Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DETETIVE PARKER PYNE / Agatha Christie
O DETETIVE PARKER PYNE / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DETETIVE PARKER PYNE

                       

 

O Caso da Esposa de Meia-idade

Quatro grunhidos, uma voz indignada pergun­tando por que alguém não deixava em paz um chapéu, uma porta fechada com estrondo e o Sr. Packington saiu para pegar o trem das oito e quarenta e cinco para a cidade. A Sra. Packington sentou-se à mesa do café. Tinha o rosto ruborizado e os lábios apertados: e só não chorava porque a mágoa tinha sido substituída pela raiva.

— Não agüento mais — disse a Sra. Packington. — Não agüento mais! — ficou pensativa por alguns mo­mentos e depois murmurou: — Aquela sirigaita. Que mulherzinha hipócrita e indecente! Como George pôde ser tão estúpido!

A raiva passou; voltou a mágoa. As lágrimas enche­ram os olhos da Sra. Packington e rolaram lentamente pelo seu rosto de mulher madura.

— É muito fácil dizer que eu não agüento mais, mas o que é que eu posso fazer?

De repente, sentiu-se sozinha e indefesa, comple­tamente abandonada. Com gestos lentos, pegou o jornal e leu — não pela primeira vez — um anúncio de primeira página:

CONFIDENCIAL

VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR, CONSULTE O SR. PARKER PYNE. RUA RICHMOND, 17.

 

— Absurdo! — disse a Sra. Packington. — Comple­tamente absurdo! — e depois: — Enfim, não custa tentar...

Eis por que, às onze horas da manhã, a Sra. Packington, um pouco nervosa, entrou no escritório parti­cular do Sr. Parker Pyne.

A Sra. Packington estava nervosa, sim, mas a sim­ples visão do Sr. Parker Pyne lhe deu uma impressão de segurança. Ele era forte, para não dizer gordo; tinha uma cabeça calva bem proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos brilhantes.

— Sente-se, por favor — disse o Sr. Parker Pyne.

— Viu o meu anúncio? — perguntou, para ajudá-la.

— Sim — disse a Sra. Packington, e não disse mais nada.

— E não é feliz — disse o Sr. Parker Pyne numa voz jovial e prática. — Muito poucas pessoas o são. A se­nhora ficaria surpresa se soubesse que muito poucas pessoas são felizes.

— É mesmo? — perguntou a Sra. Packington sem convicção e pouco se importando que as outras pessoas fossem ou não infelizes.

— Eu sei que isso não lhe interessa — disse o Sr. Parker Pyne, — mas a mim interessa muito. Veja a se­nhora que durante trinta e cinco anos da minha vida eu só fiz compilar estatísticas numa repartição do Go­verno. Agora que me aposentei, me ocorreu a idéia de aproveitar de uma maneira diferente toda a experiência que adquiri. É tudo muito simples. As desgraças todas podem ser classificadas em cinco categorias principais

— nem mais nem menos, posso lhe garantir. Uma vez conhecida a causa de uma doença, a cura passa a ser perfeitamente possível. Eu me coloco no papel de um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do pa­ciente, depois prescreve o tratamento. Há casos em que nenhum tratamento dá resultado. Quando é assim, digo com toda a franqueza que não posso fazer nada. Mas lhe garanto, Sra. Packington, que se eu tomar conta de seu caso, a cura é praticamente garantida.

Seria possível? Seria uma tolice ou seria verdade? A Sra. Packington olhou esperançosa para ele.

— Podemos diagnosticar o seu caso? — disse o Sr. Parker Pyne sorrindo. Recostou-se em sua cadeira e juntou as pontas dos dedos das mãos. — O problema diz respeito a seu marido. De um modo geral a senhora teve um casamento feliz. Creio que seu marido prosperou. Suponho que haja uma jovem neste caso... talvez uma moça que trabalhe no escritório de seu marido.

— Uma datilografa — disse a Sra. Packington. — Uma sirigaitazinha falsa e indecente, cheia de batom e meias de seda e cachinhos. As palavras saíram aos bor­botões. .

O Sr. Parker Pyne balançou a cabeça de maneira apaziguadora. — Não há nada de mal nisso... certa­mente é isso o que o seu marido diz...

— É exatamente isso.

— E por que não poderia ele manter uma amizade pura com esta moça e proporcionar um pouquinho de alegria e prazer a sua existência tão monótona? Pobre menina! Ela se diverte tão pouco... Suponho que sejam estes os seus sentimentos.

A Sra. Packington fez que sim com a cabeça, vigoro­samente — Um embuste... tudo um embuste! Ele a leva ao rio... eu também gosto muito de ir ao rio, mas há uns cinco ou seis anos ele me disse que isso atrapalhava o golfe dele. Agora ele deixou o golfe de lado por causa dela. Eu gosto de teatro, mas George vivia dizendo que estava muito cansado para sair de noite. Agora sai com ela para dançar — dançar! E volta às três da ma­drugada! Eu... eu...

— E sem dúvida ele lamenta o fato de que as mu­lheres sejam tão ciumentas... tão injustificàvelmente ciumentas, quando não há nenhum motivo para o ciúme?

Novamente a Sra. Packington fez que sim com a ca­beça — é isso — perguntou secamente: — Como é que o senhor sabe disso?

— Estatísticas — disse o Sr. Parker Pyne com sim­plicidade.

— Eu sou tão infeliz — disse a Sra. Packington. — Sempre fui uma esposa dedicada para George. Gastei as minhas unhas até o sabugo nos primeiros anos da nossa vida. Eu o ajudei a vencer. Nunca olhei para outro homem. Suas roupas estão sempre em ordem, a comida é boa, cuido muito bem da casa, e com economia. E agora que superamos as dificuldades e poderíamos nos divertir, sair um pouco e fazer todas as coisas que eu tinha von­tade de fazer algum dia... vai acontecer isso! — ela en­goliu em seco.

O Sr. Parker Pyne concordou gravemente — Pode ficar certa de que compreendo perfeitamente o seu caso.

— E... pode fazer alguma coisa? — ela quase sus­surrou a pergunta.

— Certamente, minha cara senhora. Há cura. Cer­tamente que há cura.

— E qual é? — ela aguardava ansiosa, os olhos ar­regalados.

O Sr. Parker Pyne falou com uma voz calma e firme

— A senhora vai se colocar em minhas mãos, e meus ho­norários serão de duzentos guinéus.

— Duzentos guinéus!

— Exatamente. A senhora pode pagar isto, Sra. Packington. Pagaria por uma operação. A felicidade é tão importante quanto a saúde do corpo.

— Suponho que vou pagar depois.

— Pelo contrário — disse o Sr. Parker Pyne. — A senhora vai me pagar adiantado.

A Sra. Packington se levantou — Não vejo por que...

— A senhora teme comprar gato por lebre? — disse o Sr. Pyne jovialmente. — Bem, talvez a senhora tenha razão. É muito dinheiro para arriscar. A senhora tem que confiar em mim. Pagar e correr o risco. São estas as minhas condições.

— Duzentos guinéus!

— Exatamente. Duzentos guinéus. É muito dinheiro. Bom dia, Sra. Packington. Me avise se mudar de idéia

— apertou-lhe a mão, sorrindo, imperturbável.

Depois que ela saiu, apertou um botão na sua mesa. Uma moça de óculos e ar severo respondeu ao chamado.

— Um fichário, por favor, Srta. Lemon. E pode também avisar a Claude que eu talvez vá precisar dele brevemente.

— Uma nova cliente?

— Uma nova cliente. Por enquanto ela está relu­tante, mas vai voltar. Provavelmente hoje à tarde, lá pelas quatro horas. Pode deixar entrar.

— Esquema A?

— Esquema A, é lógico. É engraçado como todo mundo pensa que o seu próprio caso é único. Bom, avise Claude. Diga-lhe para não parecer muito exótico. Nada de perfume, e é melhor ele cortar o cabelo.

Passavam quinze minutos das quatro horas quando a Sra. Packington entrou de novo no escritório do Sr. Parker Pyne. Tirou da bolsa um livro de cheques, pre­encheu um deles e o entregou. Em troca obteve um re­cibo.

— E agora? — a Sra. Packington olhou esperançosa para ele.

— Agora — disse o Sr. Pyne sorrindo, — a senhora vai voltar para casa. Pelo primeiro correio de amanhã vai receber algumas instruções que eu gostaria muito de ver cumpridas.

A Sra. Packington voltou para casa num estado de alegria antecipada. O Sr. Packington voltou com ar de­fensivo, pronto para discutir a situação, caso a cena da manhã fosse reaberta. Ficou aliviado, entretanto, ao ver que a mulher não estava com espírito combativo. Ela parecia estranhamente pensativa.

 

George ficou ouvindo rádio, imaginando se aquela pobre e querida Nancy consentiria que ele lhe desse um casaco de peles. Ele sabia que ela era muito orgulhosa. Não queria ofendê-la. Apesar disso, ela se queixara do frio. Aquele casaco de lã era tão ordinário; nem a pro­tegia do frio. Talvez ele conseguisse convencê-la, talvez...

Breve eles poderiam novamente sair juntos à noite. Era um prazer sair com uma moça assim e levá-la a um dos restaurantes da moda. Ele se sentia invejado por muitos rapazes. Ela era extraordinariamente bonita. E gostava dele. Para ela — como já lhe dissera — ele não era nem um pouquinho velho.

Levantou os olhos e percebeu o olhar da mulher. Sentiu-se repentinamente culpado e isto o aborreceu. Que mulher intolerante era Maria! Negava-lhe até um pinguinho de felicidade.

Desligou o rádio e foi para a cama.

A Sra. Packington recebeu duas cartas inesperadas, na manhã seguinte. Uma delas era um impresso confir­mando uma hora marcada num conhecido especialista de beleza. A segunda marcava uma hora com uma costu­reira. A terceira era do Sr. Parker Pyne, solicitando o prazer de sua companhia para um almoço no Ritz na­quele dia.

O Sr. Packington avisou que talvez não pudesse vir jantar em casa, pois tinha que ver um homem de ne­gócios. A Sra. Packington abanou a cabeça distraidamente, e ele saiu de casa satisfeito por ter escapado da tempestade.

O especialista de beleza foi admirável: — Mas que negligência! Por quê? Por que, Madame? Há muito tem­po que a senhora devia ter feito alguma coisa. Feliz­mente, ainda não é tarde!

Uma porção de coisas foram aplicadas sobre o seu rosto; ele foi massageado, apertado e tratado a vapor. Aplicaram-lhe uma máscara de lama. Aplicaram-lhe cremes diversos. Passaram pó-de-arroz. E depois houve uma série de retoques finais.

Por fim lhe deram um espelho. Acho que estou mes­mo parecendo mais moça, pensou ela.

A hora com a costureira foi igualmente excitante. Saiu de lá se sentindo elegante, atualizada, no rigor da moda.

A uma e meia da tarde, a Sra. Packington chegava ao Ritz. O Sr. Parker Pyne, impecàvelmente vestido, e envolto numa aura de serena confiança, estava espe­rando por ela.

—Encantadora — disse, com um olho experiente a examiná-la da cabeça aos pés. — Me antecipei e lhe en­comendei um White Lady.

A Sra. Packington não tinha o hábito de tomar co­quetéis, mas não disse nada. Enquanto bebia cautelosa­mente o excitante líquido, ouvia o seu paciente instrutor.

— Seu marido, Sra. Packington — disse o Sr. Pyne, —vai ser obrigado a ficar em guarda. Compreendeu? Se interessar. Para ajudá-la, vou apresentá-la a um jo­vem amigo meu. A senhora vai almoçar com ele hoje.

Neste instante entrou um rapaz, olhando de um lado para outro. Ao avistar o Sr. Parker Pyne, caminhou em sua direção, com elegância.

— O Sr. Claude Luttrell, Sra. Packington.

O Sr. Claude Luttrell talvez ainda não tivesse trinta anos. Era atraente, desembaraçado, impecàvelmente ves­tido, extremamente bonito.

— Muito prazer em conhecê-la — murmurou.

Três minutos depois, a Sra. Packington estava fren­te a frente com seu novo mentor, numa pequena mesa para dois.

Estava um pouco tímida no início, mas o Sr. Lut­trell logo a colocou à vontade. Ele conhecia Paris muito bem e passara um bom tempo na Riviera. Perguntou à Sra. Packington se ela gostava de dançar. Ela disse que gostava, mas quase não saía para dançar, atualmente, porque o Sr. Packington não gostava muito de sair de noite.

— Mas ele não pode ser tão cruel assim, a ponto de prendê-la em casa — disse Claude Luttrell, sorrindo e mostrando uma deslumbrante fileira de dentes. — As mulheres não devem mais tolerar o ciúme masculino, em nossos dias.

A Sra. Packington quase disse que o problema não era o ciúme, mas as palavras não saíram. Apesar de tudo, a idéia era agradável.

Claude Luttrell falou superficialmente de boates. Fi­cou combinado que na noite seguinte a Sra. Packington e o Sr. Luttrell iriam conhecer o popular Arcanjo Menor.

A Sra. Packington se sentia um pouco nervosa ante a perspectiva de anunciar o fato ao marido. Imaginou que George ia achar muito estranho e talvez ridículo. Mas teve sorte. Estava muito nervosa para falar com ele durante o café da manhã, e lá pelas duas horas da tarde um telefonema lhe informou que o Sr. Packington ia jan­tar na cidade.

A noitada foi um sucesso. A Sra. Packington dan­çava muito bem quando era moça, e, sob a sábia orien­tação de Claude Luttrell, não demorou a aprender os passos modernos. Ele lhe deu os parabéns pelo vestido e pelo penteado. (Tinham-lhe marcado uma hora na­quela manhã com um dos cabeleireiros da moda). Ao se despedir, ele beijou a sua mão de uma maneira eletrizante. Há muitos anos que a Sra. Packington não passa­va uma noite tão divertida.

Seguiram-se dez dias fantásticos. A Sra. Packington almoçava, lanchava, dançava tango, jantava, valsava e ceava. Ficou sabendo tudo sobre a triste infância de Claude Luttrell. Conheceu as desafortunadas circunstân­cias nas quais o pai perdera todo o seu dinheiro. Ouviu a história do trágico romance que lhe amargurava os sentimentos em relação às mulheres em geral.

No décimo primeiro dia, eles foram dançar no Almi­rante Vermelho. A Sra. Packington viu seu marido antes que ele a visse. George estava com a moça do escritório. Os dois casais estavam dançando.

— Olá, George — disse baixinho a Sra. Packington, quando passou por ele.

Foi com certa satisfação que ela viu o rosto de seu marido ficar primeiro vermelho e depois roxo de espanto. Além do espanto, havia uma expressão de quem descobre um erro.

A Sra. Packington se sentiu divertidamente dona da situação. Coitado do George! De volta à sua mesa, ela se pôs a observá-lo. Como estava gordo, como estava ca­reca, como cambaleava! Ele dançava como há uns vinte anos atrás. Coitado, que força estava fazendo para pa­recer jovem! E aquela pobre moça que dançava com ele e fingia que estava gostando. Ela agora parecia muito chateada, o rosto por cima do ombro dele para que ele não pudesse vê-lo.

A Sra. Packington pensou muito satisfeita que a sua situação era bem mais invejável. Olhou de relance para o maravilhoso Claude, agora taticamente em silêncio. Como ele a compreendia bem! Nunca discordava dela — os maridos sempre discordam depois de alguns anos.

Tornou a olhar para ele. Seus olhos se encontraram. Ele sorriu; seus lindos olhos escuros, tão melancólicos, tão românticos, olharam ternamente dentro dos dela.

— Vamos dançar outra vez? — murmurou ele.

Dançaram novamente. Era o paraíso.

Ela sentia o olhar apoplético de George a segui-los. A idéia tinha sido dela, ela se lembrava, de provocar ciú­mes em George. Há tanto tempo! Mas agora ela não queria mais despertar os ciúmes de George. Poderia abor­recê-lo. Por que aborrecê-lo, afinal de contas? Coitadi­nho! Todo mundo estava tão feliz...

 

O Sr. Packington já estava em casa há uma hora quando a Sra. Packington entrou. Ele parecia confuso e inseguro.

— Hum — resmungou. — Afinal você chegou.

A Sra. Packington atirou longe um xale que lhe ti­nha custado quarenta guinéus, naquela mesma manhã. — É — disse sorrindo, — cheguei.

George tossiu — Er... foi estranho encontrar você.

— Foi mesmo, não é? — disse a Sra. Packington.

— Eu... bem, eu pensei que seria um gesto delicado da minha parte levar aquela moça a algum lugar. Ela tem tido tantos problemas em casa. Eu pensei. .. bem, delicadeza, você compreende.

A Sra. Packington fez que sim com a cabeça. Pobre George — saltitando e se entusiasmando e tão satisfeito consigo mesmo.

— Quem era aquele camarada que estava com você? Eu não o conheço, conheço?

— Chama-se Luttrell. Claude Luttrell.

— Como foi que você o conheceu?

— Oh, alguém me apresentou — disse a Sra. Packington vagamente.

— É esquisito você sair dançando por aí... na sua idade. Não vá ficar ridícula, minha querida.

A Sra. Packington sorriu. Ela estava se sentindo muito satisfeita, com o mundo inteiro paria dar a res­posta óbvia. — Uma mudança é sempre agradável — disse amistosamente.

— Você precisa ter cuidado, sabe? Há uma porção destes dançarinos profissionais por aí. Mulheres de meia-idade às vezes fazem papéis ridículos. Estou só lhe avi­sando, minha cara. Não gostaria de ver você fazendo o que não deve.

— Acho muito bom o exercício — disse a Sra. Pack­ington.

— Hum. .. bom...

— Espero que você também ache — disse simpática a Sra. Packington. — O importante mesmo é a gente se sentir feliz, não é? Me lembro que você me disse isso há uns dez dias.

O marido olhou rapidamente para ela, mas não ha­via nem uma ponta de sarcasmo na sua expressão. Ela bocejou.

— Vou me deitar. Antes que eu me esqueça, George, tenho sido horrivelmente extravagante neste últimos dias. Algumas contas terríveis vão chegar. Você não se importa, não é?

— Contas? — perguntou o Sr. Packington.

— É. Vestidos. E massagens. E tratamento para os cabelos. Horrivelmente extravagante... mas eu sei que você não se importa...

Ela subiu as escadas. O Sr. Packington ficou de boca aberta. Maria tinha sido maravilhosamente gentil em re­lação ao que acontecera aquela noite; parecia não ter dado a menor importância. Mas era uma pena que de re­pente ela começasse a gastar dinheiro. Maria — um mo­delo de economia!

Mulheres! George Packington balançou a cabeça. As confusões em que os irmãos daquela garota se tinham metido nos últimos dias... Bem, ele continuava disposto a ajudá-la. Apesar de tudo... bolas! As coisas já não estavam indo assim tão bem lá pela cidade.

Suspirando, o Sr. Packington subiu as escadas de­vagar.

Às vezes, só mais tarde prestamos atenção a pala­vras que na hora não pareceram importantes. Só na ma­nha seguinte certas palavras que o Sr. Packington dis­se entraram realmente na consciência de sua mulher.

Dançarinos profissionais; mulheres de meia-idade; cair no ridículo.

A Sra. Packington era uma mulher corajosa. Sen­tou-se e enfrentou os fatos. Um gigolô. Ela sempre leu histórias de gigolôs nos jornais. Leu também a respeito de loucuras cometidas por mulheres de meia-idade.

Claude seria um gigolô? Ela calculou que sim. Mas então como é que os gigolôs eram sempre pagos e era Claude quem pagava todas as despesas? Sim, mas era o Sr. Parker Pyne quem pagava, não Claude — ou melhor, eram os seus próprios duzentos guinéus.

Seria ela uma estúpida mulher de meia-idade? Será que Claude Luttrell ria dela pelas costas? A este pensa­mento seu rosto ficou vermelho.

Bem, e se fosse mesmo? Claude era um gigolô. Ela era uma ridícula mulher de meia-idade. Logo ela devia lhe dar um presente. Uma cigarreira de ouro, qualquer coisa no gênero.

Um impulso excêntrico levou-a até o Asprey's. Es­colheu e comprou uma cigarreira. Ia se encontrar com Claude para almoçar no Claridge.

Quando tomavam o café ela mexeu na bolsa — Um presentinho — murmurou.

Ele olhou para ela, franziu as sobrancelhas — Para mim?

— É. Eu... espero que você goste. Ele pegou a cigarreira e a empurrou violentamente para o outro lado da mesa — Por que você me deu isso?

Não quero. Leve de volta. Leve de volta! — estava zan­gado. Seus olhos escuros faiscavam.

— Desculpe — murmurou ela, e a colocou de volta na bolsa.

Houve um certo constrangimento entre os dois na­quele dia.

Na manhã seguinte ele telefonou — Preciso ver vo­cê. Posso ir à sua casa hoje à tarde?

Ela marcou para as três da tarde.

Claude chegou muito pálido, muito tenso. Cumpri­mentaram-se. O constrangimento se tornou mais evi­dente.

De repente ele se pôs de pé e ficou em frente dela — O que é que você pensa que eu sou? Foi isso que eu vim lhe perguntar. Nós temos sido amigos, não é mesmo? Sim, amigos... Mas apesar de tudo você pensa que eu sou... é, é isso mesmo, um gigolô. Uma criatura que vive às custas de mulheres. É isso que você pensa, não é?

— Não, não!

Ele interrompeu seu protesto. Seu rosto estava ainda mais pálido — É isso mesmo que você pensa! Bom, é ver­dade. Foi isso que eu vim dizer. É verdade! Eu recebi or­dens para sair com você, para lhe fazer a corte, fazer vo­cê esquecer seu marido. É este o meu emprego. Um em­prego abjeto, não é?

— Por que você me contou isso tudo? — perguntou ela.

— Porque eu estou cheio dessa história toda. Não posso mais continuar. Não com você. Você é diferente. Você é o tipo da mulher em quem eu pude confiar, acre­ditar, gostar. Você vai pensar que eu estou dizendo isso porque é parte do negócio — aproximou-se dela. — Vou lhe provar que não é verdade. Vou-me embora por sua causa. Vou tentar ser um homem de verdade, em vez da criatura repulsiva que fui até hoje.

De repente ele a tomou nos braços. Seus lábios se apertaram contra os dela. Soltou-a e se afastou um pouco.

— Adeus. Sempre fui abjeto. Sempre. Mas juro que de hoje em diante vai ser diferente. Se lembra que você falou uma vez que gostava de ler os Anúncios Pessoais? No dia de hoje, todos os anos, você vai encontrar um re­cado meu dizendo que eu sempre me lembro de você e que continuo no bom caminho. Você vai ver então o quanto significou para mim. Mais uma coisa. Não quero nada de você. Mas quero que guarde alguma coisa minha — tirou do dedo um anel de ouro. — Foi de minha mãe. Quero que você fique com ele. Agora, adeus...

George Packington voltou cedo para casa. Encon­trou a mulher sentada em frente da lareira com um olhar diferente. Falou gentilmente com ele, mas parecia es­tranha e alheia à sua presença.

— Olhe aqui, Maria — começou ele, aos arrancos. — Aquela moça.

— Sim, querido?

— Eu... eu nunca quis aborrecer você, sabe. Com ela. Não há nada.

— Eu sei. Fui uma boba. Pode vê-la quantas vezes quiser, se isto faz você ficar feliz.

Tais palavras deviam ter alegrado George Packing­ton, é lógico. Por mais estranho que possa parecer, elas o aborreceram. Como podia ele se divertir saindo com a moça, se a sua própria mulher praticamente o obrigava a isto? Francamente isso nem era decente! Toda aquela sensação de poder, de homem forte que brincava com fogo, se desvaneceu e morreu melancòlicamente. De re­pente, George Packington se sentiu cansado, esvaziado. A garota era muito esperta...

— Nós podíamos sair um pouco, se você quisesse, Maria — sugeriu timidamente.

— Não se preocupe comigo. Estou muito feliz.

— Mas eu gostaria de levar você para passear; po­díamos ir para a Riviera.

A Sra. Packington sorriu levemente.

Pobre George... Ela se orgulhava dele. Era um ve­lhinho tão terno! Não havia na vida um segredo tão lin­do quanto o dela. Ela sorriu ainda com mais ternura.

— Seria ótimo, querido — disse.

O Sr. Parker Pyne estava falando com a Srta. Lemon — Despesas com os divertimentos?

— Cento e duas libras, quatorze shillings e seis pence.

A porta abriu e entrou Claude Luttrell. Estava com um ar amuado.

— Bom dia, Claude — disse Parker Pyne. — Foi tudo

bem?

— Acho que sim.

— O anel? Qual foi o nome que você mandou gra­var, por falar nisso?

— Matilda — disse Claude taciturno. — 1899.

— Ótimo. E as palavras do anúncio?

— Continuo bem. Ainda me lembro de você. Claude.

— Tome nota, por favor, Srta. Lemon. Na coluna dos Anúncios Pessoais. No dia três de novembro... deixe ver... despesas de cento e duas libras, quatorze shillings e seis pence. Por dez anos, acho. Isto nos deixa um lucro liquido de noventa e duas libras, dois shillings e quatro pence. Correto. Perfeitamente correto.

A secretária saiu.

— Olhe aqui — explodiu Claude. — Não gosto disso. É um jogo sujo.

— Meu rapazinho!

— Jogo sujo. Uma mulher decente... uma mulher direita. Contar todas estas mentiras. Enganá-la com es­tas histórias sentimentais, que horror. Isso me deixou doente!

Parker Pyne endireitou os óculos e olhou para Clau­de com uma espécie de interesse científico. — Meu caro — disse secamente, — não me recordo de nenhum mo­mento em que a sua consciência o tenha preocupado em toda a sua... ahn... notória carreira... Seus negócios na Riviera foram particularmente inescrupulosos, e a sua exploração da Sra. Hattie West, mulher do Rei dos Pepinos da Califórnia, foi notável, pelo instinto merce­nário e empedernido que você demonstrou.

— Bem, estou começando a me sentir diferente — resmungou Claude. — Não é direito... esse tipo de jogo.

Parker Pyne falou num tom de voz como o do pro­fessor que repreende o aluno favorito — Claude, meu caro, você praticou uma boa ação. Deu a uma mulher in­feliz o que todas as mulheres precisam — um romance. Uma mulher pode destruir uma paixão e não aproveitar nada de bom dela, mas um romance pode ser guardado com carinho e relembrado por muitos anos. Eu conheço a natureza humana, meu jovem, e posso lhe garantir que uma mulher alimentará um romance por muitos anos — pigarreou. — Cumprimos com pleno êxito nossa missão com a Sra. Packington.

— Bem — murmurou Claude. — Mas isso não me agrada — e deixou a sala.

Parker Pyne apanhou um fichário novo numa ga­veta. Escreveu: Curiosos vestígios de consciência num gigolô empedernido. Nota: acompanhar o desenvolvi­mento.

 

O Caso do Soldado Insatisfeito

Major Wilbraham hesitou em frente à porta do escritório de Parker Pyne para ler — não pela primeira vez — o anúncio do matutino que o trouxera até ali. Era muito simples:

CONFIDENCIAL

VOCÊ É FELIZ? SE NÃO FOR, CONSULTE O SR. PARKER PYNE. RUA RICHMOND, 17.

 

O Major respirou fundo e bruscamente avançou pela porta giratória do escritório. Uma jovem de maneiras simples levantou os olhos da máquina de escrever e olhou interrogativamente para ele.

— O Sr. Parker Pyne? — disse o Major Wilbraham, meio envergonhado.

— Por aqui, por favor.

Ele a seguiu até um escritório interno —: até chega­rem à presença do afável Sr. Parker Pyne.

— Bom dia — disse o Sr. Pyne. — Sente-se, por fa­vor. E me diga o que posso fazer pelo senhor.

— Meu nome é Wilbraham... — começou o outro.

— Major? Coronel? — perguntou o Sr. Pyne.

— Major.

— Ah! E voltou há pouco tempo do exterior? índia? África Oriental?

— África Oriental.

— Um lugar esplêndido, imagino. Então, está de volta ao lar... e não gostou daqui. É este o problema?

— O senhor está absolutamente certo. Como foi que soube...

O Sr. Parker Pyne balançou a mão, num gesto im­ponente — Meu negócio é saber. Veja o senhor que du­rante trinta e cinco anos da minha vida eu só fiz com­pilar estatísticas numa repartição do Governo. Agora que me aposentei, me ocorreu a idéia de aproveitar, de uma maneira diferente, toda a experiência que adquiri. É tudo muito simples. As desgraças todas podem ser clas­sificadas em cinco tipos principais — nem mais nem me­nos, posso lhe garantir. Uma vez conhecida a causa de uma doença, a cura passa a ser perfeitamente possível. Eu me coloco no papel de um médico. Primeiro o médico diagnostica o mal do paciente, depois prescreve o trata­mento. Há casos em que nenhum tratamento dá resul­tado. Quando é assim, digo com toda a franqueza que não posso fazer nada. Mas se eu tomar conta do caso, a cura é praticamente garantida. Eu lhe garanto, Major Wilbraham, que noventa e seis por cento dos antigos construtores do Império — que é como eu os chamo — são infelizes. Eles trocaram uma vida ativa, uma vida cheia de responsabilidades, uma vida de possíveis peri­gos, por... pelo quê? Restrições mesquinhas, um clima melancólico e um sentimento generalizado de que vira­ram uma espécie de peixe fora dágua.

— Tudo verdade — disse o Major. — É o tédio que me persegue. O tédio e esta tagarelice sem fim sobre os probleminhas fúteis de um vilarejo. Mas o que é que eu posso fazer? Tenho um pouco de dinheiro além da minha pensão. Tenho uma pequena casa de campo perto de Cobham. Não posso me dar ao luxo de caçar, atirar ou pescar. Não sou casado. Meus vizinhos são todos pessoas simpáticas, mas não têm nenhuma idéia do mundo além desta ilha.

— Em suma, o senhor acha que a vida é insípida — disse o Sr. Parker Pyne.

— Tremendamente insípida.

— Gostaria de emoções, de perigos, talvez?

O militar deu de ombros — Não, nesta terrinha não acontecem coisas desse tipo.

— Perdão — disse com seriedade o Sr. Pyne. — É aí que o senhor se engana. Há muito perigo, muita emoção, aqui mesmo em Londres, se o senhor souber onde pro­curar. Acho que o senhor conhece a nossa vida inglesa apenas na sua superfície, calma, inofensiva. Mas existe outra faceta. Se quiser vê-la, eu lhe mostrarei o outro lado.

O Major Wilbraham olhou pensativo para ele. Havia algo tranqüilizador no Sr. Pyne. Era forte, para não di­zer gordo; tinha uma cabeça calva bem proporcionada, óculos de lentes grossas e pequenos olhos brilhantes. E havia em torno dele uma aura... uma aura de con­fiança.

— Devo lhe avisar, entretanto — continuou o Sr. Pyne, — que haverá um elemento de risco.

Os olhos do militar faiscaram — Não há problemas — disse. E bruscamente: — E... seus honorários?

— Meus honorários — disse Parker Pyne — são de cinqüenta libras, adiantadas. Se dentro de um mês o se­nhor estiver sentindo o mesmo tédio, eu lhe devolvo o di­nheiro.

Wilbraham pensou um momento.

— Está certo — disse por fim. — Concordo. Vou lhe dar um cheque agora mesmo.

A transação foi completada, Parker Pyne apertou um botão em sua mesa.

— É uma hora da tarde — disse. — Vou lhe pedir para levar uma jovem para almoçar.

A porta abriu. — Ah, Madeleine, minha querida, deixe que eu lhe apresente o Major Wilbraham, que vai levá-la para almoçar.

Wilbraham piscou ligeiramente, o que era bastante justificável. A moça que entrou na sala era uma morena langorosa, com olhos maravilhosos e longas pestanas ne­gras, a pele perfeita e uma boca voluptuosa e muito ver­melha. Seu vestido requintado destacava a graça e a le­veza de seu corpo. Da cabeça aos pés ela era perfeita.

— Ahn... prazer — disse o Major Wilbraham.

— Miss de Sara — disse o Sr. Parker Pyne.

— Muito gentil da sua parte — murmurou Made­leine de Sara.

— Fiquei com o seu endereço — anunciou o Sr. Pyne. — Amanhã de manhã o senhor receberá minhas novas instruções.

O Major Wilbraham saiu com a encantadora Madeleine.

 

Eram três horas da tarde quando Madeleine voltou. Parker Pyne levantou a cabeça — Como foi? — per­guntou.

Madeleine fez que não — Está com medo de mim — disse. — Pensa que sou uma mulher fatal.

— Era o que eu calculava — disse Parker Pyne. — Cumpriu as instruções?

— Cumpri. Conversamos sobre as pessoas das outras mesas. O tipo que ele gosta é loura, olhos azuis, ligeira­mente franzina, não muito alta.

— Deve ser fácil — disse o Sr. Pyne. — Vá me buscar o Esquema B e veja o que temos em estoque no momento

— correu o dedo sobre uma lista e parou na altura de um nome. — Freda Clegg. É, acho que Freda Clegg é o ideal. É melhor ir falar com a Sra. Oliver.

 

No dia seguinte o Major Wilbraham recebeu um bi­lhete:

"Na segunda-feira de manhã, às onze horas, vá até Eaglemont, na Rua Friars, em Hampstead, e pergunte pelo Sr. Jones. Apresente-se como o representante da Companhia de Exportação Guava."

Na segunda-feira (que por coincidência era feriado bancário), o Major Wilbraham dirigiu-se obedientemente para Eaglemont, Rua Friars. Dirigiu-se para lá, disse eu, mas não chegou lá. Pois antes de chegar aconteceu uma outra coisa.

O mundo inteiro — com as respectivas esposas — parecia estar a caminho de Hampstead. O Major Wilbra­ham emaranhou-se em multidões, quase foi sufocado no metrô e não conseguiu descobrir onde ficava a Rua Friars.

A Rua Friars era um beco sem saída, uma estrada abandonada e cheia de buracos, com casas de ambos os lados das calçadas. Eram casas grandes que pareciam ter conhecido dias melhores e agora estavam meio abando­nadas.

Wilbraham andou pelas calçadas prestando atenção nos nomes semi-apagados nos portões, quando de repen­te ouviu alguma coisa e parou, atento. Era uma espécie de soluço, um grito meio abafado.

Escutou outra vez o mesmo barulho, mas desta vez reconheceu levemente a palavra "Socorro!". Vinha de dentro da casa em frente à qual ele estava passando.

Sem um instante de hesitação, o Major WilL.aham empurrou o portão vacilante e correu a toda velocidade pelo caminho coberto de ervas daninhas. No meio de uns arbustos uma moça lutava em desespero contra dois ne­gros enormes. Lutava com bravura, torcendo-se e chutando-os. Um dos negros lhe tapava a boca com a mão, a des­peito de seus esforços furiosos para desvencilhar a cabeça.

Empenhados na luta corri a moça, os negros não per­ceberam a aproximação de Wilbraham. A primeira coisa que perceberam foi um violento soco no queixo do ho­mem que cobria a boca da moça e que caiu para trás. Surpreendido, o outro abandonou a moça e se virou. Wil­braham esperava por ele. Uma vez mais seu soco partiu e o outro negro caiu de costas. Wilbraham virou-se para o primeiro homem, que estava se aproximando dele por trás.

Mas para os dois aquilo tinha sido suficiente. O se­gundo levantou engatinhando, sentou-se, pôs-se de pé num pulo e correu para o portão. O companheiro o se­guiu. Wilbraham se preparou para persegui-los, mas mu­dou de idéia e se virou para a moça, que estava recostada numa árvore, ofegante.

— Oh, muito obrigada! — falou ela, com uma voz entrecortada. — Foi horrível!

Pela primeira vez, o Major Wilbraham viu quem era a pessoa que ele tão oportunamente salvara. Era uma jo­vem de uns vinte e um a vinte e dois anos, loura, de olhos azuis, de uma beleza tranqüila.

— Se o senhor não tivesse chegado! — suspirou ela.

— Ora, ora — disse o Major Wilbraham para acal­má-la. — Agora está tudo bem. Acho melhor nós irmos embora, eles podem voltar.

Um leve sorriso surgiu nos lábios da garota — Não acredito que eles voltem... depois do que o senhor fez. Oh, foi maravilhoso da sua parte!

O Major Wilbraham ficou envergonhado com o olhar de admiração da moça — Não foi nada — disse, confuso. — Acontece todo dia. Estavam aborrecendo a senhora. Olhe, será que pode andar apoiada no meu braço? Foi um choque muito desagradável, eu sei.

— Já estou bem — disse a moça. Mas aceitou a pro­teção do braço. Ainda estava toda trêmula. Olhou de re­lance para trás quando saíram pelo portão — Não en­tendo — murmurou ela. — Esta casa está visivelmente vazia.

— É, está vazia mesmo — concordou o Major, repa­rando nas janelas fechadas e na aparência de abandono.

— Mas Whitefriars é aqui — ela apontou o nome meio apagado no portão. — E Whitefriars era o lugar on­de eu devia vir.

— Não fique preocupada com isso — disse Wilbra­ham. — Em dois minutos nós pegamos um táxi e vamos a algum lugar tomar uma xícara de café.

No fim da rua entraram numa outra bem mais mo­vimentada e, por sorte, um táxi tinha acabado de deixar alguém em uma das casas. Wilbraham chamou o táxi, deu um endereço ao motorista e foram embora.

— Não fale — advertiu à companheira. — Fique recostada. Você passou por uma experiência desagradável.

Ela sorriu agradecida.

— Por falar nisto... ahn... meu nome é Wil­braham.

— O meu é Clegg — Freda Clegg.

Dez minutos depois, Freda estava tomando um café quente e olhando agradecida para o seu salvador do ou­tro lado da mesa.

— Parece até um sonho — disse ela. — Um pesa­delo — estremeceu. — E dizer que ainda há pouco eu estava pedindo a Deus que acontecesse alguma coisa... qualquer coisa! É, eu não gosto de aventuras!

— Conte como foi que aconteceu.

— Bom, para contar tudo, acho que precisaria falar uma porção de coisas sobre mim mesma.

— ótimo assunto — disse Wilbraham balançando a cabeça.

— Sou órfã. Meu pai era capitão. Morreu quando eu tinha oito anos. Minha mãe há três anos. Trabalho no centro da cidade. Na Companhia de Gás, como recep­cionista. Uma noite da semana passada, ao voltar para casa, encontrei um senhor esperando por mim. Era um advogado, um Sr. Reid, de Melbourne. Foi muito deli­cado e me fez várias perguntas sobre a minha família. Explicou que tinha conhecido meu pai há muitos anos. Na verdade, eles fizeram algumas transações juntos. Foi então que ele me contou o objetivo de sua visita. "Srta. Clegg", disse ele, "tenho razões para acreditar que a se­nhorita poderá ser beneficiada com os resultados de uma transação comercial realizada por seu pai muitos anos antes de sua morte." Fiquei muito surpresa, é claro. "É provável que a senhorita nunca tenha ouvido falar dessa história" — explicou ele — "pois John Clegg nunca levou o negócio muito a sério, acho eu. Mas tudo se concretizou de modo inesperado. Temo que para legalizar a sua situa­ção será necessário ter certos documentos. Esses papéis devem fazer parte do inventário de seu pai, e talvez até já tenham sido destruídos, na suposição de que não ti­nham nenhum valor. A senhorita guardou alguns pa­péis de seu pai?"

— Expliquei que minha mãe guardava várias coi­sas do meu pai numa velha arca. Eu já tinha dado uma olhada, mas não descobri nada de interessante. "Dificilmente a senhorita reconheceria a importân­cia destes documentos" disse ele sorrindo. Fui até à arca, apanhei alguns papéis que estavam lá e mostrei a ele. Examinou-os, mas disse que era impossível assim de repente saber quais os que estariam ou não ligados ao assunto em questão. Ele os levaria e se comunicaria co­migo se aparecesse alguma coisa.

— Pelo último correio de sábado, recebi uma carta que sugeria que eu fosse à casa dele para discutirmos o assunto. Me deu este endereço: Whitefriars, Rua Friars, Hampstead. A hora marcada era quinze para as onze. Me atrasei um pouco procurando o lugar. Entrei com pressa pelo portão e estava andando para a casa quando de re­pente aqueles dois homens horríveis pularam em cima de mim de dentro das moitas. Nem tive tempo de gritar. Um deles pôs a mão na minha boca. Consegui dar um ar­ranco com a cabeça e gritei por socorro. Felizmente o senhor me ouviu. Se não fosse isso... — seu olhar era mais eloqüente que quaisquer outras palavras.

— Felizmente eu estava passando por ali. Juro que eu queria apanhar aqueles dois. Suponho que você nunca os tenha visto antes.

Ela fez que não com a cabeça — O que acha que isso tudo significa?

— É difícil. Mas uma coisa parece clara. Há alguma coisa que alguém quer e que está entre os papéis de seu pai. Este tal Reid lhe contou uma história da carochinha para ter a oportunidade de dar uma espiada neles. É evi­dente que o que ele procurava não estava lá.

— Ah! — exclamou Freda. — Agora eu estou enten­dendo. Quando voltei para casa no sábado achei que as minhas coisas tinham sido remexidas. Para dizer a ver­dade, suspeitei de que a senhoria tivesse entrado no meu quarto por curiosidade. Mas agora...

— Depende. Alguém conseguiu entrar no seu quar­to e dar uma busca, mas não achou o que procurava. Achou que você sabia o valor deste papel, ou lá o que seja, e que o mantinha guardado. Então planejou esta emboscada. Se você estivesse com o papel, eles apanha­riam. Se não, você ficaria presa enquanto eles tentavam fazê-la confessar onde o tinha escondido.

— Mas afinal o que pode ser isto? — exclamou Freda.

— Não sei. Mas deve ser alguma coisa de muito im­portante, para ele se dar a todo esse trabalho.

— Mas não é possível!

— Não sei. Seu pai era um marinheiro. Ia a muitos lugares estranhos. Talvez tenha achado alguma coisa cujo verdadeiro valor nunca chegou a saber.

— Você acha mesmo? — um leve rubor de excitação coloriu as pálidas faces da moça.

— Acho. A questão é o que fazer agora? Você não está pretendendo ir à polícia, ou está?

— Não, por favor!

— Ótimo. Não vejo o que a polícia poderia fazer, e isso só traria aborrecimentos para você. Agora sugiro que você vá almoçar comigo em algum lugar e depois me dei­xe acompanhá-la até o seu apartamento, para que eu fi­que certo de que você chegou sã e salva. Aí, se você quiser, nós podemos dar uma olhada nos papéis. Porque é pos­sível que eles estejam escondidos em algum lugar.

— Talvez tenha sido o meu pai mesmo quem des­truiu o papel.

— Talvez, mas pode ser que não, e nesse caso nós podemos achá-lo.

— O que será? Um tesouro escondido?

— Meu Deus, é bem possível — exclamou o Major Wilbraham, com o seu lado infantil todo excitado com a perspectiva. — Mas agora, Srta. Clegg, ao almoço!

O almoço foi agradável. Wilbraham contou tudo a Freda sobre a sua vida na África Oriental. Descreveu ca­çadas de elefantes e a garota ficou emocionada. Quando acbaram, ele insistiu em levá-la de táxi para casa.

O apartamento era perto de Notting Hill Gate. Ao chegar, Freda teve uma rápida conversa com a senhoria. Voltou para perto de Wilbraham e subiu com ele até o se­gundo andar, onde ela morava num minúsculo aparta­mento de quarto e sala.

— Exatamente como pensamos — disse ela. — Es­teve aqui um sujeito, sábado de manhã, para fazer um conserto na instalação elétrica. Disse que a do meu quar­to estava com um defeito, e ficou lá algum tempo.

— Me mostre a arca do seu pai — pediu Wilbraham. Freda lhe mostrou uma caixa com um anel de latão em volta — Veja — disse ela levantando a tampa. — Está vazia.

O militar fez que sim com a cabeça, pensativo — E não tem nenhum papel em outro lugar?

— Tenho certeza que não. Mamãe guardava tudo aqui.

Wilbraham examinou a parte interna da arca. De repente teve uma surpresa — Há uma fenda no forro! — cuidadosamente, enfiou a mão para examinar o in­terior. Um leve estalido o recompensou — Alguma coisa escorregou para baixo!

Um minuto depois ele terminava sua busca. Um pe­daço de papel sujo, todo dobrado. Alisou-o em cima da mesa; Freda olhava por cima do ombro e ficou um pouco desapontada.

— Não passa de um monte de rabiscos esquisitos.

— Meu Deus, está escrito em swahili! — gritou o Major Wilbraham. — O dialeto nativo da África Oriental, sabe?

— Que coisa incrível! — disse Freda. — E você con­segue ler isso?

— Mais ou menos. Mas que coisa estranha! — levou o papel para perto da janela.

— É alguma coisa? — perguntou Freda toda trêmu­la. Wilbraham leu duas vezes o papel e voltou para junto da moça, — Bem — disse com uma careta, — aqui está o seu tesouro escondido.

 — Tesouro escondido? Mesmo? Ou seja, ouro espa­nhol. .. galeão afundado... essas coisas?

— Não chega a ser tão romântico, mas... o resul­tado é o mesmo. Este papel indica o esconderijo de marfim.

— Marfim? — perguntou a moça espantada.

— É. Elefantes, sabe? Há uma lei que proíbe matar além de um certo número. Algum caçador conseguiu es­capar e burlar esta lei em grande escala. Ele começou a ser perseguido e teve que esconder o marfim. Parece que há muito marfim, e ele indica com precisão o rumo para encontrá-lo. Olhe, precisamos ir atrás disso, eu e você.

— Você acha que há mesmo muito dinheiro nessa história?

— Uma bela fortuna para você.

— Mas como foi que este papel foi parar nas mãos do meu pai?

Wilbraham sacudiu os ombros — Talvez o sujeito estivesse morrendo, ou coisa que o valha. Talvez tenha escrito em swahili para se proteger, e entregou ao seu pai, que talvez o tenha ajudado de algum modo. Seu pai, como não sabia ler o documento, não deu a menor im­portância. É apenas uma conjetura minha, mas posso lhe garantir que não deve estar muito longe da verdade.

Freda suspirou — Como é espantoso e excitante!

— O problema agora é: o que fazer com este do­cumento precioso — disse Wilbraham. — Não gostaria de deixá-lo aqui. Talvez eles venham procurá-lo outra vez. Você o deixaria comigo?

— Claro que deixo. Mas... não vai ser perigoso para você? — disse ela, hesitante.

— Sou um osso duro de roer — disse Wilbraham com uma careta. — Não precisa se preocupar comigo — dobrou o papel e o colocou no bolso de dentro do paletó. — Posso vir vê-la amanhã de noite? — perguntou. Ama­nhã já terei alguns planos, e vou olhar certos lugares no meu mapa. A que horas você volta da cidade?

— Às seis e meia.

— ótimo. Teremos uma conferência secreta, e você talvez me permita levá-la para jantar. Precisamos co­memorar. Até amanhã, então. Às seis e meia.

 

O Major Wilbraham chegou pontualmente na hora marcada. Tocou a campainha e perguntou pela Srta. Clegg. Uma criada foi quem atendeu.

— Srta. Clegg? Não está.

— Ahn! — Wilbraham não quis sugerir que podia entrar e esperar. — Eu volto mais tarde — disse.

Ficou do lado de fora, na rua, esperando a todo mi­nuto que Freda surgisse. Os minutos iam passando. Quin­ze para as sete. Sete. Sete e quinze. Nem sinal de Freda. Um sentimento de desassossego começou a tomar conta dele. Voltou ao edifício e tocou a campainha.

— Por favor — disse, — eu tinha marcado um en­contro para as seis e meia com a Srta. Clegg. Tem cer­teza de que ela não está... ou de que não deixou ne­nhum recado?

— O senhor é o Major Wilbraham? — perguntou a empregada.

— Sou.

— Então tem um recado para o senhor. Foi um por­tador que deixou.

Wilbraham abriu o envelope. Dizia o seguinte:

Meu caro Major Wilbraham:

Aconteceu uma coisa muito estranha. Não posso es­crever mais nada agora; pode se encontrar comigo em Whitefriars? Venha o mais depressa possível.

Sua amiga,

Freda Clegg

 

Wilbraham pôs-se rapidamente a pensar com um ar preocupado. Distraidamente pôs a mão no bolso e ti­rou uma carta endereçada ao seu alfaiate. — Será — perguntou à empregada, — que a senhora podia me arranjar um selo?

— Talvez a Sra. Parkins possa lhe arranjar.

Em seguida voltava com o selo. Pagou com um shilling. Um minuto depois Wilbraham estava andando pa­ra a estação do metrô, e colocou a carta ao passar por uma caixa coletora do correio.

A carta de Freda o deixou muito inquieto. O que te­ria levado a garota, sozinha, à cena do sinistro encontro da véspera?

Balançou a cabeça. Que coisa mais imprudente! Será que Reid voltara? Teria de algum modo convencido a ga­rota a confiar nele? O que a teria levado a Hampstead?

Olhou o relógio. Quase sete e meia. Ela devia estar pensando que ele sairia de lá às seis e meia. Uma hora de atraso. Era demais. Se pelo menos ela tivesse dado algu­ma pista...

A carta o deixara intrigado. Seu tom, muito indepen­dente, não era muito próprio de Freda Clegg.

Faltavam dez minutos para as oito quando ele chegou à Rua Friars. Começava a escurecer. Olhou de relan­ce para os lados; não havia ninguém à vista. Devagar, empurrou o portão, que girou silencioso sobre as dobradiças. A alameda estava deserta. A casa, às escuras. Seguiu pelo caminho, muito cauteloso, olhando para os dois la­dos. Não estava disposto a ser apanhado de surpresa.

De repente parou. Por um rápido instante brilhou um raio de luz através de uma das persianas. A casa não estava vazia. Tinha alguém lá dentro.

Wilbraham entrou cuidadosamente por uma moita e procurou o caminho dos fundos da casa. Finalmente encontrou o que procurava. Uma das janelas do andar térreo não estava trancada. Era a janela de uma espécie de copa. Levantou a vidraça — era uma janela corrediça

—acendeu a lanterna (ele comprara uma no caminho)

para espiar o interior deserto. Pulou para dentro.

Com muito cuidado abriu a porta da copa. Não ou­viu qualquer ruído. Outra vez acendeu a lanterna. Uma cozinha — vazia. Do outro lado da cozinha havia uma meia dúzia de degraus e uma porta que evidentemente dava para a parte da frente da casa.

Abriu a porta e procurou escutar. Nada. Entrou. Agora estava na sala da frente. Ainda não tinha ouvido nada. Havia uma porta à direita e outra à esquerda. Es­colheu a porta da direita, afiou o ouvido e virou o trinco. A porta cedeu. Abriu devagar, centímetro por centíme­tro, e entrou.

Tornou a acender a lanterna. A peça estava comple­tamente vazia.

Neste momento, ouviu um ruído atrás dele, virou — tarde demais! — Alguma coisa bateu na sua cabeça e ele caiu, inconsciente...

Wilbraham não tinha idéia do tempo que tinha fica­do sem sentidos. Voltou à vida, penosamente, a cabeça doendo. Tentou se mexer mas viu logo que não podia. Estava amarrado com cordas.

Rapidamente recobrou a razão. Agora se lembrava. Tinha sido atingido na cabeça.

Uma luz fraca lá no alto da parede indicava que ele estava numa pequena adega. Olhou em volta e seu co­ração pulou. Perto dele, jazia Freda, também amarrada. Os olhos estavam fechados, mas se abriram logo depois, enquanto a moça suspirava, observada ansiosamente por Wilbraham. Seu olhar perplexo se concentrou nele, e ao reconhecê-lo brilhou de alegria.

— Você também? — disse ela. — O que foi que aconteceu?

— Deixei você em má situação — disse Wilbraham. — Caí de cabeça na armadilha. Me diga, você escreveu um bilhete pedindo que eu viesse encontrá-la aqui?

Os olhos da moça se arregalaram de espanto. — Eu? Mas foi você quem me mandou um bilhete.

— Ah, eu mandei um bilhete para você?

— Foi. Eu recebi no escritório. Pedia que eu viesse encontrá-lo aqui e não lá em casa.

— O mesmo método — resmungou ele, explicando a ela a situação.

— Estou entendendo agora — disse Freda. — Então o plano era. ..

— Conseguir o papel. Alguém deve ter nos seguido ontem. Foi como eles me localizaram.

— E... eles conseguiram o papel? — perguntou Freda.

— Infelizmente não posso me mexer para verificar — disse o militar olhando pesaroso para as mãos amarradas.

De repente eles estremeceram. Ouviu-se uma voz, uma voz que parecia vir do vácuo.

— Sim, muito obrigado — disse. — Já consegui o papel. Não precisam se preocupar.

Os dois se arrepiaram com a voz invisível.

— Reid — murmurou Freda.

— Reid é um dos meus nomes, minha cara jovem — disse a voz. — Mas apenas um deles. Agora, sinto muito dizer que vocês dois interferiram nos meus planos — uma coisa que eu não posso permitir. A descoberta desta casa é muito séria. Vocês ainda não falaram nada à polícia, mas pode ser que venham a fazê-lo. Temo que não possa confiar em vocês. Podem prometer. .. mas nem sempre podemos cumprir as promessas. E como vêem, esta casa é muito útil para mim. É uma espécie de ponto sem re­torno. Daqui todos saem. .. para um outro lugar... É, sinto muito, mas vocês vão embora. .. É muito triste... mas é preciso.

A voz fez uma pequena pausa e resumiu: — Não haverá derramamento de sangue. Tenho horror a car­nificinas. Meu método é mais simples. E na verdade não é doloroso. Bem, tenho que ir andando. Boa noite para ambos.

— Olhe aqui — era Wilbraham quem falava agora.

—Faça o que quiser comigo, mas esta moça não lhe fez

nada... nada! Não lhe fará a menor diferença se ela for embora.

Mas não houve resposta.

Neste instante Freda deu um grito.

— A água... a água!

Apesar da dor, Wilbraham virou-se e seguiu a di­reção dos olhos dela. De um buraco perto do teto, a água começou a borbulhar.

Freda deu um grito histérico — Eles vão nos afogar!

O suor brotou no rosto de Wilbraham — Ainda não estamos perdidos — disse. — Vamos gritar por socorro. É quase certo que alguém ouça. Agora: ao mesmo tempo.

Berraram o mais forte que puderam. Só pararam quando já estavam roucos.

— Não adianta — disse Wilbraham com tristeza. — Estamos muito abaixo do nível do chão e acho que as portas devem ser à prova de som. É claro que se pudésse­mos ser ouvidos aquele estúpido nos teria amordaçado.

— Oh! — gritou Freda. — E tudo por minha culpa. Fui eu quem envolveu você nessa história.

— Não se preocupe, minha querida. É em você que eu estou pensando. Já estive em situações piores e con­segui me livrar. Não perca a coragem. Do jeito que a água está caindo, ainda temos muitas horas.antes que o pior aconteça.

— Você é maravilhoso! — disse Freda. — Nunca co­nheci ninguém como você... só nos livros.

— Bobagem... é só uma questão de senso comum. Agora, preciso afrouxar estas malditas cordas.

Quinze minutos depois, à força de puxar e se torcer, Wilbraham teve a satisfação de constatar que os nós es­tavam bem mais frouxos. Tentou abaixar a cabeça e sus­pendeu os punhos até conseguir atacar os nós com os dentes.

Com as mãos livres, o resto foi apenas uma questão de tempo. Cheio de cãibras, endurecido, mas livre, ele se debruçou sobre a moça. Um minuto depois ela também já estava livre.

A esta altura a água estava pelos tornozelos.

— E agora — disse o militar — vamos sair daqui.

A porta da adega ficava no topo de alguns degraus. 0 Major Wilbraham a examinou.

— Não tem problema — disse. — É fraca. Vai ser fácil tirá-la das dobradiças — encostou os ombros na porta e empurrou.

A madeira estalou e a porta se deslocou das dobra­diças.

Do lado de fora encontraram um lance de escada. Em cima, outra porta — esta bem diferente — de ma­deira sólida e reforçada com trancas de ferro.

— Esta é um pouco mais difícil — disse Wilbraham. — Mas que sorte! Não está trancada!

Ele empurrou, olhou e pediu à garota que o seguisse. Saíram numa passagem que dava para a cozinha. Um minuto depois já estavam ao ar livre, na Rua Friars.

— Ai! — Freda deu um pequeno soluço. — Que coi­sa horrível!

— Minha querida — ele a tomou nos braços. — Você foi tão maravilhosamente corajosa. Freda... meu an­jo... será que você... quero dizer, se você... te amo, Freda. Quer se casar comigo?

Depois de um breve intervalo, altamente satisfatório para ambas as partes, o Major Wilbraham disse com um sorriso:

— E o melhor é que nós ainda temos o segredo do tesouro do marfim.

— Mas eles apanharam!

O Major tornou a sorrir — Foi exatamente o que eles não fizeram. Fiz uma cópia falsa e antes de me en­contrar com você pus o original numa carta que ia man­dar para o meu alfaiate e coloquei no correio. Eles pega­ram a cópia falsa e... tomara que se divirtam! Sabe o que nós vamos fazer, meu anjo? Vamos passar a lua-de-mel na África Oriental e sair à caça do nosso tesouro.

 

Parker Pyne saiu de seu escritório e subiu dois lan­ces de escada. Numa sala do alto do edifício estava a Sra. Oliver, a sensacional novelista, que era agora um dos membros da equipe do Sr. Pyne.

Parker Pyne bateu na porta e entrou. A Sra. Oliver estava sentada a uma mesa sobre a qual havia uma má­quina de escrever, vários cadernos de notas, uma confu­são de manuscritos soltos e uma grande cesta de maçãs.

— Ótima história, Sra. Oliver — disse Parker Pyne, com entusiasmo.

— Deu tudo certo? — perguntou a Sra. Oliver. — Fi­co satisfeita.

— O negócio da água no porão — disse Parker Pyne. — Não acha que daqui por diante podíamos pensar al­guma coisa mais original... talvez? — fez a sugestão com uma certa timidez.

A Sra. Oliver balançou negativamente a cabeça e apanhou uma maçã da cesta — Acho que não, Sr. Pyne. Não se esqueça de que as pessoas estão acostumadas a ler histórias desse tipo. Água subindo dentro de uma adega, gases venenosos, etc. O fato de já conhecer as coisas provoca uma excitação maior quando elas acontecem com a gente, O público é conservador, Sr. Pyne. Eles gos­tam dos truques antiquados.

— Bem, a senhora é quem sabe — admitiu Parker Pyne, levando-se em conta que ela era autora de quarenta e seis novelas de ficção muito bem sucedidas, todas com recordes de vendas na Inglaterra e na América e já tra­duzidas para o francês, alemão, italiano, húngaro, finlan­dês, japonês e abissínio. E as despesas?

A Sra. Oliver pegou uma folha de papel — Ao todo muito pouca coisa. Os dois negros, Percy e Jerry, cobra­ram muito pouco. O jovem Lorrimer, o ator, se deu por feliz em fazer p papel de Reid por cinco guinéus. O dis­curso lá na adega era uma gravação, é claro.

— Whitefriars tem sido muito útil para mim — disse Pyne. — Comprei a casa por uma ninharia, e ela já ser­viu de cenário para onze dramas misteriosos.

— Ah, estava esquecendo — disse a Sra. Oliver. — O pagamento de Johnny. Cinco shillings.

— Johnny?

— É. Foi o menino que derramou a água dos garrafões pelo buraco da parede.

— Ah, sim. Por falar nisso, Sra. Oliver, como foi que a senhora aprendeu swahili?

— Eu não sei swahili.

— Ah, sei. Foi o Museu Britânico, talvez?

— Não. O Centro de Informações de Delfridge.

— Como são maravilhosos hoje em dia os recursos do comércio moderno — murmurou ele.

— A única coisa que me preocupa é que aqueles dois jovens não vão encontrar nenhum tesouro escondido quando chegarem lá.

— Ninguém pode ter tudo neste mundo — disse Parker Pyne. — Eles vão ter uma lua-de-mel.

 

A Sra. Wilbraham estava sentada numa espreguiçadeira no convés. Seu marido escrevia uma carta — Que dia é hoje, Freda?

— Dezesseis.

— Dezesseis! Meu Deus!

— O que foi, querido?

— Nada. Estava me lembrando de um sujeito cha­mado Jones.

Por mais felizes que fossem os recém-casados, há coisas que ninguém pode imaginar.

— Que inferno — pensou o Major Wilbraham, eu devia ter voltado lá e pedido o meu dinheiro de volta.

Mas, por ser um homem correto, pesou também o outro lado da questão. Afinal de contas, fui eu que quebrei o contrato. Suponho que se tivesse ido ver o tal Jones al­guma coisa teria acontecido. De qualquer maneira, do jeito que aconteceu, se eu não tivesse ido ver o tal Jones, nunca teria ouvido o grito de Freda e talvez nós não nos encontraríamos nunca. Por tudo isso, indiretamen­te, talvez ele tenha direito àquelas cinqüenta libras!

A Sra. Wilbraham também fazia um raciocínio: Co­mo fui boba de acreditar naquele anúncio e pagar três li­bras àquela gente. É claro que eles nunca fizeram nada por aquilo e nunca aconteceu nada. Se ao menos eu sou­besse o que ia acontecer. Primeiro, o Sr. Reid e depois a maneira estranha e romântica na qual Charlie entrou na minha vida. E pensar que foi por pura coincidência que eu o conheci!

Ela se virou e sorriu encantada para seu marido.

 

O Caso da Senhora Angustiada

A campainha da mesa de Parker Pyne soou discre­tamente.

— Sim? — disse o grande homem.

— Uma moça quer ver o senhor — falou a secretá­ria. — Não tem hora marcada.

— Mande entrar, Srta. Lemon.

Um minuto depois ele apertava a mão da recém-che­gada — Bom dia — disse. — Sente-se, por favor.

— Parker Pyne é o senhor? — perguntou.

— Sou.

— O do anúncio?

— O do anúncio.

— O senhor diz que se as pessoas não são... não são felizes... que... que venham falar com o senhor.

— É.

Ela falou depressa — Bem, é que eu estou muito infeliz. Então pensei em aparecer aqui só para... só

para ver.

Parker Pyne ficou parado, porque sentiu que havia mais coisa.

— Eu... eu estou com um problema horrível — apertava as mãos nervosamente.

— Estou vendo — disse Parker Pyne. — Pode me contar o que está acontecendo?

Parece que era exatamente isso o que a moça não sabia muito bem. Olhou para Parker Pyne com uma atenção desesperada. De repente, começou a falar aos borbotões.

— Vou contar... Já tomei uma decisão. Quase fi­quei maluca de preocupação. Não sabia o que fazer ou para quem apelar. Foi então que vi o seu anúncio. Pen­sei que talvez fosse uma brincadeira, mas ficou na minha cabeça. Fosse o que fosse, parecia tão reconfortante. Aí eu pensei — bom, não custa nada ir lá ver. Eu podia dar uma desculpa e sair se não. .. bem, se não...

— Compreendo, compreendo — disse Parker Pyne.

— O senhor sabe — disse a moça, — isso signifi­ca... bem... confiar em alguém.

— E a senhora acha que pode confiar em mim? — perguntou ele sorrindo.

— É estranho — disse a moça com uma simplicida­de inconsciente, — mas confio. Sem saber nada a seu respeito! Tenho certeza de que posso confiar no senhor.

— Posso lhe garantir — disse Parker Pyne — que a sua confiança não está traída.

— Então — disse a moça, — posso lhe contar tudo. Meu nome é Daphne St. John.

— Pois não, Srta. St. John.

— Senhora. Eu... eu sou casada.

— Ora! — murmurou o Sr. Pyne aborrecido consigo mesmo ao ver o aro de platina no terceiro dedo de sua mão esquerda. — Que bobagem da minha parte.

— Se eu não fosse casada — continuou a moça, — não me importaria tanto. Quero dizer. .. não teria tanta importância. E pensar que Gerald... Bem, aí... aí é que está todo o problema!

Ela enfiou a mão na bolsa e tirou uma coisa que cintilava e entregou a Parker Pyne.

Era um anel de platina com um enorme diamante solitário.

Pyne o pegou, foi até à janela, olhou contra a vidra­ça, colocou uma lente de joalheiro e examinou de perto.

— Um diamante extraordinariamente valioso — fa­lou ao voltar à mesa; — deve valer, calculo, cerca de duas mil libras, no mínimo.

— É. E foi roubado! Eu roubei! E não sei o que fa­zer agora!

— Meu Deus — disse Parker Pyne. — Mas que coisa interessante.

Sua cliente se descontrolou e começou a soluçar e se assoar num lenço meio amarrotado.

— Ora, o que é isso — disse Pyne. — Vai tudo aca­bar bem.

A moça enxugou os olhos e fungou — Vai? — disse ela. — será que vai?

— É claro que vai. Agora, me conte a história toda.

— Bem, tudo começou quando eu fiquei apertada de dinheiro. Sou muito extravagante. Gerald ficou muito aborrecido com isso. Gerald é meu marido. Ele é muito mais velho do que eu, e tem... bem, ele tem umas idéias muito austeras. Acha que contrair dívidas é uma coisa horrível. Por isso, não falei nada com ele. Fui até o Le Touquet com alguns amigos e pensei que talvez tivesse sorte no bacará para arranjar as coisas outra vez. Co­mecei ganhando, mas depois passei a perder e achei que tinha de continuar. E continuei. E... e. ..

— Sei, sei — disse Parker Pyne. — Não precisa en­trar em detalhes. Você ficou numa enrascada maior do que no início, não é?

Daphne St. John concordou — E àquela altura eu não podia mais contar a Gerald. Porque ele detesta jogo. A minha situação era desesperadora. Então, nós fomos passar uns dias com os Dortheimers, perto de Cobham. Eles são muito ricos, claro. A mulher dele, Naomi, foi mi­nha colega de escola. Ela é um encanto, e muito bonita. Durante a nossa estada lá, o engaste do anel se soltou. Na manhã que nós fomos embora, ela me pediu para le­vá-lo à cidade e deixá-lo no seu joalheiro, na Bond Street — fez uma pausa.

— E agora vem a parte mais difícil — disse Parker Pyne, procurando ajudar. — Continue, Sra. St. John.

— O senhor não vai contar a ninguém, não é? — implorou a moça.

— As confidencias dos meus clientes são sagradas. E de qualquer maneira, Sra. St. John, a senhora já me contou tanta coisa que agora talvez eu pudesse terminar a história sozinho.

— Eu sei, mas é que eu não gosto de falar nisso... acho tão terrível. Fui a Bond Street. Lá tem uma outra loja — a Viro's. Eles. .. fazem cópias de jóias. De re­pente, perdi a cabeça. Peguei o anel e disse que queria uma cópia exata; disse que ia viajar para o exterior e não queria levar comigo a jóia verdadeira. Eles acharam tudo muito natural.

— Bom, consegui a cópia falsa — era tão perfeita que qualquer um confundiria com o original — e man­dei, pelo correio, registrada, para Lady Dortheimer. Eu tinha uma caixa com o nome do joalheiro, parecia per­feito, então, com um ar muito profissional, fiz um em­brulho. Aí, eu... eu. .. empenhei a jóia verdadeira — ela escondeu o rosto com as mãos. — Como é que eu fui fazer isso? Como é que eu fui fazer isso? Não passo de uma ladra mesquinha e ordinária.

Parker Pyne pigarreou — Acho que a senhora ainda não terminou — disse.

— Não, ainda não. Isso foi há umas seis semanas. Paguei todas as minhas dívidas e acertei tudo, mas é cla­ro que estava me sentindo péssima. Foi então que mor­reu uma velha prima e eu recebi algum dinheiro. A pri­meira coisa que fiz foi tirar o diabo do anel do penhor. Bom, até aí foi tudo bem. O anel está aqui. Mas de re­pente aconteceu uma coisa terrível.

— Ah, foi?

— Nós tivemos uma briga com os Dortheimers. Foi por causa de umas ações que Sir Reuben tinha conven­cido Gerald a comprar. Ele perdeu muito dinheiro e disse uns desaforos a Sir Reuben... foi horrível! E ago­ra, como o senhor está vendo, eu não posso devolver o anel.

— Não poderia enviá-lo anonimamente para Lady Dortheimer?

— Iria tudo por água abaixo. Ela examinaria o outro anel, descobriria que é uma imitação e adivinharia o que aconteceu.

— A senhora disse que ela é sua amiga. Que tal lhe contar toda a verdade... apelando para a sua indul­gência?

A Sra. St. John balançou a cabeça — Nós não so­mos tão amigas assim. Em matéria de dinheiro e jóias, Naomi é muito severa. Talvez ela não pudesse me proces­sar se eu devolvesse o anel, mas ia contar a todo mundo o que eu fiz e eu estaria perdida. Gerald ia saber e nunca me perdoaria. Ai, é tudo tão complicado! — recomeçou a chorar. — Pensei, pensei e não encontrei uma solução! Oh, Sr. Pyne, será que o senhor pode fazer alguma coisa? ' — Uma porção de coisas — disse Parker Pyne.

— Pode mesmo? Será?

— Sem dúvida. E lhe sugiro que se faça tudo da ma­neira mais simples. A minha experiência me diz que a simplicidade sempre dá certo. Evite as situações compli­cadas. Apesar disso, compreendo que as suas objeções são bastante razoáveis. No momento, quem mais sabe destes tristes fatos além da senhora?

— O senhor — disse a Sra. St. John.

— Não, sem contar comigo. Bom, por enquanto o seu segredo está a salvo. Precisamos apenas trocar os anéis de uma forma que não desperte suspeitas.

— É exatamente por isso — disse a moça ansiosa.

— Não vai haver problema nenhum. Precisamos de um tempinho para imaginar o melhor método...

Ela interrompeu — Mas não há tempo! É por isso que eu estou quase louca. Ela vai reformar o anel.

— Como é que a senhora sabe?

— Por coincidência. Eu estava almoçando com uma amiga outro dia e elogiei o anel que ela estava usando — uma esmeralda enorme. Ela me disse que era a úl­tima moda... e que Naomi Dortheimer ia mudar o anel de brilhante dela para aquela forma.

— O que quer dizer que nós vamos ter que trabalhar depressa — disse Parker Pyne, pensativo.

— Pois é.

— Isto é, ter acesso à casa... se possível não como um criado. Os empregados não podem mexer em anéis valiosos. A senhora tem alguma idéia; Sra. St. John?

— Bom, Naomi vai dar uma grande festa quarta-feira. E essa minha amiga contou que ela estava procurando uns bailarinos profissionais. Não sei se ela já acertou alguma coisa. ..

— Acho que eu posso dar um jeito — disse Parker Pyne. — Se já estiver combinado, vai ficar só um pouco mais caro, só isso. Outra coisa. Por acaso, a senhora sabe onde fica a chave geral da luz?

— Por acaso eu sei onde fica, porque uma vez quei­mou um fusível bem tarde, e os empregados já estavam todos deitados. É uma caixa que fica no fundo do corre­dor — dentro de um armário pequeno.

A pedido de Parker Pyne, ela fez um esboço.

— E agora — disse Parker Pyne, — vai dar tudo cer­to, não se preocupe Sra. St. John. E o anel? Quer que eu o guarde agora ou prefere ficar com ele até quarta-feira?

— Bem, talvez seja melhor eu ficar com ele.

— Agora, nem uma preocupação a mais, ouviu bem? — Parker Pyne a repreendeu.

— E... o pagamento? — perguntou timidamente.

— Isso pode ficar para depois. Eu lhe aviso quarta-feira quais foram as despesas necessárias. Meus honorá­rios serão insignificantes, lhe garanto.

Levou-a até a porta e depois tocou a campainha de sua mesa.

— Vá chamar Claude e Madeleine.

Claude Luttrell era um dos mais atraentes espécimes de bailarinos profissionais encontráveis na Inglaterra. Madeleine de Sara era a mais sedutora das mulheres fatais.

Parker Pyne observou-os com aprovação — Meus filhos — disse, — tenho um serviço para vocês. Vocês vão ser dois bailarinos internacionais muito famosos. Agora Claude, preste muita atenção ao que vou dizer e veja se entende tudo direito. ..

 

Lady Dortheimer estava plenamente satisfeita com os preparativos para o seu baile. Inspecionou os arran­jos de flores, deu as últimas ordens para o mordomo e lembrou ao marido que até agora estava dando tudo certo!

Ficou ligeiramente desapontada quando soube que Michael e Juanita, os bailarinos do Almirante Vermelho, à última hora, não iam poder cumprir o contrato, por causa de uma torção no tornozelo de Juanita, mas no lugar deles iam mandar dois bailarinos novos (pelo me­nos foi o que disseram no telefone) que haviam feito furor em Paris.

Os bailarinos chegaram pontualmente e Lady Dor­theimer os aprovou. A noitada transcorreu esplendida­mente. Jules e Sanchia se exibiram e foram sensacionais. Uma selvagem dança da Revolução Espanhola. Depois uma dança chamada O Sonho de um Degenerado. Depois uma fascinante exibição de danças modernas.

Quando o show terminou, todo mundo começou a dançar normalmente. O belo Jules pediu o prazer de uma dança a Lady Dortheimer. Os dois começaram a rodar. Nunca Lady Dortheimer tivera um partner tão perfeito.

Em vão Sir Reuben procurava a sedutora Sanchia. Ela não estava no salão.

Para dizer a verdade, ela estava no corredor deserto, perto de uma pequena caixa, os olhos fixos no relógio em seu pulso.

— Não deve ser inglesa... não pode ser inglesa!... para dançar assim como dança — murmurou Jules no ouvido de Lady Dortheimer. É como uma fada, o espírito do vento. Droushcka petrovka navarouchi.

— Que língua é essa?

— Russo — disse Jules mentiroso. — Falei em russo uma coisa que não ousaria dizer em inglês.

Lady Dortheimer fechou os olhos. Jules a apertou ainda mais contra si.

Repentinamente as luzes se apagaram. Na escuri­dão, Jules se debruçou e beijou a mão que repousava em seu ombro. Quando ela tentou retirá-la, ele a segurou e a apertou novamente contra os lábios.

Um anel escorregou de um dedo para a palma de sua mão.

Lady Dortheimer achou que tinha passado apenas um segundo antes que as luzes voltassem. Jules sorria Para ela.

— Seu anel — disse. — Escorregou. Permite? — re­colocou-o no dedo. Seus olhos disseram muitas coisas en­quanto ele fazia isso.

Sir Reuben falava sobre a chave central — Algum idiota. Uma brincadeira de mau gosto, suponho.

Lady Dortheimer não estava interessada. Aqueles poucos instantes de escuridão tinham sido muito agra­dáveis.

 

Ao chegar no escritório na quinta-feira de manhã, Parker Pyne já encontrou a Sra. St. John à sua espera.

— Mande entrar — disse Pyne.

— Como foi? — ela estava ansiosa.

— A senhora está muito pálida — disse ele em tom acusador.

Ela abanou a cabeça — Não consegui dormir de noite. Estava imaginando...

— Agora, a notinha das despesas. Passagens de trem, roupas, cinqüenta libras para Michael e Juanita. Sessen­ta e cinco libras e dezessete shillings.

— Sei, sei! Mas ontem de noite... foi tudo bem? Deu tudo certo?

Parker Pyne olhou para ela, surpreso — Minha cara jovem, claro que deu certo. Pensei que já tinha perce­bido.

— Ah, que alívio! Eu estava com medo...

Parker Pyne balançou a cabeça com ar de reprova­ção — Derrota é uma palavra proibida neste estabeleci­mento. Se não tenho certeza de que vai dar certo não aceito o caso... Quando aceito um caso, o sucesso é pra­ticamente o resultado inevitável.

— Então ela já está de novo com o anel verdadeiro e não desconfia de nada?

— De absolutamente nada. A operação foi realizada de maneira delicadíssima.

Daphne St. John suspirou — O senhor não imagina o peso que me tirou da consciência. O que estava dizen­do sobre as despesas?

— Sessenta e cinco libras e dezessete shillings.

A Sra. St. John abriu a bolsa e contou o dinheiro. Parker Pyne agradeceu e preencheu um recibo.

— Mas, e os seus honorários? — murmurou Daphne. —Isso é só para as despesas.

—Neste caso não há honorários.

— Oh, Sr. Pyne! Não posso aceitar, nunca!

— Minha cara jovem, insisto. Não vou receber um centavo. Seria contra os meus princípios. Eis o seu re­cibo. E agora...

Com o sorriso de um feliz prestidigitador que acaba de realizar um truque de sucesso, tirou uma caixinha do bolso e empurrou para o outro lado da mesa. Daphne a abriu. Dentro, para todos os efeitos, estava o anel igual ao de brilhante.

— Cretino! — disse a Sra. St. John fazendo uma careta para ele. — Como eu o odeio! Só não o atiro pela janela porque sou muito boazinha!

— Eu não faria isso — disse Pyne. — Poderia sur­preender muita gente.

— O senhor tem certeza de que não é o verdadeiro? — perguntou Daphne.

— Claro que tenho! O que me mostrou outro dia está bem seguro no dedo de Lady Dortheimer.

— Então está tudo certo — Daphne se levantou ale­gre, com um sorriso.

— É engraçado a senhora me perguntar isso — disse Parker Pyne. — É claro que Claude, coitadinho, não é muito esperto. Ele podia perfeitamente ter-se confundi­do. Por isso, para me certificar, mandei um especialista dar uma olhada nele hoje de manhã.

A Sra. St. John tornou a se sentar, precipitadamen­te — E o que foi que ele disse?

— Que era uma imitação muito bem feita — disse Parker Pyne, sorridente. — Um trabalho de primeira ordem. Acho que com isso a sua consciência fica tran­qüila, não é?

A Sra. St. John abriu a boca para dizer alguma coi­sa mas ficou calada. Olhava fixamente para Parker Pyne.

Ele se sentou novamente atrás da mesa e a observou benevolentemente — Tirar as castanhas do fogo com mão de gato — disse com ar sonhador — não é um pa­pel muito agradável. Pelo menos eu não gostaria que alguém da minha equipe o representasse. Perdão. A se­nhora disse alguma coisa?

— Eu... não, nada.

— Ótimo. Quero lhe contar uma historinha, Sra. St. John. Sobre outra jovem senhora. Uma moça loura, acho. Não é casada. O sobrenome dela não é St. John. O pri­meiro nome não é Daphne. Pelo contrário, o nome dela é Ernestine Richards, e até pouco tempo atrás ela era secretária de Lady Dortheimer.

— Bem, um dia o engaste do anel de brilhante de Lady Dortheimer ficou frouxo e a Srta. Richards o levou à cidade para ser consertado. Parecida com a sua histó­ria, não é? A mesma idéia que lhe ocorreu também ocor­reu à Srta. Richards. Ela mandou fazer uma cópia do anel. Mas ela era uma moça que via longe. Sabia que um dia Lady Dortheimer ia descobrir a troca. Quando isso acontecesse, ela se lembraria de quem levara o anel à cidade e a Srta. Richards seria a primeira suspeita.

— Então, o que foi que aconteceu? Primeiro, supo­nho que a Srta. Richards fez um investimento para a me­tamorfose de Cinderela — cabelos repartidos do lado, imagino — seus olhos pousaram inocentemente nos ca­chos ondulados — cor castanho escuro. Então, apareceu aqui. Me mostrou o anel, permitiu que eu verificasse que era verdadeiro, destruindo assim qualquer suspeita pos­sível de minha parte. Feito isso, e com um plano para a troca já arquitetado, a jovem levou o anel ao joalheiro, que no devido tempo o enviou a Lady Dortheimer.

— Ontem à tarde, o outro anel, o anel falso, foi en­tregue apressadamente na estação de Waterloo. Com ra­zão, a Srta. Richards achou que Luttrell não devia ser uma autoridade em diamantes. Mas apenas para satisfa­zer a minha curiosidade, um capricho meu, pedi a um amigo, comerciante de diamantes, que estivesse no mes­mo trem. Ele olhou o anel e disse imediatamente: "Este diamante não é verdadeiro; é uma excelente réplica".

— A senhora está vendo onde eu quero chegar, é evidente, não é, Sra. St. John? Quando Lady Dortheimer descobrisse a perda, de quem se lembraria? Do encan­tador dançarino que fizera deslizar o anel quando apagou a luz! Ela ia investigar e descobrir que os bailarinos con­tratados anteriormente tinham sido subornados para não comparecer. Se as pistas levassem até o meu escritó­rio, a minha história de uma certa Sra. St. John seria extremamente frágil. Lady Dortheimer não conhecia nenhuma Sra. St. John. A história pareceria uma farsa inconsistente...

— Está vendo agora por que eu não poderia permitir uma coisa dessas? E foi assim que o meu amigo Claude recolocou no dedo de Lady Dortheimer o mesmo anel que ele tirara.

— Está vendo por que eu não posso cobrar nada? Eu prometo a felicidade. E é claro que eu não a tornei feliz. Só quero lhe dizer mais uma coisa. A senhora é jovem; possivelmente é a sua primeira tentativa de fazer algu­ma coisa no gênero. Eu, pelo contrário, já estou em com­paração muito avançado nos anos, e tenho muita expe­riência em matéria de estatísticas. Com essa experiência, posso lhe garantir que em oitenta e sete por cento dos casos, a desonestidade não compensa. Oitenta e sete por cento! Pense nisso!

Com um movimento brusco, a pseudo-senhora St. John se levantou — Velho estúpido! Idiota! — excla­mou. — Me enganando! Me fazendo pagar as despesas! E o tempo todo... — engasgou-se e se encaminhou apressada para a porta.

— Seu anel — disse Parker Pyne com a caixinha na mão.

Ela a apanhou com rispidez e atirou pela janela aberta.

A porta bateu e ela saiu.

Parker Pyne olhou pela janela com um certo interes­se. — Como eu pensava — disse ele. — Surgiram consi­deráveis surpresas. ..

 

O Caso do Marido Desgostoso

Sem dúvida uma das maiores qualidades de Par­ker Pyne era o seu ar simpático. Era um jeito propício às confidencias. Ele sabia muito bem que uma espécie de paralisia se apoderava dos seus clientes quando eles en­travam no seu escritório. Preparar o terreno para as necessárias revelações fazia parte do seu trabalho.

Nesta manhã, ele estava sentado diante de um novo cliente, Sr. Reginald Wade. O Sr. Wade, Pyne logo de­duziu, era do tipo enrolado. O sujeito que tem a maior dificuldade em descrever com palavras qualquer coisa que se relacione com suas emoções.

Era um homem alto e forte, com uma expressão ame­na e agradável nos olhos azuis e a pele bastante quei­mada do sol. Sentou-se e puxou distraidamente o peque­no bigode, enquanto olhava para Parker Pyne com o ar patético de um animal taciturno.

— Vi o anúncio, sabe? — falou num arranco. — Achei que era bom vir vê-lo. Era muito esquisito, mas a gente nunca sabe, não é?

Parker Pyne interpretou corretamente estas obser­vações enigmáticas — Quando as coisas vão mal, a gen­te sempre se dispõe a correr riscos — sugeriu.

— É isso mesmo. Exatamente isso. Estou disposto a me arriscar... a correr qualquer risco. As coisas vão mal para o meu lado, Sr. Pyne. Não sei o que fazer. É muito difícil, sabe? Terrivelmente difícil.

— É exatamente aí — disse Pyne, — é exatamente aí Que eu entro. Sei o que faço! Sou um especialista em qualquer tipo de problema humano.

— Eu sei! Um campo meio vasto, não é?

— Nem tanto. Os problemas humanos são facil­mente classificáveis em alguns tipos principais. Há as doenças. Há o tédio. Há as mulheres que têm problemas com os maridos. Há os maridos... — fez uma pausa — que têm problemas com as mulheres.

— Para ser franco, o senhor acertou. Acertou em cheio.

— Me conte tudo a seu respeito — pediu Parker Pyne.

— Não tem muita coisa. Minha mulher quer que eu lhe dê o divórcio para que ela possa se casar com um outro camarada.

— É muito comum hoje em dia. E o senhor, supo­nho, não está cem por cento de acordo com ela, não é?

— Gosto dela — disse o Sr. Wade com simplicidade. — O senhor sabe... eu gosto dela.

Foi uma afirmação simples e até meio insípida, mas se o Sr. Wade tivesse dito: "Eu a adoro. Venero o pró­prio chão que ela pisa. Por ela eu arrancaria os cabe­los" — não teria sido mais explícito para Parker Pyne.

— É sempre assim, o senhor sabe — continuou o Sr. Wade. — Mas o que é que eu posso fazer? Quero dizer, uma pessoa é tão vulnerável. Se ela prefere mesmo este outro sujeito... bem, a gente tem de seguir as regras do jogo; sair do caminho, e tudo o mais.

—.A proposta é que ela se divorcie do senhor?

— É claro. Eu nunca deixaria que ela fosse levada à corte de justiça.

Parker Pyne olhou pensativo para ele — Mas o se­nhor vem-me procurar por quê?

O outro riu meio envergonhado — Não sei. Sabe como é, não sou um sujeito muito esperto. Não sei pen­sar coisas. Achei que talvez o senhor pudesse... bem, sugerir alguma coisa. Consegui um prazo de seis meses, sabe? Ela concordou. Se no fim de seis meses ela não tiver mudado de idéia... bom, achei que talvez o senhor me daria uma ou duas sugestões. Atualmente ela se aborrece com tudo o que eu faço.

— Veja o senhor, o problema é um só: não sou mui­to esperto! Gosto de esporte. Gosto de um joguinho de golfe. Gosto de uma boa partida de tênis. Não sou muito bom em música, arte, este tipo de coisa. Minha mulher é muito inteligente. Ela gosta de pintura, ópera, concer­tos, e se aborrece comigo. Esse outro sujeito — detestá­vel, cabeludo — sabe tudo sobre essas coisas. Consegue perfeitamente falar sobre elas. Eu não. Até certo ponto eu entendo por que uma mulher inteligente e bonita se chateia com uma besta como eu.

Parker Pyne suspirou — Há quanto tempo está ca­sado?. .. Nove anos? E suponho que desde o início tenha adotado esta atitude. Errado, meu caro senhor, desas­trosamente errado! Nunca adote a atitude de descul­par-se com uma mulher. Ela vai julgá-lo por seu próprio julgamento, e será bem merecido. Devia ter glorificado suas proezas esportivas. Devia ter falado de música e arte como "essas bobagens que a minha mulher gosta". Devia mostrar-se desgostoso por ela não jogar bem. O espírito de humildade, meu caro senhor, é o fracasso completo do matrimônio! Nenhuma mulher tem obriga­ção de agüentar isso. Não me admira que a sua mulher não tenha conseguido aturá-lo!

O Sr. Wade estava olhando espantado para ele. — Bem — disse ele, — o que o senhor acha que eu devo fazer?

— A pergunta é esta, sem dúvida. O que devia ter sido feito nove anos atrás, agora é muito tarde para'fazer. Novas táticas precisam ser adotadas. Já teve casos com outras mulheres?

— Claro que não.

— Talvez fosse mais exato dizer um ligeiro flerte?

— Nunca me preocupei muito com as mulheres.

— Errado. Vai começar agora.

O Sr. Wade alarmou-se — Por favor, seria muito difícil para mim. Quero dizer...

— Não vou lhe criar qualquer problema. Uma pessoa da minha equipe será destacada para o seu caso. Ela vai lhe dizer o que é preciso fazer e todas as atenções que lhe dedicar serão entendidas, claro, como parte do nosso trato.

O Sr. Wade ficou mais aliviado — Assim é melhor. Mas o senhor acha mesmo... quero dizer, acho que íris vai ficar mais ansiosa do que nunca para se ver livre de mim.

— O senhor não compreende a natureza humana, Sr. Wade. E muito menos a natureza humana feminina. No momento, do ponto de vista feminino o senhor não passa de um refugo. Ninguém quer saber do senhor. O que é que uma mulher vai fazer com uma coisa que não interessa a ninguém? Nada. Mas olhe de outro ângulo. Suponhamos que sua mulher descubra que você também está louco para recuperar a liberdade, da mesma manei­ra que ela.

— Ela ia ficar muito satisfeita.

— Ia, mas não vai! Além do mais, ela vai ver que você conseguiu interessar uma moça fascinante... uma moça que poderia escolher quem bem quisesse. Isso vai logo aumentar a sua cotação na bolsa. Sua mulher sabe que os amigos vão dizer que você estava cansado dela e quer se casar com uma mulher mais atraente. E isso vai aborrecê-la.

— O senhor acha?

— Tenho certeza. Você não vai ser mais o "coitado  do Reggie". Vai ser o "esperto do Reggie". Que diferença, meu caro. Sem renunciar ao outro ela vai tentar recon­quistar você. Mas você não vai ser reconquistado. Vai se mostrar sensível e usar todos os argumentos que ela pró­pria usa. "Acho melhor nos separarmos". "Incompatibi­lidade de gênios". Você vai notar que embora seja verda­de o que ela diga — que você nunca a compreendeu — também é verdade que ela nunca compreendeu você. Mas não vamos entrar agora nesses detalhes; no momento certo você saberá as instruções completas.

O Sr. Wade parecia ainda estar em dúvida — O se­nhor acha mesmo que o plano vai dar resultado? — per­guntou hesitante.

— Não vou lhe dizer que tenho certeza absoluta — disse Parker Pyne com cautela. — Há uma vaga possibilidade de que sua mulher esteja tão perdidamente apai­xonada por esse outro sujeito que nada que você disser ou fizer vai afetá-la, mas acho que o problema não é esse. Provavelmente ela começou este caso por causa do tédio _— um tédio criado pela atmosfera de sua devoção fácil de contentar e da absoluta fidelidade com que a cercou, de uma maneira muita errada. Se seguir minhas instruções, suas possibilidades são, digamos, de noventa e sete por cento.

— Bastante boas — disse o Sr. Wade. — Vou arris­car. Por falar nisso. .. ahn... quanto vai ser?

— Meu preço é duzentos guinéus, adiantados. O Sr. Wade tirou o talão de cheques do bolso.

 

Os jardins de Lorrimer Court eram encantadores ao sol" da tarde. íris Wade, deitada numa espreguiçadeira, tornava a visão ainda mais agradável à vista. Ela estava com uma roupa em delicados tons de lilás, e a pintura aplicada com habilidade lhe dava ar mais jovem do que os seus trinta e cinco anos.

Estava conversando com a Sra. Massington, que sempre achou muito simpática. Ambas viviam atribula­das com seus maridos atléticos, que falavam ora de ações, ora de mercado de valores, ora de golfe.

— ... E assim nós aprendemos a viver e deixar os outros viverem — finalizou íris.

— Você é maravilhosa, minha querida — disse a Sra. Massington, e rapidamente acrescentou: — Me diga quem é a moça?

íris levantou os ombros com ar enfastiado — Nem me pergunte! Reggie foi quem a descobriu. Ela é a amiguinha de Reggie! Foi tão engraçado! Você sabe que ele nunca olhou para outra mulher. Me procurou e hesitou muito para falar até que disse que queria convidar a Srta. Sara para passar com ele o fim de semana. É claro eu ri... Não pude evitar. Reggie, imagine! E aí está ela.

— Onde foi que ele a conheceu?

— Não sei. Não deu maiores explicações.

— Talvez já a conheça há muito tempo.

— Não acredito! — disse a Sra. Wade. — É claro — continuou ela, — que estou muito satisfeita... satisfei­tíssima. Quero dizer, isso simplifica tanto as coisas para mim. Você sabe, fiquei muito preocupada com Reggie; ele é tão indefeso! Foi por isso que falei com Sinclair... íamos ferir tanto o Reggie! Mas ele insistiu que Reggie ia esquecer logo; parece que ele tinha razão. Há dois dias Reggie parecia inconsolável. .. e agora ele convida esta moça! Como lhe disse, estou encantada! Gosto de ver Reggie se distraindo. Imagino que o pobre coitado pensou que eu fosse ficar com ciúmes. Que idéia absur­da! "Claro — disse eu — traga a sua amiguinha". Coita­do do Reggie, como se aquela moça desse alguma atenção a ele. Ela só quer se divertir.

— Ela é muito atraente — disse a Sra. Massington. — Muito perigosa, não sei se você entende. O tipo de ga­rota que só se interessa por homens. Não sei, mas não me parece ser uma moça direita.

— Provavelmente não é mesmo — disse a Sra. Wade.

— Ela tem roupas maravilhosas — disse a Sra.

Massington.

— Talvez um pouco exóticas demais, não acha?

— Mas caríssimas.

— Grã-finas. Ela tem um ar muito grã-fino.

— Estão chegando — disse a Sra. Massington.

Madeleine de Sara e Reggie Wade vinham pela ala­meda. Riam, conversavam e pareciam muito felizes. Ma­deleine se atirou numa cadeira, tirou o boné que estava usando e passou as mãos pelos seus belíssimos cachos negros. Era realmente muito bonita.

— Passamos uma tarde maravilhosa! — exclamou ela. — Estou morrendo de calor. Devo estar com uma cara horrorosa.

Reggie começou a falar com nervosismo quando ouviu a sua deixa — Você está... você está... — sorriu. — Não vou dizer — completou.

Os olhos de Madeleine encontraram os dele. A Sra. Massington reparou.

— A senhora devia jogar golfe — disse Madeleine para a sua anfitrioa. — Não sabe o que está perdendo, por que não tenta? Tenho uma amiga que começou há pouco tempo e aprendeu muito bem. E ela já era bem mais velha que a senhora.

— Não ligo para esse tipo de coisa — disse íris com frieza.

— Você não joga bem? Ah, coitada! Isso deixa uma pessoa tão por fora de tudo. Mas, realmente Sra. Wade, os treinamentos hoje em dia são tão bons que qualquer um pode jogar bem. Treinei muito tênis no verão passa­do. É claro que no golfe eu nem tenho esperanças...

— Bobagem! — disse Reggie. — Você só precisa treinar um pouquinho mais. Reparou como você conse­guiu dar umas boas tacadas esta tarde?

— Porque você me ensinou. Você é um professor ma­ravilhoso! Muitas pessoas simplesmente não têm o dom de ensinar aos outros. Você tem esse dom. Deve ser ma­ravilhoso ser feito você... saber fazer tudo!

— Ora, eu não sei fazer nada. .. não sirvo para na­da — Reggie estava confuso.

— A senhora deve ser muito orgulhosa dele — disse Madeleine para a Sra. Wade. — Como foi que conseguiu mantê-lo preso esses anos todos? Deve ter sido muito es­perta. Ou o escondeu o tempo todo?

Sua rival não deu resposta. Apanhou um livro com a mão trêmula.

Reggie resmungou que precisava trocar a roupa e saiu.

— Foi tão gentil da sua parte me receber aqui — disse Madeleine para ela. — Algumas mulheres suspei­tam tanto das amigas dos seus maridos. Sempre achei que o ciúme é uma coisa absurda, a senhora não acha?

— Acho sim. Nunca me passou pela cabeça ter ciú­mes de Reggie.

— É tão maravilhoso da sua parte! Porque qualquer pessoa vê logo que ele é um homem terrivelmente atra­ente para as mulheres. Foi um choque para mim quando soube que ele era casado. Por que todos os homens atra­entes são agarrados tão cedo?

— Fico satisfeita de ver que você acha Reggie assim tão atraente — disse a Sra. Wade.

— Ah, sim! Bom, e é mesmo, não é? Tão bonito e tão bom nos esportes. E esta pretensa indiferença com as mulheres. Isto atiça a gente é claro.

— Suponho que você tem uma porção de amigos ho­mens — disse a Sra. Wade.

— é; tenho sim! Gosto mais dos homens que das mu­lheres. Nunca simpatizo muito com as mulheres. Não sei por quê.

— Talvez porque você seja simpática demais com os maridos delas — disse a Sra. Massington com uma risadinha aguda.

— Bem, a gente às vezes fica com pena das pessoas. Tantos homens simpáticos presos a umas mulheres cha­tas. Sabe, não é, mulheres pseudo-artísticas, metidas a intelectuais. É claro que os homens preferem alguém mais moço, mais alegre, para conversar. Acho que as concepções modernas de casamento e divórcio são muito sensatas. Começar de novo enquanto ainda se é jovem, com alguém que tenha os mesmos gostos e as mesmas idéias. No final das contas, é melhor para todo mundo. Isto é, as mulheres intelectualizadas provavelmente vão agarrar algum cabeludo que as satisfaça. Acho que co­meçar de novo enquanto é tempo é uma coisa muito certa, não acha, Sra. Wade?

— Sem dúvida.

O frio que estava fazendo pareceu penetrar na cons­ciência de Madeleine. Ela resmungou que precisava tro­car de roupa para o chá e deixou as outras duas.

— Estas moças modernas são detestáveis — disse a Sra. Wade. — Não têm nada na cabeça.

— Ela tem uma idéia na cabeça, íris — disse a Sra. Massington. — Esta moça está apaixonada por Reggie.

— Bobagem!

— Está sim. Eu vi como olhou para ele ainda agora. Ela está pouco ligando que ele seja casado ou não. Ela quer ficar com ele. Acho isso revoltante.

A Sra. Wade ficou alguns minutos em silêncio, e de­pois riu, indecisa — Afinal de contas — disse ela, — o que me importa?

Como Madeleine, a Sra. Wade também subiu. O ma­rido estava trocando de roupa no quarto. Cantarolava.

— Divertiu-se, querido? — perguntou a Sra. Wade.

— Ah, sim... muito.

— Fico satisfeita. Quero que você se sinta feliz.

— Sei, sei... estou me sentindo feliz. Representar não era o forte de Reggie Wade, mas do jeito que as coisas aconteceram o constrangimento provocado pelo fingimento funcionou às mil maravilhas. Ele evitou o olhar da mulher e teve um sobressalto quan­do ela falou. Sentiu-se envergonhado, odiou toda aquela farsa. Nada teria produzido um efeito melhor. Ele era o retrato perfeito de uma consciência culpada.

— Há quanto tempo você a conhece? — perguntou de repente a Sra. Wade.

— Ahn. .. quem?

— A Srta. de Sara, é claro.

— Bom, não sei direito. Isto é. .. ora, há algum tempo.

— Ah, é? Você nunca me falou dela.

— Não? Acho que me esqueci.

— Esqueceu mesmo! — disse a Sra. Wade, e depois saiu, num torvelinho de babados lilases.

Depois do chá, o Sr. Wade foi mostrar o roseiral a Madaleine. Andaram pela alameda sentindo os dois pa­res de olhos que os seguiam pelas costas.

— Olhe aqui! — a salvo dos olhares, lá no roseiral, o Sr. Wade desabafou. — Olhe aqui, acho que vou de­sistir. Minha mulher passou a me olhar como se me odiasse!

— Não se preocupe — disse Madeleine. — Está tudo indo bem.

— Você acha mesmo? Bom, é que eu não queria que ela ficasse com raiva de mim. Ela disse coisas muito de­sagradáveis durante o chá.

— Está tudo certo — insistiu Madeleine. — Você está representando muito bem.

— Você acha mesmo?

— Acho — abaixou a voz. — Sua mulher está dando a volta do terraço. Ela quer ver o que nós estamos fa­zendo. É melhor você me beijar.

— Ahn! — disse o Sr. Wade nervoso. — É preciso mesmo? Quero dizer. ..

— Me beije! — repetiu Madeleine autoritária.

O Sr. Wade a beijou. Sua falta de entusiasmo foi am­plamente compensada por Madeleine. Ela o enlaçou nos braços. O Sr. Wade titubeou.

— Detestou tanto assim? — perguntou Madeleine.

— Ahn, claro que não — disse ele galantemente. — Só... só que me pegou de surpresa — acrescentou an­sioso: — Acho que já ficamos muito tempo aqui no roseiral, não é?

— Acho que sim — disse Madeleine. Missão cum­prida aqui.

Voltaram para o gramado. A Sra. Massington in­formou que a Sra. Wade tinha ido se deitar.

Mais tarde, o Sr. Wade procurou Madeleine com o rosto perturbado.

— Ela está num estado deplorável... histérica.

— ótimo.

— Ela me viu beijando você.

— Bom, era o que nós pretendíamos.

— Eu sei, mas eu não podia dizer isso, não é? Eu nem sabia o que dizer. Disse apenas que. .. que... bom, que aconteceu.

— Ótimo.

— Ela disse que você estava pensando em casar co­migo e que não valia nada. Isso me aborreceu... me pa­receu muito desagradável para você. Isto é, porque você está só representado um papel e fazendo o seu trabalho. Eu disse que tinha o maior respeito por você e o que ela estava dizendo não era verdade, de modo nenhum. Acho que cheguei a me zangar mesmo quando falei isso.

— Fantástico!

— Então ela disse para eu ir embora. Disse que nun­ca mais falaria comigo. Falou em fazer as malas e ir embora de uma vez por todas — o rosto dele estava cons­ternado.

Madeleine sorriu — Vou lhe dizer o que deve fazer agora. Diga para ela que você é quem vai embora, que vai fazer as malas e vai para a cidade.

— Mas eu não quero ir!

— Está bem. Você não precisa ir. Sua mulher vai detestar a idéia de saber que você está se divertindo em Londres.

Na manhã seguinte Reggie Wade tinha um novo re­latório a comunicar.

"Ela disse que esteve pensando que não é direito ela ir embora agora que concordou em ficar mais seis meses. Mas disse que se eu tenho o direito de trazer mi­nhas amigas aqui, ela não vê por que não há de trazer também os amigos dela. Convidou Sinclair Jordan."

— É ele?

— É, e eu não admito que este homem ponha os pés em minha casa!

— É preciso — disse Madeleine. — Não se preocupe. Eu cuido dele. Diga a ela que pensou um pouco e chegou à conclusão de que não tem nenhum problema e que ela também não se importará que você me convide para fi­car mais um pouco.

— Ai, meu Deus! — suspirou o Sr. Wade.

— Vamos, não perca a cabeça — disse Madeleine.

— Está tudo correndo às mil maravilhas. Mais uns quin­ze dias — e todos os seus problemas vão acabar.

— Mais uns quinze dias?. . . Você acredita mesmo? — perguntou o Sr. Wade.

— Se eu acredito? Tenho certeza — respondeu Madeleine.

 

Uma semana depois Madeleine de Sara entrou no escritório de Parker Pyne e afundou pesadamente numa cadeira.

— Entrou a Rainha das Vamps — disse Parker Py­ne, sorrindo.

— Vamps! — disse Madeleine. Sorriu ligeiramente. — Nunca fiz tanta força para ser uma vamp. Aquele ho­mem é obcecado pela mulher. Já é doença.

Parker Pyne sorriu — É mesmo. Bom, de certa for­ma isso facilitou o nosso trabalho. Não é qualquer ho­mem, minha querida Madeleine, que eu exporia ao seu fascínio com tanta tranqüilidade.

A moça riu — Se soubesse a dificuldade que eu tive para fazer ele me beijar como se estivesse gostando!

— Uma experiência nova para você, minha querida. E o seu trabalho terminou?

— Terminou. Acho que deu certo. Houve uma cena tremenda ontem de noite. Espera aí, meu último relató­rio foi há três dias?

— Foi.

— Bom, como já disse, tive que olhar para aquele verme miserável, o Sinclair Jordan. Ele ficou logo caído por mim... principalmente porque achou, pelas minhas roupas, que eu tinha dinheiro. A Sra. Wade ficou furiosa, é claro: seus dois homens se desdobrando em atenções comigo. Mostrei logo quem é que eu preferia. Zombei de Sinclair Jordan... na frente dela e na frente dele. Ri das roupas dele e do tamanho do cabelo. Mostrei que ele ti­nha as pernas tortas.

— Excelente técnica — disse Pyne, satisfeito.

— A coisa ferveu ontem à noite. A Sra. Wade abriu o jogo. Me acusou de destruir o seu lar. Reggie Wade fa­lou de Sinclair Jordan. Ela disse que aquilo tinha sido o resultado de sua infelicidade e de sua solidão. Ela já no­tara o ar ausente do marido, mas não tinha idéia da causa. Disse que sempre tinha sido feliz, que adorava o marido e ele sabia disso, e que só queria a ele, a mais ninguém.

— Eu disse que era tarde demais. O Sr. Wade seguiu à risca as instruções. Disse a ela que não ligava a míni­ma! Ia se casar comigo! A Sra. Wade podia ficar com seu Sinclair o quanto quisesse. Não havia razão para es­perar seis meses. Era um absurdo! Os papéis do divórcio podiam ser tratados imediatamente.

— Dentro de mais alguns dias, disse ele, tudo esta­ria esclarecido e ela podia instruir seus advogados. Disse que não podia viver sem mim. A Sra. Wade apertou o peito e falou que estava com o coração enfraquecido e tiveram de lhe dar um conhaque. Ele não se deixou amolecer. Veio para a cidade hoje de manhã e tenho certeza de que a estas horas ela já veio atrás dele.

— Então está tudo certo — disse Pyne alegremente.

— Um resultado muito satisfatório.

A porta abriu e apareceu Reggie Wade.

— Ela está aqui? — perguntou ele, entrando pela sala. — Onde está ela? — viu Madeleine. — Querida! — gritou e segurou-lhe as duas mãos. — Querida, querida. Você sabia, não é? Que era tudo verdade ontem à noi­te... que tudo o que disse a íris era verdade? Não sei como pude ficar cego tanto tempo. Mas percebi nos úl­timos três dias...

— Percebeu o quê? — disse Madeleine, baixo.

— Que eu adoro você. Que não há nenhuma outra mulher no mundo igual a você. íris pode pedir o divórcio e quando estiver tudo resolvido você vai se casar comigo, não é? Diga que sim. Madeleine, eu adoro você!

Ele apertou a paralisada Madeleine nos seus braços, enquanto a porta se abria outra vez, agora para deixar passar uma mulher magra, com um vestido verde desa­jeitado.

— Eu sabia! — disse a recém-chegada. — Eu segui você! Sabia que você vinha se encontrar com ela!

— Eu lhe asseguro... — começou Parker Pyne, re­cuperando-se do espanto.

A intrusa não tomou conhecimento dele. Continuou:

— Ah, Reggie, você não pode despedaçar assim o meu co­ração! Volte para mim! Não vou dizer uma palavra sobre tudo isso! Vou aprender golfe! Só terei amigos de que você goste. Depois de todos esses anos que nós fomos fe­lizes juntos..,

— Até agora eu nunca fui feliz — disse o Sr. Wade olhando para Madeleine. — Esqueça, íris, você não queria se casar com aquela mula do Jordan? Por que não casa logo?

A Sra. Wade deu um gemido — Odeio você! Odeio a sua própria sombra! — virou-se para Madeleine: — Mu­lher viciosa! Seu vampiro horrível! Roubando o meu ma­rido!

— Eu não quero o seu marido — disse Madeleine distraída.

— Madeleine! — o Sr. Wade olhou angustiado para ela.

— Por favor, vá embora — pediu Madeleine.

— Veja, meu bem, não estou fingindo. Foi isso mes­mo que eu quis dizer!

— Vá embora! — gritou Madeleine, histérica. — Vá embora!

Reggie caminhou relutante até a porta — Eu vou voltar — avisou. — Você não está me vendo pela última vez — saiu, batendo a porta.

— Moças como você deviam ser açoitadas e marca­das a ferro! — gritou a Sra. Wade. — Reggie era um an­jo para mim até você aparecer. Agora ele está tão mu­dado que eu nem o conheço mais! — com um soluço, correu atrás do marido.

Madeleine e Parker Pyne se entreolharam.

— Não posso fazer nada — disse Madeleine desorien­tada. — Ele é um homem muito simpático... um amor!... mas não quero me casar com ele. Eu nem sus­peitava disso tudo. Se visse a dificuldade que tive para fazer com que me beijasse!

— Bom! — disse Parker Pyne. — Sinto muito admi­tir isto, mas foi um erro de julgamento da minha parte — balançou a cabeça tristemente e, puxando o fichário do Sr. Wade, escreveu:

FRACASSO: causas naturais. N.B. — Deviam ter sido previstas.

 

O Caso do Empregado de Escritório

Parker Pyne reclinou-se pensativo em sua cadei­ra giratória e observou o seu visitante. Era um homem baixo, troncudo, de uns quarenta e cinco anos, que olha­va para ele com olhos ao mesmo tempo tímidos, sôfregos e intrigados, e que deixavam entrever uma esperança aflita.

— Vi o seu anúncio no jornal — disse o homenzinho nervosamente.

— O senhor tem algum problema, Sr. Roberts?

— Não. .. não é bem um problema.

— O senhor é feliz?

— Eu não diria que sou infeliz. Tenho muito o que agradecer da vida.

— Todos nós temos — disse Parker Pyne. — Mas quando é preciso se lembrar disso, é mau sinal.

— Eu sei — disse o homenzinho vivamente. — É exatamente isso! O senhor acertou em cheio!

— Que tal o senhor me contar tudo, hein? — su­geriu Parker Pyne.

— Não tenho muita coisa para contar. Como lhe disse, não posso me queixar muito da vida. Tenho um emprego; consegui economizar um pouco de dinheiro; as crianças são fortes e sadias.

— Então o senhor quer... o quê?

— Eu... não sei — corou. — Acho que o senhor está achando que eu sou um idiota.

— Absolutamente — disse Pyne.

Com um hábil interrogatório, extraiu as outras con­fidencias. Ficou sabendo a respeito do trabalho do Sr. Roberts numa firma muito conhecida e de seus progres­sos, lentos mas firmes. Soube de seu casamento, de sua luta para manter uma aparência decente, para educar as crianças e tê-las sempre "bem vestidas"; dos planos, dos projetos, das economias e das dificuldades em eco­nomizar todo ano algumas libras. Conheceu, na verdade, a saga de, uma vida de esforços contínuos pela sobrevi­vência.

— Bem, agora o senhor vê como é — confessou o Sr. Roberts. — A mulher está fora. Foi passar uns dias com a mãe e levou as duas crianças. Uma mudança para eles e um descanso para ela. Não tem quarto para mim e nós não temos meios de ir para outro lugar. E sozinho, lendo o jornal, vi o seu anúncio e ele me fez pensar. Te­nho quarenta e oito anos. Fiquei pensando... Aconte­cem coisas em todos os lugares — concluiu, toda a sua alma suburbana e ansiosa em seus olhos.

— O senhor queria — disse o Sr. Parker Pyne, — viver dez minutos de uma vida gloriosa?

— Bem, eu não colocaria as coisas dessa maneira. Mas talvez o senhor tenha razão. Eu só gostaria de sair da rotina. Voltaria a ela outra vez, mesmo com prazer... se ao menos tivesse alguma coisa para me lembrar — olhou inquieto para o outro homem. — Será que é pos­sível, senhor? Temo. .. temo que não possa pagar muito.

— Quanto o senhor pode pagar?

— Posso arranjar umas cinco libras, senhor — ele esperou, a respiração presa.

— Cinco libras — disse Parker Pyne. — Acho... acho... que posso arranjar alguma coisa por cinco li­bras. O senhor se opõe ao perigo? — acrescentou com vivacidade.

Um leve rubor apareceu no rosto descorado do Sr. Roberts. — Perigo, o senhor disse? Oh, não, absolutamen­te. Eu... eu nunca fiz nada perigoso.

Parker Pyne sorriu — Apareça aqui amanhã de novo e eu lhe digo o que posso fazer pelo senhor.

O Bon Voyageur é uma hospedaria pouco conhecida. É mais um restaurante freqüentado por alguns poucos fregueses certos. Eles não gostam de estranhos.

Foi no Bon Voyageur que Parker Pyne chegou e foi recebido com respeitosa consideração. — O Sr. Bonnington está? — perguntou ele.

— Sim, senhor. Está na sua mesa habitual.

— ótimo. Vou vê-lo.

O Sr. Bonnington era um cavalheiro de aparência militar e com um rosto um tanto ou quanto bovino. Cum­primentou o amigo com prazer.

— Alô, Parker. É difícil ver você por esses dias. Não sabia que vinha por estas bandas.

— Venho de vez em quando. Especialmente quando quero encontrar um velho amigo.

— Você quer dizer eu?

— Você mesmo. Por falar nisso, Lucas, estive pen­sando naquela conversa do outro dia.

— O caso Peterfield? Viu as últimas nos jornais? Não, não deve ter visto ainda. Não vai sair nada antes de hoje à noite.

— Quais são as últimas?

— Eles assassinaram Peterfield a noite passada — disse o Sr. Bonnington comendo plàcidamente sua sa­lada.

— Deus do Céu! — gritou Pyne.

— Pois eu hão me surpreendi — disse o Sr. Bonning­ton. — Era um velho teimoso, o Peterfield. Não escutava o que dizíamos. Sempre insistia em guardar os planos com ele.

— Eles conseguiram os planos?

— Não, parece que apareceu uma mulher que deu ao professor uma receita para ferver presunto. A mula velha, distraído como sempre, guardou a receita no cofre e os planos na cozinha.

— Foi muita sorte.

— Providencial, eu diria. Mas ainda não sei quem é que vai levá-los para Genebra. Maitland está no hospital. Carslake está em Berlim. Eu não posso ir. Só resta o jo­vem Hooper — olhou para o amigo.

— Sua opinião é a mesma? — perguntou Parker Pyne.

— A mesmíssima. Eles o compraram! Eu sei. Não há a menor prova, Parker, mas eu sei quando um sujeito é velhaco! E eu quero que estes planos cheguem a Gene­bra. Pela primeira vez na história uma invenção não vai ser vendida a uma nação. Vai ser doada voluntariamen­te. É o maior gesto de paz que já aconteceu e é preciso que se concretize. E Hooper é um vigarista. Você vai ver, ele será narcotizado no trem! Se for de avião, vai aterrar em algum lugar conveniente! Mas, apesar de tudo, não posso abrir mão dele para os outros! Disciplina! É pre­ciso ter uma certa disciplina! Foi sobre isto que eu lhe falava outro dia.

— Você me perguntou se eu não conhecia alguém.

— Sim. Pensei que talvez no seu tipo de negócio. .. Algum espadachim louco para entrar numa briga. Qual­quer um que eu mandar corre um grande risco de ser liquidado. O seu homem provavelmente não seria suspei­to de nada. Mas é preciso que ele tenha muita coragem.

— Acho que tenho alguém para isso.

— Graças a Deus ainda tem gente que gosta de cor­rer riscos. Está combinado, então?

— Combinado — disse Parker Pyne.

 

Parker Pyne estava resumindo suas instruções — Então, está tudo claro? Você vai viajar num carro-leito da primeira classe até Genebra. Deixará Londres às dez e quarenta e cinco, via Folkestone e Boulogne. Pega o carro-leito em Boulogne. Chega em Genebra às oito horas da manhã seguinte. Está aqui o endereço onde deverá se apresentar. Por favor, guarde-o de memória e destrua o papel. Depois vá para o hotel e aguarde as futuras ins­truções. Aqui tem dinheiro suficiente em notas fran­cesas e suíças e bastante trocado. Compreendeu?

— Sim, senhor — os olhos de Roberts brilhavam de emoção. — Perdão, senhor, mas eu tenho o direito de saber... ahn... de saber alguma coisa sobre o que es­tou levando?

Parker Pyne sorriu benevolentemente — Você está levando um criptograma que revela o esconderijo secreto das jóias da coroa da Rússia — disse solenemente. — Evidentemente, há agentes bolcheviques a postos, pron­tos para interceptá-lo. Se for necessário falar sobre a sua própria pessoa, recomendo-lhe que diga que herdou um pouco de dinheiro e que está aproveitando para tirar umas férias no exterior.

 

O Sr. Roberts tomou uma xícara de café e olhou para o lago de Genebra. Estava feliz, mas ao mesmo' tempo desapontado.

Estava feliz porque pela primeira vez em sua vida ele estava num país estrangeiro. Além disso, estava hos­pedado num tipo de hotel no qual nunca se hospedaria outra vez e pelo menos agora não tinha que se preocupar com dinheiro! Tinha um quarto com banheiro parti­cular, refeições deliciosas, um serviço perfeito. Todas estas coisas o Sr. Roberts apreciava muitíssimo.

Estava desapontado porque nada que pudesse ser descrito como aventura acontecera em sua viagem. Ne­nhum bolchevique disfarçado ou algum russo misterioso cruzara o seu caminho. Um bate-papo agradável no trem com um viajante comercial francês que falava um inglês excelente fora o único contato humano que tivera até aqui. Escondera os papéis junto com sua esponja de ba­nho, como lhe fora dito, e os entregara seguindo as ins­truções. Não houve nenhum risco, nenhuma fuga mira­bolante. O Sr. Roberts estava muito desapontado.

Foi nesse momento que um homem alto, barbado, murmurou: — Pardon — e sentou-se do outro lado da mesinha. — O senhor vai me desculpar — disse, — mas acho que conhece um amigo meu. As iniciais são P.P..

O Sr. Roberts ficou eletrizado. Finalmente, um russo misterioso — Co... conheço sim.

— Então acho que podemos nos entender — disse o estranho.

O Sr. Roberts olhou-o atentamente. Isso era mais do que ele tinha imaginado! O estranho era um homem de cerca de cinqüenta anos, de aparência distinta, porém es­trangeirada. Usava um monóculo e uma pequena fita co­lorida na lapela.

— A sua missão foi cumprida com muito êxito — disse o estranho. — Está preparado para executar outra?

— Certamente. Claro que sim!

— Bom. O senhor vai reservar um lugar no carro-leito do trem Genebra—Paris para amanhã à noite. Peça o leito Número Nove.

— E se hão estiver vago?

— Vai estar vago. Isso já foi arranjado.

— Leito Número Nove — repetiu Roberts. — Já compreendi.

— Durante a viagem alguém vai lhe dizer. "Pardon, Monsieur, mas acho que esteve há pouco tempo em Gras­se, não?". Vai responder: "Foi, no mês passado". A outra pessoa vai dizer: "O senhor se interessa por essências?" e o senhor responderá: "Sim, sou fabricante de óleo de jasmim sintético". Depois o senhor se colocará inteiramen­te à disposição da pessoa que lhe falou. Por falar nisso, o senhor está armado?

— Não — disse o Sr. Roberts com um leve tremor. — Não, eu não pensei, isto é...

— Dá-se um jeito — disse o homem barbado, olhan­do em torno. Não havia ninguém por perto. Algo duro e brilhante foi colocado nas mãos do Sr. Roberts. — Uma arma pequena mas muito eficaz — disse o estranho sorrindo.

O Sr. Roberts, que nunca dera um tiro de revólver em sua vida, colocou-o no bolso, meio desajeitado. Tinha uma sensação desagradável de que aquilo ia disparar a qualquer momento.

Repetiram novamente as palavras da senha. Então o novo amigo se levantou.

— Desejo-lhe boa sorte — disse ele. — Que o senhor possa se desincumbir sem problemas. É um homem de coragem, Sr. Roberts.

Sou mesmo? pensou Roberts quando o outro foi em­bora. Tenho certeza de que não quero morrer. Isso não vale a pena.

Uma vibração agradável percorreu a sua espinha, contrabalançada por uma. outra vibração que não era lá tão agradável.

Foi para o seu quarto e examinou a arma. Ainda não sabia como funcionava e desejou que não fosse necessá­rio usá-la.

Saiu para marcar a passagem.

O trem deixou Genebra às nove e meia. Roberts che­gou na estação a tempo. O condutor do carro-leito pegou seu bilhete e o passaporte e ficou de lado enquanto um carregador levava a mala de Roberts. Havia uma outra bagagem ali: uma valise de couro de porco e uma mala de vigem de dois compartimentos.

— Número Nove é o leito inferior — disse o con­dutor.

Ao se virar para sair da cabina, deu um encontrão num homenzarrão que entrava. Eles se afastaram pe­dindo desculpas — Roberts em inglês e o estranho em francês. Era um homem alto, corpulento, com a cabeça raspada e óculos espessos através dos quais se viam uns olhos que brilhavam desconfiados.

Uma pessoa a temer, disse Roberts para si mesmo.

Pressentiu algo vagamente sinistro sobre o seu com­panheiro de viagem. Teria sido para vigiar este homem que lhe fora indicado o leito Número Nove? Calculou que fosse.

Saiu outra vez para o corredor. Ainda faltavam dez minutos para o trem partir e ele pensou em andar um pouco pela plataforma. A meio caminho do corredor pôs-se de lado para dar passagem a uma senhora. Ela estava entrando no vagão e o condutor a precedia com o bilhete na mão. Ao passar por Roberts ela deixou cair a bolsa. O inglês apanhou-a e entregou-lhe de volta.

— Obrigada Monsieur — ela falou em inglês, mas a sua voz era estrangeira, uma voz sonora, grave e muito sedutora. Quando ela estava quase passando por ele. he­sitou e murmurou: Pardon, Monsieur, mas acho que es­teve há pouco tempo em Grasse, não?

O coração de Roberts deu um pulo de excitação. Ele devia pôr-se à disposição desta adorável criatura — porque ela era adorável, disso ele não tinha a menor dúvida. Não somente adorável, mas aristocrática e rica. Usava um casaco de peles para viagem, um chapéu elegante. Havia pérolas em torno do pescoço. Era morena e tinha os lábios vermelhos.

Roberts deu a resposta adequada: — Foi, no mês passado.

— O senhor se interessa por essências?

— Sim, sou fabricante de óleo de jasmim sintético. Ela abaixou a cabeça e seguiu, deixando um leve sussurro: — No corredor assim que o trem sair.

Os próximos dez minutos pareceram uma eternidade para Roberts. Enfim o trem saiu. Ele andou lentamente até o corredor. A senhora do casaco de peles estava lu­tando contra uma janela. Apressou-se em ajudá-la.

— Obrigada, Monsieur. Apenas um pouco de ar an­tes que eles fechem tudo — e continuou em voz suave, baixa e apressada: — Depois da fronteira, quando o nos­so companheiro de viagem estiver dormindo. .. não an­tes... vá até o lavatório e entre na cabina do outro lado. Compreendeu?

— Sim — abaixou a janela e disse em voz mais alta: — Está melhor assim, Madame?

Retirou-se para o seu compartimento. Seu compa­nheiro de viagem já estava estendido no leito de cima. Seus preparativos para a noite tinham sido visivelmente simples. Limitou-se a tirar a capa e as botas.

Roberts pensou no problema da sua roupa. Era cla­ro que, se ele ia para a cabina de uma senhora, não ia se despir agora.

Procurou um par de chinelos, trocou-os pelas botinas e deitou-se, apagando as luzes. Alguns minutos depois o homem lá de cima começou a ressonar.

Logo depois das dez horas eles alcançaram a fron­teira. A porta foi aberta; uma pergunta superficial: Messieurs têm algo a declarar? A porta foi fechada novamen­te. O trem partiu de Bellegarde.

O homem do leito de cima estava ressonando outra vez. Roberts deixou passar vinte minutos, pôs-se de pé e abriu a porta do compartimento do lavatório. Uma vez lá dentro, trancou a porta atrás dele e olhou para a que estava do outro lado. Não estava trancada. Hesitou. De­veria bater?

Talvez fosse um absurdo bater na porta. Mas ele não gostava da idéia de entrar sem bater... Decidiu-se, abriu a porta devagar, mais ou menos uma polegada, e esperou. Aventurou-se mesmo a uma pequena tosse.

A resposta foi imediata. A porta foi escancarada e ele foi agarrado por um braço, puxado para a outra ca­bina e a moça fechou e passou o trinco na porta.

Roberts ficou sem fôlego. Nunca imaginara nada as­sim tão maravilhoso. Ela estava usando uma levíssima camisola comprida de gaze creme e rendas. Encostou-se contra a porta que dava para o corredor, ofegante. Ro­berts lera a respeito de belas criaturas perseguidas e acuadas. Agora, pela primeira vez, ele via uma — que visão emocionante!

— Graças a Deus! — murmurou a moça.

Ela era muito jovem, Roberts notou, e o seu encanto era tal que parecia um ser de outro mundo. Eis o ro­mance finalmente — e ele estava ali!

Ela falou em voz baixa e rápida. Seu inglês era per­feito, mas o sotaque era totalmente estrangeiro — Estou muito contente que tenha vindo — disse ela. — Estava horrivelmente assustada. Vassilievitch está no trem. Sa­be o que quer dizer isso?

Roberts não tinha idéia do que isso queria dizer, mas concordou com a cabeça.

— Pensei que tivesse conseguido despistá-lo. Devia ter visto logo. O que podemos fazer? Vassilievitch está na cabina pegada à minha. Aconteça o que acontecer, ele não pode conseguir as jóias. Mesmo que ele me mate, não deve pôr a mão nas jóias.

— Ele não vai matá-la e não vai pôr a mão nas jóias — disse Roberts com determinação.

— Então o que posso fazer com elas?

Roberts olhou para a porta trancada — A porta está trancada — disse.

A moça riu — O que são portas trancadas para Vas­silievitch?

Roberts sentia-se cada vez mais e mais no meio de uma de suas novelas favoritas — Só há Uma coisa a fa­zer. Dê-me as jóias.

Ela olhou-o duvidosa. — Elas valem 250 mil.

Roberts corou — Pode confiar em mim.

A moça hesitou ainda um momento e falou — Sim, vou confiar em você — disse ela. Fez um movimento rá­pido. Em seguida entregou a ele um par de meias enro­ladas — meias de seda teia de aranha. — Guarde-as, meu amigo — disse ela ao espantado Roberts.

Ao apanhá-las ele entendeu logo. Em vez de serem leves como o ar, as meias estavam estranhamente pe­sadas.

— Leve-as para a sua cabina — disse ela. — Você pode devolvê-las de manhã, se... se... se eu ainda esti­ver aqui.

Roberts pigarreou — Olhe aqui — disse. — A seu respeito — fez uma pausa. — Eu... eu preciso tomar conta de você — aí ele enrubesceu, num arroubo de emo­ção. — Aqui não, quero dizer... Vou ficar ali — apontou para o compartimento do lavatório.

— Se quiser pode ficar aqui... — ela olhou para o leito superior desocupado.

Roberts corou até a raiz dos cabelos — Não, não — protestou ele. — Ali está bom. Se precisar de mim, é só chamar.

— Muito obrigada, meu amigo — disse a moça sua­vemente.

Ela se deitou no leito de baixo, puxou o cobertor e sorriu agradecida para Roberts. Este se retirou para o la­vatório.

De repente — deve ter sido umas duas horas depois —ele achou que tinha ouvido alguma coisa. Ficou à es­cuta — nada. Talvez tivesse se enganado. E, no entanto, parecia que tinha ouvido um leve ruído na cabina ao lado. Suponhamos... apenas suponhamos...

Abriu a porta devagar. A cabina estava do mesmo jeito que a deixara, com uma luzinha fraca e azulada no teto. Ficou ali de pé com os olhos se acostumando pouco a pouco com a penumbra. Conseguiu entrever o leito.

Viu que estava vazio! A moça não estava mais lá!

Acendeu a luz grande. A cabina estava vazia. Nesse momento, sentiu um cheiro. Apenas um sopro, mas re­conheceu o odor adocicado e doentio do clorofórmio!

Saiu da cabina (agora a porta estava destrancada, reparou) para o corredor e olhou em todas as direções. Vazio! Seus olhos se dirigiram para a porta mais próxi­ma da cabina da moça. Ela dissera que Vassilievitch es­tava na cabina ao lado. Desajeitadamente, tentou girar a maçaneta. A porta estava trancada por dentro.

O que devia fazer? Pedir para entrar? Mas o homem se negaria e apesar de tudo, talvez a moça não estivesse lá! E se estivesse, iria por acaso ficar muito satisfeita por ele ter feito uma demonstração pública do assunto? Já tinha sentido que o segredo era essencial na partida que estavam jogando.

Um homenzinho preocupado vagou lentamente pelo corredor. Fez uma pausa na última cabina. A porta es­tava aberta e o condutor estava deitado, dormindo. E, por cima dele, num gancho, estavam pendurados o seu casaco marrom e o boné!

Num lampejo, Roberts decidiu o que ia fazer. Um minuto depois ele já tinha vestido o casaco e o boné e corria de volta pelo corredor. Parou à porta próxima da cabina da moça, armou-se de toda a sua resolução e ba­teu peremptòriamente.

Ao ver que suas batidas não eram respondidas, ba­teu outra vez com mais força.

— Monsieur — disse ele com seu melhor sotaque.

A porta abriu-se um pouquinho e uma cabeça espiou para fora — cabeça de um estrangeiro de cabelos raspa­dos, à exceção de um bigode preto. Era um rosto zangado, malévolo.

— Qu'est-ce qu'il y a? — perguntou secamente.

— Votre passeport, Monsieur — Roberts deu um passo atrás e fez um aceno com a cabeça.

O outro hesitou e deu um passo para fora do corre­dor. Roberts contara exatamente com isto. Se por acaso ele estivesse mesmo com a moça lá dentro, naturalmente não ia querer que o condutor entrasse. Como um relâmpago Roberts agiu. Com toda a sua força, empurrou o estrangeiro para um lado — o homem não estava preve­nido e o balanço do trem ajudou — pulou para dentro do compartimento, fechou a porta e trancou-se por dentro. A moça estava deitada no leito, com uma mordaça na boca e os pulsos amarrados. Libertou-a imediatamen­te e ela agarrou-se a ele com um soluço. — Estou me sentindo tão fraca e insegura — murmurou ela. — Acho que foi o clorofórmio. Ele... ele as conseguiu?

— Não — Roberts bateu em seu bolso. — Que va­mos fazer agora? — perguntou ele.

A moça sentou-se. Estava voltando à razão. Olhou para a roupa dele — Como você foi esperto! Que boa idéia teve! Ele disse que me mataria se eu não dissesse onde estavam as jóias. Eu estava com tanto medo! E então você chegou! — de repente ela riu — Mas nós passamos a perna nele! Não ousará fazer mais nada. Não pode nem mesmo voltar para a sua própria cabina.

— Vamos ficar aqui até de manhã. Provavelmente ele vai saltar em Dijon; vamos parar lá daqui a uma meia hora. Ele vai telegrafar para Paris e vão pegar a nossa pista lá. Neste meio tempo é melhor você jogar fora este casaco e este boné pela janela. Eles podem deixá-lo em apuros.

Roberts obedeceu.

— Não podemos dormir — decidiu a moça. — Pre­cisamos ficar de guarda até de manhã.

Foi uma vigília estranha, excitante. Às seis horas da manhã Roberts abriu a porta cautelosamente e deu uma olhada para fora. Não havia ninguém à vista. A moça entrou depressa na sua própria cabina. Roberts a seguiu. O local fora visivelmente saqueado. Entrou de volta em seu próprio compartimento através do lavatório. O seu companheiro de viagem continuava ressonando.

Chegaram a Paris às sete horas. O condutor recla­mava a perda do casaco e do boné. Ele ainda não desco­brira a falta de um dos passageiros.

Iniciaram uma caçada muito divertida. A moça e Ro­berts tomaram táxi atrás de táxi através de Paris. Entraram em hotéis e restaurantes por uma porta e saíram por outra. Finalmente a moça deu um suspiro.

— Tenho certeza de que não vamos mais ser segui­dos — disse ela. — Nós os despistamos.

Tomaram café e dirigiram-se para Le Bourget. Três horas depois estavam chegando ao aeroporto de Croydon. Roberts nunca voara antes.

Em Croydon, um senhor alto e idoso que lembrava vagamente o mentor do Sr. Roberts em Genebra esperava por eles. Cumprimentou a moça com um respeito es­pecial.

— O carro está aqui, Madame — disse.

— Este cavalheiro nos acompanhará, Paul — disse a moça. E a Roberts: — O Conde Paul Stepanyi.

O carro era uma enorme limusine. Andaram cerca de uma hora, entraram nos terrenos de uma casa de cam­po e pararam em frente às portas de uma imponente mansão. O Sr. Roberts foi levado para uma sala mobiliada como um estúdio. Ali, entregou o precioso par de meias. Foi deixado a sós por um momento. Neste mo­mento o Conde Stepanyi voltou.

— Sr. Roberts — disse ele, — nossa gratidão eterna. O senhor provou ser um homem de coragem e de muita habilidade — trazia nas mãos uma caixa de marroquino vermelho. — Permita-me conferir-lhe a Ordem de Santo Estanislau — décima classe com lauréis.

Como num sonho Roberts abriu a caixa e olhou para a condecoração preciosa. O idoso cavalheiro ainda estava falando.

— A Grã-Duquesa Olga deseja lhe agradecer pessoal­mente antes de partir.

Foi levado até uma enorme sala de visitas. Ali, mui-3 linda em um vestido vaporoso, estava a sua compa­nheira de viagem.

— Devo-lhe minha vida, Sr. Roberts — disse a Grã-Duquesa.

Ela estendeu a mão. Roberts beijou-a. Ela se inclinou subitamente para ele.

— Você é um homem de coragem — disse ela. Seus lábios se encontraram; um sopro de um rico perfume oriental o rodeou. Por um momento ele teve en­tre os braços aquele corpo lindo e esbelto...

Ainda estava sonhando quando alguém lhe disse: — O automóvel o levará aonde o senhor quiser.

Uma hora depois o carro voltou para a Grã-Duquesa Olga. Ela entrou, seguida pelo cavalheiro de cabelos brancos, que" já tirara a barba para refrescar-se. O carro deixou a Grã-Duquesa Olga em uma casa em Streatham. Ela entrou e uma senhora idosa olhou-a por cima de uma mesa posta para o chá.

— Ah, Maggie, querida, você já está de volta!

No expresso Genebra—Paris esta moça era a Grã-Duquesa Olga; no escritório de Parker Pyne ela era Madeleine de Sara; na casa de Streatham, era Maggie Sayers, a quarta filha de uma família honesta e trabalhadeira.

Como as pessoas se enganam!

 

Parker Pyne almoçava com um amigo. — Parabéns — disse o último. — Seu homem levou tudo a cabo sem um tropeço. A quadrilha de Tormali deve estar dando tratos à bola para descobrir como foi que os planos da arma lhe escaparam. Você disse a seu emissário o que era que ele estava levando?

— Não. Achei melhor... fantasiar.

— Muito discreto de sua parte.

— Não foi exatamente discrição. Eu queria que ele se divertisse um pouco. Imaginei que talvez achasse esta história de arma um pouco enfadonha. Queria que ele tivesse umas aventuras.

— Enfadonha? — disse o Sr. Bonnington, olhando para ele. — Olhe, eles o teriam assassinado assim que to­passem com ele

— Eu sei — disse Parker Pyne suavemente. — Mas eu não queria que ele fosse assassinado.

— Você ganha muito dinheiro em seus negócios, Parker? — perguntou o Sr. Bonnington.

— Às vezes perco quando vale a pena. disse Parker Pyne. — Isto é, quando vale a pena.

Três homens furiosos xingavam-se mutuamente em Paris. — Aquele maldito Hooper! — dizia um deles. — Ele nos traiu.

— Os planos não foram levados por ninguém do Serviço — disse o segundo. — Mas eles vieram na quarta-feira, tenho absoluta certeza. E é por isto que eu digo que foi você quem trabalhou mal.

— Eu não — disse o terceiro mal-humorado;— não havia nenhum inglês no trem a não ser um empregadinho de escritório. Ele nunca ouvira falar de Peterfield ou da arma. Eu sei. Eu o provoquei. Peterfield e a arma não queriam dizer nada para ele — sorriu. — Ele tinha um complexo bolchevista qualquer.

O Sr. Roberts estava sentado em frente ao aquece­dor a gás. Sobre os joelhos tinha uma carta de Parker Pyne. Junto com ela chegara um cheque de cinqüenta libras "de pessoas que estavam muito satisfeitas com uma certa missão executada".

No braço de sua cadeira repousava um livro da bi­blioteca. O Sr. Roberts abriu-o ao acaso. Ela estava en­colhida junto à porta como uma linda criatura acuada.

Bem, ele sabia o que era isso.

Leu outra frase: Ele farejou o ar. O odor suave e doentio do clorofórmio chegou às suas narinas.

Ele também sabia o que era isso.

Ele a tomou em seus braços e sentiu a vibração na resposta de seus lábios escarlates.

O Sr. Roberts deu um suspiro. Não fora um sonho. Aconteceu mesmo. A viagem de ida foi muito monótona, mas a de volta! Como ele tinha gostado! Mas ele estava satisfeito de voltar para casa. Sentiu.vagamente que a existência não poderia ser vivida indefinidamente na­quele compasso. Mesmo a Grã-Duquesa Olga — mesmo aquele último beijo — já faziam parte de um sonho.

Mary e as crianças iam voltar para casa amanhã. O Sr. Roberts sorriu feliz.

Ela ia dizer: "Passamos umas férias tão agradáveis. Fiquei triste quando pensei em você, sozinho aqui, meu velho". E ele diria: "Foi tudo bem, minha velha. Tive de ir a Genebra para um negócio da firma — um negócio delicado — e olhe o que eles me mandaram". E mostra­ria o cheque de cinqüenta libras.

Pensou na Ordem de Santo Estanislau, décima classe com lauréis. Ele a esconderia, mas se Mary a encontras­se... teria que dar uma explicação tão longa...

Ah, isso mesmo! — ele diria que tinha trazido do es­trangeiro. Uma curiosidade.

Abriu novamente o livro e leu com felicidade. Não havia mais aquela expressão ansiosa em seu rosto.

Agora ele também fazia parte daquele grupo privi­legiado de pessoas para as quais As Coisas Acontece­ram ...

 

O Caso da Milionária

O nome da Sra. Abner Rymer foi anunciado a Parker Pyne. Ele conhecia este nome e franziu as sobran­celhas.

Nesse momento a sua cliente entrou no escritório.

A Sra. Rymer era uma mulher alta, de ossos fortes.

Tinha um ar deselegante e o vestido de veludo e o pesado casaco de peles não conseguiam esconder isso. O rosto era grande e largo, de cores muito vivas. O cabe­lo preto tinha um penteado da moda e havia muitas pon­tas de penas de avestruz em seu chapéu. — Bom dia — disse ela. Sua voz tinha um sotaque rude. — Se o senhor prestar mesmo vai me dizer como gastar o meu dinheiro!

— Muito original — murmurou Parker Pyne. — Poucas pessoas perguntam isso hoje em dia. Então, a se­nhora acha que isto é realmente difícil, Sra. Rymer?

— Acho — disse ela com rudeza. — Tenho três ca­sacos de pele, uma porção de vestidos de Paris e coisas assim. Tenho um automóvel e uma casa em Park Lane. Tenho um iate mas não gosto do mar. Tenho uma porção de empregados de alta classe que olham para a gente por cima do nariz. Viajei um bocado e conheço muitos luga­res. E não me ocorre rigorosamente mais nada para com­prar ou fazer — olhou esperançosa para Parker Pyne.

— Há os hospitais — começou ele.

— O quê? Dar meu dinheiro, o senhor quer dizer? Não, isso eu não faço! Suei para ganhar este dinheiro, deixe eu lhe contar, trabalhei para valer. Se pensa que vou jogar dinheiro fora, como se estivesse empoeirado...bem, o senhor está enganado. Quero gastá-lo; gastá-lo e tirar dele algum proveito. Agora, se o senhor tiver algu­ma idéia que valha a pena, pode contar com um salá­rio muito bom!

— A sua proposta me interessa — disse Pyne. — A senhora não falou em nenhuma casa de campo.

— Esqueci, mas tenho uma. Me chateia demais.

— Preciso saber mais coisas sobre a sua pessoa. Seu problema não é de fácil solução.

— Conto com todo o prazer. Não me envergonho do passado. Eu trabalhava numa fazenda quando era ga­rota. Era um trabalho duro, também. Então comecei a namorar o Abner — ele era um operário num moinho próximo. Cortejou-me durante oito anos e depois nos ca­samos.

— E a senhora foi feliz? — perguntou Pyne.

— Fui. Ele era um homem bom para mim, o Abner. Nós tivemos uma vida difícil, e... Ele ficou desemprega­do duas vezes e as crianças começaram a chegar. Tive­mos quatro, três meninos e uma menina. E nenhum de­les chegou a crescer. Garanto que seria diferente se eles tivessem vivido — seu rosto abrandou-se, ela pareceu repentinamente mais jovem.

— Ele era fraco dos pulmões, o Abner. Não o chama­ram para a guerra. Trabalhou aqui mesmo em casa. Foi nomeado chefe da seção. Era um sujeito inteligente, o Abner. Trabalhou num processo industrial. Foi tratado com consideração, eu diria; deram-lhe um bom dinheiro. Usou o dinheiro numa idéia sua. Entrou dinheiro aos montes. Agora era mestre, tinha os seus próprios empre­gados. Comprou duas empresas que tinham ido à fa­lência e as tornou lucrativas. O resto foi fácil. O dinheiro começou a entrar aos borbotões. Continua entrando.

— Veja bem, no início era divertido. Ter uma casa, um banheiro de primeira e criadas para todo o serviço. Não precisava mais cozinhar, esfregar e lavar. Era só sentar em almofadas de seda na sala de visitas e tocar a campainha para o chá... como qualquer condessa! Mui­to divertido mesmo! E nós aproveitamos. Então viemos para Londres. Eu fui a costureiros da moda para encomendar meus vestidos. Fomos para Paris e para a Riviera. Foi divertidíssimo!

— E depois? — disse Parker Pyne.

— Acho que ficamos acostumados com tudo isso — disse a Sra. Rymer. — Depois de um certo tempo já não era assim tão divertido. Olhe, havia dias em que nós nem aproveitávamos as refeições — nós, que ficávamos sa­tisfeitos com qualquer prato! E os banhos — bem, afinal de contas, um banho por dia é o suficiente para qualquer pessoa. E a saúde de Abner começou a preocupá-lo. Pa­gamos muito dinheiro aos médicos, pagamos sim, mas eles não puderam fazer nada. Tentaram isso e aquilo. Mas não adiantou nada. Ele morreu — fez uma pausa. — Era moço, só tinha quarenta e três anos.

Pyne acenou simpàticamente com a cabeça.

— Isso foi há cinco anos. O dinheiro continua en­trando a rodo. Me parece uma perda de tempo não ser capaz de fazer alguma coisa com ele. Mas eu lhe digo com franqueza, não sou capaz de pensar em nada que eu já não tenha comprado e que já não possua.

— Em outras palavras — disse Pyne, — sua vida é monótona. A senhora não a está aproveitando.

— Estou cheia da vida — disse a Sra. Rymer melan­cólica. — Não tenho amigos. A turma nova só quer subs­crições e riem de mim pelas costas. A turma velha não tem mais nada em comum comigo. Basta eu passar de automóvel para fazê-los se sentirem envergonhados. Po­de fazer ou sugerir alguma coisa?

— É possível que eu possa — disse Pyne, lentamen­te. — Vai ser difícil, mas acho que há uma chance de dar certo. Acho que é possível que eu lhe devolva o que a senhora perdeu — o interesse pela vida.

— Como? — perguntou a Sra. Rymer rapidamente.

— Isso — disse Parker Pyne — é segredo profissio­nal. Nunca discuto meus métodos de antemão. A ques­tão é, a senhora quer correr o risco? Não garanto o suces­so, mas acho que há uma possibilidade razoável de êxito.

— E quanto vai custar?

— Terei de adotar métodos excepcionais, e por isso vai custar caro. Meu preço será de mil libras, adiantadas.

— O senhor sabe abrir a boca, não é? — disse a Sra. Rymer. — Bem, quero correr o risco. Estou acostumada a pagar o que há de mais caro. Só que, quando, pago uma conta, eu tomo muito cuidado em obtê-la.

— A senhora a terá — disse Parker Pyne. — Não se preocupe.

— Eu lhe mandarei o cheque hoje à tarde — disse a Sra. Rymer levantando-se. — Não sei por que devo con­fiar no senhor. Tolos e seu dinheiro estão sempre se se­parando, dizem. Quase diria que sou uma tola. O senhor tem nervos, para anunciar nos jornais que é capaz de fazer as pessoas felizes!

— Estes anúncios me custam dinheiro — disse Pyne. — Se eu não dissesse a verdade, esse dinheiro estaria perdido. Eu sei o que causa a infelicidade e por isso tenho uma idéia muito clara de como criar a situação oposta.

A Sra. Rymer balançou duvidosa a cabeça e saiu, deixando atrás de si uma nuvem de uma cara mis­tura de perfumes.

O bonitão Claude Luttrell entrou no escritório. — Alguma coisa na minha especialidade?

Pyne balançou negativamente a cabeça — Dessa vez não é simples — disse. — Não, este é um caso difícil. Temo que precisemos correr alguns riscos. Vamos tentar o extraordinário.

— A Sra. Oliver?

O Sr. Pyne sorriu à menção do nome da novelista mundialmente famosa. — A Sra. Oliver — disse ele — é realmente a mais convencional de todos nós. Estou pensando num golpe mais afoito e audacioso. Por falar nisso, quer me ligar com o Dr. Antrobus?

— Antrobus?

— É. Vou precisar dos serviços dele.

 

Uma semana depois, a Sra. Rymer entrou novamen­te no escritório de Parker Pyne. Ele se pôs de pé para recebê-la.

— A demora foi necessária eu lhe asseguro — disse ele. — Foi preciso conseguir uma porção de coisas, e tive de requisitar os serviços de um homem extraordinário que veio do outro lado da Europa.

— Ah! — disse ela desconfiada. O que estava bem marcado na sua cabeça era que ela assinara um cheque de mil libras e que este cheque fora descontado.

Parker Pyne apertou um botão. Uma jovem morena, com um ar oriental, mas vestida de branco, como uma enfermeira, respondeu.

— Está tudo pronto, enfermeira de Sara?

— Sim, o Dr. Constantine está esperando.

— O que o senhor vai fazer? — perguntou a Sra. Rymer com um sentimento de apreensão.

— Vou apresentá-la a um mago do Oriente, minha cara senhora — disse Parker Pyne.

A Sra. Rymer seguiu a enfermeira até a sala ao lado. Ela entrou numa peça que não tinha nada a ver com o resto da casa. Tapeçarias orientais cobriam as paredes. Havia divas com almofadas fofas e belíssimos tapetes pelo chão. Um homem estava debruçado sobre um bule de café. Empertigou-se quando eles entraram.

— Dr. Constantine — disse a enfermeira.

O doutor estava vestido com roupas européias, mas seu rosto era moreno escuro e os olhos negros e oblíquos tinham um poder de fixação muito peculiar.

— Então é esta a minha paciente? — disse ele em voz baixa e vibrante.

— Não sou paciente de ninguém — disse a Sra. Rymer.

— Seu corpo não está doente — disse o doutor. — Mas a sua alma está deprimida. Nós do Oriente sabemos como curar este mal. Sente-se e tome uma xícara de café.

A Sra. Rymer sentou-se e aceitou a minúscula xícara com a fragrante infusão. Enquanto ela bebia, o doutor falava:

— Aqui no Ocidente tratam apenas do corpo. O corpo é apenas o instrumento. Nele se toca uma melodia. Pode ser uma melodia triste, deprimente. Pode ser uma melodia alegre, cheia de encantos. É esta última que eu lhe darei. A senhora tem dinheiro. Deve gastá-lo e tirar proveito dele. A vida valerá novamente a pena de ser vi­vida. É fácil... fácil... tão fácil...

Um sentimento de abandono apossou-se da Sra. Rymer. Os vultos do doutor e da enfermeira começaram a se tornar enevoados. Ela se sentiu imensamente feliz e mui­to sonolenta. O mundo inteiro parecia estar crescendo.

O doutor estava olhando dentro de seus olhos — Durma — dizia ele. — Durma. Suas pálpebras estão-se fechando. Daqui a pouco a senhora estará dormindo. A senhora vai dormir...

As pálpebras da Sra. Rymer se fecharam. Ela flutua­va num mundo imenso e maravilhoso.

Quando seus olhas se abriram pareceu-lhe que tinha passado muito tempo. Ela se lembrava vagamente de al­gumas coisas — sonhos estranhos, impossíveis; depois o sentimento de quem acorda; depois, outros sonhos. Lem­brava-se de qualquer coisa a respeito de um automóvel e da moça linda e morena com um uniforme de enfermei­ra debruçada sobre ela.

De qualquer forma, agora ela estava mesmo acor­dada, e em sua própria cama.

Será que seria mesmo a sua própria cama? Parecia diferente. Faltava aquela deliciosa maciez de sua pró­pria cama. Lembrava-lhe vagamente dias quase que es­quecidos. Ela se mexeu e a cama rangeu. A cama da se­nhora Rymer em Park Lane não rangia nunca.

Ela olhou em torno. Decididamente não estava em Park Lane. Seria um hospital? Não, viu que não era um hospital. Também não era um hotel. Era um simples quarto com as paredes pintadas num tom indistinto de lilás. Havia um suporte para bacia num canto, com uma cuia dágua e uma jarra. Uma cômoda de pinho com ga­vetas e uma pequena valise de folha de flandres. Roupas estranhas penduradas em cabides na parede. A cama coberta por uma manta bastante remendada e ela própria.

— Onde é que eu estou? — perguntou a Sra. Rymer.

A porta se abriu e uma mulherzinha roliça entrou. Tinha as bochechas vermelhas e uma aparência muito bem-humorada. Tinha as mangas arregaçadas e um avental.

— Enfim! — exclamou. — Ela está acordada. Pode entrar, doutor.

A Sra. Rymer abriu a boca para dizer uma porção de coisas — mas não disse nada, porque o homem que entrou atrás da mulherzinha roliça não se parecia nem um pouco com o moreno e elegante Dr. Constantine. Era um velho encurvado que a observava atrás de uns óculos de lentes muito grossas.

— Ótimo — disse ele aproximando-se da cama e pe­gando o pulso da Sra. Rymer. Você vai ficar boa logo, minha querida.

— O que foi que aconteceu comigo? — perguntou a Sra. Rymer.

— Você teve uma espécie de ataque — disse o mé­dico. — Ficou inconsciente um ou dois dias. Nada de grave.

— Você nos deu um susto, Hannah, se deu! — disse a gordinha. — Você delirou também e disse coisas mui­to estranhas.

— Foi sim, Sra. Gardner — disse o médico em tom de repreensão. — Mas não devemos excitar a paciente. Logo, logo, você vai estar andando de um lado para o outro, minha querida.

— Mas não precisa se preocupar com o serviço, Hannah — disse a Sra. Gardner. — A Sra. Roberts me tem dado uma mão e nós damos conta de tudo. Fique deitada para ficar logo boa, minha cara.

— Por que estão me chamando de Hannah? — per­guntou a Sra. Rymer.

— Bem, porque o seu nome é esse — disse a Sra. Gardner com espanto.

— Não é não. Meu nome é Amélia. Amélia Rymer. Sra. Abner Rymer.

O médico e a Sra. Gardner se entreolharam.

— Bom, fique deitada — disse a Sra. Gardner.

— Sim, não se preocupe — disse o médico.

Os dois saíram. A Sra. Rymer ficou deitada e intri­gada. Por que a tinham chamado de Hannah e por que tinham trocado aquele olhar de incredulidade quando ela lhes disse o seu nome? Onde estaria ela e o que teria acontecido?

Saiu da cama. Sentiu falta de firmeza nas pernas, mas andou devagar até a pequena janela e olhou para fora — um quintal de fazenda! Completamente confu­sa, voltou para a cama. O que estaria ela fazendo numa fazenda em que nunca tinha estado?

A Sra. Gardner entrou outra vez no quarto com uma tigela de sopa numa bandeja. A Sra. Rymer começou a fazer perguntas: — O que é que eu estou fazendo nesta casa? — perguntou. — Quem me trouxe para cá?

— Ninguém a trouxe para cá, minha querida. É a sua casa. Pelo menos, é onde você viveu nos últimos cinco anos — e eu não sei se você tinha outro lugar para ir antes de vir trabalhar conosco.

— Vivi aqui? Cinco anos?

— Isso mesmo. Ora, Hannah, não vá me dizer que você ainda não está se lembrando de nada!

— Eu nunca vivi aqui! Nunca vi você!

— Sabe, depois que você teve essa doença não se lembra de mais nada.

— Eu nunca vivi aqui.

— Viveu, querida — de repente a Sra. Gardner foi até a cômoda cheia de gavetas e trouxe uma fotografia emoldurada e meio apagada para a Sra. Rymer.

Representava um grupo de quatro pessoas: um ho­mem barbado, uma mulher gorda (a Sra. Gardner), um homem alto e magro com uma careta agradàvelmente tí­mida e alguém com um vestido estampado e um avental — ela própria!

Estupefata, a Sra. Rymer olhou para a fotografia. A Sra. Gardner pôs o prato de sopa a seu lado e saiu do quarto sem fazer barulho.

A Sra. Rymer tomou a sopa mecanicamente. Era uma sopa gostosa, forte e quente. Durante todo esse tem­po, seu cérebro estava num torvelinho. Quem estava doida? A Sra. Gardner ou ela? Uma das duas devia estar! Mas tinha o médico também...

— Sou Amélia Rymer — disse ela com firmeza. — Eu sei que sou Amélia Rymer e ninguém vai me dizer o contrário!

Terminou a sopa. Colocou a tigela de volta na ban­deja. Um jornal dobrado chamou sua atenção, ela o apa­nhou e olhou a data: 19 de outubro. Qual tinha sido o dia que foi ao escritório do Sr. Parker Pyne? Talvez quin­ze ou dezesseis. Então ela estivera doente por três dias!

— O patife daquele doutor! — disse a Sra. Rymer com raiva.

Ao mesmo tempo, estava um pouco aliviada. Ouvira falar de casos em que as pessoas esqueciam quem eram às vezes por muitos anos. Teve medo de que alguma coisa lhe tivesse acontecido.

Continuou a folhear o jornal examinando as colunas devagar, quando de repente um parágrafo chamou a sua atenção:

A Sra. Abner Rymer, viúva de Abner Rymer, o rei dos botões de osso, foi removida ontem para uma casa de saúde particular para doentes mentais. Nos últimos dois dias, a Sra. Rymer insistia em declarar que não era ela mesma, mas uma empregadinha chamada Hannah Moorhouse.

— Hannah Moorhouse! Então é isso! — disse a Sra. Rymer. — Ela sou eu e eu sou ela! Uma espécie de du­plicata, suponho. Bom, vamos já dar um jeito nisso! Se aquele hipócrita nojento daquele Parker Pyne estiver metido em alguma encrenca. ..

Mas nesse instante o nome Constantine chamou a sua atenção numa matéria impressa na primeira página. Desta vez era uma manchete:

AFIRMAÇÃO DO DR. CONSTANTINE

Numa conferência de despedida na noite da véspera de sua partida para o Japão, o Dr. Claudius Constantine expressou diversas teorias surpreendentes. Declarou que era possível provar a existência da alma, transferindo-se a alma de um corpo para outro. Durante as suas expe­riências no Oriente, ele sustenta que realizou com suces­so uma transferência dupla — a alma do corpo A hipno­tizado foi transferida para o corpo B e a alma do corpo B para o corpo A. Ao acordarem do sono hipnótico, A de­clarou que era B e B pensou que era A.

Para que a experiência tivesse êxito, era necessário encontrar duas pessoas de grande semelhança física. É fato inegável que duas pessoas que se parecem muito es­tão en rapport. Isto é facilmente notado no caso de gê­meos, mas dois estranhos, mesmo que de posições sociais diferentes, porém com uma marcada semelhança de tra­ços, podem exibir esta mesma harmonia de estrutura.

 

A Sra. Rymer jogou longe o jornal — Aquele cana­lha! Aquele canalha miserável!

Agora ela via tudo! Tinha sido um plano traiçoeiro para passarem a mão no dinheiro dela! Esta Hannah Moorhouse era um instrumento de Parker Pyne — possi­velmente um instrumento inocente. Ele e aquele demô­nio do Constantine tinham dado um golpe fantástico!

Mas ela ia desmascará-los! Ia mostrar quem era! Po­ria a lei atrás deles. Diria a todo mundo...

Abruptamente, a Sra. Rymer pôs um freio em sua indignação. Lembrou-se do primeiro parágrafo. Hannah Moorhouse não tinha sido um instrumento dócil. Ela pro­testara, declarara sua individualidade. E o que acon­teceu?

— Trancada num asilo de lunáticos, pobre moça — disse a Sra. Rymer. Um arrepio lhe percorreu a espinha.

Um asilo de loucos. Eles põem você lá dentro e nun­ca mais deixam você sair. Quanto mais você disser que está bom, menos eles acreditam. Você está lá e lá vai ficar. Não, a Sra. Rymer não iria correr esse risco.

A porta abriu e a Sra. Gardner entrou.

— Ah, tomou a sua sopa, minha querida. Muito bem. Daqui a pouco você vai ficar boa.

— Quando foi que eu adoeci? — perguntou a Sra. Rymer.

— Deixe ver... Foi há três dias... na quarta-feira. Acho que foi dia quinze. Você teve o ataque por volta das quatro horas.

— Ah! — a exclamação era muito significativa. Foi justamente às quatro horas que a Sra. Rymer entrou em contato com o Dr. Constantine.

— Você escorregou da cadeira — disse a Sra. Gard­ner. — Oh! — você disse. "Oh!" e foi só. E depois: "Vou dormir" — foi o que você disse, com a voz sonolenta. "Vou dormir". E dormiu mesmo, e nós pusemos você na cama e chamamos o médico e desde então você está aí.

— Acho — arriscou a Sra. Rymer — que não há ne­nhum outro meio de saber quem eu sou... quero dizer, além da minha cara.

— Bem, isso é uma coisa esquisita — disse a Sra. Gardner. — O que é melhor do que a cara de uma pes­soa, não é? Se você preferir, há a sua marca de nascença.

— Uma marca de nascença? — disse a Sra. Rymer se alegrando. Ela nunca teve esse tipo de coisa.

— Uma marquinha vermelha como um morango de­baixo do cotovelo direito — disse a Sra. Gardner. — Olhe você mesma, querida.

Isso vai provar tudo, disse a Sra. Rymer consigo mesma. Ela sabia que não tinha nenhuma marca em for­ma de morango debaixo do cotovelo direito. Arregaçou a manga de sua camisola. A marca do morango estava lá.

A Sra. Rymer caiu em prantos.

Quatro dias depois a Sra. Rymer se levantou da ca­ma. Ela tinha pensado em diversos planos de ação e re­jeitou todos.

Poderia mostrar o parágrafo do jornal à Sra. Gard­ner e ao médico e explicar. Acreditariam nela? A Sra. Rymer tinha certeza de que não.

Se ela fosse à polícia. Acreditariam nela? Outra vez achou que não.

Pensou em ir ao escritório de Parker Pyne. Foi a idéia que mais a agradou. Principalmente porque ela queria dizer àquele patife nojento o que pensava dele. Mas ha­via um obstáculo vital para a execução deste plano. Ela estava no momento em Cornwall (assim lhe disseram) e não tinha dinheiro para ir a Londres. Dois shillings e quatro cêntimos numa bolsa usada, era esta a sua situa­ção financeira.

E assim, depois de quatro dias, a Sra. Rymer tomou uma decisão esportiva. No momento ela aceitaria as coi­sas. Ela era Hannah Moorhouse. Muito bem, ela seria Hannah Moorhouse. Por enquanto aceitaria o papel e depois, quando tivesse economizado o dinheiro suficiente, iria a Londres e pegaria o trapaceiro em seu covil.

E tomada esta decisão, a Sra. Rymer aceitou o papel com toda a boa vontade e mesmo com um certo regozijo sardônico. A história estava mesmo se repetindo! Esta vida parecia muito com a sua vida de juventude. Há quanto tempo!

 

O trabalho parecia um pouco duro depois de todos aqueles anos de vida mansa, mas depois da primeira se­mana ela se habituou ao serviço da fazenda.

A Sra. Gardner era uma mulher de gênio expansivo e alegre. O marido, um homem alto e taciturno, era tam­bém muito simpático. O magricela desajeitado da foto­grafia fora embora; ficou outro empregado em seu lugar, um gigante bem-humorado de uns quarenta e cinco anos, lento no falar e no pensar, mas com um brilho acanha­do nos olhos azuis.

Passaram-se as semanas. Por fim chegou o dia em que a Sra. Rymer já tinha o dinheiro suficiente para pa­gar sua passagem para Londres. Mas não foi. Deixou o dinheiro guardado. Tinha muito tempo, pensou. Ainda não tinha perdido o medo dos hospícios. Aquele trapa­ceiro, Parker Pyne, era muito esperto. Podia arranjar um médico que ia dizer que ela era louca, e ela seria tranca­fiada sem que ninguém soubesse o que tinha acontecido.

— Além disso — disse a Sra. Rymer, — uma mudan­ça de ares sempre faz bem.

Levantava-se cedo e ia para o batente. Joe Welsh, o novo empregado, ficou doente naquele inverno e ela e a Sra. Gardner cuidaram dele. O homenzarrão dependia delas de um modo comovente.

Veio a primavera e nasceram os carneirinhos; havia flores silvestres pelas sebes, uma suavidade traiçoeira pe­lo ar. Joe Welsh deu uma mão a Hannah em seu traba­lho. Hannah remendou as roupas de Joe.

Algumas vezes, aos domingos, eles saíam para pas­sear juntos. Joe era viúvo. Sua mulher tinha morrido há quatro anos. Desde a sua morte, ele confessou com fran­queza, passou a tomar uns golinhos a mais...

Ultimamente ele já não ia muito à taverna. Com­prou algumas roupas novas. O Sr. e a Sra. Gardner sor­riam.

Hannah brincava com Joe. Ela se divertia com os seus modos desajeitados. Joe não ligava. Parecia encabulado, mas feliz.

Depois da primavera veio o verão — aquele ano houve um bom verão. Todos trabalhavam muito.

A colheita terminou. As folhas das árvores se torna­ram vermelhas e douradas.

Foi no dia oito de outubro que Hannah, olhando pa­ra cima enquanto cortava um repolho, viu Parker Pyne debruçado sobre a cerca.

— O senhor! — disse Hannah, aliás Sra. Abner Ry­mer. — O senhor...

Ela custou a pôr para fora tudo o que queria, a di­zer tudo o que precisava ser dito. Quase perdeu o fôlego.

Parker Pyne sorria mansamente — Estou plena­mente de acordo com a senhora — disse ele.

— Um impostor e um mentiroso, é isso o que o se­nhor é! — disse a Sra. Rymer, repetindo o que já havia dito. — O senhor com os seus Constantines e seus hipnotizadores e .esta pobre moça Hannah Moorhouse tranca­fiada... com malucos!

— Não — disse o Sr. Pyne, — não me julgue mal. Hannah Moorhouse não está no hospício porque Hannah Moorhouse nunca existiu.

— É mesmo? — disse a Sra. Rymer. — E aquele re­trato dela que eu vi com os meus próprios olhos?

— Falsificado — disse o Sr. Pyne. — É muito fácil de fazer.

— E a notícia no jornal sobre ela?

— O jornal inteiro era falso, para podermos incluir as duas notícias de uma forma natural que a convence­riam. E que a convenceram.

— Aquele tratante, o Dr. Constantine!

— Um nome suposto... um amigo meu com talento para o teatro.

A Sra. Rymer bufou de raiva — Ah! E suponho que eu também não fui hipnotizada?

— Para dizer a verdade, não foi mesmo não. A se­nhora tomou no seu café uma droga parecida com maco­nha. Depois, outras drogas foram administradas, e a se­nhora foi trazida para cá, onde recobrou a consciência.

— Então a Sra. Gardner sabia de tudo? — pergun­tou a Sra. Rymer.

Parker Pyne fez que sim com a cabeça.

— Subornada pelo senhor, suponho! Ou enganada com uma porção de mentiras!

— A Sra. Gardner confia em mim — disse Pyne. — Já salvei uma vez o seu filho único de uma pena criminal.

Alguma coisa em suas maneiras silenciou a Sra. Ry­mer e mudou a sua conduta — E a marca de nascença? — perguntou ela.

Pyne sorriu — Já deve estar desaparecendo. Mais uns seis meses e desaparece completamente.

— E então o que significa toda essa bobagem? Fazen­do pouco de mim, me prendendo aqui como uma em­pregada. .. eu, com todo aquele dinheiro no banco! Mas acho que nem preciso perguntar. O senhor deve estar se servindo dele, não, meu caro amigo? É isto que quer dizer...

— É verdade — disse Parker Pyne — que eu obtive da senhora, enquanto estava sob a influência de drogas, uma procuração, e que durante a sua... ahn... ausên­cia, assumi o controle dos seus assuntos financeiros. Mas lhe garanto, minha senhora, que afora aquelas mil libras iniciais, nenhum dinheiro seu veio parar no meu bolso. Para falar a verdade, devido a vários investimentos criteriosos, a sua situação financeira melhorou bastante — sorriu para ela.

— Então, por que... — começou a Sra. Rymer.

— Vou lhe fazer uma pergunta, Sra. Rymer — disse Parker Pyne. — A senhora é uma mulher honesta. Sei que vai me responder honestamente. Vou lhe perguntar se está feliz.

— Feliz! Boa pergunta! Roube todo o dinheiro de uma mulher e pergunte se ela está feliz! É muito engra­çada essa.

— A senhora ainda está zangada — disse ele. — É muito natural. Mas esqueça os meus crimes por um mo­mento, Sra. Rymer. Quando a senhora apareceu no meu escritório, há exatamente um ano, era uma mulher in­feliz. Vai me dizer que ainda é infeliz? Se for, peço des­culpas e a senhora está livre para tomar todas as pro­vidências que quiser contra mim. E além disso lhe de­volvo as mil libras que me pagou. Vamos, Sra. Rymer, a senhora ainda é uma mulher infeliz?

Ela olhou para Parker Pyne, mas seus olhos se abai­xaram quando falou finalmente.

— Não — disse ela. — Não sou infeliz — um tom de surpresa na voz. — Agora o senhor me pegou. Reconheço isso. Desde a morte de Abner que eu não estava bem. Eu... eu vou me casar com um homem que trabalha aqui — Joe Welsh. Nossos proclamas vão correr no do­mingo que vem, isto é, iam correr domingo que vem.

— Mas agora, é claro — disse Pyne, — tudo é di­ferente.

O rosto da Sra. Rymer se inflamou. Ela deu um pas­so à frente — O que quer dizer... diferente? O senhor acha que todo o dinheiro do mundo faria de mim uma grande dama? Não quero ser uma grande dama, não, obrigada; um bando de gente desocupada, é o que elas são. Joe me entende e eu o entendo. Gostamos um do ou­tro e vamos ser felizes. E o senhor, Sr. Abelhudo, dê o fora daqui e não se meta no que não é da sua conta!

Parker Pyne tirou um papel do bolso e entregou a ela — A procuração — disse. — Rasgo? Suponho que agora vai assumir o controle da sua própria fortuna.

Estampou-se uma expressão estranha no rosto da Sra. Rymer. Ela empurrou o papel de volta.

— Leve-o de volta. Eu lhe disse coisas desagradá­veis.. . e algumas delas o senhor mereceu. É um sujeito sabidão, mas apesar de tudo eu confio no senhor. Ponha setecentas libras aqui no banco — isso dá para comprar­mos uma fazenda em que estamos de olho. O resto do di­nheiro ... bem, pode deixar para os hospitais.

— A senhora não quer dizer que vai doar toda a sua fortuna aos hospitais?

— Foi exatamente o que eu quis dizer. Joe é um amor de criatura, mas é fraco. Dê-lhe dinheiro e o arrui­nará. Consegui que ele deixasse de beber e vou mantê-lo assim. Graças a Deus, sei o que estou fazendo. Não vou deixar o dinheiro se interpor entre mim e a felicidade.

— A senhora é uma mulher extraordinária — disse Pyne lentamente. — Só uma mulher em mil faria o que está fazendo.

— Então só uma mulher em mil tem juízo — disse a Sra. Rymer.

— Tiro o meu chapéu para a senhora — disse Par­ker Pyne, e havia algo de estranho em sua voz. Ergueu o chapéu solenemente e afastou-se.

— E fique sabendo que não pode contar nunca ao Joe, hein? — a Sra. Rymer gritou enquanto ele ia embora.

Ela ficou ali de pé, com o sol do crepúsculo por trás, um enorme repolho verde azulado entre as mãos, a ca­beça jogada para trás e os ombros firmes. Uma figura grandiosa de mulher camponesa, desenhada contra o sol que se escondia.

 

Você Tem Tudo o que Quer?

Par ici Madame — uma mulher alta, com um ca­saco de vison, seguiu o carregador sobrecarregado atra­vés da plataforma da Gare de Lyon.

Ela usava um chapéu de tricô marrom que lhe co­bria um dos olhos e uma orelha. O outro lado revelava um perfil encantador e pequenos cachos dourados que se enrolavam em torno de uma orelha perfeita. Era ti­picamente americana e muito atraente, e mais de um homem se voltara, ao vê-la passar pelos vagões do trem parado.

Enormes placas estavam penduradas em ganchos dos lados dos vagões: Paris—Atenas. Paris—Bucarest. Paris—Istambul.

Neste último o carregador parou bruscamente. Sol­tou a correia que sustentava as malas e estas escorrega­ram pesadamente para o chão — Voici, Madame.

O condutor do wagon-lit estava de pé ao lado dos de­graus. Avançou, desejando um "Bonsoir, Madame" com uma vivacidade devida talvez à riqueza e à elegância do casaco de vison.

A mulher entregou-lhe o bilhete de papel vulgar do carro-leito.

— Número Seis — disse, — por aqui.

Ele pulou lèpidamente para dentro do trem e a mu­lher o seguiu. Enquanto se apressava em acompanhá-lo 'elo corredor, ela quase esbarrou num cavalheiro corpu­lento que saía do compartimento pegado ao seu. Olhou e relance para um rosto largo e afável de olhos bon­dosos.

— Voici, Madame.

O condutor lhe mostrou a cabina. Abriu a janela e chamou o carregador. Um empregado subalterno pegou a bagagem e a colocou nas prateleiras. A mulher sentou-se.

A seu lado, deixou uma pequena frasqueira vermelha e a bolsa. O vagão estava quente, mas não lhe ocorreu a idéia de tirar o casaco. Olhava da janela para o lado de fora com olhos vagos. Pessoas passavam correndo de um lado para. o outro da plataforma. Havia vendedores de jornais, de travesseiros, de frutas, de chocolates, de águas minerais. Eles anunciavam seus pregões para ela, mas seus olhos passavam por eles sem vê-los. A Gare de Lyon não estava à sua vista. Em seu rosto havia tristeza e an­siedade.

— Se Madame puder me dar o passaporte...

As palavras não lhe chamaram a atenção. O condu­tor, de pé à porta, repetiu-as. Elsie Jeffries levantou-se com um sobressalto.

— Perdão?

— Seu passaporte, Madame.

Ela abriu a bolsa, tirou o passaporte e o entregou ao condutor.

— Não precisa se preocupar, Madame, eu cuido de tudo — fez uma pausa curta, significativa. — Irei com Madame até Istambul.

Elsie tirou da bolsa uma nota de cinqüenta francos e entregou a ele. Aceitou-a de uma maneira muito co­mercial e perguntou quando ela queria que seu leito fos­se preparado e quando jantaria.

Resolvido isto, saiu, e quase em seguida o homem do carro-restaurante apareceu no corredor batendo frenèticamente uma sineta e berrando: — Premier service! Premier service!

Elsie levantou-se, livrou-se do pesado casaco de pe­les, deu uma olhadela de relance em seu espelhinho e, pegando a bolsa e a frasqueira das jóias, saiu para o cor­redor. Dera apenas alguns passos quando o homem do restaurante voltou correndo. Para evitá-lo, Elsie recuou até a porta da cabina ao lado, que agora estava vazia.

Enquanto o homem passava, seu olhar caiu por acaso na etiqueta da mala que estava colocada no banco.

Era uma valise reforçada de couro de porco, bastan­te usada. Na etiqueta estavam as seguintes palavras: J. Parker Pyne, passageiro para Istambul. A própria valise trazia as iniciais: P.P.

Uma expressão de curiosidade apareceu no rosto da jovem. Ela hesitou um momento no corredor, e depois, voltando à sua própria cabina, apanhou um exemplar do Times que deixara sobre a mesinha com outros livros e revistas.

Correu os olhos pela primeira página, mas pelo visto o que procurava não estava ali. Com uma ligeira ruga na testa, ela se dirigiu para o carro-restaurante.

O servente indicou-lhe uma cadeira numa pequena mesa que já estava ocupada por outra pessoa — o ho­mem no qual ela quase esbarrara no corredor. Na verda­de, era o dono da valise de couro de porco.

Elsie olhou para ele, sem querer dar a impressão de estar olhando. Ele parecia muito delicado, muito bondo­so e, de um modo impossível de explicar, tremendamente reconfortante. Comportava-se de uma maneira britanicamente reservada, e foi só depois das frutas estarem à mesa que ele falou.

— Eles mantêm esses lugares horrivelmente abafa­dos — disse.

— Eu sei — disse Elsie. — Talvez se nós abríssemos uma janela...

Ele sorriu pesaroso — Impossível! Afora nós dois, todo mundo iria protestar.

Ela respondeu com outro sorriso. Nenhum dos dois disse mais nada.

Trouxeram o café e a conta, indecifrável como sempre. Depois de colocar algumas notas sobre ela, Elsie armou-se repentinamente de coragem — Desculpe — murmurou ela. — Vi o seu nome na valise... Parker Pyne. O senhor é... o senhor é por acaso... ?

Ela hesitou, e ele se apressou em ajudá-la.

— Acho que sim. Isto é — ele repetiu o anúncio que Elsie notara mais de uma vez no Times e procurara inutilmente hoje: — Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne. Sim, sou eu mesmo.

— Ah, sim — disse Elsie — Que coisa extraordi­nária!

Ele balançou negativamente a cabeça — Não é não. Extraordinária do seu ponto de vista, não do meu — sorriu reconfortantemente e inclinou-se para a frente. A maior parte dos passageiros já deixara o carro-restaurante — Então a senhora não é feliz? — perguntou ele.

— Eu... — começou Elsie e parou.

— Se não, não teria dito "Que coisa extraordinária", — adiantou ele.

Elsie ficou em silêncio por um minuto. Ela se sentia estranhamente tranqüilizada com a simples presença de Parker Pyne — Sim — admitiu por fim. — Me sinto... infeliz. Pelo menos; estou preocupada.

Ele fez que sim com a cabeça, compreensivo.

— Veja o senhor — continuou ela, — aconteceu uma coisa muito curiosa... e eu não tenho a mínima idéia de como interpretá-la.

— Que tal se me contasse? — sugeriu Pyne.

Elsie pensou no anúncio. Ela e Edward tinham co­mentado e rido várias vezes. Nunca pensara que ela... talvez não devesse... Se o Sr. Parker Pyne fosse um charlatão... mas ele parecia tão simpático!

Elsie tomou uma decisão. Qualquer coisa, contanto que tirasse aquilo da cabeça.

— Vou lhe contar. Vou para Constantinopla para me encontrar com meu marido. Ele tem negócios no Oriente e precisou ir lá este ano. Viajou há duas semanas. Disse que era preciso um certo tempo para conseguir acomo­dações para mim. Fiquei muito excitada só de pensar na viagem. Sabe, eu nunca tinha viajado para o exterior. Faz seis meses que estamos na Inglaterra.

— A senhora e seu marido são americanos?

— Somos.

— Suponho que não estejam casados há muito tempo?

— Há um ano e meio.

— São felizes?

— Ah, somos! Edward é um anjo — ela hesitou. — Éle tem muita coisa boa. Só que é um pouquinho... como direi? Austero. Tem. uma porção de antepassados puritanos e tudo o mais. Mas ele é um amor — acres­centou apressadamente.

Parker Pyne olhou-a pensativo por um ou dois mi­nutos e disse: — Continue.

— Foi uma semana depois que Edward viajou. Eu estava escrevendo uma carta no escritório dele e reparei que o mata-borrão era novo e limpo, apenas com umas poucas linhas escritas. Tinha acabado de ler uma his­tória de detetive em que a pista principal estava no mata-borrão, e aí, para me divertir, eu o coloquei em frente a um espelho. Era apenas para me divertir, Sr. Pyne... não estava espionando Edward ou coisa parecida. Quero dizer, ele é tão bonzinho que ninguém nem sonharia com coisas desse tipo.

— Sei, sei, compreendo.

— Estava muito fácil de ler. Primeiro tinha a pa­lavra "esposa", depois "Simplon Express" e, mais abaixo, "um pouco antes de Veneza é o momento mais propício" — ela parou.

— Curioso — disse o Sr. Pyne. — Muito curioso mesmo. Era a letra de seu marido?

— Era, sim. Mas eu já quebrei a cabeça e não posso atinar com as circunstâncias em que meu marido escre­veria uma carta com estas palavras.

— Um pouco antes de Veneza é o momento mais propício — repetiu Pyne. — Muito curioso mesmo.

A Sra. Jeffries inclinou-se para ele com uma espe­rança que o lisonjeou — O que devo fazer? — perguntou ela com simplicidade.

— Temo — disse Parker Pyne — que precisemos esperar até um pouco antes de Veneza.

Tirou um folheto do bolso — Eis o horário do nosso trem. Ele chegará a Veneza às duas e vinte e sete da tarde de amanhã.

Eles se entreolharam.

— Pode deixar comigo — disse Parker Pyne.

Eram duas e cinco. O Simplon Express estava atra­sado onze minutos. Passara por Mestre há mais ou menos quinze minutos.

Parker Pyne estava sentado ao lado da Sra. Jeffries em sua cabina. Até ali a viagem tinha sido agradável e rotineira. Mas agora, se fosse acontecer alguma coisa, tinha chegado o momento. Parker Pyne e Elsie estavam sentados frente à frente. O coração dela batia apressado e seus olhos procuravam os dele numa espécie de angustioso apelo de conforto.

— Fique completamente calma — disse ele. — Você está a salvo. Estou aqui.

De repente, um grito no corredor.

— Olhem! Olhem! O trem está pegando fogo!

Com um salto Elsie e Parker Pyne estavam no cor­redor. Uma mulher agitada, de aparência eslava, apon­tava dramaticamente com o dedo. De um dos compartimentos dianteiros a fumaça saía aos borbotões. Parker Pyne e Elsie correram pelo corredor. Outros se juntaram a eles. O compartimento em questão estava cheio de fu­maça. Os que chegaram na frente recuaram tossindo, O condutor apareceu.

— A cabina está vazia! — gritou ele. — Não se alarmem, messieurs et dames. Le feu vai ser controlado.

— Surgiu uma dúzia de perguntas e respostas agi­tadas. O trem corria pela ponte que liga Veneza ao con­tinente.

De repente Parker Pyne virou-se, forçou sua passa­gem através do pequeno aglomerado de pessoas e correu pelo corredor até a cabina de Elsie. A senhora de rosto eslavo estava sentada lá, procurando tomar fôlego pela janela aberta.

— Desculpe, Madame — disse Parker Pyne, mas esta não é a sua cabina.

— Eu sei, eu sei — disse a senhora eslava. Pardon. Foi o choque, a emoção... meu coração.

Ela se deixou recostar no assento e mostrou a janela aberta. Tomou respiração em largos haustos.

Parker Pyne ficou de pé na porta. Sua voz era paternal e confortadora — Não precisa ter medo — disse ele. — Nem por um minuto achei que o incêndio fosse sério.

— Não? Ah, que alívio! Já que estou me sentindo melhor — começou a levantar-se; — vou voltar para a minha cabina.

— Ainda não — a mão de Parker Pyne a empurrou gentilmente de volta. — Peço-lhe que espere um mo­mento, Madame.

— Monsieur, isto é um ultraje!

— Madame, a senhora vai ficar.

A voz dele era fria. A mulher sentou-se quieta olhando para ele. Elsie juntou-se a eles.

— Parece que foi uma bomba de fumaça — disse ela quase sem fôlego. — Alguma brincadeira ridícula de alguém. O condutor está furioso. Está perguntando a todo mundo... — interrompeu-se ao ver a segunda ocupante da cabina.

— Sra. Jeffries — disse Parker Pyne, — o que é que a senhora leva em sua frasqueira vermelha?

— Minhas jóias.

— Talvez a senhora possa me fazer o favor de ver se está tudo em ordem.

Houve uma torrente de palavras da parte da senhora eslava. Ela começou a imprecar em francês, da melhor maneira que pudesse vingar seus sentimentos.

Neste meio tempo Elsie apanhara a caixa das jóias.

— Oh! — gritou ela. — Está aberta!

— ... et je porterai plainte à la Compagnie des Wagons-Lits — terminou a senhora eslava.

— Elas desapareceram! — gritou Elsie. — Tudo! Minha pulseira de diamantes. E o colar que papai me deu. E os anéis de rubi e de esmeraldas. E uns broches encantadores de brilhantes. Graças a Deus eu estava usando as pérolas. Oh! Sr. Pyne, o que podemos fazer?

— Se for chamar o condutor — disse Parker Pyne, — eu me encarrego de não deixar esta senhora sair até ele chegar.

— Scélérat! Monstre! — esganiçava-se a senhora eslava. Ela continuou com insultos maiores. O trem chegou a Veneza.

Os acontecimentos da meia hora seguinte podem ser resumidos. Parker Pyne tratou com diferentes funcio­nários em diferentes línguas -- e foi derrotado. A senhora suspeita consentiu em ser revistada — e saiu de lá sem nenhuma mancha em seu caráter. As jóias não estavam com ela.

Entre Veneza e Trieste, Parker Pyne e Elsie dis­cutiram o caso.

— Quando foi que você viu as jóias pela última vez?

— Hoje" de manhã. Guardei uns brincos de safira que estava usando ontem e apanhei um par simples de pérolas.

— E todas as jóias estavam lá?

— Bom, não vasculhei a caixa, naturalmente. Mas me pareciam em ordem, como sempre. Talvez faltasse um anel, ou qualquer coisa assim, mas nada além disso.

Parker Pyne fez que sim com a cabeça — Agora, quando foi que o condutor arrumou sua cabina hoje de manhã?

— Eu estava com a caixa nas mãos... no carro-restaurante. Sempre a levo comigo. Nunca a deixo na ca­bina, a não ser quando saímos correndo agora.

— Desse modo — disse Parker Pyne, — esta ino­cente ofendida, Madame Subayska — ou como quer que ela se chame — deve ter sido a ladra. Mas que diabo fez ela com as jóias? Ela só ficou lá um minuto ou dois... o tempo justo de abrir a caixa com uma duplicata da chave e tirar as coisas... sim, mas e daí?

— Poderia ter dado para outra pessoa?

— Dificilmente. Eu já estava voltando pelo corredor. Se alguém tivesse saído de dentro do compartimento, eu teria visto.

— Talvez ela tenha jogado pela janela para alguém.

— Excelente sugestão; apenas, como aconteceu, nós estávamos passando exatamente em cima do mar na­quele momento. Estávamos sobre a ponte.

— Então ela deve ter escondido as jóias em algum lugar aqui da cabina.

— Vamos procurá-las!

Com uma energia de americana, Elsie começou a procurar por todos os cantos. Parker Pyne participou da busca de maneira um tanto ou quanto ausente. Ele se desculpou por, não tentar continuar.

— Estou pensando em passar um telegrama muito importante em Trieste — explicou ele.

Elsie recebeu a explicação com frieza. Parker Pyne caíra profundamente em seu conceito.

— Sinto muito ter-lhe aborrecido, Sra. Jeffries — disse ele humildemente.

— Bem, o senhor não foi muito feliz — respondeu ela.

— Mas, minha cara senhora, é bom lembrar que eu não sou um detetive. Roubo e crime não são absoluta­mente a minha especialidade. Minha área é o coração humano.

— Bem, eu estava um pouco infeliz quando entrei nesse trem — disse Elsie, — mas não era nada, em com­paração como estou agora! É de chorar. Minha pulseira linda, linda... e o anel que Edward me deu no dia do noivado.

— Mas a senhora certamente está com as jóias se­guradas contra roubo? — perguntou Parker Pyne.

— Será que estou? Não sei. Acho que sim. Mas é o valor estimativo, Sr. Pyne.

O trem diminuiu de velocidade. O Sr. Parker Pyne espiou pela janela — Trieste — disse ele. — Preciso pas­sar o meu telegrama.

 

— Edward! —o rosto de Elsie se iluminou quando ela viu o marido correndo para encontrá-la na plata­forma da estação em Istambul. Neste instante nem mesmo a perda das jóias preocupou a sua mente. Ela es­queceu as palavras estranhas que descobrira no mata-borrão. Esqueceu tudo, a não ser o fato de que há quinze dias não via o marido, e que, apesar de sóbrio e austero, ele era mesmo uma pessoa muito atraente.

Estavam quase deixando a estação quando Elsie sentiu um tapinha amistoso no ombro, virou-se e viu Parker Pyne. Seu rosto bonachão estava irradiando bondade.

— Sra. Jeffries — disse ele, — a senhora pode se en­contrar comigo no Hotel Tokatlian dentro de meia hora? Acho que vou ter boas notícias para a senhora.

Elsie olhou insegura para Edward. Então ela fez a apresentação: — Este é meu marido... ahn... Sr. Par­ker Pyne.

— Acho que a sua senhora lhe telegrafou dizendo que as jóias dela foram roubadas — disse Parker Pyne. — Estou fazendo o que posso para reavê-las. Acho que vou ter boas notícias dentro de meia hora.

Elsie olhou interrogativamente para Edward. Este respondeu depressa: — É melhor você ir, querida. O Tokatlian, o senhor disse, Sr. Pyne? Muito bem, vou fazer tudo para ela chegar a tempo.

 

Exatamente meia hora depois, Elsie entrava na sala de estar particular de Parker Pyne. Ele se levantou para recebê-la.

— A senhora ficou muito desapontada comigo, Sra. Jeffries — disse ele. — Não, não tente negar. Bem, eu nunca pretendi ser um mágico, mas faço o que posso. Dê uma olhada aqui dentro.

Ele empurrou sobre a mesa uma pequena e resis­tente caixa de papelão. Elsie abriu-a. Anéis, broches, pul­seiras, colar — tudo lá.

— Sr. Pyne, que coisa maravilhosa! Que maravilha! Parker Pyne sorriu modestamente — Fico satisfeito de não ter falhado, minha cara jovem.

— Sr. Pyne, o senhor me faz sentir tão mesquinha! Desde Trieste que eu tenho sido tão desagradável com o senhor. E agora... isto! Mas como foi que as conseguiu? Quando? Onde?

Parker Pyne balançou a cabeça pensativamente — É uma história comprida — disse ele. — Um dia a se­nhora vai ouvi-la. Na verdade, muito breve a senhora vai ouvi-la.

— Por que não posso saber agora?

— Tenho certas razões — disse Parker Pyne.

E Elsie teve de ir embora com sua curiosidade insa­tisfeita.

Quando ela saiu, Parker Pyne pegou seu chapéu e sua bengala e desceu para as ruas de Pera. Caminhou sorrindo consigo mesmo, e chegou finalmente a um pe­queno café, deserto naquele momento, que dominava o Golden Horn. Do outro lado, as mesquitas de Istambul alçavam seus esguios minaretes para o céu do crepúsculo. Era uma beleza. Pyne sentou-se e pediu dois cafés, que vieram fortes e adocicados. Mal começou a tomar o seu quando chegou um homem e se sentou na cadeira do lado oposto. Era Edward Jeffries.

— Já pedi café para você — disse Parker Pyne, mostrando-lhe a pequena xícara.

Edward empurrou o café para um lado. Debruçou-se sobre a mesa — Como foi que descobriu? — perguntou.

Parker Pyne bebeu o seu café sonhadoramente — Sua mulher já lhe contou sobre a descoberta do mata-borrão? Não? Oh, mas ela vai lhe contar; ela deve ter-se esquecido no momento.

E contou a história da descoberta de Elsie.

— Muito bem; isto se coaduna perfeitamente com o incidente que aconteceu justamente um pouco antes de Veneza. Por uma razão ou por outra você estava plane­jando o roubo das jóias de sua mulher. Mas por que a frase "um pouco antes de Veneza é o momento mais pro­pício"? Não parecia ter sentido. Por que você não deixou para o seu — agente — a escolha do melhor lugar e do momento?

— E então, de repente, percebi o sentido. As jóias de sua mulher tinham sido roubadas antes de você deixar Londres e tinham sido substituídas por falsas duplicatas. Mas esta solução não o satisfizera. Você é um homem consciencioso, cheio de brios. Tinha o pavor de que al­gum empregado ou qualquer outra pessoa inocente fosse acusada. Era preciso que ocorresse um roubo... num de­terminado local e de uma maneira tal que não levantasse suspeitas de ninguém de seu conhecimento ou das pes­soas de sua casa.

— Sua cúmplice foi munida com uma chave da caixa de jóias e de uma bomba de fumaça. No momento exato ela daria o alarme, correria para a cabina de sua mulher, abriria a caixa de jóias e jogava as falsas duplicatas no mar. Se suspeitassem dela e a revistassem, nada poderia ser provado contra ela, uma vez que as jóias não estavam em seu poder.

— E assim, o significado do local escolhido torna-se aparente. Se as jóias fossem meramente jogadas ao lado dos trilhos, poderiam ser encontradas. Daí a importância do único momento em que o trem passava sobre o mar.

— Neste" meio tempo, você fez os seus contatos para a venda das jóias aqui. Tinha simplesmente de entregar as pedras quando o roubo já tivesse sido publicamente conhecido. Meu telegrama, entretanto, o alcançou a tempo. Você obedeceu às minhas instruções e depositou a caixa no Tokatlian para esperar a minha chegada, sa­bendo que desta forma eu cumpria meu trato de não en­tregar o assunto nas mãos da polícia. Você obedeceu também às instruções de se encontrar aqui comigo.

Edward Jeffries olhou suplicante para Parker Pyne. Ele era um homem atraente, louro e alto, com um queixo bem feito e olhos muito redondos. — Como fazer com que me entenda? — disse sem esperanças. — Para o senhor eu devo parecer um ladrão vulgar.

— Absolutamente — disse Parker Pyne. — Pelo contrário, eu diria que você é dolorosamente honesto. Estou acostumado a classificar as pessoas. Você, meu caro, cai naturalmente na categoria das vítimas. Agora, me conte toda a sua história.

— Posso lhe contar numa só palavra... chantagem.

— Sim?

— O senhor viu minha mulher; deve ter percebido que tipo de criatura pura e inocente ela é, sem saber ou imaginar o que é a maldade.

— Sim, sim.

— Ela tem ideais maravilhosos e puros. Se ela viesse a saber de qualquer coisa que eu já fiz, me deixaria.

— Imagino. Mas não é essa a questão. O que foi que você fez mesmo, meu jovem amigo? Presumo que seja algum caso com mulheres.

Edward Jeffries fez que sim com a cabeça.

— Depois de seu casamento... ou antes?

— Antes... antes!

— Bem, bem, o que aconteceu?

— Nada, absolutamente nada. Esta é a parte mais cruel da história. Foi num hotel nas índias Ocidentais. Havia uma mulher muito atraente... uma tal Sra. Rossiter... hospedada lá. O marido era um homem violento; tinha os mais selvagens acessos de raiva. Uma noite ele a ameaçou com o revólver. Ela escapou dele e correu para o meu quarto. Estava quase louca de terror. Ela ... ela me pediu para deixá-la ficar ali até de manhã. Eu... o que é que eu podia fazer?

Parker Pyne olhou para o rapaz e o rapaz o encarou de volta com uma retidão consciente de caráter. Parker Pyne suspirou — Em outras palavras, para falarmos cla­ramente, o senhor bancou o trouxa, Sr. Jeffries.

— Realmente...

— Sim, sim. Um golpe muito antigo. Mas às vezes dá certo com rapazes do gênero D. Quixote. Suponho que quando o seu casamento foi anunciado eles apertaram o cerco?

— Sim, recebi uma carta. Se eu não lhes enviasse uma certa soma em dinheiro, meu futuro sogro ficaria sabendo de tudo. A maneira pela qual eu... alienara o amor desta jovem por seu marido; como ela fora vista entrando no meu quarto. O marido daria entrada com um pedido de divórcio. Realmente, Sr. Pyne, me pareceu muito torpe — enxugou a testa de uma maneira ator­mentada.

— Sei, sei. E então você pagou. E de tempos em tempos, eles lhe apertam outra vez.

— É. Desta vez foi a última gota. Eu já não tinha mais como arranjar dinheiro. Pensei nesse plano — apa­nhou a xícara de café frio, olhou-a distraído e bebeu todo. O que vou fazer agora? — perguntou pateticamente. — O que vou fazer, Sr. Pyne?

— Deixe-me orientá-lo — disse Parker Pyne com firmeza. — Eu dou um jeito nos seus carrascos. Quanto à sua mulher, você vai direto a ela e vai lhe contar toda a verdade... ou pelo menos parte dela. O único ponto que você vai desviar da verdade será a respeito dos fatos das Índias Ocidentais. Você precisa esconder o ponto em que serviu... bem, em que você bancou o trouxa, como eu já falei.

— Mas...

— Meu caro Sr. Jeffries, o senhor não compreende as mulheres..Se uma mulher tiver de escolher entre um trouxa e um Don Juan, ela escolherá o Don Juan, sempre. Sua mulher, Sr. Jeffries, é uma moça encantadora, ino­cente e orgulhosa, e a única maneira de ela se sentir sa­tisfeita da vida é acreditar que regenerou um, farrista.

Edward Jeffries estava olhando para ele de boca aberta.

— Foi isso mesmo que eu quis dizer — continuou Parker Pyne. — No presente momento sua mulher está apaixonada por você, mas eu já percebi vestígios de que não vai ficar por muito tempo se continuar a lhe apre­sentar uma figura de tanta bondade e retidão... quase um sinônimo de monotonia.

Edward estremeceu.

— Vá vê-la, menino — disse o Sr. Parker Pyne gen­tilmente. — Confesse tudo, isto é, tudo o que você puder imaginar. Então explique-lhe que a partir do instante em que a encontrou você abriu mão de toda a sua vida. Chegou até a roubar para que nada disso chegasse aos ouvidos dela. Ela vai perdoá-lo entusiàsticamente!

— Mas quando não há nada para perdoar...

— O que é a verdade? — disse Parker Pyne. — Em minha experiência, é geralmente ela que entorna o caldo! Ê um axioma fundamental da vida de casado: você pre­cisa mentir para uma mulher. Elas gostam disso! Vá e seja perdoado, menino. E viva feliz para todo o sempre. Sou capaz de adivinhar que sua mulher vai sempre ficar de olho em você toda vez que uma mulher bonita se apro­ximar ... alguns homens se aborreceriam, mas eu ga­ranto que você não vai se importar.

— Não pretendo olhar para nenhuma outra mulher além de Elsie — disse o Sr. Jeffries com simplicidade.

— Esplêndido, meu rapaz — disse Parker Pyne — Mas se eu fosse você, nunca deixaria que ela soubesse disso. Mulher nenhuma gosta de se sentir muito segura de si.

Edward Jeffries se levantou. O senhor acha real­mente ... ?

— Eu sei — disse Parker Pyne, com veemência.

 

O Portão de Bagdad

Quatro grandes portões tem a Cidade de Da­masco ...

 

Parker Pyne repetiu os versos de Flecker em voz baixa:

 

"O Portal do Destino, o Portão do Deserto, a Caverna das Desgraças, a Fortaleza do Terror,

Eu sou o Portal de Bagdad, a porta de entrada de Diarbekir."

 

Estava em Damasco, e, espichando a cabeça para fora do Hotel Oriental, viu um dos enormes ônibus Pullmans, de seis rodas, que ia levá-lo até Bagdad, com mais onze pessoas, no dia seguinte, através do deserto.

 

Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não passes por aqui cantando.

Escutaram

Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde, ainda assim, algo chilreia como um pássaro?

Passaste por aqui, ó Caravana, Caravana da Per­dição, Caravana da Morte!"

 

Que contraste, com os dias de hoje. Antigamente o Portão de Bagdad era o Portal da Morte. Seiscentos e cin­qüenta quilômetros de deserto para atravessar em cara­vanas. Longos e cansativos meses de viagem. Agora, estes monstros ubíquos alimentados a gasolina faziam a viagem em trinta e seis horas.

— O que estava dizendo, Sr. Parker Pyne?

Era a voz muito viva da Srta. Netta Pryce, a mais jo­vem e encantadora de todo o grupo de turistas. Apesar de embaraçada por uma tia intolerante que tinha uma som­bra de barba e uma sede de conhecimentos bíblicos, Netta conseguia divertir-se de várias maneiras frívolas, que possivelmente a idosa Srta. Pryce não aprovaria.

Parker Pyne repetiu os versos de Flecker para ela.

— Que coisa emocionante! — disse Netta.

Três homens com uniforme da Força Aérea estavam perto deles, e um, admirador de Netta, se aproximou

— Essa viagem ainda é emocionante — disse ele. — Mesmo hoje em dia, os bandidos às vezes atacam. Tam­bém se pode ficar perdido, de vez em quando acontece. E somos nós que vamos procurar. Um camarada ficou cinco dias perdido no deserto. Por sorte tinha bastante água. E também tem os solavancos. Que trancos! Uma vez um sujeito morreu. É a pura verdade! Ele estava dormindo, bateu com a cabeça no teto do carro e morreu.

— Num ônibus desse tipo, Sr. O'Rourke? — per­guntou a velha Srta. Pryce.

— Não... não foi num desses — admitiu o rapaz.

— Precisamos fazer alguma coisa — exclamou Netta. A tia pegou um guia de turistas.

Netta ficou impaciente — Ela quer ir num lugar on­de São Paulo desceu de uma janela — murmurou ela.

— E eu que queria tanto ver os bazares!

O'Rourke respondeu rapidamente — Venha comigo. Começaremos por uma rua chamada Straight......

Os dois se afastaram.

Parker Pyne virou para um homem tranqüilo que estava ao lado, chamado Hensley, e que trabalhava no departamento de serviços públicos de Bagdad.

— Damasco é um pouco decepcionante para quem a vê pela primeira vez — disse ele se desculpando. — Civi­lizada demais. Bondes e casas modernas e lojas.

Hensley fez que sim com a cabeça. Era um homem de poucas palavras.

— Não tem... aquele encanto misterioso... que a gente pensa que vai encontrar — acrescentou.

Apareceu um outro homem, um rapaz louro, com uma velha gravata de Eton. Tinha uma expressão amá­vel, mas ligeiramente estúpida e que no momento parecia preocupada. Ele e Hensley trabalhavam no mesmo de­partamento.

— Olá, Smethurst — disse o amigo. — Perdeu al­guma coisa?

O Capitão Smethurst balançou a cabeça, dizendo que não. Era um jovem de raciocínio um tanto ou quanto lento.

— Estava só dando uma olhada por aí — disse ele vagamente. Finalmente pareceu acordar. — Acho que vou fazer uma farra hoje à noite. Que tal?

Os dois amigos foram embora juntos. Parker Pyne comprou um jornal local, impresso em francês.

Não o achou muito interessante. O noticiário local não lhe dizia nada e parecia que nada de importante es­tava acontecendo em qualquer outro lugar do mundo. Achou diversas notícias procedentes de Londres.

A primeira se referia a assuntos financeiros. A se­gunda falava do suposto destino de um tal Samuel Long, um financista falido. Seus desfalques subiam agora à soma de três milhões, e corriam boatos de que ele já es­tava na América do Sul.

— Nada mau para um homem de pouco mais de trinta anos — disse Pyne.

— Como?

Parker virou e deu de cara com um italiano que havia viajado no mesmo barco que ele, de Brindisi a Bei­rute.

Parker Pyne explicou a sua observação. O italiano, Signor Poli, balançou a cabeça diversas vezes em sinal de aprovação.

— É um grande criminoso, este homem. Até na Itália nós sofremos. Ele inspirava confiança em todo o mundo. Dizem que era um homem de muito boa família.

— Bem, ele esteve em Eton e em Oxford — disse Parker Pyne com cautela.

— O senhor acha que ele vai ser apanhado?

— Depende do que ele tem de dianteira. Ainda pode estar na Inglaterra. Pode estar... em qualquer lugar.

— Aqui conosco? — o italiano riu.

— Possivelmente — o Sr. Parker Pyne permaneceu sério. — Como é que o senhor pode afirmar que eu não sou ele?

O Signor Poli lançou-lhe um olhar espantado. E seu rosto cor de oliva se abriu num sorriso de compreensão.

— Ora, essa é muito boa! Muito boa mesmo! Mas o senhor...

Seu olhar se desviou do rosto para o estômago de Parker Pyne.

Este interpretou o olhar corretamente.

— Não se deve julgar ninguém pelas aparências — disse ele. — Um pouquinho de... como direi? de bar­riga... se arranja com facilidade e faz um efeito muito bom.

Acrescentou sonhadoramente: — Existem as tin­turas de cabelo, é claro; pode-se também mudar a cor da pele e até trocar de nacionalidade.

Poli saiu meio em dúvida. Ele nunca sabia até onde os ingleses são sérios.

Parker Pyne se divertiu naquela noite indo a um cinema. Depois foi ao Palácio Noturno das Diversões. Não lhe pareceu um palácio, nem que era muito alegre. Várias senhoras dançavam com evidente falta de jeito. Os aplausos eram lânguidos.

De repente, Parker Pyne viu Smethurst. O rapaz es­tava sentado sozinho em uma das mesas. Tinha o rosto congestionado, e Parker Pyne imaginou que ele já tinha bebido mais do que devia. Atravessou o salão e foi para perto dele.

— É abominável como estas moças tratam a gente — disse o Capitão Smethurst. — Paguei duas bebidas para ela... três.. uma porção de bebidas. E ai ela foi embora rindo com um outro sujeito. Uma d-desgraça! Parker Pyne ficou com pena( dele. Sugeriu um café.

— Já mandei pedir araq — disse Smethurst. — É uma maravilha. O senhor vai provar.

Parker Pyne conhecia algumas das propriedades do araq. Procurou agir com o maior tato. Smethurst, entre­tanto, balançou a cabeça.

— Estou numa complicação dos diabos — disse. — Preciso me animar um pouco. Não sei o que o senhor faria em meu lugar. Não gosto de deixar um amigo em apuros, sabe como é? Quero dizer... mas... o que é que a gente pode fazer?

Ele se pôs a estudar Parker Pyne como se o visse pela primeira vez.

— Quem é o senhor? — perguntou com o laconismo resultante da sua bebedeira. — O que é que o senhor faz?

— Meu negócio são as confidencias dos outros — disse Parker Pyne gentilmente.

Smethurst olhou para ele com grande interesse.

— O quê?... o senhor também?

Parker Pyne tirou um recorte de jornal da carteira. Colocou-o em cima da mesa, em frente a Smethurst: Você é infeliz? Se for consulte o Sr. Parker Pyne.

Smethurst conseguiu focalizar os olhos depois de algum esforço — Quer dizer que... as pessoas chegam e lhe contam as coisas?

— Eles confiam em mim... sim.

— Um monte de mulheres imbecis, suponho.

— Uma porção de mulheres — admitiu Parker Pyne. — Mas homens também. Que tal você, meu jovem amigo? Não estava agora mesmo querendo um conselho?

— Cale essa boca — disse o Capitão Smethurst. — Não é da conta de ninguém... só da minha. Onde está esse maldito araq?

Parker Pyne balançou tristemente a cabeça.

Abandonou o Capitão Smethurst como se ele fosse um mau negócio.

A partida para Bagdad foi às sete horas da manhã. Era um grupo de doze pessoas. Parker Pyne e o Signor Poli, a velha Srta. Pryce e sua sobrinha, os três oficiais da Aeronáutica, Smethurst e Hensley e uma senhora Armênia e seu filho, chamado Pentemian.

A viagem começou sem nenhum acontecimento es­pecial. As árvores frutíferas de Damasco foram logo dei­xadas par trás. O céu estava nublado e o jovem moto­rista olhou-o duvidoso uma ou duas vezes. "Trocou algu­mas impressões com Hensley

— Tem chovido muito lá pelos lados de Rutba. To­mara que a gente não se atole.

Fizeram uma parada ao meio-dia e as caixas qua­dradas de papelão com o almoço foram distribuídas. Os dois motoristas prepararam um chá que foi servido em copos de papel. Recomeçaram a viagem através da inter­minável planície.

Parker Pyne pensava nas lentíssimas caravanas e nas semanas de viagem.

Exatamente ao pôr do sol, chegaram à fortaleza de­serta de Rutba. Os enormes portões estavam destranca­dos e o ônibus entrou no pátio interno do forte.

— Que emocionante! — disse Netta.

Depois de um banho ela estava ansiosa para dar um passeio. O Tenente 0'Rourke e Parker Pyne se ofereceram como acompanhantes. Quando iam sair, o agente de viagem se aproximou e pediu que não se afastassem muito porque poderiam ter dificuldades para achar o ca­minho de volta quando escurecesse.

— Nós só vamos dar uma voltinha — prometeu O'Rourke.

Na verdade, andar a pé por ali não era muito inte­ressante, por causa da monotonia da paisagem.

De repente Parker Pyne se abaixou e apanhou algu­ma coisa no chão.

— O que foi? — perguntou Netta com curiosidade. Ele mostrou — Uma pedra pré-histórica, Srta. Pryce... parece uma furadeira.

— Será que eles... se matavam com isso?

— Não... devia ter um uso mais pacífico. Mas acho que se quisessem eles podiam matar com isso. É a von­tade de matar que conta... o instrumento não faz dife­rença. Sempre se acha alguma coisa quando se quer.

Já estava escurecendo e eles voltaram para o forte.

Depois de um jantar de muitas iguarias, escolhidas entre a grande variedade de latarias, sentaram-se para fumar. À meia-noite o carro devia seguir viagem.

O motorista parecia inquieto — Há umas passagens muito ruins perto daqui — disse ele. — Talvez a gente atole.

Subiram todos no ônibus e se ajeitaram em seus lu­gares. A Srta. Pryce estava aborrecida por não ter conse­guido alcançar uma de suas valises.

— Gostaria muito de pegar meus chinelos — disse ela.

— É mais provável que precise de suas botas de bor­racha — disse Smethurst. — Se vai acontecer o que eu imagino, nós vamos atolar num mar de lama.

— Não tenho nem um par de meias para trocar — disse Netta.

— Não tem importância. Você não vai sair de seu lugar. Só o pessoal do sexo forte é que vai ter de sair para empurrar.

— Sempre trago um par de meias sobressalentes — disse Hensley, batendo no bolso do seu sobretudo. — A gente nunca sabe...

As luzes se apagaram. O enorme ônibus desapare­ceu no meio da noite.

A viagem não era tão ruim assim. Não sacolejavam tanto como num carro pequeno, mas mesmo assim, de vez em quando havia um solavanco feio.

Parker Pyne estava sentado em um dos lugares da frente. Do outro lado da passagem estava a senhora ar­mênia toda enrolada em suas mantas e xales. O filho es­tava atrás dela. Atrás de Pyne estavam as duas senhoritas Pryce. Poli, Smethurst, Hensley e os três oficiais da RAF estavam lá atrás.

O ônibus corria através da noite escura. Parker Pyne achou muito difícil dormir. Sua posição lhe dava cãibras.

Os pés da senhora armênia estavam esticados e ela os enfiara em seus domínios. Pelo menos ela parecia à von­tade.

Todos os outros pareciam dormir. Parker Pyne co­meçava a sentir uma sonolência, quando um baque vio­lento o atirou contra o teto do carro. Ele ouviu um pro­testo meio adormecido vindo da traseira: — Devagar! Quer quebrar nossos pescoços?

Então a sonolência voltou. Alguns minutos depois, com o desconforto do pescoço que caía para o lado, Par­ker Pyne dormiu.

Acordou de repente. O carro parará. Alguns dos ho­mens estavam saindo. Hensley falou rapidamente:

— Atolamos.

Ansioso para ver o que estava se passando, Parker Pyne desceu desajeitado para o lamaçal. Já não estava mais chovendo. Havia na verdade uma lua e, graças à sua luz, os motoristas podiam ser vistos trabalhando frenèticamente com macacos e pedras, esforçando-se para levantar as rodas. A maioria dos homens estava aju­dando. Das janelas do carro as três mulheres olhavam para fora, a Srta. Pryce e Netta com interesse e a senhora armênia com um tédio mal disfarçado.

A uma ordem do motorista, todos os passageiros ho­mens empurraram obedientemente.

— Onde é que está aquele sujeito armênio? — per­guntou O'Rourke. — Ele tem que vir ajudar também. .

— O Capitão Smethurst também — observou Poli. — Ele não está aqui.

— Aquele sem-vergonha ainda está dormindo. Olhem só para ele.

Na verdade, Smethurst ainda estava sentado em sua poltrona, a cabeça pendida para a frente e o corpo inteiro encurvado.

— Vou acordá-lo — disse O'Rourke.

Entrou pela porta. Voltou um minuto depois. Sua voz mudara.

— Imaginem! Acho que ele está doente... ou coisa parecida. Onde está o médico?

O Comandante Loftus, médico da Força Aérea, era um homem de ar tranqüilo, com os cabelos um pouco grisalhos. Destacou-se do grupo ao lado da roda.

— O que é que há com ele? — perguntou.

— Eu... não sei.

O médico entrou no carro. O'Rourke e Parker Pyne o seguiram. Ele se debruçou sobre a figura encurvada. Um único toque e uma rápida olhada foram suficientes.

— Está morto — disse calmamente.

Morto? Mas como? — as perguntas surgiram. — Ah! que coisa horrível! — gritou Netta.

Loftus olhou em torno, irritado.

— Deve ter batido com a cabeça no teto — disse. — Houve um solavanco muito forte.

— Tem certeza de que foi isso que o matou? — Não há mais nada?

— Não posso dizer antes de fazer um exame comple­to — respondeu Loftus. Olhou em torno com ar inquie­to. As mulheres estavam se aproximando. Os homens lá fora também começavam a entrar.

Parker Pyne falou com o motorista, um rapaz moço, de tipo atlético. Carregou cada uma das mulheres, levan­do-as através da lama para um local seco. Madame Pentemian e Netta ele levou com facilidade, mas cambaleou sob o peso da robusta Srta. Pryce.

O interior do ônibus foi evacuado para que o médi­co pudesse fazer o seu exame.

Os homens voltaram aos seus esforços para erguer o veículo. Neste momento o sol apareceu no horizonte. O dia ia ser maravilhoso. A lama estava secando com rapi­dez, mas o carro ainda estava atolado. Já tinham quebra­do três macacos, e até agora os esforços tinham sido inú­teis. Os motoristas começaram a preparar o café da ma­nhã, abrindo, latas de salsichas e fervendo a água para o chá.

A pequena distância, o Comandante Loftus estava fazendo o seu diagnóstico.

— Não há nenhuma marca ou ferida nele. Como já disse, ele deve ter batido com a cabeça contra o teto.

— O senhor tem certeza de que ele teve morte na­tural? — perguntou Parker Pyne.

Alguma coisa em sua voz fez com que o médico o olhasse rapidamente.

— Só há uma outra possibilidade.

— Sim?

— Bem, que alguém tenha golpeado sua nuca com algo assim como um saco de areia... — sua voz pare­cia a de quem pede desculpas.

— Não parece muito plausível — disse Williamson, o outro oficial da Força Aérea, um rapaz de ar angelical.

— Isto é, ninguém podia fazer isso sem ser visto.

— E se nós estivéssemos dormindo? — perguntou o médico.

— O camarada não podia ter certeza — falou o ou­tro. — Levantar-se e fazer tudo isso teria acordado al­gum de nós.

— A única maneira — disse Poli — seria alguém que estivesse sentado atrás dele. Podia escolher o mo­mento e nem precisava se levantar da poltrona.

— Quem estava sentado atrás do Capitão Smethurst?

— perguntou o médico.

0'Rourke respondeu prontamente:

— Hensley, senhor... como o senhor vê, não adian­tou nada. Hensley era o melhor amigo de Smethurst.

Houve um silêncio. Então a voz de Parker Pyne fa­lou com muita certeza:

— Acho — disse ele — que o Tenente Williamson tem qualquer coisa a nos dizer.

— Eu, senhor? Eu... bem...

— Fale de uma vez, Williamson — disse 0'Rourke.

— Não é nada... ora, não é nada.

— Fale logo!

— Foi só um pedacinho de conversa que ouvi — em Rutba... no pátio. Eu tinha voltado para o carro para procurar a minha cigarreira. Estava procurando por to­dos os cantos. Dois sujeitos estavam do lado de fora con­versando. Um deles era Smethurst. Ele estava dizendo.. •

Fez uma pausa.

— Ande, homem, fale de uma vez!

— Alguma coisa de não deixar um companheiro em má situação. Parecia muito aflito. Então ele disse: "Não vou soltar a língua até a gente chegar a Bagdad — mas nem um minuto a mais. Você trate de escapar depressa".

— E o outro homem?

— Não sei quem era, senhor. Juro que não sei quem era. Estava escuro e ele só disse uma ou duas palavras que eu não pude entender.

— Quem de vocês conhecia bem Smethurst?

— Acho que a palavra companheiro só podia se re­ferir a Hensley — disse O'Rourke lentamente. — Eu conhecia Smethurst, mas ligeiramente. Williamson é novo aqui... e o Comandante Loftus também. Acho que nenhum dos dois já o conhecia.

Ambos concordaram.

— Você, Poli?

— Eu nunca tinha visto este rapaz antes de atra­vessarmos o Líbano no mesmo carro em que viemos de Beirute.

— E aquele armênio?

— Ele não podia ser o companheiro — disse O'Rour­ke com decisão.

— Talvez eu tenha uma pequena peça adicional de evidência — disse Parker Pyne.

Repetiu a conversa que tivera com Smethurst no ca­fé em Damasco.

— Ele usou a frase "Não gosto de deixar um amigo em apuros" — disse O'Rourke, pensativo. — E estava preocupado.

— Ninguém tem mais nada a acrescentar? — per­guntou Parker Pyne.

O médico pigarreou — Talvez não tenha nada a ver com isso... — começou ele. Foi instado a continuar.

— Foi só o que ouvi Smethurst falar a Hensley: "Vo­cê não pode negar que houve um desfalque no seu de­partamento."

— Quando foi isso?

— Logo depois que nós saímos de Damasco, ontem de manhã. Pensei que ele estava falando só do trabalho. Não imaginei que. .. — parou.

— Meus amigos, isto é muito interessante — disse o italiano. — Peça por peça, vocês compõem a situação.

— O senhor disse um saco de areia — disse Parker Pyne. — Um homem poderia fabricar tal arma?

— Areia não falta — disse o médico secamente, apa­nhando um pouco de areia nas mãos enquanto falava.

— Se o senhor puser um pouco dentro de uma meia ...— começou O'Rourke e hesitou.

Todos se lembravam das duas frases curtas de Hensley, na noite passada: "Sempre trago meias sobressalentes. A gente nunca sabe."

Houve um silêncio. Então Parker Pyne disse calma­mente — Comandante Loftus, acho que o par de meias sobressalente do Sr. Hensley está no bolso do seu so­bretudo, que neste momento está dentro do ônibus.

Todos os olhares convergiram para a figura que ca­minhava de um lado para outro, a distância. Hensley fora deixado em paz desde a descoberta do morto. Seu desejo de solidão foi respeitado, pois todo mundo sabia que ele e o morto tinham sido amigos.

Parker Pyne continuou: — Quer fazer o favor de buscá-las e trazê-las até aqui?

O médico hesitou — Não gosto da idéia de... — murmurou ele. Olhou de novo para a figura que cami­nhava ao longe. — Me parece uma baixeza...

— Faça o favor de buscá-las — disse Parker Pyne. — As circunstâncias não são formais. Nós estamos ilhados aqui. E precisamos saber a verdade. Se o senhor for bus­car as meias, acho que vamos dar mais um passo.

Loftus voltou-se obediente.

Parker Pyne puxou o Signor Poli para um lado.

— Acho que era o senhor que estava no banco do lado oposto ao do Capitão Smethurst.

— Era sim.

— Alguém se levantou e passou por lá?

— Só a senhora inglesa, a Srta. Pryce. Ela foi até o lavatório na traseira do ônibus.

— Ela por acaso tropeçou?

— Ela se desequilibrou um pouco com o movimento do Ônibus, é natural.

— Ela foi a única pessoa que o senhor viu passar?

— Foi.

O italiano olhou com curiosidade para ele e disse:

— Estou imaginando quem é o senhor. Está comandan­do, mas não é nenhum soldado.

— Já vi muita coisa na vida — disse Parker Pyne.

— Viajou muito, foi?

— Não — disse Parker Pyne. — Fiquei sentado num escritório.

Loftus voltou trazendo as meias. Parker Pyne pe­gou-as e as examinou. Em uma delas ainda havia um pouco de areia úmida.

Parker Pyne suspirou fundo.

— Agora eu sei — disse.

Todos os olhares se fixaram na figura que continua­va a caminhar ao longe.

— Gostaria de dar uma espiada no corpo, se puder — disse Parker Pyne.

Acompanhou o médico até onde jazia o corpo de Smethurst, coberto por uma lona.

O médico levantou a cobertura — Não há nada para ver — disse.

Mas os olhes de Parker Pyne estavam fixos na gra­vata do morto.

— Então Smethurst estudou em Eton — disse ele. Loftus olhou-o surpreso.

Parker Pyne surpreendeu-o ainda mais.

— O que sabe o senhor sobre o jovem Williamson? — perguntou.

— Nada. Só o conheci em Beirute. Vim do Egito. Mas por quê? Certamente não foi ele que...

— Bem; é pela sua evidência que nós vamos enfor­car um homem, não é? — disse Parker Pyne jovialmen­te. — Precisamos ser cuidadosos.

Ele ainda parecia interessado na gravata e no cola­rinho do morto. Perguntou:

— Está vendo isso?

Na parte de trás do colarinho havia uma pequena mancha de sangue.

Olhou mais de perto para o pescoço descoberto.

— Este homem não foi morto por uma pancada na cabeça — disse bruscamente. — Ele foi apunhalado... na base do crânio. O senhor pode ver a minúscula picada.

— E eu não tinha visto!

— O senhor estava com uma idéia preconcebida — disse Parker Pyne desculpando-o. — Uma pancada na cabeça. Mal dá para se ver a ferida. Uma punhalada rá­pida com um pequeno instrumento agudo, e a morte foi instantânea. A vítima nem teve tempo de gritar.

— O senhor quer dizer um estilete? — Acha que

Poli...?

— Italianos e estiletes estão sempre juntos na ima­ginação popular. Um carro chegando!

Surgiu um ônibus de turistas.

— Ótimo — disse O'Rourke juntando-se a eles. — As senhoras poderão seguir nele.

— E o nosso assassino? — perguntou Pyne.

— O senhor quer dizer Hensley...

— Não, não quero dizer Hensley — disse Parker Py­ne. — Acontece que eu sei que Hensley é inocente.

— O senhor... mas como?

— Bem, ele tinha areia nas meias. O'Rourke olhou espantado para ele.

— Eu sei, meu rapaz — disse Parker Pyne gentil­mente, — que não faz sentido, mas é isso mesmo. Smethurst não foi ferido na cabeça; como está vendo, ele foi apunhalado.

Fez uma pausa e continuou.

— Pense na conversa que eu lhe contei... a conver­sa que tive com ele no café. Você escolheu a frase que lhe parecia ter uma significação. Mas foi a outra frase que me chamou a atenção. Quando eu disse a ele que ouvia confidencias dos outros, ele me disse: "O quê? — O senhor também?" Isto não lhe diz nada? Não é estranho? Eu não sabia que vocês chamavam de confidencias uma série de irregularidades no departamento. Ouvir confidências me parece mais a descrição de alguém como o foragido Samuel Long, por exemplo.

O médico se espantou. O'Rourke disse: — É... tal­vez ...

— Eu disse de brincadeira que talvez o desaparecido Sr. Long estivesse no nosso grupo. Suponhamos que isso seja verdade?

— O que... mas é impossível!

— Absolutamente. O que vocês sabem sobre as pes­soas além de seus passaportes e do que elas dizem de si mesmas? Serei eu realmente o Sr. Parker Pyne? O Signor Poli é mesmo um italiano? E o que dizer dá idosa Srta. Pryce, que até parece que anda precisando fazer a barba?

— Mas ele... mas Smethurst... será que ele co­nhecia Long?

— Smethurst era um antigo aluno de Eton. Long também esteve em Eton. Smethurst talvez o conhecesse, mas não nos disse nada. É possível que o tenha reconhe­cido entre nós. E sendo assim, o que fazer? Ele tinha uma mente simples e se preocupou com o assunto. De­cidiu por fim que não diria nada até chegarmos a Bagdad. Mas depois, ninguém mais seguraria a sua língua...

— O senhor acha que um de nós é Long? — disse O'Rourke ainda espantado.

Ele tomou fôlego.

— Deve ser o italiano... só pode ser... Ou será que é o armênio?

— Disfarçar-se de um estrangeiro e conseguir um passaporte de outro país é na verdade muito mais di­fícil do que continuar inglês — disse Pyne.

— A Srta. Pryce? — gritou O'Rourke incrédulo.

— Não — disse Parker Pyne. — É este o nosso ho­mem!

Ele colocou uma mão quase amigável sobre o ombro do homem que estava a seu lado. Mas não havia nada amigável em sua voz e seus dedos o seguraram como se fossem garras.

— Comandante Loftus ou Sr. Samuel Long, não im­porta como o chamem!

— Mas isto é impossível!... Impossível! — gague­jou O'Rourke. — Loftus está na Força Aérea há anos!

— Mas você nunca o tinha visto antes, não é? Ele era um estranho para todos vocês. Não é o verdadeiro Loftus, naturalmente.

Calmamente, o acusado falou: — Muito hábil de sua parte adivinhar. A propósito, como foi que descobriu?

— Sua declaração ridícula de que Smethurst fora morto batendo com a cabeça. O'Rourke lhe deu esta idéia ontem quando nós estávamos conversando em Da­masco. Você pensou... que coisa simples! Era o único médico que estava conosco... tudo o que dissesse seria aceito. Você tinha a maleta de Loftus. Tinha seus instrumentos. Era simples escolher um estilete qualquer para seus propósitos. Inclinou-se para conversar com ele e enquanto falava enfiou-lhe o pequeno punhal na nuca. Continuou conversando mais um ou dois minutos. Esta­va escuro no ônibus. Quem ia suspeitar?

— Então houve a descoberta do corpo. Você deu o seu diagnóstico. Mas não foi tão fácil assim. Pelo menos não foi como você imaginava. Surgiram dúvidas. Você resolveu cair numa segunda linha de defesa. Williamson repetiu a conversa que ele escutara. Todos pensaram que se tratava de Hensley e você acrescentou uma pe­quena história inventada sobre o desfalque no departa­mento de Hensley. Foi então que eu fiz o teste final: mencionei a areia e as meias. Mandei você buscar as meias para que ficássemos sabendo da verdade. Mas com isso eu não quis dizer exatamente o que estava pensan­do. Eu já tinha examinado as meias de Hensley. Não ha­via areia em nenhuma delas. Foi você quem a pôs. O Sr. Samuel Long acendeu um cigarro. — Desisto — disse ele. — Minha sorte mudou. Bem, foi muito bom enquanto durou. Eles já estavam nos meus calcanhares quando cheguei ao Egito. Encontrei-me com Loftus. Ele estava de partida para Bagdad e não conhe­cia ninguém aqui. Era bom demais para que eu perdesse a oportunidade. Comprei-o. Ele me custou vinte mil li­bras. O que era isso para mim? Então, por um azar do destino me encontrei com Smethurst — a maior besta que já conheci! Ele era praticamente meu escravo em Eton. Fazia tudo o que eu queria. Me adorava como se eu fosse um herói, naquele tempo. Não gostou da idéia da minha fuga. Fiz o que pude para convencê-lo, e afinal ele concordou e prometeu que não contaria nada a ninguém até chegarmos a Bagdad. Qual a oportunidade que eu teria então? Nenhuma. Só havia uma maneira — elimi­ná-lo. Mas lhes garanto que não sou um assassino por na­tureza. Meus talentos são completamente opostos.

Seu rosto mudou — contraiu-se. Ele vacilou e des­pencou para a frente.

O'Rourke debruçou-se sobre ele.

— Provavelmente ácido prússico... no cigarro — disse Parker Pyne. — O jogador perdeu a sua última cartada.

Olhou em volta — para o imenso deserto. O sol bri­lhava sobre eles. Ontem mesmo eles tinham deixado Da­masco — pelo Portão de Bagdad.

 

"Não passes por aqui, ó Caravana, ou pelo menos não passes por aqui cantado.

Escutaram

Este silêncio onde os pássaros morreram, mas onde ainda assim, algo chilreia como um pássaro?"

 

A Casa de Shiraz

Eram seis horas da manhã quando Parker Pyne deixou a Pérsia depois de uma parada em Bagdad.

O espaço para os passageiros no pequeno avião era limitado, e a largura dos assentos não podia acomodar com conforto o corpanzil de Parker Pyne. Com ele via­javam duas outras pessoas — um homem corpulento e corado que Parker Pyne julgara ser do tipo falador e uma mulher magra com lábios apertados e ar de deter­minação.

De qualquer modo, pensou Parker Pyne, não me pa­rece que queiram me consultar profissionalmente.

E não queriam mesmo. A mulherzinha era uma mis­sionária norte-americana, sobrecarregada de trabalho e de felicidade e o homem corado era empregado de uma companhia de petróleo. Fizeram um resumo de suas vi­das para o seu companheiro de viagem, antes que o avião levantasse vôo.

— Sinto muito, mas sou um mero turista — disse Parker Pyne desculpando-se. — Estou indo para Teerã, Isfahan e Shiraz.

E a pura musicalidade destes nomes o encantava tanto que ele os repetiu. Teerã. Isfahan. Shiraz.

Parker Pyne olhava para o campo embaixo deles. Era um deserto sem relevos. Sentiu o mistério destas vas­tas e desabitadas regiões.

Em Kermanshah o aparelho desceu para que exa­minassem os passaportes e passassem pela alfândega. Uma das malas de Parker Pyne foi aberta. Uma pequena caixa de papelão foi examinada com excitação. Fizeram muitas perguntas. Como Parker Pyne não falava nem compreendia o persa, o assunto estava complicado.

O piloto do avião se aproximou. Era um rapaz ale­mão, de boa aparência, com olhos azuis profundos e um rosto queimado de sol. — Precisa de alguma coisa? — perguntou ele com gentileza.

Parker Pyne, que se desdobrava numa pantomima realista e excelente, mas que, ao que parecia, não estava surtindo muito êxito, virou-se aliviado para o outro. — É pó contra insetos — disse ele. — Será que você pode explicar isso a eles?

O piloto o olhou intrigado — Por favor?

Parker Pyne repetiu a explicação em alemão. O pi­loto fez uma careta de compreensão e traduziu a frase para o persa. Os graves e tristonhos oficiais ficaram sa­tisfeitos com a explicação; os rostos pesarosos relaxaram; sorriram. Um deles chegou até a rir. Acharam cômica a idéia.

Os três passageiros ocuparam seus lugares e o avião continuou a viagem. Fizeram uma descida rápida em Hamadan para deixar a correspondência, mas o avião nem chegou a parar. Parker Pyne deu uma espiada para baixo, tentando ver se podia distinguir a pedra de Behistun, o romântico local de onde Dario descreveu a exten­são de seu império e de suas conquistas em três línguas diferentes — babilônio, medo e persa.

Era uma hora da tarde quando eles chegaram a Teerã. Não houve mais nenhuma formalidade de polícia. O piloto alemão se adiantara e estava de pé ao lado de Parker Pyne, sorrindo enquanto ele terminava de res­ponder a um longo interrogatório que absolutamente não tinha compreendido.

— O que foi que eu disse? — perguntou ele ao alemão.

— Que o primeiro nome de seu pai é Turista, que a sua profissão é Charles, que o nome de solteira de sua mãe é Bagdad e que o senhor está vindo de Harriet.

— Será que faz diferença?

— Não tem a mínima importância. Responda qual­quer coisa; é só isso que eles querem.

Parker Pyne estava desapontado com Teerã. Achou-a lastimàvelmente moderna. Disse isto na noite seguinte quando se encontrou por acaso com Herr Schlagal, o pi­loto, quando estava entrando no hotel. Num impulso, ele convidou o rapaz para jantar e o alemão aceitou.

O garçom georgiano se aproximou e anotou os pedi­dos. A comida chegou. Quando estavam na altura da torta, uma coisa meio pegajosa, feita de chocolate, o ale­mão falou:

— Então o senhor vai para Shiraz?

— É, vou de avião. Depois volto por Isfahan, vindo para Teerã pela estrada. É você que vai pilotar o avião amanhã para Shiraz?

— Ach, não. Volto para Bagdad.

— Você já está aqui há muito tempo?

— Três anos. Nosso serviço foi estabelecido há três anos. Nunca tivemos um acidente — unberufen! — ba­teu na mesa.

O café foi servido em xícaras muito grossas. Os dois homens fumavam.

— Meus primeiros passageiros foram duas senhoras — disse o alemão, relembrando. — Duas senhoras in­glesas.

— Foi? — disse Parker Pyne.

— Uma delas era uma moça muito bem nascida, fi­lha de um ministro... como era mesmo o nome?. .. Lady Esther Carr. Era linda, muito linda, mas louca.

— Louca?

— Completamente louca. Ainda mora lá em Shiraz, numa enorme casa da localidade. Só usa roupas orien­tais. Nunca recebe os europeus. Veja se é vida para uma senhora grã-fina viver?

— Há outras — disse Parker Pyne. — Havia uma Lady Hester Stanhope...

— Essa é louca — cortou o outro bruscamente. — A gente percebe nos olhos. Eram como os olhos do co­mandante do meu submarino, na guerra. Agora ele está num hospício.

Parker Pyne ficou pensativo. Ele se lembrava muito bem de Lord Micheldever, o pai de Lady Esther Carr.

Trabalhara sob suas ordens quando ele era Secretário do Interior. Um homem enorme, louro, com risonhos olhos azuis. Vira Lady Micheldever uma vez — uma famosa beldade irlandesa de cabelos negros e olhos azul-violeta. •Eram ambos elegantes, pessoas normais, mas apesar de tudo sabia-se que havia uma loucura na família. Apare­cia de vez em quando, sempre pulando uma geração. Era muito estranho, pensou ele, que Herr Schlagal destacasse o fato. ..

— E a outra senhora? — perguntou vagamente.

— A outra senhora... morreu.

Sua voz de alguma forma chamou a atenção de Par­ker Pyne, que o olhou vivamente.

— Tenho coração — disse Herr Schlagal. — Sinto as coisas. Para mim ela era muito, muito linda, a outra moça. O senhor sabe como é, essas coisas acontecem com a gente sem querer, de repente. Ela era uma flor... uma flor — suspirou profundamente. — Fui vê-las uma vez — na casa de Shiraz. Lady Esther me convidou. Minha pequena flor, minha flor... ela estava com medo de al­guma coisa; eu percebi. Quando voltei de Bagdad, soube que ela tinha morrido. Morta!

Fez uma pausa e acrescentou pensativo — É possí­vel que a outra a tenha assassinado. Ela estava louca, posso lhe garantir.

Suspirou outra vez e Parker Pyne pediu dois Benedictines.

— O curaçau é muito bom — disse o garçom da Geórgia, e trouxe-lhes dois curaçaus.

 

Logo depois do meio-dia do dia seguinte, Parker Py­ne teve a sua primeira visão de Shiraz. Tinham voado sobre cadeias de montanhas, entremeadas de vales es­treitos e desolados, todos áridos, ermos, estéreis. De re­pente, surgiu Shiraz — uma jóia verde-esmeralda no co­ração do deserto.

Parker Pyne gostou mais de Shiraz do que de Teerã. As características primitivas do hotel não o apavoraram, nem tampouco o aspecto igualmente primitivo das ruas.

Estava no meio de uma festa persa. O Festival de Nan Ruz tinha começado na noite anterior — o período de quinze dias em que os persas celebram o seu Ano Novo. Passeou entre os bazares desertos e vagou pelas grandes extensões abertas do lado norte da cidade. Shiraz intei­ra estava entregue às celebrações.

Um dia ele foi até o lado de fora da cidade. Estivera no túmulo de Hafiz, o poeta, e ao voltar de lá ficou fas­cinado por uma casa. Era uma casa toda recoberta de azulejos azuis, rosas e amarelos, engastada no meio de um jardim muito verde, cheio de fontes, rosas e laran­jeiras. Parecia uma casa de sonho.

Naquela noite, jantando com o Cônsul inglês, per­guntou de quem era a casa.

— Fascinante, não é? Foi construída por um antigo e rico Governador do Luristão que se aproveitou muito de sua posição social. Hoje é de uma inglesa. Você deve ter ouvido falar dela. Lady Esther Carr. Doida varrida. Vive completamente à nativa. Não quer saber de nin­guém nem de nada ligado à Inglaterra.

— É jovem?

— Ainda é moça demais para bancar a louca desta forma. Deve ter uns trinta anos.

— Tinha uma outra inglesa com ela, não é? Uma mulher que morreu?

— É, foi há uns três anos. Ela morreu no dia se­guinte ao da minha posse aqui, imagine. Barham, meu antecessor, morreu de repente, lembra-se?

— Como foi que ela morreu? — perguntou Parker Pyne sem prestar atenção.

— Caiu daquela varanda ou do balcão do primeiro andar. Era empregada ou dama de companhia de Lady Esther, não me lembro bem. De qualquer maneira, es­tava levando a bandeja do café da manhã e tropeçou no beiral. Muito triste, não se podia fazer nada; quebrou a cabeça nas pedras lá embaixo.

— Como era o nome dela?

— King, acho; ou era Wills? Não, Wills é a missioná­ria. Era uma moça muito bonita.

— Lady Esther ficou contrariada?

— Ficou... não, não sei. Ela é muito excêntrica;

nunca entendi seus sentimentos. Ela é muito. .. bem, é uma criatura muito altiva. Vê-se que é alguém impor­tante, acho que você entende o que quero dizer. Ela me assusta um pouco com suas maneiras mandonas e seus olhos escuros e faiscantes.

Riu como se se desculpasse. Olhou com curiosidade para seu companheiro. Aparentemente Parker Pyne es­tava olhando para o espaço vazio. O fósforo que riscava para acender o cigarro estava se consumindo, esquecido em sua mão. Foi queimando, até à ponta dos dedos, e ele o largou com uma exclamação de dor. Foi então que percebeu a expressão intrigada do Cônsul e sorriu.

— Perdão — disse.

— Estava distraído, não estava?

— Distraído até demais — disse Parker Pyne enigmaticamente.

Falaram de outros, assuntos.

Naquela noite, à luz de uma pequena lamparina a óleo, Parker Pyne escreveu uma carta. Hesitou muito sobre a sua fórmula. Finalmente ela foi feita de modo muito simples:

 

O Sr. Parker Pyne apresenta seus cumprimentos a Lady Esther Carr e lembra-lhe que está hospedado no Hotel Fars nos próximos três dias, caso ela queira con­sultá-lo.

 

Colocou anexo um recorte — o famoso anúncio:

"Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Py­ne. Rua Richmond, 17."

 

— Isto deve ser suficiente — disse Parker Pyne ao se deitar meio sem jeito, em sua cama desconfortável. — Deixe ver, quase três anos; é, acho que isso basta.

No dia seguinte, por volta das quatro horas da tar­de, a resposta chegou. Foi trazida por um criado persa que não sabia falar inglês.

 

Lady Esther Carr ficará satisfeita se o Sr. Parker Pyne for visitá-la às nove horas da noite de hoje.

 

Parker Pyne sorriu.

Foi o mesmo criado que o recebeu naquela noite. Foi conduzido através de um escuro jardim até uma escada externa que levava à parte de trás da casa. De lá, passou por uma porta que dava para o pátio central, uma es­pécie de balcão todo aberto para o céu. Um enorme diva estava colocado junto à parede, e sobre ele se reclinava uma figura impressionante.

Lady Esther estava vestida com roupas orientais e podia-se imaginar que uma das razões para a sua pre­ferência era que elas destacavam ainda mais o seu tipo suntuoso de beleza oriental. Altiva, dissera o Cônsul a seu respeito, e era mesmo altiva que ela parecia. Tinha o queixo erguido e as sobrancelhas arrogantes.

— É o Sr. Parker Pyne? Sente-se ali.

Sua mão apontou para um amontoado de almofadas. Em seu terceiro dedo faiscava uma enorme esme­ralda esculpida com o brasão de sua família. Devia ser parte da herança e valer uma pequena fortuna, pensou Parker Pyne.

Ele se abaixou obedientemente, se bem que com uma certa dificuldade. Para um homem de seu porte, não era fácil sentar-se com muita destreza no chão.

Apareceu uma criada com o café. Parker Pyne re­cebeu uma xícara e saboreou o líquido escuro.

Sua anfitrioa adquirira o hábito oriental da calma infinita. Ela não se apressava em sua conversa. Também tomava o café com os olhos semicerrados. Finalmente falou:

— Então o senhor ajuda as pessoas infelizes — disse. — Pelo menos é o que sustenta o seu anúncio.

— É.

— Por que o mandou para mim? É seu hábito... fazer negócios em suas viagens?

Havia qualquer coisa de decididamente ofensivo em sua voz, mas Parker Pyne ignorou. Respondeu simples­mente. — Não. Para mim as viagens significam férias completas dos meus negócios.

— Por que então o mandou?

— Porque tenho razões para acreditar que a se­nhora ... é infeliz.

Houve um momento de silêncio. Ele estava muito curioso. Como é que ela aceitaria isso? Ela ficou um mi­nuto pensando sobre isso. Depois sorriu.

— Suponho que o senhor pensou que qualquer pes­soa que abandona este mundo, que vive como eu vivo, completamente afastada da minha raça, do meu país, deve ser uma pessoa muito infeliz! Tristezas, frustra­ções ... pensa que foi uma coisa desse tipo que me obri­gou a este exílio? Ora, como posso fazê-lo compreen­der? Lá... na Inglaterra... eu era como um peixe fora dágua. Aqui sou eu mesma. Sou uma oriental de coração. Adoro a minha reclusão. Duvido que o se­nhor possa entender isso. Para o senhor, devo parecer — hesitou — uma louca.

— A senhora não é louca — disse Parker Pyne. Havia um tom afirmativo na sua voz, uma grande segurança. Ela o olhou com curiosidade.

— Mas é o que todos dizem que sou, suponho. Tolos! É preciso gente de todos os tipos para se formar o mun­do. Sou absolutamente feliz!

— E, no entanto, a senhora me chamou — disse Parker Pyne.

— Devo admitir que fiquei curiosa para conhecê-lo — hesitou. — Além disso, não quero nunca mais voltar para lá... para a Inglaterra... mas de qualquer forma, às vezes gosto de saber o que está se passando por lá...

— No mundo que abandonou?

Ela concordou com a frase balançando a cabeça.

Parker Pyne começou a falar. Sua voz era suave e reconfortante e se levantava de vez em quando, quando enfatizava um ou outro ponto importante.

Falou de Londres, dos mexericos sociais, de homens e mulheres famosos, dos novos restaurantes e dos novos clubes noturnos, das corridas de cavalos e dos campeo­natos de tiro ao alvo e dos escândalos que se passavam nas casas de campo. Falou de roupas, da moda de Paris, das lojinhas em ruas estreitas onde se conseguiam pe­chinchas incríveis. Descreveu os teatros e os cinemas, fa­lou dos novos filmes, descreveu os edifícios dos novos jardins suburbanos, falou de bulbos, de plantas e de jardinagem e terminou com uma descrição da noite de Lon­dres, com os ônibus e aquela multidão apressada voltan­do para casa depois de um dia de trabalho, e de suas casi­nhas que os esperavam e de toda a estranha e íntima forma da vida familiar inglesa.

Foi uma cena extraordinária, uma demonstração vasta e insólita de conhecimentos e uma clara exposição dos acontecimentos. A cabeça de Lady Esther estava curvada, a arrogância de sua pose tinha desaparecido. Algumas vezes, as lágrimas quase caíam, e agora que ele terminara, ela pôs de lado toda a sua pretensão e so­luçou abertamente.

Parker Pyne não disse nada. Ficou ali sentado, observando-a. Seu rosto tinha aquela expressão calma e sa­tisfeita de quem fez uma experiência e conseguiu o re­sultado desejado.

Finalmente ela levantou a cabeça. — Muito bem — disse, — está contente?

— Agora sim... acho que estou.

— Como é que eu podia suportar; como é que eu podia suportar isso? Nunca mais viver lá; nunca mais ver... ninguém! — o choro veio violentamente. Ela se recompôs, enrubescendo. — Muito bem? — perguntou impetuosamente. — Não vai fazer o comentário óbvio? Não vai dizer agora: "Se tem tanta vontade de voltar, por que não volta?"

— Não — o Sr. Parker Pyne balançou a cabeça. -Não é assim tão fácil para a senhora.

Pela primeira vez um ar medroso apareceu em seus olhos — O senhor sabe por que não posso voltar?

— Acho que sim.

— Está enganado — ela balançou a cabeça. — Não posso voltar por um motivo que o senhor nunca adivi­nharia.

— Não adivinho — disse Parker Pyne. — Obser­vo... e classifico.

Outra vez ela balançou a cabeça — O senhor não sabe de nada, de nada.

— Pelo que vejo tenho de convencê-la — disse Par­ker Pyne com um ar simpático. — Quando veio para cá, Lady Esther, a senhora veio de avião, suponho, pela nova linha de Bagdad.

— Foi?

— Foi trazida por um jovem piloto, Herr Schlagal, que tempos depois veio visitá-la.

— Foi.

Um foi diferente - um foi mais suave.

— E a senhora tinha uma amiga, ou uma acompa­nhante, que... morreu — a voz agora era de aço — fria, ofensiva.

— Minha acompanhante.

— O nome dela era... ?

— Muriel King.

— A senhora gostava dela?

— O que quer dizer com "gostava dela"? — fez uma pausa, controlando-se. — Ela era útil para mim.

Disse isso desdenhosamente, e Parker Pyne se lem­brou do que tinha dito o Cônsul: "Vê-se que ela é impor­tante, acho que você entende o que quero dizer".

— Ficou triste quando ela morreu?

— Eu... naturalmente! Realmente, Sr. Pyne, é pre­ciso relembrar tudo isso? — falou num tom zangado e continuou sem esperar resposta: — Foi muito gentil o senhor ter vindo. Mas estou um pouco cansada. Se me disser quanto lhe devo... ?

Mas Parker Pyne não fez o menor movimento. Con­tinuou calmamente com suas perguntas, — Desde que ela morreu, Herr Schlagal não voltou. Suponhamos que ele viesse aqui... a senhora o receberia?

— Claro que não.

— Recusa-se terminantemente?

— Terminantemente. Herr Schlagal não será admi­tido aqui.

— Sim — disse Parker Pyne pensativo. — A senhora não podia pensar de outra forma.

A armadura de defesa de sua arrogância diminuiu um pouco. Disse, meio incerta: — Eu. .. não sei aonde o senhor quer chegar.

— A senhora sabia, Lady Esther, que o jovem Schla­gal estava apaixonado por Muriel King? Ele é um rapaz sentimental. Ainda hoje preza muito a sua memória.

— Será mesmo? — sua voz era quase um murmúrio.

— Como era ela?

— O que quer dizer com isso. .. como era ela? Co­mo eu podia saber?

— A senhora deve ter olhado para ela algumas ve­zes — disse Parker Pyne calmamente.

— Ah, é isso. Era uma moça muito bonita.

— Mais ou menos da sua idade?

— É — fez uma pausa e falou em seguida. — Por que o senhor acha que este. .. que este Schlagal gosta­va dela?

— Porque ele me disse. Sim, da maneira mais ine­quívoca. Como já lhe falei, ele é um rapaz sentimental. Ficou satisfeito de poder confiar em mim. Ficou muito triste ao saber da maneira como a moça morreu.

Lady Esther ficou de pé de um pulo — O senhor pensa que eu a assassinei?

Parker Pyne não ficou de pé de um pulo. Ele não era homem para fazer essas coisas. — Não, minha cara crian­ça — disse ele. — Não penso que você a assassinou, e por isso aconselho-a a parar com esta representação o mais depressa possível, e voltar logo para casa. Quanto mais cedo, melhor para você.

— O que quer dizer com esta... representação?

— A verdade é que você perdeu o controle de seus nervos. É, perdeu mesmo. Perdeu completamente o con­trole. .. Pensou que ia ser acusada de assassinar a sua patroa.

A moça fez um movimento rápido.

Parker Pyne continuou: — Você não é Lady Esther Carr. Eu sabia disso antes de vir aqui, mas testei-a para ter certeza... — seu sorriso apareceu, suave e bondoso. — Quando representei a minha peça ainda agora, eu a es­tava observando. Você reagia sempre como Muriel King, e não como Esther Carr. As lojas barateiras, os novos jardins suburbanos, os cinemas, as pessoas que voltavam para casa de ônibus e de trem — você reagiu a tudo isso. Escândalos no campo, os novos clubes noturnos, os falatórios de Mayfair, as corridas de cavalos — nada disso disse qualquer coisa para você.

Sua voz se tornou cada vez mais persuasiva e paternal — Sente-se e conte tudo o que aconteceu. Você não matou Lady Esther, mas pensou que podia ser acusada disso. Conte como foi que aconteceu.

Ela tomou fôlego; deixou-se cair pesadamente sobre o diva mais uma vez e começou a falar. As palavras che­gavam depressa, por vezes num atropelo.

— Deveria começar... pelo começo!... eu... eu tinha medo dela. Ela era louca... não era doida varrida... só um pouquinho louca. Ela me trouxe para cá. Como uma tola, eu estava encantada; achei que era tão romântico. Pobre tolinha! Era isto que eu era, uma pobre tola! Hou­ve um caso com um motorista. Ela era ninfomaníaca... absolutamente ninfomaníaca. Ele não queria nada com ela e ela percebeu; os amigos dela ficaram sabendo e ela foi motivo de riso para eles. Rompeu com a família e veio para cá.

— Era apenas uma atitude para livrá-la da vergo­nha ... a solidão do deserto... e todas essas coisas. Ela ia ficar algum tempo aqui e depois voltaria. Mas foi fi­cando cada vez mais esquisita. E então apareceu o pi­loto. Ela... ela se apaixonou por ele. Ele veio aqui para me ver e ela pensou... Bom, o senhor entende? Mas ele deve ter falado claramente com ela.

— E aí, de repente, ela se virou contra mim. Foi hor­rível, assustadora. Disse que nunca mais eu voltaria para casa. Disse que eu estava em seu poder. Que eu não pas­sava de uma escrava! Que ela tinha poder de vida e de morte sobre mim.

Parker Pyne concordava com a cabeça. Acompa­nhou o desenvolvimento da situação. Lady Esther se aproximando do limite da loucura, como já acontecera com outros membros da família, e aquela moça assusta­da, ignorante, e que nunca tinha viajado, acreditando em tudo que ela dizia.

— Mas um dia aconteceu uma coisa que me fez vol­tar à razão. Enfrentei-a. Disse que se esse dia chegasse eu era mais forte do que ela. Disse que eu a jogaria sobre as pedras lá embaixo. Ela ficou assustada, muito assus­tada mesmo. Acho que ela pensava que eu era um verme desprezível. Dei um passo em sua direção. Não sei o que foi que ela pensou que eu ia fazer. Ela recuou; ela... ela tropeçou no beirai! — Muriel King cobriu o rosto com as mãos.

— E depois? — Parker Pyne incitou-a a continuar.

— Perdi a cabeça. Pensei que iam dizer que eu a em­purrara do terraço. Sei que ninguém me ia ouvir. Pen­sei que iam me atirar numa prisão horrorosa daqui — seu lábios tremiam. Parker Pyne viu claramente o terror irracional que a possuíra. — Foi então que me ocorreu a idéia... se eu me fizesse passar por ela! Sabia que ha­via um novo Cônsul inglês que nunca tinha visto ne­nhuma de nós duas. Uma delas morrera...

Achei que poderia controlar os criados. Para eles, nós éramos duas inglesas loucas. Quando uma morreu, a outra tomou o seu lugar. Dei-lhes bons presentes em dinheiro e mandei que eles chamassem o Cônsul inglês. Quando ele chegou, eu o recebi como Lady Esther. Es­tava com o anel dela no meu dedo. Ele foi muito simpá­tico e arranjou tudo. Ninguém teve a menor suspeita.

Parker Pyne balançou a cabeça, pensativo. O pres­tígio de um nome famoso, Lady Esther Carr podia ser doida varrida, mas ainda era Lady Esther Carr.

— E depois — continuou Muriel, — me arrependi de ter feito aquilo. Vi que também tinha ficado louca. Es­tava condenada a ficar aqui representando o meu papel. Não via como podia escapar. Se eu confessasse a verda­de agora, ia parecer ainda mais culpada do que se a tives­se mesmo assassinado. Oh! Sr. Pyne, o que é que eu posso fazer? O que é que eu posso fazer agora?

— Fazer? — Parker Pyne se pôs de pé com tanta ra­pidez quanto permitia o seu corpo. — Minha cara crian­ça, você vai comigo até o Cônsul inglês, que é uma pessoa muito amável e delicada. Haverá uma série de formali­dades desagradáveis a cumprir. Não lhe prometo que vá tudo se passar em brancas nuvens, mas você não vai ser enforcada por assassinato. Por falar nisso, por que foi que a bandeja do café foi encontrada ao lado do corpo?

— Eu a joguei lá. Achei... achei que pareceria mais autêntico se houvesse uma bandeja ao lado do corpo. Foi tolice de minha parte?

— Foi um toque de gênio — disse Parker Pyne. — De fato, foi esse ponto que me fez pensar se você real­mente não teria assassinado mesmo Lady Esther... isto é, até eu vê-la. Quando a vi, soube que você era capaz de qualquer coisa na vida, menos de matar alguém.

— O senhor quer dizer que eu não teria coragem?

— Seus reflexos não funcionariam — disse Parker Pyne sorrindo. — Agora, vamos indo? Há um trabalho desagradável a ser feito, mas eu cuido de tudo, e de­pois ... vamos para casa em Streatham Hill... é em Streatham Hill que você mora, não é? É, eu imaginava que era. Vi o seu rosto se contrair quando falei num de­terminado número de ônibus. Vamos, minha cara?

Muriel King o seguiu — Eles nunca vão me acredi­tar — disse ela com nervosismo. — A família e os outros. Eles não vão acreditar que ela estava agindo daquela maneira.

— Pode deixar comigo — disse Parker Pyne. — Sei de uma porção de coisas sobre a família dela, sabe? Vamos menina, não continue a bancar a covarde. Lembre-se de que há um rapaz em Teerã suspirando por você. Vou arranjar para que você volte para Bagdad no avião dele.

A moça sorriu e corou — Estou pronta — disse com simplicidade. Ao sair em direção à porta, virou-se para ele: — O senhor disse que antes de me ver já sabia que eu não era Lady Esther Carr. Como podia ter certeza?

— Estatísticas — disse Parker Pyne.

— Estatísticas?

— É. Os dois, Lord e Lady Micheldever, tinham olhos azuis. Quando o Cônsul falou que a filha deles tinha olhos escuros e faiscantes, percebi que havia algo errado. Pessoas de olhos castanhos podem ter uma criança de olhos azuis, mas o contrário é impossível. Um fato cien­tifico, posso lhe garantir.

— O senhor é maravilhoso! — disse Muriel King.

 

Uma Pérola Valiosa

O grupo de turistas teve um dia muito longo e cansativo. Tinham saído de manhã cedo de Amman, com uma temperatura de 37° à sombra e chegaram por fim, já ao escurecer, ao acampamento situado no coração da grotesca e fantástica cidade de pedras vermelhas — Petra.

Eram sete ao todo. O Sr. Caleb P. Blundell, um bem nutrido e próspero magnata norte-americano. Seu secre­tário, um rapaz moreno e bem apessoado, chamado Jim Hurst. Sir Donald Marvel, M. P.1, um político inglês de aparência cansada. Dr. Carver, um arqueólogo idoso conhecido mundialmente. Um francês galante, Coronel Dubosc. Um Sr. Parker Pyne, que talvez não demonstras­se com tanta evidência qual era a sua profissão, mas que exalava uma atmosfera britânica de seriedade. E por fim, a Sra. Carol Blundell — linda, mimada e extrema­mente segura de si, por ser a única mulher no meio de meia dúzia de homens.

l Membro do Parlamento

 

Eles jantaram numa enorme tenda, depois de esco­lher as tendas e grutas onde iriam dormir. Falaram de política no Oriente Próximo — o inglês, com cautela; o francês, com discrição; o americano, de maneira insen­sata; o arqueólogo e o Sr. Parker Pyne, de modo nenhum. Ambos pareciam preferir o papel de ouvintes. Igualmen­te o fez Jim Hurst.

Falaram depois da cidade que acabavam de visitar.

— É romântica demais para ser descrita em pala­vras — disse Carol. — Só de pensar que aqueles... como era mesmo que se chamavam?... nabateus, vivendo aqui há tantos anos, quase que antes do início dos tempos!

— Não é tanto assim — disse Parker Pyne suave­mente. — Não é mesmo, Dr. Carver?

— Ah, é só uma questão de uns insignificantes dois mil anos... e se malfeitores podem ser considerados ro­mânticos, nesse caso acho que os nabateus são também. Eles eram um bando de salteadores abastados, eu diria, que obrigavam os viajantes a usarem as rotas deles, fa­zendo com que todas as outras fossem inseguras. Petra era uma espécie de depósito de seus lucros ilícitos.

— O senhor acha que eles eram só salteadores? — perguntou Carol. — Apenas ladrões comuns?

— Ladrões é uma palavra pouco romântica, Srta. Blundell. Um ladrão sugere um larápio insignificante. Salteador sugere alguma coisa maior.

— E o que diremos de um moderno financista? — arriscou Parker Pyne com um piscar de olhos.

— Esta é para você, papai! — disse Carol.

— Um homem que ganha dinheiro beneficia a hu­manidade — sentenciou o Sr. Blundell.

— A humanidade — murmurou Parker Pyne — é tão ingrata.

— O que é a honestidade? — perguntou o francês. — É apenas uma nuance, uma convenção. Em países di­ferentes, tem significados diferentes. Um árabe não se envergonha de roubar. Não se envergonha de mentir. Para ele, o que conta é de quem ele rouba e para quem ele mente..

— É... é este o ponto de vista deles — concordou Carver.

— O que prova a superioridade do Ocidente sobre o Oriente — disse Blundell. — Quando estas pobres cria­turas se educarem.

Sir Donald entrou indolentemente na conversa — A educação está toda errada, vocês sabem. Ensina às pessoas uma quantidade de coisas inúteis. O que eu que­ro dizer é que não há nada que altere o que você é.

— Como assim?

— O que eu quis dizer é que... uma vez ladrão, sem­pre ladrão.

Durante um minuto, fez-se um silêncio pesado. En­tão Carol começou a falar fervorosamente sobre mosqui­tos e seu pai a apoiou.

Sir Donald, um pouco intrigado, murmurou para seu vizinho, Parker Pyne: — Parece que cometi uma gafe, não acha?

— É curioso — disse Pyne.

Fosse qual fosse o embaraço momentâneo criado, uma pessoa não se dera conta dele. O arqueólogo se sen­tara calado, os olhos abstraídos e sonhadores. Quando houve uma pausa na conversa, ele falou repentina e bruscamente.

— Vocês sabem — disse — concordo com isso... pe­lo menos, do ponto de vista oposto. Um homem é fun­damentalmente honesto. .. ou então não é. Disso nin­guém escapa.

— O senhor não acredita que uma tentação súbita, por exemplo, possa transformar um homem honesto num criminoso?

— Impossível! — disse Carver.

Parker Pyne balançou a cabeça devagar — Eu não diria impossível. O senhor sabe, há tantos fatores que devem ser levados em conta. A gota dágua, por exemplo.

— O que é que o senhor chama de a "gota dágua"? — perguntou o jovem Hurst, falando pela primeira vez. Sua voz era profunda, muito agradável.

— O cérebro está ajustado para agüentar uma certa carga. O que precipita uma crise, o que transforma um homem honesto num homem desonesto... pode ser uma coisa insignificante. É por isso que muitos crimes são absurdos. A causa, nove vezes em dez, é aquela insignificância de sobrecarga, a palha que descadeira o lombo do camelo.

— É pura psicologia o que o senhor está usando, meu amigo — disse o francês.

— Se um criminoso fosse um psicólogo, que grande criminoso ele seria! — por seu tom de voz, via-se que Parker Pyne tinha gostado da idéia. — Quando pensamos que em cada dez pessoas que encontramos, pelo menos nove poderiam ser induzidas a agir da maneira que quisermos, apenas pela aplicação do estímulo cor­reto.

— Hum, explique isso! — disse Carol.

— Há os homens arrogantes. Grite mais alto do que eles. .. e eles o obedecerão. Há os homens contraditórios. Intimide-os na direção oposta à que você quer que eles si­gam. Enfim, há os impressionáveis, o tipo mais comum de todos. São as pessoas que viram um automóvel porque ouviram uma buzina; que vêem o carteiro porque ouvi­ram um barulhinho na caixa do correio; que vêem uma faca num ferimento porque se disse que alguém foi apu­nhalado; ou que ouviram uma pistola se alguém disser que um homem levou um tiro.

— Acho que ninguém me convenceria dessas coisas — disse Carol incrédula.

— Você é esperta demais para isso, queridinha — disse o pai.

— É a pura verdade o que disse — falou o francês refletindo. — A idéia preconcebida engana os próprios sentidos.

Carol bocejou — Vou para a minha gruta. Estou morta de cansada. Abbas Effêndi disse que nós temos que sair cedo amanhã. Ele vai nos levar ao local dos sa­crifícios... ou lá o que seja.

— É onde sacrificavam moças jovens e bonitas — disse Sir Donald.

— Tenha dó, espero que não me peguem! Bem, boa noite para todos. Ah, deixei cair meu brinco!

O Coronel Dubosc o apanhou e entregou a ela.

— São verdadeiros? — perguntou Sir Donald de re­pente. Ele olhava de um jeito descortês para as duas enormes pérolas solitárias em suas orelhas.

— São verdadeiros, sim — disse Carol.

— Custaram-me oitenta mil dólares — disse o pai dela com prazer. — E ela os aparafusa tão pouco que eles vivem caindo e rolando pelas mesas. Quer me arrui­nar, menina?

— Ora, papai, o senhor não ficaria arruinado se tivesse que comprar outro par — disse Carol com meiguice.

— Acho que não — concordou o pai. — Poderia lhe comprar três pares de brincos e isso não faria diferença no meu saldo no banco — deu uma olhada orgulhosa à sua volta.

— Que ótimo para o senhor! — exclamou Sir Donald.

— Bom, cavalheiros, acho que vou dormir também — disse Blundell. — Boa noite.

O jovem Hurst o seguiu.

Os outros quatro sorriram uns para os outros, como se tivessem tido o mesmo pensamento.

— Bem — falou devagar, Sr. Donald — é bom sa­ber que ele não sentiria falta desse dinheiro. Egoísta or­gulhoso! — acrescentou com rancor.

— Estes americanos têm dinheiro demais! — disse Dubosc.

— É difícil — disse Parker Pyne tranqüilo — que um homem rico seja apreciado pelos pobres.

Dubosc riu — Inveja e malícia? — sugeriu. — O se­nhor tem razão Monsieur. Todos nós queremos ser ricos, para comprar brincos de pérolas quantas vezes quiser­mos. Exceto Monsieur, talvez.

Ele fez uma reverência para o Dr. Carver, que, como sempre acontecia, estava outra vez distraído. Estava re­virando um pequeno objeto nas mãos.

— Hein? — saiu de sua abstração. — Não, não am­biciono pérolas grandes. Mas o dinheiro, o dinheiro é sem­pre útil — o tom como disse isto colocava o dinheiro em seu devido lugar. — Mas, olhem isso aqui — disse ele. — Aqui está uma coisa cem vezes mais interessante do que as pérolas.

— O que é isso?

— É um carimbo cilíndrico de hematita negra, com uma cena gravada: um deus apresentando um suplicante a um deus entronizado e mais importante. O suplicante está carregando uma criança como oferenda e o au­gusto deus que está no trono tem um lacaio que abana uma folha de palmeira para espantar as moscas. A ins­crição está muito nítida, e diz que o homem é um servo de Hammurabi, logo isso deve ter sido feito há quatro mil anos.

Apanhou um pedacinho de massa plástica no bolso, amassou-a sobre a mesa, passou um pouquinho de vaselina por cima e apertou o carimbo sobre ela, rolando de um lado para outro. Depois, com um canivete, destacou um quadrado de massa e levantou-a delicadamente da mesa.

— Estão vendo?

A cena que ele descrevera estava impressa para eles em plasticina, nítida e bem definida.

Por um momento o encantamento do passado des­ceu sobre todos eles. Então, lá de fora, a voz do Sr. Blundell se fez ouvir desafinada.

— Ei, camaradas! Vou levar minha bagagem dessa maldita gruta para uma tenda! Os maruins estão mor­dendo pra valer, Ainda não consegui pregar o olho!

— Maruins? — perguntou Sir Donald.

— Provavelmente são mosquinhas de areia — disse o Dr. Carver.

Gosto mais de maruins — disse Parker Pyne. — É um nome bem mais sugestivo.

 

O grupo partiu bem cedo na manhã seguinte, depois de várias exclamações sobre a cor e o formato das pe­dras. A cidade "cor-de-rosa" era na verdade uma extra­vagância inventada pela natureza num de seus dias mais pródigos e coloridos. O grupo andava devagar, já que o Dr. Carver caminhava com os olhos para o chão, curvando-se ocasionalmente para apanhar pequenos objetos.

— Você conhece logo um arqueólogo — disse o Co­ronel Dubosc, sorrindo. — Ele nunca olha para o céu, para as montanhas, nem para as belezas da natureza. Anda sempre de cabeça baixa, à procura...

— Sim, mas à procura de quê? — disse Carol. — O que é que o senhor está catando, Dr. Carver?

Com um ligeiro sorriso, o arqueólogo mostrou-lhe um par de fragmentos de cerâmica barrenta.

— Isso não vale nada! — exclamou Carol com des­dém.

— Cerâmica é mais interessante do que ouro — disse o Dr. Carver. Carol olhou-o incrédula.

Chegaram a uma curva fechada e passaram por dois ou três túmulos cavados nas rochas. A subida tornou-se mais penosa. Os guardas beduínos iam na frente, osci­lando indiferentes entre as encostas abruptas, sem nem olhar para baixo, para o precipício que ficava de um dos lados do caminho.

Carol ficou muito pálida. Um dos guardas inclinou-se e lhe deu a mão. Hurst deu um pulo para a frente e estendeu seu bastão como se fosse um corrimão do outro lado do precipício. Ela agradeceu com um olhar, e um minuto depois já estava a salvo num passe mais largo das pedras. Os outros continuaram lentamente. O sol agora estava alto, e já se começava a sentir calor.

Finalmente chegaram a um platô largo, quase no topo. Uma subida fácil conduzia ao cimo, um grande bloco quadrado de rocha. Blundell disse ao guia que o grupo subiria sozinho. Os beduínos se colocaram confortavelmente contra as pedras e começaram a fumar. Mais alguns minutos e todos estavam no alto da pedra. Era um local curioso, completamente escalvado. A vista era maravilhosa, abarcando o vale por todos os la­dos. Eles estavam de pé sobre um assoalho retangular de pedra, com uma pequena depressão rochosa em volta e uma espécie de altar de sacrifícios no centro.

— Um lugar divino para sacrifícios — disse Carol com entusiasmo. — Mas, puxa! Eles deviam ter um trabalhão para trazer as vítimas cá para cima!

— Havia originalmente uma espécie de estrada de pedras em ziguezague — explicou o Dr. Carver. — Vocês poderão ver os vestígios do outro lado, por onde vamos descer.

Passaram algum tempo comentando e conversando. Escutaram então um ligeiro tinido e o Dr. Carver disse: — Acho que deixou cair seu brinco outra vez, Srta. Blundell.

Carol levou a mão à orelha — Ah, deixei mesmo!

Dubosc e Hurst se puseram a procurar.

— Deve estar por aqui — disse o francês. — Não pode ter rolado pra longe, porque não há por onde rolar. O lugar é como uma caixa quadrada.

— Não pode ter caído dentro de uma fenda? — per­guntou Carol.

— Não há fenda nenhuma — disse Parker Pyne. — Você mesma pode ver. O local é absolutamente liso. Achou alguma coisa, Coronel?

— Só um pedregulho — disse Dubosc sorrindo e atirando-o longe.

Pouco a pouco, um estado de espírito diferente — um estado de tensão — foi tomando conta das pessoas. Ninguém falou nada, mas as palavras "oitenta mil dó­lares" estavam presentes na consciência de todos.

— Você tem certeza de que estava com ele, Carol? — perguntou com rispidez seu pai. — Isto é, você não terá deixado cair na subida?

— Eu estava com ele até a hora em que nós pusemos o pé aqui na plataforma — disse Carol. — Eu sei, por­que o Dr. Carver reparou que ele estava frouxo e o aper­tou para mim. Não foi, Doutor?

O Dr. Carver confirmou. Foi Sir Donald quem fez a proposta que estava na cabeça de todo mundo.

— É um assunto muito desagradável, Sr. Blundell

— disse ele. — O senhor estava nos falando a noite pas­sada sobre o valor desses brincos. Só um deles já vale uma pequena fortuna. Se esse brinco não for encontrado

— e ao que parece, não será — cada um de nós vai ficar sob suspeita.

— E de minha parte, insisto em ser revistado — adiantou-se o Coronel Dubosc. — Não estou pedindo, exi­jo isso como um direito.

— Podem me revistar também — disse Hurst. Sua voz era áspera.

— O que acham vocês? — perguntou Sir Donald, olhando em torno.

— Certamente — disse Parker Pyne.

— Uma excelente idéia — disse o Dr. Carver.

— Faço questão de ser revistado também — disse o Sr. Blundell. — Tenho minhas razões, cavalheiros, se bem que não possa declará-las.

— Como queira — disse Sir Donald, cortesmente.

— Carol, minha querida, quer descer e esperar lá com os guias?

Sem dizer uma palavra a moça os deixou. Seu rosto estava tenso e sombrio. Havia um ar de desespero no olhar que chamou a atenção de pelo menos um dos mem­bros dá comitiva, que se pôs a imaginar o que significaria aquele olhar.

A busca prosseguiu. Foi drástica e completa — e completamente inútil. Uma coisa era certa. Ninguém es­tava com o brinco. Foi um pequeno grupo abatido que empreendeu a descida e que escutou indiferente as des­crições e informações do guia.

Parker Pyne acabara de se vestir para o almoço quando apareceu uma pessoa à porta de sua tenda.

— Posso entrar, Sr. Pyne?

— É claro, minha cara jovem, é claro.

Carol entrou e sentou-se à beira da cama: Seu rosto tinha o mesmo ar sombrio que ele já notara na manhã daquele dia.

— O senhor diz que soluciona os problemas das pes­soas infelizes, não é? — perguntou ela.

— Estou de férias, Srta. Blundell. Não estou acei­tando nenhum caso.

— Bem, o senhor vai ter que aceitar este — disse a moça calmamente. — Olhe aqui, Sr. Pyne, eu sou mais infeliz do que qualquer outra pessoa neste mundo!

— O que é que a perturba? — perguntou ele. — É o caso do brinco?

— Exatamente. O senhor disse tudo. Jim Hurst não o roubou, Sr. Pyne. Eu sei que não foi ele.

— Não estou entendendo bem, Srta. Blundell. Por que alguém haveria de pensar que foi ele?

— Por causa do seu passado. Jim Hurst já roubou uma vez. Ele foi apanhado lá na nossa casa. Eu... eu fiquei com pena dele. Parecia tão moço e desesperado...

E tão bonito, pensou Parker Pyne.

— Convenci papai a lhe dar uma chance de se en­direitar. Meu pai faz tudo o que quero. Bem, ele deu uma oportunidade a Jim e Jim correspondeu. Papai passou a confiar nele e a lhe contar todos os segredos de seus ne­gócios. E no final, ele levou a melhor, ou teria levado, se isso não tivesse acontecido.

— Por que você diz "levou a melhor"... ?

— Quis dizer que eu quero me casar com Jim e ele quer se casar comigo.

— E Sir Donald?

— Sir Donald é idéia do meu pai. Não é minha. O senhor acha que eu ia querer casar com um peixe empalhado como Sir Donald?

Sem expressar seus pontos de vista a esta descrição do jovem inglês, Parker Pyne perguntou: — E o que é que Sir Donald acha disso tudo?

— Não nego que ele acharia bom para as suas terras arruinadas — disse Carol com desprezo.

Parker Pyne considerou a situação. — Gostaria de lhe fazer duas perguntas — disse ele. — A noite passa­da fizeram uma observação: "Uma vez ladrão, sempre ladrão".

A moça fez que sim com a cabeça.

— Agora percebo a razão do constrangimento que aquilo lhe causou.

— É, foi muito desagradável para Jim... para mim e para papai também. Fiquei com medo de que o rosto de Jim demonstrasse alguma coisa e então mudei de as­sunto e falei na primeira coisa que me veio à cabeça.

Parker Pyne concordou. Perguntou então — Por que seu pai insistiu em ser revistado hoje de manhã?

— Não entendeu? Eu vi logo. Papai tinha na cabeça que eu poderia pensar que tudo aquilo era uma maqui­nação contra Jim. Como o senhor pode perceber, ele está doido para que eu me case com o inglês. Bem, ele queria me mostrar que não estava fazendo nenhuma sujeira com Jim.

— Meu Deus! — disse Parker Pyne. — Isso é muito esclarecedor, mas num sentido geral, quero dizer. Não ajuda em nada o nosso inquérito particular.

— Eu não vou entregar os pontos!

— Não, não — ele ficou em silêncio por um momento e depois perguntou: — O que quer exatamente que eu faça, Srta. Carol?

— Provar que não foi Jim quem pegou aquela pé­rola.

— E suponhamos... me perdoe a franqueza... que tenha sido ele mesmo?

— Se o senhor acha que foi ele, está enganado, re­dondamente enganado.

— Sim, mas a senhorita pensou mesmo no caso? Não acha que a pérola possa ter tentado subitamente o Sr. Hurst? A sua venda resultaria numa grande soma de dinheiro... uma base para futuras especulações, diga­mos?. .. que o tornariam independente, para poder ca­sar-se, mesmo sem o consentimento de seu pai.

— Jim não faria isso — disse a moça ingenuamente. Dessa vez Parker Pyne aceitou o seu julgamento —

Bem, vou fazer o que for possível.

Ela fez que sim com a cabeça, impetuosamente, e saiu da tenda. Parker Pyne sentou-se por sua vez à beira da cama. Entregou-se a seus pensamentos. De repente, riu por entre os dentes.

— Estou ficando com o raciocínio muito lento — dis­se em voz alta.

Durante o almoço estava muito alegre. A tarde correu calma. A maior parte das pessoas dormiu.

Quando Parker Pyne entrou na tenda grande, às qua­tro e quinze da tarde, só o Dr. Carver estava lá, exami­nando alguns fragmentos de cerâmica.

— Ah! — disse Parker Pyne, puxando uma cadeira para perto da fesa. — Era o senhor mesmo que eu que­ria ver. Pode me mostrar aquele pedaço de plasticina que está sempre com o senhor?

O arqueólogo apalpou o bolso, pegou o bastão de plasticina e o entregou a Pyne.

— Não — disse Parker Pyne, afastando-o com a mão, — não é este que eu quero. Quero aquele pedacinho de ontem à noite. Para ser franco, não é a plasticina que quero, e sim o que está dentro dela.

Houve uma pausa, e o Dr. Carver disse devagar — Acho que não o estou entendendo.

— Acho que está sim — disse Parker Pyne. — Quero o brinco de pérola da Srta. Blundell.

Houve um silêncio mortal que durou um minuto. Então, o Dr. Carver enfiou a mão no bolso e tirou um pe­daço informe de plasticina.

— Muito hábil de sua parte — disse. Seu rosto es­tava inexpressivo.

— Gostaria que me contasse tudo — disse Parker Pyne. Seus dedos estavam ocupados. Com um resmungo, extraiu um brinco de pérola um pouco besuntado. — Sei, é só por curiosidade — disse ele se desculpando, — mas eu gostaria de ouvir como foi.

— Eu lhe conto — disse Carver, — se o senhor me disser como foi que descobriu que tinha sido eu. O se­nhor não viu nada, viu?

Parker Pyne balançou a cabeça — Eu só pensei — disse.

— Foi realmente acidental o início — disse Carver.

— Eu estava atrás de todo mundo hoje de manhã, e o encontrei caído no chão, na minha frente; deve ter caído da orelha da moça um pouco antes. Ela não percebeu. Ninguém tinha reparado. Apanheio-o e pus no bolso, pen­sando devolvê-lo assim que os alcançasse. Mas esqueci... Foi então que, no meio da subida, comecei a pensar. A jóia não queria dizer nada para aquela moça tola; seu pai podia comprar-lhe um outro sem ligar para o preço. E para mim queria dizer muito. A venda da pérola equi­paria uma expedição — seu rosto impassível se contraiu e pareceu voltar à vida. — O senhor sabe quais são as dificuldades que há hoje em dia para conseguirmos con­tribuições para escavações? Não, o senhor nem pode ima­ginar! A venda da pérola facilitaria tudo. Há um lugar onde eu quero escavar... lá no alto do Beluquistão. Há um capítulo inteiro do passado esperando para ser des­coberto ...

— O que se disse ontem à noite me veio à cabeça... sobre uma testemunha impressionável. Pensei que a mo­ça era desse tipo. Quando chegamos lá em cima, eu lhe disse que seu brinco estava solto. Fiz menção de apertá-lo. O que fiz na verdade foi encostar uma ponta de lápis em sua orelha. Minutos depois deixei cair uma pedrinha. Ela estava pronta a jurar que o brinco estava em sua orelha e que acabara de cair. Neste meio tempo, apertei a pérola dentro de um pedaço de massa plástica em meu bolso. E está aí a minha história. Não é muito edificante, não é? Agora é a sua vez.

— Não há mesmo uma história — disse Parker Pyne. — O senhor era o único homem que apanhava coisas do chão — foi isso o que me fez pensar. E o encontro da­quele pedregulho foi muito significativo. Me deu a idéia de seu estratagema. E então...

— Continue — disse Carver.

— Bem, ontem o senhor falou sobre honestidade com muita veemência. Protestou demais... lembra-se de Shakespeare? Me pareceu que estava querendo se conven­cer a si mesmo e depois falou de dinheiro com um certo constrangimento.

O rosto do homem à sua frente estava muito mar­cado e deprimido. — Então foi isso — disse ele. — Estou perdido. O senhor vai entregar o balangandã de volta à moça, não é? Coisa estranha, este instinto bárbaro de or­namentação. Vem desde a era paleolítica. Um dos pri­meiros instintos do sexo feminino.

— Acho que o senhor está subestimando a Srta. Carol — disse Parker Pyne. — Ela tem cabeça... e o que é mais, tem coração. Acho que não vai tocar nesse assun­to com ninguém.

— Mas certamente o pai vai falar — disse o arqueó­logo.

— Tenho certeza que não. Veja o senhor que o "pa­pai" tem lá as suas razões para ficar calado. Não há o toque dos quarenta mil dólares pelo brinco. Uma mera nota de cinco é o que ele vale.

— O senhor quer dizer que... ?

— É. A moça não sabe. Ela pensa que eles são mes­mo verdadeiros. Comecei a suspeitar ontem à noite. O Sr. Blundell falou um pouquinho demais sobre todo o dinhei­ro que tinha. Quando as coisas vão mal e alguém lhe pe­ga... bem, o melhor é enfrentar com coragem a situa­ção e blefar...

De repente o Dr. Carver fez uma careta. Parecia um trejeito de criança, muito estranho, no rosto de um ho­mem idoso — Nós somos todos uns pobres-diabos! — Exatamente — disse Parker Pyne, e fez citação:

"Mais vale a amizade do que seis vinténs."

 

Morte no Nilo

Lady Grayle estava nervosa. Desde o momento que pusera os pés a bordo do S. S. Fayoum que se quei­xava de tudo. Não gostou da sua cabina. Suportava bem o sol da manhã, mas não suportava o sol da tarde. Pamela Grayle, sua sobrinha, amàvelmente abriu mão de sua cabina no outro lado. Lady Grayle aceitou o ofe­recimento resmungando.

Falou violentamente para a Srta. MacNaughton, "sua enfermeira, por lhe ter dado o lenço errado e por não ter deixado fora da mala o seu pequeno travesseiro. Falou com impertinência com seu marido, Sir George, por lhe ter comprado o colar errado. Era em lápis-lazúli que ela queria, e não em cornalina. George era um idiota!

Sir George disse aflito: — Desculpe, querida, descul­pe. Vou trocar. Temos tempo.

Ela só não reclamava de Basil West, o secretário par­ticular de Sir George, porque nunca ninguém conseguia reclamar o que quer que fosse de Basil. Seu sorriso de­sarmava as pessoas antes que pudessem começar.

Mas o pior de tudo recaiu sobre o intérprete — um personagem imponente, ricamente vestido, incapaz de se perturbar com o que quer que fosse. Quando Lady Gray­le deu com os olhos num estranho sentado numa cadeira de vime e soube que ele era também um companheiro de viagem, sua cólera transbordou como água da torneira!

— Eles me disseram com absoluta segurança no es­critório da companhia que nós seríamos os únicos passa­geiros! É o fim da estação e não havia mais ninguém viajando!

— Tá certo, Lady — disse Mohammed. — Somente a senhora, seu grupo e um cavalheiro, mais ninguém.

— Mas me disseram que só nós estaríamos a bordo!

— Tá muito certo, Lady.

— Não está absolutamente certo! Foi uma mentira! O que é que este homem está fazendo aqui?

— Ele veio depois, Lady. Depois que a senhora com­prou passagens. Ele só resolveu ir hoje de manhã.

— Fui enganada!

— Tá tudo certo, Lady; ele é um cavalheiro muito sossegado, muito simpático, muito sossegado.

— O senhor é um idiota! Não sabe de nada. Onde está a Srta. MacNaughton? Ah, está aí? Já lhe repeti uma porção de vezes que quero que fique sempre a meu lado. Posso ter uma tontura. Ajude-me a ir para a cabina e me dê uma aspirina, e não deixe Mohammed se apro­ximar de mim. Ele vive repetindo "Tá certo, Lady", e acho que se ouvir isso mais uma vez, eu grito.

A Srta. MacNaughton lhe deu o braço sem dizer uma palavra. Era uma mulher alta, de uns trinta e cinco anos, sossegada e tranqüila à sua maneira. Levou Lady Grayle até a cabina, ajeitou-a com almofadas, deu-lhe uma aspirina e ouviu as suas queixas inconsistentes.

Lady Grayle tinha quarenta e oito anos. Sofrerá desde os dezesseis pelo fato de ter dinheiro demais. Casa­ra-se com um baronete arruinado, Sir George Grayle, há dez anos.

Era uma mulher graúda, jeitosa de corpo, mas seu rosto era rabugento e cheio de rugas, e a maquilagem superabundante que usava apenas acentuava as marcas do tempo e do seu temperamento. Seu cabelo já fora — por turno — louro platinado e castanho avermelhado, e em conseqüência disso, agora parecia cansado e sem bri­lho. Ela se enfeitava demais e usava jóias em profusão.

— Diga a Sir George — terminou ela ante a silen­ciosa e inexpressiva Srta. MacNaughton, — diga a Sir George que ele tem de mandar este homem embora do barco! Preciso de isolamento! Depois de tudo que passei ultimamente... — ela fechou os olhos.

— Sim, Lady Grayle - disse a Srta. MacNaughton, e deixou a cabina.

O ofensivo passageiro de última hora ainda estava sentado na cadeira do convés. Estava de costas para Luxor e olhava para o Rio Nilo, de onde as colinas dis­tantes surgiam douradas por cima de uma linha verde-escuro. A Srta. MacNaughton lhe lançou um olhar ao passar.

Encontrou Sir George no salão de estar. Ele tinha nas mãos um colar e o olhava duvidoso — Diga-me, Srta. MacNaughton, será que este aqui vai lhe agradar?

A Srta. MacNaughton olhou rapidamente para o lápis-lazúli — É muito lindo mesmo — disse ela.

— Será que Lady Grayle vai ficar satisfeita, hein?

— Ah, não, não acredito, Sir George. O senhor sabe que nada a satisfaz. Esta é que é a verdade. Por falar nisso, ela lhe mandou um recado: quer que o senhor se livre do passageiro extra.

O queixo de Sir George caiu — Como é que eu posso? O que é que eu vou dizer ao camarada?

— É claro que o senhor não pode fazer nada — a voz de Elsie MacNaughton era viva e terna. — Diga apenas que não podia fazer nada — acrescentou para encora­já-lo. — Tudo vai dar certo.

— Você acha que sim, hein? — O rosto dele estava pateticamente cômico.

A voz de Elsie MacNaughton foi ainda mais terna quando ela respondeu: — O senhor não deve levar estas coisas muito a sério, Sir George. É a saúde dela, o senhor sabe. Não se aborreça à toa.

— Você acha que ela está mal mesmo, enfermeira? Uma sombra passou pelo rosto da enfermeira. Havia algo estranho em sua voz quando ela respondeu: — Sim, eu... não estou gostando do estado de saúde dela. Mas, por favor, não se preocupe, Sir George. O senhor não deve ter mais aborrecimentos — ela lhe deu um sorriso amigável e saiu.

Pamela entrou, insípida e calma, vestida de branco. — Olá, Nunks.

— Alô, Pam, querida.

— O que é que o senhor tem na mão? Oh, que lindo!

— Ainda bem que você gostou. Acha que sua tia também vai gostar?

— Ela é incapaz de gostar do que quer que seja. Não sei por que o senhor se casou com essa mulher, Nunks.

Sir George ficou calado. Um panorama confuso de azar nas corridas, credores que o perseguiam e uma mu­lher bonita e dominadora desenrolou-se em seu pensa­mento.

— Coitadinho — disse Pamela. — Acho que o senhor foi obrigado. Mas ela nos inferna a vida, não é?

— Desde que ficou doente... — começou Sir George.

Pamela o interrompeu — Ela não está doente! Não é uma doença mesmo! Ela sempre faz o que quer. Sabe, quando o senhor foi a Assuan ela estava alegre como um passarinho! Aposto que a Srta. MacNaughton sabe que a doença é falsa.

— Não sei o que nós faríamos sem a Srta. Mac­Naughton — disse Sir George com um suspiro.

— É uma criatura eficiente — admitiu Pamela. — Mas com franqueza, não acho que ela seja assim tão for­midável, como o senhor, Nunks. Ah, o senhor acha que ela é formidável! Não vá dizer que não. O senhor acha que ela é maravilhosa. E de certa forma, é mesmo. Mas é uma criatura estranha. Nunca sei o que ela está pen­sando. Mesmo assim, ela manobra muito bem a gata velha.

— Olhe aqui, Pam, você não deve falar assim de sua tia. Que diabo, ela é muito boa para você!

— É, ela paga as nossas contas, não paga? Mas é um inferno de vida, lá isso é.

Sir George mudou para um assunto menos doloroso — O que é que nós vamos fazer com este sujeito que vai viajar conosco? Sua tia quer o barco só para ela.

— Bom, dessa vez não vai ser possível — disse Pamela indiferente. — O homem me parece muito apresentável. O nome dele é Parker Pyne. Acho que ele era um funcionário civil em algum departamento de estatística... se é que isso existe. Coisa estranha, parece que já ouvi esse nome antes em algum lugar. Ah, Basil! — o secretário acabara de entrar. — Onde será que já vi o nome Parker Pyne?

— Na primeira página do Times. Coluna dos Anún­cios Pessoais — replicou o rapaz prontamente. — "Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne."

— Não! Que coisa engraçada! Vamos contar a ele todos os nossos problemas durante a nossa viagem para o Cairo?

— Eu não tenho nenhum — disse Basil West. — Vamos deslizar pelo dourado Rio Nilo e ver os templos — ele olhou rapidamente para o lado de Sir George, que apanhara um jornal — juntos.

A última palavra fora apenas um sopro, mas Pamela a entendeu. Seus olhos se encontraram.

— Tem razão, Basil — disse ela com alegria. — É bom viver.

Sir George levantou-se e deixou-os. O rosto de Pa­mela ficou sombrio.

— O que foi que houve, meu bem?

— Minha detestada tia por afinidade...

— Não se aflija — disse Basil depressa. — O que importa o que ela tem na cabeça? Não a contrarie. Sabe — ele riu, — é uma boa política.

A figura bondosa de Parker Pyne entrou no salão. Atrás dele apareceu a figura pitoresca de Mohammed, pronto para recitar o seu papel.

— Senhoras, senhores, vamos começar agora. Dentro de alguns minutos vamos passar pelos templos de Karnak pelo lado direito. Vou contar a história de um menininho que queria comprar um carneiro assado para o pai...

 

Parker Pyne enxugou a testa. Acabara de voltar de uma visita ao Templo de Dendera. Montar num jumento, raciocinou ele, não era um exercício condizente com a sua figura. Ia trocar de camisa quando um bilhete colo­cado sobre sua cômoda lhe chamou a atenção. Ele o abriu. Dizia o seguinte:

 

Caro senhor,

Ficarei muito agradecida ao senhor se não for visitar o Templo de Abydos, e permanecer no barco, pois gos­taria de consultá-lo.

Sinceramente,

Ariadne Grayle

 

Surgiu um sorriso no rosto largo e afável de Parker Pyne. Apanhou uma folha de papel e tirou a tampa da caneta.

 

Cara Lady Grayle (escreveu ele),

Sinto muito desapontá-la, mas no momento estou de férias e não posso assumir nenhum compromisso pro­fissional.

 

Assinou seu nome e mandou a carta por um ser­vente. Quando terminava de se vestir, chegou outra nota.

 

Caro Sr. Parker Pyne,

Sei que o senhor está de férias, mas estou disposta a pagar cem libras por uma consulta. Sinceramente,

Ariadne Grayle

 

Parker Pyne ergueu as sobrancelhas. Bateu pensativamente nos dentes com a caneta. Ele queria muito ver Abydos, mas cem libras eram cem libras. E o Egito fora horrivelmente dispendioso, muito mais do que ele cal­culara.

 

Cara Lady Grayle (escreveu ele), Não visitarei o Templo de Abydos. Sinceramente,

J. Parker Pyne

 

A recusa de Parker Pyne em deixar o barco foi um motivo de grande tristeza para Mohammed.

— Templo muito bonito. Todos os meus cavalheiros gostam de ver aquele templo. Arranjo uma condução. Arranjo cadeira, marinheiros carregam o senhor.

Parker Pyne recusou todas estas ofertas tentadoras.

Os outros partiram. Parker Pyne estava curioso e ficou à espera no convés. Neste instante, a porta da ca­bina de Lady Grayle se abriu e ela própria saiu para o convés.

— Que tarde quente! — observou ela com delica­deza. — Vi que o senhor não quis passear, Sr. Pyne. Muito discreto de sua parte. Vamos tomar chá juntos no salão?

Parker Pyne levantou-se imediatamente e a seguiu. Ele não podia negar que estava curioso.

Pareceu-lhe que Lady Grayle sentia alguma dificul­dade em abordar o assunto. Ela mudava de conversa fre­qüentemente. Mas finalmente falou com a voz alterada.

— Sr. Pyne, o que lhe vou dizer é da mais estrita confidencia! O senhor compreende, não é?

— Naturalmente.

Ela fez uma pausa, respirou fundo. Parker Pyne es­perou.

— Quero saber se meu marido está ou não me enve­nenando.

Fosse o que fosse que estivesse esperando, não era absolutamente isso. Demonstrou claramente o seu es­panto. — É uma acusação muito séria que a senhora está fazendo, Lady Grayle.

— Bem, não sou nenhuma tola e nem nasci ontem. Há muito tempo que tenho as minhas suspeitas. George viaja, eu fico melhor. Minha comida não me faz mais mal e eu me sinto uma mulher diferente. Deve haver uma razão para isso.

— O que a senhora está dizendo é muito sério, Lady Grayle. Deve se lembrar de que não sou um detetive. Sou, se me permite, um especialista em assuntos do co­ração ...

Ela o interrompeu — Além... e não acha que isso me preocupa? Não é um policial que eu quero... posso tomar conta de mim mesma, obrigada. É apenas a cer­teza que eu quero. Eu preciso saber. Não sou uma mulher perversa, Sr. Pyne. Sou leal para aqueles que são leais comigo. Negócio é negócio. Cumpri a minha parte. Paguei as dívidas de meu marido e nunca o privei de dinheiro. Parker Pyne sentiu um ligeiro sentimento de piedade por Sir George.

— E quanto à moça, ela tem muitas roupas, vai a festas e tudo o mais que quer. Apenas a gratidão normal é o que eu peço:

— Gratidão não é algo que se possa encomendar, Lady Grayle.

— Tolice! — disse Lady Grayle. Ela continuou: — Bem, é esta a história! Descubra a verdade para mim. Quando eu souber...

Ele a olhou com curiosidade: — Quando a senhora souber, Lady Grayle, o que vai fazer?

— Aí o problema é meu — ela apertou os lábios. Parker Pyne hesitou um momento e depois disse:

— A senhora vai me perdoar, Lady Grayle, mas tenho a impressão de que não está sendo absolutamente franca comigo.

— Que absurdo! Já lhe disse exatamente o que eu queria descobrir.

— Sim, mas não por que quer descobrir.

Ele a olhou nos olhos. Ela baixou os seus primeiro.

— Acho que a razão era evidente por si mesma — disse ela.

— Não, porque eu tenho uma dúvida sobre um de­terminado ponto.

— Qual é?

— A senhora quer que as suas suspeitas sejam con­firmadas ou negadas?

— Francamente, Sr. Pyne! — a senhora se pôs de pé, trêmula de indignação.

Parker Pyne balançou a cabeça mansamente — Sim, sim — disse. — Mas com isto não respondeu à minha pergunta, não é?

— Oh! — As palavras faltaram. Ela saiu da sala bruscamente.

Sozinho, Parker Pyne ficou muito pensativo. Estava tão mergulhado em seus próprios pensamentos que teve um ligeiro sobressalto quando alguém se sentou a seu lado. Era a Srta. MacNaughton.

— Como vocês voltaram cedo — disse Parker Pyne.

— Os outros ainda não voltaram. Eu disse que es­tava com dor de cabeça e voltei sozinha — ela hesitou. — Onde está Lady Grayle?

— Acho que está descansando na sua cabina.

— Ah, então está certo. Não quero que ela saiba que eu voltei.

— Então a senhorita não voltou por causa dela?

A Srta. MacNaughton balançou a cabeça negativa­mente — Não, voltei porque queria vê-lo.

Parker Pyne ficou surpreso. Teria dito sem hesitar que a Srta. MacNaughton era totalmente capaz de cuidar de seus próprios problemas sem precisar de conselhos de ninguém. Via agora que estava errado.

— Desde que embarcamos que estou observando o senhor. Acho que o senhor é uma pessoa de muita expe­riência e capaz de julgamentos corretos. E eu preciso ur­gentemente de um conselho.

— E, no entanto... perdoe, Srta. MacNaughton... mas não me parece ser do tipo que usualmente pede con­selhos. Eu diria que é uma pessoa que se satisfaz plena­mente com o seu próprio julgamento.

— Normalmente, sim. Mas estou numa situação muito delicada — hesitou um instante. — Geralmente não falo a respeito dos meus pacientes. Mas creio que é preciso, neste caso específico. Sr. Pyne, quando deixei a Inglaterra com Lady Grayle, ela era um caso simples. Em poucas palavras, não havia nada de mal com ela. Talvez isso não fosse a exata expressão da verdade. Não tinha nada que fazer e tinha dinheiro demais, o que pro­duz uma bem definida condição patológica. Se tivesse al­guns assoalhos para esfregar todo dia e umas cinco ou seis crianças para tomar conta, Lady Grayle seria uma mulher perfeitamente sadia e muito mais feliz do que é.

Parker Pyne concordou.

— Como enfermeira de hospital, já vi uma porção de casos de nervosos. Lady Grayle gosta da sua saúde precária. Meu papel é não minimizar seus sofrimentos, ter todo o tato que puder... e me divertir o mais possível na viagem.

— Muito plausível — disse Parker Pyne.

— Mas, Sr. Pyne, as coisas já não são como antes. Os sofrimentos de que se queixa Lady Grayle agora não são mais imaginários, mas reais.

— O que quer dizer com isso?

— Comecei a suspeitar de que Lady Grayle está sendo envenenada.

— Desde quando você suspeita disso?

— Nas últimas três semanas.

— Você desconfia de... alguém em particular?

Seus olhos baixaram. Pela primeira vez, sua voz de­notava falta de sinceridade — Não.

— Acho, Srta. MacNaughton, que suspeita de uma determinada pessoa, e que esta pessoa é Sir George.

— Não, não, não acho que ele seja capaz disso! Ele é tão delicado, às vezes parece uma criança. Não poderia ser um assassino a sangue-frio — a voz dela tinha um toque de angústia.

— E, no entanto, já percebeu que sempre que Sir George se ausenta sua esposa melhora e que seus períodos de recaída correspondem à sua volta.

Ela não respondeu.

— De que veneno desconfia? Arsênico?

— Uma coisa dessas. Arsênico ou antimônio.

— E que providências tomou?

— Tenho feito o que posso para supervisionar tudo o que Lady Grayle come ou bebe.

Parker Pyne concordou com a cabeça — Acha que Lady Grayle desconfia de alguma coisa? — perguntou.

— Não, não! Tenho certeza que não.

— Aí é que a senhorita se engana — disse Parker Pyne. — Lady Grayle desconfia.

A Srta. MacNaughton demonstrou o seu espanto.

— Lady Grayle é muito mais capaz de guardar se­gredos do que imagina — disse Parker Pyne. — Ela é uma mulher que sabe o que quer e que faz o que quer.

— Isso me surpreende muito — disse a Srta. Mac­Naughton lentamente.

— Gostaria de lhe fazer mais uma pergunta, Srta. MacNaughton. Acha que Lady Grayle lhe quer bem?

— Nunca pensei nisso.

Foram interrompidos. Mohammed entrou, o rosto brilhando, as roupagens flutuando no ar.

— A Lady, ela ouviu a senhora voltar; está lhe cha­mando. Ela disse, por que não foi logo vê-la?

Elsie MacNaughton se levantou às pressas. Parker Pyne também se levantou.

— Um encontro amanhã de manhã cedo seria con­veniente? — perguntou ele.

— Sim, seria a melhor hora. Lady Grayle dorme até tarde. Neste meio tempo, vou tomar o maior cuidado.

— Acho que Lady Grayle também vai tomar cuidado. A Srta. MacNaughton desapareceu.

Parker Pyne não viu Lady Grayle até pouco antes do jantar. Ela estava sentada fumando um cigarro e quei­mava uma coisa que parecia uma carta. Nem olhou para ele, o que o fez imaginar que ainda estava ofendida.

Depois do jantar, ele jogou bridge com Sir George, Pamela e Basil. Todos pareciam um pouco distraídos e o jogo terminou cedo.

Algumas horas depois, Parker Pyne foi acordado por Mohammed.

— Senhora idosa, ela muito doente. Enfermeira, ela muito assustada. Eu tentei arranjar médico.

Parker Pyne vestiu-se correndo. Chegou à porta da cabina de Lady Grayle ao mesmo tempo que Basil West, Sir George e Pamela já estavam lá dentro. Elsie Mac­Naughton desvelava-se febrilmente em cuidados com sua paciente. No momento em que Parker Pyne chegou, a pobre senhora foi acometida por uma convulsão final. Seu corpo arqueou-se, contorceu-se e depois enrijeceu. Caiu sobre os travesseiros.

Parker Pyne puxou Pamela gentilmente para o lado de fora.

— Que coisa horrível! — a moça estava soluçando.

— Que coisa horrível! Será que ela está... ela está...?

— Morta? Sim, acho que sim.

Ele a deixou aos cuidados de Basil. Sir George saiu da cabina, com um ar atordoado.

— Nunca pensei que ela estivesse doente de verdade — murmurou ele. — Nem me passou pela cabeça.

Parker Pyne passou por ele e entrou na cabina. O rosto de Elsie MacNaughton estava branco e aba­tido. — Eles chamaram um médico? — perguntou ela.

— Sim — disse ele, e depois perguntou: —  Estriquinina?

— É. Estas convulsões são inconfundíveis. Não, não posso acreditar! — ela se deixou cair numa cadeira, cho­rando. Ele bateu levemente em seu ombro para confor­tá-la.

De repente, uma idéia passou por sua cabeça. Deixou a cabina apressadamente e foi para o salão. Havia um pequenino pedaço de papel que não fora queimado no cinzeiro. Distinguiam-se apenas algumas palavras:

 

... psula de sonhos

Queime isso!

 

— Muito bem, isso é muito interessante! — disse Parker Pyne.

 

Parker Pyne estava sentado no escritório de um alto oficial do Cairo. — E eis o caso — disse ele pensativo.

— Sim, completo. O homem deve ser um completo idiota.

— Eu não chamaria Sir George de intelectual.

— Mas mesmo assim! — O outro recapitulou: — Lady Grayle pede uma xícara de caldo de carne. A en­fermeira prepara. Então, ela pede que coloquem um pouco de sherry. Sir George traz o sherry. Duas horas depois, Lady Grayle morre com sintomas inconfundíveis de envenenamento por estriquinina. Um pacote de estriquinina é encontrado na cabina de Sir George e um outro dentro do paletó que usou para o jantar.

— Completo — disse Parker Pyne. — Por falar nisso, de onde veio toda a estriquinina?

— Há uma ligeira dúvida a respeito. A enfermeira tinha um pouco, para o caso de o coração de Lady Grayle falhar; mas ela se contradisse uma ou duas vezes. Pri­meiro disse que o seu suprimento estava intato e agora diz que não está.

— Não é de seu feitio estar em dúvidas — foi o co­mentário de Parker Pyne.

— A meu ver, os dois estão juntos na história. Acho que têm um fraco um pelo outro.

— Possivelmente, mas se a Srta. MacNaughton es­tivesse planejando o assassinato, ela o teria praticado de modo bem melhor. Ela é uma moça muito eficiente.

— Bem, o que há é isto. Na minha opinião, Sir George é o culpado. Ele não tem a mínima chance.

— Bem, bem — disse Parker Pyne, — preciso ver o que posso fazer.

Saiu à procura da linda sobrinha. Pamela estava pálida de indignação. — Nunks nunca teria feito uma coisa dessas — nunca — nunca — nunca!

— Então quem fez? — perguntou calmamente Parker Pyne.

Pamela se aproximou — Sabe o que penso? Foi ela mesma. Ela andava muito esquisita ultimamente. Vivia imaginando coisas.

— Que tipo de coisas?

— Coisas estranhas. Basil, por exemplo. Ela vivia dando indiretas de que Basil estava apaixonado por ela. E Basil e eu estamos ... nós estamos...

— Já imaginava isso — disse Parker Pyne sorrindo.

— Tudo isso a respeito de Basil era pura imagi­nação. Acho que ela estava com ódio do pobre tio Nunks e forjou essa história que eu lhe disse; depois pôs estriquinina na cabina e no bolso dele e se envenenou. Há pessoas que fazem coisas desse tipo, não é?

— Fazem — admitiu Parker Pyne. — Mas não acre­dito que Lady Grayle tenha feito isso. Se me permite dizer, ela não era desse tipo.

— E suas ilusões sobre Basil?

— Sim, gostaria de perguntar alguma coisa ao Sr. West sobre isso.

Ele encontrou o rapaz em seu quarto. Basil respon­deu a tudo com rapidez.

— Não quero parecer um tolo, mas ela tinha mesmo uma queda por mim. Era por isso que eu não queria que ela soubesse nada a respeito de Pamela. Ela teria feito Sir George me despedir.

— Então o senhor acha que a teoria da Srta. Grayle é plausível?

— Bom, acho que pode ser possível — o rapaz es­tava em dúvida.

— Mas, não o satisfaz plenamente — disse Parker Pyne devagar. — Não, nós precisamos achar uma teoria melhor — ele se perdeu em suas meditações por um ou dois minutos. — Acho que uma confissão seria o melhor — disse com vivacidade. Apresentou a sua caneta e uma folha de papel. — Quer fazer o favor de escrevê-la?

Basil West olhou espantado para ele — Eu? O que é que o senhor está insinuando?

— Meu caro rapaz... — Parker Pyne se tornou quase paternal. — Eu sei de tudo. Como foi que conquis­tou a pobre senhora. Como ela tinha escrúpulos. Como foi que se apaixonou pela sobrinha, linda e sem vintém. Como foi que arranjou a trama. Envenenamento lento. Poderia passar por morte natural por gastrenterite; se não passasse, seria imputado a Sir George, pois você teve o cuidado de coincidir os ataques com a presença dele. Então houve a sua descoberta de que a senhora suspei­tava de tudo e que falara comigo a esse respeito. Uma ação rápida! Apanhou um pouco de estriquinina da re­serva da Srta. MacNaughton. Pôs um pouco na cabina e no bolso de Sir George, e o suficiente numa cápsula, que mandou para a senhora junto a um bilhete, dizendo que era uma "cápsula de sonhos". Uma idéia romântica. Ela a tomaria assim que a enfermeira a deixasse e nin­guém saberia nada a respeito. Mas você cometeu um erro, meu caro rapaz. É inútil pedir a uma mulher que queime suas cartas. Elas nunca o fazem. Tenho toda a sua encantadora correspondência, inclusive a que fala sobre a cápsula.

Basil West estava verde de raiva. Todo o seu ar de bonitão tinha desaparecido. Ele parecia mais um rato dentro de uma ratoeira.

— Maldito! — rosnou ele. — Então o senhor sabe de tudo! Seu intrometido abelhudo!

Parker Pyne foi salvo da violência física pela chegada de testemunhas que ele cuidadosamente colocara à escuta atrás da porta semicerrada.

 

Parker Pyne estava discutindo o caso outra vez com seu amigo, o oficial importante.

— E eu não tinha a menor sombra de evidência! Apenas um fragmento quase indecifrável, com "queime isso!" escrito. Deduzi toda a história e tentei impingi-la. Funcionou. Acertei em cheio. As cartas fizeram o resto. Lady Grayle tinha queimado mesmo cada bilhete que ele lhe escrevera, mas disso ele não sabia.

Ela era mesmo uma mulher muito estranha. Fiquei intrigado quando me procurou. O que queria era que eu lhe assegurasse que seu marido a estava envenenando. Nesse caso, pretendia fugir com o jovem West. Mas ela queria agir com lealdade. Era um caráter curioso.

— Aquela pobre moça vai sofrer muito — disse o outro.

— Ela vai se refazer logo — disse Parker Pyne, in­sensível. — Ela é jovem. Estou ansioso para que Sir George consiga um pouco de felicidade antes que seja tarde demais. Ele foi tratado como um verme nestes dez anos. Agora, Elsie MacNaughton vai ser boa para ele.

Seu rosto estava risonho. Então deu um suspiro — Estou pensando em ir incógnito para a Grécia. Estou pre­cisando mesmo de umas férias!

 

O Oráculo de Delfos

a verdade, a Sra. Willard J. Peters não gostava muito da Grécia. E no fundo, ela não tinha mesmo era opinião nenhuma sobre Delfos.

Os lares espirituais da Sra. Peters eram Paris, Londres e a Riviera. Era uma mulher que gostava da vida de hotel, mas a sua idéia de quarto de hotel era um tapete macio, uma cama luxuosa, uma profusão de ar­ranjos de luz elétrica — incluindo uma lâmpada de ca­beceira sombreada — enormes quantidades de água quente e fria e um telefone ao lado da cama, de onde ela pudesse mandar buscar chá, refeições, águas minerais, coquetéis, e falar com os amigos.

No hotel de Delfos não havia nada disso. Tinha uma vista maravilhosa pelas janelas; a cama era limpa e o quarto também, caiado de branco. Havia uma cadeira, uma pia e uma cômoda com gavetas. Os banhos eram marcados com antecedência e eram decepcionantes no que dizia respeito à água quente.

Devia ser bem dizer que se esteve em Delfos, e a Sra. Peters tinha tentado mesmo se interessar pela Grécia Antiga, mas achou que era muito difícil. Suas es­tátuas pareciam inacabadas, faltando cabeças, braços e pernas. Secretamente, ela preferia o lindo anjo de már­more, inteirinho com suas asas, que tinha sido erigido sobre o túmulo do falecido Sr. Willard Peters.

Mas todas essas opiniões secretas, ela as guardava cuidadosamente para si mesma, com medo que seu filho Willard a desprezasse. Era por amor a Willard que ela estava ali, naquele quarto frio e desconfortável, com uma empregada rabugenta e um motorista desagradável.

Pois Willard (até bem pouco tempo chamado Júnior — um apelido que ele detestava) era o filho de dezoito anos da Sra. Peters e ela o adorava. Era Willard quem tinha esta estranha paixão pela arte antiga. Fora Wil­lard, magro, pálido, de óculos, dispéptico, que arrastara sua adorada mãe nesta viagem através da Grécia. Eles tinham estado em Olímpia, que a Sra. Peters achara de uma desordem triste. Ela gostara do Partenon, mas considerava Atenas uma cidade sem esperanças. E a visita a Corinto e Micenas fora uma agonia para ela e o motorista.

Delfos, pensara com tristeza a Sra. Peters, fora a úl­tima gota. Não havia absolutamente nada a fazer a não ser andar pela estrada e olhar para as ruínas. Willard passava horas inteiras ajoelhado, decifrando inscrições gregas e dizendo: — Mãe, escute só isso! Não é formi­dável? — e lia alguma coisa que parecia para a Sra. Peters a quintessência da monotonia.

Esta manhã, Willard saíra muito cedo para ver alguns mosaicos bizantinos. A Sra. Peters, sentindo ins­tintivamente que os mosaicos bizantinos a deixariam fria (tanto literal como espiritualmente), desculpou-se por não ir.

— Compreendo, mãe — dissera Willard. — A se­nhora quer ficar sozinha para se sentar no anfiteatro ou no estádio, olhar e se sentir mergulhada na antigüidade.

— É isso mesmo, queridinho — dissera a Sra. Peters.

— Eu sabia que este lugar a encantaria — disse Willard exultante, e foi embora.

Agora, com um suspiro, a Sra. Peters se preparava para levantar e tomar o seu café.

Apenas quatro outras pessoas estavam no refeitório. Uma senhora e sua filha, vestidas com um estilo muito peculiar na opinião da Sra. Peters e que discursavam sobre a arte de expressão na dança; um cavalheiro de meia-idade, gordinho, que a ajudara a tirar a mala quando descera do trem e cujo nome era Thompson, e um recém-chegado, um cavalheiro também de meia-idade, com a cabeça calva, e que chegara na tarde an­terior.

Este último personagem ficou na sala do café e a Sra. Peters logo puxou conversa com ele. Ela era uma mulher cordial e gostava de ter alguém para conversar. O Sr. Thompson tinha sido distintamente desanimador em suas maneiras (reserva britânica, dizia a Sra. Peters) e a senhora e sua filha eram muito emproadas e intelec­tuais, se bem que a moça se desse muito bem com Willard.

A Sra. Peters achou o recém-chegado uma pessoa muito amável. Era informativo sem ser intelectual. Fa­lou-lhe sobre detalhes interessantes e agradáveis da Grécia, que a fizeram sentir que os gregos eram afinal de contas pessoas reais e não apenas a história cansativa e maçante dos livros.

A Sra. Peters contou a seu novo amigo tudo sobre Willard: o rapaz inteligente que ele era e de como ele podia se chamar Cultura. Havia algo em sua figura afável e bondosa que tornava muito fácil a conversa com ele.

O que ele fazia, ou qual era o seu nome, a Sra. Peters não tinha descoberto. Além do fato de estar viajando e de um completo afastamento de seus negócios (que ne­gócios?) ele não era muito comunicativo a seu respeito.

Talvez por isso, o dia passou com mais rapidez do que o costume. A senhora, sua filha e o Sr. Thompson continuavam insociáveis. A Sra. Peters e seu novo amigo encontraram-se com o Sr. Thompson quando este último saía do museu, e ele imediatamente virou-se na direção oposta.

O novo amigo o viu afastar-se com uma ruga na testa — Não imagino quem possa ser este camarada.

A Sra. Peters lhe deu o nome do outro, mas não pôde acrescentar mais nada.

— Thompson... Thompson... Não, acho que não o conheço; e, no entanto, o seu rosto me parece familiar. Mas não consigo descobrir de onde.

A Sra. Peters aproveitou a tarde para tirar um co­chilo num lugar protegido pela sombra. O livro que levara não era o excelente tratado sobre a arte grega recomendado por seu filho, mas, pelo contrário, um outro intitulado O Mistério da Lancha do Rio. Tinha quatro as­sassinatos, três raptos e uma enorme e variada quadrilha de perigosos malfeitores. A Sra. Peters se sentiu mais animada e contente com a leitura.

Eram quatro horas da tarde quando voltou ao hotel. Ela estava segura de que Willard já devia estar chegando. Tão longe estava de maus pressentimentos que quase se esqueceu de abrir o bilhete que o dono do hotel lhe dera, dizendo ter sido' deixado por um homem desconhecido durante a tarde.

Era um envelope muito sujo. Indolentemente, ela rasgou o envelope. Ao ler as primeiras linhas, seu rosto empalideceu e ela se segurou com uma das mãos para se amparar. A letra era estranha, mas a língua empre­gada era o inglês.

 

Senhora (começava assim):

Isto é para avisar à senhora que seu filho está em nossas mãos em local de grande segurança. Nada de mal acontecerá ao distinto rapaz se a senhora obedecer nossas ordens ao pé da letra. Pedimos por ele um resgate de dez mil libras inglesas. Se falar sobre isso ao proprie­tário do hotel ou à polícia ou a qualquer outra pessoa seu filho será morto. Este aviso é para que a senhora pense bem. Amanhã a senhora receberá instruções sobre a forma como o dinheiro deverá ser entregue. Se não obe­decer, as orelhas do distinto rapaz serão cortadas e lhe serão enviadas. Se no dia seguinte insistir em não obede­cer, ele será morto. Mais uma vez — isto não é uma ameaça vã. Pense bem Kyria, — e acima de tudo — não fale nada.

Demetrius, o homem das sobrancelhas negras.

 

Seria inútil descrever o estado de espírito da pobre senhora. Por mais absurda e infantil que fosse a pro­posta, ela lhe trouxe uma atmosfera cruel de perigo.

Willard, seu garoto, seu queridinho, o sério e delicado Willard!

Iria imediatamente a, polícia; poria toda a vizinhança em polvorosa. Mas talvez se fizesse isto... estremeceu.

Então, recompondo-se, saiu à procura do proprie­tário do hotel, a única pessoa com a qual ela podia falar inglês.

— Já está ficando tarde — disse ela. — Meu filho ainda não voltou.

O simpático homenzinho sorriu para ela — Verdade. Monsieur despachou as mulas de volta. Quis voltar a pé. Já devia ter chegado aqui, mas sem dúvida deixou-se ficar pelo caminho — sorriu contente.

— Diga-me — disse a Sra. Peters bruscamente, — existem pessoas de mau caráter pelas redondezas?

Mau caráter não era um termo que estivesse dentro dos conhecimentos de inglês do homenzinho. A Sra. Peters se explicou melhor. Recebeu em resposta a cer­teza de que todos que viviam em torno de Delfos eram pessoas boas, muito sossegadas — todos sempre simpá­ticos aos estrangeiros.

As palavras tremeram em seus lábios, mas ela se forçou a engoli-las. A ameaça sinistra refreou sua língua. Podia ser um simples blefe. Mas, e se não fosse? Uma amiga sua na América tivera uma criança raptada e, por ter avisado a polícia, a criança foi morta. Estas coisas acontecem.

Ela estava quase alucinada. O que podia fazer? Dez mil libras o que era isso em comparação com a segurança de Willard? Mas como poderia ela obter tal soma? Exis­tiam dificuldades sem fim em relação à operações de câmbio e à retirada de dinheiro em espécie. Uma ordem de crédito de algumas centenas de libras era tudo o que tinha em seu poder.

Será que os bandidos compreenderiam isto? Seriam razoáveis? Esperariam?

Quando a empregada se aproximou, ela a mandou embora violentamente. Quando tocou a campainha para o jantar, a pobre senhora se viu obrigada a ir para o refeitório. Comeu mecanicamente. Não viu ninguém. Por ela, a sala podia estar vazia, que não teria reparado.

Com as frutas, uma nota foi colocada à sua frente. Ela piscou, mas a letra era completamente diferente da que temia ver — era muito inglesa, clara, profissional. Abriu-a sem muito interesse, mas achou seu conteúdo estranho:

 

Em Delfos já não se pode consultar o Oráculo, mas pode-se consultar o Sr. Parker Pyne.

 

Anexo havia um recorte de anúncio pregado ao papel e em cima da folha uma fotografia de tamanho passa­porte. Era o retrato de seu amigo careca desta manhã.

A Sra. Peters leu o anúncio duas vezes:

 

Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne.

 

Feliz? Feliz? Será que alguém já tinha sido tão in­feliz? Era como se fosse uma resposta às suas preces.

Rapidamente ela escreveu uns rabiscos numa folha de papel limpa que encontrou por acaso em sua bolsa:

Por favor, me ajude. Pode se encontrar comigo do lado de fora do hotel dentro de dez minutos?

 

Ela a fechou em um envelope e mandou o garçom entregá-la ao cavalheiro que estava na mesa perto da janela. Dez minutos depois, enrolada num abrigo de pele, pois a noite estava muito fria, a Sra. Peters saiu do hotel e se pôs a andar lentamente ao longo da estrada entre as ruínas. Parker Pyne estava à sua espera.

— Foi a providência divina que o trouxe aqui — disse a Sra. Peters quase sem fôlego. — Mas como foi que adivinhou o terrível problema que me preocupa? É isto que eu quero saber.

— O comportamento humano, minha cara senhora — disse Parker Pyne gentilmente. — Vi logo que havia algo errado, mas estava à espera que me contasse.

Ela contou tudo de uma vez. Mostrou-lhe a carta, que ele leu com a ajuda de uma pequena lanterna de bolso.

— Hum... — disse. — Um documento singular. Um documento bastante singular. Há certos pontos...

Mas a Sra. Peters não estava em estado para discutir quais os melhores pontos da carta. O que ela devia fazer a respeito de Willard? Seu frágil e querido Willard!

Parker Pyne tentou acalmá-la. Pintou um atrativo retrato da vida dos fora-da-lei na Grécia. Teriam um cuidado especial com seu prisioneiro, uma vez que ele re­presentava uma mina de ouro em potencial. Aos poucos conseguiu acalmá-la.

— Mas o que devo fazer? — lamentou-se a Sra. Peters.

— Espere até amanhã — disse Parker Pyne. — Isto é, a menos que prefira ir imediatamente à polícia.

A Sra. Peters interrompeu-o com um grito de terror. Seu adorado Willard seria assassinado imediatamente!

— O senhor acha que conseguirei ter Willard de volta são e salvo?

— Não há a menor dúvida — disse Parker Pyne para tranqüilizá-la. — A única dúvida é se a senhora con­seguirá reavê-lo sem ter de pagar as dez mil libras.

— Tudo o que eu quero é o meu menino.

— Sim, sim — disse Parker Pyne acalmando-a. — Por falar nisso, quem foi que trouxe a carta?

— Um homem que o dono do hotel não conhece. Um estranho.

— Ah! Aí está uma possibilidade! O homem que trouxer a carta amanhã pode ser seguido. O que está di­zendo para o pessoal do hotel, sobre a ausência de seu filho?

— Não tinha pensado nisso...

— Sei — Parker Pyne refletiu. — Acho que a senhora deve demonstrar com naturalidade que está alar­mada e preocupada com sua ausência. Um grupo de buscas deve sair para procurá-lo.

— Não acha que estes demônios... — ela engas­gou-se.

— Não, não. Enquanto não houver nenhuma palavra sobre o rapto ou o resgate, eles não se tornarão perigosos. Apesar de tudo, não se pode esperar que a senhora aceite o desaparecimento de seu filho sem nenhum espalhafato.

— Posso deixar por sua conta?

— É este o meu negócio — disse Parker Pyne. Caminharam de volta para o hotel, mas quase esbar­raram numa figura troncuda.

— Quem era? — perguntou rapidamente Parker Pyne.

— Acho que era o Sr. Thompson.

— Ah! — disse Parker Pyne. — Seria o Thompson? Thompson... hum...

 

A Sra. Peters pensou ao deitar-se que a idéia de Parker Pyne sobre a carta era muito boa. Fosse quem fosse que a trouxesse, tinha de estar em contato com os bandidos. Ela se sentiu consolada e adormeceu mais de­pressa do que teria imaginado.

Quando se vestia na manhã seguinte, reparou de re­pente numa coisa caída no chão perto da janela. Apa­nhou-a e — seu coração quase parou de bater. O mesmo envelope sujo e ordinário, a mesma letra odiada. Ela abriu.

 

Bom dia, senhora. Já pensou bem? Seu filho está bem e ileso — até agora. Mas nós queremos o dinheiro. Talvez não seja fácil para a senhora conseguir esta quantia, mas nós sabemos que a senhora tem um colar de brilhantes. Pedras muito boas. Ficaremos satisfeitos com ele em vez do dinheiro. A senhora, ou alguém de sua confiança, deverá trazer o colar ao estádio. De lá até onde há uma árvore perto de uma pedra grande. Olhos ficarão observando se vem apenas uma pessoa. Então o seu filhoserá trocado pelo colar. A hora será amanhã às seis horas da manhã, logo depois da aurora. Se puser a polícia em nosso encalço depois disso, nós atiraremos em seu filho quando seu carro for para a estação.

Esta é a nossa última palavra, senhora. Se não ti­vermos o colar amanhã, lhe mandaremos as orelhas de seu filho. No dia seguinte ele morrerá.

Minhas saudações, senhora. Demetrius

 

A Sra. Peters correu para se encontrar com Parker Pyne. Ele leu a carta com muita atenção.

— É verdade — perguntou ele, — o que diz sobre o colar de brilhantes?

— A pura verdade. Meu marido pagou cem mil dó­lares por ele.

— Nossos ladrões são bem informados — murmurou Parker Pyne.

— O que foi que o senhor disse?

— Estava apenas considerando alguns aspectos deste caso.

— Palavra, Sr. Pyne, nós não temos tempo para os aspectos. Eu tenho de reaver meu menino.

— Mas a senhora é uma mulher de brio, Sra. Peters. Gostaria de ser intimidada e roubada em dez mil libras? Agrada-lhe a idéia de entregar seus diamantes sem ne­nhuma reação para um bando de rufiões?

— Bem, é claro que não, se o senhor coloca as coisas dessa forma! — os brios da Sra. Peters estavam em luta com o seu sentimento maternal. — Como eu queria pegar esses sujeitos! Estes brutos covardes! Assim que conseguir meu filho de volta, Sr. Pyne, vou pôr toda a polícia para dar uma batida pelas vizinhanças. Se for necessário alugo um carro blindado para levar Willard e a mim para a estação! — a Sra. Peters estava corada e queria vingança.

— S-sim — disse Parker Pyne. — Minha cara se­nhora, é possível que eles estejam preparados para esse gesto de sua parte. Sabem que uma vez que Willard esteja de volta, nada lhe impedirá de colocar toda a redon­deza em estado de alerta.

— Bem, o que é que o senhor quer fazer? Parker Pyne sorriu — Quero tentar um plano que imaginei — olhou em torno da sala de jantar. Estava vazia e ambas as cortinas dos lados estavam fechadas. — Sra. Peters, conheço um homem em Atenas... um joalheiro. Ele é especialista em ótimos diamantes artifi­ciais ... um trabalho de primeira classe... — sua voz era quase um sussurro, agora: — Vou chamá-lo pelo te­lefone. Ele pode vir aqui hoje à tarde, trazendo uma boa coleção de pedras.

— Quer dizer que...

— Ele vai extrair os diamantes verdadeiros e colo­cará em seu lugar duplicatas falsas.

— Mas, é a coisa mais formidável que já ouvi! — a Sra. Peters olhou-o com admiração.

— Shhh! Não fale assim tão alto. Quer me fazer um favor?

— Claro,

— Não deixe ninguém se aproximar do telefone en­quanto eu falo.

A Sra. Peters concordou com a cabeça.

O telefone era no escritório do gerente. Ele o deso­cupou com gentileza, depois de ter ajudado Parker Pyne a conseguir sua chamada. Quando saiu de lá, encontrou a Sra. Peters do lado de fora.

— Estou apenas esperando o Sr. Parker Pyne — disse ela. — Vamos dar um passeio.

— Ah, sim, Madame.

O Sr. Thompson também estava no saguão. Aproxi­mou-se deles e começou a conversar com o gerente. Havia vilas para alugar em Delfos? Não? Mas devia haver al­guma perto do hotel?

— Esta pertence a um senhor grego, Monsieur. Ele não a aluga.

— E não há outras vilas?

— Há uma outra que pertence a uma senhora ame­ricana. Fica do outro lado da cidade. Está fechada agora.

E ainda há uma outra que pertence a um senhor inglês, um artista... fica na beira da encosta que dá para Itea.

A Sra. Peters entrou na conversa. A natureza lhe dera uma voz alta, e propositadamente ela falou bem alto — Ah! — disse ela, eu adoraria ter uma vila aqui! É tão singelo, tão natural. Estou simplesmente encan­tada com o lugar, não acha, Sr. Thompson? Mas é claro que o senhor também deve estar gostando, para querer alugar uma vila. É a primeira visita que faz aqui? Não diga!

Continuou com determinação, até que Parker Pyne saísse do escritório. Ele lhe dirigiu um leve sorriso de aprovação.

O Sr. Thompson desceu lentamente os degraus e se dirigiu para a estrada, onde se juntou com a mãe inte­lectual e sua filha, que pareciam estar sentindo frio nos braços nus.

Tudo correu bem. O joalheiro chegou um pouco an­tes do jantar em um ônibus cheio de outros turistas. A Sra. Peters levou o colar até o quarto dele. Ele deu um grunhido de aprovação.

— Madame pode ficar tranqüila. Vou fazer o traba­lho — ele tirou algumas ferramentas de uma pequena sacola e começou a trabalhar.

Às onze horas, Parker Pyne bateu à porta do quarto da Sra. Peters — Aqui está!

Ele lhe entregou uma bolsinha de camurça. Ela deu uma olhada: — Meus diamantes!

— Silêncio! Aqui está o colar com as pedras falsas no lugar dos diamantes. Muito bom, não ficou?

— Simplesmente maravilhoso.

— Aristopoulos é um sujeito esperto.

— Não acha que eles vão suspeitar?

— Como? Eles sabem que a senhora está com o co­lar. A senhora vai entregá-lo. Como podem desconfiar desse ardil?

— Bem, acho que é maravilhoso — disse outra vez a Sra. Peters, entregando-lhe o colar de volta. — Será que o senhor pode levá-lo para eles? Ou será que é pe­dir-lhe muito?

— É claro que posso levá-lo. Dê-me apenas a carta, para que eu possa ter a direção sem enganos. Obrigado. Agora, boa noite e bon courage. Seu filho estará aqui amanhã para tomar café.

— Tomara que sim!

— Vamos, não se preocupe. Deixe tudo por minha conta.

A Sra. Peters não passou uma boa noite. Quando dormiu, teve sonhos horríveis. Sonhos onde bandidos armados em carros blindados abriam uma fuzilaria con­tra Willard, que descia correndo de uma montanha em seus pijamas. Ficou satisfeita por acordar. Finalmente surgiu o primeiro lampejo da aurora. A Sra. Peters se levantou e se vestiu. Ficou sentada — à espera.

As sete horas bateram à sua porta. Sua garganta estava tão seca que ela quase não pôde responder.

— Entre — disse ela.

A porta abriu e entrou o Sr. Thompson. Ela olhou para ele. Faltaram-lhe as palavras. Teve um pressenti­mento sinistro de desgraça. E, entretanto, quando ele falou, sua voz era absolutamente tranqüila. Era uma voz suave, agradável.

— Bom dia, Sra. Peters — disse ele.

— Como se atreve, senhor! Como se atreve...

— A senhora deve-me desculpar esta visita tão ex­temporânea e a uma hora tão matinal — disse o Sr. Thompson. — Mas como vê, tenho um pequeno negócio a resolver.

A Sra. Peters avançou para a frente com olhos acusa­dores. — Então foi o senhor quem raptou meu menino! Não eram bandidos afinal!

— É lógico que não eram bandidos. Achei aquela parte, aliás, muito pouco convincente. No mínimo, mui­to sem gosto, eu diria.

A Sra. Peters era uma mulher de uma só idéia — Onde está o meu filho? — perguntou ela com olhos de uma onça raivosa.

— Para falar a verdade — disse o Sr. Thompson — ele está atrás da porta.

— Willard!

A porta escancarou-se. Willard, pálido, de óculos e com a barba por fazer, foi esmagado contra o coração de sua mãe. O Sr. Thompson ficou ali de pé, bondosa­mente observando a cena.

— De qualquer jeito — disse a Sra. Peters, recompondo-se de repente e voltando-se para ele, vou pôr a polícia em cima do senhor. Ah, sim, é o que eu vou fazer.

— A senhora não está entendendo nada, mãe — dis­se Willard. — Foi este senhor quem me salvou.

— Onde é que você estava?

— Numa casa sobre a encosta. A um quilômetro e meio daqui.

— E permita-me, Sra. Peters — disse o Sr. Thomp­son, — de lhe devolver o que lhe pertence.

Entregou-lhe um pequeno pacote mal amarrado em papel de embrulho. O papel caiu, revelando o colar de brilhantes...

— Não precisa guardar o outro saquinho de pedras, Sra. Peters — disse o Sr. Thompson sorrindo. — As pe­dras verdadeiras ainda estão no colar. O saquinho de camurça contém algumas ótimas pedras de imitação. Como disse o seu amigo, Aristopoulos é quase um gênio.

— Não estou entendendo nem uma palavra — Disse o Sra. Peters dèbilmente.

— Deve observar este caso do meu ponto de vista — disse o Sr. Thompson. — O que me chamou a atenção foi um determinado nome. Tomei a liberdade de seguir a senhora e seu amigo gorducho por detrás das portas e ouvi tudo... admito com franqueza... tudo sobre a sua conversa altamente interessante. Achei-a tão extra­ordinariamente sugestiva que fiz minhas confidencias ao gerente. Ele tomou nota do número que o seu possível amigo chamou pelo telefone, e fez também com que um garçom escutasse a sua conversa ontem de manhã no refeitório.

O plano funcionou às mil maravilhas. A senhora ia sendo vítima de uma dupla de vivíssimos ladrões de jóias. Eles sabiam sobre o seu colar de brilhantes; segui­ram-na até aqui; raptaram seu filho e escreveram aquela quase cômica carta dos "bandidos"; e conseguiram que a senhora confiasse no chefe e inspirador do conluio.

Depois, foi tudo muito simples. O gentil cavalheiro lhe entrega a bolsinha com os brilhantes falsos... foge com seu companheiro. Hoje de manhã, quando seu filho não aparecesse, a senhora ficaria desesperada. A ausên­cia de seu amigo levaria a crer que ele também fora rap­tado. Imagino que eles tenham arranjado alguém para ir até á vila amanhã. Esta pessoa descobriria seu filho, e aí então, os dois raciocinando juntos, talvez descobris­sem uma vaga insinuação do plano. Mas a estas horas os bandidos já teriam uma boa dianteira.

— E agora?

— Ah, agora eles estão bem seguros atrás das gra­des. Já arranjei tudo.

— Aquele bandido — disse a Sra. Peters, relembran­do furiosa as suas próprias confidencias. Aquele patife falador e sem-vergonha!

— Um camarada muito à toa — concordou o Sr. Thompson.

— Não posso imaginar como foi que descobriu — disse Willard com admiração. — Foi genial de sua parte.

O outro balançou a cabeça modestamente — Não, não — disse. — Quando se está viajando incógnito e se escuta o seu próprio nome ser proclamado por aí...

A Sra. Peters olhou-o — Quem é o senhor? — per­guntou ela inopinadamente.

— Eu sou o Sr. Parker Pyne — explicou o cavalheiro.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades