quero vingar-me - disse ela com suavidade, afastando-se dele. Mas já não se trata de uma questão pessoal. Zeshak, Ashran... seguem as ordens do nosso deus. A sua

missão é sagrada. Os meus filhos morreram porque um deles ia fazer parte de uma profecia. O meu deus assim o ordenou. Não se tratava de um capricho de Ashran, de uma obrigação de Zeshak. Posso rebelar-me contra eles, contra a minha gente... mas não contra o meu deus. Lamento, Jack.

Jack olhou-a de relance, ainda furioso. Sheziss tinha-se enroscado e fechado os olhos. O jovem sabia que era a sua maneira de dar a conversa por terminada. Procurou acalmar-se, mas a voz tremia-lhe quando disse:

- Ensinaste-me a combater por mim mesmo, não pelos deuses. Deste-me razões para lutar, para além dos deuses, para além da profecia.

E fá-lo-ei. Se não vieres, respeitarei a tua decisão. Mas eu vou prosseguir. Irei com o teu filho matar o homem que te tornou tão infeliz. E, se de caminho nos depararmos com Zeshak, irei cravar-lhe Domivat no coração por ti.

Deu meia-volta, sem esperar a sua reacção. Sabia que não se moveria.

O exército do rei Amrin de Vanissar tinha chegado no dia anterior e assentara arraiais perto do acampamento do exército do rei Kevanion. No dia seguinte, muito cedo, um mensageiro de Amrin fizera saber aos sitiados que o rei queria encontrar-se com o seu irmão.

Alexander não estava em condições de falar com ele. A proximidade do Triplo Plenilúnio continuava a afectá-lo e o Arquifeiticeiro não conseguira encontrar forma de o fazer voltar ao seu estado normal.

- A única coisa que poderei fazer por ti nessa noite é fechar-te para que não faças mal a ninguém - resmungou. - E selar a porta com todos os conjuros de reclusão que conheço.

Não obstante, tinha-se oferecido para lhe lançar um feitiço de camuflagem, para que todos os que o olhassem vissem nele o príncipe Alsan que conheciam.

- Porque é que não me lembrei disso antes? - murmurara Shail, perplexo.

Alexander não pudera evitar sorrir.

- Porque estás apaixonado. E desde que estás apaixonado andas com a cabeça no ar.

Shail corara.

Agora ali estavam os dois, nos limites do bosque de Awa, que crescia sobre o que antes tinha sido a rica terra de Nurgon. Aos olhos dos demais, Alexander apresentava um aspecto completamente humano; mas, no fundo da sua alma, a batalha contra o animal já tinha começado.

Ao seu lado, Shail mostrava-se inquieto. Apenas ele e o Arquifeiticeiro estavam ao corrente do que acontecia na realidade e tinham-no acompanhado para se assegurarem de que a influência lunar não lhe causava nenhum problema antes do tempo.

Alheios a tudo isto, Covan, Denyal e Harel, o silfo, acompanhavam-nos, muito sérios.

Diante deles encontrava-se o rei Amrin protegido por dois guerreiros de confiança, um feiticeiro e um sacerdote. Este último trazia no peitilho da sua túnica o símbolo de duas serpentes entrelaçadas. Os rostos dos rebeldes ensombraram-se quando o viram. Aquele era um sacerdote do Sétimo, o deus negro. Naqueles quinze anos de domínio shek, tinham-se erigido bastantes templos em honra do deus das serpentes aladas; templos que outrora foram destruídos, como sede de um culto que as duas Igrejas dos Seis proibiam e perseguiam.

Alexander reconheceu a quinta pessoa que escoltava o seu irmão. Tratava-se de Mah-Kip, o semiceleste. O jovem olhou-o fixamente, mas Mah-Kip baixou os olhos. Parecia incomodado, e Alexander não podia culpá-lo. A ascendência celeste fazia dele alguém alheio a todo o tipo de violência; uma guerra não era o lugar mais indicado para ele.

O rei Amrin deu um passo em frente.

- Irmão - saudou com frieza.

- Irmão - respondeu Alexander; não conseguiu evitar que a palavra lhe saísse tingida de um tom entre amargo e trocista.

- Vejo que estás com melhor aspecto do que da última vez que te vi

- disse Amrin, tenso.

Alexander não respondeu à provocação. Naquela noite, Érea estivera cheia e transformara-o brutalmente num animal. Era óbvio que Amrin não o esquecera. Noutras circunstâncias, Alexander até teria brincado com isso. Mas faltavam apenas dois dias para o Triplo Plenilúnio e o que quer que fosse que estivesse relacionado com as luas e a sua condição de híbrido deixava-o extremamente nervoso.

- O que pretendes? - rosnou.

- Exigir-vos que deponham as armas e jurem lealdade a Ashran. Alexander deixou escapar uma gargalhada. Foi a sua única resposta. Amrin sorriu, condescendente.

- Viste o nosso exército, Alsan? Ou será que as árvores vos tapam a vista das muralhas?

- Chamas a isso exército? A única coisa que vi foi uma corja de traidores aliados às serpentes.

- Cuidado com o que dizes, renegado - ciciou o sacerdote.

- Chamo exército às forças unidas de Dingra, Drackwen, Vanissar e Shur-Ikail - disse Amrin. - Aceita-o, irmão. Vocês não têm hipótese.

Alexander irritou-se. Custava-lhe cada vez mais controlar-se.

- Viste o escudo feérico que nos protege? Ou será que as asas dos sheks vos tapam a vista do acampamento?

Amrin já não sorria.

- Alsan - disse -, se realmente és meu irmão, então é provável que conserves algum do bom senso que, segundo me lembro, tinhas. Estou a avisar: deponham as armas. Rendam-se. Ou ninguém sobreviverá quando atacarmos.

- Estás preocupado com o teu irmão mais velho? Que enternecedor. Amrin empertigou-se.

- Tens dois dias para pensar, Alsan. Nem mais um.

"Daqui a dois dias, não estarei em condições de pensar em nada", disse Alexander para si próprio. De repente, sentiu-se extenuado. Olhou para o irmão e recordou os tempos em que ambos eram crianças e brincavam juntos. Evocou a dor que tinham sentido com a morte da sua mãe, a intrépida rainha Gainil, e como Amrin, que na altura contava apenas cinco anos de idade, se esforçara para não chorar. Respirou fundo. Custava-lhe imaginar que aquele rapazinho que sustinha as lágrimas era agora o rei Amrin de Vanissar, o mesmo que se aliara a Ashràn, o mesmo que o entregara a Eissesh.

- Quando treinávamos com o mestre Covan - disse subitamente -, imaginávamos que éramos os mais destemidos de todos os cavaleiros da Ordem. Sonhávamos lutar pela honra e pela justiça, pela glória de Nurgon, de Vanissar, de Nandelt. Nunca pensei que combateríamos na mesma batalha... mas em lados contrários.

Amrin retrocedeu e olhou para ele como se tivesse levado uma bofetada.

- Eu também não pensei que o meu irmão nos abandonaria durante quinze anos - censurou-o - para regressar convertido em algo que não sei se devo qualificar de humano. Mas, por aquelas batalhas imaginárias, Alsan, por aquelas brincadeiras infantis, vou pedir-te só mais uma vez: deponham as armas. Ashràn não será tão clemente quanto eu poderei ser.

Alexander negou com a cabeça.

- Suml-ar-Nurgon, irmão - murmurou.

Trocaram um último olhar. O rosto de Amrin endureceu.

- Muito bem, irmão. - Pronunciou a palavra com desdém. - Tu é que quiseste que fosse assim.

Esporeou o seu cavalo e fê-lo dar meia-volta. Os rebeldes observaram-nos a ir embora, sombrios e ensimesmados.

Jack passou o resto da tarde a deambular pela torre.

Sabia que Christian continuava fechado naquela sala, sabia que Victoria estava sozinha. Mas não encontrara ainda a coragem necessária para falar com ela. Precisava de reflectir e assimilar o que Sheziss lhe dissera.

Quando as três luas já se erguiam no firmamento, Jack recordou que faltavam apenas duas noites para o Triplo Plenilúnio. Não podia deixar passar mais tempo. Foi à procura de Victoria.

Encontrou-a no seu quarto às escuras, deitada na cama, com a cara voltada para janela, contemplando as três luas.

Deitou-se junto dela. Abraçou-a por trás como costumava fazer.

- Lamento ter demorado - sussurrou-lhe ao ouvido. - Tinha coisas para fazer. Aborreceste-te muito?

- Não. Estive a descansar. Tenho a sensação de que perdi muitas forças ultimamente.

- E emagreceste bastante. Devias comer um pouco mais.

- Eu sei. Logo recuperarei peso, tem calma. Seja como for, creio que tu é que não jantaste. Fui agora à cozinha e reparei que não tocaste na tua parte da comida que fizemos esta manhã.

- Daqui a pouco vou.

Victoria voltou-se para olhar para ele. Notou que estava sério, demasiado sério.

- Jack? O que se passa?

"Tenho de lhe falar do plenilúnio", pensou Jack. Mas o que dizer-lhe? Que daí a duas noites teriam de enfrentar Ashran, porque não tinham outra hipótese? Que o Sétimo tinha revertido a profecia a seu favor, que Christian a entregaria ao pai dele outra vez e que era bastante provável que ele próprio morresse na batalha?

Estreitou-a um pouco mais.

- Victoria, tenho de te perguntar uma coisa - disse-lhe ao ouvido.

- Sei que não vais querer responder, mas mesmo assim tenho de perguntar: o que te aconteceu na Torre de Drackwen?

Sentiu-a tremer nos seus braços.

- Tu sabes que não quero falar disso, Jack.

- E sei porquê. Tu achas que, quando souber, vou ficar tão zangado que irei imediatamente matar Christian para o fazer pagar. Por te ter entregado ao seu pai para que te torturasse. Como pudeste perdoar-lhe, Victoria?

- Porque o amo, Jack. Tu já o sabes.

Abraçou-a com mais força. Afastou-lhe delicadamente o cabelo da testa.

- Tal como me amas a mim?

- Tal como te amo a ti.

- Então perdoar-me-ias qualquer coisa? Ela sorriu.

- Só não te conseguiria perdoar uma coisa. Mesmo que quisesse, não conseguiria.

- Seja como for, Victoria, o que Ashran te fez foi horrível. Não tens medo de voltar a enfrentá-lo?

- Sim, muito. Mas já estive cara a cara com ele há umas semanas e não foi assim tão terrível.

Contudo, franziu o sobrolho. Havia algo sepultado no fundo da sua memória, algo relacionado com o olhar de Ashran que se negava a vir ao de cima.

- O quê? - exclamou Jack. - Estiveste com Ashran?

- Fui à Torre de Drackwen à procura de Christian. Mas ele não estava, de modo que foi o seu pai quem me recebeu e me disse onde o encontrar.

- Não posso acreditar - murmurou Jack, atónito. - Apresentaste -te na Torre de Drackwen, assim, sem mais? Tu sozinha? Porquê?

Ela demorou um pouco a responder.

- Na altura nada me importava. Não tinha medo de nada. Se Ashran me tivesse matado, ter-me-ia feito um favor.

Jack sentiu um calafrio ao ouvi-la falar assim. Beijou-a nas têmporas, com ternura.

- Não digas isso. Não voltes a dizê-lo nunca mais, ouviste? - sussurrou-lhe ao ouvido. - Nunca vires as costas à vida, meu amor. Se por algum motivo te abandonar,

se tombar nesta luta... promete-me que continuarás a viver. Que ficarás com Christian, se ele te fizer feliz. Mas nunca, jamais... jamais vires as costas à vida. É o que temos de mais belo.

Victoria voltou-se para ele. Jack tomou-lhe o rosto entre as mãos e contemplou-a longamente. Beijou-a, pondo naquele beijo todo o amor que sentia. Sabia o que tinha de fazer.

- Jack? - sussurrou ela. Ele olhava-a intensamente.

- És tão linda - sorriu. - Juro-te que daria o que quer que fosse para poder oferecer-te algo mais do que amor. Nem que fosse apenas um mínimo de segurança.

Ela negou com a cabeça. Os seus olhos tinham-se enchido de lágrimas. Abraçou-o com força.

- Não preciso de segurança, Jack. Sei cuidar de mim mesma. Basta-me saber que estás bem. E voltarei a enfrentar Ashran, por muito que me custe, para acabar por fim com este pesadelo. Irei combater, se for necessário, por nós três.

Jack engoliu em seco. Não, não podia dizer-lho. Ela não lhe perdoaria. Abraçou-a com toda a força, beijou-a, sussurrou-lhe ao ouvido o quanto a amava.

Victoria correspondeu aos seus beijos e carícias, e a certa altura abraçou-o e murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais belas que alguma vez lhe disseram:

- Obrigada por continuares a existir.

Jack sentiu-se derreter. Quis responder-lhe com algo semelhante, mas a voz não lhe saiu. Beijou-a de novo. Amava-a loucamente.

- E tão fácil ser feliz quando estás comigo - suspirou Victoria.

- És feliz?

- Neste preciso momento? Muito, Jack. Porque estás aqui, ao meu lado. E Christian também. Vocês são tudo o que preciso para ser feliz. Entendes?

- Sim - murmurou Jack, sentindo-se de repente um canalha. Ficaram assim mais um pouco, um junto do outro; mas, muito depois de Victoria ter adormecido, Jack continuava acordado, a pensar.

O semiceleste chegou aos limites de Awa iam as três luas já no alto do céu. Levava o rosto oculto debaixo de um capuz e movia-se de forma furtiva, mas era evidente que não estava acostumado a fazê-lo. As dríades, fadas guardiãs que vigiavam os limites do bosque, deixaram-no passar para Nurgon.

Foi Denyal quem o recebeu, embora o recém-chegado tivesse pedido para falar com o príncipe Alsan.

- Tardará um pouco a chegar - respondeu o líder dos Novos Dragões, franzindo o sobrolho. - Podes falar comigo enquanto isso. O que é que a ratazana do Amrin quer agora?

Mah-Kip, contudo, abanou a cabeça. Parecia desolado.

- Não é o rei quem me envia, rebelde. O rei não sabe que estou aqui. Eissesh também não, mas, se o soubesse, não duvido que me mataria pelo que estou a fazer.

Denyal ficou a olhar para ele. Teria desconfiado de qualquer outro homem, mas não de um semiceleste. Ninguém que tivesse algum sangue de Celestia nas veias poderia enganá-los de maneira tão vil e ainda fingir que se encontrava atormentado pelas dúvidas e pela angústia.

- Então desembucha - apressou-o. - Se é verdade que estás a agir nas costas do rei, quanto mais depressa voltares, menos possibilidades haverá de que notem a tua ausência. A não ser, claro... que queiras juntar-te a nós.

Mah-Kip estremeceu.

- Não posso juntar-me a vocês. Não posso deixar o rei sozinho sob a influência de Eissesh. Vocês vêem-no como um traidor, por isso desprezam-no por se ter submetido aos sheks, por lutar contra o próprio irmão. Contudo, não há ódio nem rancor no coração do rei. Apenas solidão... e medo.

- Medo de Eissesh?

O semiceleste abanou a cabeça.

- Medo de falhar ao seu povo, medo de que o seu amado reino de Vanissar se tome ermo como Shia debaixo do gelo dos sheks. Mas ele não é um desalmado, rebelde. Por isso veio advertir-vos esta manhã. Não era um ultimato nem um desafio, mas sim um aviso, um pedido... que não quiseram escutar. O que ele não pôde dizer transmito-vos eu: dentro de dois dias, rebelde, o escudo feérico cairá... e vocês estarão perdidos.

Denyal ficou petrificado.

- Estás a mentir.

Mah-Kip esboçou um sorriso triste.

- Como desejaria que tivesses razão. - Cobriu-se novamente com o capuz e deu meia-volta para se ir embora. - Lembra-te das minhas palavras. Dentro de dois dias, na noite de fim de ano, Ashran destruirá o escudo feérico de uma vez por todas... e o seu exército atacará.

Caminhou em direcção ao portão. Denyal deteve-o.

- Espera! Porque nos dizes isto?

- Sabe-Io tão bem quanto eu. Se o escudo cair e as forças dos sheks atacarem... será um massacre. Assim peço-te, rebelde, que, se não depuserem as armas como sugeriu o meu rei, pelo menos evacuem da fortaleza as crianças e os idosos, e todos aqueles que não estiverem dispostos a morrer dentro de dois dias, todos os que vos forem importantes.

Mah-Kip retomou o seu caminho. Desta vez, Denyal não o impediu.

- Enganaram-vos, semiceleste - conseguiu dizer. - O escudo não cairá. Funciona há mais de quinze anos.

- Também a Torre de Kazlunn resistia há mais de quinze anos disse a voz do semiceleste vinda da escuridão. - E tombou. E se o escudo de Awa também cair... nem sequer o dragão e o unicórnio da profecia conseguirão salvar-vos...

As suas últimas palavras perderam-se na noite.

Jack deixou Victoria a dormir e foi à procura de Christian.

Encontrou-o na sala onde estivera fechado todo o dia. O shek estava inclinado junto a uma estranha depressão do chão, de forma hexagonal e cuja borda estava orlada de símbolos que formavam palavras escritas em idhunaico arcano.

- O que é isso? - perguntou Jack, intrigado.

- Uma espécie de portal. Todas as torres têm um; servia para os feiticeiros de categoria mais elevada se teletransportarem de uma torre para outra.

Jack ficou petrificado.

- Todas as torres? A de Drackwen também? O shek assentiu.

- Isso significa que os lacaios de Ashran poderiam entrar através dele!

- Não, porque este não funciona. Os feiticeiros de Kazlunn desactivaram-no há muito, quando as torres começaram a cair sob o domínio dos sheks. Contudo, sei que o da Torre de Drackwen está activo. Quando o poder da torre foi restabelecido, todos os conjuros que havia nela também se renovaram. É provável que Gerde tenha querido reactivar também este portal, mas não teve tempo.

- Quer dizer que... se conseguires pôr isso a funcionar, poderás conduzir-nos ao coração da Torre de Drackwen?

- Sem dúvida. Se Ashran não tiver inutilizado o seu, claro. Jack sentiu a boca seca.

- Não o fez, Christian. Tenho a certeza de que já está à espera. Para sua surpresa, o shek não fez nenhum comentário.

-Já suspeitavas?

- Sim - admitiu Christian. - É tudo demasiado estranho, há coisas que não fazem sentido. Estou cada vez mais convencido de que se trata de uma armadilha. No entanto, sinto que não nos resta outra opção. Ou lutamos na noite do Triplo Plenilúnio ou não lutaremos nunca... porque não haverá mais ocasiões.

- Estou de acordo contigo. Também acho que devemos lutar. - Fez uma pausa e prosseguiu: - Mas não com Victoria.

Christian voltou-se para olhar para ele.

- Creio que Ashran quer utilizá-la outra vez.

- Outra vez? - repetiu Christian com suavidade. Jack percebeu que tinha falado demais.

- Não, ela não me contou - esclareceu. - Mas imagino que foi o que Ashran fez e que é por isso que ela não quer falar do assunto. Arrebatou-lhe a magia, não foi? Utilizou-a para ressuscitar a Torre de Drackwen.

O shek não disse nada. Jack estava a ficar farto da sua impassibilidade e do seu silêncio.

- Tu estavas lá - acusou-o, sem conseguir evitá-lo. Fez-se um breve silêncio.

- Sim - respondeu Christian.

- Doeu... doeu-lhe muito? Christian respirou fundo.

- Sim - admitiu em voz baixa. - Imenso. Jack cerrou os punhos e procurou controlar-se.

- Como foste capaz de o permitir?

- Na altura não me importava, ou pelo menos era o que eu pensava. Mas depois... também não consegui suportá-lo. Foi muito corajosa - acrescentou.

Jack ficou um pouco mais calmo.

- E destemida - realçou, com um sorriso. - Tanto que, apesar de tudo, seria capaz de voltar a enfrentá-lo. - Fez uma pausa; Christian fitou-o, adivinhando que ia propor-lhe algo. - Não quero que volte a pôr-lhe as mãos em cima.

- Não o fará - prometeu o shek, num tom perigoso.

- Mas vais conduzir-nos até ele. Aos dois.

- Para lutar.

- Qual é a diferença? Levarás Victoria a Ashran. Outra vez. Christian olhou para ele.

- Aonde queres chegar?

- Não acredito na profecia, Christian. Tu acreditas? A pergunta apanhou Christian de surpresa. Reflectiu.

- Supostamente acredito na profecia, porque procurei matar-vos para evitar que se cumprisse. Supostamente não acredito, porque tentei evitá-la e isso quer dizer que não creio que seja inevitável. E, se não é inevitável, é uma possibilidade, não uma certeza. Portanto, não é uma profecia.

Jack demorou a seguir o raciocínio do shek.

- Eu não acredito - repetiu. - Não acredito que vamos vencer esta luta. Até posso arriscar a minha própria vida, mas não a de Victoria. Faço-me entender? Se não acabar com a ameaça de Ashran, os sheks acabarão por me matar mais cedo ou mais tarde. Mas tenho motivos para pensar que não têm nada contra Victoria. Não quero forçar o confronto e obrigar Ashran a matá-la e não quero entregar-lha de bandeja para que faça com ela o que lhe apetecer.

Christian dirigiu-lhe um olhar demorado.

- Vais à Torre de Drackwen lutar? - perguntou. - Sozinho? Jack hesitou.

- Tinha pensado em pedir-te que viesses comigo. Mas, se tombarmos os dois, Victoria não o suportará. Assim, é preferível que a leves para longe, que a escondas de Ashran, que a protejas se eu fracassar. Se eu não voltar, pelo menos ter-te-á a ti.

- Isso é um suicídio, Jack.

- Sim, mas... não tenho outra opção. Não quero que Victoria volte à Torre de Drackwen. Não depois do que Ashran lhe fez.

O silêncio instalou-se de novo.

- Victoria já esteve na Torre de Drackwen depois disso. Sabias, não sabias?

- Sim, contou-mo. Foi uma loucura da sua parte. E tu, como deixaste que se encontrasse com ele?

- Sabia que não lhe faria mal. Devia-mo. Prometeu-me que a respeitaria...

- Se me matasses - concluiu Jack em voz baixa. - Fizeste-o por isso?

- Sabes perfeitamente que não. Fi-lo porque não consegui controlar-me.

Jack não insistiu.

- Quando lhe arrebatou a magia esteve a ponto de a matar. Talvez não queira voltar a correr esse risco.

- Não - admitiu o shek. - Estava convencido de que, se tu morresses, Victoria se uniria a ele... por mim.

- Também pensei nisso.

- E quem sabe se não teria sido assim, se tivesses morrido de outra forma qualquer, Jack. Mas eu matei-te e Victoria não me perdoou.

Os dois calaram-se por um momento.

- Seja como for - prosseguiu Jack -, não vou deixar que ela volte àquele lugar, não enquanto Ashran lá estiver. Concordas comigo?

Christian sorriu.

- Já é um pouco tarde para isso. Devias ter-me ouvido quando me neguei a abrir a Porta em Limbhad. Se tivessem ficado na Terra, Victoria estaria a salvo.

- Na altura Shail e Alexander estavam connosco e as suas opiniões pareciam as mais sensatas. Mas que se dane a sensatez. O meu coração recusa-se a pôr Victoria nas mãos de Ashran.

Christian olhou para ele, hesitante.

- Achas realmente que tens alguma possibilidade de o vencer? Mesmo que eu te acompanhe... a profecia falava de um unicórnio, um dragão e um shek.

- Não achas que Victoria já fez o suficiente? A profecia não especificava de que maneira o unicórnio ajudaria a derrotar a Ashran. Por acaso não conseguiu que nós nos aliássemos? E se fosse esse o seu papel na profecia?

- Não temos como saber.

- Eu só sei que Ashran tem muito interesse em Victoria. E isso basta-me para querer afastá-la dele tanto quanto possível. Percebeste?

- Perfeitamente. - Christian ergueu-se, muito sério. - Nesse caso, irei contigo à Torre de Drackwen.

- Sem Victoria?

- Sem Victoria. Mas o que será dela se não voltarmos?

Jack sorriu. Pensou em Sheziss; disse a si próprio que, mesmo que a shek não os acompanhasse, não lhe poderia negar isso.

- Sei de alguém que cuidará dela. E creio que a deixo em boas mãos.

Christian fitou-o, com um brilho inquiridor nos seus olhos azuis. Depois, a custo, anuiu.

- Isso é impossível - disse Harel, abanando a cabeça. - Ninguém pode fazer cair o escudo de Awa. Nem sequer Ashran.

- Como podes ter tanta certeza? - perguntou Shail, impaciente. A magia de Drackwen subjugou os feiticeiros da Torre de Kazlunn. O que te faz pensar que a magia feérica é mais poderosa do que a dos três arquifeiticeiros juntos?

O silfo fez vibrar as asas, mas não respondeu. Shail não estranhou. Nunca ninguém tinha sido capaz de descobrir como funcionava o escudo feérico. Era algo que as fadas e os silfos mantinham no mais absoluto segredo.

Shail ficara fascinado desde o primeiro momento em que ouvira falar dele. À primeira vista não se via, mas, se se observasse com atenção o bosque de longe, sobretudo ao fim do terceiro entardecer, podia descobrir-se que uma fina cúpula o cobria, quase como uma capa de pó prateado que brilhava tenuemente à luz do ocaso. Shail sabia que o escudo não podia ser atravessado por ninguém, excepto por feéricos e por aqueles a quem estes autorizavam a passagem.

Shail sempre se havia perguntado que magia era aquela.

Parecia ser um poder inerente aos feéricos, mas, que ele soubesse, os poderes das fadas tinham a ver fundamentalmente com as árvores e as plantas, não com criar escudos invisíveis no céu. Como já reparara que as dríades se tornavam desagradáveis e intratáveis se lhes fizesse muitas perguntas a esse respeito (e não convinha fazê-las zangar-se, pois podiam ser ameaçadoramente ferozes se se dispusessem a isso), tinha deixado de insistir no assunto.

Mas agora a segurança da Resistência e de todos os refugiados de Nurgon estava em perigo.

- Fizemos um trato - interveio Denyal, muito sério. - Entregávamo-vos Nurgon em troca de protecção. Nós cumprimos a nossa parte. Estas malditas árvores que nos rodeiam por todo o lado... Nurgon já pertence a Awa. Agora queremos saber... exigimos saber se essa protecção de que tanto se orgulham é de facto infalível. As serpentes garantem que podem fazer cair o escudo. Mostrem-nos que não é verdade. Se é que podem.

Harel fitou-o rispidamente, e Shail apercebeu-se de um brilho colérico nos seus olhos dourados. Trocou um olhar com Zaisei, que se encontrava silenciosa ao seu lado.

- Somos aliados, humano - atirou-lhe o silfo. - Partimos do princípio de que vocês são capazes de confiar nos feéricos de Awa, tal como nós confiámos nos cavaleiros de Nurgon. Ou não é assim?

Falara virado para Denyal, mas, na realidade, as suas palavras dirigiam-se a Covan. O mestre-de-armas hesitou.

- Harel - disse por fim -, tu e eu somos mais do que aliados. Poderia dizer-se que somos amigos. Pedes-nos confiança. Confias realmente em nós? Se o escudo é tão fiável, porque é que ocultas tão zelosamente como funciona, mesmo dos teus aliados... dos teus amigos?

O silfo não respondeu de imediato. Meneou lentamente a cabeça, pensativo, e o seu cabelo verde, semelhante aos ramos de uma árvore jovem, agitou-se em torno do seu rosto juvenil, de pele parda e sarapintada.

- O escudo é intransponível - disse - porque ninguém, à excepção de nós, sabe como funciona. E é melhor que continue assim.

- E Gerde? - interrompeu Shail inesperadamente. - Poderia ela saber como destruí-lo?

- Gerde - repetiu Harel, e o seu rosto contraiu-se num esgar de desprezo. - Ela viveu muito tempo numa torre de feitiçaria. Não conhece os segredos de Awa como o resto dos feéricos.

- Mas atravessou o escudo uma vez.

- O escudo não impede a passagem aos filhos do bosque, feiticeiro. E as serpentes não o são. Pode até ser que ela saiba como funciona o escudo, mas duvido que saiba como destruí-lo.

- Eu não arriscaria - interveio Covan. - Se Ashran acha que pode destruir o escudo, temos de tentar imaginar como poderia fazê-lo. Harel, tu sabes que tenho razão.

O silfo permaneceu em silêncio durante bastante tempo.

- De acordo - disse por fim. - Sigam-me até ao bosque; eu mostro-vos. Shail olhou-o, hesitante. Apesar de já se desembaraçar bem com a muleta, era-lhe muito difícil avançar através da vegetação. Se os acompanhasse para fora da fortaleza, iria atrasá-los; mas queria ver o que Harel tinha para lhes mostrar.

O silfo compreendeu o seu dilema.

- Não te preocupes, feiticeiro. Vamos procurar um nimen para ti. Shail assentiu, embora não estivesse convencido. Os nimens eram um tipo de insecto couraçado vagamente parecido com uma formiga gigante. Os feéricos utilizavam-nos frequentemente para as suas deslocações pelo bosque, e muitos dos rebeldes de Nurgon tinham aprendido a domá-los com a mesma finalidade. Mas Shail nunca quisera tentar. Sentiu a mão de Zaisei a entrelaçar-se na sua; era a sua maneira de lhe dizer que continuava ali para o ajudar se precisasse.

Harel saiu dos limites da Fortaleza e embrenhou-se no bosque. Os três humanos e a jovem celeste apressaram-se a ir atrás dele. Era muito difícil seguir um silfo no bosque, mesmo que não fizesse uso das asas. Mas ia assobiando suavemente, emitindo um som agudo e melódico, e os seus companheiros limitaram-se a guiar-se pela sua voz.

Shail, como de costume, ficou para trás. Ele e Zaisei demoraram a juntar-se aos outros um pouco mais adiante. Estavam à espera deles junto a um grupo de nimens que tinham acudido ao chamamento de Harel. O silfo acariciava-lhes a cabeça e dizia-lhes palavras de agradecimento.

Denyal e Covan ajudaram Shail a montar no dorso do insecto, enquanto Harel o mantinha quieto.

- E agora? - perguntou o feiticeiro.

- Agora só é preciso segurares-te - sorriu o silfo. - O nimen irá seguir-me através do bosque. Só tens de te deixar levar.

É muito simples.

E, de facto, era. Shail demorou um pouco a acostumar-se ao movimento das seis patas do nimen, mas a criatura deslocava-se suavemente, deslizando sobre o musgo do

bosque atrás de Harel.

Ainda tiveram de avançar um pouco; finalmente, o silfo parou numa pequena clareira do bosque, iluminada pela luz das luas, onde havia um templo dedicado à deusa Wina.

Shail contemplou-o, maravilhado. Os templos a Wina costumavam erigir-se em lugares muito recônditos, pelo que não era fácil encontrá-los. Mas eram autênticas maravilhas da arquitectura feérica, porque, como todos os edifícios (para os designar de alguma forma) que construíam, eram feitos de árvores vivas. Este templo era composto por um grupo de jovens árvores jenai, cujos ramos avermelhados se abriam para cima como leques, que o poder feérico estimulava para que se entrançassem uns nos outros, formando paredes de ramos vivos. Mais para cima, as pontas continuavam a enroscar-se sobre si mesmas, criando uma espécie de cúpula de folhas campanuladas que se espalhavam sobre o tecto do templo.

- Idan-ne - chamou Harel suavemente.

Algo se moveu no interior do templo e pouco depois uma figura esbelta saiu. Era uma dríade, mas não se vestia como a maioria das guardiãs do bosque. Usava a túnica verde das sacerdotisas de Wina.

A fada vinha sorridente, mas o sorriso congelou-se-lhe nos lábios ao ver os intrusos.

- Humanos, Harel - sussurrou, perplexa. - O que significa isto?

- Calma, Idan-ne - procurou tranquilizá-la o silfo.

- Que as três deusas velem os teus sonhos, irmã - interveio Zaisei, com doçura.

Idan-ne reparou então na sacerdotisa celeste e na sua túnica verde e prateada, bordada com o signo da Igreja das Três Luas: um triângulo invertido. O seu semblante suavizou-se um pouco.

- E que Wina faça crescer a vida à nossa volta - respondeu.

A presença de Zaisei facilitou as coisas. E, embora não estivesse totalmente convencida, a dríade concordou finalmente em mostrar-lhes o que queriam ver. com a cara de poucos amigos própria das dríades contrariadas, Idan-ne guiou o silfo, a celeste e os três humanos até à base de uma enorme árvore.

-Sabemo que é?

Eles não viram nada de especial no tronco. Ergueram os olhos, mas a árvore era tão alta que não conseguiam vislumbrar a copa.

Idan-ne abanou a cabeça em sinal de reprovação e acariciou suavemente a casca rugosa da árvore.

- Deviam reconhecê-la - censurou-os. - Plantámos muitas à volta da vossa fortaleza de pedra. Plantámo-las por todo o Awa, na realidade. Distribuímo-las de forma a não chamarem muito a atenção, mas a cobrirem quase toda a superfície do nosso bosque.

Hesitou. Olhou para Harel, suplicante. Mas o silfo assentiu e Idan-ne suspirou.

- São flores lelebin - confessou por fim, de má vontade. - São estas flores que criam o escudo que nos protege.

Shail, Denyal e Covan ficaram a olhar para ela, incrédulos.

- As flores azuis que se abrem à noite - disse de repente Zaisei, caindo em si. - É verdade, vêem-se das ameias da Fortaleza. Estão por todo o lado, mas bastante afastadas umas das outras. E são tão grandes que poderia caber uma pessoa no interior do cálice.

Aquilo não era inusitado, dado que Awa estava repleto de flores gigantescas. Mas eram poucas as espécies que estavam disseminadas por todo o bosque, como as lelebin. Normalmente, as flores de uma mesma espécie tendiam a agrupar-se em cachos ou colónias, ou a ocupar espaços nas sombras, junto aos rios ou sobre outras plantas, onde se sentissem mais confortáveis. Mas as lelebin estavam por todo o lado. Por todo o lado e, em simultâneo, tão afastadas umas das outras que não podia ser por acaso, compreendeu Shail de imediato.

Idan-ne riu levemente, deixando entrever uma fileira de dentinhos branquíssimos que iluminaram a sua pele pardacenta.

- As flores azuis que se abrem de noite - assentiu. - Alimentam-se da luz das luas. Recolhem-na e guardam-na, e depois transformam-na nesse escudo que as protege de tudo e que não deixa entrar ninguém no bosque, excepto nós, feéricos. E só nós sabemos como abrir brechas no escudo para os nossos aliados e as pessoas em quem confiamos o atravessarem.

- Como? - quis saber Covan.

O rosto da sacerdotisa ensombrou-se.

- Não esperes que te responda a essa pergunta, humano - disse secamente. - Plantamos as flores lelebin por todo o bosque e alimentamo-las com a nossa magia para que cresçam; elas captam a luz das luas e geram com ela esse escudo que nos protege. Para se destruir o escudo, ter-se-ia de aniquilar todas as lelebin, mais ou menos ao mesmo tempo. E para tal ter-se-ia de chegar até elas. E para chegar até elas... ter-se-ia de atravessar o escudo. Como vêem, é completamente impossível que Ashran possa acabar com ele.

Shail concordou, pensativo.

- E as luas? - perguntou. - O que acontece de dia, quando as flores não podem captar a luz das luas? O que acontece se as nuvens as cobrem?

- O escudo continua a funcionar - disse Harel. - Para que começasse a enfraquecer, teriam de privar as lelebin da luz durante várias semanas. De momento - acrescentou, dando uma olhadela ao céu -, estão muito bem alimentadas. Se Ashran ocultasse as luas agora mesmo, amanhã à noite o escudo continuaria igualmente resistente.

- Amanhã à noite há Triplo Plenilúnio - acrescentou Idan-ne, sorrindo. - As lelebin estarão mais belas e fortes do que nunca.

Shail, Denyal e Covan entreolharam-se.

- O semiceleste mentiu-nos - concluiu Covan simplesmente. Zaisei desviou o olhar. Shail abanou a cabeça.

- É muito estranho - disse. - Porque mentiria? Para quê? Se o escudo não vai cair amanhã à noite, então porquê escolher o Triplo Plenilúnio para atacar?

Denyal encolheu os ombros.

- Aquele miserável sempre sentiu predilecção pelas conjunções astrais - rugiu.

Shail franziu o sobrolho. O tema da conjunção astral provocava nele sentimentos contraditórios. Por um lado, recordava demasiado bem o horror da última conjunção dos seis astros, talvez melhor do que qualquer dos presentes, e ainda tinha pesadelos com isso. Por outro, naquele dia tinha encontrado e resgatado Lunnaris, o último unicórnio.

Reprimindo um suspiro, levantou os olhos para as luas, perguntando-se como era possível que os astros tivessem podido causar tanta destruição. De súbito, fez-se luz na sua mente. Ficou sem fôlego.

- O que foi? - perguntou Covan ao ver a sua expressão de horror. Shail demorou a conseguir falar. Quando o fez, teve de pigarrear para aclarar a garganta, porque a voz lhe falhou. Dirigiu aos seus companheiros um olhar de angústia.

- O semiceleste tinha razão - acabou por dizer. - Ashran fará cair o escudo amanhã à noite, no Triplo Plenilúnio. Utilizará o poder das luas, como já usou o dos seis astros há mais de quinze anos.

Os cinco, humanos, celeste e feéricos, ficaram a olhar para ele.

- O que estás a querer dizer? - exigiu saber Denyal.

- Não percebem? É como se fosse outra conjunção. Da primeira vez, a luz dos sóis e das luas tornou-se mortífera para os dragões e os unicórnios. Desta vez - inspirou fundo -, desta vez, a luz das luas cheias tornar-se-á letal para as flores lelebin. Irão abrir as suas pétalas ao máximo para captar a luz lunar, mas esta estará impregnada do poder maligno de Ashran... e irá destruí-las por completo.

" Então, o escudo de Awa cairá... na noite do Triplo Plenilúnio, como disse o semiceleste.

 

                             O JULGAMENTO DE ALEXANDER

- Nurgon - murmurou o rei Kevanion, contemplando as ameias da Fortaleza que assomavam por cima das árvores de Awa... para lá do escudo feérico. - Quantas recordações. Chegaste a estudar lá, Amrin?

- Sim - respondeu o rei de Vanissar, tenso. - Mas não cheguei a formar-me, porque tinha apenas dezasseis anos quando Nurgon caiu.

- E agora ergue-se de novo - assentiu Kevanion, pensativo. - Para voltar a cair.

Amrin não disse nada.

O rei de Dingra mandara chamá-lo porque, segundo dissera, tinha coisas a discutir com ele. No entanto, não marcara o encontro na sua tenda, mas um pouco mais longe, nas imediações do acampamento. Isso não era bom sinal. Quase com toda a certeza, significava que Ziessel queria estar presente.

Contudo, Amrin não esperava encontrar também Eissesh. Agora, os dois sheks conversavam telepaticamente, de frente um para o outro, com as asas fechadas, os corpos enroscados, os olhos semicerrados e as línguas bífidas a produzir aquele sibilar que Amrin achava tão desagradável. Tratava-se de uma conversa privada e, embora não precisassem de se afastar dos dois reis para trocar impressões em segredo, eles mantinham-se à parte.

- Parece que se dão bem - comentou o rei de Dingra, de bom humor, com uma expressão condescendente em relação às serpentes. - Quem sabe se não sairá daqui uma nova aliança... de outra natureza.

Riu-se da sua própria piada, mas Amrin não lhe achou graça. Olhou para ele, sombrio.

- Não devias tratar os sheks como se fossem animais de estimação, Kevanion. Para eles, tu é que és o animal de estimação. Ainda não percebeste?

O sorriso de Kevanion morreu-lhe nos lábios.

- És mesmo um imbecil - atirou-lhe. - Recordo-te que todos os sheks servem um humano, um dos nossos. Fá-lo-iam se fôssemos animais para eles?

- Ashran não é, nem nunca será, um dos nossos - resmungou Amrin.

- Eu no teu lugar mediria as palavras. Digamos que não estás numa situação muito favorável.

Amrin franziu o sobrolho.

- Porquê? O que queres dizer com isso?

O rei de Dingra não teve oportunidade de responder, porque os sheks se aproximavam novamente deles. Ziessel avançou primeiro, com movimentos sinuosos e elegantes.

- Rei Amrin de Vanissar - disse. Amrin inclinou a cabeça.

- Ziessel - murmurou.

- Amanhã à noite, quando as três luas se erguerem no céu, o escudo de Awa cairá e nós atacaremos. Quando o fizermos, Nurgon também cairá.

Amrin anuiu, um pouco desconcertado, sem entender porque Ziessel lhe dizia coisas que já sabia.

- Isso não é novidade nenhuma - prosseguiu ela, adivinhando os seus pensamentos. - Nós sabemo-lo bem. Mas será que os nossos inimigos também o sabem?

Amrin achou ter compreendido. Ficou tenso.

- Lancei um ultimato aos rebeldes. Dei-lhes a oportunidade de se renderem antes da noite do Plenilúnio.

- Eu sei - interveio Eissesh. - Uma perda de tempo. Sabes que não se renderão... a não ser, claro, que saibam que a sua protecção feérica vai falhar quando mais precisarem dela.

O rei de Vanissar franziu o sobrolho, tentando entender onde queriam chegar os sheks.

- Então devia tê-lo revelado para forçar a rendição? - perguntou, confuso. - Pensei que os nossos planos fossem secretos. Nunca supus que...

- Fizeste bem em não divulgar o que vai acontecer amanhã - cortou Eissesh. - Não obstante, houve alguém que o fez, um traidor muito próximo de ti.

Amrin retrocedeu, como se tivesse recebido uma bofetada.

- O quê? Isso é impossível. Poucos de nós sabem... Subitamente sentiu um movimento junto a si e voltou-se, desorientado. Tratava-se de Mah-Kip, o semiceleste. Mah-Kip estava sempre ali, perto dele, mas era tão silencioso que muitas vezes não reparava na sua presença. Contudo, naquele momento mantinha a cabeça baixa e tremia. De repente, Amrin percebeu tudo.

- Não... - sussurrou.

O seu leal conselheiro ergueu a cabeça e cravou nele os seus olhos de água-marinha, carregados de um intenso sofrimento.

- Perdoai-me, meu rei - sussurrou.

- Sabes que os traidores têm de ser executados, não é, Amrin? - perguntou Eissesh com suavidade.

Amrin ergueu a cabeça com brusquidão e deu um passo em frente, disposto a enfrentar o shek.

- É um filho de Yohavir - disse em voz baixa. - Nunca fez mal a ninguém. Não merece ser executado.

Eissesh semicerrou os olhos.

- É um traidor - disse. - Não é... Amrin?

O rei tremia violentamente. Baixou a cabeça, receoso do poder do shek, e desviou o olhar.

- Não é... Amrin? - insistiu Eissesh. Amrin não respondeu.

- Entregaste-me o teu próprio irmão - disse o shek. - Podes entregar-me o teu conselheiro, que não é mais do que um traidor. Pelo bem do teu reino, Amrin.

Amrin virou bruscamente a cabeça e cerrou os punhos. Ficou ali, de pé, durante uns segundos que lhe pareceram uma eternidade. Não se atreveu a olhar para Mah-Kip quando deu meia-volta para se afastar dali a passos largos.

Kevanion viu-o ir-se embora. Não parecia ter a menor intenção de o seguir.

- Vai-te embora - ordenou-lhe Ziessel, irritada.

O rei de Dingra ia protestar, mas os olhos da shek brilharam furiosamente.

- vou certificar-me de que regressa ao seu acampamento - apressou-se a dizer Kevanion.

Após os dois reis terem partido, só lá ficaram os sheks e, à sua frente, o semiceleste, que tremia aterrorizado, com a cabeça baixa.

- Apesar de tudo, não serás capaz de o odiar - murmurou Ziessel, pensativa.

- Fiz o que achava ser certo - sussurrou Mah-Kip. - Também o meu rei faz o que considera mais acertado.

Ziessel virou as costas e afastou-se ligeiramente deles. Eissesh baixou a cabeça até que os seus olhos matizados ficassem à altura dos do conselheiro, que continuava a tremer, apavorado.

Foi piedosamente breve. Mah-Kip ficou por instantes paralisado, com os olhos arregalados, enquanto a mente de Eissesh revolvia a sua consciência. Quando o corpo do semiceleste deslizou para o chão, sem vida, o esbelto corpo de Ziessel estremeceu.

- Devia ter calculado que este nos traria problemas - disse Eissesh, pensativo. - Seja como for, é melhor certificarmo-nos de que isto não volta a acontecer. Nenhum celeste será útil na guerra, pelo que vamos enviá-los a todos para casa. Para Celestia ou para o lugar de onde quer que tenham vindo.

- Parece-me bem - assentiu Ziessel. - Embora duvide muito que encontres um só celeste nos nossos exércitos. Este era um mestiço.

- Celestes, mestiços, o que for. Só sei que não quero um único sangue -quente de pele azul no acampamento. Terão um dia para o abandonar e, se não o fizerem...

- Não me agrada ter de matar celestes - disse ela. Eissesh ergueu-se sobre os seus anéis.

- Não são mais do que sangues-quentes - disse com indiferença.

- Eu sei. Mas são diferentes dos outros. Têm uma alma bela.

- vou pedir-to pela última vez, Zaisei - disse Shail, cansado. - Sai de Nurgon; vai para longe, para Celestia, ou para o Oráculo, ou para o novo templo que o Pai está a construir no meio do bosque. Mas não fiques cá. Não quero que estejas aqui quando o escudo cair.

A sacerdotisa levantou a cabeça para o olhar com gravidade. Shail sentiu-se incomodado.

- Não olhes assim para mim. Não quero que te aconteça nada de mal, é só isso.

- Eu sei que não vou ser de grande ajuda - disse ela. - Mas não quero deixar-te para trás. Não quero abandonar-te.

- Será apenas uma separação temporária.

- Achas? Leio o medo e as dúvidas no teu coração, Shail. Uma parte de ti está convencida de que ninguém sobreviverá ao ataque se o escudo cair.

Shail inspirou fundo.

- É possível - admitiu. - Mas o meu lugar é aqui, com a Resistência, lutando por aquilo em que acredito. Se tiver de morrer nesta batalha, que assim seja. No entanto, tu...

Zaisei baixou a cabeça.

- Os deuses abandonaram-nos. Não é, Shail?

O feiticeiro ficou com o coração partido ao ouvi-la falar assim. Abraçou-a com força.

- Quero acreditar que não - sussurrou. - Quero acreditar que estão do nosso lado apesar de tudo. Mas, depois da morte de Jack... já não sei o que pensar.

Zaisei encostou-se a ele. Estavam os dois sentados ao pé de uma árvore, no bosque que tinha crescido em volta da Fortaleza. Ali perto deambulava o nimen que conduzira Shail ao coração do bosque. Continuava a ser uma criatura livre, mas, por alguma razão, parecia ter-se afeiçoado ao feiticeiro. As três luas brilhavam sobre eles e a sua forma quase perfeita recordava-lhes que na noite seguinte assistiriam ao Triplo Plenilúnio, um dos espectáculos mais belos de Idhún, mas que tinha agora um significado negro e sinistro.

- Estás confuso - murmurou ela. - Tens dúvidas.

- Sim, é verdade. Tenho dúvidas desde que regressei a Idhún. Antes estava tudo bem nítido na minha mente. Sabia porque é que lutava e o que tinha de fazer. Sabia que Jack e Victoria eram o dragão e o unicórnio que procurávamos há tanto tempo, o que só podia significar que os deuses estavam connosco e que a profecia se ia cumprir. Até mesmo o facto de Kirtash se ter aliado a nós parecia estar escrito.

Mas depois voltámos a Idhún... Eu perdi a perna e voltei a encontrar-me contigo; Jack e Victoria foram para um lado, Kirtash para outro... É tudo tão confuso.

A nossa missão consistia em encontrar Yandrak e Lunnaris. Enquanto andámos à procura deles, tudo tinha sentido, mas depois...

Calou-se. Zaisei abraçou-o com força.

- E não te passou pela cabeça que talvez a tua missão já tivesse terminado? - perguntou-lhe com doçura.

- Sim. E disse-o claramente a Victoria... Foi então que Jack e ela se foram embora. Desde esse momento, foi tudo de mal a pior.

- Não te atormentes. A culpa não foi tua.

- Continuo sem saber ao certo se devia continuar a protegê-la ou se, como tu dizes, já não há nada que eu possa fazer, ou seja, não sei se o meu papel em tudo isto já terminou. Depois da morte de Jack... pensei que não restava mais nada que pudéssemos fazer. E que, se Victoria sobrevivesse à sua perda, ninguém conseguiria evitar que caísse nas mãos de Ashran. Nem sequer eu. Mas depois cheguei aqui, a Nurgon, e vi tudo o que Alexander está a fazer. E que vai continuar a lutar apesar do desaparecimento de Jack. Isso só pode ser um sinal dos deuses, não é?

Mas se é assim... porque nos dificultam cada vez mais as coisas? Porque é que Ashran pode destruir o escudo, ainda por cima na única noite em que não podemos contar com Alexander, porque estará transformado num animal? Agora todos os indícios apontam numa direcção, Zaisei: perdemos. Então talvez seja melhor pôr fim a esta loucura, render-nos, como disse o rei Amrin, e aceitar que, sem a profecia, não nos resta nada.

Zaisei não respondeu. Shail fitou-a e apercebeu-se do quanto as suas palavras a tinham afectado. Abraçou-a.

- É por isso que tens de ir para longe de tudo isto - disse-lhe carinhosamente. - Os sheks não consideram Celestia uma ameaça. Regressa a Rhyrr, lá estarás a salvo. Gostaria de saber... que pelo menos alguém de entre todas as pessoas de quem gosto se vai salvar. Gostaria de saber que pelo menos posso salvar-te a ti.

Zaisei pestanejou para conter as lágrimas.

- Não posso partir sem ti - sussurrou. Shail olhou para ela.

- Talvez noutras circunstâncias fosse contigo - disse. - Sei que Alexander pode desenrascar-se sozinho... ou poderia, se não fosse por aquilo que se avizinha. Não posso deixá-lo sozinho. É meu amigo e amanhã à noite vai transformar-se numa espécie de animal selvagem que é preciso controlar, enquanto Ashran derruba o escudo e os sheks nos atacam com tudo o que têm. Não, Zaisei, não posso ir-me embora.

Subitamente, uma sombra planou sobre eles e caiu a pique um pouco mais adiante, embatendo nas copas das árvores próximas. Zaisei levantou-se de rompante e quase chocou com Kestra, que corria para lá.

- O que...? - começou Shail, tacteando em volta à procura da muleta.

Kestra murmurou uma desculpa e continuou a correr. Zaisei ajudou Shail a pôr-se de pé. Pareceu-lhes ouvir ao longe a voz de Kimara.

- Vamos ver o que é que aquelas duas andam a tramar - resmungou o feiticeiro, franzindo o sobrolho.

Avançaram pelo bosque até encontrarem Kestra, que estava junto de uma árvore, a olhar para cima. O casal seguiu a direcção do seu olhar e viu um dos dragões de madeira enredado nos ramos de uma árvore. O feitiço de ilusão tinha desaparecido e já não parecia um dragão verdadeiro. Além disso, Shail reparou que era um dos pequenos, dos que os pilotos usavam para treinar.

Um dos ramos partiu-se e o artefacto caiu mais uns metros. Por sorte, outro ramo impediu a sua queda, mas estava ainda muito alto.

- O que se passa? - quis saber Shail. Kestra voltou-se para eles.

- Kimara está lá dentro! - exclamou. - Eu avisei-a para não voar tão baixo...

Shail e Zaisei entreolharam-se.

- Eu vou lá - disse a sacerdotisa.

Entoou uma suave melodia e elevou-se uns metros no ar até ao dragão acidentado.

Do chão, Kestra observou-a com interesse. Sabia que todos os celestes nasciam com o dom da levitação, que lhes era tão intrínseco como a telepatia nos varu, mas nunca tinha visto ninguém a utilizá-lo. Viu Zaisei flutuar até à escotilha, ouviu-a gritar o nome de Kimara. Mas não percebeu o que as duas disseram, porque um estalido sufocou as suas vozes.

- Cuidado! - alertou. - O ramo está a partir-se!

Zaisei deixou escapar um grito quando um dos ramos se quebrou definitivamente e o dragão se precipitou para o chão. Shail estava preparado. Pronunciou com voz potente a fórmula de um feitiço e o dragão parou no ar para depois aterrar com suavidade. Shail coxeou até ele.

- Kimara! - chamou-a, enquanto Zaisei flutuava delicadamente até ao chão e pousava junto dele. - Kimara, estás bem?

A escotilha abriu-se de repente e pela abertura assomou a cabeça adornada com tranças da semi-yan.

- Já sei o que fiz mal - disse a Kestra. - Da próxima vez...

- Por todos os deuses, a que é que estão a brincar? - cortou Shail, exasperado mas ao mesmo tempo aliviado por a jovem estar ilesa.

Nenhuma das duas conseguiu responder. Naquele momento alguém irrompeu na clareira, uma sombra ágil que se movia com a rapidez de um raio de luar por entre as árvores, e Shail reconheceu uma das dríades, as fadas guardiãs. Por um momento temeu que fosse castigar Kestra e Kimara por terem destruído a árvore; mas, apesar de a fada não ter conseguido evitar olhar para a árvore com horror e para eles com profundo desagrado, eram outros os assuntos que a traziam ali.

- És Shail, o feiticeiro? Enviaram-me para te dizer que precisam de ti na Fortaleza.

É urgente. É por causa do príncipe Alsan.

Shail percebeu logo o que se passava. Assentiu; voltou-se para as duas jovens antes de se pôr a caminho.

- Falamos depois - disse. - É provável que o assunto de Alexander demore um pouco...

Calou-se ao surpreender no rosto de Kestra uma expressão de ódio tão intensa que o deixou desconcertado. Mas não havia tempo para averiguações, de maneira que seguiu

a dríade até à Fortaleza, perguntando-se o que dissera para provocar aquela reacção na rapariga shiana.

Christian respirou fundo, afastou o cabelo da testa e recuou para examinar de longe os símbolos em idhunaico arcano nas bordas do portal.

Conhecia o idhunaico arcano. Na noite da conjunção astral que estivera prestes a exterminar os dragões e os unicórnios, um deles tinha-o tocado com o seu corno, transformando-o em feiticeiro, pouco antes de Ashran o reclamar para si. Christian não se lembrava bem daqueles dias, mas suspeitava que o seu pai, que tencionava entregar-lhe um poder muito maior, não achara muita graça ao descobrir vestígios de magia dentro dele. Contudo, depois de o transformar em híbrido, tinha procurado ensiná-lo a aproveitar a magia que pulsava nele. Christian tinha aprendido com assombrosa facilidade tudo o que se relacionava com a teoria da magia, incluindo a linguagem arcana. Mas os conjuros que outros feiticeiros conseguiam realizar correctamente não funcionavam da mesma forma quando ele os punha em prática. Tinha procurado explicar aos seus mestres que a magia congelava quando tentava utilizá-la, que não fluía com facilidade. Mas eles não o entendiam.

Obviamente, nenhum deles era um shek.

Christian franziu o sobrolho e voltou a inclinar-se sobre os símbolos. Colocou as palmas das mãos sobre os dois que supostamente abririam o portal. Sabia o que fazer, que palavras pronunciar. As instruções eram bastante claras. Mas a magia continuava a não fluir.

Fechou os olhos e pensou em Victoria. Deixou que o que sentia por ela aquecesse o seu coração, deixou que os seus sentimentos o inundassem, que o tornassem mais humano, pensou. Notou que a magia fluía melhor.

Era um jogo perigoso. Se abafasse daquela maneira a sua parte shek, correria o risco de a matar de uma vez por todas. E o facto de suportar a presença de Jack na torre não melhorava as coisas.

Contudo, julgava ter encontrado um equilíbrio na sua alma dupla e esperava não só sobreviver mantendo vivas ambas as partes, como também beneficiar de cada uma delas quando mais lhe conviesse.

Os símbolos iluminaram-se tenuemente. Christian sorriu. Estava a conseguir.

Afastou-se para deixar que o portal se fosse abrindo a pouco e pouco. Era apenas uma experiência; pretendia fechá-lo de imediato e abri-lo apenas quando ele e Jack estivessem dispostos a atravessá-lo na noite do Triplo Plenilúnio.

Mas não teve tempo.

Uma figura alta materializou-se subitamente no centro do hexágono, e Christian, surpreendido, retrocedeu com um salto.

- Não esperavas ver-me tão depressa... filho? - sorriu Ashran. Christian percebeu então que não era o verdadeiro Ashran, mas sim uma imagem dele. Percebeu que, dado que o portal entre ambas as torres não estava totalmente aberto, o pai não tinha conseguido entrar.

- Voltaste a trair-me - sussurrou Ashran.

- Só te traí uma vez - respondeu ele, calmamente. - Não voltei a ser teu servo desde então, embora pensasses o contrário.

- Fui generoso, Kirtash, muito generoso. E não devia dar-te esta última oportunidade, mas vou fazê-lo. Se não vais matar o dragão, faz com que venha ao meu encontro, amanhã à noite, durante o Triplo Plenilúnio. Trá-los aos dois, ao dragão e ao unicórnio, e faremos com que a profecia se cumpra: irei enfrentá-los e derrotá-los eu mesmo. Guia-os até mim, Kirtash... como está escrito que farás.

Ou estás a pensar rebelar-te também contra o teu deus... e contra a tua própria natureza?

A imagem de Ashran desvaneceu-se lentamente no ar, mas as suas palavras flutuaram por mais um instante na sala antes de se dissiparem por completo.

Christian ficou ali a tremer, incapaz de se mexer.

- Segura-o! - vociferou Qaydar. - Não o deixes escapar!

A criatura uivou outra vez e debateu-se na prisão mágica que Shail lhe tinha preparado. Covan soltou um grito quando os laços invisíveis se soltaram e o ser que tinha sido Alexander se precipitou sobre eles, furioso e muito, muito faminto.

Shail não conseguiu retroceder a tempo. Tropeçou e caiu de costas, enredado na muleta. O mestre-de-armas interpôs-se entre ele e a criatura, erguendo a sua espada. Não teve ocasião de a utilizar, porque a magia do Arquifeiticeiro capturou de novo o animal nos seus fios invisíveis. Alexander debateu-se, uivando, mas não se soltou. Covan suspirou aliviado. Shail agarrou na muleta e tentou pôr-se de pé.

- Temos de fazer alguma coisa - murmurou o jovem feiticeiro, contemplando o que tinha sido o seu amigo. - Não pode ficar assim.

Qaydar franziu o sobrolho e abanou a cabeça.

- Não posso extrair a alma do animal do seu corpo - disse. - Já faz parte dele. Mesmo que encontrasse uma forma de o fazer, se realizasse o conjuro, ele também morreria.

- A alma de um animal - murmurou Covan, confuso. - Não é possível. Não podem ter-lhe feito isso.

Shail observou-o e recordou que o velho mestre-de-armas conhecera Alexander quando era o príncipe Alsan de Vanissar, uma criança que sonhava ser cavaleiro.

- Não tenho como fazê-lo regressar ao seu estado original – prosseguiu o Arquifeiticeiro. - Se já está assim, nem quero imaginar o que acontecerá amanhã à noite, no Triplo Plenilúnio. Para bem da rebelião e pela segurança de todos os refugiados de Nurgon e de Awa, o príncipe Alsan deve ser executado.

- Não! - opôs-se Shail. - Não vou permiti-lo. Eu cuidarei dele, irei controlá-lo para que não faça mal a ninguém.

- Eu também me ofereço como voluntário - grunhiu Covan.

O Arquifeiticeiro dirigiu-lhes um olhar cortante.

- Se o semiceleste tinha razão e amanhã se travar a batalha definitiva - disse -, precisamos de ambos. Um feiticeiro e um cavaleiro de Nurgon são duas peças muito valiosas num exército hoje em dia. Não posso permitir que percam tempo a cuidar de uma criação híbrida.

- Esta criação híbrida é o meu amigo - replicou Shail, explodindo de raiva - e o único que foi capaz de salvar o último dragão da conjunção astral e trazê-lo de volta. Devia ser tratado como um herói e não ser posto de lado desta forma.

Qaydar não chegou a responder. A porta foi aberta de rompante e a alta figura de Denyal, o líder dos Novos Dragões, apareceu no umbral, pálido e muito sério. Shail ficou perplexo. Estava convencido de que tinha isolado bem a sala, para que ninguém pudesse ouvir os uivos de Alexander de fora. Perguntou a si próprio se Qaydar teria sido suficientemente mesquinho para desfazer o seu feitiço, mas então viu uma sombra atrás de Denyal.

Kestra.

Recordou que ela estava presente quando a dríade os avisara no bosque. Mas porque é que a jovem shiana fora chamar Denyal?

Shail encontrou a resposta no rosto de Kestra, na sua expressão de ódio ao olhar para Alexander; e ao fitar Denyal, vendo o seu ar horrorizado, compreendeu que Qaydar tinha um novo aliado e que, a partir daquela noite, Alexander nunca mais seria respeitado como líder dos rebeldes.

Jack acordou quando o primeiro dos sóis se erguia já no horizonte. Virou a cabeça para espreitar pela janela. Seria um bonito dia, pensou; infelizmente, era o dia de fim de ano, o último dia antes do Triplo Plenilúnio, antes que se cumprisse a profecia, para o bem ou para o mal. Respirou fundo e voltou o olhar para Victoria, que dormia nos seus braços. Porque não podia ser sempre assim? Não pôde evitar pensar que provavelmente não voltaria a olhar para ela à luz do amanhecer. Abraçou-a com força.

Victoria acordou e Jack fez todos os possíveis para afastar as dúvidas e preocupações da sua mente. Naquela mesma noite viajaria para Drackwen com Christian; talvez não regressassem vivos daquela viagem, por isso queria aproveitar ao máximo aquele que era presumivelmente o último dia que passava com ela.

Falara com Sheziss e a serpente aceitara cuidar da jovem na ausência dos dois rapazes. Jack suspeitava que Sheziss sentia curiosidade em relação a Victoria. E, embora ainda estivesse magoado com o facto de a shek se ter retirado da luta no derradeiro momento, o rapaz sabia que deixava a amiga em boas mãos.

O dia passou demasiado depressa para Jack. Não se afastou de Victoria nem por um único instante. Conversaram, percorreram a torre juntos, riram-se e partilharam palavras doces, beijos e carícias... que para Jack tinham um significado especial, pois tinha consciência de que poderia não voltar a viver aqueles momentos íntimos com Victoria. A rapariga, alarmada, afastara-o de si num momento de arrebatamento particularmente intenso.

- Jack, o que se passa contigo? - perguntou-lhe, preocupada. Estás bem?

Ele ficou a olhar para ela, mas não tardou a abraçá-la com todas as suas forças, para que ela não lesse a verdade nos seus olhos.

- Estou bem - sussurrou com voz rouca. - Desculpa, não queria assustar-te.

É que senti tanto a tua falta que ainda estou a celebrar o facto de estarmos juntos outra vez.

Sentiu-se um miserável ao pronunciar aquelas palavras. Afinal, naquela mesma noite tencionava deixá-la sozinha de novo, talvez para sempre.

Recordou então que também Christian partiria para a Torre de Drackwen e teria de se separar de Victoria. Deu uma olhadela pela janela e apercebeu-se de que o primeiro dos sóis começava a declinar. Suspirou com resignação. Os dias eram longos em Idhún, mas aquele tinha-lhe parecido muito curto, demasiado curto...

No entanto, sabia que o dia chegava ao fim. Sentiu um vazio horrível. Engoliu em seco e voltou a abraçar a Victoria, com todas as suas forças.

- Aconteça o que acontecer - sussurrou -, não te esqueças nunca de que te amo.

Victoria afastou-se dele e fitou-o.

- Jack, o que se passa? O que me estás a esconder?

Ele abanou a cabeça e retrocedeu, mordendo o lábio inferior.

- Tenho de ir - disse apenas. - Não te esqueças, Victoria. Amo-te.

- E eu a ti, Jack. Mas...

Jack não esperou que ela terminasse a frase. Fez um gesto de despedida e foi-se embora.

Subiu ao miradouro e procurou acalmar-se. Contemplou o crepúsculo do primeiro dos sóis, perguntando-se quanto tempo demoraria Christian a ir ter com Victoria para se despedir também.

Victoria ficou imóvel junto à janela, a tremer. Há vários dias que suspeitava que algo não estava bem. Mas tinha recuperado Jack e Christian, e não podia permitir que nada ofuscasse a sua recém-adquirida felicidade.

Não obstante... sabia perfeitamente que aquela calma era apenas aparente.

Não se voltou ao pressentir atrás de si a presença de Christian.

Estava à espera dele.

- O que está a acontecer, Christian?

Sentiu o rosto dele muito perto, os seus lábios quase a tocar a pele do seu pescoço, mesmo debaixo da orelha. Sorriu e fechou os olhos para saborear aquela sensação.

- Aproxima-se uma grande batalha - sussurrou-lhe ele ao ouvido. Victoria reprimiu um calafrio.

- A batalha na qual temos de lutar nós três, não é? Porque é que Jack não me disse nada?

- Teme por ti. Tal como eu.

- Pois não deviam. Tenho de lutar ao vosso lado, como sabem.

- É verdade. Mas não quero levar-te novamente à Torre de Drackwen, entendes?

Victoria voltou-se para ele para o fitar. Os seus dedos procuraram os dele.

- Entendo - disse em voz baixa. - Mas não vai ser como da outra vez, Christian. Agora é diferente.

- Como sabes que é diferente?

- Sei. Basta-me olhar-te nos olhos para saber que não vais voltar a trair-me.

Os olhos azuis de Christian semicerraram-se.

- Há muitas maneiras de trair - afirmou ele. - E às vezes não consigo evitar magoar-te... simplesmente por ser quem sou.

Victoria respirou fundo.

- Christian, o que está a acontecer? - repetiu. O shek desviou o olhar para o horizonte.

- Conto-te quando se puser o último dos sóis, está bem?

- Só se ficares ao pé de mim.

- vou ficar ao pé de ti - prometeu ele. - Neste momento, é o único sítio onde gostaria de estar.

Victoria sorriu. Aproximou-se um pouco mais dele e assim ficaram, os dois muito juntos, contemplando o entardecer. Victoria tinha a sensação de que aquele era um momento solene, tremendamente importante. Desejava aproveitar ao máximo a presença de Christian, mas inquietava-a o que quer que ele tivesse para lhe dizer. Sabia que era algo grave.

Sentiu o braço do jovem a rodear suavemente a sua cintura. Suspirou, fechou os olhos e recostou-se contra ele.

Shail enterrou o rosto entre as mãos, esgotado.

Tinha sido um dia muito longo. Alexander tinha recuperado o seu aspecto semi-humano com o nascer do primeiro dos sóis, o que lhe permitira assistir, embora fortemente acorrentado, ao debate que se levantou em torno dele e do seu futuro.

Os rebeldes tinham-se reunido no que havia sido o átrio da Fortaleza, lugar que utilizavam habitualmente para conselhos e tomar decisões. O que discutiam agora não eram os planos de batalha para aquela noite. Andavam a preparar-se há muito para aquele momento e, embora a notícia da queda iminente do escudo tivesse sido um duro golpe para eles, tinham previsto aquela situação, sabiam o que fazer.

No entanto, ninguém havia pensado que na noite da batalha Alexander não só não poderia liderá-los, como também seria um grande perigo para todos eles.

- Sei que é uma decisão difícil para muitos de nós - disse Qaydar -, mas Alsan já não é o príncipe que conhecemos. Até agora foi capaz de dominar o animal que introduziram nele, mas... o que irá acontecer esta noite? É melhor livrarmo-nos da ameaça antes que seja tarde demais.

- A nossa magia pode mante-lo controlado, Arquifeiticeiro - interveio Shail, exasperado. - Sendo assim, deixa de ser uma ameaça.

- Noutras circunstâncias, estaria de acordo com a tua proposta. Mas logo à noite não vamos poder dar-nos ao luxo de desperdiçar a nossa magia para controlar um animal. Se o escudo cair, temos de nos concentrar todos em lutar e defender o nosso último bastião. Não podemos distrair-nos com nada.

- Será apenas uma noite - interveio Covan. - Se não resistirmos uma noite, não resistiremos nenhuma. E, se formos capazes de repelir os nossos inimigos até ao nascer do sol mantendo Alsan controlado, além de ganharmos tempo, recuperaremos um dos melhores cavaleiros com que a Ordem alguma vez contou. Afinal de contas, não podemos esquecer que foi o príncipe Alsan de Vanissar que salvou o último dragão do mundo, que foi ele que reconquistou Nurgon, que estamos aqui por ele. Se não formos capazes de esperar por ele uma noite, se o perdermos... perderemos a única pessoa capaz de nos levar à vitória.

Fez-se ouvir um murmúrio de assentimento. Não obstante, muitos olharam para Denyal de soslaio.

O líder dos Novos Dragões estava pálido e, apesar de ter os olhos cravados em Alexander, parecia não o ver. O jovem, acorrentado num canto, mal prestava atenção ao que sucedia à sua volta. Ainda tinha o rosto desfigurado pelas feições do animal, mas era capaz de pensar e falar com clareza. Contudo, tinha deixado pender a cabeça de forma que o cabelo grisalho lhe tapasse a cara e mantivera-se imóvel, alheio a tudo.

Denyal apoiara Qaydar na sua proposta de executar Alexander. Tinha bastante apreço pelo seu príncipe, mas sentia-se responsável pela segurança da sua gente. E, apesar de, como Mah-Kip sugerira, ter enviado os mais fracos para o interior do bosque, incluindo o seu sobrinho Rawel, ainda se sentia inquieto.

- É verdade - disse então, roucamente. - Se não fosse pelo príncipe Alsan, não estaríamos aqui. Não estaríamos presos em Nurgon, rodeados por todas as forças do Necromante dispostas a cair sobre nós mal nasçam as luas. Se não fosse pelo príncipe Alsan, não estaríamos às portas da morte.

O silêncio reinou na sala.

- Somos a Resistência! - gritou então Shail, desafiador. - Estamos aqui para enfrentar Ashran até ao fim e lutaremos enquanto um de nós se mantiver de pé. Estou exactamente onde queria estar. Se assim não fosse, teria partido esta manhã com os refugiados para o interior do bosque... - Fez uma brevíssima pausa, recordando Zaisei, que também partira. - Mas tu, Denyal, ainda estás a tempo de te juntares a eles.

Denyal avançou um passo, prestes a explodir de raiva.

- Mede as palavras, feiticeiro! Nós somos os Novos Dragões. Enfrentámos os sheks enquanto vocês exploravam outro mundo. Andamos há muitos anos a arriscar a vida contra a gente de Ashran. Não te atrevas a duvidar da nossa coragem.

- Se isso é verdade - replicou Shail secamente -, então também estão onde deviam estar: na linha da frente da guerra contra Ashran.

No lugar para onde vos conduziu Alexander, a quem queres agora condenar à morte.

Então, começaram todos a discutir. Uns apoiavam Shail, outros consideravam que já bastava enfrentar a ameaça de Ashran para ainda estarem a albergar um perigo dentro dos muros da Fortaleza. Os nervos e o medo estavam à flor da pele, concluiu o jovem feiticeiro, sombrio. Naquela noite, as três luas estariam cheias e, se Mah-Kip estivesse certo, só lhes restaria lutar.

- Os sóis ainda não se puseram! - disse então Shail. - Temos um dia inteiro pela frente.

Peço-vos a todos que adiem a decisão até ao crepúsculo. Concedam-me este dia para tentar encontrar uma forma de ajudar Alexander.

O Arquifeiticeiro olhou-o demoradamente.

- O teu amigo foi submetido a um conjuro de necromancia extremamente forte, um feitiço que, apesar de mal feito, nem mesmo eu posso reverter. O que achas que vais conseguir fazer, jovem feiticeiro, em menos de um dia?

- Tudo o que estiver ao meu alcance - respondeu Shail. - E isso é muito mais do que o que vocês fizeram.

Denyal abanou a cabeça.

- Vamos precisar de cada segundo deste dia e de qualquer um nesta Fortaleza para preparar a batalha desta noite. Não podemos prescindir de ti.

- Não podes obrigar-me - respondeu o feiticeiro com suavidade. Não podes pedir-me que prepare uma batalha quando o meu melhor amigo está em perigo de morte. Pedi apenas um dia para o ajudar e, se não mo cederem, não obterão a minha colaboração, nem agora, nem esta noite, nem nunca. - Nem agora, nem esta noite, nem nunca - repetiu então uma voz rouca, sobressaltando-os. -Já não há esperança para Idhún.

Era Alexander quem tinha falado. Respirava entrecortadamente e os olhos cintilavam com um brilho amarelado por entre as mechas do seu cabelo grisalho. Tinha um aspecto sinistro e ameaçador, e até os mais poderosos guerreiros recuaram.

- O último dragão está morto! - uivou Alexander, e o seu rosto metamorfoseou-se de novo, aproximando-se cada vez mais das feições de um animal. - Esta noite, quando as três luas se erguerem no céu, Ashran atacará e vencerá. Porque o último dragão morreu nos Picos de Fogo e com ele morreu toda a esperança.

Fez-se um silêncio sepulcral. Alguns dos que assistiam à reunião sabiam da morte de Jack, mas tinham mantido segredo, por isso as palavras de Alexander caíram sobre os restantes como um balde de água fria. Todos permaneceram calados enquanto o jovem híbrido se ria de forma sarcástica, escondendo no fundo uma tristeza devastadora.

- Fujam, rebeldes - grunhiu, mostrando as presas. - Matem o velho Alexander, que vos trouxe até aqui, e fujam enquanto podem; escondam-se no interior do bosque, nos confins de Idhún, pois em breve não existirá no mundo um só canto que as serpentes não tenham conquistado. Os deuses abandonaram-nos, abandonaram-nos há muito, mas eu não quis acreditar nisso, nem mesmo quando permitiram que Yandrak fosse assassinado...

As suas últimas palavras terminaram num uivo arrepiante.

- Vocês ouviram-no! - disse Qaydar. - Enlouqueceu e...

Não conseguiu acabar de falar. Precisamente nessa altura, ouviu-se um poderoso rugido sobre os céus da Fortaleza e uma flecha dourada atravessou céu, em direcção aos sóis nascentes.

Ouviram-se cicios e assobios furiosos. Vários dos sheks que sobrevoavam a base rebelde precipitaram-se sobre a criatura que sulcava o céu, loucos de ódio; mas o escudo feérico reteve-os bem longe.

Os rebeldes observaram, sustendo a respiração, o magnífico dragão dourado que planava sobre as suas cabeças. Viram-no pousar na muralha mais alta e lançar ao vento um grito de liberdade.

Shail sentiu um baque no coração, mas percebeu quase de seguida que se tratava do dragão dourado no qual Rown e Tanawe haviam estado a trabalhar. Bastou-lhe um olhar de soslaio à feiticeira para confirmar o que já suspeitava.

Mas Alexander não se apercebeu do logro. Tinha caído de joelhos e erguido a cabeça para o dragão. Um véu de lágrimas nublava os seus olhos. Shail viu, impressionado, como ia recuperando pouco a pouco a sua fisionomia humana. Quando o dragão voltou a levantar voo e se perdeu no horizonte, Alexander tombou no chão sem sentidos.

Shail acercou-se dele o mais rápido que pode. Tremia violentamente e o feiticeiro amaldiçoou em silêncio o poder das luas.

- O último dragão voltou! - gritou alguém.

Ouviu-se entoar em coro hurras e vivas a Yandrak. Até mesmo os poucos que sabiam da existência do dragão dourado artificial pareciam emocionados perante a sua súbita aparição. Ninguém, nem Qaydar, ousou revelar a verdade e destruir a esperança dos rebeldes.

Entre a euforia geral, Denyal aproximou-se de Shail e Alexander e olhou por instantes para o híbrido inconsciente.

- Não está com muito bom aspecto - opinou.

- Eu sei - murmurou Shail. - Mesmo assim tenho de tentar travar a influência das luas sobre ele.

Denyal assentiu.

- Tens o dia todo. Se ao entardecer continuar assim, teremos de tomar medidas. - Fez uma pausa e continuou: - Espero que compreendas porque é que não quero que a minha gente esteja no mesmo lugar que ele quando nascerem as três luas cheias.

- Compreendo. Obrigado, Denyal.

Covan aproximou-se para o ajudar a levar Alexander de novo para o seu quarto. Kestra também se acercou, mas limitou-se a ficar a olhar para eles, pensativa.

- Não vais conseguir - afirmou. - Esta noite, durante o Triplo Plenilúnio, vai matar-nos a todos.

Shail quis replicar, mas ela virou-lhe as costas e foi-se embora a correr. O feiticeiro franziu o sobrolho, irritado.

- Realmente, não percebo. Porque se comporta assim?

- Shia - disse então Alexander num fio de voz. - Agora lembro-me dela. Alae de Shia...

- Alae de Shia? - repetiu Shail. - Não era esse o nome da princesa desaparecida?

- Sim - assentiu Covan, pesaroso, enquanto carregava Alexander ao ombro. - Mas não é assunto para falar aqui.

Começou a andar com Alexander às costas e Shail seguiu-o.

- Mas... Alae... isso já foi há uns anos. Quando os sheks destruíram Shia, assassinaram os reis, mas havia quem jurasse que a princesa Alae, a herdeira do trono, continuava viva, tendo sido levada prisioneira para a Torre de Drackwen... Nunca mais voltou a ser vista. Ou, pelo menos, foi o que me contaram.

- Kestra... - murmurou Alexander.

- Kestra é Alae? - perguntou Shail, perplexo. - Não é possível. Passaram-se quinze anos e Alae já era uma mulherzinha nessa altura.

- Fala baixo - cortou Covan, aborrecido. - Kestra não é Alae. É a sua irmã mais nova, a princesa Reesa. - Respirou fundo e acrescentou, ainda mais baixo: - Tirei-as às duas do palácio quando os sheks atacaram. Reesa tinha pouco mais de seis anos. Alae fizera quinze e estudava na Academia de Nurgon. Jurei ao rei que as protegeria com a minha vida e consegui escondê-las durante anos, evitando os sheks nas montanhas... mas deparámos com uma patrulha de szish e, apesar dos meus esforços, não consegui impedir que levassem as duas. - Suspirou, desolado. - Teria morrido para não as deixar ir.

Não tinha voltado a saber delas. Pelo que sei, Alae está morta. E pensei que Reesa também estava até que a vi convosco. Não sei o que aconteceu na Torre de Drackwen nem como fugiu de lá, mas... não me surpreende que queira esquecer quem foi.

Shail não se pronunciou, ainda que a história o fizesse pensar. Era estranho imaginar que Reesa, uma das princesas de Shia, fosse agora uma intrépida piloto de dragões

artificiais. De repente lembrou-se de que Kestra tinha estado presente na reunião durante o tempo todo, tal como os outros pilotos de dragões. Sendo assim, quem fizera voar o dourado? Apercebeu-se de que Kimara não tinha assistido à discussão, embora simpatizasse com Alexander, e não conseguiu dissimular um sorriso.

Contudo, à medida que o dia foi passando, a fraca esperança que Denyal lhe proporcionara foi-se desvanecendo pouco a pouco. Todos os feiticeiros estavam muito ocupados a preparar-se para a batalha e nenhum deles quis ajudá-lo, à excepção de Yber, um gigante que chegara recentemente à Fortaleza.

Yber fora um dos poucos gigantes a ser agraciados com o dom da magia. A conjunção astral surpreendera-o na Torre de Kazlunn, onde permanecera quinze anos com os restantes feiticeiros. Tinha inclusivamente participado, meses antes, no cerco à Torre de Drackwen, quando Ashran sequestrara Victoria. Ele e os outros três feiticeiros gigantes da torre tinham-se juntado à batalha. Mas, após a queda da Torre de Kazlunn, os seus companheiros tinham morrido, abatidos pelos sheks, e agora só restava Yber, o único gigante feiticeiro de Idhún.

Yber sabia o que era perder uma batalha, pelo que não tinha especial interesse em juntar-se a outra. Porém, fora a Nurgon depois de andar a vaguear pelas montanhas de Nanhai, porque lhe chegara aos ouvidos o rumor de que era para aí que se tinha dirigido o último unicórnio. Não conseguira ver Victoria, mas agora tentava ajudar Shail a salvar Alexander.

- Acorrentar o animal no seu interior - estava o gigante a dizer, com a sua voz estrondosa. - Este conjuro devia dar certo. Porque é que não funciona?

Shail voltou à realidade e observou, desolado, como Alexander se retorcia, uivando, nos poderosos braços de Yber. O primeiro dos sóis descia já no horizonte e o animal tornava-se cada vez mais poderoso no seu interior. Estavam a ficar sem tempo. "Se Allegra estivesse aqui", pensou. Mas a fada tinha ido a Shur-Ikail para enfrentar Gerde e ainda não voltara.

- O animal é mais forte do que a nossa magia, Yber - disse. - Mas não será por muito tempo! - Levantou-se, decidido. - vou dar mais força ao feitiço.

O gigante olhou para ele, muito sério.

- Mais força? Já usaste toda a magia possível, Shail. Tu sabes o que pode acontecer se ultrapassares o limite.

Shail assentiu. Era uma das primeiras coisas que os feiticeiros ensinavam aos aprendizes nas torres. Cada feitiço, cada conjuro, cada invocação só se podia realizar com uma quantidade mínima de magia, mas também dentro de um limite máximo. Se o feiticeiro ultrapassasse esse limiar, se desse ao feitiço uma força maior do que a requerida para o realizar, a energia suplementar seria procurada noutro lugar... e seria utilizada a de que o próprio feiticeiro precisava para subsistir.

- Sei, mas é a nossa única oportunidade. Tenho de tentar.

- Também posso fornecer a minha magia...

- Não. Preciso que o mantenhas imóvel. Assim, o conjuro será mais eficaz.

Yber permaneceu calado. Depois disse:

- Espero que saibas o que estás a fazer.

Shail não respondeu. Colocou-se à frente de Alexander, que ainda se debatia no forte abraço do gigante. Respirou fundo e concentrou-se, procurando não ouvir os grunhidos e uivos do animal. Deixou que a magia fluísse das profundezas do seu ser e se acumulasse nas pontas dos dedos. Depois, lentamente, foi pronunciando a fórmula do conjuro.

No início, estava tudo a correr bem. A magia fez a alma do animal recuar para a parte mais recôndita do corpo de Alexander, impedindo-a de escapar, encurralando-a pouco a pouco... Mas, quando o espírito animal se viu sem saída, revoltou-se com violência contra a magia de Shail e o feiticeiro sentiu, como anteriormente, que o seu poder não era suficiente para resistir à força do lobo.

Fez um esforço excessivo. Obrigou-se a si mesmo a fornecer mais magia do que devia. A sua própria energia vital.

Yber não se mexeu nem disse nada enquanto Shail levava a cabo o seu feitiço até à exaustão. Limitou-se a segurar Alexander e a observar o sacrifício do feiticeiro, perguntando-se se conseguiria.

Quando Shail, com um arquejo, cambaleou e esteve quase a cair no chão, a alma do animal uivou, triunfante, e preparou-se para derrotar a magia de Shail. O jovem feiticeiro apoiou-se na muleta e esforçou-se por selar o feitiço. Só mais um pouco...

Subitamente, quando Shail estava prestes a perder os sentidos, uma voz potente pronunciou a fórmula do mesmo feitiço que ele estava a utilizar. Então, uma poderosa torrente de energia uniu-se à sua, empurrando para trás o espírito do animal, encerrando-o nas profundezas do ser de Alexander. Shail mal conseguiu erguer a cabeça e ver as feições do Arquifeiticeiro antes de murmurar um agradecimento e desmaiar.

Foi Yber quem pegou nele com uma das suas enormes manápulas. Deixara de segurar Alexander, porque já não era necessário: o jovem mostrava um aspecto completamente humano.

- Shail? - murmurou, um pouco aturdido. Qaydar dirigiu-lhe um olhar penetrante.

- Acaba de te salvar a vida, jovem príncipe - disse. - Por enquanto, conseguimos dominar o animal, mas depende de ti aguentar até ao amanhecer. Se o fizeres e se os sheks não nos matarem primeiro, estarás a salvo.

Alexander fitou-o, sério. Depois, não sem esforço, assentiu.

Quando o terceiro dos sóis acabou de desaparecer no horizonte, Christian disse:

- Sabes o que vai acontecer esta noite?

- As três luas vão estar cheias - respondeu ela. - Estive a observá-las todas as noites.

O shek assentiu.

- As três luas vão estar cheias - repetiu. - Isto só acontece uma vez por ano, a cada duzentos e trinta e um dias.

- Deve ser um espectáculo lindo - disse ela. - Podemos vê-lo juntos?

Christian olhou para ela muito sério.

- A conjunção dos seis astros também é um espectáculo lindo disse, sem responder à pergunta. - No entanto, tem um poder extraordinário, um poder capaz de fazer coisas como exterminar duas das raças mais poderosas de Idhún numa questão de dias.

Victoria desviou o olhar.

- Já percebi. Vai acontecer algo de terrível esta noite, não é?

- Sim. E vamos tentar evitá-lo. Ela ergueu a cabeça, decidida.

- Se é hoje que temos de lutar contra Ashran, estou preparada. Christian não disse nada. Continuava a olhar para ela fixamente, e Victoria descobriu que aquele brilho de emoção que se ocultava nos seus olhos gélidos era um pouco mais intenso do que o habitual. Não foi preciso dizer nada.

- Não - disse a tremer, dando um passo atrás. - Não me vais deixar ficar aqui.

- Está decidido, Victoria. Não virás connosco. Não queremos que te magoes.

- Está decidido? - explodiu ela. - Por acaso consultaram-me? A esta altura, achas que me importa se me magoo ou não?

Christian avançou para ela. Victoria continuou a retroceder. A estrela da sua testa iluminou-se, como uma advertência.

- É para o teu bem, Victoria.

- Deixa de me proteger e pensa um pouco em ti próprio, maldição!

- gritou ela. - Sou uma guerreira da Resistência! Não podes deixar-me para trás, não podes prescindir do meu poder numa batalha como esta!

- Eu sei. É o que a razão me diz. Mas... o coração diz-me outra coisa.

Ela deu meia-volta e olhou para ele, a tremer.

- Também a mim, Christian. Também a mim. Não me disseste uma vez que tenho o direito de escolher?

- Esta noite, não.

Victoria voltou-se, mas deparou-se com os seus olhos hipnóticos. Instintivamente, deslocou-se com a luz uns metros para a frente. Procurou alcançar a porta...

Mas o shek agarrou-a antes que o conseguisse. Obrigou-a a voltar-se para ele, quase com violência.

- Não, Christian... não me faças isso. Não podem deixar-me para trás.

- Não tornes as coisas mais difíceis, Victoria - replicou ele, tenso.

- Quero estar ao vosso lado, quero ter uma oportunidade de lutar por vocês - insistiu a jovem. - Sei tão bem quanto tu o que Ashran é capaz de fazer. Não posso permitir que vão ter com ele...

- Então, compreendes-me melhor do que pensas - respondeu Christian, com um sorriso amargo. - E agora olha para mim, Victoria.

Ela virou a cabeça e fechou os olhos.

-Victoria...

Negou com a cabeça. Então notou que ele se aproximava ainda mais; sentiu a mão dele a segurar o seu queixo, obrigando-a a virar a cara para ele. Manteve os olhos obstinadamente fechados.

Devia ter calculado que Christian faria algo assim, disse para si quando, de repente, sentiu os lábios dele sobre os seus. Não foi capaz de pensar em mais nada, porque o beijo de Christian apanhou-a de surpresa e, como sempre, fê-la sentir-se estranhamente fraca. Quando ele se afastou dela e a fez erguer a cabeça, não teve mais forças para fechar os olhos. Tudo o que desejava era perder-se no seu olhar gélido e ir com ele para onde quer que a levasse.

No entanto, a sua mente ofereceu resistência.

- Não podes voltar a fazer isso, Christian - pensou.

- É preciso - respondeu ele.

- Não, não é. Uma vez disseste-me que me respeitavas como igual. Porque não me deixas lutar ao teu lado?

- Morreria por ti, mas não estou disposto a permitir que morras por mim. Muito menos porjack - acrescentou, brincalhão. - Podes chamar-me cobarde, se quiseres, mas não suportaria perder-te. E não me atrevo a correr o risco.

A pouco a pouco a mente do shek ia fazendo com que ela mergulhasse num sono profundo, do qual não acordaria até que ele lho permitisse. Fez um último esforço para se libertar dele, mas soube que não conseguiria. Então usou os seus últimos instantes de lucidez para enviar uma última mensagem.

- Voltem... Oh, pelo que mais amam, voltem... Volta vivo, Christian, e traz-me Jack de volta também. Eu não iria suportar perdermos... a nenhum dos dois.

Quando ela caiu inerte nos seus braços, Christian respirou fundo e fechou os olhos. Tinha sido bem mais difícil do que imaginara.

Deitou-a sobre a cama cuidadosamente e beijou-a de novo, quem sabe se pela última vez.

- Há muitas formas de trair... - murmurou. Ergueu a cabeça e disse às sombras: - Lamento, pai. Não ta vou entregar outra vez. Nunca mais.

Deu meia-volta e, sem se atrever a dirigir um último olhar à rapariga adormecida, saiu do quarto.

Juntou-se a Jack na sala do portal quando a primeira das luas, absoluta e perfeitamente redonda, começava já a erguer-se no horizonte.

Os dois rapazes entreolharam-se.

- Não vai acordar antes de amanhecer - informou Christian. Nessa altura, se tudo correr bem, já estaremos de volta. Senão... nunca mais voltaremos.

Jack voltou a cabeça na direcção da porta. Ansiava correr para junto de Victoria para a abraçar e beijar pela última vez. Procurou controlar-se.

- Achas que... estamos a fazer bem?

Christian olhou para ele com uma expressão mais sombria do que era habitual nele.

- Antes não tinha a certeza - disse -, mas agora, sim, sei que estamos a fazer o que está certo. Tinhas razão: o meu pai quer que volte a levar-lhe Victoria.

Se atravessarmos este portal, é bem provável que, em vez de a entregar a ela, te esteja a entregar a ti. Sabes disso, não sabes?

- Sei. Mas vou correr o risco. Se eu morrer, ela estará relativamente a salvo. Se sair vivo desta, é porque teremos vencido.

É a única saída, certo?

- Não vejo nenhuma outra, Jack. E odeio ter de o admitir, pois isso significa que, apesar de tudo, não tínhamos nenhum poder de decisão em toda esta questão da profecia.

Jack ergueu a cabeça para olhar para ele com gravidade.

- Peões dos deuses - murmurou. - É isso que somos. Christian abanou a cabeça.

- Talvez não - disse. - Afinal, Victoria vai ficar aqui. Poderão brincar com a nossa vontade e o nosso futuro, mas não com os dela.

Jack assentiu. Desembainhou Domivat, que flamejou na penumbra. Christian retrocedeu, afastando-se do fogo, e tirou Haiass da sua bainha, deixando que o seu suave brilho glacial lhe iluminasse o rosto. Os dois olharam-se novamente.

- Tenta não fazer asneira, está bem? - murmurou Christian.

- Tenta tu não me trair - grunhiu Jack. Christian dirigiu-lhe um olhar enigmático.

- Pode até ser que te esteja a trair - disse e, dando um passo em frente, entrou no hexágono e desapareceu num clarão de luz azulada.

Inquieto, Jack seguiu-o.

O portal engoliu-os a ambos e enviou-os para o coração da Torre de Drackwen, enquanto, vários pisos abaixo, um unicórnio dormia profundamente e um shek velava nas sombras o seu sono.

 

                             TRIPLO PLENILÚNIO

Alexander saiu para o pátio e contemplou as três luas cheias sobre ele. Sentiu que o animal se debatia no seu interior, mas conseguiu controlá-lo. "Bem," disse para si, "a magia do Arquifeiticeiro ainda está a funcionar." Rezou aos deuses para que aguentasse até ao amanhecer.

Ao erguer os olhos, viu dois vultos nas ameias. Reconheceu Covan e Shail. Trepou pela escada e juntou-se a eles no cimo da muralha.

O mestre-de-armas dirigiu-lhe um olhar preocupado, mas Alexander limitou-se a perguntar com frieza:

- Como estão as coisas?

Shail sorriu, cansado. Ainda estava a recuperar do feitiço com que procurara acorrentar a alma do animal que pulsava em Alexander.

- Harel garante que o escudo vai resistir - disse. - Mas se assim não for, se Ashran encontrar forma de o destruir... enfim

"essas serpentes que se atrevam a pôr

um só pé em Awa; estaremos à espera delas". Foram exactamente essas as suas palavras.

Alexander sorriu por sua vez. A ferocidade dos feéricos a defender o seu território era lendária.

- bom. Eles que se ocupem do bosque. Nós encarregamo-nos de defender a Fortaleza.

Covan abanou a cabeça, preocupado.

- Sei que andamos há muito a preparar as defesas de Nurgon, mas, mesmo assim, não sei se irão aguentar o ataque do exército que nos aguarda ali fora.

Os três contemplaram o acampamento inimigo instalado para lá das muralhas, para lá do bosque. Qualquer um podia perceber que a actividade que aí reinava não era a de uma noite como as outras. As serpentes e os seus aliados estavam a preparar-se para entrar em combate.

- Odeio ter de esperar por eles - grunhiu Alexander.

- Não temos outra opção - replicou o mestre-de-armas. - Se o escudo deixar de funcionar, continuaremos a ter os muros de Nurgon.

Os feéricos lutam bem no bosque, mas eu prefiro lutar em campo aberto.

Alexander assentiu, pensativo, e relanceou o olhar pelos arredores da Fortaleza. Havia uma zona à volta das muralhas onde não havia árvores, por desejo expresso dos rebeldes, que tinham pedido aos feéricos um espaço para manobrar. Harel tinha respeitado o seu pedido, mas Covan queixara-se por diversas vezes de que aquele espaço lhe parecia muito reduzido.

- Estão todos preparados - prosseguiu Covan. - Os guerreiros, os mercenários, os pilotos de dragões, os arqueiros, o Arquifeiticeiro e os seus feiticeiros, as bestas, as catapultas e demais maquinaria e, obviamente, nós, os cavaleiros de Nurgon. Se o escudo cair, iremos todos concentrar-nos a defender a Fortaleza. Todos sabemos o que fazer, no entanto...

Ergueu os olhos para o céu, sulcado por dezenas de sheks.

- Vieram mais - assentiu Shail. - Estão a preparar-se para atacar. Não o fariam se não soubessem que vão poder atravessar o escudo.

Covan cerrou os punhos.

- Quanto tempo conseguiremos resistir? - murmurou.

- Talvez mais do que pensas - disse Alexander de repente. Tinha o olhar cravado no horizonte, para além do acampamento inimigo, e sorria enigmaticamente. Voltou-se para os companheiros.

- Desçam e digam a todos que vou fazer uma incursão em território inimigo - anunciou. - Será perigosa, como é óbvio, mas, enquanto o escudo aguentar, posso sempre retirar-me se as coisas ficarem feias. Quem quiser juntar-se a mim, que venha. Quantos mais formos melhor.

Os outros demoraram um pouco a assimilar as suas palavras.

- Enlouqueceste? - explodiu Covan. - Isso é um suicídio!

- Talvez - disse Alexander, sorrindo. - Mas acho que serei mais útil ali fora do que entre os muros deste castelo; além disso, muita gente ficará grata por me perder de vista esta noite.

Ashran tinha saído para o grande terraço que se abria num dos lados da Torre de Drackwen, quase na cúpula. A balaustrada havia tombado décadas antes, mas o Necromante nem reparou. Só tinha olhos para as três luas que brilhavam no firmamento.

- É irónico - murmurou para si mesmo - que sejam os astros dos quais os Seis tanto se orgulham a precipitar a sua queda. A conjunção deu-me poder para destruir os dragões e os unicórnios... e, após quinze anos, este Triplo Plenilúnio dar-me-á o domínio de todo o Idhún. O Triplo Plenilúnio e...

Não terminou a frase, mas acariciou o que restava da balaustrada, com suavidade. A pedra respondeu ao seu contacto com uma leve vibração.

- O poder do último unicórnio - sussurrou. Ergueu a cabeça para o céu e as suas íris prateadas brilharam de forma estranha à luz das três luas. - Senhoras - cumprimentou-as com um sorriso frio -, não se podem esconder de mim esta noite. Entreguem-me o vosso poder e observem a queda de Nurgon, do bosque de Awa e dos últimos rebeldes. E... oh, sim - acrescentou, subitamente animado -, também serão testemunhas do final da vossa profecia ridícula. Porque eles... acabam de chegar

- concluiu, voltando-se para Zeshak, que esperava atrás de si. - Temos de os receber como merecem, não é?

Jack tropeçou, atordoado, e quase esbarrou em Christian.

- Tem mais cuidado - sussurrou ele na sua mente, zangado.

- Desculpa - pensou Jack automaticamente. Christian olhou para ele, erguendo uma sobrancelha. Apercebera-se de que o dragão parecia já acostumado a responder com pensamentos à conversa de um telepata. Muito poucos humanos, até mesmo aqueles que conviviam com sheks, renunciavam à voz quando lidavam com eles, talvez porque escutar-se a si mesmos os fazia sentir-se mais seguros. Jack encolheu os ombros, mas não respondeu à pergunta muda de Christian. Sheziss tinha-lhe ensinado a ser silencioso e... quem precisava de falar, tendo ao lado alguém que captava os seus pensamentos se os formulasse com intensidade suficiente?

Ambos olharam em volta. Estavam numa sala bastante parecida com a que acabavam de abandonar, mas muito mais maltratada pelo tempo. A divisão estava silenciosa, escura, vazia.

- Será que afinal não sabiam que vínhamos? - pensou Jack, inquieto.

- Não me parece que tenhamos tanta sorte - replicou o shek. Rodou sobre os calcanhares para examinar o hexágono no qual acabavam de se materializar. Os seus longos dedos percorreram agilmente os símbolos gravados no contorno, acariciando uns e ignorando outros, enquanto sussurrava algo em idioma arcano. Alguns dos símbolos foram-se iluminando, até que todo o hexágono emitiu um brilho suave e, finalmente, se apagou.

Jack observou todo o processo em silêncio. Nunca tinha visto Christian utilizar a magia que sabia que possuía. Ficou a olhar para ele, sem dizer nada.

- Fechei o portal - explicou o shek. - Para que Victoria não nos siga.

- Mas... - deixou escapar Jack; emudeceu imediatamente.

- Mas deixaste-a a dormir, não foi?

- há acordar ao amanhecer. Se algo de mal nos acontecesse e ela se apercebesse...

Não terminou a frase, mas Jack compreendeu. Não deixou de reparar, no entanto, que agora estava preso na torre, à mercê de Christian, que era o único dos dois que sabia como abrir novamente o portal. Respirou fundo e procurou afastar aqueles pensamentos da sua mente.

Seguiu o shek até à porta. Saíram da sala, cautelosamente, e percorreram o corredor em silêncio. Christian parecia saber exactamente para onde se dirigia e Jack foi atrás dele, decidido.

A Torre de Drackwen pareceu-lhe muito semelhante à de Kazlunn. Contudo, notava-se que estivera muito tempo abandonada. As fendas começavam a sulcar os muros de pedra, despidos das tapeçarias que adornavam as paredes de Kazlunn. Nenhum candeeiro iluminava os corredores nem as divisões dos níveis superiores da torre.

Não obstante, cada pedra parecia vibrar com uma energia quente e misteriosa. Sem saber bem porquê, Jack não pôde evitar lembrar-se de Victoria.

Então recordou que devia ter-lhe dito algo que não dissera. Deixou escapar um leve suspiro, que lhe valeu um dos olhares gélidos de Christian.

- Lamento - desculpou-se, pela segunda vez. Respirou fundo, várias vezes, como Sheziss lhe ensinara, para se acalmar e concentrar na situação. Contudo, não pôde reprimir um último pensamento para Victoria: "Quem me dera que me pudesses ouvir agora", disse-lhe em silêncio. "Queria que soubesses... que já tomei a minha decisão. Que quero continuar contigo, aconteça o que acontecer, com o shek ou sem ele. Que o amor que sinto por ti é muito mais importante para mim do que o ódio que ele me inspira. Oxalá tenha oportunidade de te olhar uma vez mais nos olhos e dizer-te tudo isto..."

Reprimiu subitamente aqueles pensamentos e olhou para Christian, inquieto, perguntando-se se a sua mente de shek os tinha captado. Mas Christian não deu mostras de o ter feito e nem sequer se voltou para olhar para ele.

Continuaram a avançar até alcançar uma escada em caracol.

- Para cima - indicou Christian. Jack respirou fundo e seguiu-o.

Lançaram-se escada acima, silenciosamente, como sombras.

Estavam tensos, mas mantinham o controlo sobre o poder que pulsava no seu interior, pelo que o brilho de Haiass e Domivat era apenas um suave fulgor mortiço na penumbra. Continuavam sem se deparar com ninguém.

Christian deteve-se num patamar da escadaria. Dali partiam seis corredores, cada um numa direcção diferente. O shek indicou o mais largo com um gesto e Jack compreendeu que era atrás da enorme porta ao fundo que se ocultava Ashran.

- Não parece estar vigiada - pensou.

- Não está - replicou Christian. - Quer que entremos. Entreolharam-se. O ódio latejou por um instante nos seus corações

e ambos se esforçaram para o controlar. Não era a melhor altura para se porem a combater, por muito que o instinto lhes bradasse prementemente que o fizessem.

- É uma armadilha - pensou Jack.

- Sim - assentiu o shek. - Mas, se os teus deuses têm realmente interesse em denotar Ashran, ajudar-nos-ão, espero. Tudo o que fizemos até agora, tudo o que sofremos, até mesmo a nossa própria existência... tinha como único objectivo este preciso momento. Nasceste para estar aqui agora, Jack. Se isto não correr bem, não sei o que mais podemos fazer.

- Eu sei - disse Jack. - E estou preparado. Mas porque será que sinto que nos falta alguma coisa?

Christian olhou para ele, sem dizer nada.

- E, apesar de tudo - prosseguiu Jack -, não quereria vê-la aqui por nada deste mundo.

O shek não fez nenhum comentário a esse respeito.

- Conheço esta sala - explicou. - É grande, mas não o suficiente para que vários sheks consigam lutar em simultâneo. Ali, por detrás desta porta, está o meu pai...

e possivelmente Zeshak e um ou outro szish, mas mais ninguém. Os szish não são importantes. Esquece-os. Mal atravesses o umbral, transforma-te e vai directo a Ashran. Se Zeshak não estiver, lutarei contigo. Se se encontrar na sala, eu ocupo-me dele.

Jack olhou-o, hesitante.

- Se houver outro shek na sala, o meu instinto vai levar-me directamente até ele.

- Então, procura controlar o teu instinto.

O rapaz assentiu e recordou tudo o que Sheziss lhe ensinara. Odiava Zeshak por instinto, como odiava qualquer outro shek. O seu ódio por Ashran devia-se a motivos pessoais. Centrou-se nesse pensamento.

Christian retomou a marcha. Jack seguiu-o. Tinha dado apenas uns passos quando sentiu a presença do shek atrás da porta. Trocou um olhar com Christian e percebeu que ele também o tinha notado. Zeshak, o rei dos sheks, encontrava-se ali.

Pararam a escassos metros da porta.

- Agora - disse Christian.

A porta abriu-se de par em par. Os dois jovens atravessaram o umbral ao mesmo tempo.

Entraram numa sala ampla de paredes arredondadas e tectos altos, cujo fundo se abria para um enorme terraço banhado pela luz das luas. Jack sentiu a presença de Zeshak, espiando-os de um canto, e ouviu o sibilar de ódio que o rei dos sheks lhes dirigiu. Mas naquele momento só tinha olhos para o homem que os aguardava no meio da sala, olhando-os sorridente. Era apenas uma sombra alta recortada contra a clara luz das luas, mas os seus olhos brilhavam estranhamente na penumbra. Jack sentiu que um profundo calafrio de terror percorria todo o seu ser ao sentir-se alvo daquele olhar.

"Jack." Ouviu o chamamento de Christian na sua mente apenas uns segundos depois de perceber que o seu corpo não lhe obedecia, que, por alguma razão, a chama do dragão parecia ter-se apagado dentro de si... que, por mais que tentasse, não conseguia transformar-se, não na presença de Ashran. Não precisou de olhar para Christian para compreender que lhe estava a acontecer o mesmo.

"O que está a acontecer?", perguntou-se, horrorizado.

O olhar prateado de Ashran continuava a queimá-lo como um ferro em brasa.

- O que é isto? - perguntou então o Necromante, com suavidade.

- Onde está o unicórnio?

Christian conseguiu dizer com esforço:

- Longe de ti, pai. Ashran riu suavemente.

- Minhas pobres crianças. Como estão enganados. Trouxeram-na convosco. Porque ela está onde vocês estiverem. Ou por acaso pensavam que poderiam romper tão facilmente o vínculo que vos une aos três?

Jack conseguiu libertar-se do feitiço que o olhar de Ashran produzia; ergueu Domivat e correu para ele, soltando um grito. Mas chocou contra algo invisível e a violência do embate deixou-o sem fôlego por um instante. Caiu no chão e, antes que pudesse ter noção do que estava a acontecer, ouviu o riso suave de Ashran junto ao seu ouvido:

- Então tu é que és o último dragão. Andava com vontade de te conhecer. Achavas realmente que podias vencer-me sem o unicórnio? Vencer-me... a mim?

A última coisa que Jack viu, antes de perder os sentidos, foram uns hipnóticos olhos prateados; e sentiu-se de repente tão pequeno e frágil como um pardal no meio de um violento furacão...

"Tu... quem és tu?"

Nos seus sonhos brilhavam umas íris prateadas, um olhar que ocultava muito mais do que pretendia mostrar, uns olhos que irradiavam um poder negro, letal, dissimulado sob um disfarce de prata...

"Tu sabes quem eu sou", respondeu a voz nos seus sonhos. "Sabes porque é que não podes enfrentar-me."

Victoria sufocou um grito e acordou de repente, com o coração a bater com força. Tinha tido um pesadelo...

Tentou acalmar-se, mas não conseguiu. Custou-lhe um pouco organizar o caos que ia na sua cabeça. Respirou fundo e voltou-se para a janela. Ainda era noite, mas havia tanta luz que quase parecia de dia.

De repente lembrou-se de tudo.

As três luas. Triplo Plenilúnio. Ashran. Jack e Christian tinham partido.

O olhar prateado de Ashran.

Levantou-se de rompante e precipitou-se para fora do quarto.

Encontrou logo a sala de onde Jack e Christian haviam partido. O seu instinto disse-lhe que aquele lugar tinha sido o último onde os dois tinham estado e procurou decifrar os símbolos do hexágono. Não foi difícil; tinha aprendido com Shail a ler e a escrever em idhunaico arcano, por isso soube imediatamente o que fazer para abrir o Portal. No entanto, não conseguiu, mesmo usando a magia do Báculo de Ayshel. Respirou fundo e procurou ficar calma. Compreendeu que o Portal não se abriria para ela; Christian assegurara-se de que Victoria não iria atrás deles.

Percorreu a torre de cima a baixo, com o coração a bater descompassadamente. Sabia que os dois rapazes tinham partido e sabia também para onde se tinham dirigido. Mas a Torre de Drackwen ficava muito longe e, quando ela conseguisse lá chegar, seria demasiado tarde. A sua única esperança residia na presença que palpitava, silenciosa, em algum lugar da torre.

Chegou às termas, onde dias antes tinham lutado contra os szish. Onde dias antes tinha partilhado aqueles momentos íntimos e especiais com Christian. Evitou pensar nisso. Tinha de manter a cabeça fria.

Mas era difícil quando Jack e Christian estavam em perigo. Eles tinham ido ao encontro de Ashran sem fazer ideia do que iam encontrar por detrás do seu olhar de prata.

Victoria descobrira-o, na Torre de Drackwen, ao olhá-lo nos olhos. Ou talvez apenas o tivesse pressentido, sem chegar a ter a certeza absoluta. Porém, naquela noite sonhara com o poder que se adivinhava por detrás daquelas íris prateados e tinha compreendido o seu significado.

Ainda tremia de terror quando se deteve à beira da piscina de água quente.

- Por favor, mostra-te - pediu em voz alta. Esperou, mas apenas obteve o silêncio como resposta.

- Peço-te - insistiu. - Sei que estás aqui, quem quer que sejas. Deixa-te ver.

Não sabia o que ia encontrar. Mas soubera durante todo aquele tempo que havia mais alguém na Torre de Kazlunn, uma quarta presença que tinha permanecido oculta. Alguém que viera com Jack, que o trouxera de volta do mundo dos mortos.

Apercebeu-se então de uma ondulação na superfície da água. Descobriu o corpo sinuoso de um shek e sentiu o coração acelerado. Mas depressa entendeu que aquela serpente não era Christian.

Mesmo assim, foi invadida por um surto de nostalgia quando ela emergiu da água, com as escamas a pingar, e se mostrou, imensa, misteriosa e letal. Havia naquela shek algo que evocava Christian, talvez o olhar, talvez a própria essência... Victoria foi incapaz de sentir medo.

Quando Sheziss baixou a cabeça para olhar para ela, com curiosidade, a jovem percebeu de súbito quem ela era. Observou-a, maravilhada, procurando compreender o que descobrira, esforçando-se por encontrar um sentido para o facto de aquela serpente estar ali por Jack e não por Christian.

Sheziss não disse nada. Continuou a olhar para ela, de todos os ângulos. Victoria suportou aquele exame pacientemente. Estava profundamente preocupada com Jack e Christian, mas não queria precipitar-se.

- Então tu é que és a rapariga-unicórnio - disse Sheziss. - Andava com vontade de te ver de perto.

Victoria respirou fundo.

- Obrigada por teres ajudado Jack - disse-lhe com suavidade. Foste tu quem lhe salvou a vida, não foi?

- E ainda me pergunto porquê - respondeu ela com alguma amargura.

- De qualquer forma, obrigada. Sinto-me em dívida para contigo. Sheziss semicerrou os olhos, sem dizer nada.

- Não vou perguntar-te porque é que o fizeste - prosseguiu Victoria -, por que estranha razão decidiste ajudar um dragão. Mas preciso de saber se estarias disposta a fazê-lo novamente.

- Sabendo o que sei agora? - Sheziss abanou a cabeça.

- Sabes para onde foram. Deixaste-os ir.

- Não havia nada que pudesse fazer.

- Podes levar-me para junto deles.

Sheziss não respondeu. Victoria avançou um passo na sua direcção.

- Salvaste-lhe a vida para o deixares morrer agora?

- Na altura as coisas eram diferentes. Na altura havia uma oportunidade de derrotar Ashran. Agora não há.

- Poderá haver - replicou Victoria suavemente -, se eu for ao seu encontro.

- Tens a certeza?

Victoria hesitou; recordou o que tinha visto nos seus sonhos e desviou o olhar a tremer.

- Não - admitiu em voz baixa. - Mas não tenho outra saída. Tenho de ir ter com eles, custe o que custar.

- Sabes que é isso o que Ashran quer, não sabes?

- Sim, sei. Mas que mais posso fazer? Não posso virar-lhes as costas. Precisam de mim.

- Não podes fazer nada por eles agora.

- Isso já não sei. Seja como for, que sentido terá a minha vida se os perder?

- És o último unicórnio do mundo. Tens muito para fazer.

- Precisamente por ser o último, a minha simples existência não faz sentido sem eles. O tempo dos unicórnios já passou. Devia ter morrido com todos os outros unicórnios no dia da conjunção astral. Mas sobrevivi e continuo viva agora que todos os outros estão mortos. A única coisa que me mantém viva é a certeza de que há mais alguém como eu. Outros dois seres que são como eu e ao mesmo tempo são tão diferentes de mim.

- Eu sei, rapariga-unicórnio. Mas nada disso me diz respeito, muito menos agora que desisti de levar a cabo a minha vingança.

- Não te estou a falar de ódio nem de vingança. Falo-te de amor. Se ajudaste Jack para te vingares de Ashran, se era o ódio que te movia e agora esse ódio já não

faz sentido... darias uma oportunidade ao amor?

- Experimentei o amor há muito tempo - respondeu Sheziss. - Mas tal como veio foi-se, e acabou.

Victoria ergueu a cabeça para a olhar nos olhos. Sentia a respiração da enorme serpente, a leve vibração do seu corpo anelado, e ouvia claramente o sibilar da sua língua bífida, mas nem sequer lhe tremeu a voz quando disse:

- Sei quem és.

A serpente semicerrou os olhos. -Jack contou-te?

- Não - sorriu Victoria. - Apenas sei. Amo tanto Christian que me dói o coração só de pensar nele. Não sei se é instinto... mas tens algo que mo recorda muito. Ter-te-ia reconhecido entre todos os sheks de Idhún, tenho a certeza disso. Sei que és mãe dele.

Sheziss afastou-se um pouco, zangada.

- O que saiu do meu ovo não se parecia em nada com essa criatura a quem chamas Christian - disse com um certo desprezo.

Victoria fechou os olhos brevemente.

- Os humanos odeiam-no e temem-no porque é um assassino disse a meia-voz. - Os sheks odeiam-no e desprezam-no porque a sua alma está contaminada de humanidade. Mas eu amo-o por ser como é, por ser o que é. E sei que, no fundo do teu coração, sabes que continua a ser teu filho.

Sheziss não respondeu. Começou a mergulhar na água, lentamente, dando a entender que a conversa havia terminado.

- Jack e Christian - insistiu Victoria. - Tens de sentir algum afecto por Jack, nem que seja um pouquinho, para lá do ódio e do instinto, senão não o terias trazido

até aqui, não terias ficado para cuidar de mim. E tens de sentir afecto por Christian, nem que seja um pouquinho, apenas porque continua a ser teu filho.

- Também é filho de Ashran e Zeshak - murmurou ela. - Eles que cuidem dele.

- Vão matá-lo - disse Victoria. - Sabes que vão. Jack e Christian ainda estão vivos, eu sinto-o. Mas não têm hipótese nenhuma contra Ashran. Ele só não os matou ainda porque está à minha espera. Se lhes virar as costas, se fugir, estarei a condená-los à morte.

Não te peço que lutes ao meu lado. Ajuda-me apenas a chegar até eles. Por favor.

Fez-se um breve silêncio, um silêncio que Victoria achou eterno.

- vou levar-te até lá- disse então Sheziss. - Afinal de contas, a profecia tem de se cumprir.

- Sim - assentiu Victoria, com suavidade. - A profecia tem de se cumprir.

Sheziss mergulhou por fim nas águas escuras, criando um remoinho na superfície da piscina. Victoria esperou que desaparecesse por completo; de seguida, deu meia-volta e correu escada acima. Foi ao seu quarto para se preparar. Pegou num casaco, ajustou o báculo às costas e, com um suspiro, voltou a descer até à porta principal. Quando passou a entrada da Torre de Kazlunn, viu que Sheziss já a aguardava lá fora. Não se deteve a pensar no facto de deixar a torre vazia nem pensou no que aconteceria se ela não regressasse. Tinha de ir à procura de Jack e de Christian, tinha de lutar na Torre de Drackwen; não havia outra saída.

Quando a shek se elevou no ar, batendo as suas poderosas asas à luz das luas, levando sobre o seu dorso o último unicórnio do mundo, iam na realidade ao encontro de um destino que, tal como o mecanismo de um relógio, estava prestes a cumprir-se, lenta mas inexoravelmente. A peça que faltava sobre o tabuleiro ia ocupar o seu lugar.

Nem Sheziss e Victoria, voando na noite do Triplo Plenilúnio em direcção à Torre de Drackwen, nem Jack e Christian, presos sob o poder de Ashran, o Necromante, tiveram consciência disso; mas, em algum lugar, longe da sua compreensão e dos seus sentidos, sete deuses continham a respiração.

Alexander parou o cavalo nos limites do bosque, diante de duas dríades que olhavam para ele com cara de poucos amigos.

- Onde pensas que vais? - atirou uma delas, mostrando os seus pequenos dentes com ar feroz.

- Eu e os meus companheiros vamos atacar o acampamento dos sheks. As fadas semicerraram os olhos e observaram-no, desconfiadas.

- Vocês e mais quem?

- Já vamos ver - sorriu Alexander.

- Não se pode sair do bosque sem autorização de Harel.

- Não preciso da autorização de ninguém. Sou o príncipe Alsan de Vanissar. Harel de Awa é meu aliado, não meu superior.

Uma das dríades rangeu os dentes. A outra murmurou:

- Já tinha ouvido falar deste humano. É o homem-animal. Disseram-me que é muito perigoso esta noite. Vamos deixá-lo ir; se tiver de fazer estragos, que seja na parte das serpentes.

A dríade afastou-se de má vontade.

- Vamos informar Harel disto - advertiu-o.

Alexander concordou; esporeou o cavalo e avançou em direcção à última fila de árvores.

Os seus companheiros seguiram-no. Eram apenas trinta e quatro. Na Fortaleza e arredores tinham-se estabelecido perto de duzentas pessoas, mas a maioria delas preferira ficar com Denyal, Tanawe e o Arquifeiticeiro.

Em contrapartida, aqueles trinta e quatro tinham optado por seguir Alexander na sua incursão suicida. A maioria eram jovens que, depois de terem estado vários meses encerrados na Fortaleza, ansiavam por entrar em combate. Mas também os acompanhavam Covan, Shail e um outro cavaleiro de Nurgon que se juntara a eles no último minuto. Tinham avançado pelo bosque novo, guiados por Alexander, em direcção ao Sul. Agora estavam ali, em silêncio, à espera... de quê?

Shail observou o amigo, inquieto. Seguira-o até ali, apesar de ainda se sentir fraco, porque confiava nele, mas já estava a duvidar de que tivesse sido uma boa ideia. Acalmou o seu nimen, que começara a estalar as pinças da boca, nervoso.

Muitos dos voluntários do grupo também montavam nimens. Em contrapartida, os cavaleiros de Nurgon montavam a cavalo; as suas montadas estavam extraordinariamente bem cuidadas, pois só havia quatro cavalos na Fortaleza, dado que os rebeldes não tinham possibilidade de obter mais a não ser que os roubassem no acampamento inimigo. É que, embora os szish combatessem quase sempre a pé, as tropas de Vanissar e Dingra contavam com um bom número de cavaleiros nas suas fileiras.

Observaram com atenção o acampamento inimigo. As tropas e os szish estavam prontos para entrar em combate e esperavam diante do bosque, numa formação perfeita, um

pouco mais para norte, precisamente no lugar onde por detrás das árvores se erguia a Fortaleza. Aguardavam pacientemente, sabendo de antemão que o escudo não tardaria a cair. E, quando caísse, teriam apenas de avançar em linha recta até aos muros de Nurgon. Até já tinham preparado os aríetes e as escadas.

- Nem se dão ao trabalho de esconder as suas intenções - murmurou alguém.

- Isso é porque já sabiam que nós estamos ao corrente da sua intenção de atacar esta noite.

- Mas como é que sabiam? - perguntou Shail.

- Talvez tenham sido eles a enviar o semiceleste para nos advertir... ou para nos amedrontar - disse Covan, mas Alexander negou com a cabeça.

- Não acredito. Tenho a certeza de que Mah-Kip agia de boa-fé.

- Então... como é que sabiam? Alexander encolheu os ombros.

- São sheks - disse apenas, como se isso explicasse tudo. Contudo, não parecia prestar atenção ao exército szish. O seu olhar

estava cravado na retaguarda do acampamento, onde os soldados humanos acabavam de se preparar. Pelos vistos, e ao contrário dos homens-serpentes, não acreditavam muito que o escudo fosse cair naquela noite. No sector onde estava acampado o exército de Dingra havia bastante animação.

- O rei Kevanion ainda está no acampamento - murmurou Alexander. - Decerto está a acabar de se armar.

Covan olhou para ele. Não gostou do brilho selvagem reflectido nas pupilas do seu antigo discípulo.

- Em que estás a pensar? Alexander abanou a cabeça.

- Trouxe-vos a este lugar porque, se temos de atacar o acampamento, tem de ser a partir daqui. O grosso do exército szish reuniu-se na orla do bosque, mais a norte. Nós vamos contornar o acampamento pelo sul e atacar por trás.

- As tropas de Dingra?

- Não. O sector dos raheldanos. As catapultas.

Covan assentiu imediatamente, com um brilho de compreensão nos olhos.

- Os raheldanos movimentaram todos os seus carros até à linha da frente de batalha. Usaram-nos para abrir caminho pelo bosque. Mas deixaram as catapultas na retaguarda. Só irão movimentá-las quando tiverem aberto espaço suficiente entre as árvores, para que possam atravessar o bosque à vontade.

Alexander sorriu como um tubarão.

- Isso se na altura ainda houver alguma coisa para movimentar. Raheld era um reino de artesãos e o seu exército não valia grande coisa. Mas fabricavam armas de óptima qualidade, sendo que algumas delas requeriam ser manejadas por técnicos raheldanos. Era o caso dos carros de combate blindados que tinham chegado há apenas uns dias e que agora aguardavam um pouco afastado, à frente do exército szish, que o escudo feérico lhes deixasse o caminho livre para penetrar, como pudessem, pelos carreiros estreitos do mato.

Outro exemplo eram as catapultas, que esperavam silenciosas ao fundo do acampamento.

- O exército de Dingra está muito perto - replicou Covan. - Vamos atrair a sua atenção,

Alexander sorriu de novo.

- Melhor ainda.

Os outros olharam para ele, inquietos. Suspeitavam que havia algo mais por detrás daquilo, algo mais do que destruir catapultas. Covan temia que, na realidade, Alexander desejasse encontrar o rei Kevanion e vingar com a sua morte a queda da Ordem de Nurgon. Mas parecia tão sereno e tão seguro de si que não teve outro remédio senão dar-lhe um voto de confiança.

Continuavam a ser trinta e quatro pessoas que iam fazer uma incursão num acampamento de alguns milhares de soldados. Mas contavam com o factor surpresa.

Alexander deu instruções muito precisas. Quando se assegurou de que cada um tinha entendido o que deveria fazer, voltou-se para Shail.

- Fica na retaguarda - disse-lhe. - Quando vires que estão todos ocupados connosco, aproxima-te das catapultas e pega-lhes fogo. Mas não gastes toda a tua energia mágica em feitiços de ataque. Deixa ficar a suficiente para fazer um teletransporte de emergência.

- Não posso teletransportar-vos a todos.

- A todos, não. Só àqueles que estiverem moribundos e não puderem mexer-se. Ou, no pior dos casos... aos sobreviventes.

Shail assentiu.

Alexander olhou em volta pela última vez; depois ergueu a cabeça para as luas e sorriu.

- Está na hora - disse apenas.

- O unicórnio dirige-se para cá - anunciou Ashran; voltou a cabeça para o exterior e as três luas reflectiram-se nos seus olhos prateados. Infelizmente, não está

a vir tão depressa como deveria. - Voltou-se para Zeshak. - Talvez não tenha percebido a gravidade da situação.

A serpente semicerrou os olhos. Tinha aprisionado Christian entre os seus anéis; o jovem encontrava-se completamente imobilizado e custava-lhe respirar. Aos pés

de Ashran, Jack não se encontrava em melhor situação. O Necromante tinha-o agarrado pela nuca, como se fosse um cãozinho sem dono, cravando as pontas dos dedos na sua pele como uma garra de gelo. Jack sentia-se tão fraco que mal conseguia mexer-se. Rebelara-se contra Ashran, furioso, com as escassas forças que lhe restavam.

O Necromante não só não soltara a sua presa, como ainda lhe transmitira algo através dos dedos, uma espécie de descarga eléctrica que tinha atravessado a pele do rapaz e o sacudira por dentro, provocando-lhe uma dor insuportável e agonizante. Soltando um grito, Jack sentira como o seu corpo se retorcia e se arqueava sob o poder negro do Necromante; a sua visão tinha-se toldado, todos os seus sentidos tinham reagido àquela tortura. Mas o rapaz lutara uma e outra vez até que, exausto, se deixara cair aos pés do seu inimigo, demasiado fraco para resistir. A mão de Ashran continuava a segurar-lhe a nuca, como uma coleira de ferro, mas, se Jack não se mexesse, a dor não o atormentava. Acabou por se deixar ficar imóvel à espera.

Respirando com dificuldade, arriscou-se a olhar para Christian, aprisionado pelo pesado corpo de serpente de Zeshak. O jovem não tinha lutado como Jack. Compreendera de imediato que não valia a pena; que sem Haiass, que ficara caída num canto, e sem a sua capacidade de transformação, que lhe tinha sido arrebatada inexplicavelmente, não poderia libertar-se do asfixiante e mortífero abraço do shek.

Jack aguardou que o seu companheiro de infortúnio estabelecesse contacto telepático consigo. Manteve a mente alerta, mas não recebeu nenhuma mensagem de Christian,

nem sequer um sinal de que ele estava receptivo e pronto para actuar se fosse preciso. Perguntou-se, inquieto, se Zeshak tinha bloqueado a sua mente, se tinha poder para o isolar dessa maneira.

Fosse como fosse, o panorama era péssimo. Ainda se sentia furioso pela facilidade com que Ashran os capturara.

"Foi tudo para isto?", perguntou-se, com amargura. "Yandrak sobreviveu à conjunção astral, viajou até outro mundo, reencarnou num bebé humano... que cresceu até aos treze anos, perdeu os pais nessa altura, começou a treinar-se, lutou, sofreu, amadureceu, aprendeu a ser dragão, morreu para todos, compreendeu muitas coisas, regressou a casa e chegou ao seu destino, tudo porque supostamente havia uma profecia que tinha de se cumprir... para chegar até aqui e cair sob o poder de Ashran à primeira? Onde está a profecia agora? Que dizem os Oráculos sobre isto?"

Tudo aquilo lhe parecia uma brincadeira dos deuses. Uma brincadeira de muito mau gosto.

Tinha-se perguntado porque é que continuavam vivos, porque é que Ashran ainda não os matara, pelo menos a ele. Foi então que reparou que Ashran e Zeshak pareciam estar à espera de alguma coisa e compreendeu de quê... ou de quem.

Aguardavam Victoria. Tinham a certeza absoluta de que viria até à torre, arranjando maneira de chegar, fosse ela qual fosse, simplesmente porque Jack e Christian aí se encontravam em perigo e a sofrer.

"Mas não faz sentido", pensou Jack. "Ashran sabe que a profecia também a menciona. Sabe que, se ela vier, a profecia pode cumprir-se. Porque não evitá-la agora, que ainda está a tempo?"

Além disso, sentira desde o início o olhar gélido de Zeshak cravado em si. O shek desejava matá-lo, desejava-o com toda a sua alma, mas Ashran dissera-lhe que esperasse... e o poderoso rei das serpentes lutava por dominar o seu instinto, cujo chamamento se tornava mais e mais premente a cada instante.

- Eu sei, Zeshak - disse Ashran, respondendo a um mudo comentário telepático dele. - Mas nem tudo vai dar à profecia, acredita em mim. Não estamos a arriscar-nos tanto quanto pensas. Controla o teu ódio, pelo menos mais um pouco, que tudo acabará em breve. - Voltou-se para ele. - Por acaso não confias em mim, que vos trouxe de volta a casa, que vos entreguei o governo de Idhún... que acabei com a ameaça dos dragões?

Zeshak semicerrou os olhos.

- Então continua a confiar em mim - sorriu Ashran. - Não te arrependerás.

Jack recordou então que a profecia não assegurava que sairiam vencedores. Dizia apenas que um dragão e um unicórnio enfrentariam Ashran, que só eles teriam alguma possibilidade de o derrotar. Ainda assim...

"A menos", pensou, "que já saiba que não vamos vencer". Sheziss dissera-lhe que a profecia tinha sido modificada para que Christian estivesse incluído nela. Se assim fosse, se o Sétimo estava por detrás de tudo aquilo, se a profecia acabava por o favorecer a ele, não era de estranhar que aqueles dois esperassem por Victoria com tanto interesse, independentemente de Ashran tencionar utilizar o poder do último unicórnio.

Jack deixou cair a cabeça atordoado e dando-se por vencido.

"Não entendo nada", pensou.

Foi então que Ashran afirmou que Victoria estava a caminho, mas que viajava muito devagar. Jack procurou levantar a cabeça, perguntando-se o que significava aquilo. Eles tinham deixado Victoria na Torre de Kazlunn. Christian fechara o Portal, pelo que a rapariga não podia tê-los seguido através dele. Decerto não decidira ir a pé, pois demoraria dias a chegar. Nesse caso... a única hipótese era Ashran ter reaberto o Portal.

Mas, pelo que Jack sabia, Ashran não podia abrir dali o Portal da Torre de Kazlunn. Caso contrário, tê-la-ia conquistado há muito tempo e tê-lo-ia atacado no período em que os três aí se haviam refugiado. Se não estava enganado, o Portal tinha uma entrada dupla, uma em cada torre. Podia abrir-se e fechar-se a entrada da torre de partida, mas não a da torre de destino. Christian conseguira abrir e fechar atrás de si o Portal da Torre de Kazlunn, mas não o da Torre de Drackwen, que já estava aberto... porque Ashran o deixara aberto para eles. Da mesma forma, Ashran podia abrir e fechar o Portal da Torre de Drackwen, mas não o de Kazlunn.

Christian tinha selado o Portal da Torre de Kazlunn de maneira que Victoria não pudesse atravessá-lo. Provavelmente, Ashran até o conseguiria abrir, pensou Jack... se estivesse no lugar adequado. Mas não estava. Assim, mesmo que quisesse, Ashran não teria como franquear a Victoria a entrada na sua torre. Christian fizera com que tal não fosse possível.

Então, como pretendia Ashran que Victoria chegasse rapidamente? E porque é que tinha tanta pressa? Talvez o feitiço que mantinha Jack e Christian presos tivesse um tempo limitado... Agarrou-se a essa esperança.

Nesse instante, Zeshak pronunciou-se, mas Jack não captou os seus pensamentos, que tinham focado somente Ashran. Sabia que falara, porque olhou fixamente para o Necromante e este assentiu, concordando.

- O anel, sim. Tinha-me esquecido. Vale a pena tentar.

Os olhos de Zeshak brilharam malevolamente quando contraiu os seus anéis em volta do esbelto corpo de Christian. O rapaz abriu os olhos subitamente, arquejou e o seu rosto crispou-se num esgar de dor. Ouviu-se um estalido desagradável.

Longe dali, Victoria gemeu sobre o dorso de Sheziss. Respirou fundo e levou aos lábios a pedra de Shiskatchegg, que cintilava de novo com um brilho avermelhado.

- Estou a caminho, Christian - sussurrou. - Não demoro. Aguenta. Cerrou os dentes, tentando esquecer a angústia que lhe produzia o facto de ter a certeza de que Jack e Christian estavam a sofrer. Momentos antes, também sentira a agonia de Jack. Não tinha nada que se parecesse com um anel mágico que a ligasse a ele, mas sentia o sofrimento de Jack no seu âmago, no fundo do seu coração. Engolindo em seco, inclinou-se sobre o dorso ondulante de Sheziss.

- Não podes ir mais depressa? - gritou para se fazer ouvir por cima do som do vento que assobiava aos seus ouvidos.

- Sabes que não - replicou a shek. Victoria respirou fundo.

- Tem de haver algo que eu possa fazer - murmurou para si mesma. Sentiu, novamente, que Ashran tornava a magoar Jack e Christian, lá longe, na Torre de Drackwen. Deixou escapar um queixume de angústia, mas recompôs-se. Quando ergueu a cabeça, o vento afastou-lhe o cabelo da cara e a luz das três luas reflectiu a expressão do seu rosto. A primeira vista, Victoria estava serena e impassível; mas os seus olhos emanavam, uma vez mais, aquela terrível escuridão que denunciava a cólera e a dor do unicórnio ferido.

- Não me importa quem sejas, Ashran - sussurrou à noite. - Juro-te que não voltarás a magoá-los. A nenhum dos dois.

O báculo brilhou misteriosamente, captando toda a luz das três luas cheias. Victoria sabia o que fazer. Respirou fundo, fechou os olhos e concentrou-se.

Reinava uma grande agitação no acampamento.

Por fim, depois de vários meses acampadas nos limites do bosque de Awa, as tropas iam entrar em acção. E agora ajustavam as suas armaduras, afiavam as armas e limpavam os escudos.

Todos sabiam que o escudo feérico continuava ali, impedindo a passagem. Mas os sheks tinham dito que naquela noite, durante o Triplo Plenilúnio, Ashran iria finalmente destruí-lo e eles teriam o caminho livre para penetrar no bosque. No início, os soldados humanos receberam a notícia com algum cepticismo. Mas, quando as luas se ergueram no firmamento, já os szish aguardavam nos limites da floresta, com uma fé inabalável na promessa de que o seu senhor faria cair o escudo. Os humanos também se apressaram, porque, se iam de facto atacar finalmente Nurgon, ficariam mal vistos perante os szish que, uma vez mais, tinham sido mais rápidos do que eles. De qualquer forma, iam entrar em acção e isso fazia-os sentir-se optimistas e impacientes ao mesmo tempo.

Talvez fosse por essa razão que os guardas não estavam tão atentos como de costume. Talvez fosse por essa razão que não viram as sombras que deslizaram entre as tendas exteriores até ser demasiado tarde.

Alexander enviara dois guerreiros à frente e foram eles que se encarregaram de se desfazer dos soldados que vigiavam o acampamento. Um após outro, foram rápidos e letais. Um dos soldados que tombou às suas mãos era uma mulher, mas isso não os deteve; em Idhún, muitas mulheres lutavam como os homens, pelo que ter compaixão delas significava, frequentemente, assinar a própria sentença de morte.

Quando já não restava ninguém para dar o alarme, Alexander entrou a galope no acampamento, seguido dos seus, com Sumlaris desembainhada, lançando um arrepiante grito de guerra que soou como um uivo.

Os soldados de Dingra tardaram a perceber o que estava a acontecer e nesse momento, para alguns deles, era já demasiado tarde. Como um furacão, Alexander galopava entre as tendas, enterrando Sumlaris em todos os corpos que encontrava pelo caminho. Os que sobreviveram ao ataque contariam mais tarde que a fúria do inimigo, os seus olhos iluminados com uma selvagem luz amarelada e o brilho sobrenatural da sua espada mítica ainda povoavam os seus piores pesadelos.

Depois dele, os rebeldes lançaram-se ao ataque. Muitos levavam tochas acesas e iam incendiando as tendas à sua passagem.

Por fim, os soldados reagiram. Rapidamente aquele sector do acampamento mergulhou num autêntico caos. Gritos, fumo, barulho e, sobretudo, a canção da espada, uma canção de sangue e de morte.

Shail observava tudo da retaguarda, montado no seu nimen. Quando lhe pareceu que os soldados de Dingra estavam já suficientemente embrenhados no confronto, esporeou a sua montada para que deslizasse pelos limites do acampamento... em direcção às catapultas.

Os nimens eram insectos rápidos e silenciosos. Shail sabia que não teria passado despercebido se estivesse montado num cavalo; mas o nimen levou-o obedientemente até ao seu destino sem que ninguém reparasse nele.

As catapultas encontravam-se vigiadas. Os soldados que as guardavam observavam apreensivos o que estava a acontecer um pouco mais adiante, no acampamento dos seus aliados, mas não abandonaram o posto. Escondido atrás de um carro, Shail decidiu passar à acção. Concentrou-se e lançou um conjuro de ataque à catapulta mais próxima. O fogo gerado pela sua magia fê-la irromper em chamas; depois saltou para a catapulta contígua e dessa para a seguinte, até incendiar todo aquele sector.

Os guardas sobressaltaram-se, confusos. Primeiro olharam para todos os lados, à procura do autor da façanha, mas reagiram de imediato, procurando apagar o fogo.

Shail sabia que era uma questão de tempo até que alguém ouvisse os seus gritos de alarme, por isso retirou-se discretamente dali em direcção ao local onde os seus companheiros travavam uma batalha sanguinária.

Aproximou-se cautelosamente, mas não conseguiu manter-se à margem. O batalhão mais recuado do exército szish não demorara a vir em auxílio dos guardas humanos e as coisas tinham ficado muito feias para os rebeldes. Estava ainda a perguntar-se como poderia ajudar, quando alguém o viu e correu para ele com uma maça no ar. Shail fez o nimen retroceder, tropeçou numa tenda e teve apenas tempo para pronunciar um feitiço básico que lançou o seu atacante para trás. Quando deu por isso, estava no meio da luta: espadas, maças, punhais e martelos dançavam o seu macabro baile de sangue; corpos caídos atrapalhavam a sua passagem; corpos vivos chocavam uns contra os outros... a confusão era tal que não sabia quais eram os seus inimigos ou os seus aliados.

- Shail! - gritou alguém.

O feiticeiro virou-se de imediato e procurou com o olhar a pessoa que o chamara, mas estava tudo muito confuso. Viu Alexander um pouco mais à frente, ainda montado no seu cavalo, desferindo golpes com a Sumlaris a torto e a direito, mas depressa o perdeu de vista. Tornou a ouvir a voz que o chamara, mas esta calou-se subitamente e o jovem não chegou a saber a quem pertencia.

Ouviu um sibilo atrás de si e voltou-se de repente, mesmo a tempo de ver um szish a saltar para cima dele. Não teve oportunidade de se defender, mas, por sorte, não foi preciso: uma pesada maça vinda da escuridão cortou o ar com um assobio; ouviu-se um desagradável ruído e o homem-serpente tombou no chão como um peso morto.

- Estás bem, rapaz? - perguntou a voz de Covan.

- Sim - murmurou Shail, ignorando o sangue que salpicara a sua roupa. - Obrigado.

- O que se passou com as catapultas?

- Incendiei-as todas. Onde está Alexander?

- Não faço a menor ideia - gritou o mestre-de-armas, para se fazer ouvir no meio do tumulto. - Mas temos de ir já. Perdemos demasiada gente.

- Suml-ar-Nurgon! - ouviu-se ao longe. - Pela Resistência! Covan e Shail entreolharam-se.

- É ele - disse Covan; esporeou o cavalo e dirigiu-se para Alexandre a galope.

Shail procurou segui-lo, mas dois soldados de Dingra atravessaram-se no seu caminho. O feiticeiro assobiou baixinho e o seu nimen lançou sobre eles uma substância

pegajosa. Faziam-no sempre que estavam furiosos ou assustados, para confundir possíveis predadores, mas os nimens já meio domesticados pelos feéricos só atacavam quando os seus cavaleiros lho ordenavam.

- Aaaahh! - exclamou um dos soldados, procurando limpar a cara.

- Que raio...?

Shail voltou a fazer uso da sua magia. com um conjuro lançou-os para trás com a força de um ciclone. Juntamente com eles, voaram mais alguns.

Alexander, por seu turno, tinha-se aproximado cada vez mais da tenda do rei Kevanion. Era fácil de distinguir, porque ostentava o estandarte de Dingra. Viu o rei a lutar a pé contra os rebeldes e uma chama de raiva incendiou-lhe o coração.

"Aquele é Kevanion", pensou. "O rei de Dingra. O que foi cavaleiro de Nurgon e acabou por vender os líderes da Ordem e entregá-los aos sheks. O que provocou a queda da Fortaleza e ajudou a exterminar os cavaleiros de Nurgon, um a um."

Então ouviu a voz de Shail, que o chamava. Esforçou-se por se dominar e voltou para trás; a sua vingança contra Kevanion podia esperar.

Regressou em busca dos seus amigos. Não foi fácil abrir passagem pelo acampamento, ainda menos agora que os szish também lutavam. Um homem-serpente interpôs-se no seu caminho e lançou-lhe uma estocada que por pouco não acertou no alvo. Alexander fez retroceder o seu cavalo; o fio da arma do szish enterrou-se no flanco do animal, que relinchou e se empinou, levantando as patas da frente. O szish recuou, mas, quando o cavalo caiu de novo sobre as quatro patas, com ele desceu também o fio de Sumlaris, a Imbatível. O szish mal teve tempo de emitir um último silvo antes de a espada mítica acabar com a sua vida.

Alexander limpou a espada às calças e olhou em volta, inquieto.

Quando conseguiu localizar Covan e Shail, estes encontravam-se já com graves problemas. Eles os dois e um jovem caçador shiano, que lutava corajosamente no dorso de um nimen, estavam cercados pelos soldados de Dingra, humanos e szish. Shail pronunciou um feitiço de fogo e lançou-o contra os inimigos. Três deles, dois humanos e um szish, irromperam em chamas. Alexander procurou fazer-se ouvir por cima dos seus gritos de medo e de dor.

- Shail! Estão bem?

- Bendita seja Irial, rapaz! - gritou Covan. - Vamos embora daqui!

- Ainda não! - rugiu Alexander. - Vamos esperar mais um pouco!

- Estás à espera do quê? Se continuarmos aqui, depressa nos cairão todos em cima!

Shail fez a sua montada dar uma volta, enquanto calculava a magia que lhe restava, perguntando-se se conseguiria criar um globo de protecção sobre os seus companheiros e, de seguida, teletransportá-los a todos para um local seguro.

Alexander lançou um uivo e descarregou Sumlaris de cima a baixo num soldado szish que se aproximara demasiado. A lâmina mítica atravessou o metal facilmente e enterrou-se na carne escamosa do homem-serpente.

- Alsan! - gritou Covan.

Alexander voltou-se com violência e cravou o olhar no horizonte, como se tivesse escutado algo que só ele podia ouvir. Sorriu.

- Vêm aí - limitou-se a dizer.

Momentos depois, como uma torrente de fúria à solta, trezentos bárbaros shur-ikaili irromperam no acampamento, lançando gritos de guerra e brandindo as suas espadas e maças, ávidos de sangue. Guiavam-nos os senhores dos Nove Clãs, à frente dos quais estava Hor-Dulkar. Ao seu lado, à direita e à esquerda, cavalgavam duas mulheres: uma delas era Uk-Rhiz, cujos olhos brilhavam ferozmente num rosto adornado de pinturas de guerra; a outra era Aile Alhenai, a feiticeira feérica, que cavalgava com o cabelo ao vento, envolta em magia protectora que a fazia cintilar na penumbra com um brilho sobrenatural que desafiava a luz das três luas.

Alexander abriu passagem por entre as tropas inimigas, com um uivo de júbilo, em direcção à cabeça do grupo de bárbaros. De caminho acabou com a vida de mais uns soldados. Sentiu que uma flecha fendia o ar perto de si e lançou-se sobre a crina do cavalo, mas o dardo enterrou-se profundamente no seu ombro. Alexander nem reparou. O sangue do lobo começara a subir pelas suas veias, estimulado pelo delírio do combate.

Shail viu-o ir e quis segui-lo, mas depressa se apercebeu de que ele, Covan e o shiano estavam cercados. Tratou de acalmar o nimen, que estalava os seus apêndices bocais, nervoso, e fazia vibrar as antenas, orientadas na direcção do bosque para onde ansiava voltar.

O feiticeiro compreendeu que não tinha outra opção: Alexander estava agora longe do seu alcance e não podia incluí-lo no feitiço de teletransporte. Criou uma redoma de protecção à sua volta e dos seus companheiros.

- Boa! - disse Covan.

Shail olhou em redor, à procura de mais aliados que pudessem socorrer-se da sua magia. Por algum motivo, levantou os olhos para os céus... e não gostou do que viu.

A maioria das serpentes que sobrevoavam a zona tinha ignorado a escaramuça que se travava em terra. Não se tratava apenas de confiarem nos szish para resolverem o problema, mas de estarem ocupadas com outros assuntos.

Tinham formado um enorme círculo no ar e os seus corpos ondulantes emitiam uma espécie de brilho intermitente, branco-azulado, frio, como uma luz vista do outro lado de uma parede de gelo. Estavam a preparar algo importante e Shail suspeitou que não lhe agradariam os resultados daquele estranho ritual.

Mas havia três sheks que não faziam parte do círculo, tratando antes de verificar se tudo corria dentro da normalidade... e que, obviamente, tinham visto a coluna de bárbaros a invadir o acampamento. Shail ouviu os seus gritos de raiva quando se lançaram a pique sobre eles...

Naquele preciso momento, um poderoso bramido desafiou a voz das serpentes. Então, dois enormes dragões elevaram-se no céu vindos das entranhas do bosque de Awa. À brilhante luz das luas, todos puderam ver que um deles era vermelho... e o outro, dourado.

Fagnor e o falso Yandrak.

Ouviram-se gritos de júbilo e exclamações inquietas. Os que gritavam vivas eram os rebeldes, porque Yandrak, o dragão dourado, o dragão da profecia, tinha regressado para os ajudar. A apreensão partia dos seus inimigos, especialmente dos soldados humanos de Dingra e Vanissar, pois, segundo constava, o último dragão encontrava-se morto.

Os dois dragões precipitaram-se contra o círculo de sheks, rompendo-o e provocando nas serpentes assobios de fúria e de ódio intenso. Mas não ficaram a lutar. Desceram

a pique, perfeitamente sincronizados, em direcção aos três sheks que ameaçavam os bárbaros.

- Estão loucas! - quase gritou Shail. - Vão matá-las!

Mais à frente, Alexander também as tinha visto. Conseguira alcançar os líderes dos bárbaros, e Hor-Dulkar, já coberto de sangue inimigo, saudara-o com um grunhido, sem deixar de descarregar o seu enorme machado de guerra contra tudo o que sibilasse.

- Temos de ir para o bosque! - gritou-lhe, para se fazer ouvir por cima do caos. - Para o bosque!

Depois, esporeou o seu cavalo para abrir caminho naquela direcção. Uma mulher bárbara foi a primeira a segui-lo, deixando escapar um grito de guerra que foi secundado por um sector dos shur-ikaili. Quase de seguida, Alexander ouviu algures a voz de Allegra a pronunciar um feitiço...

De repente, um vento fortíssimo varreu a terra diante deles. Muitas das tendas voaram. Algumas continuavam a arder e precipitaram-se sobre os soldados inimigos, envolvendo-os num abraço ardente e letal. Os que resistiram ao embate não conseguiram manter o equilíbrio e caíram no chão, apesar das armaduras. O pó arrastado pelo vendaval cegou a maioria.

- Para o bosque! Para o bosque! - continuava a gritar Alexander. Um cavaleiro cruzou-se no seu caminho.

- Não irás passar por aqui, renegado!

O seu rosto encontrava-se coberto por um elmo, mas a armadura era de qualidade e tinha ao peito o escudo da casa real de Dingra.

- Rei Kevanion, traidor! - grunhiu Alexander, erguendo Sumlaris com uma determinação sinistra.

Mal tinham chegado a chocar as espadas, quando ouviram um assobio sobre as suas cabeças. Viram então os sheks que se abatiam sobre eles e os dois dragões que os seguiam; e foram testemunhas de como as serpentes, enlouquecidas pelo ódio, se esqueciam dos insignificantes humanos e se voltavam para os dragões mostrando as presas, com os olhos reluzentes de raiva.

O rei de Dingra ficou paralisado de estupefacção, com os olhos cravados no dragão dourado que sulcava o céu. Alexander aproveitou aquele momento de distracção para descarregar a sua espada contra ele, mas alguém lançou um grito de aviso e o rei reagiu com rapidez suficiente para interpor a sua arma entre ele e Alexander no último momento. Repeliu-o, não sem esforço, fazendo-o retroceder.

Nesse instante, Hor-Dulkar e os seus bárbaros alcançaram Alexander. Alguém que fugia deles chocou contra o cavalo do jovem, fazendo-o tropeçar. Quando Alexander conseguiu recuperar o equilíbrio, Kevanion já se tinha ido. Ouviu a sua voz um pouco mais adiante e viu-o combater contra um grupo de bárbaros que se aproximara.

- Se saíres desta, serei eu a acabar contigo, Kevanion de Dingra prometeu.

Ergueu o olhar e viu como Fagnor e o falso Yandrak davam meia-volta e empreendiam a fuga em direcção ao bosque. O dragão vermelho executou a manobra na perfeição,

mas o dourado foi um pouco mais lento. com um assobio de triunfo, um dos sheks capturou-o entre os seus anéis.

Fagnor veio resgatá-lo, lançando uma labareda contra a serpente, que silvou, aterrada, e soltou a sua presa.

Alexander desfez-se de outros dois soldados que procuraram derrubá-lo e ergueu de novo a cabeça. Viu os dois dragões fugirem para o bosque, com todo um exército de sheks a persegui-los. Suspirou, aliviado, quando os viu atravessar o escudo mesmo por cima da Fortaleza de Nurgon. Uma serpente conseguiu passar logo atrás deles, antes de a cúpula protectora se fechar novamente, mas foi recebida por uma chuva de projécteis de fogo lançados do interior do castelo.

Alexander não ficou a ver o fim da serpente. Ouviu a voz de Shail, que o chamava, e esporeou o cavalo nessa direcção.

Alguém abatera o seu nimen, e Shail não se encontrava particularmente apto para desatar a correr. Tentou pôr-se de pé e, mal o conseguiu, ouviu um golpe e um grito atrás de si, seguidos do som surdo de um corpo a cair. Ao voltar-se, viu um dos soldados szish jazendo no chão, coberto de sangue, e o guerreiro bárbaro que o abatera de passagem e que se afastava a cavalgar a toda a velocidade. Não teve tempo de reagir, porque o bárbaro seguinte que passou a galope junto dele agarrou-o pelo braço e puxou-o para cima. Shail sentiu que o seu ombro se desencaixava e deu um grito de dor; mas no instante seguinte viu-se sobre a garupa do cavalo do bárbaro, a salvo.

- Estás bem? - indagou uma voz familiar perto dele. Voltou-se, sem deixar de se segurar à cintura do bárbaro, e viu que

ao seu lado cavalgava Allegra. Acenou com a cabeça, sorrindo, contente por voltar a vê-la.

Alexander chegou a galope vindo da frente. Assentiu ao ver que Shail estava a salvo e voltou a gritar:

- Para o bosque! Para o bosque!

De imediato, o que restava do grupo de invasores e o grosso do exército shur-ikaili penetraram na vegetação, atravessando o escudo pela brecha que as dríades guardiãs, que os esperavam na última fila de árvores, tinham aberto para eles.

- Já chega, Zeshak - disse Ashran. - Não o mates antes do tempo. O shek afrouxou o seu abraço letal. Jack não tinha forças para se mexer, mas de onde estava podia ver claramente Christian, preso entre os anéis da serpente. Estava convencido de que já lhe partira duas costelas. com esforço, Jack recordou que aquele era Zeshak, o rei dos sheks. Aquele que, segundo Sheziss, era o pai de Christian... ou do shek que habitava em Christian. Era estranho pensar que ele sabia, mas Christian não. Será que quereria saber? Teria interesse em estar ciente de que aquela serpente que o estava a maltratar era o seu "outro" pai? Fechou os olhos, esgotado.

- Já está - disse então o Necromante. - O unicórnio não tardará a chegar.

O shek voltou-se para ele e decerto perguntou-lhe algo, porque Ashran respondeu:

- Não, tenho tempo suficiente para o fazer entretanto. Segura tu no dragão - acrescentou, erguendo Jack pelo colarinho da camisa como se fosse um boneco.

Zeshak virou a cabeça para ele, mostrando-lhe as presas, com um silvo ameaçador.

- Controla o teu ódio, Zeshak - ordenou Ashran com frieza. O dragão não pode morrer... ainda.

Empurrou Jack contra o shek, que o agarrou facilmente com uma prega da sua cauda. Jack arquejou, horrorizado, e procurou libertar-se, mas não tinha forças. Sentia-se um boneco de borracha à mercê da enorme serpente. Era como se os seus mais terríveis pesadelos se tivessem tornado realidade.

O dragão estava acorrentado no seu interior; Jack sentia-o rugir e lutar para se libertar, em vão. As únicas coisas com que podia contar naquele momento eram a sua alma e o seu corpo humanos, um corpo fraco e uma alma que estremecia de horror diante do poder do rei das serpentes. Sentiu os anéis letais de Zeshak aprisionarem o seu corpo.

- Não o mates - recordou-lhe Ashran, sombrio. - Ainda precisamos dele.

Depois, virou-lhes as costas e saiu para o terraço. A sua imponente figura foi banhada pela luz resplandecente das três luas. Quando ergueu os braços para o Triplo Plenilúnio e todo o seu corpo começou a irradiar um estranho brilho sobrenatural, Jack entendeu de imediato o que estava a acontecer.

Tencionava utilizar o poder das luas para destruir a cúpula feérica que protegia o bosque de Awa e a Fortaleza de Nurgon. Quando isso acontecesse, os rebeldes, com Alexander à cabeça, ficariam à mercê das tropas dos sheks.

Jack fechou os olhos, amaldiçoando-se em silêncio por ter acreditado na profecia. Estava mais do que visto que tudo aquilo não servira para nada. Ashran continuava a ser demasiado poderoso para ele o enfrentar... e agora Victoria também cairia nas suas mãos.

Debateu-se, furioso. As escamas de Zeshak cravaram-se dolorosamente na sua pele, mas não se importou.

- Christian! - chamou com voz rouca. - Acorda! Temos de fazer alguma coisa!

Não conseguiu continuar a falar, porque o rei dos sheks apertou ainda mais o seu abraço, fazendo com que Jack deixasse escapar um grito de dor.

Então chegou-lhe por fim, muito fraca, a mensagem telepática de Christian:

- Não há nada que possamos fazer. Victoria já sabe o que está a acontecer e vem a caminho. Traz Shiskatchegg.

Jack moveu a cabeça o suficiente para observar Christian, que se deixara cair, derrotado; o cabelo castanho-claro cobria-lhe os olhos, mas Jack não se lembrava de alguma vez o ter visto tão desmoralizado e abatido.

- Se vier - pensou - irá cair directamente nas garras de Ashran. Ele está à espera dela.

- Ela sabe - replicou Christian. - Mas achas que isso é um impedimento para ela?

- É uma loucura... tudo isto é uma loucura...

Sentiu que Christian o olhava de soslaio, por debaixo do cabelo que lhe caía sobre a cara. Os seus olhos azuis brilharam por instantes, com uma última centelha de raiva.

- Não devíamos ter partido sem ela. Se tivéssemos lutado os três juntos, talvez...

- Talvez o quê? - bradou Jack, com amargura. - Ter-nos-iam matado aos três de uma vez! Que sentido tem tudo isto, ha? Sem Victoria...

Não conseguiu terminar a frase, porque algo se introduziu na sua mente, algo doloroso que atravessou o seu cérebro como milhões de agulhas de gelo. Jack gritou e, quando a dor cessou, tombou sobre o corpo de Zeshak. Tinha perdido os sentidos. Christian olhou para ele, mudo.

- Podias ter matado o dragão, aberração - sussurrou Zeshak na sua mente. - Tiveste tantas oportunidades, no entanto, poupaste-lhe a vida, uma e outra vez. Por acaso não sentes o ódio?

- Também tu podias matar o dragão agora - replicou Christian. Contudo, mantém-lo com vida, apesar de desejares esmagá-lo com toda a tua alma. Mas Ashran ordenou-te que o mantenhas vivo e é o que estás a fazer. Obedeces à ordem de um humano. Eu, em contrapartida, escutei o pedido de um unicórnio.

Zeshak semicerrou os olhos. Não respondeu de imediato, mas, quando o fez, a sua voz telepática ecoou na mente de Christian mesclada de tristeza e resignação.

- Não sabes nada, Kirtash. Nada. Não fales de coisas que não entendes.

Christian não ripostou. Noutras circunstâncias, talvez tivesse procurado interpretar o significado daquelas palavras, mas naquele momento sen tia-se demasiado exausto e desanimado. Ao fim de pouco tempo, Zeshak tornou a falar na sua mente, com suavidade:

- Nem mesmo os unicórnios conseguiram eliminar o ódio que corria pelas nossas veias, esse ódio que devia ser em ti mais intenso do que qualquer tipo de amor. Diz-me, que tipo de shek és tu?

- Também eu gostava de saber - murmurou Christian, erguendo a cabeça para o olhar directamente nos olhos.

"Viajar com a luz", pensou Victoria.

Nunca o fizera àquela distância e também não tinha a certeza se a luz das luas bastaria para o que ela pretendia. Mas as luas estavam cheias, iluminando o mundo quase como se fosse dia, e o Báculo de Ayshel continuava a transmitir-lhe um fornecimento suplementar de energia que a percorria interiormente como uma torrente de águas transbordantes. Voltou a recordar o sorriso de Jack, o olhar de Christian, e decidiu arriscar, porque não lhe restava outra alternativa. Tinha de chegar até eles o mais rápido possível... e só a luz se movimentava tão depressa quanto os feitiços de teletransporte dos feiticeiros.

Usou todo o seu poder de unicórnio e, simplesmente, deslocou-se...

A Torre de Drackwen apareceu subitamente perante elas. Sheziss deixou escapar um sibilo de surpresa. Victoria respirou fundo. Tinha resultado e, ainda para mais, arrastara Sheziss com ela. Ainda lhe custava a crer.

Só havia dois sheks a guardar a torre, e Victoria perguntou-se porquê. Não sabia que, naquele preciso momento, a maior parte das serpentes aladas de Idhún sobrevoava os céus de Nurgon, aguardando o instante em que o escudo feérico caísse e a Resistência ficasse à sua mercê.

Sentiu o corpo de Sheziss ficar tenso.

- Vão deixar-nos entrar - murmurou. - Ashran está à minha espera.

- De ti, sim - respondeu a shek. - Mas não de mim. Victoria compreendeu.

- Deixa-me o mais perto que puderes e depois vai-te embora. Sheziss girou bruscamente e planou em direcção à torre. Passou como uma flecha entre os dois sheks que, suspensos no ar, as observavam com receio. Deixaram-nas passar: decerto já sabiam que a rapariga que estava a chegar à torre com tanta pressa, montada no dorso de uma shek renegada, era o unicórnio que Ashran aguardava. Mas Victoria apercebeu-se dos olhares de ódio que dirigiram a Sheziss e previu que, mal ela desmontasse, a sua companheira estaria em perigo.

- Sheziss, não te aproximes tanto...

- Tem calma, rapariga-unicórnio. São só dois jovenrinhos. Eu posso com eles.

- E o que vais fazer depois?

Os olhos de Sheziss brilharam malevolamente à luz das luas.

- Já que estou tão perto - disse -, pode até ser que leve a cabo a minha vingança.

- Há algo que tens de saber a respeito de Ashran, Sheziss - disse então Victoria, com suavidade. - Não deves enfrentá-lo. Não podes vencê-lo.

Sheziss leu a verdade na mente de Victoria e ficou muda, surpreendida, procurando digerir aquela informação.

Mas o seu destino estava já muito perto, pelo que tinham de tomar uma decisão.

- Christian e Jack estão aqui - acrescentou Victoria, e o coração bateu-lhe um pouco mais depressa. - Deixa-me onde puderes, Sheziss. Saberei como chegar até eles.

Sobrevoaram o miradouro, mas a shek não procurou pousar lá. Uma estranha luz sobrenatural cobria o lugar; das três luas parecia descer uma espécie de triplo raio luminoso que confluía numa figura imponente e solitária, de pé junto ao que restava da balaustrada. Victoria percebeu que Sheziss hesitava, talvez porque percebera que aquela luz era energia pura que as desintegraria se se atrevessem a tocar-lhe ou talvez devido ao que ela lhe transmitira acerca do Necromante.

- O que estará a fazer? - perguntou-se Victoria.

Sheziss sabia, mas não respondeu. Bateu as asas com mais força e impulsionou-se para cima, à procura de um lugar onde deixar Victoria. A jovem reparou que os dois sheks as seguiam.

Sheziss deteve-se junto de uma pequena sacada e rodou o seu longo corpo ondulante para deixar Victoria perto da varanda. A rapariga apressou-se a descer de um salto e olhou para a shek, inquieta.

- Não te preocupes comigo - disse a serpente. - Preocupa-te antes contigo. Se te trouxe até aqui e Ashran queria que viesses até ele, talvez eu seja também mais uma peça neste jogo de guerra. Os seus planos estão em marcha... e dizem respeito a ti, não a mim. Vai e faz o que tiveres de fazer.

Victoria assentiu. Olhou novamente para a shek.

- Obrigada por tudo, Sheziss - murmurou.

- O teu dragão disse-me a mesma coisa há algum tempo. Mas não fiz nada por vocês. Ajo por mim mesma... para vingar os meus filhos.

Então, com um grito de fúria, voltou-se para os dois sheks, que se abatiam sobre ela de mandíbulas abertas e presas a destilar veneno.

Victoria não ficou a ver a batalha. Algures naquela torre, Jack e Christian encontravam-se prisioneiros, estavam a sofrer, e a jovem sofria com eles. Deu meia-volta e, com o báculo a palpitar sinistramente, entrou na Torre de Drackwen, procurando Ashran, o Necromante, e os dois rapazes que amava.

Alexander atravessou a galope a clareira que separava a Fortaleza do bosque que a rodeava. Parou junto ao cadáver do shek que os seus companheiros do castelo acabavam de abater.

Denyal e o Arquifeiticeiro estavam à sua espera.

- Enlouqueceste? - gritou-lhe Denyal. - O que pretendias com essa acção suicida?

- Fica sabendo que não era suicidar-me - replicou Alexander com frieza. - Lamento não te ter dado essa satisfação, porque, como vês, regressei vivo... e com reforços.

Denyal dirigiu um olhar ao exército shur-ikaili que se amontoava na clareira.

- Quantos foram contigo?

- Trinta e quatro voluntários.

- É que entre toda esta gente só conto quinze dos nossos, príncipe Alsan - replicou Denyal, contendo a raiva; pela primeira vez desde que se conheciam, pronunciara a palavra "príncipe" com um tom de desprezo. - Deixaste dezanove pelo caminho.

- Eu sei contar - foi a resposta de Alexander. - Esses dezanove eram voluntários e foram combater porque assim o desejaram, Denyal. E não morreram em vão. A minha acção suicida, como tu lhe chamas, tinha por objectivo abrir passagem aos nossos aliados, os Nove Clãs de Shur-Ikail. Perto de trezentos dos melhores guerreiros de Idhún.

Denyal olhou-o fixamente, sem dizer nada. Alexander susteve o seu olhar.

Naquele instante, chegaram dois cavaleiros a trote. O Arquifeiticeiro franziu ligeiramente o sobrolho ao reconhecer Allegra.

- Aile - disse, todavia. - Chegas mesmo a tempo.

Desviou a sua atenção para o outro cavaleiro. Tratava-se de Hor-Dulkar, o Senhor dos Nove Clãs.

Alexander fez as apresentações. Deixou os quatro a pôr as novidades em dia e, ainda sem desmontar, entrou a passo no pátio da Fortaleza.

Tal como previra, Kestra e Kimara encontravam-se ali junto de Fagnor, que jazia no chão. Do dragão dourado não havia nem sinal, o que não era de estranhar. Como poucos sabiam que aquele Yandrak era falso, os construtores de dragões mantinham-no oculto num recanto do bosque, não longe da Fortaleza, onde Kimara o fizera aterrar.

Tanawe, Rown e outros dois operários estavam a reparar Fagnor. Tanawe resmungava em voz baixa, mal-humorada, enquanto procurava encaixar de novo uma das asas do dragão artificial.

Alexander foi ter com as raparigas.

- Mostraram os dragões antes do tempo! - recriminou-as, com ferocidade. - Em que é que estavam a pensar? O que pretendiam com isso?

Kestra cravou nele um olhar inflamado.

- Salvar-te a pele, príncipe de Vanissar. Se não fosse por nós, por esta altura serias uma papa de carne e veneno de shek.

- Pediste voluntários, não foi? - ripostou Kimara, sombria. - Nós somos voluntárias. Eu, pelo menos, já estou farta de estar aqui fechada, quando há ali fora tantas serpentes para matar.

Alexander olhou para ela um pouco surpreendido. Sabia que Kimara tinha um espírito indomável, mas sempre a sentira deslocada na Fortaleza, a estudar magia, entregue a si mesma. Além disso, a morte de Jack afectara-a muito. Pelo visto, já tinha ultrapassado a situação, porque nos seus olhos avermelhados pulsava agora uma nova emoção, um ódio profundo que se reavivava sempre que via uma serpente alada atravessar os céus de Nurgon.

Abanou a cabeça, preocupado.

- Temos poucos dragões - replicou, com mais suavidade. - Tanawe deve ter-vos dito o mesmo que eu. Os dragões são muito valiosos. Não podem pô-los em perigo sem mais nem menos. O inimigo...

- Não me fales do inimigo, animal imundo! - explodiu de repente Kestra. - Tu és o inimigo!

És um deles! Vais voltar-te contra nós mesmo que não queiras, sim, porque

eu vi o que as criaturas como tu são capazes de fazer. Olha para as luas e jura-me pelo que te é mais sagrado que não sentes nada quando as vês!

A sua voz ficou sufocada num soluço. Alexander não foi capaz de responder. Não pela súbita explosão de Kestra, mas porque erguera a cabeça para contemplar as luas e vira algo aterrador.

Seguindo a direcção do seu olhar, todos os presentes levantaram a cabeça.

E ficaram sem fôlego.

Os sheks tinham voltado a formar um enorme círculo sobre eles e sobrevoavam-nos como abutres. Os seus corpos coleantes, sinuosos, emitiam um suave brilho gélido.

Mas não foi isso o que mais preocupou os rebeldes.

É que, no centro do círculo de sheks, as três luas cintilavam na noite e uma estranha espiral de trevas girava em cada uma delas.

- Que diabo...? - começou Alexander, mas não conseguiu continuar.

Shail chegou ofegante, apoiando-se na muleta.

- Estás a ver aquilo? - perguntou, prementemente, indicando o céu. - Temos de o impedir!

- Porquê?

- O escudo, Alexander, o escudo!

Os dois amigos entreolharam-se. Então Alexander deu meia-volta bruscamente e vociferou:

- Às armas! Às armas! Arqueiros, arpoeiros e besteiros, às ameias! Preparem as catapultas! Todos à Fortaleza!

Continuou a gritar instruções e depressa Nurgon fervilhava de actividade. Mas Shail não podia deixar de olhar para o céu. Sentia que a luz emitida pelas luas deixara de ser suave e bela para se converter em algo frio e negro.

Em todo o bosque, as flores lelebin estremeceram e começaram a fenecer.

Primeiro enrugaram-se as pontas das pétalas, depois os estames murcharam e desfizeram-se, cobertos por uma estranha geada. Algumas flores fecharam-se sobre si mesmas, mas era demasiado tarde.

À medida que as luas continuavam a lançar sobre o bosque aquela espiral de trevas, as lelebin secavam, umas a seguir às outras, e morriam.

O escudo começou a falhar em diferentes pontos do bosque. E, quando a última flor lelebin caiu sobre o seu caule, as serpentes atacaram.

Ashran baixou os braços e riu baixinho.

- A cúpula feérica já não protege o bosque de Awa - anunciou, entrando de novo na sala; o seu corpo ainda libertava um suave halo luminoso. - Nurgon não tardará

a cair sob o poder dos sheks.

Zeshak semicerrou os olhos.

-Já não era sem tempo - comentou, e todos puderam captar aquele pensamento.

Jack fechou os olhos, ainda atordoado. Conseguia imaginar Shail, Alexander e os outros a lutar inutilmente contra o exército de Ashran, o bosque de Awa incendiado, os rebeldes a fugir para salvar a vida... mas já não havia nenhum lugar onde pudessem refugiar-se. Seria um massacre.

"Fracassámos", pensou Jack, aturdido. "E de que maneira."

- Tenho outra boa notícia - disse Ashran. - O unicórnio já cá está.

Não tinha acabado de falar quando a porta se estilhaçou em pedaços, com violência. Jack tentou levantar a cabeça, mas não foi capaz, porque a mão de Ashran voltara a segurá-lo ferreamente pela nuca. Zeshak soltou-o de repente e Jack pôde por fim respirar... mas o alívio não durou muito. Ashran puxou-o como se fosse uma marioneta e o rapaz não encontrou forças para se rebelar. Em contrapartida, acabara de entrar alguém na sala, uma figura que se movia com segurança e energia e que parecia muito, muito zangada. Jack tinha a vista toldada, mas, apesar de tudo, reconheceu Victoria. Tê-la-ia reconhecido em qualquer parte.

Perguntou-se, confuso, como diabo chegara ela ali em tão pouco tempo. Teria arranjado maneira de abrir o Portal entre as torres, aquele portal que, segundo Christian, estava fechado?

A rapariga parara a escassos metros de Ashran e Zeshak, mas ainda parecia ameaçadora, com a extremidade do báculo a palpitar como uma pequena supernova. Contudo, por muito furiosa que estivesse, vira de imediato que Christian estava à mercê de Zeshak, que podia esmagá-lo a qualquer momento; e que Jack tremia aos pés de Ashran, cujos dedos ainda rodeavam o seu pescoço. Um movimento em falso e tudo acabaria para qualquer um dos dois... ou para ambos.

- Voltamos a encontrar-nos - disse Ashran com suavidade. - Pela terceira vez em pouco tempo, minha admirável jovem. Não importa o que te faça, não importa que te sugue até à última gota de energia ou que tire a vida ao teu dragão, tu voltas sempre, uma e outra vez, para combater... como agora, não é?

Victoria ergueu o báculo e lançou-se contra ele, soltando um grito, com a morte a brilhar nos seus grandes olhos negros. Mas estacou. A ponta do báculo lançou um último brilho, como um breve batimento, e depois esmoreceu.

Ashran arrastara Jack até o colocar à sua frente. A sua mão fechara-se em volta da nuca do rapaz e puxava-a para trás, obrigando-o a levantar a cabeça e a olhar Victoria nos olhos.

- De que... estás à espera? - arquejou Jack.

Mas ela permaneceu imóvel, como que petrificada, observando-o fixamente.

- Um dilema interessante - sorriu Ashran. - Vais atacar-me, Victoria? Leio o ódio e a fúria no teu olhar. És mais poderosa do que nunca e eu tenho nas minhas mãos dois seres que são de suma importância para ti. Odeias-me com todo o teu ser e, embora uma parte de ti me tema, não a estás a ouvir agora. Se me atacasses neste preciso momento, com toda a tua raiva e desespero, com esse báculo transbordante de magia, podias magoar-me. Mas... vais condenar o dragão?

Victoria não respondeu. Continuava a fitar Jack com o rosto impenetrável. Contudo, o brilho do seu olhar denunciava a angústia que sentia.

- Vamos... Victoria - conseguiu Jack dizer. - Ataca-o...

A última palavra que pronunciou terminou num grito de agonia. Ashran tinha cravado os dedos na sua carne, transmitindo-lhe uma magia brutal que, uma vez mais, pareceu queimá-lo por dentro.

- Não me lembro de ter pedido a tua opinião - disse o Necromante com indiferença.

Puxou-o e levantou-o como se fosse uma pena. As palavras saíram dos lábios de Victoria sem que ela conseguisse impedi-las:

- Não lhe faças mal.

Ashran voltou-se para olhar para ela.

- Se tentares alguma coisa, matarei o teu dragão antes que consigas tocar-me. E, se porventura o fizeres... Zeshak esmagará Kirtash como um insecto antes que tenhas tempo de reagir.

Victoria voltou-se lentamente para a enorme serpente, que ainda aprisionava Christian entre os seus anéis. Como que respondendo a uma ordem silenciosa, Zeshak comprimiu Christian um pouco mais. O jovem cerrou os dentes, esforçando-se por não gritar de dor. Mas Victoria viu a sua expressão crispada, o sofrimento que brilhava nos seus olhos de gelo.

- Não lhe faças mal - disse; era um pedido, mas também uma ameaça.

Fechou os olhos por um instante e respirou fundo.

- O que queres que faça? Se me render e te der o báculo vais matá-los na mesma, não é?

- Talvez sim ou talvez não. Os Seis protegem-vos, Victoria, e isso, embora vocês não saibam, torna-vos três elementos muito difíceis de matar. Podia acabar com a vida deste dragão e deste shek com toda a facilidade. Mas... como é que tu reagirias? Não descansarias até me matares e acabarias por o conseguir. Não, Victoria. Aprendi que, se de facto os três têm poder para me vencer, a chave para a vossa destruição está apenas em vocês mesmos. No início, pensei que o vosso ponto fraco era o ódio que os dois rapazes sentiam um pelo outro. E aproveitei-me disso... mas, quando o dragão regressou, percebi que havia entre vocês algo ainda mais poderoso do que o ódio... E esse ponto forte era também o vosso ponto fraco.

" Sabes para que vieste aqui esta noite, Victoria? Vieste para tomar uma decisão. Vieste para escolher.

 

                                   A ESCOLHA DE VICTORIA

Quando os sheks atacaram a Fortaleza, os rebeldes estavam à sua espera. Nas ameias, sobre as muralhas e torres, os arpoeiros, arqueiros e besteiros receberam os atacantes com uma chuva de dardos de fogo. No pátio alinhavam-se os artefactos de guerra concebidos por Rown, Tanawe e Qaydar. Haviam disposto as catapultas de frente para os muros e iriam dispará-las mal a infantaria invadisse a clareira. Tratava-se das catapultas melhoradas de Qaydar, que disparavam projécteis de energia mágica, contudo, não serviam para os sheks. Por isso tinham fabricado um novo tipo de máquina de guerra que lançava os projécteis para cima. Obviamente, era necessária a intervenção da magia para que não lhes caíssem em cima a seguir. Tinham-nas experimentado várias vezes e funcionavam: as máquinas, a que Rown chamava lançadoras, disparavam para os céus projécteis inflamáveis; logo depois, um feiticeiro lançava a sua magia contra eles e fazia-os rebentar no céu. Nunca se vira nada parecido em Idhún, por isso as lançadoras apanharam os sheks de surpresa.

Além das lançadoras, os rebeldes dispunham também de outro tipo de artefactos semelhantes, os lança-redes, que disparavam para o céu enormes redes fabricadas com fios pegajosos fornecidos pelas fadas do bosque de Awa.

E, claro, havia os dragões.

Além de Fagnor e do dragão dourado, os rebeldes contavam com mais nove dragões. Todos eles eram Cuspidores de Fogo, dado que Qaydar encontrara por fim a forma de os tornar imunes às chamas, e todos eles eram pilotados. Muitos dos pilotos tinham aprendido há pouco tempo a manejar um dragão. Kimara era a aquisição mais recente; inicialmente Tanawe negara-se a deixá-la pilotar qualquer um e muito menos o dragão dourado.

- És uma feiticeira, Kimara - dissera-lhe. - A tua vida é demasiado valiosa para que a arrisques a bordo de um dragão.

- Sou apenas uma aprendiza - protestara ela. - Aqui não sirvo para nada, pois ainda não sei usar o meu poder para lutar contra os sheks. Mas Kestra ensinou-me a pilotar dragões.

- Pelo amor de Irial, se só pilotas há três dias - impacientara-se Tanawe -, como pretendes que acredite que estás preparada e ainda por cima para levar o dragão dourado?

Kimara não discutira. No entanto, no dia anterior à batalha, durante o julgamento de Alexander, arranjara maneira de chegar até ao dragão dourado e de o elevar no ar com o objectivo de que todos pudessem ver que Yandrak tinha regressado.

com isso salvara a vida de Alexander. Kimara não conhecia o jovem príncipe o suficiente para gostar dele, mas sabia que tinha sido um grande amigo de Jack e isso bastava-lhe. Obviamente, recebera de seguida uma boa reprimenda por parte dos líderes dos Novos Dragões, mas até mesmo eles tinham de reconhecer que a sua acção devolvera a esperança às gentes de Nurgon.

Depois, naquela mesma noite, Kimara voltara a levar o dragão. Tanawe não conseguia explicar como era possível que tivesse iludido a sua vigilância. Portanto, não tinha outro remédio a não ser render-se às evidências: aquele dragão era de Kimara, da mesma forma que o destino de Kestra parecia ligado a Fagnor. Assim, mesmo depois de se terem extinguido, os dragões continuavam a exercer uma influência misteriosa sobre os mortais e, de alguma maneira, continuavam a reger os seus destinos. Tanawe amava os dragões; observara-os durante horas sobre os céus de Awinor, quando era jovem, e sabia que não seria fácil fazê-los desaparecer da face de Idhún.

Desta forma, acabara por defender o pedido de Kimara para pilotar o dourado naquela batalha. Apesar de estar consciente de que, provavelmente, nem a jovem nem o dragão sobreviveriam àquela noite.

- Os dragões artificiais estão vazios por dentro - dissera a Denyal quando este se opôs à ideia. - Não têm espírito. No entanto, quando um piloto os faz voar, ele é o seu espírito, a sua alma. Sem o piloto, a magia do dragão não funcionaria. O seu corpo de dragão estaria morto.

" Kimara é o espírito de Yandrak, Denyal. Voou no dorso do verdadeiro Yandrak no deserto e uma parte da essência do último dragão continua com ela.

Denyal não discutira mais. Em matéria de dragões, a irmã tinha a última palavra.

Por isso, naquela noite, quando os sheks se abateram sobre Nurgon e os onze dragões se elevaram no ar, Kimara estava no comando de um deles. Muitos viraram-se para observar o magnífico dragão dourado que atravessava o céu e lançaram vivas em sua honra.

Subitamente, o firmamento sobre Nurgon converteu-se num inferno de fogo, no qual onze dragões manobravam entre o fumo, lançando a sua própria chama contra os sheks, aprisionando-os com as suas garras de madeira e metal e, sobretudo, procurando criar o caos nas suas mentes organizadas.

No pátio, Shail e Allegra olhavam para o céu. Cada um estava encarregado de uma lançadora. Yber, o gigante feiticeiro, também se encontrava com eles. Mas ele não precisava de nenhuma máquina. Atirava directamente os projécteis com a sua enorme manápula, fazendo-os chegar quase tão longe como os artefactos. Ele próprio se encarregava de lhes pegar fogo com a sua magia quando chegavam à altura certa.

- Onze - murmurou Shail. - Não vão conseguir nada contra tantos sheks. É um suicídio.

- Mas é a única coisa que temos, Shail - replicou Allegra, atirando a sua magia a um dos projécteis disparados pela lançadora; o objecto explodiu no céu, mesmo por debaixo da barriga de um shek, que silvou de dor. - De qualquer forma, há uma coisa que me preocupa, além da proporção de inimigos que nos atacam.

- De que se trata?

- Olha para os sheks. Observa-os com atenção. Não notas algo estranho neles?

Shail fitou-os por um momento e viu de imediato o que Allegra queria dizer. Aquele estranho brilho branco-azulado continuava a cintilar nas suas escamas. Fazia lembrar ao feiticeiro a suave luz gélida de Haiass.

- É gelo - adivinhou. - Vão usar o seu poder sobre o gelo de alguma maneira.

Allegra assentiu.

- O fogo que lhes estamos a arremessar impede-os de utilizar esse poder. Mas não tardarão a fazê-lo. É a única forma que têm de atacar o bosque.

Shail lançou magia a um projéctil disparado pela sua lançadora. Teve a satisfação de ver como perfurava a asa de um dos sheks.

- Tens razão - admitiu, franzindo o sobrolho. - Não tinha pensado nisso, mas não podem atacar o bosque com fogo.

É um elemento que odeiam e que não sabem controlar.

- O bosque é demasiado húmido para que as chamas possam provocar estragos - comentou Allegra a sorrir. - De modo que, mesmo que não tivessem problemas em usar o fogo, não lhes serviria para nada. Mas o gelo... ah, o gelo cobre a terra com uma camada de geada, apodrece as raízes e congela os ramos, mergulhando o bosque num Inverno involuntário. O gelo, sim, pode provocar estragos, Shail. É por isso que temos de combater com o fogo. E temos de ser nós, porque Harel não o fará. Nós, as fadas, tememos o fogo quase tanto como os sheks.

Harel não se encontrava ali. Correra à procura de Idan-ne mal as flores lelebin começaram a morrer. Agora dirigia a defesa do bosque, mas deixara claro que não queria nenhum humano fora da Fortaleza.

- Nós sabemos combater no bosque, mas não como vocês - dissera. - Só nos iriam atrapalhar. Limitem-se a defender o vosso castelo e deixem que nós tratamos do resto.

Contudo, não tinha sido tarefa fácil conter os trezentos bárbaros shur-ikaili entre os muros da Fortaleza. Um grande grupo deles decidira fazer outra incursão, por sua conta e risco, no acampamento inimigo. Os restantes encontravam-se ali, repartidos entre o pátio e as ameias do castelo, sem muito para fazer. Embora a maioria deles manejasse bem o arco, não possuíam a disciplina dos arqueiros treinados sob o comando de Denyal e Covan. Alguns disparavam flechas incendiárias das ameias, mas os outros continuavam ali, no pátio, fazendo ressoar as suas armas, esperando o momento em que as tropas inimigas alcançassem os muros do castelo.

Porque iriam fazê-lo, sem dúvida alguma. As dríades podiam muito bem guardar o bosque profundo, mas este começava para lá do rio. Em comparação, a floresta que rodeava Nurgon era jovem e não muito densa. Os feéricos conseguiriam reter os szish e os seus aliados durante algum tempo, mas, chegado o momento, a sua única alternativa seria voltar a atravessar o rio e retirar-se para o interior de Awa.

E, quando isso acontecesse, os rebeldes estariam sozinhos a defender a Fortaleza.

- Fogo contra gelo - murmurou Allegra, lançando um novo projéctil incendiário. - Isto não vai chegar, isto não vai chegar. São demasiados. Para acabar com todos eles, teria de incendiar o céu.

Shail não respondeu. Concentrou-se na luta que, acima deles, se tornava mais encarniçada.

Lá em cima, nas muralhas, Alexander saltava de ameia em ameia, possuído por uma alegria selvagem. Gritava ordens aos homens que aí estavam posicionados, num tom de voz cada vez mais profundo e gutural, a ponto de haver momentos em que se assemelhava a um grunhido. O conjuro do Arquifeiticeiro

começava a perder a força; o animal libertava-se lentamente dentro de si, mas, para sua sorte ou azar, toda a gente estava demasiado ocupada com os sheks para se aperceber disso.

As enormes serpentes aladas desciam a pique e procuravam alcançar os rebeldes situados nas ameias. Mas, sempre que desciam, eram recebidas por uma chuva de fogo que as obrigava a subir outra vez. Em simultâneo, a presença dos dragões artificiais confundia-as e impelia-as a procurá-los entre o fumo para os matar.

Nurgon lutava com todas as suas forças e os sheks estavam a ter problemas para chegar até eles; mas as serpentes eram numerosas e, em comparação, os rebeldes não eram suficientes. Os sheks não pareciam preocupados. Porque o estariam? Os rebeldes não tardariam a cansar-se e então a Fortaleza seria sua.

Quando Shail viu o primeiro dragão a precipitar-se, desfeito, sobre o bosque, perseguido por três sheks, perguntou-se quanto tempo mais poderiam resistir.

Não muito longe dali, nos limites do bosque de Awa, os homens - serpentes e os seus aliados procuravam carreiros abertos no meio do mato.

Tinham enviado os carros raheldanos à frente: enormes veículos blindados, propulsionados por uma engrenagem de pedais, correntes e rodas dentadas, que avançavam pesadamente, abrindo passagem entre a vegetação. Atrás deles marchavam os exércitos de Drackwen, Dingra e Vanissar, em perfeita formação. Atravessavam o bosque em cinco colunas, lideradas pelo rei Amrin, o rei Kevanion e três generais szish. Cada um deles caminhava atrás de um carro raheldano e tinha ao seu lado um feiticeiro. Os cinco caminhos que abriram a partir dos limites do bosque tinham como objectivo a Fortaleza. Se conseguissem tomar Nurgon e derrotar os rebeldes e os seus dragões artificiais, haveria menos um obstáculo entre eles e o reino dos feéricos.

No início, as dríades deixaram-nos passar. Ocultas entre o mato, sobre os ramos das árvores, espiavam-nos atentamente, com os seus enormes olhos negros a brilhar de ódio e cólera.

Os soldados avançavam resolutamente, mas não podiam evitar sentir-se inquietos. Percebiam que eram observados por dezenas de olhos das sombras do bosque, sombras que nem mesmo o brilho das luas conseguia dissipar. Os humanos olhavam para todos os lados, receosos e em guarda. Em contrapartida, os szish sabiam onde se escondiam as fadas. Embora a pele feérica, nuns casos esverdeada, noutros sarapintada, noutros com a textura da casca das árvores, as fizesse parecer invisíveis no seu elemento, os homens-serpentes pressentiam o calor libertado pelos seus corpos de sangue quente. No entanto, avançavam em silêncio, com as armas a postos, registando na sua memória os lugares onde os feéricos os espreitavam.

Quando a retaguarda das cinco colunas se embrenhou no bosque, as fadas atacaram.

Caíram sobre os seus inimigos todas ao mesmo tempo, e por instantes estes tiveram a sensação de que todo o bosque se precipitava sobre eles. As dríades atiraram-se aos soldados, com as lanças de madeira maciça em riste, protegidas pelas suas armaduras de folhas secas e cascas, tão resistentes como o próprio metal, com os seus pequenos rostos pardacentos contraídos numa expressão feroz e com os pés descalços correndo tão velozes como a brisa entre as ervas, lançando gritos de guerra que soavam como o chamamento de uma ave nocturna. Os silfos atacaram das árvores, fazendo vibrar as suas asas, disparando dardos que lançavam com arcos, bestas e zarabatanas sobre os seus inimigos. Diminutas fadas e duendes, mais pequenos que a palma da mão, saíram do mato, voando no dorso de insectos de asas parecidas com as das libélulas, e lançaram sobre os seus inimigos projécteis de sementes e pequenos frutos, redondos e duros como pedras do rio. À primeira vista, aquelas sementes pareciam inofensivas; mas colavam-se pelo interior das armaduras e tocavam a pele de alguns soldados que depressa verificaram, com horror, as suas propriedades irritantes. Um não conseguiu suportar a terrível comichão e tentou tirar a armadura para se coçar, distracção que pagou com a vida.

Os invasores, por sua vez, reagiram depressa. Armaram as bestas e dispararam contra tudo o que se mexia na vegetação, o que não era pouco. Também dos carros blindados se lançaram flechas que abateram um sem-número de feéricos. Os feiticeiros utilizaram a sua magia.

De repente, o bosque converteu-se num estranho campo de batalha de madeira e metal, de carne e escamas, de sangue e seiva.

Victoria ergueu os olhos para Ashran. Não transparecia qualquer emoção no seu rosto, mas as suas pupilas eram uma espiral de trevas.

- Podia matar-vos aos três - prosseguiu o Necromante.

- E o que te impede? - murmurou ela com suavidade. - Já sabes que não somos adversários à tua altura. Nem sequer lutando os três juntos conseguiríamos derrotar-te.

Ashran sorriu. Não foi um sorriso agradável.

- Vocês não estão aqui para me derrotar a mim. Mas há uma parte de mim que pode ser derrotada e era essa a vossa missão. Então, porque é que corri o risco de vos enfrentar? Porque é que me dei ao trabalho de esperar que chegasses aqui? Sabes, Victoria?

- Porque há algo que podes ganhar - sussurrou ela. - E é algo tão valioso que não te importas de correr o risco.

Ashran sorriu de novo.

- Também tu podes ganhar algo. Podes ganhar um dos dois. É este o acordo: escolhe um deles, o dragão ou o shek, e pouparei a vida a esse. Deixar-vos-ei partir, a ambos, para a Terra se assim quiserem, e fecharei a Porta atrás de vocês... para sempre. Se quiserem esquecer tudo, fá-lo-ão. Os sheks irão ocupar-se disso. Pensa nisso, Victoria. Paz, serenidade, uma vida longa e feliz ao lado do teu amado, do eleito do teu coração... e não terás de lutar nunca mais. Escaparás por fim deste pesadelo.

Jack franziu o sobrolho. Teria ouvido bem? Não era possível que Ashran estivesse a sugerir uma coisa daquelas a Victoria. Bastava-lhe matá-los a todos para acabar com a ameaça da profecia. O que é que propunha agora? Olhou de soslaio para Christian e viu que o rosto dele estava muito mais sombrio do que o habitual. A conduta de Ashran era inexplicável, absurda, mas Christian parecia pressentir que tinha razões para fazer o que fazia... e procurava decifrá-las.

- Se escolher um... - dizia então Victoria, a meia-voz -, o que acontecerá ao outro?

- Será logo executado, minha pequena unicórnio. A minha generosidade tem limites, como deves compreender. Assim, serás tu a decidir quem queres que viva e quem tem de morrer. Espero que percebas que não vos posso deixar aos três com vida.

Jack ficou sem fôlego, enquanto ouvia, horrorizado, cada palavra de Ashran. Não o preocupou tanto a possibilidade de morrer como o facto de o Necromante deixar aquela decisão nas mãos de Victoria. "Como se pode ser tão impiedoso?", perguntou-se.

Virou-se, furioso.

- Victoria, não o ouças! Está a tentar enganar-te! Não...!

A sua última frase terminou num grito de agonia. Caiu outra vez de joelhos perante Ashran, preso na sua magia negra. Victoria estremeceu imperceptivelmente.

com a mão que tinha livre, Ashran fez um gesto que pareceu à rapariga vagamente familiar. Então, abriu-se no ar uma enorme brecha brilhante que deixava entrever um suave céu estrelado.

- Sabes o que é isto? - perguntou Ashran.

- Limbhad - sussurrou ela com voz saudosa.

- Limbhad - assentiu Ashran. - Um lugar onde não me é permitido entrar... mas a ti sim. Escolhe um dos dois, Yandrak, Kirtash... tanto faz. Poderás levá-lo por esta Porta de volta a casa. Poderás usar o teu poder para o curar, poderás esquecer tudo o que sofreste aqui. A Porta fechar-se-á atrás de vocês para sempre, e nunca mais voltarão. Terás de deixar o outro para trás, mas... por acaso o que te ofereço não é preferível ao que tens agora? Não será o melhor para todos? Dou-te a oportunidade de ser feliz e, finalmente, ver-me-ei livre da possibilidade de essa profecia inconveniente se cumprir...

Victoria voltou-se novamente para Ashran.

- O que acontece se não escolher? - indagou.

- Morrerão os dois.

Victoria estremeceu. Apesar de parecer serena, todos podiam adivinhar a dor e a angústia que a devoravam por dentro.

- Como sei que não me vais enganar?

- Porque a Porta está aberta diante de ti, Victoria. Sabes que é real, sabes o que há do outro lado. Não é uma armadilha.

E porque tens o báculo nas mãos. Podia obrigar-te a depor as armas. A uma palavra minha, Zeshak torturaria Kirtash até à morte. Um só gesto meu e o mesmo aconteceria

a Yandrak. Se o fizesse, entregar-me-ias o báculo sem hesitar, não é? Mas não, continuas aí, armada à minha frente. Não é isso uma prova da minha boa-fé?

Victoria franziu o sobrolho. Também ela suspeitava que Ashran estava a tramar alguma coisa.

- Escolhe, Victoria. E apressa-te, porque a minha paciência também tem limites.

Fez-se um longo silêncio, carregado de tensão.

- Não podes pedir-me que condene à morte um dos dois - sussurrou ela por fim.

- vou tentar ajudar-te. Compreendo que deve ser difícil para ti. Victoria não respondeu nem se mexeu. Aguardou que Ashran continuasse a falar.

- Podes escolher Yandrak - disse. A rapariga olhou para Jack com os olhos carregados de tanto amor e ternura que o rapaz deixou escapar um pequeno suspiro. - Partilham um mesmo destino, passaram por coisas semelhantes, atravessaram juntos a Porta para a Terra. Estavam destinados um ao outro desde que nasceram. Ele é a pessoa em quem mais confias, o companheiro da tua vida; é nobre, leal e destemido, e o seu coração pertence-te por completo. Regressou do mundo dos mortos só para estar contigo, para te salvar a vida. É o último dos dragões, uma criatura extraordinária. Sabes que serás feliz ao seu lado, sabes que pode ser o pai dos teus filhos, sabes que não te abandonará.

" Isso significa condenar Kirtash, mas também já estiveste prestes a matá-lo uma vez. Sabes o que é odiá-lo e, no fim de contas, não é mais do que uma serpente que te fez muito mal, que não pode garantir-te felicidade nem estabilidade, que te traiu diversas vezes e que poderia voltar a fazê-lo. Há muitos outros sheks no mundo e este não é o melhor de todos eles. Ninguém lamentará a sua morte. com o tempo, acabarás por esquecê-lo.

Jack escutava tudo isto sem poder acreditar no que estava a ouvir. Mas o rosto de Victoria permanecia impassível e Christian também não demonstrava importar-se com aquelas palavras. Dava a sensação de que se rendera ao inevitável, de que perdera toda a esperança. Victoria voltou-se para o fitar e aquele olhar foi como um grito silencioso que procurava atravessar o medo, o ódio e a ansiedade que toldavam os sentidos dos três jovens para chegar ao coração do shek e, com o seu hálito quente, devolver-lhe o brilho que os seus olhos de gelo tinham perdido.

- Em contrapartida - acrescentou Ashran, como se lhe tivesse lido o pensamento -, poderia ser Kirtash o eleito do teu coração. Kirtash, que deu tudo por ti, que lutou contra a sua gente, contra o seu instinto, contra o seu pai... por ti. Kirtash, cujo olhar te persegue em sonhos, cuja presença te faz sentir coisas que nunca antes havias experimentado... cuja sombra vai atrás de ti, onde quer que vás. Poderiam iniciar uma vida juntos na Terra, só os dois. Ou poderiam ficar aqui e herdar o meu império, ambos, como já te propus. Sabes que o seu coração e a sua lealdade te pertencem. Sabes o quanto vale e que, apesar de ser um híbrido, é também uma criatura extraordinária. Sabes que lutará e morrerá por ti. Depois de tudo o que sofreu por tua causa, serias capaz de lhe virar as costas?

" Isso implicaria matar o dragão, mas a verdade é que já conheces a experiência de o perder e que, na realidade, devia estar morto. Acreditaste uma vez que o tinhas perdido e sobreviveste a essa perda: podes fazê-lo outra vez. Além disso, esta criatura não te compreende. Por muito que se esforce, não consegue, nem conseguirá, aceitar a tua relação com Kirtash. Fez-te sentir culpada desde o primeiro instante em que descobriste os teus sentimentos pelos dois; fez-te sentir mesquinha e egoísta, logo ele que pretendia ter-te só para si, que pretendia que fosses sua e apenas sua, obrigando-te a renunciar a uma parte da tua alma. Por acaso isso é amor? Não terá sido o shek, o assassino, mais generoso contigo do que o dragão, o herói da profecia, o teu melhor amigo? E tu ama-lo de verdade ou é apenas carinho o que sentes por ele? Não vos terão feito acreditar que o destino vos obriga a estar juntos, sem que vocês tenham algo a dizer a esse respeito?

Victoria abanou a cabeça, confusa, e conseguiram perceber no seu rosto um vestígio do sofrimento que a corroía por dentro. Ergueu a cabeça para olhar para Jack. Contemplou-o brevemente, respirando com dificuldade aos pés de Ashran, o cabelo loiro revolto e húmido de suor, a testa larga e, sobretudo, aqueles olhos verdes que iluminavam o seu coração desde a primeira vez que se haviam cruzado com os seus. Victoria viu que o jovem estava ferido e extenuado, e reprimiu o impulso de correr para ele, abraçá-lo, embalá-lo nos seus braços e acalmar a sua dor. Cerrou os dentes e virou-se para Christian. Engoliu em seco ao vê-lo tão frágil, preso entre os anéis do corpo de serpente de Zeshak. Ele sentiu o seu olhar e endireitou a cabeça, apenas um pouco. Mas Victoria conseguiu ver nos seus olhos, que como de costume estavam parcialmente tapados pelo cabelo castanho-claro, aquele olhar que uma tarde, numa estação de metro, se cravara na sua alma como um punhal de gelo e que nunca mais poderia esquecer. Christian semicerrou os olhos e Victoria teve de fechar os seus porque não suportava vê-lo naquela situação. Voltou a abri-los logo de seguida, porque também não queria perdê-lo de vista nem por um segundo, não fosse Zeshak esmagá-lo sem que ela pudesse fazer alguma coisa. Os seus olhos encontraram-se novamente.

- DiZme alguma coisa, por favor - pediu ela. Mas a voz telepática de Christian permaneceu muda.

Victoria suspirou e voltou-se outra vez para Jack, depois novamente para Christian... e Jack quase conseguiu ouvir o suave estalido do seu coração a partir-se em mil pedaços. Estremeceu, não de medo nem de dor, mas sim de raiva.

- És... diabólico - disse, furioso. - Não consegues parar de a fazer sofrer? Porque é que lhe fazes isto?

Ashran dirigiu-lhe um olhar insondável.

- Porque é preciso, dragão. Mas o que é que te incomoda tanto? Por acaso não era isto que querias? Não desejavas que ela escolhesse um dos dois?

- Não desta maneira! - quase gritou Jack.

- E qual é a diferença?

Jack não soube responder. Continuava a tremer de raiva e de impotência, sentindo-se a cobaia de uma estranha experiência que não conseguia compreender, mas que era tão cruel e desumana que lhe provocava um horror indescritível. Tornou a olhar para Ashran e ficou surpreendido ao ver que ele não estava a sentir prazer com aquela situação, com a angústia de Victoria e a incerteza dos dois rapazes. Limitava-se a observar a rapariga com curiosidade, esperando a sua reacção, como uma criança que arranca as asas a uma mosca só para ver o que acontece.

A rapariga deixara-se cair no chão, demasiado fraca para se suster de pé, e enterrara a cabeça nas mãos, acometida por violentos calafrios. Jack teve então consciência, pela primeira vez, de que a sua própria vida estava nas mãos de Victoria. A sua e a de Christian.

Ficou sem fôlego. Mesmo que Ashran mantivesse a sua promessa de deixar Victoria e o seu eleito partirem, o que lhe propusera era demasiado atroz. De repente, sentiu-se atormentado pelo medo de que ela escolhesse Christian, de os ver partir para Limbhad, de ficar à mercê de Ashran e de Zeshak, que ansiava matá-lo desde que pusera os pés naquela sala. Mas repreendeu-se imediatamente a si mesmo por aqueles pensamentos. O shek também não merecia morrer, embora fosse um assassino; pelo menos não daquela maneira, condenado à morte pela mulher que amava e por quem dera tudo. Olhou-o de soslaio.

Christian continuava imóvel, com o semblante inexpressivo, como se nada daquilo fosse com ele. "E se já souber que Victoria não o vai escolher a ele?", perguntou-se Jack. "Conhece-a a esse ponto? Acha, então, que ela... me vai escolher a mim?" Interrogou-se se Ashran também o saberia. Ergueu a cabeça para o fitar e compreendeu, subitamente, que sim. O Necromante demonstrara conhecê-los muito bem... demasiado bem. Sabia qual era a relação entre os três e conhecia perfeitamente as dúvidas que havia no coração de Victoria, tendo-as expressado com muito mais clareza do que ela seria capaz de fazer. Devia saber, portanto...

- Pensa que não se trata de condenar um à morte - tentou ajudá-la Ashran, com suavidade. -Já estão os dois condenados. Estavam-no desde o preciso momento em que pisaram o umbral desta sala. Trata-se de salvar a vida de um deles. Pensa, Victoria, se pudesses escolher... quem salvarias?

"Quem é que Victoria ama realmente?", perguntou-se Jack. Ashran sabia-o? E Christian? E a própria Victoria? "Eu não sei", pensou o rapaz, abatido e confuso.

A jovem continuava encolhida sobre si mesma, a tremer. Jack sentiu-se culpado por todas as vezes em que lhe exigira que tomasse uma decisão. Bem, agora tinha de o fazer, mas, por algum motivo, Jack teria dado tudo para que ela não tivesse de escolher. E não se tratava do facto de a sua própria vida estar em perigo. Estivera disposto a morrer desde que tinham atravessado o Portal da Torre de Kazlunn. A questão era, simplesmente... que, fosse qual fosse o resultado, seria tremendamente injusto para um dos dois.

- Harel morreu! Harel morreu! As dríades foram derrotadas e estão a bater em retirada para o interior do bosque!

A notícia chegou pela boca de um silfo que conseguira, muito a custo, atravessar a clareira até às portas da Fortaleza. Covan recebeu a notícia da morte de Harel com resignado pesar, mas não perdeu tempo. Sabia que os szish não tardariam a chegar a Nurgon e a atacar as suas muralhas. A área de bosque que separava a Fortaleza do campo aberto era bastante reduzida e relativamente fácil de atravessar, em comparação com o denso bosque de Awa, De modo que enquanto lá em cima, nas muralhas, Alexander dirigia os arqueiros, o mestre-de-armas voltou a percorrer o pátio uma vez mais, assegurando-se de que todas as catapultas estavam onde deviam estar, de que havia besteiros a postos em todas as seteiras e de que o portão principal estava bem seguro. Tanawe ajudou-o nesta tarefa, reforçando os selos mágicos que os feiticeiros tinham aplicado na porta.

Entretanto, no céu, a batalha aumentava de intensidade. Já tinham caído três dragões. Dois deles despenharam-se algures no bosque e o outro fora literalmente feito em pedaços pelo abraço letal de uma serpente alada. Um quarto estava prestes a ter o mesmo fim. Tratava-se de um dragão negro de formas particularmente elegantes, que batia as asas desesperado entre os anéis de um shek, mesmo sobre o pátio da Fortaleza. Os rebeldes fizeram funcionar as lançadoras, disparando projécteis incendiários contra a serpente. Esta silvou, furiosa, e em resposta atirou o dragão contra os humanos que se encontravam no pátio e as suas incómodas máquinas.

Alguém deu o alarme e todos se apressaram a pôr-se a salvo. Yber agarrou em Shail e chegou junto à muralha com duas passadas, precisamente antes de o dragão se despenhar violentamente contra o chão, destruindo de caminho duas lançadoras e uma catapulta. Tanawe gemeu e Denyal praguejou alto e bom som. Correram em auxílio do piloto caído... mas era tarde demais.

Nesse exacto momento, ouviu-se uma voz vinda do cimo da muralha:

- Chegaram os szish!

Os instantes seguintes foram confusos. A uma ordem de Alexander, os arqueiros dispararam contra os atacantes. As catapultas, a postos há horas, arremessaram os seus projécteis por cima das muralhas; a magia dos feiticeiros guiou-os directamente para os carros raheldanos. Ao segundo lançamento, um deles irrompeu em chamas.

Nas ameias, Alexander cravou os olhos numa figura familiar. Reconheceu imediatamente o seu irmão Amrin, porque usava a armadura que tinha sido do seu pai, o rei Brun. O jovem deixou escapar um ligeiro grunhido. Nutria sentimentos contraditórios pelo irmão: por um lado, sentia-se traído, odiava-o por lhe ter virado as costas; por outro, sabia que provavelmente teria feito o mesmo no seu lugar.

- Alsan - disse então uma voz atrás de si.

Voltou-se e deparou-se com Qaydar, que se erguia junto às ameias, muito sério.

- Temos de fugir daqui - disse-lhe - ou morreremos todos. Alexander mostrou os dentes.

- Ainda podemos resistir um pouco mais - disse com os olhos a brilharem selvaticamente ao luar.

- Até quando? Sê realista: sem a cúpula feérica sobre nós, não há nada que possamos fazer.

Nesse instante, os muros da Fortaleza estremeceram violentamente: os feiticeiros szish estavam a tentar derrubar a porta principal. Alexander rangeu os dentes.

- Recuso-me a deixar Nurgon nas mãos das serpentes.

- Mas não temos escolha. Ouve-me, maldição! Perdemos o escudo e estamos sozinhos a lutar contra todas estas serpentes. Sozinhos! Percebeste? Todo o Idhún caiu já nas mãos de Ashran. com o dragão e o unicórnio tínhamos alguma hipótese, mas agora Yandrak está morto e Lunnaris vagueia sabe-se lá por onde. Perdemos, percebeste? Perdemos!

Alexander respondeu-lhe com um grunhido arrepiante e, completamente descontrolado, lançou-se sobre ele. Mas algo o fez parar e retroceder com um uivo de dor.

- Lembra-te de que sou um Arquifeiticeiro - disse Qaydar com frieza. - Não penses que te será fácil tocares-me, animal.

Alexander abanou a cabeça e procurou dominar-se. O Arquifeiticeiro dirigiu-lhe um último olhar severo.

- O que é mais importante para ti? O teu orgulho ou a vida de toda esta gente? Preferes perder os teus amigos a perder um castelo? Pensa nisso, príncipe. Mas pensa rápido, porque as serpentes estão prestes a fazer-nos em pedaços.

Alexander virou-lhe as costas, a tremer. Naquele momento, os arqueiros tornaram a disparar. Muitos soldados inimigos caíram abatidos pelas flechas, mas a maioria continuou a avançar. Tinham já lançado ganchos contra as ameias e subiam pelas cordas. No muro oeste, cujas ameias haviam desmoronado com um golpe de cauda de uma serpente, as forças inimigas trepavam por uma escada. Alexander voltou-se abruptamente e gritou à sua gente que corresse a defender aquele flanco... mas havia muitas baixas, eram poucos e os sheks voavam cada vez mais baixo.

Depois, baixou os olhos para o pátio. Viu os restos do dragão que acabava de cair bem como as catapultas destruídas, e avistou Shail e Allegra tentando fazer funcionar uma lançadora que se tinha encravado. Reparou na muleta de Shail, o que o fez recordar que o seu amigo perdera uma perna, que Jack perdera a vida e que ele próprio perdera parte de si enquanto ser humano. Então perguntou-se se valia a pena continuar a perder, apenas para salvaguardar a qualquer preço uma esperança que era já tão fraca quanto a chama de uma vela no meio de uma furiosa tempestade.

Ergueu o olhar para o céu e viu que só lhes restavam seis dragões. Procurou Fagnor e descobriu-o, mais alto do que os outros, a vomitar fogo impiedosamente contra os sheks. Um pouco mais abaixo voava o dragão dourado, pilotado por Kimara; tinha uma asa torcida e inclinava-se para a direita. Manobrava com muita dificuldade. Alexander compreendeu que, se o dragão continuasse naquele inferno repleto de serpentes, acabaria por ser destruído... assim como a semi-yan que tinha dentro. E percebeu que não seria capaz de ver aquele Yandrak morrer. Seria quase como se matassem Jack pela segunda vez.

Então tomou uma decisão.

Momentos mais tarde, os rebeldes abandonavam a Fortaleza por um túnel que os levaria directamente ao rio. Mal o atravessassem, poderiam refugiar-se nas profundezas do bosque e teriam mais possibilidades de sobreviver. As lançadoras continuaram a funcionar para os proteger na sua fuga, mas os que as disparavam não foram os últimos a partir. Quando os szish conseguiram derrubar a porta e alcançar as muralhas de Nurgon, depararam-se com um numeroso grupo de bárbaros que se negara a fugir com Alexander e os outros. Eram liderados por Hor-Dulkar, o Senhor dos Nove Clãs.

Muitos hesitaram ao ver o imponente bárbaro lançar-se sobre eles com o seu enorme machado de guerra em riste. O seu grito selvagem ecoou por toda a Fortaleza.

A última batalha de Nurgon foi brutal e sanguinária. Os bárbaros tombaram, abatidos pelos szish e seus aliados. Hor-Dulkar lutou até ao fim, derrubando um sem-número de inimigos. Antes de sucumbir, com o sangue repleto de veneno szish, teve a satisfação de acabar com a vida de um dos generais do exército de Drackwen e de enterrar o fio do seu machado na sua pele escamosa.

Por fim, a Fortaleza ficou nas mãos das serpentes.

Quando o fogo deixou de rebentar no céu, os sheks sibilaram, triunfantes, e bateram as asas em direcção ao imenso bosque que se abria perante eles, levando consigo o seu mortífero sopro de gelo.

Victoria ergueu a cabeça. Estava pálida e o seu semblante, puro e frio como o de uma deusa de mármore, não denunciava o que sentia. Os seus grandes olhos castanhos estavam nublados por uma espiral de escuridão que ocultava a luz da sua alma.

- Já tomei uma decisão - anunciou com voz neutra.

Ashran sorriu. Jack sentiu o coração apertado. "Não pode escolher", pensou. "Não pode condenar um de nós à morte. Nem sequer aquele maldito shek. Ela, não."

Mas tudo indicava que o fizera. Victoria levantou-se, resoluta, sacudiu a cabeça, lançando o cabelo para trás, e cravou em Ashran um olhar frio e altivo.

- bom - disse o Necromante.

Jack quis chamar Victoria, quis pronunciar o seu nome, mas a voz não lhe saiu.

- Tomei uma decisão - repetiu ela, com delicadeza. - Sei quem vou salvar. Mas, antes de se executar a sentença... gostaria de me despedir.

O sorriso de Ashran rasgou-se.

- Está bem. Mas deixa o báculo aí no chão, minha pequena unicórnio. Como prova de boa-fé.

Victoria obedeceu, mecanicamente. Depois, dirigiu-se a Christian.

Jack sentiu que o coração se afogava num oceano de sentimentos contraditórios.

Victoria ia despedir-se de Christian.

"Escolheu-me a mim. Condenou Christian à morte."

Não, não era possível; Victoria não podia fazer aquilo. Mas Jack viu como ela se aproximava do shek em silêncio e como Zeshak, sem soltar a sua presa, se retirava um pouco para lhes dar alguma privacidade. Viu como a jovem tomava o rosto dele entre as mãos, com infinito carinho, e depositava um beijo suave nos seus lábios.

Christian não reagiu. Parecia apático. Mas, quando Victoria o abraçou com força, Jack viu-o fechar momentaneamente os olhos, para apreciar aquele último abraço. "Victoria, não lhe podes fazer isto", pensou. Mas que outra opção tinha? Condenar Jack?

Desviou o olhar, incomodado, sentindo-se estranhamente culpado pela escolha de Victoria.

Ela estreitava Christian nos braços, consciente de que aquela era a única escolha possível. Voltou a beijá-lo e a abraçá-lo, desejando que aquele instante durasse toda a eternidade.

- Christian - soprou-lhe ao ouvido, acariciando com ternura o seu macio cabelo castanho. - Sabes que te amo, não sabes? Sabes que não me resta outra saída.

O jovem assentiu quase imperceptivelmente.

- Bem... - murmurou ela. Então inclinou-se ainda mais para lhe sussurrar algo, algo que só ele ouvia; a cada palavra que Victoria pronunciava, o semblante de Christian transformava-se, passando da compreensão ao assombro, à incredulidade e ao mais puro horror.

- Victoria... - murmurou com voz rouca. Ela afastou-se dele devagar.

- Victoria, não! - gritou Christian, debatendo-se furiosamente entre os anéis de Zeshak, mas este não o largou. - Victoria, não faças isso!

Jack olhou para ele perplexo. Christian não era pessoa de suplicar pela vida daquela maneira, embora não pudesse culpá-lo. Afinal de contas, também era em parte humano.

Ou será que não era só isso?

Christian continuou a chamar por Victoria, desesperado, mas ela não lhe deu ouvidos. E Jack só entendeu o que estava a acontecer quando ela se prostrou diante de si e o fitou com um olhar arrepiante.

Beijou-o com tanto amor e doçura que Jack ficou sem fôlego. Mal conseguira refazer-se, quando ela o abraçou com toda a força e lhe sussurrou ao ouvido:

-Jack... Sabes que te amo, não sabes? E que não tenho outra opção.

Jack ficou petrificado.

- Victoria - conseguiu dizer. - Estás... a despedir-te de mim?

- Sim, Jack - suspirou ela, sufocando um soluço. - Para sempre. "Escolheu Christian?", interrogou-se Jack confuso, sem se atrever a formular a pergunta em voz alta. Ela voltou a beijá-lo e a abraçá-lo, e então disse-lhe ao ouvido três palavras que o fizeram compreender subitamente o que estava a acontecer e que lhe encheram o coração de angústia:

- Cuida de Christian.

- O quê...

Mas ela já se tinha afastado dele. Ashran empurrou-o para Zeshak, que o apanhou com a sua longa cauda, como fizera antes. Desta vez não foi tão fácil, porque Christian esperneava e lutava com todas as suas forças para se libertar. Jack também se debateu, em vão. Entre as ondas do longo corpo de serpente de Zeshak, viu, aturdido, como Victoria se colocava ao lado de Ashran e como este colocava a mão sobre a cabeça dela, anunciando:

- Zeshak, a dama Lunnaris já escolheu.

Contrariado, Zeshak fez a cauda estalar como um chicote e soltou os dois rapazes. Christian lançou-se na direcção de Victoria, mas Zeshak bateu-lhe com a cauda, com desprezo, como quem varre lixo, e fê-lo precipitar-se no interior da Porta interdimensional. com um grito, Christian desapareceu na escuridão. Jack ficou a olhar para Victoria.

- Victoria - sussurrou, desolado. - O que é que fizeste?

Mas ela virou a cabeça bruscamente e duas lágrimas rolaram pelas suas faces.

- Zeshak - insistiu o Necromante.

O corpo do shek vibrou de ira e os seus olhos semicerraram-se. Ergueu a cauda sobre Jack, parecendo que ia esmagá-lo como a uma barata, mas, no último instante, superou o seu ódio e empurrou-o para a brecha que o conduziria para Limbhad... para a liberdade.

Jack procurou resistir, mas não havia nada a fazer contra Zeshak.

Ainda teve tempo de gritar o nome de Victoria pela última vez antes de desaparecer também.

A Porta fechou-se atrás deles.

Sobreveio um momento de silêncio, quebrado apenas pelo leve suspiro de alívio de Victoria.

- Estão a salvo - disse então a rapariga. - Os dois.

- Sim - assentiu Ashran. - Embora te custe a crer, costumo cumprir as minhas promessas.

Ela voltou-se para ele.

- Já sabias quem ia escolher?

- Sim, sabia. Contava com isso. Não era assim tão difícil de adivinhar que preferirias morrer a sentenciar um deles. Esse é o teu ponto fraco, Victoria.

- Ou o meu ponto forte. Porque salvei os dois.

- Seja como for... agora pertences-me. Sonhei com este momento desde que fugiste de mim, moribunda, neste mesmo lugar, há meses.

- Porque é que sou tão importante? Porque é que tens tanto interesse no meu poder... precisamente tu?

- Precisamente eu - sorriu Ashran -, que consigo fazer coisas como mover os astros. Precisamente eu, a quem os Seis tanto temem. Precisamente eu, a quem até os sheks obedecem... Nunca pensaste nisso? O único poder que não possuo, o único que me está vedado, é o teu. O dom de entregar a magia. De consagrar mais feiticeiros. Victoria desviou o olhar.

- Não pareces surpreendida - sorriu Ashran.

- Suspeitava-o há algum tempo - respondeu Victoria.

- Isso torna o teu sacrifício mais nobre. Já sabias o que te ia acontecer quando decidiste que, se um dos três tinha de morrer, serias tu. Estás disposta a isso?

Victoria ergueu a cabeça.

- Não tenho outra saída, pois não?

- Não, não tens - admitiu Ashran. - Já descobri que a única forma de obter o teu poder é que mo entregues por ti mesma. Voluntariamente. E não me refiro ao poder que entregas àqueles que tornas feiticeiros. Falo do teu próprio poder. Do poder do unicórnio.

" Se mo entregares, Victoria, Yandrak e Kirtash estarão a salvo. Não me interessa minimamente que regressem, pelo que manterei a Porta fechada... Além disso, sabes que morrerás no processo. Assim sendo, como a profecia já não se cumprirá, não terei motivos para matar o último dragão nem o meu próprio filho. Aprenderão a dar-se bem na Terra, não têm outro remédio. É a tua última vontade, não é?

Victoria esboçou um sorriso cansado.

- Sim, é. vou entregar-te o que pedes, Ashran. Mas fica a saber que, se alguma vez fores atrás deles, se lhes fizeres mal, o meu poder voltar-se-á contra ti, embora eu já não exista.

Ashran virou-se para ela.

- Atreves-te a ameaçar-me?

- Tenho um poder que tu não tens.

- Por pouco tempo.

Nos olhos de Victoria brilhou um lampejo de tristeza.

- Por pouco tempo - assentiu.

Após uma breve hesitação, transfigurou-se lentamente no unicórnio. Ashran observou-a com interesse, sem um único vestígio de emoção nos seus olhos prateados. Zeshak também a contemplava, sombrio, com os olhos semicerrados.

- Estou pronta - anunciou ela com suavidade.

- Muito bem - assentiu Ashran. - Mas não o vamos fazer aqui. Olhou brevemente as três luas que ainda brilhavam, cheias, no céu, como três olhos que o fitavam acusadoramente. - Vem comigo.

Voltou-se e saiu da sala, seguido pelo unicórnio que trotava docilmente, com a cabeça inclinada devido ao peso do seu longo corno.

Alexander virou-se para a sombra da Fortaleza que acabava de abandonar e contemplou-a com melancolia. Tantos meses a trabalhar na sua reconstrução, tanto esforço, tantas ilusões... para agora cair nas mãos das serpentes... pela segunda vez.

Os seus companheiros corriam para o coração do bosque; alguém o empurrou sem querer, mas ele não reagiu. Continuava a não conseguir afastar-se da margem do rio. Sabia que, mal o fizesse, voltaria as costas a Nurgon para sempre.

Cerrou os punhos, enraivecido. Era tudo culpa daquele maldito Ashran e do seu amaldiçoado filho. Grunhiu, furioso, e o animal que havia nele libertou-se um pouco mais.

- Alexander - disse a voz de Shail ao seu lado. O jovem voltou-se para ele.

- Temos de ir - disse o feiticeiro.

Alexander assentiu, não sem esforço. Respirou fundo e dirigiu-se para o bosque.

Desta vez foi Shail quem não se mexeu. Ficara a olhar para o céu e para os sheks que sobrevoavam o bosque.

- Até onde achas que conseguirão chegar? - perguntou, preocupado. Alexander voltou à realidade. Olhou para ele e adivinhou em que é que estava a pensar.

- O bosque protegerá os refugiados - tranquilizou-o. - Além disso, é provável que por esta altura Zaisei já tenha chegado ao templo do Pai. Se os deuses realmente existem, protegê-los-ão. Pelo menos a eles... porque, como as coisas estão, parece-me que os Seis já perderam muitos crentes. Por isso o mínimo que podem fazer é cuidar dos poucos idhunitas que continuam a ter fé neles.

- Deixem-se de conversas! - disse então uma voz feminina. - Não tardarão a vir atrás de nós!

Era uma das mulheres bárbaras; nem Shail nem Alexander sabiam o seu nome, mas reconheceram-na como sendo a líder de um clã. Levava um ferido aos ombros. No entanto,

não esperou por eles. Continuou a caminhar em direcção ao bosque e os dois jovens seguiram-na.

De repente, deparam-se com um grupo de feéricos.

- Depressa, depressa - disseram. - Os que não quiserem ficar a lutar, levem os feridos para as profundezas do bosque; cuidaremos lá deles. Os que quiserem defender a margem do rio, sigam-nos; conduzir-vos-emos para lugares um pouco mais desimpedidos, onde poderão combater mais à vontade.

A perseverança das fadas deu-lhes confiança. Ali, do outro lado do rio, estendia-se o reino feérico. E ninguém podia derrotar as fadas no seu território.

- Eu fico - anunciou Alexander.

Shail ia pronunciar-se quando, subitamente, algo passou a assobiar sobre eles, algo grande e pesado. Reconheceram-no de imediato: era Fagnor.

O enorme dragão artificial sobrevoou as copas das árvores mais altas. Era perseguido por um shek, cujo arrepiante sibilo lhes gelou o sangue. Atrás dele voava o dragão dourado de Kimara, procurando distraí-lo e afastá-lo da cauda da sua companheira. Perderam-nos de vista por um segundo e logo de seguida ouviram o barulho de uma queda aparatosa: o dragão de Kestra tinha-se despenhado no bosque. O shek tornou a sobrevoá-los, mas desta vez perseguia o dragão dourado, que procurava escapar.

Shail lançou um grito de advertência e lançou, irreflectidamente, um conjuro de fogo contra a serpente alada. Acertou-lhe na asa e o shek silvou, furioso. Voltou-se com brusquidão para eles.

- Descobriram a nossa posição! - bradou Alexander.

Shail não estava em condições de responder. Ficara esgotado após aquela instintiva explosão de magia.

O shek precipitou-se sobre eles, fazendo os rebeldes dispersar. Alexander deu um salto e embrenhou-se no bosque, em direcção ao local onde o dragão de Kestra caíra. Shail sentiu que o puxavam para o esconder algures.

O shek desceu entre as árvores, mas não conseguiu chegar até eles, porque a vegetação era demasiado densa. Um ar gelado percorreu aquela zona do bosque, persistindo mesmo depois de a serpente se ter elevado nos ares.

Quando o perigo imediato passou, os rebeldes prosseguiram o seu caminho, uns atrás dos feéricos que defenderiam as suas fronteiras, outros em direcção às profundezas do bosque.

- Devias ir com eles, feiticeiro - disse-lhe um silfo. - Não estás em condições de combater.

Shail abanou a cabeça, exausto e a tiritar de frio.

- Não - decidiu. - Tenho de encontrar Alexander. Tenho... tenho um mau pressentimento.

Desta vez foi Christian que tropeçou em Jack. Os dois rolaram pelo chão.

- O que...? - começou Jack, aturdido. Soergueu-se um pouco e cerrou os dentes para não gritar de dor. Estava física e psicologicamente destroçado.

Christian já se pusera de pé, mas cambaleava um pouco. Respirava pesadamente. Os dois olharam em volta.

Encontravam-se numa clareira que ambos conheciam bastante bem, sob um suave céu estrelado. Sem luas.

- Limbhad - murmuraram ao mesmo tempo. Entreolharam-se. Christian foi o primeiro a reagir.

- Victoria! - disse apenas, e Jack entendeu sem necessidade dê mais palavras.

- Temos de voltar!

- Mas como? Ashran fechou a Porta atrás de nós.

- Então abre-a! Estás à espera do quê?

- Não consigo; já não tenho poder para a abrir.

- Mas vai matar Victoria! - gritou Jack fora de si.

- Eu sei, não é preciso gritares! - bradou Christian por sua vez. Achas que não reparei? Apercebo-me das coisas mais depressa do que tu!

- Não te armes em esperto! Planeaste o ataque e olha o que aconteceu! A tua inteligência superior levou-nos directamente ao fracasso!

- Não grites comigo! - vociferou Christian, perdendo a calma. Deixar Victoria para trás foi ideia tua!

- Supostamente, ias adormecê-la!

- E foi o que fiz! Só devia ter acordado de manhã! Eu não adivinhava que arranjaria maneira de nos seguir!

- Porque não fechaste bem o Portal, seu inútil! Ou foi isso... ou traíste-nos outra vez!

- O quê...?

- Estás são e salvo, não estás? E pensar que Victoria deu a vida por ti, seu verme traidor!

Christian não continuou a discutir. Transformou-se bruscamente em shek e lançou-se sobre ele.

A metamorfose de Jack também foi quase instantânea. Apesar de estar dorido, expandir a alma no corpo de Yandrak foi maravilhoso. Inspirou fundo e vomitou uma labareda contra o shek, que rugiu de fúria e procurou evitá-la.

Depressa as duas criaturas se embrenharam numa terrível luta, fazendo por se matarem uma à outra, para exorcizar assim a raiva, a dor e a impotência que sentiam.

Durou apenas uns minutos. De repente, Jack sentiu o abraço letal da serpente afrouxar ligeiramente. Sacudiu-a de cima de si, com um rugido de triunfo, achando que

por fim matara o shek. Então viu que ele não estava morto; os seus olhos irisados olhavam-no com cansaço. - Quero parar com isto - disse na sua mente.

Jack desembaraçou-se dele. Respirou fundo várias vezes, fechou os olhos e procurou acalmar-se. Quando os abriu, Christian voltara a ser humano. Dirigiu-lhe um olhar sombrio.

- Quero parar com isto - repetiu, desta vez em voz alta. Deu meia-volta e começou a andar em direcção à casa.

Jack reparou que coxeava, mas, ainda assim, o seu andar era ágil. Também se transfigurou e correu atrás dele, como pôde. Sentia-se como se tivesse sido atropelado por um camião.

- Aonde vais?

- Tentar contactar com a Alma. Jack assentiu, sem dizer mais nada.

Entraram na casa e uma torrente de lembranças inundou o coração de Jack. Esforçou-se por reprimi-las e pestanejou para conter as lágrimas. Há muito tempo que sonhava regressar a Limbhad, mas agora sentia que sem Victoria aquele lugar não era mais do que uma prisão fria e escura, uma prisão sem paredes, mas, mesmo assim, uma prisão.

Nenhum dos dois disse palavra até que entraram na biblioteca. Aí, ao fundo, continuava a estar a mesa sobre a qual flutuava a esfera onde a Alma se manifestava.

Christian estacou.

- Fala tu com ela - disse com brusquidão. - Ainda não tenho a certeza se ela se dá bem comigo.

Como resposta, Jack colocou as palmas das mãos sobre a mesa e chamou em silêncio o espírito de Limbhad. Ela acudiu de imediato ao seu chamamento, e Jack percebeu que estava contente por o ouvir de novo. Sorriu.

- Alma, queremos ir a Idhún - disse-lhe. A resposta foi negativa.

Os dedos de Jack crisparam-se sobre a mesa.

- Christian é um feiticeiro -insistiu. - Não é grande coisa em termos de magia, mas acho que se combinar o seu poder com o teu pode levar-nos aos dois.

A resposta continuou a ser negativa.

- A Porta está fechada - explicou a Alma.

Jack cerrou os dentes e bateu com os punhos na mesa.

- Victoria está em perigo, maldição! - gritou. - Temos de voltar, não me importa como!

Sentiu a mão de Christian sobre o seu ombro. Soltou-se com violência e virou-se bruscamente para ele. Nos seus olhos brilhava a fúria do dragão, que fora por fim libertado das correntes que Ashran lhe impusera.

Nos olhos do shek surgiu igualmente um lampejo de cólera gélida; mas Christian deu um passo atrás e ergueu as mãos.

- Não quero lutar contra ti - disse com frieza. - Assim não ajudaremos Victoria, além de que... - Hesitou.

Jack acalmou-se ligeiramente.

- Pediu-te que cuidasses de mim - completou a meia-voz. Christian esboçou um sorriso triste e cansado.

- Foi a última coisa que me disse.

- A mim... pediu-me que cuidasse de ti. - Abanou a cabeça. Espera, estamos a falar dela como se estivesse morta! E não está! Não está, pois não? - perguntou com uma nota de pânico na sua voz.

Christian abanou cabeça.

- Ainda não.

Jack respirou fundo. O vínculo que o unia a Victoria dizia-lhe se ela estava bem ou em perigo; era uma intuição, um sentimento. Mas esse vínculo rompia-se quando estavam demasiado longe, quando se encontravam em mundos diferentes. Como quando ele estivera em Umadhun.

Em contrapartida, o poder de Shiskatchegg, o Olho da Serpente, superava qualquer barreira espaciotemporal.

Jack deixou-se cair sobre uma das cadeiras e enterrou o rosto nas mãos, destroçado.

No chão, encontrava-se desenhado um hexágono enorme, parecido com o que servia de Portal entre as torres de feitiçaria. Porém, os símbolos gravados no seu rebordo eram muito diferentes, pelo que se tornava evidente que o seu propósito era outro.

- Um hexágono de poder - explicou Ashran ao unicórnio. Ela ergueu para ele o seu olhar claro.

- Um hexágono? - repetiu. - E onde está o sétimo ponto?

- O sétimo ponto, minha querida, é o seu centro - respondeu Ashran com um sorriso. - O sétimo ponto és tu.

Não foram precisas mais palavras. Ela estremeceu de medo e de angústia, mas em seguida levantou a cabeça e avançou até se posicionar no centro.

A sala estava às escuras. Havia apenas duas fontes de luz, além do brilho subtil do corno do unicórnio: a suave luminescência azulada que emanava do hexágono e uma ténue aura prateada que envolvia o corpo de Ashran. Victoria olhou para ele, reparando nisso pela primeira vez.

- É o poder das luas - esclareceu o Necromante. - O poder roubado às Damas da Noite, que hoje nos mostram o seu rosto em todo o seu esplendor. É por isso que tinhas de vir agora, Lunnaris. Que irónico! És a criatura mais estimada e acarinhada pelas deusas, porém, o que vou fazer contigo esta noite não teria sido possível sem o poder arrebatado ao Triplo Plenilúnio.

Victoria baixou delicadamente a cabeça, sem dizer nada. Dobrou as patas dianteiras e deitou-se no chão, no centro do hexágono luminoso.

Ashran olhou brevemente para ela.

- Se fizeres isto por mim - disse-lhe com suavidade -, ambos estarão a salvo. Prometo-te.

O unicórnio fechou os olhos.

- Faz o que tiveres de fazer - retorquiu, inclinando o pescoço para ele; o seu corno cor de pérola brilhou momentaneamente na penumbra. Ashran sorriu.

As tropas dos sheks não tardaram a atravessar o rio em perseguição dos rebeldes. Os szish procuraram manter a ordem nas suas fileiras, mas muitos soldados humanos, entusiasmados com a batalha e a vitória, entraram desarvoradamente no bosque.

O rei Kevanion foi um deles. Amrin deteve-o quando estava prestes a embrenhar-se na vegetação, com a espada desembainhada.

- Espera! Não me parece boa ideia entrar em Awa antes de os sheks o terem destruído.

Kevanion riu-se. Não foi um riso agradável.

- Cobarde! - exclamou. - O que receias? Por acaso o teu irmão mais velho ainda te mete medo?

O semblante de Amrin ensombrou-se.

- Não, não é ele que me preocupa. Awa é o coração de Derbhad. Os feéricos não nos deixarão passar assim tão facilmente.

- Fadas que lutam com espadas de madeira e armaduras de folhas secas. Estou a tremer de medo.

- Essas fadas resistiram aos sheks durante quinze anos, Kevanion. Isso é mais do que tu e eu conseguimos.

- Nós conseguimos muito mais! Estamos do lado dos vencedores! Ouve-me bem, Amrin. O teu irmão foi derrotado, está a fugir de nós e agora é vulnerável. Se o deixarmos escapar, talvez não tenhamos outra oportunidade. Quando acabarmos com ele, a rebelião terá terminado. Será que não queres que esta guerra acabe?

Amrin não respondeu. Kevanion dirigiu-lhe um último olhar desdenhoso, reuniu um grupo de soldados à sua volta e, emitindo um grito de guerra, embrenhou-se no bosque.

O rei de Vanissar não se mexeu. Ao sentir uma presença fria junto de si, virou-se. Era um homem-serpente. Amrin conhecia-o. Chamava-se Usseth e era um dos generais do exército dos szish.

- O que é que os teus amos ordenam? - perguntou o rei suavemente.

- Temosss de dar caça aos rebeldesss, majessstade. Masss não desssa forma - acrescentou, indicando o lugar por onde Kevanion partira.

- Era o que eu pensava - assentiu Amrin. - Bem, tragam um dos carros para abrir caminho pelo meio do mato. Reunam um grupo de cinquenta pessoas. Não creio que o bosque nos deixe entrar em grupos mais numerosos - acrescentou, olhando ensimesmado para a sombra ameaçadora de Awa.

Usseth acatou imediatamente a ordem.

Momentos depois, o rei e o general embrenhavam-se no bosque atrás de um dos carros blindados, chefiando uma milícia composta por humanos e szish. Caminhavam com precaução, pois já tinham visto o que as fadas eram capazes de fazer.

À medida que avançavam, o bosque ficava cada vez mais escuro. Os ramos frondosos das árvores impediam a passagem da luz das luas e as trepadeiras teciam um tecto vegetal sobre as suas cabeças. Os troncos eram cada vez mais largos, tanto que alguns não poderiam ser abarcados por dez homens juntos. As plantas cresciam selvagens e indómitas, e as flores envolviam-nos com o seu perfume inebriante.

O carro avançava, afastando a vegetação. Contudo, chegaram a um ponto em que os troncos estavam tão juntos que o impediram de continuar. O carro parou, rangendo.

A escotilha abriu-se e do interior emergiu um dos tripulantes, um oficial do grémio de construtores de carros de Thalis.

- Não vamos conseguir passar por aqui, majestade - disse. - Demoraríamos a noite toda só para cortar uma destas árvores.

Amrin respirou fundo.

- bom. Então voltem para trás. Nós vamos prosseguir.

Correu um burburinho de inquietação pela milícia. O oficial deixou cair a escotilha; de seguida, os raheldanos pedalaram novamente no interior do carro e este voltou a pôr-se em movimento, chiando. Momentos depois, a infantaria ficou sozinha.

- Marchar! - limitou-se a ordenar Amrin.

Contornaram as árvores, passando pela única brecha que havia, um a um, em fila. Quando todos passaram, prosseguiram a marcha em silêncio.

Então, algures no bosque ouviu-se um riso trocista e melodioso, um riso feminino, brincalhão, mas que lhes pôs os cabelos e as escamas em pé. Os soldados puseram as armas em riste e olharam em volta, desconfiados. Mas não viram ninguém.

Amrin voltou-se para o szish que tinha mais perto.

- E então? Onde estão?

Mas o homem-serpente encolheu os ombros. Desta vez nem sequer podia pressentir o calor dos corpos dos seus inimigos.

- Que tipo de magia é esta? - perguntou-se Amrin.

Tiritou. A humidade de Awa entranhava-se nas roupas e gelava-lhe os osso. A atmosfera era cada vez mais perturbadora.

Ouviu-se então um estalido sinistro. Todos estremeceram e se viraram, sobressaltados. E descobriram que as árvores se tinham movido um pouco, barrando-lhes a passagem, como uma muralha vegetal. Alguns precipitaram-se sobre os troncos, golpeando-os com as espadas. O feiticeiro que acompanhava o grupo lançou um conjuro de fogo, mas a madeira estava tão húmida que este não pegou.

- Deixa essstar - disse Usseth. - Não vamosss conssseguir que nosss deixem sssair.

- Então só nos resta uma alternativa - observou o rei. Armando-se de coragem, a milícia continuou a avançar.

A partir daí, Amrin começou a ter a sensação de que o próprio bosque os ia guiando numa determinada direcção, fechando caminhos aqui, abrindo-os ali. Tinham consciência de que o mais certo era tratar-se de uma armadilha, mas, como não tinham qualquer alternativa, seguiram em frente.

Desembocaram por fim numa imensa clareira iluminada pelas luas. Aliviados, os soldados precipitaram-se para lá.

- Esssperem! - tentou impedi-los Usseth. - Esss...!

Não chegou a terminar a frase. Inesperadamente, uma flecha foi disparada do mato, uma flecha que se cravou na sua garganta e a atravessou de um lado ao outro. O general szish caiu no chão agonizando.

Sobreveio um instante de silêncio incrédulo. Todos se agruparam na clareira e espiaram as sombras, nervosos. Mas os atacantes permaneciam escondidos.

Ouviu-se de novo o riso trocista. Amrin pestanejou, sonolento. De repente, tudo lhe parecia surpreendentemente irreal, os contornos das árvores eram difusos e a luz das luas tinha uma tonalidade perturbadora e fantástica. Uma estranha fraqueza apoderou-se do seu corpo; via-se incapaz de segurar a espada e, em simultâneo, sentia-se leve, muito leve, como se estivesse a viver um sonho misterioso. Voltou-se para olhar para os seus homens e apercebeu-se de que todos pestanejavam com uma expressão aparvalhada. "O que está a acontecer aqui?", perguntou-se, confuso. O riso melodioso das fadas ainda soava na sua cabeça.

Foi um szish o primeiro a reparar.

- Um círculo de cogumelosss! - ciciou. - Temosss de sssair daqui! O grupo esforçou-se por voltar à realidade. Amrin vislumbrou que, efectivamente, a clareira estava ladeada por estranhos fungos que libertavam uma suave luminescência esverdeada. "Como diabo é que não vimos isto antes?", interrogou-se.

Todos lutaram por vencer o torpor e procuraram avançar para sair do círculo.

Então, os feéricos atacaram. Dardos, flechas e projécteis vegetais caíram sobre eles vindos das árvores. Muitos dos soldados não chegaram a sair do círculo de cogumelos.

Amrin foi um dos que conseguiram alcançar o mato. Fustigado pelos feéricos, o grupo dispersou-se e embrenhou-se ainda mais no bosque de Awa.

Depressa tudo se tornou um autêntico inferno. Todas as tropas szish dispersaram, apesar da sua intenção inicial de avançar em grupos compactos. Alguns desses grupos foram parar a mágicos e enganosos círculos de cogumelos, como o que desmembrara a patrulha do rei Amrin. Outros foram atacados da vegetação por feéricos tão difíceis de distinguir entre a folhagem que pareciam invisíveis. Outros ainda acabaram em terrenos que se revelaram armadilhas mortíferas, como labirintos de silvas envenenadas, lamaçais traiçoeiros que engoliam uma pessoa numa questão de minutos ou jardins letais de plantas carnívoras e heras que se enredavam em torno do pescoço dos soldados e os apertavam até os asfixiar. O bosque inteiro atacava os intrusos; os feéricos tinham apenas de o estimular e rematar o trabalho. De maneira que, quando um soldado aterrorizado conseguia escapar de uma planta hostil ou de um terreno pantanoso e parava para descansar numa clareira relativamente calma, era rapidamente atacado por guerreiros feéricos.

Lutavam de forma caótica, nada parecida com a organização e disciplina szish. As armas que usavam não tinham nem um único pedaço de metal, sendo feitas integralmente com elementos do bosque. No entanto, eram tão mortíferas como as fabricadas pelos ferreiros humanos e szish: lanças de madeira maciça, chicotes de silvas e estranhos frutos explosivos que, uma vez atirados contra o seu alvo, explodiam em milhares de sementes que se enterravam dolorosamente na carne do inimigo... para germinar instantaneamente, produzindo plantas que enterravam as suas raízes nas entranhas da aterrada vítima, que ainda se encontrava viva para ver como aqueles vegetais a devoravam por dentro.

Awa não precisava de ser defendido, porque se defendia sozinho. Contudo, os feéricos logo descobriram que havia algo a que nem o seu amado bosque podia fazer frente.

Embora houvesse sectores da floresta onde as fadas massacravam os intrusos, sentindo, inclusivamente, prazer ao fazê-lo, outros lugares tinham-se tornado autênticas sepulturas de frio e silêncio.

É que os sheks estavam a sobrevoar Awa, uma e outra vez, quase roçando as copas das árvores, e por onde passavam a temperatura descia subitamente e a humidade do bosque transformava-se numa fina capa de geada.

Nunca antes o Inverno chegara ao bosque de Awa. Depressa, as plantas começaram a morrer de frio devido ao gelo dos sheks. E, nos lugares onde o bosque congelava, os feéricos ficavam vulneráveis. As suas roupas de ervas e folhas não os protegiam do frio intenso. As suas peles esverdeadas, pardas ou sarapintadas não se mimetizavam na geada branco-azulada que cobria os troncos das árvores. As próprias plantas, encolhidas sobre si mesmas numa letargia forçada, não reagiam para montar armadilhas aos inimigos. E, nos sítios onde o Inverno flagelava o bosque, a gente de Ashran massacrava feéricos, da mesma forma que eles aniquilavam os humanos nas zonas verdes.

Zaisei corria o mais depressa que podia na direcção do coração do bosque.

Caminhavam há um dia inteiro. Desde que o semiceleste os advertira de que o escudo cairia com o Triplo Plenilúnio, muitos dos habitantes da Fortaleza tinham optado por fugir.

Zaisei ainda sentia o coração apertado ao pensar que deixara Shail para trás. Mas o seu bom senso dizia-lhe que ela não o podia ajudar na batalha que se iria travar naquela noite. Concluíra que seria apenas um estorvo.

Além disso, Tanawe, a feiticeira construtora de dragões, tinha-lhe pedido que cuidasse do seu filho Rawel. E isso era uma responsabilidade. Era outra maneira de ser útil à Resistência, à rebelião, pois não se tratava apenas de cuidar de Rawel, mas sim das outras crianças que iam no grupo.

Tinham andado o dia todo, pelo que, ao nascer das luas, pararam para descansar. Pouco depois, os feéricos do grupo puseram-se de pé e gritaram, alarmados.

As flores lelebin estavam a morrer. Todas as flores lelebin do bosque murchavam.

Isso significava que Ashran tinha conseguido. Fizera cair o escudo de Awa.

O descanso durara pouco. O grupo pôs-se de pé e correu em direção às profundezas do bosque, para o novo Oráculo que o Pai estava a erigir em honra da tríade solar.

"Não vamos chegar a tempo", dizia Zaisei para si, desanimada, olhando para as carinhas das crianças, para a expressão desalentada daqueles que não haviam querido ou podido lutar. "Os sheks alcançar-nos-ão antes de chegarmos ao templo." As suas suspeitas confirmaram-se quando, horas mais tarde, a temperatura começou a descer. A tiritar, os refugiados seguiram em frente, os mais fortes levando os que tinham sido vencidos pelo esgotamento, sentindo que o Inverno os perseguia e não demoraria a alcançá-los. Momentos depois, alguém tropeçou e caiu.

Enquanto os companheiros o ajudavam a levantar-se, Zaisei olhou para trás...

Viu sete sheks que sobrevoavam o bosque e que não tardariam a alcançá-los.

- Pai Yohavir, Senhor dos Ventos - suplicou -, impede-os de voar no teu seio. Mãe Wina, seiva da terra, mantém verde o teu reino. Protege-nos do seu olhar gélido.

Subitamente, veio-lhe à lembrança a voz de Shail, as palavras que ele pronunciara tempos antes: "Os deuses abandonaram-nos há muito tempo, sabes disso."

- Pai Yohavir, mãe Wina... - sussurrou.

Fechou os olhos por um momento e agarrou-se à sua prece como a um talismã salvador.

Quando tornou a abrir os olhos, os sheks tinham dado meia-volta e afastavam-se em direcção a oeste.

E o frio foi-se com eles.

Ziessel sabia que os rebeldes continuariam a lutar enquanto tivessem um lugar para onde retroceder. Cansara-se daquele jogo. Demorariam horas a gelar todo o bosque; os seus limites eram já um reino de gelo e geada... mas o seu coração ainda batia. De modo que chamou telepaticamente mais seis sheks, e os sete dirigiram-se para este, sobrevoando as copas mais altas e deixando atrás de si um rasto de árvores geladas, para atacar Awa a partir do centro. Suspeitava que era aí, no local mais recôndito da floresta, que os rebeldes tinham a sua base.

Sentiu de súbito um apelo telepático na sua mente. Era Zeshak.

- Ziessel - chamou, dando-lhe a saber que aquela mensagem era privada.

Perguntou-se o que é que o rei dos sheks teria a dizer-lhe, somente a ela, no meio de uma batalha importante. Transmitiu-lhe o seu assentimento, mostrando-se receptiva.

- Ziessel - repetiu ele. - Vem para cá. Imediatamente.

Outra criatura teria indagado os motivos, mas Ziessel era uma shek. De modo que deu meia-volta e orientou o seu voo em direcção à Torre de Drackwen sem discutir e sem fazer perguntas. Sabia que Zeshak não lhe ordenaria que se retirasse do combate sem um motivo de peso.

Uma breve ordem telepática fez com que os seus companheiros a seguissem na sua nova rota.

Ziessel não pedira explicações, mas Zeshak deu-lhas:

- Ashran deixou escapar o último dragão.

Ziessel emitiu um suave silvo de ira. Os seus companheiros de voo olharam para ela, intrigados, mas não disseram nada. Sabiam que estava a ter contacto telepático com outro shek e que era uma conversa privada. Os olhos irisados dos sheks adquiriam um tom diferente, um pouco mais azulado, quando falavam entre si por telepatia. Era uma diferença muito subtil para qualquer um que não fosse shek, mas para eles era bastante evidente.

- Traiu-nos? - perguntou ela ao seu senhor.

- Nem pensar! - replicou ele. Ziessel pensou detectar uma sombra de temor na sua mente. Achou que tinha sido imaginação sua. Não era possível que Zeshak tivesse medo de um humano, nem mesmo de um como Ashran, o Necromante. - Não, nem pensar - insistiu o rei dos sheks. - Vencemos a profecia. O unicórnio está nas mãos de Ashran. Ele vai acabar com ela a qualquer momento. Em contrapartida deixou o dragão partir. Para outro mundo, para longe do nosso alcance.

Ziessel estremeceu furiosa.

- Devia ter sido ao contrário. Quem devia morrer era o dragão. -A escolha foi dela - limitou-se a responder Zeshak.

Ziessel perguntou-se porque é que Zeshak lhe estava a contar tudo aquilo. Ele percebeu a dúvida na sua mente.

- Não posso deixar o último dragão escapar. Não posso. Mas, se o deixar voltar, a profecia pode cumprisse, porque o unicórnio ainda está vivo.

- Então espera que o unicórnio morra - sugeriu ela, embora a ideia de que o último dragão pudesse estar ao alcance de um shek, tão perto, fizesse com que o ódio voltasse a fervilhar no seu íntimo, mais intenso do que nunca.

- Não posso esperar. Não posso esperar. A liberdade do nosso povo depende de esse dragão morrer de uma vez por todas. E o ódio... o ódio é demasiado intenso...

Ziessel não disse nada, mas acelerou o voo. Sentiu que Zeshak se retirava da sua mente, mas ela permaneceu alerta, receptiva, aguardando notícias. Suspeitava que alguma coisa não estava bem.

- Voltou a acontecer - afirmou Jack num tom sufocado. - Não foi assim há tanto tempo que levaste Victoria para Idhún para a entregar a Ashran, e eu fiquei aqui preso, sem poder fazer nada. Foi a noite mais longa e terrível da minha vida.

Christian olhou para ele sem dizer nada.

- Agora, pelo menos - acrescentou, levantando a cabeça -, posso saber se continua viva. Não vais enganar-me quanto a isso, pois não?

Christian encolheu os ombros.

- Para quê?

- Diz-me então o que se passa com ela. Se está bem... se está ferida...

- Está bem, de momento - respondeu o shek, fechando os olhos para se concentrar nas sensações que o anel lhe transmitia. - Por um lado está serena, porque sabe que estamos a salvo e isso deixa-a feliz. Mas, por outro lado... tem medo do que Ashran lhe vai fazer.

Jack não gostou do tom com que ele pronunciou a última frase.

- O que é que Ashran lhe vai fazer? Vai... matá-la? Christian olhou-o demoradamente.

- Receio que... algo pior.

Jack levantou-se de rompante e agarrou-o pelo colarinho da camisa.

- O que é que Ashran lhe vai fazer? Diz-me!

Christian tirou-o de cima de si e dirigiu-lhe um olhar de advertência.

- Não tenho a certeza - disse. - São apenas suposições, mas...

- O quê?

- Creio que calculava qual ia ser a escolha de Victoria. ColocoUa nessa situação para a obrigar a entregar-se a ele voluntariamente. Sabia que o faria... para nos salvar a vida.

Jack desviou o olhar. -E?

- Se quisesse apenas matá-la, já o teria feito, não se teria dado a tanto trabalho. Acho que quer alguma coisa dela.

- Voltar a apoderar-se da sua magia? Christian olhou-o com gravidade.

- Para quê apoderar-se da magia, quando pode conseguir a fonte dessa magia?

Jack olhou-o por um momento.

- Não te estás a referir ao Báculo de Ayshel - deduziu. - Mas não podes estar a falar de... oh, não! - Olhou para ele, horrorizado. - Não podes estar a falar a sério.

Christian assentiu. Sobreveio um silêncio tenso e incrédulo.

- Por todos os... - murmurou Jack, mas a voz fugiu-lhe.

- Ela sabia. Sabia que Ashran lhe pediria em troca da nossa vida muito mais do que a sua própria vida, muito mais do que a sua essência. Jack, tens ideia do que Victoria está prestes a entregar... por nós?

Voltou a cabeça com brusquidão; mas Jack já tinha visto as lágrimas a brilhar nos seus olhos.

- Não o podemos permitir, Christian - murmurou. - Nunca... nunca imaginei que chegasse tão longe.

Christian não reagiu. Jack abanou a cabeça, derrotado. Ergueu o olhar para o seu companheiro.

- E tu? - perguntou-lhe. - Sabias qual ia ser a escolha de Victoria?

- Devia ter calculado - respondeu o shek em voz baixa. - Sempre soube perfeitamente o quão importantes somos para ela, os dois. De modo que devia ter deduzido o que Ashran percebeu com tanta clareza. Mas... bom, o coração pregou-me uma partida. - Ergueu a cabeça para olhar para ele. - Por um momento estive convencido de que ela te escolheria.

Jack ia replicar, mas a Alma chamou-os aos dois, com impaciência. Voltaram-se para a esfera.

- O que é?

A mensagem da Alma foi bem clara.

A Porta para Idhún podia abrir-se novamente. Sem nenhuma razão aparente, alguém a desbloqueara. Eles entreolharam-se.

- É uma armadilha - disse Christian.

- Não quero saber - replicou Jack.

Não demoraram nem dois minutos a deixar Limbhad para trás e a regressar a Idhún, em busca de Victoria, desejando chegar a tempo... porque, se não o fizessem, o sacrifício dela teria sido em vão.

 

                         O CÉU EM CHAMAS

Alexander avançava numa direcção muito concreta. O bosque estava mergulhado na escuridão, mas ele não precisava de ver para encontrar o seu caminho. Os seus sentidos, cada vez mais apurados, conduziam-no sem margem de erro até ao seu objectivo.

Não tardou a encontrá-lo e aproximou-se dele a passos largos, saltando por cima dos arbustos de bagas.

Fagnor despenhara-se ali mesmo. Ficara enredado nos ramos de uma grande árvore, mas estes tinham-se quebrado sob o seu peso, ou talvez tivesse sido Kestra, ao tentar sair, que o fizera precipitar-se contra o chão.

E ali estava o dragão completamente desfeito entre as raízes da árvore sobre a qual caíra. A sua magia tinha desaparecido, por isso já não tinha aspecto de dragão, vendo-se claramente que era apenas um artefacto, uma ilusão.

Alexander viu Kestra a tentar sair pela escotilha. Parecia estar presa. Correu para junto dela. A jovem voltou-se para ele.

- Não te aproximes mais! - disse-lhe, quando Alexander já trepava pela asa para se aproximar.

Alexander parou.

- Não queres que te ajude a sair?

- Sei sair sozinha, obrigada.

Impulsionou-se com os braços, tentando libertar-se, mas não conseguiu reprimir um grito de dor.

- Tens alguma coisa partida?

- Acho que... uma perna... ou as duas. Não te aproximes! - repetiu, ao ver que ele fazia tenção de continuar a avançar.

- Tenho de te tirar daí - grunhiu Alexander, e trepou até chegar ao pé dela.

Kestra olhou para ele com desconfiança e um vestígio de ódio a brilhar nos seus olhos escuros. Alexander fingiu que não percebia e avaliou a situação.

Era pior do que imaginara.

Por dentro, Fagnor estava feito em pedaços e os fragmentos de madeira tinham atingido o corpo de Kestra. De facto, parecia que o golpe lhe partira as pernas, mas, embora não fosse esse o caso, a verdade é que ter-lhe-ia sido impossível sair do dragão sem ajuda, porque uma enorme lasca tinha-se cravado no seu ventre, atravessando-a de um lado ao outro.

- Por todos os deuses - murmurou Alexander. - Porque é que não me disseste antes?

- Não tinha visto - disse ela, mas a voz tremia-lhe. Alexander percebeu que tinha visto, mas simplesmente não quisera ver.

- vou buscar ajuda.

- Não! - impediu-o ela. - Não... não me deixes sozinha.

De repente parecia uma criança assustada. A sua compostura e determinação tinham-se esfumado.

- Não te preocupes - tranquilizou-a Alexander.

Lançou a cabeça para trás e soltou um prolongado uivo. Voltou-se então para Kestra, que o fitava com os olhos muito abertos.

- Isto irá alertar Shail e os feéricos. Saberão onde encontrar-nos. Claro que também poderá atrair os szish, mas não tenho problema nenhum em recebê-los - grunhiu, mostrando os dentes.

- Tu conheceste a minha irmã, não foi? - perguntou ela inesperadamente.

- Não fales, Kestra. Tens de...

- Diz-me! Preciso de saber. Alexander olhou para ela muito sério.

- Se és quem me disseram que és, penso que sim. Ela desviou o olhar.

- O que importa o meu nome? - perguntou com esforço.

- Importa. Se és Reesa de Shia e a tua irmã era a princesa herdeira Alae, provavelmente estivemos na Academia na mesma altura. Embora, para dizer a verdade, mal me lembre dela.

Ela tremeu ao ouvir aqueles nomes que lhe traziam tantas lembranças do passado.

- Isso foi há muito tempo - murmurou. - Antes de os sheks destruírem a minha terra e matarem a minha família. Antes de os szish nos capturarem.

- Há quanto tempo foi isso?

- Não me lembro. Estivemos vários anos com o mestre Covan nas montanhas, aprendendo a lutar, a defender-nos. Escondíamo-nos nos carreiros, entre os penhascos, nas cavernas. Éramos apenas duas raparigas shianas como tantas outras, gente sem casa e sem lugar para onde ir. Depois, há quatro anos...

- Não continues, Kestra. Guarda as tuas forças.

- Há quatro anos - repetiu ela, fazendo um esforço - os szish capturaram-nos nas montanhas. Reconheceram-nos: éramos as filhas do rei rebelde. Levaram-nos perante Ashran para nos interrogarem.

Estivemos presas durante muito tempo... muito tempo... na Torre de Drackwen. Apesar de tudo, Alae nunca perdeu a esperança. Na nossa cela havia uma janela, demasiado

estreita para fugir por ali, mas suficientemente larga para ver um pedaço de céu. E Alae... Alae passava as horas mortas a olhar pela janela, sonhando com o dragão da profecia que viria resgatar-nos. - Cravou nele os seus olhos cansados.

- Mas o dragão nunca veio. Tal como não veio hoje na batalha, não é?

Alexander não soube o que responder.

- Levaram a minha irmã - continuou Kestra. - Passou-se muito tempo até voltar a vê-la. Cheguei a pensar que estava morta. Mas então, um dia... vieram buscar-me. Iam transferir-nos para outro sítio, um castelo noutro local, porque estávamos a estorvar Ashran em Drackwen. Foi então que vi Alae pela última vez. Não era... não era ela.

Alexander sentiu como se uma garra gelada lhe apertasse o coração.

- Então quem era?

- As luas estavam cheias - continuou ela, como se não o tivesse ouvido. - As três. Como esta noite. Alae... estava acorrentada. Eram precisas várias pessoas para a controlar, incluindo um dos feiticeiros de Ashran. Enlouquecera. E estava... diferente. Parecia um animal enorme: grunhia e rugia, e tinha presas, e garras, e uma longa cauda, e tinha-lhe crescido pêlo no corpo todo, pêlo às listas, sabes? Mas eu soube que era ela, porque olhou para mim...

Fechou os olhos por instantes. Alexander abraçou-a com cuidado e Kestra apoiou a cabeça no seu peito.

- Olhou para mim e pareceu enlouquecer novamente. Então nada conseguiu controlá-la. Abateu-se sobre mim...

As suas últimas palavras foram apenas sussurros. Contou a Alexander como só a intervenção da gente de Ashran evitara que a sua própria irmã a despedaçasse e como tinha escapado da Torre de Drackwen, aproveitando o caos que Alae criara. com uma híbrida furiosa e descontrolada, ninguém se preocuparia com a fuga de uma adolescente magricela...

Alexander fechou os olhos, arrasado.

- Conheceste-a, não foi? - perguntou Kestra por fim. - Porque ela era como tu. Fizeram-lhe o mesmo que a ti.

- Sim - assentiu Alexander com gravidade. - Conheci-a. -Ainda está...?

- Não, Kestra. Morreu há dois anos.

A jovem assentiu, como se estivesse à espera dessa resposta.

- E o feiticeiro que lhe fez isso...?

- Também está morto. A tua irmã pode descansar em paz. Kestra deixou escapar um suave suspiro.

Alexander não lhe contou que Elrion, o feiticeiro que os fundira a ambos com os espíritos de animais, morrera às mãos de Kirtash... o mesmo que matara a própria Alae, a mulher-tigre, momentos antes, quando procurava fugir.

- Tentou matar-me - murmurou ela com a voz cada vez mais fraca. - A minha própria irmã. Só porque as luas a enlouqueceram. E a ti... vai acontecer o mesmo. A cada instante que passa tornas-te menos humano, embora ainda não dês por isso. Enquanto falamos... o animal que há em ti liberta-se das suas correntes. Se nessa altura não tiver morrido, matar-me-ás.

- Não digas isso. Tu és forte, Kestra, muito forte. Vais resistir.

- Não sou assim tão forte - suspirou a jovem. - Eu... pensava que era. Pensava que não tinha sido feita para me limitar a esperar, como Alae fazia. Sabia que o dragão não viria, portanto... quando conheci Denyal, Tanawe e os outros, decidi que seria eu o dragão. Ou um deles. E sempre que voava com Fagnor... pensava... pensava em Alae e que, se estivesse viva algures... talvez me visse voar e recuperasse a esperança...

Kestra não conseguiu continuar a falar. Alexander quis abraçá-la com mais força, mas não se atreveu, com medo de a magoar. A mancha escura que se destacava no seu ventre continuava a aumentar, e o jovem uivou de novo, chamando a ajuda que não chegava. Sentiu que Kestra estremecia nos seus braços.

- Vais matar-me, não é? - sussurrou.

- Claro que não - grunhiu ele; mas dentro de si começava a pulsar uma sensação que, infelizmente, conhecia bastante bem: a ânsia de caça, de carne. Reprimiu-a.

- Lamento por Fagnor - murmurou ela. - Ninguém voltará a fazê-lo voar.

Alexander não respondeu.

Ficaram assim durante mais algum tempo, em silêncio, até que Alexander disse:

- Sabes, a verdade é que no fim o dragão foi realmente resgatar Alae. Foi Jack que abriu a porta da sua prisão... da nossa prisão. E provável que ela não o tenha reconhecido, porque na altura era apenas um rapaz humano oculto por um feitiço ilusório que o fazia parecer um szish... mas era um dragão e foi ele... que abriu a porta. Escapámos juntos e...

Interrompeu-se. Mal saíra daquela cela, Alae, a mulher-tigre, a antiga princesa de Shia, deparara com o fio gélido de Haiass. Perguntou-se se deveria contá-lo a Kestra.

Apercebeu-se então de que ela não dizia nada, de que já não se mexia. Afastou-se um pouco e olhou-a nos olhos; mas aqueles olhos já não lhe devolveram o olhar. O coração de Kestra tinha deixado de bater.

Alexander cerrou os dentes, com raiva, e depois lançou a cabeça para trás e uivou, uivou por Reesa, princesa de Shia, a melhor piloto de dragões e a mais destemida.

Christian e Jack apareceram novamente na sala onde Ashran obrigara Victoria a escolher entre os dois. Mas nem a rapariga nem o Necromante se encontravam aí.

Era Zeshak quem os esperava. Zeshak, o rei dos sheks, maior e mais mortífero do que nunca, com as asas totalmente abertas, quase a tocar no tecto, as mandíbulas escancaradas e os olhos a libertar um ódio tão antigo como inevitável. Ignorando Christian, centrou o seu olhar em Jack; este compreendeu que o shek abrira a Porta porque não suportava a ideia de deixar fugir o último dragão, porque ansiava combater contra ele e matá-lo... porque tinha sucumbido ao ódio que corria nas suas veias e aquela era a única forma de o saciar.

Jack esboçou um sorriso sarcástico.

- Obrigado por nos teres trazido de volta, Zeshak - saudou-o.

O shek não respondeu. com um silvo enraivecido, lançou-se sobre ele, rápido como um raio.

Jack saltou para o lado e rolou pelo chão, até ao lugar onde Domivat, a espada de fogo, ficara abandonada. Assim que a agarrou, sentiu-se muito melhor. Brandiu-a diante do shek e viu o seu fio flamejante reflectido nos olhos irisados da criatura. Os dois estudaram-se mutuamente, com cautela. Jack semicerrou os olhos, como Sheziss lhe ensinara, para evitar assim que o shek penetrasse na sua mente.

Sentia que o dragão bramia dentro de si, que já era livre para o deixar controlar o seu corpo e transformar-se, se assim o desejasse. O ódio tinha despertado, fervilhante, como um vulcão prestes a entrar em erupção.

- Não te distraias! - disse a voz de Christian na sua mente. - Temos de salvar Victoria!

Jack viu pelo canto do olho o suave brilho gelado de Haiass. Custou-lhe concentrar-se e esquecer que tinha um shek pela frente, um shek que devia matar.

Começou a retroceder, pouco a pouco, sem deixar de interpor Domivat entre si e Zeshak.

O shek impediu-o de continuar. com um sibilo enfurecido, lançou-se sobre ele, sem se importar já com a espada de fogo. Jack tentou repeli-lo.

com um suspiro exasperado, Christian deixou Haiass de lado; suspeitava que uma espada de gelo não faria mal nenhum a um shek. De modo que iniciou a sua própria metamorfose e atacou Zeshak por trás. O senhor dos sheks voltou-se para ele, encolerizado.

Perplexo, Jack viu como se enfrentavam, abrindo as asas e lançando um ao outro silvos ameaçadores. "Christian, é o teu pai", pensou, mas não o disse em voz alta. De qualquer forma, Christian estava demasiado ocupado para manter contacto telepático com ele, por isso não o captou.

Jack decidiu transformar-se também, mas não teve tempo de o fazer, porque, através da porta da varanda que continuava aberta de par em par, entrou um relâmpago negro, veloz como uma flecha prateada fendendo a penumbra, que caiu de surpresa sobre Zeshak com um silvo de ira.

Jack deu dois passos atrás; também Christian retrocedeu, surpreendido, fazendo ondular o seu longo corpo de serpente. Observou por instantes como Zeshak se envolvia numa luta sem tréguas contra uma shek em cujos olhos brilhava um ódio não tão ancestral como o que os sheks professavam pelos dragões, mas igualmente poderoso.

Investiram um contra o outro uma vez mais e depois cada um deles recuou ligeiramente para estudar o seu rival.

- Sheziss! - murmurou Jack, desconcertado. Como é que ela chegara ali?

- Vai-te, embora, rapaz - ouviu a voz dela na sua mente. - Zeshak é meu.

O rei dos sheks deve ter dito alguma coisa, porque os olhos matizados de Sheziss cintilaram novamente; mas era uma conversa privada, pelo que nem Jack nem Christian estavam convidados a participar.

- E todo teu - murmurou Jack, sorrindo. Voltou-se para Christian e gritou-lhe: - Vamos embora, Christian!

O shek voltou à realidade e recuperou a sua forma humana.

Jack corria já para a porta, fazendo uma breve paragem no canto onde ficara o Báculo de Ayshel, para o levar. Zeshak virou-se, como um raio, e lançou-se na sua direcção; mas Sheziss caiu sobre a serpente alada, silvando furiosamente, e Zeshak não teve outro remédio senão defender-se.

Já na porta, Christian voltou-se uma vez mais para contemplar os dois sheks que procuravam matar-se um ao outro. Havia algo neles que o assustava e o atraía ao mesmo tempo. Nesse momento, a fêmea fazia Zeshak retroceder até à varanda, mas parou para o fitar.

Os olhos de Christian cruzaram-se com os daquela fêmea que, por alguma razão desconhecida, os estava a ajudar. Sentiu que algo se revolvia no seu íntimo, algo parecido com uma estranha saudade.

A shek semicerrou os olhos e dirigiu-lhe um silvo furioso. Christian retrocedeu, alerta. A fêmea abriu um pouco mais as asas e, tensa, preparou-se para atacar. Christian ergueu Haiass, disposto a defender-se.

O tempo pareceu congelar no instante que precedeu o ataque da serpente. Nesse segundo em que Christian anteviu a sua própria morte entre aquelas presas letais, os dois corações, o da shek e o do híbrido, bateram ao mesmo tempo.

Então ela pareceu mudar de ideias, porque semicerrou os olhos, dirigiu-lhe um último silvo de advertência e virou-lhe as costas bruscamente, dando a entender que o deixava ir. Confuso, Christian deu meia-volta e desatou a correr pelo corredor atrás de Jack. Ainda conseguiu vislumbrar Zeshak a abater-se de novo sobre a shek, retomando a batalha que haviam começado e que não tinha nada a ver com deuses, heróis nem profecias. "Um assunto pessoal", calculou Christian, "e muito, muito sério... pelo menos para ela."

Não pensou mais nisso, embora o olhar daquela shek e a sua estranha atitude em relação a si o tivessem tocado muito fundo.

Os seus pensamentos centraram-se novamente e apenas em Victoria.

Qaydar e Allegra tinham-se apercebido de que as serpentes aladas eram o verdadeiro perigo para Awa. Haviam atravessado o rio com o primeiro grupo de refugiados, mas ficaram para defender as fronteiras. Decidiram unir-se aos feéricos que, no cimo das árvores mais elevadas do bosque, procuravam afugentar as serpentes.

Os feéricos não dispunham de muitos meios para atingir os sheks no ar. As suas lanças e flechas não chegavam até eles e, se o fizessem, mal arranhariam a superfície das suas escamas. E, embora os rebeldes humanos os instassem a disparar flechas com pontas de fogo, os feéricos eram incapazes de o fazer.

Todavia, conseguiram capturar um shek com as redes que lançavam das copas das árvores e outro que fora apanhado por uma planta carnívora gigante antes de conseguir congelá-la por completo. Além disso, como é óbvio, todos os feiticeiros rebeldes lançavam a sua magia contra os atacantes alados.

- Quanto mais tempo os retivermos aqui - disse Allegra -, mais oportunidades daremos aos feridos de chegar ao coração do bosque. Talvez lá estejam a salvo.

Mas Qaydar abanou a cabeça.

- A esta altura, duvido que exista um só lugar em Idhún onde se esteja a salvo - disse com amargura.

Allegra não lhe soube responder.

Encontravam-se numa das enormes flores de uma das árvores mais altas daquela zona do bosque. O cálice da flor constituía um excelente refúgio e ocultava-os da vista dos sheks. Dali lançavam todo o tipo de feitiços de ataque, procurando afastar as serpentes do bosque. Outros feiticeiros tinham-se juntado também à batalha aérea. Numa flor próxima estava Tanawe, cuja magia era especialmente feroz quando se tratava de defender os seus preciosos dragões, embora já só restassem três no ar. O modo como uma das flores se inclinava denunciava o reduto de Yber, o único feiticeiro gigante de Idhún.

Allegra ergueu o olhar para o céu. Viu-o coberto de sheks e sentiu-se esmagada. Uma vez mais, perguntou-se o que seria feito de Victoria e se estaria bem. A última coisa que soubera dela era que tinha ido matar Kirtash, o assassino de Jack. Por instantes, desejou que tivesse mudado de ideias. O shek ainda a amava e, apesar de ter acabado com o último dragão, apesar todos os crimes que cometera, era a única pessoa em Idhún capaz de proteger Victoria, de a afastar daquela loucura, de curar a dor da sua alma. A fada suspirou. Talvez Kirtash merecesse a morte; mas, vendo toda aquela destruição, Allegra desejou que Victoria lhe tivesse poupado a vida e que estivessem os dois juntos, longe daquele pesadelo.

Um grito de Tanawe interrompeu os seus pensamentos:

- Atenção, o dourado!

Allegra endireitou-se de imediato e aproximou-se da beira do cálice da flor para ver o dragão dourado a planar perigosamente por cima das árvores. Tinha três sheks atrás de si.

- Não é Kimara quem se encontra a bordo daquele dragão? - indagou o Arquifeiticeiro.

Allegra assentiu e Qaydar deixou escapar uma imprecação. Restavam muito poucos feiticeiros em Idhún e, pelo que ele sabia, até ao momento Kimara era a única nova feiticeira consagrada por Lunnaris, o último unicórnio. Tinha de a manter viva a todo o custo. Num tom potente e terrível, pronunciou a fórmula de um feitiço de fogo e lançou-o contra as serpentes que perseguiam o dragão artificial. Allegra viu, não sem satisfação, como as três irrompiam em chamas e se precipitavam sobre o bosque, emitindo silvos de agonia. Olhou para Qaydar, pensativa. Era um feiticeiro poderoso, não havia dúvida. No passado, os arquifeiticeiros eram respeitados pelos próprios dragões. Mas às vezes dava-lhe a sensação de que Qaydar não sabia bem como utilizar aquele poder. Passara longas décadas dedicado ao estudo dos mais complicados feitiços e conjuros, das formas mais subtis e intrincadas de magia, mas limitara-se à teoria, não a pô-la em prática. Allegra tinha notado que Qaydar se sentia um pouco perdido no mundo real, lidando com gente de verdade. No entanto, o seu poder era bem visível.

- Arquifeiticeiro - disse suavemente -, tu conheces todas as formas e variantes da magia. Até agora utilizámos sempre uma magia simples, primitiva e violenta para

lutar contra os sheks, mas é notório que não basta.

Qaydar voltou-se para ela.

- O que queres dizer? O fogo queima-os, não reparaste?

- Sim - assentiu Allegra. - Mas eles são demasiados. O feitiço básico de fogo só consegue atingir um de cada vez, dois ou três, quando muito. Precisaríamos de os destruir a todos ao mesmo tempo.

- com fogo? É impossível.

- Há poucas coisas impossíveis para os que dominam os mistérios da magia, não é?

"Para acabar com todos eles teria de incendiar o céu", dissera a Shail. Respirou fundo. Se fosse possível...

Observou, com o coração apertado, como o dragão de Kimara se precipitava sobre as árvores, um pouco mais adiante, sem controlo. Ouviu a exclamação de angústia de Tanawe. E não conseguiu evitar recordar os tempos da conjunção astral. Os dragões artificiais que tinham fabricado durante todos aqueles meses estavam agora a cair como moscas, tal como nesse dia haviam caído todos os dragões do mundo, sob o poder de Ashran, o Necrorrumte. Tal como Jack caíra, sob o poder de Kirtash, o seu filho. Um shek.

"Já chega", disse a fada para si própria, acrescentando, lentamente, em voz alta:

- Arquifeiticeiro, temos de pegar fogo ao céu.

Tinha sido tudo muito rápido. Demasiado rápido, talvez. Victoria estava à espera de um longo e complicado ritual, quem sabe até com a presença de vários feiticeiros. Embora, pensando bem, nenhum feiticeiro em Idhún, provavelmente nem mesmo Gerde, fosse capaz de contemplar aquela agonia. Talvez por isso, ela e Ashran continuavam sozinhos na sala.

O ritual decorreu sem demora nem hesitações. Afinal de contas, Ashran não era um feiticeiro qualquer.

Limitou-se a passar os dedos por cima da cabeça do unicórnio, várias vezes, como que a tecer sobre ela uma rede de fios invisíveis. Lentamente, os seus dedos começaram a emitir uma estranha luz fria e pálida até se transformarem em garras brilhantes. Victoria tentou acalmar-se, mas não conseguiu. Tinha medo, muito medo. Tremia violentamente e custava-lhe permanecer imóvel, pelo que fechou os olhos para não ver aquelas garras de luz.

Então, subitamente, reconheceu uma presença quente no seu coração, que até essa altura estivera frio, apagado e sozinho. "Jack?", pensou. "Jack está aqui?"

Demasiado tarde. As garras luminosas fenderam a sua testa, como punhais de gelo, e giraram...

O unicórnio não conseguiu resistir por mais tempo. Gritou.

Nunca ninguém em Idhún ouvira um unicórnio gritar assim.

Era um som tremendo, que não se parecia com nenhum outro, que oprimia a alma e que mergulhava quem o escutava numa tristeza profunda.

Jack e Christian ouviram-no quando já subiam as escadas a correr. Estacaram horrorizados. Foram incapazes de se mexer enquanto o lamento do unicórnio percorria a Torre de Drackwen até às suas fundações.

Também os dois sheks que lutavam mais abaixo o ouviram, interrompendo a sua luta, chocados e sacudidos pelo espanto. Quando o grito se dissipou, pouco a pouco, como a luz de uma vela que se extingue, Sheziss murmurou:

- Raparigaunicórnio.

Ergueu-se sobre si mesma, ainda a tremer, e dirigiu a Zeshak um olhar colérico.

- Como pudeste permitir isto? Como pudeste permitir... o que se passou com os nossos filhos?

- Ek tem o poder e o direito de fazer tudo isto - replicou o shek; mas continuava chocado. - Não sabes quem estás a enfrentar.

- Sei - respondeu Sheziss. - Foi ela mesma quem mo disse. O que havia de mais belo no mundo... e tu deixaste que ele o destruísse.

- Pode criar muitas outras coisas belas. Coisas nossas. E um mundo seguro para todos nós. Que outra opção tínhamos? Continuar a temer e a odiar os dragões, condenados ao exílio e ao extermínio? Permanecer eterna mente na escuridão?

- Ela era a luz - respondeu Sheziss. - Ela era a luz e o futuro. Tal como os nossos filhos.

Furiosa e ainda perturbada, lançou-se sobre Zeshak, disposta, mais do que nunca, a levar a cabo a sua vingança.

Na escadaria, Christian e Jack entreolharam-se. Não precisaram de palavras. Desataram a correr novamente, desesperados. Tinham esquecido a sua dor e fraqueza. Na sua alma permanecia apenas o eco do grito do unicórnio, o grito de morte de Victoria.

O seu instinto guiou-os directamente ao lugar onde Ashran acabavá de realizar o seu conjuro. Jack golpeou a porta com a sua espada, com uma fúria sem limites, e o fogo de Domivat fê-la irromper em chamas. Os dois precipitaram-se para o interior.

Kimara olhou em volta, aturdida e a tiritar de frio. Parecia-lhe um milagre que estivesse viva.

Continuava dentro do seu dragão artificial. Este não se despenhara no chão, apesar de ter caído de uma altura considerável. Contudo, era evidente que o artefacto sofrera graves danos. A sua magia tinha deixado de funcionar.

Levantou-se, pouco a pouco, mas o dragão bamboleou perigosamente. Imobilizou-se e deu uma olhadela pela janela da frente. Viu apenas ramos congelados. com uma precaução infinita e ainda a morrer de frio, conseguiu alcançar a escotilha e assomou ao exterior.

Viu que o dragão artificial estava pendurado nos ramos de uma árvore enorme. Toda a paisagem estava coberta de geada.

Arriscou-se a olhar para baixo. Preferia não o ter feito.

Estava tão alto que mal via o chão. Agarrou-se à escotilha, lamentando não ser mais do que uma aprendiza sem conhecimentos suficientes para realizar o feitiço de levitação.

Voltou-se lentamente para calcular a distância que a separava do tronco e se poderia chegar a salvo até um ramo... e deparou-se com uma carinha suja e húmida que a fitava com uma ferocidade inusitada a brilhar nos seus olhos negros feéricos.

- Fora da minha árvore! - gritou a dríade.

- Sinto muito - murmurou Kimara, um pouco perplexa. - Não tinha intenção de cair aqui. Foi um acidente!

- É sempre um acidente! Os humanos destroem os bosques e depois vêm dizer que foi um acidente!

- Espera aí! Primeiro, não sou totalmente humana, sou semi-yan, e digo-te já que não sei como é que os humanos tratam os bosques, dado que na minha terra não há

muitos humanos e bosques ainda menos. Segundo, estamos no meio de uma batalha! Fica sabendo que arrisquei a vida a lutar contra os sheks que estão a congelar o teu bosque e que, sem dúvida alguma, causaram mais estragos do que eu.

Então a dríade desatou a chorar e Kimara reparou que era apenas uma criança. Olhou para ela atentamente. A fada aninhara-se sobre o ramo e abraçava o tronco coberto de geada, acariciando-o. A semi-yan entendeu que não suportava ver a sua árvore a sofrer.

- Lamento pela tua árvore. Mas... que tal ajudares-me a descer daqui?

A dríade olhou-a de novo, indecisa. Então ouviu-se um grito vindo de baixo:

- Kimara! Estás aí?

A dríade semicerrou os olhos e escondeu-se entre os ramos, mas a geada que cobria as folhas impedia-a de ocultar eficazmente o seu corpo esverdeado. Kimara não lhe ligou.

- Graças aos deuses - sussurrou a jovem, sorrindo. Tinha reconhecido a voz. Era Shail.

Ziessel e os seus companheiros regressaram aos limites do bosque. A shek mantinha aberto o vínculo de comunicação com o seu senhor, estava alerta e sabia que alguma coisa não estava bem. Os sheks que continuavam a combater os rebeldes e a gelar o bosque suspenderam o que faziam para olhar para ela. Ela chamou-os e divulgou a convocatória de Zeshak. Os sheks trocaram mensagens telepáticas rápidas e, em poucos segundos, decidiram quem acompanharia Ziessel à Torre de Drackwen e quem manteria o ataque ao bosque de Awa. Desta forma, um bom número de serpentes aladas juntou-se ao grupo de Ziessel e depressa se perderam no horizonte.

Ocultos entre as copas das árvores, os feiticeiros viram-nos partir.

- Aonde vão? - murmurou o Arquifeiticeiro. Allegra franziu o sobrolho.

- Para oeste - respondeu. - Para a Torre de Kazlunn ter com Gerde. Ou para a Torre de Drackwen... ter com Ashran.

- E para que é que Ashran iria precisar dos sheks precisamente agora?

Os dois feiticeiros entreolharam-se.

- É impossível - disse Qaydar, adivinhando os pensamentos de Allegra.

- Eu também não me quero iludir. Mas e se...?

- O dragão morreu, Aile. Sabes bem disso.

- Mas Victoria não. E talvez... talvez...

- Há quase dois meses que não temos notícias dela. E provável que também tenha morrido.

- Mas há uma possibilidade remota. E só por isso devemos fazê-lo. Qaydar susteve o olhar negro de Allegra. Sabia o que ela estava a pensar.

Há algum tempo que o discutiam, enquanto tratavam de afastar os sheks do bosque tendo por base a flor onde se tinham refugiado. O Arquifeiticeiro chegara à conclusão de que havia uma maneira de incendiar o céu, como Allegra propunha. Mas era muito arriscada.

- Eu estou preparada - afirmou ela. - Se fores capaz de gerar esse fogo todo, eu serei capaz de o dispersar.

- Capaz? Sou um Arquifeiticeiro, Aile. Consigo fazer isso e muito mais. Mas tu... tu és uma fada. Vais saber manejar o fogo?

- Se for necessário, sim.

Qaydar hesitou ligeiramente, mas por fim assentiu.

- Está bem - disse. - vou explicar-te como vamos fazer.

No futuro, Jack recordaria aquele momento de forma difusa. Iria lembrar-se vagamente de ter gritado o nome de Victoria enquanto entrava naquela sala às escuras; de ter visto de imediato o hexágono que iluminava a divisão e em cujo centro ela se encontrava.

Disso, sim, lembrar-se-ia claramente. A imagem de Victoria jazendo no centro do hexágono ficaria gravada a fogo no seu coração e, passado muito tempo, ainda o visitaria nos seus piores pesadelos.

A imagem de um unicórnio moribundo, estendido no chão, com um estranho e terrível buraco negro na testa.

Mesmo assim, sem o corno, que agora brilhava magicamente numa das mãos de Ashran, o unicórnio continuava a não parecer um cavalo. Era demasiado bonito e delicado, a sua crina demasiado suave, a pele demasiado pura e os olhos demasiado grandes, belos e expressivos. Ergueu a cabeça com dificuldade, com uma expressão de dor e desconsolo que partiu o coração aos dois rapazes.

- Victoria... - murmurou Jack, aterrado.

Aperceberam-se logo de que não sobreviveria por muito tempo. Mal tinha forças para se mexer e o ténue brilho sobrenatural da sua pele apagava-se pouco a pouco.

Christian reagiu antes de Jack. Voltou-se para o pai, com os olhos húmidos. Deixou escapar um grito de raiva e ódio, transformando-se violentamente em shek. Jack não tardou a seguir-lhe o exemplo.

Já não queriam saber de nada, nem dos deuses, nem da profecia, nem do facto de Ashran os ter derrotado com uma facilidade insultuosa no seu anterior confronto. Estavam cegos de fúria e só tinham um objectivo: acabar com a vida do homem que dava pelo nome Ashran, o Necromante, vingar Victoria e evitar que aquele monstro lhe fizesse ainda mais mal do que aquele que já lhe causara. Por uma vez, um dragão e um shek lutavam juntos, porque tinham encontrado alguém a quem odiar ainda mais do que se odiavam entre si. Quase não cabiam na sala, mas arranjaram maneira de chegar até Ashran, que sorria de forma sinistra.

- Shek! - disse apenas.

Então Christian estacou e caiu pesadamente no chão, impedido por uma barreira invisível. Tentou mexer-se, mas não foi capaz.

Jack mal se apercebeu da situação. Ele, sim, conseguia mexer-se, podia lutar. Sentia-se repleto de uma nova força, maravilhosa e viva, que estava, não obstante, mesclada pela escuridão do seu ódio. Percebeu inesperadamente que Ashran não tinha poder sobre ele. Então lançou sobre o feiticeiro uma intensa labareda. Christian conseguiu esticar a cauda no último momento para proteger Victoria com ela.

Jack, exausto, parou e olhou em volta... mas Ashran tinha desaparecido.

Vislumbrou-o junto ao corpo de serpente de Christian, que continuava no chão, torcido sobre si mesmo. Ainda sorria.

- O shek não te irá ajudar na luta, dragão - afirmou. - Não poderia fazê-lo mesmo que quisesse, porque já cumpriu a sua missão, que era conduzir-vos até mim, para que eu pudesse conseguir o corno do último unicórnio que há no mundo.

Levantou no ar o corno de Victoria, de Lunnaris, e Jack viu, impotente, como o objecto se desvanecia no ar.

- O que fizeste com ele? - gritou.

- Pu-lo a salvo - sorriu Ashran. - Longe do teu alcance.

Jack virou-se de novo para Christian, desesperado. Mas o shek não se mexeu.

- Já te disse que não te irá ajudar - recordou-lhe Ashran. - É um shek, um instrumento do Sétimo, e não pode escapar à sua essência. Tem de obedecer ao seu deus, quer queira quer não.

Cada palavra pronunciada por Ashran penetrou na cabeça de Jack como um raio de luz ofuscante. Aturdido, tornou a contemplar o Necromante e notou-o diferente, muito mais seguro de si, emanando um halo de poder obscuro. E isto não se devia ao corno que arrebatara a Victoria, nem ao poder do Triplo Plenilúnio. Jack descobriu que não era capaz de o olhar nos olhos e teve de baixar a cabeça. As íris artificiais de Ashran tinham desaparecido; agora via-se claramente o que aquele olhar prateado tinha estado a ocultar: uns olhos que sugeriam uma natureza imortal, uma força tão intensa que nem mesmo um dragão lhe podia resistir.

"Não é possível", pensou, aturdido. "Temos de enfrentar... um deus?"

- Alsan de Vanissar! Alsan de Vanissar! Dá a cara, cobarde! Anda combater!

Kevanion parou no meio do bosque e esquadrinhou as sombras à sua volta. Estava furioso porque tinha perdido de vista os seus homens numa emboscada dos feéricos. Assistira à morte consecutiva dos seus soldados e, embora se tivesse vingado de sobremaneira, ceifando a vida de uns quantos silfos, fadas e duendes que se tinham atravessado no seu caminho, ainda não estava satisfeito. Limpou a espada banhada em sangue, enquanto continuava a procurar Alexander com o olhar. Ele era o culpado de tudo, dizia-se. O culpado de ter arrastado Nandelt para a guerra quando há anos que estava estabelecido o sistema de governo dos sheks; o culpado de ter ressuscitado a Ordem de Nurgon, de ter reconstruído a Fortaleza, símbolo de uma instituição caduca que já não tinha razão de ser em Idhún; o culpado, em suma, de ter criado todo aquele caos. Kevanion tivera-o diante de si naquela insolente invasão ao seu acampamento, apenas umas horas antes. Agora não lhe voltaria a escapar.

Dos recônditos da vegetação, as vozes das fadas, sussurrantes e ameaçadoras, advertiam-no para que não continuasse a profanar o bosque; mas o rei de Dingra não as ouvia.

- Alsan! - gritou de novo.

Distinguiu uma figura entre as árvores, uma figura humana. Correu para lá.

O vulto esperava-o numa clareira do bosque. O luar iluminou as feições de Covan, o mestre-de-armas da Fortaleza.

- Kevanion - saudou-o, com um sorriso sinistro. - Que surpresa. Receio não ser Alsan, mas vou adorar confrontar-te. Estou desejoso de te fazer provar o fio da minha espada, traidor!

Kevanion pusera-se em guarda mal o reconhecera; as lâminas das espadas de ambos os guerreiros chocaram com violência.

A luta foi breve, mas feroz. Possuído por uma fúria assassina, o rei de Dingra desferia estocadas violentas e certeiras, mas Covan era mais rápido e tinha mais experiência. Tinham quase a mesma idade, haviam estudado juntos em Nurgon e tido os mesmos mestres. Contudo, Covan passara a vida toda a aperfeiçoar a sua técnica, enquanto Kevanion estivera ocupado a dirigir um reino... ou a julgar que o dirigia, brincando aos reis sob o olhar atento de Ziessel.

Quando a lâmina da espada de Covan se enterrou no corpo do rei de Dingra, os olhos do mestre-de-armas brilharam momentaneamente.

- Suml-ar-Nurgon - limitou-se a dizer.

Retirou a sua arma do corpo inerte do inimigo e, quando a estava a limpar, ouviu claramente um uivo arrepiante que lhe causou calafrios.

Jack deu um passo atrás. Sentiu então o corpo de Victoria muito perto de si, o corpo do unicórnio a quem Ashran extirpara o corno. Se o sétimo deus queria arrebatar

o corno do último unicórnio... quem podia impedi-lo?

"Os outros seis", disse Jack para si. "Onde estão os Seis?" Continuavam em Érea, observando de lá como o Sétimo provocava uma conjunção astral, exterminava dragões e unicórnios, fazia regressar os sheks e, em suma, conquistava Idhún? O que é que eles tinham feito?

"Tinham formulado uma estúpida profecia", pensou, furioso.

A profecia.

Então compreendeu.

Christian não podia mexer-se porque era um shek, uma criatura do Sétimo. Tinha de lhe obedecer, quer quisesse quer não. Mas ele, Jack, não era. Ashran não tinha poder sobre ele. Os seis deuses estavam ali, consigo, naquela sala. De alguma maneira.

Voltou a atacar, mas desta vez não utilizou o fogo. Atirou-se sobre Ashran, com as mandíbulas e as garras de fora, procurando destruir o corpo no qual se ocultava o deus dos sheks. Um frágil corpo humano... que talvez fosse vulnerável. Agarrou-se a essa esperança.

Ashran deteve-o com um só gesto da sua mão. Lançou contra ele algo que Jack não viu, mas que o atirou violentamente para trás e o fez estatelar-se contra a parede. O dragão abanou a cabeça para se recompor e voltou à carga. Uma e outra vez.

Guiados pelo uivo, Shail e Kimara chegaram ao lugar onde Fagnor se despenhara.

Depararam com uma cena aterradora.

O dragão artificial encontrava-se feito em pedaços entre as raízes da árvore. O corpo de Kestra estava visível na abertura superior; parecia que a jovem estava inconsciente, talvez moribunda ou até morta.

Junto a ela, erguia-se um enorme animal que fazia lembrar um lobo, mas que também tinha uma vaga parecença com um homem.

- Alexander, não - sussurrou Shail, aterrado.

O ser voltou-se para eles, mostrando as presas. Os seus olhos revelavam um brilho de loucura assassina; a sua espessa pelagem cinzenta encrespava-se sobre os músculos tensos.

- Protege-te! - gritou Shail, no preciso instante em que o animal se abatia sobre si.

Kimara saltou para o lado e rolou pelo chão.

O ser que fora Alexander embateu contra a barreira mágica levantada por Shail no último segundo. Caiu no chão e voltou a tentar... mas uma vez mais foi-lhe impossível aproximar-se do feiticeiro.

Os dois entreolharam-se. Shail procurou no animal o brilho inteligente e sereno do olhar de Alexander ou pelo menos um lampejo de reconhecimento, mas não encontrou nada que se parecesse. A criatura grunhiu de novo e saltou... para as profundezas da floresta, para longe de Shail e Kimara.

- Que Aldun nos proteja - sussurrou Kimara. - O que era aquilo? Shail não respondeu imediatamente. Ficara de pé, apoiado na muleta, estudando o lugar por onde o animal desaparecera.

- "Aquilo" era o meu amigo - murmurou por fim, sacudindo a cabeça. - Tenho de o deter!

Pôs-se novamente a caminho, andando o mais depressa que podia; sabia que não conseguiria alcançar Alexander só com uma perna... mas tinha de tentar.

Kimara também desatou a correr, mas em direcção a Fagnor, para ver se Kestra estava bem. Não demorou a descobrir o que tinha acontecido.

Durante algum tempo permaneceu ali, a tremer, sem saber o que fazer, com os olhos cheios de lágrimas... até que sentiu uma presença atrás de si e se voltou, lentamente.

Tratava-se de um feiticeiro humano. Kimara observou-o com cautela. Era um feiticeiro, disso não tinha dúvida. Não vestia a túnica típica dos feiticeiros, mas usava os seus amuletos. Contudo, a jovem tinha a certeza de que nunca o vira em Nurgon.

Parecia esgotado após uma longa viagem. E desesperado.

- Alsan de Vanissar - conseguiu dizer. - Tenho de encontrar Alsan. Naquele momento, um novo uivo ecoou na floresta.

- Receio que ele não esteja em condições de te receber agora, feiticeiro - murmurou Kimara.

O feiticeiro deu um murro no tronco da árvore, impaciente.

- Tenho de falar com ele. Trago uma mensagem urgente da Torre de Kazlunn. Uma mensagem de um rapaz chamado Jack.

O coração de Kimara esqueceu-se de bater por um breve instante.

O poder de Ashran golpeava-o, feria-o, magoava-o, mas não o matava, confirmou Jack surpreendido. Algo o protegia e esse algo, suspeitou, eram os seis deuses que, supostamente, o tinham convocado para aquela batalha. Fosse como fosse, isso não era o suficiente para derrotar Ashran, nem sequer para chegar até ele.

- Não podes matar-me - rugiu o dragão, quando se levantou pela enésima vez.

- Por enquanto não - respondeu Ashran com indiferença. - Mas não importa. Não preciso de esperar que morras de cansaço. O unicórnio irá morrer antes de ti e, quando isso acontecer, deixarás de ter energia para continuar a lutar.

Horrorizado, Jack voltou-se para Victoria e concluiu que ele tinha razão. O unicórnio já não tinha forças para levantar a cabeça. Respirava com dificuldade e a sua linda pele cor de pérola ganhava um tom cinzento apagado. O dragão percebeu de imediato que, assim que ela morresse, todas as suas forças o abandonariam, porque, com deuses ou sem eles, aquela luta não faria sentido sem Victoria.

Ashran tornou a atingi-lo, aproveitando o breve momento de desconcentração de Jack. Não precisava de lhe tocar para o magoar, nem sequer tinha de lhe lançar um feitiço ou utilizar a energia mágica como faziam os feiticeiros. Erguia a mão... e Jack sentia como se algo enorme e invisível lhe triturasse os ossos vezes sem conta. Deixou-se cair pesadamente no chão, muito perto de Victoria. Intuitivamente, estendeu uma asa para cobrir o corpo do unicórnio, como fizera uma vez anos antes. Ouviu o riso suave de Ashran, mas não lhe ligou.

- Lamento - sussurrou a Victoria. - Não consegui salvar-te, mas... amo-te, amo-te com toda a minha alma.

Ela não teve forças para responder. Fechou os olhos e deixou tombar a cabeça; Jack temeu que se tivesse ido para sempre. com um esforço soberano, pôs-se de pé para enfrentar Ashran outra vez. Decidira que, enquanto houvesse em Victoria um sopro de vida, ele continuaria a lutar...

O rei Amrin de Vanissar ia abrindo caminho pelo mato com a espada desembainhada, completamente desorientado. Há algum tempo que perdera a sua gente de vista. Tinha lutado contra fadas e silfos, contra guerreiros rebeldes e solitários bárbaros, mas começava a temer que Awa não se conquistaria por terra. A chave continuava a ser os sheks e o conjuro de gelo que estavam a lançar sobre o bosque. Portanto, talvez o mais sensato fosse bater em retirada e sair dali... se conseguisse encontrar a saída.

Por momentos, sentiu falta de Eissesh. Vivera muitos anos submetido ao poder do shek e sempre o odiara, mas agora apercebia-se do quão conveniente era não ter de tomar decisões, fazendo simplesmente o que Eissesh lhe ordenava que fizesse. Ergueu a cabeça para contemplar o céu sulcado de serpentes aladas. Qualquer uma delas podia ser Eissesh. De tão longe não tinha como a identificar.

Quando baixou outra vez o olhar, deparou com algo que o observava. Algo enorme, terrífico e letal, algo cujos olhos brilhavam sinistramente ao luar.

O sangue de Amrin gelou-se-lhe nas veias.

- Al... san? - conseguiu dizer.

A criatura grunhiu, mostrando duas impressionantes fileiras de dentes.

Shail corria como podia pelo bosque, a coxear... até que a muleta bateu numa raiz... e o feiticeiro caiu ao comprido.

Deixou-se ficar ali a tremer de raiva e de impotência, amaldiçoando o dia em que um shek lhe arrebatara a perna, sentindo-se incapaz e inútil. Nem mesmo a sua magia podia valer-lhe desta vez, pois só conseguia teletransportar-se para lugares que tivesse visto anteriormente e o conjuro de levitação durava apenas uns minutos, o que não chegava para alcançar Alexander.

Foi então que ouviu o grito de terror do rei Amrin. Levantou-se, alerta.

- Feiticeiro... - sussurrou de repente uma voz perto de si, sobressaltando-o.

Shail voltou-se. Ao seu lado estavam quatro silfos que o observavam com gravidade. Pareciam cansados e estavam feridos. As suas armas estavam manchadas de sangue.

- Há algo no bosque - disse um deles. - Não conseguimos controlá-lo. Não podemos impedi-lo. Precisamos da tua magia.

- Não consigo andar - disse Shail.

- Nós levamos-te.

Ouviu-se então outra voz a pedir auxílio: a de Denyal, o líder dos Novos Dragões.

Só obteve o grunhido do animal como resposta.

Ziessel e os seus companheiros sobrevoavam já o coração de Dingra quando lhe chegou a voz telepática de Zeshak:

- Falhei, Ziessel.

Ziessel sibilou com suavidade, sem dizer nada. A sua mente tinha acompanhado o seu rei enquanto lutava contra o dragão e, depois, quando Sheziss surgira inesperadamente para o enfrentar. Tinha acelerado o voo, instara o seu grupo a imprimir mais velocidade ao movimento das suas asas, mas sabia que não chegariam a tempo, que estavam demasiado longe.

- Sucumbi ao ódio - prosseguiu Zeshak - e agora o dragão vai enfrentar Ashran. É provável que a profecia se cumpra. Pode acontecer que sejamos derrotados. Se eu morrer, Ziessel, toma o meu lugar. Desejo que sejas a nova rainha dos sheks. Se o último dragão sobreviver a esta batalha, quero que o procures e acabes com a sua vida para que os sheks sejam livres. E, assim que o fizeres... guia o nosso povo até um lugar onde ele possa estabelecer-se em paz. Sei que é uma grande responsabilidade, Ziessel, mas também sei que podes triunfar onde eu fracassei.

Ziessel ouviu-o, aturdida.

- Assim será, meu senhor - conseguiu murmurar. Mal teve consciência da mensagem que Zeshak transmitiu às mentes de todos os sheks de Idhún: "Ziessel é a nossa nova rainha. Sigam Ziessel. Ziessei é a nova herdeira de Shaksiss, Ziessel é a senhora de todos os sheks. Sigam Ziessel. Sigam Ziessei."

Ela não prestou atenção. Estava suspensa do tom de voz de Zeshak, que era cada vez mais fraco... até que se extinguiu por completo.

A imponente figura do Necromante erguia-se diante de si mais poderosa e ameaçadora do que nunca. Jack desviou o olhar para não ter de o encarar. Atacou-o de novo e de novo caiu no chão, ofegante.

- Não te vais render? - perguntou Ashran.

Voltou então a cabeça para Victoria, erguendo a mão, e Jack percebeu logo o que pretendia fazer.

- Não! - conseguiu gritar antes de se pôr de pé com as suas últimas forças.

Mas Ashran não teve tempo de executar Victoria. Algo o atravessou pelas costas, algo gélido e cortante, e, quando voltou a cabeça, deparou com uns olhos azuis, não menos frios do que o fio da espada que o atravessava.

- Tens poder sobre o shek que há em mim, pai - disse Christian. Mas esqueceste-te de que também sou em parte humano.

Ashran semicerrou os olhos e ergueu a mão. Bastou-lhe aquele gesto para lançar Christian para trás, para longe de si. O rapaz caiu no chão com um grito, e Jack percebeu que o poder do Necromante o magoara a sério. Por instantes, receou que estivesse morto, mas pareceu-lhe vê-lo estremecer. Contudo, não recuperou a consciência.

Jack verificou horrorizado que a espada de gelo não tinha matado Ashran. O Necromante voltou-se para eles, ainda com a arma cravada no corpo e com os olhos reluzentes de cólera. Jack agiu por instinto: vomitou o seu fogo sobre ele.

Teve a satisfação de o ouvir gritar. Quando as chamas se dissiparam, viu, contudo, que só as mãos de Ashran ardiam; o corpo, o resto da sua pele estava intacto. Jack deixou escapar um rugido de frustração. Já quase não lhe restava fogo e sentia-se extenuado. Fazendo um último esforço, voltou a atirar-se sobre o seu inimigo. Derrubou-o com uma patada ou, pelo menos, foi o que lhe pareceu. É que depressa viu que ele não estava onde devia estar, tendo-o à sua direita, perigosamente perto de si.

- Já brincámos o suficiente - declarou.

Jack sentiu que não conseguia mexer-se mais. Virou a cabeça para Victoria... e descobriu, surpreendido, que o unicórnio já lá não estava.

Ashran também a procurou com o olhar... e encontrou-a mesmo ao seu lado.

Só que já não era um unicórnio. Tornara-se Victoria, uma rapariga humana, embora aquele buraco de trevas ainda lhe desfigurasse o rosto, marcando o lugar onde se erguera o longo corno em espiral.

Jack olhou para ela, abismado. Mal conseguia manter-se de pé, mas segura vá-se ao Báculo de Ayshel, que chegara misteriosamente às suas mãos. E havia algo nos seus olhos que provocava calafrios.

- Disseste que não lhe farias mal - disse a Ashran, muito séria. Era esse o acordo.

O Necromante não teve oportunidade de responder. Victoria ergueu o báculo e, com um movimento rápido e certeiro, enterrou a sua ponta no peito de Ashran, que lançou um grito e estendeu a mão para a rapariga, tentando agarrá-la; mas ela deu um passo atrás, afastando-se do seu alcance. Os dedos do Necromante não chegaram a tocar-lhe, mas enredaram-se na corrente do seu pendente, a Lágrima de Unicórnio, arrancando-o do seu pescoço. Victoria pareceu não reparar. A Lágrima de Unicórnio caiu no chão e o cristal estilhaçou-se contra as lajes de pedra.

A energia do báculo espalhou-se pelo corpo do Necromante, convulsionando-o. Também pareceu reactivar o poder de Haiass, que lançou sobre Ashran um lampejo de luz gélida, e uma camada de geada começou a cobrir-lhe as costas.

"É a minha vez", pensou Jack, exausto.

Inspirou fundo e atirou sobre Ashran as suas últimas labaredas de fogo de dragão.

O Necromante voltou a gritar, lançando desta vez um agonizante bramido de morte.

"Já está", disse Jack para si mesmo. "Vencemos."

Os silfos depuseram Shail numa clareira do bosque; de seguida elevaram-se um pouco no ar, armando os seus arcos e preparando as suas lanças, prontos para entrar em acção.

Também Shail estava preparado. Ou, pelo menos... era o que pensava, antes de ver a cena que o esperava.

A criatura que fora Alexander erguia-se, imponente e terrífica, sob o luar das três luas. À sua frente estava Denyal, a tremer, procurando mante-la afastada com a sua espada. Era evidente que o animal já tinha conseguido alcançá-lo, porque tinha o braço esquerdo destroçado.

Aos pés da criatura jazia um corpo ensanguentado. O corpo do rei Amrin de Vanissar.

- Por todos os deuses - sussurrou Shail, horrorizado. - Alexander, o que foi que fizeste?

Ao detectar a sua presença, o animal voltou-se para eles com um grunhido aterrador. Quando deu um salto na sua direcção, Shail, ainda perturbado, lançou o feitiço paralisante que tinha preparado, gritando a fórmula em idhunaico arcano. A voz tremeu-lhe um pouco, mas a circunstância, o medo e o desespero deram ao feitiço a força necessária.

A magia atingiu a criatura, mas, para horror de Shail, não a fez parar. Voltou a repetir o feitiço que, desta vez, conseguiu aturdi-la um pouco.

Os silfos esvoaçavam sobre o animal, atacando-o com tudo o que tinham, mas as lanças não se enterravam na sua pele e as flechas não pareciam incomodá-lo mais do que picadas de insectos. Aquilo que tinha sido Alexander voltou a saltar sobre Shail, e o jovem feiticeiro viu a morte e a loucura a brilhar nos seus olhos. Tinha de experimentar um feitiço mortal ou o animal matá-lo-ia.

com um nó na garganta, pronunciou um conjuro de ataque e lançou a energia mágica contra o animal, com todo o ímpeto de que foi capaz. A criatura caiu para trás, com um gemido agonizante. Levantou-se de novo. Estava furiosa.

- Não me obrigues a matar-te! - gritou Shail. - Alexander! Alsan! Ouve-me!

O animal grunhia. Nada na sua atitude indicava que tinha captado as palavras do feiticeiro.

Nesse momento chegou mais alguém à clareira. O animal voltou-se.

- Covan! - exclamou Shail ao reconhecê-lo. - Vai-te embora! Afasta-te dele!

O mestre-de-armas ficara a olhar para a criatura, horrorizado. O animal, com um grunhido, atirou-se sobre ele. Covan interpôs a sua espada entre ambos. Shail soube que só teria uma oportunidade.

"Pelo que mais amas, feiticeiro", disse a si mesmo. "Usa até à última gota da tua magia ou estaremos perdidos."

- Covan! - gritou ao cavaleiro. - Ele que não se mexa!

Covan tinha acabado de enterrar a espada no peito do animal, verificando, estupefacto, que com isso apenas conseguira enfurecê-lo ainda mais. Ainda por cima, ficara sem a arma. Retrocedeu lentamente, sem afastar os olhos da criatura.

Shail pronunciou então a fórmula do feitiço que imobilizava o animal no interior do seu amigo. A magia brotou, pura e vibrante, e transformou-se, através da fórmula arcana, no conjuro que o feiticeiro desejava.

O animal perdeu o fôlego, como se acabasse de receber um forte golpe nas costas, e deixou escapar um ganido. Sacudiu a cabeça e voltou-se para Shail, que se tinha deixado cair no chão, esgotado.

O feiticeiro sentiu que a criatura se aproximava, mas já não tinha forças para fugir. Ergueu a cabeça.

Por fim descobriu as feições de Alexander naquele rosto animal. Continuava a não ser completamente humano, mas o seu olhar era inteligente e racional, parecendo aturdido e preocupado.

- Shail? - grunhiu. - O que aconteceu?

O jovem feiticeiro abanou a cabeça, incapaz de dizer uma só palavra. Alexander olhou então à sua volta. Viu Covan, que o observava boquiaberto. Viu Denyal que, demasiado fraco para se ter de pé e apoiado contra o tronco de um árvore, segurava o que restava do braço que o animal lhe arrancara com uma mordidela ou com uma patada.

Depois, viu no chão o corpo sem vida do seu irmão.

- Não pode ser - sussurrou, aterrado.

Voltou-se para Shail, bruscamente, à espera de uma explicação. O feiticeiro não teve forças para falar, mas Alexander leu a verdade no seu rosto.

- Não pode ser - repetiu. - Não! - gritou, e a palavra terminou numa espécie de uivo.

Fitou-os a todos, alternadamente, como um animal encurralado, torturado pelo horror e pela culpa.

Então deu meia-volta e desatou a correr, embrenhando-se no mato.

- Alexander! - chamou-o Shail. Procurou pôr-se de pé, mas não conseguiu. Praguejou baixinho.

Naquele momento, irromperam duas pessoas na clareira.

- Shail! Shail! És tu?

Era a voz de Kimara. Shail quis responder, mas ela já o tinha visto e não lhe deu tempo.

- Shail! - disse ela atabalhoadamente, falando tão depressa que mal conseguiram entendê-la. - EstefeiticeirovemdeKazlunnlDizquetrazumamensagemdeJack!EleeVictoriaestãobemetinhampensadoenfrentarAshrannestamesmanoite! - Inspirou fundo e procurou acalmar-se um pouco para dizer: - Jack está vivo!

Shail não retorquiu. Enterrou o rosto nas mãos e os seus ombros tremeram num soluço silencioso.

- Estou preparada - disse Allegra.

- Também eu - respondeu Qaydar, olhando-a nos olhos, muito sério. - Sabes o que estás prestes a fazer?

- Sim - sorriu ela.

Fez-se um breve silêncio.

- Devia impedir-te, Aile Alhenai.

- Eu sei. Mas não o farás, Qaydar, o Arquifeiticeiro. Não o farás, porque sabes que é a única solução.

Qaydar não respondeu.

- Se não sair desta - prosseguiu a feiticeira -, quero que me jures pelo que te é mais sagrado que respeitarás Victoria.

O Arquifeiticeiro ergueu a cabeça. Os seus olhos brilharam por um breve instante.

- Ela é o último unicórnio. A última esperança da Ordem Mágica. Se ainda estiver viva...

- Se ainda estiver viva, deve poder entregar a magia a quem ela quiser. A primeira coisa que nos ensinam quando entramos na escola de feitiçaria, Qaydar, é que os unicórnios devem ser livres...

- Para que a magia seja livre - completou Qaydar. - Eu sei.

- Jura-me, Qaydar. Quero ter a certeza de que estamos a criar um mundo melhor para ela. Um mundo onde o último unicórnio possa ser livre para outorgar o seu dom.

- Juro, Aile - disse Qaydar após uma breve pausa.

A fada assentiu e sorriu com doçura. Depois usou o conjuro de levitação para se elevar várias dezenas de metros acima da flor que lhes servia de refúgio. Concentrou-se, procurando ignorar as serpentes que a tinham detectado e que se abatiam sobre ela, sibilando de fúria. Permaneceu ali uns segundos, suspensa no ar sobre as copas das árvores de Awa, com os cabelos a flutuar à sua volta.

Abriu os braços. Estendeu os dedos e afastou-os ao máximo.

Não viu a violenta coluna de fogo que Qaydar gerou momentos depois e que lançou na sua direcção. Não quis vê-la, não quis olhar para ela, porque os feéricos temiam o fogo quase tanto como os sheks e sabia que isso a faria perder a concentração. Mas estava ali, pressentia-a.

Quando as chamas alcançaram o seu corpo, Allegra lançou a cabeça para trás e gritou a fórmula do conjuro.

O fogo espalhou-se através dela, percorrendo os seus braços, as suas mãos e os seus dedos e, amplificado pela força da sua magia, espalhou-se de forma semelhante às ondas de um lago quando se atira uma pedra, cada vez mais longe, cada vez mais longe...

O anel de fogo continuou a expandir-se até cobrir todo o céu como uma imensa cúpula incandescente.

Os sheks que estavam perto de Allegra arderam instantaneamente. Os que viram o fogo aproximar-se deram meia-volta e tentaram fugir...

Muitos deles não conseguiram e morreram, entre silvos e assobios aterrorizados, enquanto os seus corpos de gelo se desfaziam entre as chamas como gotas de geada.

O incêndio do céu continuou a espalhar-se e a dispersar-se, enquanto o corpo de Allegra, a feiticeira feérica, a Senhora da Torre de Derbhad, se consumia entre as chamas e alimentava, por sua vez, a desgraça e derrota dos sheks.

Jack e Victoria observaram, exaustos, como o corpo de Ashran sucumbia envolto num manto de fogo, gelo e luz. Quando as suas últimas cinzas se desvaneceram no ar, uma sombra ergueu-se sobre eles, uma sombra que parecia feita de nada e feita de tudo, o frio mais desumano, a escuridão mais desoladora. A sombra pareceu observa-los por um momento, e não teriam sabido dizer se lhes transmitia o ódio mais exacerbado ou se se ria deles. Em qualquer dos casos, não era uma sensação agradável. Victoria deixou escapar um pequeno grito de terror.

Então, a sombra dissipou-se.

Sobreveio um momento de silêncio, enquanto ambos recuperavam a voz.

- Oh, o que foi que fizemos? - murmurou então Victoria. Estremeceu e caiu no chão como uma folha no Outono. Jack pegou nela com uma garra e fitou-a, ansioso. Victoria sorriu debilmente, mas no seu rosto havia uma profunda marca de medo.

- Derrotámos Ashran - disse Jack.

- Libertámos... libertámos o deus negro no mundo, Jack - balbuciou ela.

Ele ficou petrificado.

- O quê?

- Ninguém... ninguém pode vencê-lo, não nós - disse Victoria com esforço. - E agora... se não tem corpo... como vamos travá-lo?

Jack calou-se horrorizado. Victoria sorriu-lhe de novo. Jack bebeu daquele sorriso, procurando não reparar no tremendo buraco da sua testa.

- Mas... o importante... - prosseguiu ela - é que vocês estão vivos... os dois.

Sorriu outra vez... e perdeu os sentidos.

Ziessel sentia que a cabeça lhe ia rebentar. Não parava de receber mensagens telepáticas dos sheks, de muitos sheks, mensagens de aviso, de horror, de morte... mensagens caóticas que lhe custava muito assimilar.

"Zeshak morreu."

"Ashran morreu."

"O céu está em chamas."

"Estamos a ser derrotados."

"O que fazemos? O que fazemos?"

"Estamos a morrer, estamos a morrer."

"O fogo..."

"Nós..."

"Não..."

Ziessel silvou, tentando ordenar toda a informação. Desejou com todas as suas forças que as vozes se calassem... e então calaramse.

Não foi exactamente assim. As vozes continuavam a soar, mas houve outra, gelada, obscura e autoritária, que soou por cima de todas elas, uma voz que não podia ser ignorada.

- Ziessel - sussurrou a voz.

- Quem és tu? - perguntou ela, estremecendo de terror sem saber porquê.

- Tu sabes quem sou - foi a resposta. E Ziessel soube.

- Ashran - compreendeu, aturdida. - Não. Ashran. Sim, és Ashran, mas és...

- Muito mais.

Ziessel calou-se. Estava tão confusa que não lhe ocorria o que dizer. Então, os cicios dos sheks que a acompanhavam no seu voo em direcção a Drackwen alertaram-na de que algo estava a acontecer. Voltou-se e viu que na linha do horizonte o céu estava a arder. E não era o primeiro amanhecer. Deixou escapar um suave sibilo de pânico quando percebeu que as chamas se expandiam na sua direcção com tanta rapidez que não tardariam a alcançá-los.

- Ouve-me, Ziessel - disse a voz. - Perdemos esta batalha, mais uma batalha, mas não a guerra. Não vou permitir que sucumbam entre as chamas. Têm de partir.

- Para onde? Para Umadhun?

- Não, Ziessel. Tu tens a chave. És a nova rainha dos sheks. Tens um poder que Zeshak possuía, porque eu lho outorguei. O mesmo poder que possuía o seu filho...

o filho de Ashran... até que eu lho arrebatei. Zeshak escolheu-te como sucessora... e eu entrego-te os seus poderes.

Ziessel compreendeu. No seu gélido coração de shek acendeu-se uma luz de esperança.

De repente ouviu-se um estrondo... e, sem razão aparente, as paredes começaram a ruir. O chão tremeu.

"A torre está a cair", pensou Jack. "Tenho de a tirar daqui."

Olhou à volta. Aquela divisão não tinha janelas. Compreendeu que a melhor forma de sair de lá era a voar e lembrou-se da sala que se abria para a varanda, onde tinha deixado Zeshak e Sheziss a lutar. com um pouco de sorte... a Porta para Limbhad continuava aberta.

Transformou-se de novo em humano. Ser dragão consumia-lhe muitas energias e ia precisar delas para o voo. Pegou em Victoria, agarrou em Domivat e no Báculo de Ayshel, e dirigiu-se a Christian.

O shek estava moribundo, mas continuava vivo. Jack abanou-o sem contemplações.

- Acorda! Isto está a cair!

Christian não reagiu. Jack esteve tentado a deixá-lo ali, mas finalmente optou por aproximar Domivat do seu rosto inerte. O calor do fogo alertou todos os seus sentidos de shek e fê-lo erguer-se e retroceder por instinto.

- Temos de ir! - apressou-o Jack. - Pega em Haiass e levanta-te, nem que seja a última coisa que faças!

Christian olhou para ele, ainda um pouco atordoado, mas levantou-se, vacilante. Esteve prestes a cair e Jack teve de o amparar. O shek conseguiu chegar até à sua espada. Não reparou no monte de cinzas que era tudo o que restava de Ashran. Mecanicamente, arrastou-se atrás de Jack e de Victoria, para fora da sala.

Aquele lanço de escadas foi o mais longo das suas vidas. Jack avançava à frente, a coxear, levando Victoria. Christian seguia-os, apoiando-se na parede, demasiado fraco para se manter de pé por si mesmo, enquanto a Torre de Drackwen tremia, como que sacudida por um sismo, e tudo à sua volta parecia vir abaixo.

Atravessaram a última porta momentos antes de o arco da entrada desabar. Christian saltou para a frente para evitar os blocos de pedra, mas as pernas falharam-lhe e caiu.

Um corpo amparou a sua queda. Um corpo enorme e escamoso.

Christian ergueu-se a custo e retrocedeu, receoso.

Mas aquele shek estava morto, tal como o que jazia ao seu lado. As duas grandes serpentes aladas tinham sucumbido juntas, lutando uma contra a outra, num último abraço de amor e de morte.

Christian olhou para eles, aturdido. Algo lhe oprimia a alma e, por alguma razão, o shek que habitava dentro de si derramava lágrimas amargas. Ergueu a cabeça e viu Jack; surpreendeu-se ao ver que também ele chorava. Soube, de alguma forma, que não chorava a morte do rei dos sheks, mas sim da fêmea que o matara e que morrera com ele.

- Chamava-se Sheziss - disse-lhe Jack, limpando as lágrimas com as costas da mão. - Era...

- Não digas - cortou Christian, com esforço. - Sei o que vais dizer... mas não digas. Agora não.

Jack assentiu. Recompôs-se e avançou a coxear até à varanda. Christian hesitou um pouco, mas por fim seguiu-os. Juntou-se a Jack. Os dois viram, surpreendidos, que na linha do horizonte, a este, o céu parecia envolto em chamas, chamas que se expandiam rapidamente até eles.

- Que raio...? - começou Jack, mas não pôde continuar, porque a torre tremeu uma vez mais e o tecto da sala que acabavam de abandonar desmoronou-se atrás deles. Jack voltou-se com brusquidão.

- Sheziss! - gritou.

Deparou com o olhar cansado de Christian.

- Deves ser - comentou, com as suas últimas forças - o primeiro dragão a chorar a morte de um shek... desde o início dos tempos.

Também os seus olhos estavam húmidos. Jack não soube o que responder.

O olhar de Christian toldou-se. Jack estendeu o braço rapidamente e conseguiu apanhá-lo antes que caísse. Tinha voltado a perder os sentidos.

Jack praguejou em voz baixa. Transformou-se em dragão para poder carregar os dois, Christian e Victoria, e abriu as asas...

No entanto, virou-se de novo. Algo o impedia de abandonar a torre, e não era só o facto de Sheziss ter morrido lá.

"O cono de Victoria", pensou.

Não sabia se, recuperando o corno, os feiticeiros poderiam voltar a inseri-lo no seu lugar. Também não sabia se continuava ali, na torre, ou se Ashran o tinha enviado

para outro lugar. Fosse como fosse...

Uma última sacudidela da torre fê-lo decidir-se. Não tinha tempo para o ir buscar. O chão da varanda abateu-se debaixo dos seus pés.

- Mas não podemos passar - disse Ziessel, angustiada. - Não podemos passar.

- Podem passar - respondeu a voz. - Podem passar, porque agora estou aqui para quebrar o selo. Antes estava preso num corpo, tinha muitos limites... agora já não os tenho. E enquanto isto continuar assim, Ziessel, enquanto for livre, antes de eles virem, posso quebrar esse selo.

Ziessel continuava a voar em círculos, indecisa. O fogo aproximava-se rapidamente vindo da linha da aurora.

- Não podemos passar - sussurrou.

- Podem passar - repetiu a voz. - Mas tem de haver alguém a passar primeiro e que se sacrifique pelos outros. Acredita em mim, Ziesseí. O sacrifício não será em vão. Vão, vão e aguardem o meu sinal. Estarei à vossa espera.

Ziessel deu mais duas voltas. Depois armou-se de coragem e, com um silvo, atravessou...

Jack elevou-se no ar no último momento, levando consigo Christian e Victoria. Ouviu um estrondo atrás de si e voltou-se mesmo a tempo de ver que uma parte do muro se abatia sobre eles. com as suas últimas forças, o dragão bateu as asas desesperadamente, evitando os grandes blocos de pedra que ameaçavam esmagá-los aos três. Voou na direcção das três luas, afastando-se daquele lugar maldito; mas não se atreveu a elevar-se muito, porque o fogo que vinha do oriente continuava a incendiar o céu à sua passagem.

Então viu cravada no firmamento, desafiando as chamas, uma enorme espiral luminosa que rodava sobre si mesma, como uma galáxia em miniatura. "O que é aquilo?", pensou. "Parece... uma Porta."

A Porta para Umadhun? Será que os sheks estavam a regressar à sua dimensão, agora que Ashran tinha sido destruído? Mas... a Porta para Umadhun não ficava nos Picos de Fogo? Ou será que havia outra Porta?

A espiral começou a girar mais depressa; Jack viu que um shek se precipitava em direcção ao seu centro, fugindo do fogo, com um silvo de fúria e terror. O seu corpo desintegrou-se no embate. Jack arquejou, surpreendido.

Então a espiral mostrou uma imagem; durou apenas um momento, mas ficou gravada na retina de Jack e no seu coração. Uma paisagem estrelada, iluminada por uma só lua.

A imagem desapareceu tão subitamente que Jack pensou que a tinha imaginado.

Viu que outros sheks, perto de vinte, seguiam o primeiro e penetravam na espiral. Desta vez parecia que passavam ilesos.

Um estrondo nas suas costas fê-lo esquecer-se do fenómeno; voltou a cabeça e viu que a Torre de Drackwen estava em chamas e que o seu calor se expandia com bastante rapidez. Compreendeu que ainda estavam em perigo.

Lutou por voar mais depressa, enquanto, atrás de si, a Torre de Drackwen ardia num inferno de chamas. Encolheu as garras para estreitar os corpos de Christian e Victoria, num esforço para os proteger a ambos.

Mas as forças abandonavam-no e a consciência escapava-se-lhe lentamente. Por fim, quando se precipitou sobre as copas mortas de Alis Lithban, só teve tempo de rodar sobre si mesmo para cair de costas e amparar a queda aos dois frágeis corpos que protegia. Sentiu que partia uma asa e rugiu de dor. Christian e Victoria rebolaram suavemente sobre o seu corpo, sem se magoarem. Sentiu que resvalavam do seu peito e estendeu uma garra para os segurar, mas escorregaram-lhe e caíram no chão.

"Victoria", pensou o dragão, ainda atordoado pela queda. Sentiu-a fria junto ao seu corpo. Demasiado fria.

"Victoria, não."

Quis abraçá-la para lhe transmitir parte do seu calor, mas era demasiado grande. Transformou-se de novo em humano. Puxou-a para si, desajeitadamente, e estreitou-a com todas as suas forças.

Ela não reagiu.

Demasiado fria.

Jack percebeu que Christian se arrastava com esforço até eles e estendia o braço para rodear a cintura de Victoria. Jack quis impedi-lo, mas só teve forças para pensar "Vai-te embora. Estás frio", antes de perder os sentidos definitivamente.

 

                                     CONVALESCENÇA

- Fria - disse Shail, estremecendo. - Tão fria. E com aquela coisa horrível na testa...

A voz quebrou-se-lhe. Zaisei abraçou-o, tentando consolá-lo. Ele correspondeu ao seu abraço.

Estavam numa das varandas da Torre de Kazlunn, apoiados na balaustrada, apenas três pisos abaixo do terraço onde Jack conversara com Sheziss acerca dos deuses, do destino e das profecias; onde, dias atrás, Victoria tinha reiterado o seu propósito de lutar por Jack e por Christian. Pelos dois.

Mas nem Shail nem Zaisei sabiam de nada disto, porque até então, quase duas semanas após a batalha de Awa, o que acontecera entre os três jovens continuava a ser um mistério para toda a gente.

Zaisei tinha chegado à torre apenas umas horas antes. Os sobreviventes da Resistência, dos Novos Dragões, da Ordem Mágica... os que restavam, em suma, daqueles que se tinham oposto a Ashran estavam a reunir-se naquela torre em forma de corno de unicórnio, que voltava a pertencer, uma vez mais, aos feiticeiros que rendiam culto aos Seis. Tinham vencido, sim. Mas aquela vitória tinha um sabor muito amargo, especialmente para quem tinha perdido alguém querido.

- Como é que souberam que estavam em Drackwen? - sussurrou Zaisei. - Como é que souberam que Jack estava vivo?

- Chegou um mensageiro enviado por ele. Um feiticeiro dos que antes tinham servido Ashran. Infelizmente, chegou demasiado tarde... para muitas coisas. No entanto...

No entanto, houve quem tivesse reparado que os sheks começaram a dispersar antes mesmo de Allegra levar a cabo o seu prodigioso plano de pegar fogo ao céu, sacrificando a sua vida na tentativa. Se Jack e Victoria tinham enfrentado Ashran naquela noite, existia ainda uma pequena possibilidade de que tivessem saído vencedores.

No meio do caos, da incredulidade, da desconfiança e da alegria transbordante perante a retirada dos sheks, Qaydar mantivera a cabeça fria e recrutara um grupo de feiticeiros para que o acompanhassem à Torre de Drackwen, à procura de Jack e de Victoria.

- No início não soube se devia ou não ir com eles - explicou a Zaisei. - Não queria deixar Alexander à solta pelo bosque... Mas as dríades disseram-me que se tinha ido embora de Awa e que ia em direcção ao Norte. Talvez tenha feito mal, mas... naquele momento senti que tinha de ir buscar Jack e Victoria, que tinham estado sozinhos demasiado tempo. Precisava de saber se ainda estavam vivos...

Calou-se por um momento. Zaisei esperou, pacientemente, que continuasse a falar.

- Encontrámo-los aos três em Alis Lithban - prosseguiu o feiticeiro. - Não muito longe da Torre de Drackwen, que está reduzida a escombros não sabemos bem porquê. - Fez uma pausa. - Jamais poderei esquecer esse momento.

Respirou fundo, perdido nas suas lembranças.

Jack, Christian e Victoria.

Os três, sujos, feridos, pálidos e inconscientes, jaziam no chão, muito juntos. Victoria entre os dois rapazes, que a abraçavam como se a protegessem. O rosto da rapariga repousava sobre o peito de Jack, que, deitado de barriga para cima, rodeava os ombros dela com o braço. Do outro lado, Christian, encolhido sobre si mesmo, envolvera a cintura de Victoria como se temesse que ela fosse desaparecer a qualquer momento.

Shail ficara por instantes a olhar para eles, comovido. Nessa altura, já todos sabiam que Ashran, o Necromante, fora destruído e que tinham sido eles, a tríada, os heróis da profecia, a consegui-lo. Acabavam de salvar Idhún e, contudo, pareciam tão frágeis...

O Arquifeiticeiro procurara separar Christian de Victoria, mas Shail impedira-o com a muleta e olhara-o nos olhos, muito sério. E Qaydar tinha-os deixado juntos.

Os feiticeiros acordaram primeiro Jack. O rapaz pestanejara, aturdido, e a primeira coisa que fizera fora virar a cabeça para Victoria. Mas vira apenas um emaranhado de cabelo castanho-escuro. Erguera um pouco a mão para acariciar os seus cabelos.

De seguida, os feiticeiros acordaram Christian. O jovem arquejara e arregalara os seus olhos azuis, como se acabasse de sair de um pesadelo.

Erguera-se de repente, assustando os feiticeiros. Quando eles tentaram afastá-lo de Victoria, debatera-se com a fúria de um felino selvagem.

Shail tinha-lhes pedido que o deixassem em paz. Christian olhara para ele como se não o reconhecesse. Apesar de parecer mais desperto que Jack, ainda estava confuso e agia por instinto. Como se tivesse medo de a perder, tinha-se arrastado de novo até Victoria, a tremer.

Shail também tremia. A rapariga tinha a cara escondida no ombro de Jack, pelo que não se conseguia ver a sua expressão. Os feiticeiros abanavam-na e ela não acordava.

Um deles atrevera-se por fim a virar-lhe a cabeça.

Quando o luar iluminou o seu rosto, Shail deixara escapar uma leve exclamação de horror.

A rapariga estava pálida, muito pálida, tanto que o seu semblante parecia de porcelana. E no centro da sua testa, entre os dois olhos, havia um buraco horroroso.

Não era um buraco físico nem uma ferida da qual brotasse sangue. Era um círculo escuro onde não havia nada, uma espécie de cerco de trevas, um orifício de escuridão.

Na verdade, não se tratava simplesmente de não haver ali nada, mas sim de ser evidente que faltava ali alguma coisa, algo que devia estar e não estava, como um dedo amputado numa mão, como a água num poço vazio. E no lugar desse "algo" encontrava-se esse estranho buraco, esse "nada" que era muito mais do que "nada": era a expressão de um ser, um corpo, uma alma incompletos.

- Tinham-lhe arrancado o corno - explicou Shail, a meia-voz.

- Deuses... - sussurrou Zaisei, aterrada.

- Alguém disse que estava morta. Não me lembro quem foi; talvez Yber, ou então o Arquifeiticeiro, ou quem sabe algum outro feiticeiro.

- Ergueu a cabeça para olhar para Zaisei nos olhos. - Mas eu soube que não estava. Pela forma como eles a abraçavam. Jack e Christian tinham-se agarrado a Victoria como se procurassem protegê-la de qualquer

mal, incluindo dos nossos olhares insistentes. Eles sabiam que estava viva. E por isso eu também soube.

- E trouxeram-na para cá. Shail suspirou.

- Era o mais óbvio, não é? A Torre de Kazlunn, o grande corno de unicórnio. Provavelmente pensámos que aqui poderíamos cuidar melhor dela ou talvez quiséssemos devolver-lhe o que tinha perdido. Abanou a cabeça, preocupado. - Seja como for, é notório que não fomos bem sucedidos. Desde então

que não reage, debate-se entre a vida e a morte. Qualquer outro unicórnio já teria morrido, e não tenho dúvida de que a sua alma de unicórnio está fatalmente ferida e talvez não consiga recuperar. Mas a sua alma humana continua a lutar pela vida... por manter com vida esse corpo que as sustenta às duas.

- O que irá acontecer se a alma do unicórnio abandonar o seu corpo? - perguntou Zaisei em voz baixa.

- Arrastará consigo a alma humana e Victoria morrerá. Fez-se um longo silêncio. Então, Zaisei perguntou:

- Foi Ashran que lhe arrancou o corno? Como pôde fazê-lo?

- Ainda não sei. E Jack não quer falar disso.

- Jack... está bem?

-Jack está bem. Esgotado, mas bem. As suas feridas estão a cicatrizar rapidamente, e as do shek também.

Pronunciou as últimas palavras com um tom de incerteza.

- O shek está aqui - sussurrou Zaisei em voz baixa.

- Trouxemo-lo connosco, sim. E não penses que foi fácil tomar essa decisão. Ainda não sei o que esperar dele. Vi com os meus próprios olhos como matava Jack... mas, agora, Jack está vivo e Ashran morto. Além disso, Jack diz que Christian também matou Gerde e recuperou a Torre de Kazlunn. Não entendo a que é que esse rapaz anda a brincar, não sei de que lado está a sua lealdade nem o que quer exactamente, mas há muito tempo que deixei de duvidar dos seus sentimentos por Victoria. Foi por isso que decidimos trazê-lo, para que esteja perto dela. Qualquer coisa que a ajude a voltar para nós será bem-vinda. Depois... logo veremos.

- Onde está agora? Dá-se bem com Jack?

- Anda por aí. É difícil de controlar, mas nunca se afasta muito do quarto de Victoria. Creio que está sinceramente preocupado com ela e, em relação a Jack... não sei se se dão bem ou não. Poderia dizer-se que se toleram. Ou que estão demasiado cansados para se porem a lutar. Pedi a Jack que estivesse de olho nele, por via das dúvidas, mas, dadas as circunstâncias, é pedir-lhe demasiado. Não quer separar-se de Victoria nem por um segundo.

Zaisei desviou o olhar.

- A Mãe queria falar com o shek - disse.

- com Christian? Para quê? Espera... - Fitou-a, perplexo. - A Mãe está aqui?

- Sim, e o Pai também. Não to queria dizer para não te preocupar mais. Chegámos todos juntos, e devem estar neste preciso momento a falar com Qaydar.

- Vieram por causa de Victoria? Zaisei hesitou.

- Em parte. Mas não é só isso. Os Oráculos... parecem ter enlouquecido.

Shail olhou para ela, surpreendido.

- Os Oráculos? Já recuperaram o Oráculo de Awa?

- Pensávamos que não, mas... as vozes estão a pronunciar-se. As vozes do Oráculo de Gantadd e as do Oráculo de Awa. Falam tanto... tão alto e tão depressa que é difícil entender o que dizem, ou pelo menos foi isso que os ouvintes nos comunicaram.

Shail assentiu. Em cada um dos templos principais das Igrejas havia uma sala do oráculo, uma divisão abobadada tenuemente iluminada por suaves luzes de cores misteriosas e variadas. Em cada uma dessas salas ecoavam vozes. Shail não sabia como é que os sacerdotes conseguiam que a voz dos Oráculos se fizesse ouvir nos edifícios que construíam para esse efeito, porque era um segredo zelosamente guardado. Mas o certo era que soavam vozes, ou fragmentos de vozes, sussurrantes, etéreas, enigmáticas, tão distantes que mal se conseguiam perceber; e, das vezes em que se escutavam com mais clareza, a sua mensagem era difícil de interpretar. Para isso havia os ouvintes: sacerdotes e sacerdotisas treinados para ouvir a voz dos Oráculos e para anotar as palavras que conseguissem decifrar, separando o sussurro incoerente das mensagens divinas autênticas. Os ouvintes permaneciam na sala noite e dia, consecutivamente, a escutar a voz dos deuses. Quando a mensagem era tão clara que não deixava dúvidas, quando todos os ouvintes nos três Oráculos registavam palavras semelhantes, então formulava-se uma profecia... como a que unia o destino de Jack e Victoria, e, mais tarde, de Christian, à vida e morte de Ashran, o Necronumte.

- Queres dizer que...?

- Que os Oráculos se estão a exprimir aos gritos, Shail, e isso nunca aconteceu em toda a nossa história. As vozes ecoam com tanta força que os ouvintes não as suportam. Pela primeira vez desde que se criaram os Oráculos, não há ninguém a ouvi-los... Três dos ouvintes ficaram surdos e outros dois enlouqueceram. E o sexto está tão aterrorizado que não quer voltar a aproximar-se da sala.

- Por todos os... - sussurrou Shail.

- O Pai diz - prosseguiu Zaisei - que não é que nos estejam a falar aos gritos; os deuses é que estão muito mais perto de nós do que alguma vez estiveram e por isso ouvimos as suas vozes com tanta clareza. Shail, o que está a acontecer? Por acaso os deuses estão a recompensar-nos por termos derrotado Ashran e os sheks? Se é assim, porque é que as suas vozes parecem tão terríveis?

Shail abanou a cabeça.

- Não sei, Zaisei, mas não me agrada nada. Seja como for - acrescentou, olhando para ela, muito sério -, se os Veneráveis vieram consultar Qaydar, estão a falar com a pessoa errada. Se há alguém que pode contar-nos o que se passa com os deuses, são Jack e Christian... e Victoria, caso estivesse em condições de falar. Foram eles que fizeram cumprir a profecia.

Zaisei assentiu, pensativa.

- É por isso que Gaedalu quer falar com Christian? - indagou Shail.

- Creio que não. Mas, de qualquer forma, o que dizes faz sentido. Ergueu a cabeça, decidida. - Onde posso encontrar Jack?

Shail esboçou um sorriso cansado.

- com Victoria. Onde mais?

- Leva-me até ele.

Minutos depois, entravam ambos no quarto onde Victoria se debatia entre a vida e a morte. Junto dela, diversos feéricos, dois feiticeiros e algumas sacerdotisas de Wina pareciam estar a realizar um ritual com a jovem. A rapariga, alheia a tudo, jazia sobre a cama, pálida, com aquele buraco de trevas na testa. Só ao observá-la com muita atenção se podia perceber que o seu peito subia e descia muito lentamente, numa respiração tão fraca que era apenas um sopro de vida.

Ao seu lado, ignorando os feéricos e o seu ritual curativo, estava Jack, sentado numa cadeira com o rosto entre as mãos, os ombros descaídos e ar cansado. Ergueu a cabeça ao ouvi-los entrar, e Shail achou-o muito mais sério e maduro do que nunca. A palidez e as olheiras denotavam que estava sem dormir há algum tempo.

Mas Zaisei detectou algo mais. Além da dor, da angústia, do medo e da incerteza próprios de quem está prestes a perder um ser amado, o coração de Jack transbordava de culpa. A celeste compreendeu de imediato que, por alguma razão, Jack se sentia responsável pelo estado de Victoria. No entanto, não fez perguntas. Os celestes liam com facilidade o coração das outras pessoas, mas sabiam que deviam guardar esse conhecimento para si, de forma a preservar a sua privacidade. E o sofrimento de Jack era demasiado intenso e profundo para o obrigar a partilhá-lo, se ele não quisesse.

Shail deixou cair uma mão sobre o ombro do rapaz, procurando dar-lhe apoio.

- Como está?

- Na mesma - murmurou Jack. - Pelo menos, não está pior. Pelo menos continua aqui, o seu coração continua a bater...

Shail respirou fundo. Também a ele lhe custava olhar para Victoria no rosto, a sua pequena Victoria. Tinha-a conhecido quando era apenas uma criança, tinha-a visto crescer e converter-se numa mulher... para depois permitir que Ashran lhe arrancasse algo tão precioso para ela. "Onde estava eu entretanto?", perguntou-se, com amargura. Shail perdera uma perna... mas Victoria ficara sem o seu corno, a própria essência do unicórnio que habitava nela. Alexander tinha perdido uma parte muito importante de si enquanto ser humano; e embora conseguisse ir recuperando, nada voltaria a ser como antes para ele, não depois de ter assassinado o seu próprio irmão. Enquanto Allegra... Allegra dera a sua própria vida. E Jack não perdera também a vida? Shail olhou para ele, com uma certa apreensão. Tinha-o visto morrer. Ninguém teria conseguido sobreviver a uma ferida como aquela, a uma queda como aquela. Seria realmente Jack?

Observou-o atentamente e viu que os seus olhos verdes, embora cansados, não se afastavam de Victoria. Então não teve mais dúvidas. Só Jack seria capaz de olhar para Victoria daquela maneira.

Apertou-lhe suavemente o ombro.

- Se tiveres um momento... Zaisei gostaria de falar contigo. Jack voltou-se para olhar para a celeste. Pareceu reparar nela pela primeira vez.

- Ah, olá - murmurou. - Fico contente por voltar a ver-te.

- Também eu - sorriu a celeste. - Todos te dávamos como morto, é um milagre que estejas bem.

Jack inclinou a cabeça, incomodado, sem dizer nada. Shail sabia de antemão que não lhes iria contar como tinha regressado do reino dos mortos. Não o contara a ninguém, excepto, provavelmente, a Victoria... e talvez a Christian.

"Se Alexander estivesse aqui", pensou, "talvez se abrisse com ele."

- Tens um momento? - insistiu o feiticeiro.

Jack olhou para Victoria, indeciso, mas acabou por assentir. Levantou-se com ar resoluto, acariciou com suavidade a sua face fria e pálida e saiu do quarto, atrás de Shail e Zaisei. Ao chegar ao corredor, recostou-se contra a parede, junto à porta, dando a entender que não pensava ir mais longe.

Após uma breve hesitação, Zaisei contou-lhe tudo o que se referia à nova voz dos Oráculos. Enquanto isso, Shail observava atentamente Jack e verificou que o rosto do rapaz se ensombrava por momentos. Não achou que fosse um bom sinal.

Quando Zaisei acabou de falar, Jack ergueu-se, decidido.

- Reunam os Veneráveis e os feiticeiros de categoria mais elevada. Também quero que Covan e Denyal estejam presentes.

- Não estão na torre - disse Shail. - Foram caçar sheks. Jack semicerrou os olhos num esgar de raiva.

- Pior para eles - disse, sombrio.

Deu meia-volta e afastou-se corredor fora.

- Onde vais?

- Procurar Christian - foi a resposta. - Ele também tem de estar presente.

- Não preferes que o procuremos nós?

- Não o encontrariam.

Quando o perderam de vista, Shail e Zaisei entreolharam-se.

- Mudou muito - comentou o feiticeiro, preocupado.

- Todos mudámos - disse Zaisei com suavidade.

Tomou-lhe a mão e Shail apertou-a com carinho. E assim, de mãos dadas, foram fazer o que Jack lhes pedira.

Punha-se já o primeiro dos sóis quando se reuniram todos num dos salões da Torre de Kazlunn. A Mãe não estava muito disposta a partilhar com todos a informação sobre os Oráculos, mas Ha-Din e Jack insistiram que esta se tornasse pública. Quando as mensagens telepáticas de Gaedalu e a voz de Ha-Din acabaram de contar o que estava a acontecer, Jack pôs-se de pé, apoiou as mãos na mesa e dirigiu a todos um olhar penetrante. Os seus olhos detiveram-se por um momento em Kimara que, apesar de não ser uma feiticeira de categoria elevada, estava presente na reunião a pedido do próprio Jack.

O encontro de ambos, vários dias antes, tinha sido sincero e emotivo. Kimara chegara à Torre de Kazlunn pouco depois de Jack recuperar a consciência. Os dois tinham-se olhado por um momento e fundido num abraço quente. Jack compreendera então, melhor do que nunca, que gostava da semi-yan como uma amiga, como uma irmã talvez, mas nada mais. Deixara que ela chorasse durante bastante tempo agarrada a ele, feliz por o ter recuperado. Abraçara-a para a consolar e, quando a jovem se afastara para secar os olhos e o fitar novamente, sorrira-lhe com carinho. Kimara tinha percebido que ele não a amava. Mas a alegria de saber que continuava vivo, quando há tanto tempo chorava a sua morte, compensava qualquer desengano da sua parte.

Agora estava ali, na Torre de Kazlunn, à espera de saber o que sucederia a Victoria. Teoricamente, deveria prosseguir com os seus estudos de magia; mas todos os feiticeiros estavam demasiado preocupados em encontrar o modo de salvar o último unicórnio, portanto, para já não tinha muito que fazer. Às vezes sentia falta dos dragões artificiais de Tanawe, lembrava-se de Kestra e prometia a si mesma que, embora o seu futuro estivesse ligado à magia, voltaria a pilotar dragões.

- O que vos vou contar - começou Jack - é difícil de compreender e, sobretudo, de assimilar. Não vos peço que acreditem logo em mim. Também não vos peço que encontrem um sentido para tudo isto. Só preciso que se lembrem bem das minhas palavras e que pensem bem nelas.

Alguns franziram o sobrolho ao ouvir um rapaz tão jovem a falar tão autoritariamente; mas havia algo na voz de Jack, ou talvez na sua expressão, serena e decidida, ou porventura nos seus olhos verdes, que inspirava respeito.

Jack respirou fundo e relatou então tudo o que aprendera com Sheziss: a história da criação e destruição de Umadhun, da luta eterna dos sete deuses, do sentido da existência dos dragões e dos sheks, de como não podiam evitar odiarem-se até que uma das duas raças fosse aniquilada por completo. Falou-lhes da profecia e de como o Sétimo incluíra Christian nela, para tentar revertê-la a seu favor. Contou-lhes que tinham ido enfrentar Ashran... mas não entrou em pormenores.

Concluiu o seu relato com a morte do Necromante e a sombra tenebrosa que haviam libertado sem querer.

E o que isso significava.

Sobreveio um silêncio tenso, incrédulo.

- Sabes que tudo isso que acabas de contar vai contra as nossas crenças? - perguntou então Gaedalu.

Mas Jack abanou a cabeça.

- Pelo contrário. Dá a tudo um novo sentido, um significado aterrador, é verdade... mas coincide com muitas das coisas que os sacerdotes ensinam.

- Estás a insinuar, então, que Ashran não era completamente humano? - indagou Qaydar. - Que Ashran era o sétimo deus, o criador dos sheks, a sombra maligna que ameaça desde sempre a paz de Idhún?

- Eu diria que todos ameaçam a paz de Idhún - replicou Jack, sombrio. - O Sétimo e os Seis. Mas, sim, Ashran era o sétimo deus, ou melhor, poderíamos dizer que o sétimo deus habitava no interior de Ashran.

- O rapaz está a mentir! - exclamou alguém. - Não se pode derrotar um deus!

- Não o derrotámos, é o que estou a tentar dizer-vos! Destruímos apenas o seu invólucro carnal, a sua identidade neste mundo, por assim dizer. Não entendem? Voltou ao mundo para prosseguir a sua guerra contra os Seis, oculto na pele de um humano, de Ashran, o Necromante. Um humano com poderes semelhantes aos de um deus, um deus limitado pelas imperfeições de um corpo humano. Enquanto aqui esteve, pôde governar Idhún à sua vontade... e os Seis não tinham como intervir. Por isso enviaram-nos a nós... através da profecia... para destruir esse corpo humano, libertar o Sétimo e obrigá-lo a dar a cara. Quando isso acontecesse... os Seis poderiam voltar a enfrentá-lo no seu próprio plano.

Ha-Din tinha enterrado o rosto nas mãos, tentando assimilar toda aquela informação. Ergueu a cabeça para fitar Jack.

- Dizes que os Seis irão enfrentar o Sétimo? Então, isso é uma boa notícia. Irão expulsar o mal do nosso mundo, como já fizeram em tempos remotos.

Jack negou com a cabeça.

- Já nos contaram o quanto as suas vozes são terríveis e angustiantes. Só as suas vozes. Querem mesmo ver os deuses entre nós? Eu, pessoalmente, não tenho vontade de os conhecer.

Sim, os Seis virão para lutar contra o Sétimo... e destruir-nos-ão a todos pelo caminho.

Após um breve instante de silêncio, a sala explodiu em comentários, exclamações, discussões e vozes indignadas. Todos falavam ao mesmo tempo, procurando encontrar um significado para tudo o que Jack dissera.

O rapaz não lhes prestou atenção. Levantou a cabeça para observar a sombra que se erguia num canto junto à porta, na penumbra, apoiado contra a parede com um aspecto enganadoramente calmo. Não se tinha movido durante todo aquele tempo, mas, ao sentir o olhar de Jack, ergueu-se e, sem uma palavra, saiu da sala, furtivo como um felino.

Jack suspirou e abriu caminho entre os presentes, tentando chegar à porta. Shail deteve-o e olhou para ele a muito sério.

- Tens a certeza de tudo o que nos contaste? Jack esboçou um sorriso cansado.

- Sim, Shail - respondeu. - Lamento.

O feiticeiro empalideceu, mas não disse nada. Jack deixou-os a todos a discutir e saiu para o corredor. Como calculava, Christian já se tinha ido embora.

Saiu para o miradouro, o mesmo onde, tempos antes, costumava conversar com Sheziss. Agora que a shek não ia voltar, que nunca mais tomaria a enroscar-se sobre aquelas lajes, Jack sentia a falta dela. De modo que se deixou ficar ali por algum tempo, prestando homenagem à sua memória, recordando aquela que fora, em muitos sentidos, a sua mestra, tendo-lhe ensinado a ser dragão... e também um pouco shek.

Ergueu a cabeça quando sentiu a sombra de Christian junto a si. Os dois entreolharam-se.

- Receio que lhes vá custar bastante assimilá-lo - comentou Jack. Christian semicerrou os olhos.

- E a ti? - perguntou-lhe em voz baixa. - Custou-te muito? Jack não respondeu de imediato.

- Mais do que pensas - murmurou.

- Foi ela quem te ensinou tudo isto, não foi? Coisas que só os sheks sabem.

Jack assentiu.

- Mas nem mesmo ela sabia a verdadeira identidade de Ashran. Foi algo que ele só revelou a Zeshak. Não foi?

Christian olhou para ele.

- Eu também não sabia, se é isso que estás a insinuar.

- Já calculava.

Fez-se um breve silêncio.

- Podia ter-me matado - murmurou então Jack. - Ashran, quero dizer. Podia ter matado o último dragão do mundo e ter vencido com isso a guerra contra os Seis. Não era isso mais importante do que obter o poder de consagrar mais feiticeiros? O que é que nos está a escapar?

- Não sei - disse Christian. - Não me peças para tentar encontrar um sentido em tudo isto. Há já algum tempo que desisti de o fazer.

- Talvez tenhas razão... É bem provável que, depois de tudo, não consigamos chegar a entender os motivos e a forma de actuar de Ashran. Afinal de contas... supostamente, ele era um deus.

- No entanto - replicou Christian -, tenho a certeza de que houve uma altura em que Ashran não foi mais do que um homem.

Jack voltou-se para olhar para ele.

- Gostavas de descobrir? Gostavas de saber de quem és filho na realidade? De Ashran, de Zeshak... do Sétimo?

- São demasiados pais para o meu gosto - murmurou Christian. Parece-me que prefiro continuar a ser o que sou e não simplesmente o filho de alguém. Embora confesse que, às vezes, já não sei muito bem quem sou.

- É esquisito ouvir-te falar assim. Christian cravou nele o seu olhar gélido.

- Porquê? Pensa nisso, Jack. Nós os dois tínhamos um propósito nesta vida, uma missão. Eu fracassei na minha. Tu cumpriste-a. Mas neste momento estamos ambos na mesma situação: o que havemos de fazer agora? Qual é a nossa função, o sentido da nossa existência?

Jack encolheu os ombros.

- Viver, talvez? Não podemos enfrentar os deuses, Christian. Isso é uma tarefa que nos ultrapassa, mesmo a nós. E eu estou cansado de lutar. Não quero continuar nesta guerra sem sentido.

- Mas criaram-nos para lutar, para odiar. Por acaso existe mais alguma coisa?

Jack olhou para ele e o fogo do dragão inflamou-se por um instante atrás dos seus olhos verdes.

- Podemos amar - disse apenas.

Uma faísca de ternura brilhou nos olhos de gelo de Christian. Voltou a cabeça bruscamente e Jack vislumbrou o intenso sofrimento que o estado de Victoria lhe causava. Talvez o shek se sentisse tão culpado como ele, pensou.

Christian apoiou os cotovelos na balaustrada e olhou as três luas que dominavam o firmamento.

- Gostava mais desta torre quando estava quase vazia - comentou.

- Quando só estávamos nós três.

Permaneceram em silêncio mais algum tempo, até que Jack disse:

- Não vou deixar que morra.

- Eu também não - disse Christian, - Mas não sei o que podemos fazer.

Jack respirou fundo.

- Estão todos a fazer por isso. Feiticeiros e sacerdotes de todas as raças submetem-na diariamente a diferentes rituais e feitiços para a manter com vida. Mas parece-me

que, sem o corno, não há nada a fazer. Qaydar está a investigar se existe algum modo de lho devolver ou de gerar um novo. Se pelo menos soubéssemos o que Ashran

fez com ele...

Christian permaneceu calado.

- Mesmo que recuperássemos o seu corno, não sei se poderiam tornar a implantá-lo. Ainda assim, estaria disposto a correr o risco de voltar a procurá-lo. Mas não quero separar-me dela nem por um momento - continuou Jack.

Christian olhou para ele.

- Nem para ir à procura do teu amigo Alexander? O rosto de Jack crispou-se num esgar de raiva.

- Não nestas circunstâncias. Não com Victoria neste estado. Fez-se um longo silêncio.

- Então, estás a insinuar que tenho de ir eu à procura do seu corno?

- É só uma sugestão. - Jack ergueu a cabeça para o fitar, muito sério. - Seja como for, terás de ir embora daqui mais cedo ou mais tarde. Antes que as coisas se descontrolem.

Não acrescentou mais nada, mas ambos sabiam a que se referia. Após a queda de Ashran, os sheks não se tinham ido embora, o que fora uma terrível desilusão para a maioria dos idhunitas. Muitos tinham morrido no feitiço de fogo conjurado por Qaydar e Allegra; outros tinham atravessado de novo o abismo para se refugiarem em Umadhun. E alguns tinham escapado para outro lugar através de uma Porta interdimensional. Agora, Jack tinha a certeza de que não fora imaginação sua, porque muitas outras pessoas também os tinham visto.

Mas ainda havia sheks em Idhún, mais do que muitos gostariam. A maioria tinha-se refugiado nas montanhas e nos territórios menos povoados, e outros, simplesmente, recusavam-se a aceitar o óbvio. Era o caso de Sussh, o shek que governava Kash-Tar e que insistia em impor a sua lei aos habitantes do deserto. Tinha-se visto obrigado a retroceder e apenas podia controlar metade do território que antes tinha sido seu, mas continuava lá.

Algo parecido acontecia com os szish. Muitos deles tinham cerrado fileiras em torno dos sheks que restavam em Idhún, e aqueles que tinham ficado isolados eram assassinados pelos rebeldes ou conseguiam chegar até alguma zona de influência shek, onde se encontravam mais seguros.

O facto de ainda restarem serpentes em Idhún tinha suscitado muitas questões. Toda a gente acreditara que a queda de Ashran implicaria uma nova expulsão dos sheks.

Houve quem insinuasse a Jack que ele próprio devia encarregar-se de desterrar de Idhún o que restava do exército dos sheks ou, pelo menos, de os tentar matar, já que era esse o seu dever como dragão. Mas Jack não tinha nenhum interesse em sair à caça de serpentes. Todos atribuíam isso ao facto de estar demasiado cansado ou de a sua preocupação com Victoria o impedir de se deixar levar pelo instinto, mas presumiam que, quando tudo se normalizasse, o último dragão se encarregaria de exterminar os sheks que se escondiam nos recantos mais inacessíveis do planeta.

Começara também a correr o rumor de que os sheks não se tinham ido porque o herdeiro de Ashran ainda estava vivo. Jack já o tinha ouvido e tinha a certeza de que Christian também.

Cada vez havia mais pessoas convencidas de que era preciso sacrificar o filho do Necromante para que as serpentes fossem expulsas de Idhún. E algumas dessas pessoas habitavam a Torre de Kazlunn.

- É uma questão de tempo até que alguém procure matar-te, Christian - disse Jack com suavidade.

- Que tentem - sorriu o jovem.

Jack voltou-se para olhar para ele, muito sério.

- Não devias encarar isto de ânimo tão leve. Não és invencível. Christian devolveu-lhe o olhar.

- Ah, não? Por acaso conheces alguém que tenha poder para me ferir?

Estavam a meter-se num jogo perigoso e ambos sabiam disso. Mas entregaram-se a ele sem pensar nas consequências, porque precisavam de exorcizar a sua angústia e dor.

- Eu próprio - replicou Jack, respondendo à provocação; semicerrou os olhos e cravou em Christian um olhar sinistro. - É verdade que, se morreres, as serpentes voltarão para o lugar de onde vieram?

O shek esboçou um sorriso maldoso.

- Atreves-te a tentar confirmá-lo? O rosto de Jack ensombrou-se.

- Por quem me tomas? Sou perfeitamente capaz de te matar, shek. Sabes bem disso.

- Recordo-te que fui eu quem te matou a ti da última vez.

- Então, chegou a hora da minha desforra, não te parece?

Jack desembainhou Domivat. Apesar de se encontrar, teoricamente, a salvo, entre amigos, nunca se separava dela. De ter passado tanto tempo a fugir e a lutar, de sobressalto em sobressalto, escondendo-se de tantos inimigos que queriam matá-lo, o rapaz tinha-se acostumado a andar sempre armado. E era um hábito muito difícil de largar.

Christian, por seu turno, não demorou a desembainhar Haiass. com um grito de raiva, os dois lançaram-se um contra o outro e, de novo, como tantas outras vezes, o fogo e o gelo enfrentaram-se numa luta até à morte.

O tinir das espadas depressa alertou os outros habitantes da torre. Alguém saiu a correr para o terraço, a gritar, mas eles estavam demasiado embrenhados no que faziam para lhe prestar atenção. No entanto, Christian viu-o pelo canto do olho e compreendeu que não tardariam a ser interrompidos, de modo que atirou Haiass para o lado e transformou-se em shek. Levantou voo, parou no ar, uns metros acima de Jack, e dirigiu-lhe um silvo furioso, mostrando-lhe as presas. Jack aceitou o desafio e metamorfoseou-se por sua vez para ir ao seu encontro. Momentos depois, as duas formidáveis criaturas lutavam, num caos de rugidos e assobios, de asas e escamas, de garras e presas, suspensas no céu sobre a Torre de Kazlunn. Muitos assomaram às janelas e às varandas para os ver, sem saber o que fazer. Todos perceberam, intuitivamente, que aquele era um dragão de verdade, que era Yandrak, o último dragão, e lançaram vivas e palavras de ânimo. Mas muito poucos pressentiram que o shek contra o qual lutava era Kirtash, o filho do Necromante; e os que o fizeram também não foram capazes de interpretar o que estavam a ver.

Kimara juntou-se a Shail e Zaisei no miradouro.

- Temos de fazer alguma coisa! - pressionou-os. - Vai matá-lo! Mas Shail contemplava a cena com o sobrolho franzido. Parecia

estar apenas ligeiramente preocupado.

- Vai matá-lo, Shail! - gritou Kimara. - Como da última vez! O feiticeiro abanou a cabeça.

- Não, não é como da última vez. Não percebes, pois não? O dragão não está a utilizar o seu fogo. A serpente não procurou mordê-lo. Não se querem matar.

Kimara voltou-se para ele, com violência.

- Como não se querem matar? Como podes ter tanta certeza? Como sabes que o shek não o vai morder quando tiver oportunidade? Como podes confiar nele?

Shail não teve oportunidade de responder, porque naquele momento as duas criaturas caíram no mar, enredadas uma na outra, sem possibilidade de mover as asas. A maré estava a subir e o choque contra a extraordinária onda que se elevava para as luas foi brutal. De todas as gargantas saiu um grito de inquietação.

Então, o shek veio à superfície. Bateu as asas com força, e, quando emergiu um pouco mais, todos viram que arrastava consigo o pesado corpo do dragão. Aproveitando que a onda estava prestes a embater no penhasco, a serpente levantou voo até se deixar cair em terra firme. O dragão pousou pesadamente ao seu lado.

Kimara deu meia-volta e saiu a correr do miradouro.

Jack abriu os olhos lentamente. Voltara a ser humano. E Christian, ao seu lado, também. Os dois estavam ensopados e exaustos, mas sentiam-se muito melhor.

- Vês? - disse Christian com esforço. - Não podes vencer-me. Jack sorriu.

- Tu também não me podes vencer a mim.

Calaram-se momentaneamente. Ouviram então os gritos provenientes da torre.

- Acho que isto não foi muito sensato - murmurou Jack, procurando erguer-se. - Agora vão pensar que tentaste matar-me outra vez.

Christian já se tinha posto de pé e avaliava as pessoas que se aproximavam vindas da torre.

- E o que te faz pensar que não tentei? - disse, com perigosa suavidade.

Jack voltou-se para olhar ele, sombrio; mas logo de seguida sorriu.

- Não me enganas. Não usaste o teu veneno. Christian encolheu os ombros.

- Sei por experiência própria que se morreres terei muitos problemas. De modo que me convém, para já, que continues com vida.

- Jack! - soou de repente uma voz à distância. - Jack, estás bem? Jack virou-se ao reconhecer a voz de Kimara, que chegava a correr, preocupada com o resultado da luta que acabava de presenciar.

- Suponho que teremos de lhes dar uma explicação, não achas? comentou, preocupado.

Não obteve resposta. Ao voltar-se, descobriu que o shek, como de costume, tinha ido embora sem dizer nada.

Voltou para junto de Victoria e permaneceu ao seu lado, sem afastar os olhos dela, esperando detectar alguma alteração. Mas a rapariga continuava sem reagir.

Ao fim de algum tempo, alguém lhe anunciou que Covan tinha voltado.

com um suspiro, Jack saiu do quarto onde velava Victoria e foi ao seu encontro.

Conhecera Covan apenas uns dias antes, mas tinham-se dado bem. O velho mestre-de-armas recordava-lhe muito Alexander; havia nele algo familiar que fazia com que Jack se sentisse bem com ele. Contudo, não estavam de acordo em algumas coisas.

Uma vez acabada a ameaça de Ashran, Covan propusera ressuscitar a antiga ordem de cavalaria de Nurgon. Reconstruiriam a Fortaleza, desta vez com mais meios, e começariam a treinar novamente jovens cavaleiros. Já tinha dito a Jack que contava com ele, mas o rapaz ainda não tinha tomado uma decisão quanto a isso. Outrora tinha apoiado e admirado os princípios da Ordem, que eram também os de Alsan, mas agora via as coisas de um ponto de vista diferente. Os cavaleiros consideravam que era seu dever exterminar todas as serpentes sem distinção. Só a firme oposição de Jack e Shail tinha conseguido que tolerassem a presença de Christian na torre. Mas Jack não podia fazer nada para evitar que, de vez em quando, alguns guerreiros e feiticeiros, liderados por Covan, saíssem para caçar sheks. E, embora no fundo o compreendesse e o seu instinto de dragão o pressionasse a juntar-se a eles, Jack nunca fizera parte daquelas expedições.

Daquela vez saiu ao encontro de Covan porque sabia que o grupo de caçadores tinha regressado de uma ronda pelo Norte de Nandelt que lhes levara vários dias.

- Há notícias de Alexander? - perguntou ao mestre-de-armas, depois de trocar com ele uma saudação amistosa.

Covan abanou a cabeça.

- Nada. Começo a pensar que tentou atravessar o Anel de Gelo para chegar a Nanhai.

E... não sei, Jack. É uma viagem muito perigosa para qualquer homem, mesmo tratando-se de alguém como ele.

Jack não disse nada.

Covan pô-lo a par das novidades. Contou-lhe que tinha passado por Shur-Ikail, que os bárbaros estavam ainda a recuperar da batalha de Awa e que, quando acabassem de se reunir todos, teriam de eleger um novo Senhor dos Nove Clãs.

Também lhe contou que tinham encurralado uma shek perto das nascentes do rio Adir.

- Escapou-nos, a maldita - grunhiu Covan. - Mas estivemos muito perto de acabar com ela.

- Não entres em pormenores - cortou Jack com alguma dureza. Covan olhou para ele, carrancudo.

- Pensava que os dragões gostavam de matar sheks.

- Sim - replicou Jack -, e, acredita em mim, não é algo de que me sinta orgulhoso.

Despediu-se com um gesto e deu meia-volta para regressar ao quarto de Victoria.

Estava já a subir as escadas quando alguém saiu ao seu encontro: uma figura nervosa, de cabelo branco e azulado, e olhos avermelhados que faiscavam ansiosos.

-Jack! Andava à tua procura.

- O que se passa, Kimara? - perguntou ele, procurando acalmá-la; parecia muito preocupada.

- Tens de vir... Victoria... rápido...

Jack contraiu-se como se tivesse recebido uma descarga eléctrica.

- O que se passa com ela? - perguntou, com uma nota de pânico na voz. Amaldiçoou-se a si mesmo por a ter deixado sozinha, ainda que fosse apenas por um instante, e desatou a correr pelas escadas acima. Kimara alcançou-o.

- O shek está com ela - explicou.

- Christian está com ela? - Jack descontraiu-se; parecia ser uma das poucas pessoas da torre que sabia que Victoria estaria segura se o filho do Necromante a velasse.

- Estáalançar-lheumconjurooualgoparecido - Kimara estava tão nervosa que falou atabalhoadamente, como costumavam fazer os yan.

- Soaestranhocomoumencantamento...

- Calma, calma. Não lhe vai fazer mal. Os olhos de Kimara brilharam de fúria.

- Como podes dizer isso? Aquele desgraçado quase te matou! Jack respirou fundo. Olhou para Kimara. Ainda era estranho vê-la com a túnica de aprendiz que os feiticeiros lhe tinham arranjado. - vou ver - disse-lhe para a tranquilizar - vou contigo.

- Mas em silêncio. Não devemos interrompê-los.

Kimara olhou para ele intrigada, mas não perguntou mais nada.

Subiram mais alguns pisos até ao quarto de Victoria.

Jack parou Kimara no corredor e impediu-a de espreitar. Colaram-se à parede para ouvir.

A voz do shek chegou até eles, apenas um suave sussurro, num canto que parecia estar destinado unicamente aos ouvidos de Victoria e cujas palavras Kimara não percebia. Mas para Jack estavam cheias de significado e sorriu.

- Não é um encantamento - sussurrou a Kimara.

- Então é o quê? - perguntou ela no mesmo tom. O sorriso de Jack rasgou-se.

- É uma canção de amor. Kimara olhou para ele, perplexa.

- Não é possível.

- Olha para eles - convidou Jack.

Espreitaram cautelosamente, para não serem descobertos, e contemplaram a cena, sentindo-se algo culpados, sabendo que estavam a espiar um momento íntimo. Mas Victoria não estava em condições de os censurar e Christian só parecia ter olhos para ela. A jovem continuava pálida, hirta, com aquele horrível buraco de nada na sua testa, sem ser capaz de se mover nem de reagir. Christian embalava-a nos seus braços, com infinita ternura, enquanto lhe cantava ao ouvido as palavras da canção que tinha composto para ela tempos antes.

 

Nobody could reach me,

Nobody could defeat me,

Standing alone in my kingdom of ice.

Frost and darkness, poisou and silence,

And liked it, my lady oflight.

But Vá never seen a soul like yours, Shining like nothing I knew before, A neui star utarming my life, Só precious, só brílliant, só painful, And needed it, my

lady of light.

Só I looked for you, babe And the moon showed me your face, The waters whispered your nome, The winàs brought me your smell.

What can I do, oh, what can do? If youre the only one I should not look?

YOM could have another face, Another name, another smell. You could be anyone else, But you, oh, you, why you?

tried to keep you out ofmy

way, Tried to defeat this damned fate, But no ice can freeze your smile, And

I like you, my lady oflight And I need you, my lady of light. What can

I do, oh, what

can I do?

Ifyoure the only one I should not look?

You couíd have another face, Another name, another smeíl. You couíd be anyone else, But

I ou, oh, I ou, why you?*

 

A voz de Christian morreu. No entanto, ele permaneceu junto a Victoria, abraçando-a. Jack perguntou-se subitamente o que aconteceria ao shek se Victoria morresse, o que faria, para onde iria, o que lhe restaria. Não encontrou resposta para aquelas perguntas.

Abanou a cabeça, preocupado, e fez tenção de se ir embora.

Kimara agarrou-o pelo braço e dirigiu-lhe um olhar impaciente. Jack respondeu-lhe com gestos que os deixasse sozinhos.

Kimara não o seguiu quando ele se afastou. Abanou a cabeça, sentou-se ao pé das escadas e aguardou que Christian saísse do quarto.

O shek não gostou muito de a encontrar ali. Kimara levantou-se, muito séria. Os dois entreolharam-se tensa e cautelosamente.

- Quero que saibas - disse ela então - que não confio em ti. Christian esboçou um breve sorriso.

- Fazes bem - disse somente. Kimara semicerrou os olhos.

- Parece que não me entendeste. Não é por seres um shek nem o filho do Necromante. Tudo isso não me importa. Mas estiveste prestes

* Ninguém podia alcançar-me,ninguém podia vencer-me,de pé sozinho no meu reino de gelo.Geada e escuridão, veneno e silêncio.E eu gostava, minha dama de luz. Mas nunca tinha visto uma alma como a tua,brilhante como nada que tivesse conhecido,uma nova estrela dando calor à minha vida,tão preciosa, tão radiante, tão dolorosa.E eu precisava de ti, minha dama de luz.Então procurei-te, pequena,e a lua mostrou-me o teu rosto,as águas sussurraram o teu nome,os ventos trouxeram-me o teu cheiro.O que posso fazer, oh, o que posso fazerse és a únicapara quem não deveria olhar?Poderias ter tido qualquer outro rosto,qualquer outro nome, qualquer outro cheiro.Poderias ter sido qualquer outra pessoa,mas tu, oh, tu, porquê tu?Tentei afastar-te do meu caminhotentei vencer este maldito destino,mas não há gelo que consiga arrefecer o teu sorrisoe gosto de ti, minha dama de luze preciso de ti, minha dama de luz.O que posso fazer, oh, o que posso fazerse és a únicapara quem não deveria olhar? Poderias ter tido qualquer outro rosto.qualquer outro nome, qualquer outro cheiro. Poderias ter sido qualquer outra pessoa,mas tu, oh, tu, porquê tu? a matar Jack por várias vezes, e não duvido que algum dia consigas levar a tua avante.

Christian inclinou a cabeça.

-E?

Kimara rangeu os dentes. A impassibilidade dele desconcertava-a. E irritava-a.

- Não o vou permitir - murmurou.

Então, rápida como um raio, lançou-se sobre ele, tirando uma adaga de uma das largas mangas da sua túnica. Kimara tinha crescido no deserto, sabia lutar e costumava ser letal quando se dispunha a isso, mas não podia nada contra Christian, que, como de costume, foi mais célere. Segurou-a pelos pulsos e encurralou-a contra a parede.

- No teu lugar não voltaria a fazer isso - disse com calma. Kimara cometeu o erro de o olhar nos olhos, e um terror irracional paralisou-a de imediato. Aquele olhar gélido evocava coisas obscuras, coisas que não queria de modo nenhum conhecer. Desejou com todas as suas forças que ele deixasse de a observar daquela maneira, mas não foi sequer capaz de se mover.

Então, Christian afastou-se dela. Kimara gemeu e deixou-se cair de joelhos no chão, a tremer.

- O que acontecer entre mim e Jack é coisa nossa, Kimara - disse Christian suavemente. - Aconselho-te a não te envolveres, porque poderias sair prejudicada. - Fez uma pausa e continuou: - Vi que a luz de Victoria brilha dentro de ti. Entregou-te o dom da magia. Agradece-lho, porque é a única razão pela qual te poupei a vida hoje.

Kimara não respondeu; ficou quieta, a tremer, e, quando Christian se foi embora, ergueu a cabeça e os seus olhos vermelhos brilharam de cólera.

- Não me importa que sintas algo por Victoria, serpente - ciciou. Mataste Jack e não to vou perdoar. Juro que chegará o dia em que acabarei contigo... com as minhas próprias mãos.

A partir daquele dia, Jack permitiu-se deixar Victoria sozinha mais vezes. Não porque não estivesse preocupado com ela, mas sim porque, simplesmente, percebera que Christian não se aproximaria enquanto ele estivesse junto da rapariga. E, depois de tudo o que acontecera, Jack sentia que o shek também tinha o direito de passar alguns momentos com Victoria. Quer ela recuperasse quer não... era importante que os tivesse a ambos ao seu lado.

De modo que de vez em quando voava e afastava-se da torre, aproveitando aqueles momentos para desanuviar um pouco e pensar. Tentava dar voltas ao problema da guerra entre os deuses e calcular o que aconteceria quando as seis divindades regressassem definitivamente a Idhún, mas, apesar das advertências dos Oráculos, sentia que aquilo era algo distante e muito irreal. Pelo menos enquanto Victoria continuasse naquele estado, enquanto houvesse tantas possibilidades de a perder para sempre.

Às vezes, pousava perto de uma cidade, longe dos olhares curiosos, e transformava-se de novo em humano para deambular pelos mercados, ruas e praças. Ninguém sabia quem era, ninguém o reconhecia sob o seu aspecto de rapaz. Assim, Jack podia distrair-se um pouco e esticar as pernas, mas, sobretudo, inteirar-se do que acontecia em Nandelt.

Certa vez, ao percorrer o mercado de Kes, ficou parado à frente de uma banca onde cintilavam diversas jóias e adornos.

- Estás à procura de algo especial para a tua miúda, jovem amigo?

- perguntou o comerciante, sorrindo.

Jack voltou à realidade e procurou negar com a cabeça. Mas o certo era que ficara a olhar para um pendente em forma de lágrima de cristal. O vendedor notou o seu interesse.

- Uma Lágrima de Unicórnio - sorriu. - Os feiticeiros adoram estes cristais.

- Eu sei - assentiu Jack. - A minha... - hesitou antes de prosseguir - a minha namorada tinha um como este. Mas acho que o perdeu.

Não era capaz de recordar como, onde ou quando Victoria perdera a Lágrima de Unicórnio que Shail lhe oferecera há tanto tempo. Mas sabia que já não a usava. Reparara nisso uns dias antes, quando a contemplava, procurando gravar na sua memória cada traço do seu rosto, para não o esquecer nunca, não fosse chegar o momento em que tivesse de se despedir dela para sempre.

O vendedor sorriu e desprendeu o fio do engaste do qual pendia a Lágrima para a mostrar ao seu possível cliente, com um gesto hábil e experiente; não era à toa que provinha de Nanetten, o reino dos comerciantes.

Jack retrocedeu.

- Não... não tenho dinheiro para pagar - disse.

- Ninguém tem nestes dias - respondeu o vendedor, dirigindo-lhe um olhar perspicaz. - Passámos uma fase de guerra, as coisas já não são como eram antes. Não é novidade. Mas talvez tenhas algo que queiras dar em troca disto. Uma troca, ha? Tens algo para me oferecer?

- Infelizmente não - murmurou Jack, tomando consciência da precariedade da sua situação; o seu único bem era Domivat e não pensava desfazer-se dela. Também tinha o pendente hexagonal no pescoço. Não sabia se era ou não valioso, mas também não se queria desfazer dele. Tinha sido um presente de Victoria.

- É uma pechincha - insistiu o vendedor. - Antigamente estes pendentes vendiam-se muito, mas há cada vez menos feiticeiros e ninguém se interessa pelas Lágrimas de Unicórnio. Em Nolir estão a deixar de as fabricar, pelo que esta que vês pode ser uma das últimas.

Jack olhou de novo para o pendente. O cristal era lindo, cintilava à luz dos três sóis, que arrancavam um reflexo mágico das suas múltiplas faces. Era bem mais bonito do que aquele que pertencera a Victoria.

"Tenho de lho oferecer", pensou. Então teve uma ideia. Pediu ao vendedor que lho guardasse, assegurando que não demoraria a voltar. Quando regressou, trazia algo entre as mãos.

- O que é isso? - indagou o comerciante, receoso.

Jack estendeu-lha. Era uma espécie de lâmina dura, dourada. Antes de o vendedor conseguir adivinhar o que era, Jack declarou, com suavidade:

- É uma escama de dragão.

O vendedor lançou uma exclamação sufocada e tirou-lha das mãos.

- É de ouro?

- Acho que não - respondeu o rapaz. - É apenas dourada. Mas é verdadeira.

Tinham-se aproximado alguns curiosos para tentar saber o que se estava a passar.

- Já não há dragões, rapaz. Estás a tentar enganar-me.

- Isso não é totalmente verdade. Resta um dragão, só um, e é um dragão dourado. Todos sabem que é o dragão da profecia, que derrotou Ashran e que agora vive na Torre de Kazlunn.

Disse-o com orgulho, arrependendo-se logo de não ter mordido a língua. No entanto, todos os presentes estavam demasiado maravilhados com a escama para o ouvir. Depressa se armou um pequeno tumulto naquele sector do mercado. Todos queriam ver a escama de dragão e tocar-lhe, se possível. Jack não esperou para saber se o comerciante aceitava a troca. Perdeu-se entre a multidão, levando consigo a Lágrima de Unicórnio, sabendo que, embora a escama não valesse nada por si mesma, como símbolo não tinha preço. Se fosse esperto, o comerciante podia tirar grandes lucros dela.

Regressou imediatamente à Torre de Kazlunn, chegando quando o segundo sol já se estava a pôr. Teve de esperar um pouco para ver Victoria, dado que naquela altura estava a ser submetida a um ritual que tinha por objectivo devolver-lhe parte da energia perdida. Observou da porta, inquieto, como os celestes que realizavam o cerimonial faziam levitar o corpo inerte de Victoria vários metros acima do chão. Finalmente, depositaram-na de novo sobre a cama, delicadamente, e saíram do quarto em silêncio.

Jack sentou-se junto à rapariga desfalecida. Olhou para ela por um momento, intensamente, e de seguida afastou-lhe o cabelo para o lado para poder pendurar-lhe a corrente à volta do pescoço.

- Por enquanto é só uma lágrima - disse-lhe com ternura -, mas espero que algum dia possa trazer-te um corno. Ou algo que possa substituí-lo.

Apercebeu-se então de que o Báculo de Ayshel estava num recanto do quarto e franziu o sobrolho. Pegou nele para o colocar sobre a cama, junto de Victoria, e rodeou o bordão com o braço dela.

Ainda não sabiam se isso surtiria efeito ou não. Mas Jack tinha-se lembrado, dias antes, de Shail lhes contar uma vez que o Báculo de Ayshel actuava como o corno de um unicórnio; de modo que procurava deixá-lo sempre junto de Victoria, para ver se podia fazer-lhe algum bem ou devolver-lhe a vida que se lhe estava a escapar pouco a pouco. Contudo, o facto de o báculo estar ali dificultava a tarefa dos curandeiros e dos feiticeiros e sacerdotes que submetiam a jovem aos seus rituais vivificadores, pelo que, quando Jack não estava por perto, pediam sempre a um semifeiticeiro que o retirasse. O semifeiticeiro era sempre o mesmo, um celeste idoso que se esquecia constantemente de voltar a colocá-lo no seu sítio.

Jack suspirou e recostou-se na cama junto dela. Ainda faltava algum tempo para a hora do jantar...

Acordou horas mais tarde, quando já era noite cerrada. Apercebeu-se então de que tinha adormecido.

Mas também percebeu uma presença no quarto. Uma sombra fria e subtil. O seu instinto disparou, como tantas outras vezes. Procurou controlá-lo.

- Christian? - murmurou com esforço.

- Acho que estou a perder faculdades - respondeu ele de algum recanto nas sombras.

- Sou um dragão, como sabes. Tenho tendências assassinas de cada vez que estás perto - acrescentou, trocista.

- É a isso que me estou a referir - disse de repente a voz do shek, bastante perto dele, sobressaltando-o. - Devias ter-me detectado muito antes.

Jack afastou-se, aborrecido, e voltou-se para ele. A luz ténue do Báculo de Ayshel iluminou o seu rosto, sério e sombrio, um rosto onde se viam marcas de um sofrimento profundo.

- Vieste para estar com ela, não é? - murmurou o rapaz. - Então é melhor deixar-vos a sós.

Mas Christian abanou a cabeça.

- Não, dragão, vim ver-te a ti.

Jack ergueu-se, alerta, preparado para entrar em acção caso o shek viesse com intenções pouco claras. Mas Christian limitou-se a dirigir-lhe um olhar sombrio.

- Vou-me embora - disse apenas.

Jack respirou fundo. Pôs-se de pé para ficar à sua altura. - Caíste em ti, ha? Ou será que alguém te ameaçou abertamente? Christian inclinou a cabeça.

- Mais de uma pessoa, na realidade. Mas isso não me preocupa. É outro o motivo por que tenho de ir.

Dirigiu um olhar intenso a Victoria. Jack percebeu que resistia a deixá-la; que, embora não estivesse dia e noite junto dela, também não queria ir para muito longe.

- Deve ser grave - comentou, e então entendeu. - Está a acontecer novamente, não é? Estás a tornar-te humano outra vez.

Christian respirou fundo.

- Penso que sim. Demasiadas emoções, demasiada gente... Sinto-me sufocar aqui. Tenho de me afastar um pouco para tentar recuperar. - Olhou para ele com alguma curiosidade. - Porque é que não te acontece a ti? Porque é que não tens problemas em ser mais ou menos humano?

Jack encolheu os ombros.

- Sim, tenho problemas, mas de outro tipo. Quando reprimo o ódio por estares aqui, depois custa-me mais transformar-me em dragão. Como no início, quando chegámos a Idhún. De qualquer forma, creio que a minha alma humana e o meu espírito de dragão estão muito unidos. Mais do que no teu caso, suponho.

- O teu corpo humano também já nasceu dragão - disse Christian, pensativo. - Talvez seja essa a diferença entre tu e eu.

- Seja como for, se tens de ir, só me resta dizer-te para voltares mal possas - declarou Jack. - Ela irá sentir a tua falta, quer acorde ou não.

Christian assentiu. Sobreveio um silêncio incómodo.

- Se voltares a ser mais shek do que és agora - disse então Jack -, o ódio irá cegar-nos outra vez; voltarão as lutas, os problemas. Como vamos estar os dois com Victoria?

Era uma questão que andava a perturbá-lo. Christian respondeu-lhe com o seu habitual sorriso frio.

- Eu não vou estar com ela. Não posso estar com ela, embora o deseje. Preciso... preciso de estar sozinho de vez em quando. Consegues perceber?

Jack franziu o sobrolho.

- Acho que sim.

- Mas isso não significa que vá renunciar a Victoria. Não vou deixar de a ver. Não vou deixar de a amar. E não vou deixar de a visitar de vez em quando, não enquanto ela continuar a sentir alguma coisa por mim. E o que acontecer entre mim e ela só diz respeito a nós dois. Fiz-me entender?

Tinha-se posto na defensiva, com um tom áspero que não era usual nele. Jack semicerrou os olhos.

- Não é preciso seres tão agressivo. Eu percebi, está bem? Se Victoria estiver de acordo, por mim... por mim, tudo bem. Não me irei intrometer nos vossos assuntos.

Custou-lhe pronunciar aquelas palavras, mas, quando o fez, depressa se deu conta de um pormenor.

- Mas tu... passarias com ela bem menos tempo do que eu. Então eu sairia a ganhar, não é?

- Acho que todos sairíamos a ganhar. Embora agora te custe muito ver as coisas dessa maneira. Afinal de contas, ela podia ter escolhido, lembra-te disso. Um de nós poderia ter sido o escolhido. E o outro poderia estar morto. Mas estamos os dois vivos, porque ela se sacrificou para que vivêssemos... os dois. Nunca o esqueças, Jack. Nunca.

Jack quis replicar, mas um som súbito no corredor alertou-o, fazendo-o virar-se para a porta. Segundos depois chegou Shail, com uma luz.

- Ah, Jack, és tu. Pareceu-me ouvir vozes, e pensei... Quem estava contigo? - acrescentou, entrando no quarto.

Jack voltou-se para a janela... mas Christian voltara a desaparecer.

"Boa viagem, shek", pensou.

Christian não regressou naquela noite para se despedir de Victoria e, na realidade, ninguém o viu na torre no dia seguinte. Jack estava convencido de que já tinha partido...

Mas o shek reapareceu no final do terceiro crepúsculo.

Naquele momento, Victoria estava a ser submetida a um novo ritual, desta vez efectuado por um grupo de varu. Tinham-na levado para as termas e mergulhado na água morna. O corpo da jovem flutuava misteriosamente na água, de barriga para cima, e os seis varu, de pé à sua volta, com a água pelo peito, entoavam uma enigmática melodia sem palavras.

Havia mais dois varu à porta das termas; encontravam-se aí para evitar que entrasse alguém que pudesse interromper o ritual, mas Christian não lhes prestou atenção. Como é óbvio, não conseguiram impedi-lo.

Entrou com passos firmes e deteve-se à beira da piscina. Os outros varu olharam para ele, desconcertados.

- Saiam daqui - ordenou-lhes telepaticamente. - Quero estar a sós com ela.

Um deles tentou opor-se, mas a mente de Christian era demasiado poderosa. Apressaram-se a sair da água, com receio do shek, e depressa deixaram Victoria sozinha, a flutuar.

Christian desceu pelas escadas, entrou na água e dirigiu-se a ela. O corpo da rapariga continuava a flutuar, envolto numa túnica branca que, apesar de tudo, não a arrastava para o fundo da piscina, ondulando à sua volta mansa e docemente. O shek olhou para ela por um momento, com uma expressão indecifrável. Então agarrou nela pela cintura, com delicadeza, e dirigiu-se de novo para as escadas, caminhando de costas e puxando-a pouco a pouco.

Tirou-a da água e sentou-se na beira da piscina, segurando-a nos braços. Estavam os dois encharcados, mas Victoria não reagiu. Christian segurou-a suave mas firmemente pela cintura, inclinou-se sobre ela e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Tenho de partir, Victoría.

Fez uma pausa. Talvez esperasse algum tipo de reacção da sua parte, embora soubesse perfeitamente que não haveria. Semicerrou os olhos e passou os dedos sobre o buraco da testa da rapariga. Sentiu frio... demasiado frio, até mesmo para ele. "Quem me dera poder devolver-te o que te falta", pensou.

- Tenho de partir - repetiu em voz baixa -, mas juro-te que voltarei mal seja possível. E também se te acontecesse algo... - A voz quebrou-se-lhe e ele procurou recompor-se. - Se acontecesse alguma coisa eu saberia, porque tens o meu anel. Não te esqueças. Mesmo que me vá embora... estou contigo. Estou contigo.

Aproximou-se mais dela, tanto que os seus lábios quase roçavam a sua orelha, e continuou a falar-lhe ao ouvido. Permaneceu assim durante mais algum tempo, a segurá-la nos seus braços, sussurrando-lhe palavras que só ela podia ouvir. Até que se ergueu e cravou o seu olhar gélido na figura que o observava da porta.

- Avisaram-me de que tinhas interrompido o ritual - disse Gaedalu. A primeira coisa que pensei foi que se tratava de um engano. Achava que nem mesmo tu serias tão ousado.

Christian não respondeu. Levantou-se lentamente, com Victoria nos braços. Sob o olhar atento de Gaedalu, deixou-a de novo na água. O poder dos varu ainda reverberava no ambiente, pelo que o corpo da jovem voltou a flutuar.

O jovem saiu então da piscina e dirigiu-se para a porta. Parou diante de Gaedalu, que o olhava com profundo desagrado.

- Ainda não sei qual é o teu papel em tudo isto - disse a varu. - Ajudaste a derrotar Ashran, mas, se é verdade que com isso apenas conseguiste libertar um mal maior no nosso mundo, então continuas a ser um inimigo para nós.

Christian não respondeu.

- De que lado estás? - insistiu ela. - Lutarias do nosso lado... contra o teu deus?

- Não me interessam as vossas guerras nem as vossas intrigas, Mãe respondeu ele, calmamente. - Farei o que tiver de fazer. Só isso.

- Como sempre fizeste, não é? - replicou Gaedalu, com amargura. Como no outro mundo. Quando te dedicavas a assassinar os nossos.

Christian não viu necessidade de responder.

- E a minha filha Deeva - sussurrou ela.

Christian olhou para ela, sem que qualquer traço de emoção transparecesse no seu rosto.

- Há já vários dias que Ashran morreu e a Porta para o outro mundo voltou a estar aberta. Os feiticeiros exilados deviam regressar. Mas ainda não voltou ninguém. Devemos esperar mais... ou mataste-OS a todos? Também mataste Deeva?

O shek ergueu a cabeça e franziu ligeiramente o sobrolho, reflectindo.

- Lembro-me de Deeva - disse então.

Não acrescentou mais nada, mas também não foi preciso. A Mãe tremeu, levou uma mão ao peito e apoiou-se na parede porque lhe falharam as pernas. Deixou tombar a cabeça... e chorou.

Christian não tinha mais nada a dizer, de modo que seguiu o seu caminho. Mas sentiu que Gaedalu o seguia, por isso voltou-se para olhar para ela.

-Monstro! - exclamou ela, com os olhos carregados de ódio. - Alguns poderão consideraste um herói, outros dirão que o teu coração não pode. ser assim tão negro, se foste capaz de fazer um unicórnio apaixonar-se por ti. Mas eu sei que és um monstro.

És o que sempre foste e o que sempre serás.

- Sou o que sou - respondeu Christian com calma, desta vez falando em voz alta. - E sou um shek. Vocês sempre nos consideraram uns monstros. Por isso expulsaram-nos

e procuraram exterminar-nos, por isso continuam agora a aniquilar-nos, apesar de já termos sido derrotados. Mas não me queixo. O mundo é assim.

- Também é suposto seres em parte humano! - quase gritou Gaedalu, e a sua voz telepática estava cheia de raiva e dor.

- Demasiado humano às vezes - murmurou ele -, mas não o suficiente para sentir remorsos. E acredita que às vezes até gostaria. Gostaria de poder pedir perdão, mas não o sinto na realidade. Naquela altura fiz o que tinha de fazer. É só isso.

Virou-se para se ir embora, mas a sua mente percebeu ainda uma última mensagem telepática da Mãe:

- Sei que não tenho poder para te prejudicar, shek. Mas não tardarei em encontrar uma maneira de te fazer pagar. E não descansarei até te ver morto...

Jack foi o primeiro a reparar que Christian tinha finalmente partido; os outros demoraram um pouco mais a dar por isso. Não era de estranhar, dado que a presença do shek era difícil de notar, mesmo quando estava na torre. Shail, inquieto, foi falar com Jack sobre o assunto, e o rapaz confirmou-lhe o que já suspeitava. O feiticeiro reflectiu. Depois disse:

- Não sei se devo ficar contente ou não por ele ter partido. Por um lado, sei que estava aqui por Victoria, para cuidar dela, para a velar. Por outro... continuo a não confiar nele, Jack. Vi como te cravou a espada no peito e te atirou para um rio de lava. Já não sei o que pensar.

- Na verdade, fazes bem em não confiar nele - murmurou Jack. Continua a ser leal a Victoria, mas tudo o mais lhe é indiferente. Todos vocês lhe são indiferentes, e é uma criatura poderosa... e perigosa. Por isso é melhor manterem-se afastados dele.

Shail fitou-o.

- Não achas que possa ser perigoso para ti?

- É, embora por outros motivos. Não consegue evitar odiar-me, sentir algo por mim, mesmo que seja desejo de me matar, mas... respeita-me. A vocês não, e aí está o perigo. Faço-me entender?

Shail não disse nada.

- Também eu - disse Jack de repente, em voz baixa - sinto às vezes que me são indiferentes. Que não me importo nada com ninguém, à excepção de Victoria e de Christian. Às vezes tenho a impressão de que eles são as únicas pessoas reais à minha volta. A todos os outros... é como se vos visse indefinidos, como se não estivessem realmente aí.

- Ergueu a cabeça para olhar para ele. - Mas vocês são meus amigos, não são? O que é que mudou?

Shail demorou um pouco a responder.

- És um dragão, Jack - disse então, suavemente. - Já não te sentes humano. Tudo isso que me disseste antes de Christian... poderias aplicá-lo a ti mesmo também.

Jack baixou a cabeça e pensou nas palavras do feiticeiro.

- É... como se fosse uma criança que ficou muito tempo longe de casa - murmurou. - Como se tivesse regressado ao fim de alguns anos e descobrisse que tudo é bastante mais pequeno do que me lembrava. E que as coisas que antes me faziam medo ou que considerava grandes e importantes já não são mais do que ninharias.

Shail inclinou a cabeça.

- Estou a ver - disse. - Suspeitávamos que isso te iria acontecer, que aconteceria a ti e a Victoria mais cedo ou mais tarde. Mas era necessário que perdessem um pouco da vossa parte humana para poderem enfrentar Ashran. Ou, pelo menos, era isso que pensávamos... Se soubéssemos que... mas quem iria imaginar...

- Teria acontecido de qualquer forma - disse Jack. - Não tínhamos outra opção a não ser lutar contra ele. E ele sabia disso.

Shail franziu o sobrolho.

- Isso é que acho estranho. Ashran queria realmente evitar o cumprimento da profecia? Dá-me a sensação de que teve ocasiões de sobra.

- Sim, mas queria o corno de Victoria; suponho que arriscou tudo por isso.

- Tirar-lhe o corno para depois ser derrotado? - Shail abanou a cabeça. - Acho estranho que não o tivesse previsto.

Jack desviou o olhar e o feiticeiro não insistiu. Qualquer referência ao corno de Victoria deixava-os a ambos muito tristes.

- Teve-me nas suas mãos, Shail - disse Jack em voz baixa. - Podia ter-me matado, no entanto, pareceu-lhe mais importante... o que Victoria lhe podia entregar... do que acabar com a vida do último dos dragões. Isso faz sentido?

Shail negou com a cabeça, mas não respondeu. Os dois permaneceram algum tempo em silêncio, mergulhados em pensamentos sombrios.

- Agora que o shek se foi - disse então, com suavidade - e que sei que podes desenrascar-te sozinho, acho que já posso ir-me embora da torre sossegado.

Jack ergueu a cabeça.

- Também te vais embora? Shail assentiu.

- Procurar Alexander. Não quis fazê-lo até agora para não deixar Victoria sozinha, mas... receio que não haja nada que possa fazer por ela. E não há muito tempo jurei a várias pessoas que me encarregaria de evitar que Alexander fosse um perigo para alguém. De modo que, como vês, sinto-me responsável.

- Entendo - assentiu Jack. Fez uma pausa e continuou: - Fico contente por saber que alguém vai à procura dele, e ainda mais sendo tu. Isso deixa-me mais tranquilo.

Shail sorriu.

- E é um alívio para mim saber que continuas a ser em parte humano e que consegues preocupar-te com alguns humanos, pelo menos os mais próximos de ti.

Jack desviou o olhar, recordando as palavras de Sheziss sobre os dragões: "Cuidavam dos sangues-quentes porque eram seus aliados, ou melhor dizendo, seus vassalos. Podiam chegar a sentir algum carinho por aqueles que lhes estavam mais próximos, tê-los-iam defendido, talvez; mas não os amavam." Sentiu um calafrio. "Não quero perder a minha parcela humana", pensou. "Não poderia tratar Shail nem Alexander como meus inferiores. São meus mestres! Ensinaram-me grande parte do que sei." Mas não conseguia evitar recordar que a notícia da morte de Allegra o deixara um pouco indiferente. Tinha-o atribuído ao facto de não ter chegado a conviver muito com a feiticeira feérica e que a dor que sentia pelo sacrifício de Victoria e o que resultara dele o impediam de pensar noutra coisa. Queria acreditar que se tratava disso.

- Mas sinto carinho por algumas pessoas - disse de repente. - Por ti, e por Alexander, e por Kimara, por exemplo.

- És em parte humano. Não te esqueças.

"E Christian?", perguntou-se então Jack. O shek tinha de manter um cuidadoso equilíbrio entre as duas partes da sua alma híbrida. Poderia ele ter amigos? Chegar a sentir carinho por alguém? Era evidente que Gerde não chegara a conseguir tanto dele. Questionou-se, de repente, se haveria alguém à sua espera no lugar para onde ele partira, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Apesar de já conhecer bastante bem os sheks, Christian continuava a ser, em muitos aspectos, um mistério para ele.

Shail olhou de relance para os sóis que começavam a pôr-se.

- Parto manhã, ao primeiro amanhecer - disse, respirando fundo.

- Espero ter sorte! De caminho... tentarei descobrir mais coisas sobre o que se está a passar. Sobre os lugares onde ainda restam serpentes e como está Nandelt agora que foram derrotadas. Também... - hesitou

- gostaria de encontrar respostas para os problemas que nos apresentaste no outro dia. Se é verdade que os deuses se aproximam e o que acontecerá no caso de eles regressarem. Se é verdade que a sombra do Sétimo anda à solta por Idhún, onde se encontra, o que está a fazer e se podemos travá-lo. O que ou quem foi exactamente Ashran: se um homem possuído por um deus ou, simplesmente, um disfarce de carne sem outro espírito a não ser o do Sétimo, ou ainda se estás enganado a seu respeito e não foi mais do que um dos arquifeiticeiros perdidos, um particularmente poderoso e tortuoso. Talvez assim possamos entender um pouco melhor o que aconteceu... e o que está a acontecer. Tenho a sensação de que está tudo muito calmo... demasiado calmo.

- São muitas as coisas que queres investigar - sorriu Jack. - Quem me dera poder acompanhar-te.

- Não, tu tens de ficar aqui a cuidar de Victoria. Também eu me sentirei melhor se souber que estás com ela.

Jack assentiu.

- Não me afastarei dela, fica tranquilo. Por nada deste mundo. Shail sorriu, fez um gesto de despedida e saiu do quarto.

Jack permaneceu em silêncio a olhar para Victoria, para o seu semblante pálido, obscurecido pelo vazio de trevas que marcava o lugar onde a estrela da sua testa brilhara em tempos com uma luz pura e cristalina. Tocou os seus lábios hirtos com a ponta dos dedos e evocou, uma vez mais, todos os momentos que tinham passado juntos. Ergueu-a com cuidado para a abraçar e embalou-a suavemente nos seus braços.

- Pequena, minha pequena... - sussurrou.

Não conseguiu dizer mais nada. Enterrou o rosto no seu macio cabelo escuro... e chorou.

 

                             ESPÍRITO

A alma voava, leve, entre as folhas das árvores, entre os ramos e as flores, movida pela brisa, num eterno mundo verde onde não existia dor, pesar, ódio ou sofrimento.

Tinha sido sempre assim ou pelo menos assim lhe parecia, apesar de estar ali há pouco tempo. E percorria os recantos mais belos do bosque de Awa sem ter consciência dos seres vivos que os habitavam ou talvez percebendo-os simplesmente como um lindo quadro ou como centelhas numa noite estrelada. De modo que aquela alma feérica flutuava, feliz e em paz, entre as almas de muitos outros da sua raça que haviam morrido antes de si e que já não tinham rosto nem nome, porque tinham deixado há muito todas aquelas coisas materiais, quando a Voz a chamou.

A alma quis resistir. Não desejava regressar de maneira nenhuma. O mundo era algo incómodo e aborrecido, sujeito às leis materiais, e nem de longe tão belo e agradável como a dimensão onde se movimentava. Mas a Voz insistia e arrastou-a com ela, separando-a das outras...

Teria gritado, se tivesse boca para o fazer.

Não obstante, depressa voltou a tê-la. Sentiu-se outra vez apertada pelos limites de um corpo, expandiu-se rapidamente por cada célula, enquanto o seu coração voltava a bater e a bombear novamente sangue através das veias. Procurou abrir a boca para gritar, mas não foi capaz. Também não conseguiu abrir os olhos, pelo menos não de imediato.

A alma acabou por se acomodar... e foi então que descobriu, com desagrado, que havia já um inquilino naquele corpo.

"Quem és?", quis perguntar.

"Sou eu, filha de Wina", disse a Voz. "Mas, agora, também sou tu."

O corpo sofreu um espasmo. Subitamente a fada abriu os olhos e inspirou. Os pulmões doeram-lhe, mas ignorou a dor e levantou-se, sobressaltada, tentando assimilar a ideia de que momentos antes estava morta, mas agora voltava a estar viva. Olhou para as mãos e viu-as tão suaves e perfeitas como sempre. Tocou no cabelo. "Sou eu", pensou. "Mas não sou eu. Não completamente."

"És eu", disse a Voz. "Mas também sou tu. Devolvi-te a vida para que sejamos um só."

A fada estremeceu de horror, mas a Voz continuou a falar enquanto, pouco a pouco, a sua essência, a essência do Sétimo, se ia apoderando da sua alma.

"Aqui estaremos seguros", disse a Voz, mas no seu lugar foi a voz dela que pronunciou de forma audível:

- Aqui estarei segura.

Levantou-se lentamente. Fazia tempo que não caminhava. Quanto? Dias? Meses? Anos? Mas o seu corpo estava bem, não se tinha corrompido; tinha aguardado em perfeitas condições que regressasse para o habitar de novo. Compreendeu que Ashran o mantivera assim, prevendo o que poderia acontecer.

Ergueu os braços por cima da cabeça. Tinha-se acabado a paz, era certo, mas sentir-se viva outra vez era algo maravilhoso. Gritou. Fez-lhe bem ouvir a sua própria voz.

Voltava a ser ela própria e, em simultâneo, não o era. Sabia que um novo poder obscuro habitava o seu corpo, mas não o considerou algo estranho nem uma intrusão.

Era parte de si, com os seus conhecimentos, com as suas lembranças. Contudo, também as lembranças da fada permaneciam intactas e, quando começou a relembrar o passado, o ódio e o rancor inundaram-lhe a alma.

Mas não o medo. Tinha deixado de sentir medo, porque aquelas criaturas que lhe tinham feito mal outrora já não lhe podiam tocar.

- Sei quem sou - disse em voz alta.

Fechou os olhos por um momento. Aquela essência negra era parte de si, mais do que nunca. E era imortal e indestrutível. Sorriu. Nunca na vida se sentira tão bem.

Olhou em volta com curiosidade e descobriu que estava numa espécie de cave abandonada. Reconheceu-a: era a cave da Torre de Drackwen. Parte do tecto tinha-se desmoronado, mas um conjuro de protecção mantivera intacto o altar de pedra onde havia sido depositado o seu corpo, tempos antes. Estremeceu de prazer. Estava maravilhosamente viva. E sentia que podia fazer o que quisesse, porque o mundo inteiro lhe pertencia.

O seu olhar deteve-se num objecto que descansava perto de si, numa prateleira escavada na parede. Estendeu a mão para pegar nele, mas deteve-se por instantes, indecisa. No entanto, começou imediatamente a recordar os pormenores.

- Foi ela que mo entregou. Portanto, pertence-me.

Os seus dedos longos e finos fecharam-se em volta do corno de unicórnio e pegaram nele com delicadeza, tirando-o do lugar onde estivera guardado até então. O corno limitou-se a emitir uma leve vibração, antes de se render a ela. Talvez aquele corpo não fosse o mesmo ao qual tinha sido entregue, talvez a alma também não fosse exactamente a mesma... mas a poderosa essência que o animava não tinha mudado.

A fada, acariciando o corno de unicórnio com as pontas dos dedos, esboçou um sorriso maldoso e encantador.

- Sei quem sou - repetiu. - Sou Gerde. E sou uma deusa.

 

                                                                                Laura Gallego García  

 

                      

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