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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DIA DEPOIS DE AMANHÃ / Robert Anson Heinlein
O DIA DEPOIS DE AMANHÃ / Robert Anson Heinlein

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

- Que diabo se passa aqui? - perguntou Whitey Ardmore. Ignoraram a sua pergunta, tanto quanto tinham ignorado a sua chegada. O homem que se encontrava diante do receptor de televisão disse:

- Cale-se. Estamos a tentar ouvir. - E aumentou o volume do mesmo.

A voz do locutor dizia naquele momento: "Washington foi completamente destruída antes que o governo pudesse escapar. Com Manhattan em ruínas, não resta..."

Ouviu-se o estalido do botão de ligação do televisor quando este foi desligado.

- E é tudo - disse o homem que se encontrava junto do aparelho. - Os Estados Unidos foram aniquilados. - Depois acrescentou: - Há aí alguém que tenha um cigarro?

Não tendo obtido qualquer resposta, afastou-se do pequeno grupo que rodeava o televisor e pôs-se a vasculhar nos bolsos de uma dezena de indivíduos que se encontravam caídos sobre uma mesa na mesma sala. Não foi tarefa fácil, visto que o rigor mortis já se começara a fazer-se sentir, até que, finalmente, encontrou um maço meio cheio donde retirou um cigarro, que acendeu.

- Caramba, haverá por aí alguém que me possa dizer o que se passa? - perguntou Ardmore, com uma voz retumbante. - Que aconteceu aqui?

O homem do cigarro dignou-se, pela primeira vez, olhar para ele.

- Quem é você?

- Major Ardmore, das Informações. E quem é você?

- Coronel Calhoun, da Investigação Científica.

- Muito bem, coronel. Trago uma mensagem urgente para o comandante. Poderá alguém informá-lo da minha presença e saber se me pode receber? - E falava com mal contida impaciência.

Calhoun abanou a cabeça.

- Não me é possível fazer o que pede. Ele morreu. - E parecia sentir um prazer perverso em comunicar a noticia.

- Como?

- É como lhe digo: está morto. Todos os outros estão também mortos. Sabe, meu caro major, diante de si está tudo quanto resta do pessoal da Cidadela... ou, diria antes, do Laboratório de Investigação Científica do Departamento de Defesa. - E sorriu amargamente, enquanto abrangia com o olhar o grupo de sobreviventes que se encontrava na sala.

Ardmore levou alguns instantes a compreender e depois perguntou:

- Foram os Pan-Asiáticos?

- Não, não foram os Pan-Asiáticos; Tanto quanto sei, o inimigo não suspeita da existência da Cidadela. Não, foi coisa feita por nós... uma experiência que não resultou lá muito bem. O Dr. Ledbetter estava a desenvolver uma série de testes através dos quais tentava descobrir uma forma de...

- Isso agora não interessa, coronel. Quem é que assume o comando? Tenho de transmitir as ordens que trago.

- Comando? Comando militar? Santo Deus, homem, ainda nem sequer tivemos tempo de pensar nisso. Aguarde um momento. - Olhou em redor, analisando os presentes. - Hum... Hum... Sou o mais antigo de toda esta gente... e estão todos aqui.

Suponho que isso me dá autoridade para ficar no comando.

- Não está aqui nenhum oficial do Exército?

- Não. São todos adidos especiais. Sou eu, portanto, quem assume o comando. Avance com o seu relatório.

Ardmore olhou para os rostos da meia dúzia de homens que se encontravam na sala. Verificou que tinham seguido a conversa com ar apático. Ardmore teve dúvidas sobre se deveria transmitir a mensagem. A situação alterara-se, talvez não devesse mesmo comunicá-la...

- Recebi ordens - disse, escolhendo cuidadosamente as palavras - para informar o vosso general de que, a partir de agora, deixa de estar dependente do comando supremo. Passará a agir de forma independente e prosseguirá a guerra contra o invasor, de acordo com o seu próprio julgamento. Sabe, prosseguiu, quando há doze horas deixei Washington, já sabíamos que estávamos vencidos. O grupo de sábios que se encontrava aqui reunido na Cidadela era praticamente a última cartada que tínhamos para jogar.

Calhoun anuiu:

- Estou a ver. Um governo moribundo envia ordens a um laboratório moribundo. Zero mais zero, igual a zero. Seria tudo muito engraçado se, ao menos, conseguíssemos rir.

- Coronel!

- Sim?

- Estas são as ordens que o senhor agora tem. Que tenciona fazer?

- Que tenciono fazer? Que diabo se pode fazer? Seis homens contra quatrocentos milhões. Suponho que - acrescentou -, para cumprir religiosamente todas as alíneas do regulamento, devia autorizar a dispensa de todos os que restam do Exército dos Estados

Unidos e dar-lhes um abraço de despedida. Não vejo que outra possibilidade me reste... para além do haraquiri, talvez. É provável que você não tenha ainda percebido muito bem o que se passa. Isto que vê aqui é tudo o que resta dos Estados Unidos.

E isto escapou, porque os Pan-Asiáticos não descobriram a Cidadela.

Ardmore passou a língua pelos lábios ressequidos.

- Parece que não me exprimi com suficiente clareza. As ordens que trago são as de que a guerra deve prosseguir!

- Com quê?

Antes de responder, analisou Calhoun.

- Isso é coisa que, realmente, não é da sua conta. Tendo em conta as alterações verificadas, de acordo com o regulamento vigente em tempo de guerra e como oficial do Exército mais antigo aqui presente assumo o comando deste destacamento do Exército dos Estados Unidos!

Durante alguns segundos fez-se silêncio. Finalmente, Calhoun pôs-se em sentido, fazendo um esforço para endireitar convenientemente os ombros.

- O senhor tem absoluta razão. Quais são as suas ordens?

"Quais são as tuas ordens?", perguntou a si mesmo. "Tens de pensar rápido, Ardmore, seu pedaço de asno, se te queres safar... Ora bem, onde ias tu? Calhoun tinha razão quando te perguntou: 'Com quê?' No entanto, ele não poderia ficar parado e deixar que o que restava da organização militar se desfizesse.

"Vais ter de lhes dizer alguma coisa, e é melhor que seja alguma coisa de jeito, pelo menos que seja o suficiente para agüentá-los até te lembrares de algo melhor. Vamos, rapaz, avança com alguma coisa!"

- Penso que o melhor que temos a fazer é examinar a nova situação que se apresenta. Coronel, não se importa de reunir todo o pessoal que resta e pedir-lhe que se sente... por exemplo ali àquela mesa grande? De momento seria importante fazer isso.

- Com certeza, senhor. - Os outros, ao ouvir a ordem, acercaram-se da referida mesa. - Graham! E você... qual é o seu nome? Thomas, não é verdade? Vocês os dois levem o corpo do capitão Mac Alister para outro sítio. Ponham-no no corredor, para já.

A necessidade de deslocar os cadáveres, de forma a permitir que os vivos se pudessem sentar à volta da mesa, quebrou a atmosfera irreal em que tinham estado mergulhados, fazendo que se dessem conta do que estava a acontecer. Quando voltou a dirigir-se a Calhoun, Ardmore sentia-se mais seguro de si.

- É melhor apresentar-me aos presentes. Quero saber os seus nomes e as funções que desempenham.

Os elementos que ali estavam não ultrapassavam o pessoal necessário e suficiente para formar uma patrulha.Esperara ir ali encontrar, secretamente oculto no seio daquele ponto ignorado das montanhas Rochosas, o mais magnífico conjunto de sábios alguma vez reunidos para a execução de um trabalho. Apesar da total derrota militar das forças regulares dos Estados Unidos, restava ainda a esperança de que os duzentos sábios refugiados naquele secreto local, de cuja existência o inimigo não suspeitava e que tinham ao seu dispor todo o equipamento moderno necessário para desenvolver as suas investigações, pudessem inventar e aperfeiçoar alguma arma que eventualmente expulsasse os Pan-Asiáticos.

Por isso mesmo, Ardmore fora incumbido de dizer ao comandante geral que podia actuar conforme entendesse, deixando de estar dependente de qualquer autoridade acima dele. Mas, fosse como fosse, que poderia meia dúzia de homens fazer?

Porque eram mesmo uma escassa meia dúzia. Ali estava o Dr. Lo-well Calhoun, matemático, arrancado à vida universitária pelas exigências da guerra e nomeado coronel, e o Dr. Randall Brooks, biólogo e bioquímico, com a patente de major. Ardmore simpatizou com este; tinha um ar calmo e pacífico, deixando adivinhar, no entanto, uma força interior bastante superior àquela que normalmente é demonstrada pelos homens mais extrovertidos - seria um elemento útil e as suas opiniões seriam importantes.

Ardmore atribuiu mentalmente a Robert Wilkie a classificação "miúdo punk". Era jovem e não o disfarçava absolutamente nada, com o seu ar desajeitado e o cabelo revolto. O seu campo de investigação, como veio a saber, situava-se na radiação, ramo da física que era demasiado esotérico para que um leigo na matéria pudesse entendê-lo. Ardmore não tinha, portanto, o mínimo processo de saber se ele era ou não competente na sua especialidade. Podia até acontecer que fosse um gênio, só que a sua aparência não o demonstrava de forma alguma.

Não havia mais nenhum cientista. Eram três militares: Herman Scheer, sargento dos serviços técnicos. Já fora mecânico e fabricante de ferramentas. Na altura em que o Exército o chamara, trabalhava em instrumentos de precisão para o laboratório da Companhia Edison. As mãos morenas e quadradas, de dedos esguios, não desmentiam a sua profissão anterior. O rosto, de feições acentuadas, e o queixo, voluntarioso, levaram Ardmore a concluir que se tratava de um óptimo homem, a quem recorrer em caso de aflição; havia ainda Edward Graham, soldado de 1.a classe e cozinheiro da messe dos oficiais. A guerra afastara-o da profissão de decorador de interiores, que desempenhava com arte, para esse seu outro talento que era o de cozinhar. Ardmore tinha dificuldade em ver de que modo aquele homem poderia servir a nova situação, excepto, claro, a cozinhar, o que também era necessário; e, por fim, o último dos homens era Jeff Thomas, ajudante de Graham, soldado raso; antecedentes: nenhuns.

E a propósito dele, Calhoun explicou:

- Um dia apareceu por aqui. Tivemos de o alistar e deixá-lo cá ficar para não corrermos o risco de que se viesse a descobrir este local.

Os primeiros contactos entre Ardmore e os vários elementos do seu "comando" tinham durado alguns minutos, que aquele utilizou para pensar febrilmente naquilo que iria dizer a seguir. Tinha a noção de que era necessário encontrar alguma fórmula eficiente que fizesse restaurar a moral daquele grupo de indivíduos desesperados, algo parecido com um daqueles velhos slogans a que as pessoas estão habituadas. O facto de sempre ter trabalhado em publicidade e de estar no Exército apenas por força das circunstâncias fazia que acreditasse nos slogans.Isso trouxe-lhe à lembrança uma outra preocupação: seria aconselhável dar-lhes a conhecer que era tão profissional no jogo das armas como eles, mesmo apesar de ter a patente de oficial do Exército?

Não, isso não seria muito indicado; acima de tudo, eles tinham necessidade, naquele momento, de o olhar com a mesma fé com que os leigos olham para os profissionais.

Thomas era o último elemento da lista: Calhoun calara-se, depois de ter feito a sua apresentação. "Tens aqui a tua oportunidade, filho; melhor será que não a deites a perder!"

Então avançou - felizmente apenas lhe bastou principiar.

- Torna-se necessário que prossigamos a nossa tarefa autônoma, durante um período de tempo indefinido. Quero recordar-vos que as nossas obrigações não nos são ditadas pelos nossos superiores que morreram em Washington, mas sim pelo povo dos Estados Unidos, através da sua Constituição. Essa Constituição não foi feita prisioneira ou destruída... Isso não seria possível, dado que não se trata de um pedaço de papel, mas sim do compromisso colectivo do povo americano. Somente o povo americano nos poderá libertar desse compromisso.

Estaria ele certo? Não era advogado e não tinha a certeza daquilo que acabara de afirmar, mas sabia que era necessário que acreditassem que assim era. Voltou-se para Calhoun.

- Coronel Calhoun, está disposto a prestar-me juramento na minha qualidade de comandante deste destacamento do Exército dos Estados Unidos? - Depois acrescentou, como se, entretanto, se tivesse lembrado de outra coisa: - Penso que seria bom todos

nós renovarmos, juntos, os nossos juramentos.

As vozes ressoaram conjuntamente no compartimento, quase vazio. "Juro solenemente... cumprir os deveres do cargo que me foi conferido... e salvaguardar e defender a Constituição dos Estados Unidos... contra todos os inimigos, tanto nacionais como estrangeiros!"

"Que Deus nos ajude!"

"'Que Deus nos ajude!'"

Ardmore ficou surpreendido ao descobrir que a encenação que levara a cabo lhe fizera rolar lágrimas do próprio rosto. Então reparou que Calhoun também tinha os olhos cheios de lágrimas. Talvez a cerimónia tivesse tido um significado mais profundo do que aquele com que inicialmente contara.

- Coronel Calhoun, é claro que o senhor fica responsável pela Investigação Científica. E será o segundo-comandante, embora eu me encarregue de executar todas as tarefas ligadas ao Executivo, de modo que o senhor fique livre para poder dedicar-se aos seus trabalhos científicos. O major Brooks e o capitão Wilkie ficarão sob as suas ordens. Sheer!

- Pronto!

- Você trabalhará com o coronel Calhoun. Se este não necessitar dos seus serviços a tempo inteiro, indicar-lhe-ei mais tarde tarefas suplementares. - Graham!

- Pronto!

- Você continuará a executar as mesmas tarefas de que se ocupou até aqui.Além das mesmas, passa a ser sargento da messe, oficial de dia, cozinheiro... enfim, representará toda essa secção. Quero que me traga ainda hoje o relatório de todos os víveres existentes e em que condições se encontram os alimentos deterioráveis. Thomas dar-lhe-á apoio, mas terá de estar disponível para acorrer à chamada de qualquer membro do pessoal da investigação Científica, sempre que tal for necessário. Mesmo que isso atrase a confecção das refeições, não há outro remédio.

- Sim, senhor.

- Você, eu e Thomas desempenharemos todas as tarefas que não se relacionam directamente com as investigações e prestaremos todo o tipo de assistência que os cientistas nos solicitarem, seja em que altura for. Este esquema abrange-me, coronel - acentuou, virando-se para Calhoun. - Sempre que necessitar de auxilio de mais um par de mãos inexperientes não hesite em me chamar.

- Muito bem, major.

- Graham, você e Thomas vão ter de remover todos os cadáveres que se encontram por aí espalhados... digamos, até amanhã à noite. Coloque-os numa sala que não precise de ser utilizada e feche-a hermeticamente. Sheer mostrar-lhe-á como deve fazer.

Olhou de relance para o relógio de pulso. - São duas horas. Já almoçaram?

- Bem... eh... hoje ainda não comemos nada.

- Muito bem. Graham, daqui a vinte minutos quero-o aqui com café e sandes para todos.

- Com certeza, senhor. Vem daí, Jeff.

- É para já.

Enquanto se afastavam, Ardmore voltou-se para Calhoun:

- Entretanto, coronel, vamos até ao laboratório onde a catástrofe teve origem. Sou da opinião de que ainda é importante descobrir o que aqui se passou!

Os outros dois cientistas hesitaram; Ardmore fez-lhes sinal para que o seguissem, e o pequeno grupo saiu do compartimento.

- Você diz que não aconteceu nada de especial, que não houve nenhuma explosão, nenhuma fuga de gás... e que, apesar de tudo, eles morreram? - Encontravam-se todos junto do corpo do Dr. Ledbetter, que ainda se encontrava caído no mesmo local.

O martirizado corpo do cientista jazia no solo, todo contorcido. Ardmore desviou o olhar do mesmo e tentou compreender para que fim se destinava a aparelhagem que se encontrava naquelas instalações. Parecia não ter nada de especial, mas não conseguia descobrir nenhum aparelho que lhe fosse familiar.

- Não, não se viu mais nada além de uma pequena chama azulada que apenas durou uns escassos segundos. Ledbetter acabara de puxar esta alavanca, quando isso aconteceu. - E Calhoun apontou para a referida alavanca, sem lhe tocar. Naquele momento encontrava-se abaixada. Era uma alavanca automática, que, depois de ligada, voltava à posição inicial. - De repente, senti-me tonto, Quando recuperei os sentidos vi Ledbetter caído e dirigi-me para ele, mas já não havia nada a fazer. Estava morto... sem que o seu corpo mostrasse a mais ligeira anomalia.

- O que quer que fosse também me deitou abaixo - disse Wilkie. - Se não fosse Sheer ter-me feito respiração artificial, talvez agora não estivesse aqui.

- Você estava aqui? - perguntou Ardmore.

- Não, encontrava-me no laboratório de radiação, que fica do outro lado. O meu chefe morreu.

Ardmore franziu as sobrancelhas e puxou para si uma cadeira que estava encostada á parede. Quando ia sentar-se, ouviu-se um som que se assemelhava a um pequeno galope que se aproximava do local onde se encontravam. Viu uma diminuta sombra cinzenta passar velozmente a seus pés e desaparecer pela porta aberta. Um rato, pensou, desviando logo a atenção. Mas o Dr. Brooks ficou espantado a olhar para o vulto que por ali passara e correu em direcção á porta, gritando-lhes:

- Esperem um minuto... volto já!

- Gostaria de saber o que lhe deu... - disse Ardmore em tom interrogativo, que ninguém se apressou a esclarecer. Por momentos ocorreu-lhe que a tensão vivida nos acontecimentos que se tinham verificado começara, a final de contas, a fazer sentir os seus efeitos no pequeno e calmo biólogo.

Não chegaram a esperar um minuto para descobrir o que se passara. Brooks voltou tão precipitadamente como partira. Vinha ofegante e foi com dificuldade que falou:

- Major Ardmore! Dr., Calhoun! Senhores! - Fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Os meus ratos brancos estão vivos!

- Como? E que tem isso?

- Então não compreendem? Trata-se de um dado extremamente importante, até talvez o mais importante de todos! Nenhum dos animais que se encontrava no laboratório biológico foi atingido! Não percebem o que isto significa?

- Sim, mas... Oh! Talvez já esteja a ver o que isso quer dizer... isso significa que os ratos estavam vivos, mas que, no entanto, as pessoas que se encontravam junto deles morreram.

- Claro que é isso! Claro que é isso! - retorquiu Brooks, excitado, dirigindo-se a Ardmore.

- Hum... Uma ocorrência que mata cerca de duzentos homens, atravessando silenciosamente paredes de rocha e metal, e que, no entanto, não molesta os roedores. Nunca na minha vida ouvi falar de alguma coisa que matasse um homem mas não um rato. - Fez um sinal com a cabeça em direcção ao aparelho. - Parece que aquele aparelho tem poderes diabólicos, Calhoun.

- Pois tem - concordou Calhoun. - Temos é de aprender a manobrá-lo.

- Tem alguma dúvida sobre isso?

- Bem... não sabemos por que motivo matou e também desconhecemos a razão por que poupou seis de nós, assim como por que razão não atingiu os animais.

- Portanto... Bem, aí é que parece estar o problema. - Voltou a olhar atentamente para o aparelho, de aparência falsamente inofensiva. - Doutor, não pretendo, de forma alguma, imiscuir-me no seu trabalho, mas preferia que não voltasse a mexer naquela alavanca sem me avisar antes. - Seguidamente olhou para o corpo de Ledbetter, desviando imediatamente o olhar.

Enquanto tomava o café e comia as sandes, reconsiderou a questão mais aprofundadamente.

- Então ninguém sabe realmente qual o objectivo das investigações que Ledbetter estava a desenvolver?

- Pode-se dizer que assim é - anuiu Calhoun. - Eu costumava ajudá-lo nos aspectos matemáticos da questão, mas ele era um génio e, de certo modo, não tinha muita paciência para com as mentes não tão brilhantes. Se Einstein fosse vivo, é possível que se dessem muito bem, mas conosco ele limitava-se a falar das questões em relação às quais necessitava de apoio ou só focava os pormenores relativos a tarefas que queria passar para os seus assistentes.

- Então não sabe no que é que ele estava a trabalhar?

- Bem, sim e não. O senhor percebe alguma coisa dos aspectos relacionados com as experiências científicas?

- Caramba, claro que não!

- Bem - isso faz que seja muito difícil explicar-lhe minimamente o que se passava, major Ardmore. O Dr. Ledbetter andava a investigar a possibilidade de existência dos espectros adicionais...

- Espectros adicionais?

- Sim. Sabe, muitos dos progressos alcançados no campo da física no decorrer do último século basearam-se no espectro electromagnético, luz, rádio, raios X...

- Sim, sim, isso sei. Mas que é que são os espectros adicionais?

- É o que estou a tentar explicar-lhe - respondeu Calhoun, com um ligeiro tom de impaciência na voz. - Admite-se na ciência a possibilidade da existência de pelo menos três outros espectros completos. Sabe, existem três tipos de campos de energia no espaço, que são desconhecidos: eléctrico, magnético e gravítico, ou gravitacional. A luz, os raios X e outras radiações do mesmo tipo fazem parte do espectro electromagnético. A teoria diz-nos que é possível que exista um espectro análogo entre os campos magnético e gravitacional e entre os campos eléctrico e gravitacional e, finalmente, uma forma trifásica entre os campos eléctrico, magnético e gravitacional. Cada um deles constituiria um novo espectro, perfeitamente completo, ou seja, três novos campos de conhecimento por explorar.

"Se os mesmos existem efectivamente, devem ser dotados de propriedades tão notáveis como as do espectro electromagnético e bastante diferentes do mesmo. Mas não possuímos instrumentos que nos permitam detectar esses espectros, nem sequer sabemos ainda se eles realmente existem.

- Como deve calcular - disse Ardmore -, não passo de um leigo na matéria e não desejo contradizê-lo, mas isto parece-me um pouco como perseguir uma quimera. Estava convencido de que este laboratório se dedicava exclusivamente a investigações ligadas á elaboração de uma arma militar que pudesse opor-se aos raios vórtice e aos foguetes carregados de explosivos atómicos dos Pan-Asiáticos. Estou um tanto surpreendido por saber que o homem que vocês consideravam como o melhor cientista deste laboratório estava empenhado em descobrir coisa de cuja existência ainda não tinha a certeza e cujas propriedades eram totalmente desconhecidas. Não me parece uma coisa muito lógica.

Calhoun não respondeu; limitou-se a lançar-lhe um olhar superior e a sorrir ironicamente. Ardmore apercebeu-se de que fora precipitado e sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto.

- Sim, sim - disse apressadamente -, sei que estou errado... O que quer que Ledbetter tenha descoberto matou cerca de duzentos homens. Trata-se, portanto, de uma arma militar em potência... Mas não estaria ele apenas a fazer alguma experiência ao acaso?

- Não é bem assim - replicou Calhoun, com ar paternal. - As próprias considerações que nos levam a suspeitar da existência dos espectros adicionais permitem-nos ter uma idéia geral das suas particularidades. Tenho conhecimento de que, inicialmente, Ledbetter tentara encontrar um meio que lhe permitisse fixar os raios de tracção e pressão, que se relacionam com o espectro electromagnético, mas no decorrer destas últimas semanas parecia andar num estado de tremenda excitação, tendo alterado radicalmente a orientação das suas experiências. Não falava com ninguém; não consegui obter senão apenas algumas pistas, a partir de algumas operações que ele me pediu para fazer. No entanto - Calhoun retirou um espesso caderno de apontamentos do bolso interior do casaco-, ele costumava registrar todos os elementos que se relacionavam com as suas experiências. Devemos conseguir perceber os trabalhos que tinha em curso e talvez daí inferir a sua teoria.

O jovem Wilkie, que se encontrava sentado ao lado de Calhoun, inclinou-se para ele, perguntando de forma excitada:

- Onde é que os encontrou, doutor?

- Sobre uma das bancadas do seu laboratório. Se as tivesse procurado, também as teria encontrado lá.

Wilkie ignorou a ironia; encontrava-se já totalmente imerso na tentativa de perceber os símbolos inscritos nas folhas.

- Mas trata-se de uma fórmula de radiação...

- Claro que é - pensa que sou algum patego?

- Mas está completamente errada!

- Do seu ponto de vista pode ser que esteja, mas pode ter a certeza de que o Dr. Ledbetter não era da mesma opinião.

Lançaram-se numa discussão de que Ardmore não conseguia perceber absolutamente nada; deixou passar alguns minutos e, aproveitando uma pausa, disse:

- Senhores! Senhores! É só um momento. Estou a dar-me conta de que estou apenas aqui a interferir no vosso trabalho; por agora, já sei tudo quanto queria saber. Se bem percebi, a vossa tarefa imediata é a de se porem em dia com o trabalho do Dr. Ledbetter e descobrir a que se destina a aparelhagem que montou... sem que se matem um ao outro durante o processo. Está certo?

- Diria que é uma afirmação correcta - concordou Calhoun, de forma cuidadosa.

- Então, muito bem... mãos à obra e mantenham-me ao corrente da evolução do vosso trabalho. - Levantou-se; os restantes elementos do grupo seguiram o seu exemplo. - Oh... apenas mais uma coisa.

-Sim?

- Lembrei-me agora de uma outra coisa. Não sei se é importante ou não, mas a coisa ocorreu-me devido à importância que o Dr. Brooks pareceu dar à questão dos ratos. - Enumerou os vários aspectos, com o auxílio dos dedos. - Foram em grande número os homens que morreram; o Dr. Wilkie ficou inconsciente e quase ia morrendo, o Dr. Calhoun apenas sentiu uma impressão desagradável, o resto dos sobreviventes não sofreu, tudo indica, quaisquer efeitos estranhos, excepto o facto de constatarem que os seus companheiros morriam misteriosamente junto deles. Vejamos: não haverá aqui um indício revelador de qualquer coisa? - E aguardou, ansiosamente, que alguém lhe respondesse, receando o seu subconsciente que os cientistas considerassem a sua observação tola ou demasiado óbvia.

Calhoun ia a responder, mas o Dr. Brooks antecipou-se:

- Claro que há! Mas porque não me teria eu lembrado já disso? Realmente não sei onde hoje tenho a cabeça. Esse dado estabelece uma progressividade nos efeitos dessa actividade desconhecida. - Parou para reflectir durante alguns momentos; depois prosseguiu: - Major, gostaria que me desse autorização para examinar os cadáveres dos nossos falecidos colegas, depois do que analisarei as diferenças existentes entre eles e os sobreviventes, especialmente aqueles que mais duramente foram atingidos por essa força desconhecida... - Calou-se abruptamente, olhando interrogativamente para Wilkie.

- Não, nem pensar nisso! - protestou Wilkie. - Não pense que me vai transformar numa cobaia. Não, enquanto eu o puder impedir! - Ardmore não tinha a certeza se a preocupação demonstrada pelo homem era verdadeira ou fictícia. Interveio rapidamente.

- Os pormenores terão de ficar por vossa conta, senhores. Mas lembrem-se: não tomem nenhuma iniciativa que ponha em risco a vossa vida sem que antes me notifiquem desse facto. - Você está a ouvir, Brooks? - insistiu Wilkie.

Ardmore, naquela noite, foi para a cama sem que tivesse a mínima vontade de fazê-lo. A sua tarefa imediata fora levada a cabo; conseguira reunir os fragmentos que tinham restado daquela organização que dava pelo nome de Cidadela, incentivando-os à persecução de uma tarefa conjunta, que, quer fosse bem sucedida ou não, era coisa que naquele momento não o preocupava excessivamente, tão fatigado se encontrava. Apenas sabia que os dados estavam lançados. Dera-lhes um padrão de vida para seguirem e, ao assumir o comando das operações e as responsabilidades, dera-lhes a oportunidade de poderem descarregar as preocupações básicas sobre os seus ombros, o que lhe permitiria, em certa medida, alguma segurança emocional Isso evitaria que derivasse

mentalmente num mundo que enlouquecera.

Como viria a ser este novo mundo insano: um mundo onde a superioridade da cultura ocidental deixaria de ser um facto natural e indiscutível, um mundo onde deixaria de flutuar a bandeira das estrelas e das faixas, rivalizando com os pombos, no cimo de todos os edifícios públicos.

Esta perspectiva fê-lo recordar-se de uma outra preocupação: se tencionava manter qualquer espécie de pretenso objectivo militar, deveria organizar algo que se parecesse com um serviço de informações. Estivera demasiado ocupado em trazer os elementos sobreviventes de novo ao trabalho para que isso lhe ocorresse, mas o facto é que não podia deixar de fazê-lo - "Amanhã", disse para consigo mesmo; no entanto, não conseguiu deixar de pensar no assunto.

Possuir um serviço de informações era tão importante como construir a nova arma secreta - pode-se dizer que era ainda mais importante; por mais fantástica e poderosa que pudesse ser a arma elaborada a partir das pesquisas levadas a cabo pelo Dr. Ledbetter, não teria qualquer utilidade até saberem onde e como utilizá-la para acertar nos pontos fracos do inimigo. Os Estados Unidos sempre tinham tido, ao longo da sua história como superpotência, um serviço de informações ridiculamente inadequado.

Fora a nação mais poderosa alguma vez existente ao de cima da Terra, mas deixara-se envolver em guerras perfeitamente às cegas. A situação que se vivia naquele momento era disso um bom exemplo: "As bombas atômicas dos Pan-Asiáticos não eram mais poderosas do que as nossas, mas fomos apanhados de surpresa, não tendo tido oportunidade de utilizar uma única."

Quantas haveria em stock? Constara-lhe que havia mil. Ardmore não sabia, mas os Pan-Asiáticos deviam saber exactamente quantas existiam e onde se encontravam. O que os fizera ganhar a guerra fora o serviço de espionagem que possuíam, e não quaisquer armas secretas. Não que as armas secretas dos Pan-Asiáticos fossem de menosprezar, especialmente quando se tornava bem evidente que eram verdadeiramente "secretas". "Os nossos pseudo-serviços de espionagem não demonstraram qualquer eficácia em relação aos deles."

"O. K., Withey Ardmore, agora, o comando está nas tuas mãos! Podes organizar o serviço de espionagem que muito bem te apetecer, utilizando três cientistas meio míopes, um sargento de carreira, dois soldados cozinheiros e cá o brilhante rapaz em pessoa. Lá criticar sabes tu... Se és assim tão esperto por que motivo ainda não conseguistes enriquecer?"

Levantou-se, desejando poder tomar um soporífero que o ajudasse a dormir profundamente, mas, em vez disso, bebeu um copo de água quente e voltou para a cama.

Suponha-se que conseguiam mesmo criar uma arma verdadeiramente poderosa e inédita? O aparelho em que Ledbetter estivera a trabalhar parecia eficiente, se chegassem a descobrir como utilizá-lo. Mas depois? Um homem só não podia dirigir um navio de guerra, não poderia mesmo fazê-lo ao mar, e seis homens não eram suficientes para derrotar um império, nem mesmo que possuíssem as botas de sete léguas e o raio da morte. Que era que o velho Arquimedes dissera? "Se tivesse uma alavanca suficientemente comprida e um ponto onde apoiá-la, conseguiria levantar a Terra." Mas onde estava o ponto de apoio? Nenhuma arma é eficaz se não houver um exército para utilizá-la.

Adormeceu finalmente, sonhando que dispunha da maior alavanca alguma vez imaginada, mas que não lhe servia de nada, pois não tinha onde apoiá-la. Umas vezes ele próprio era Arquimedes, outras era Arquimedes que se encontrava ao seu lado, zombando

dele, com um aspecto que lhe fazia lembrar o dos Asiáticos.

 

Nas duas semanas que se seguiram, Ardmore andou demasiado atarefado para se preocupar com outra coisa que não fosse o trabalho que tinha em mãos. O sentido subjacente ao padrão de vida que tinham adoptado - o de que eram, de facto, uma organização militar que teria um dia de prestar contas a uma autoridade civil- fazia que se tornasse necessário cumprir os regulamentos no que se relacionava com a papelada, relatórios, registros, contas, inventários e outras coisas do género.Lá no íntimo sentia que tudo aquilo não passava de trabalho inútil e sem sentido; no entanto, como homem habituado a trabalhar na publicidade, tinha a intuição de que o homem é uma criatura que está habituada a viver através de símbolos. Naquele momento, todos os símbolos que se relacionavam com a autoridade eram importantes.

De modo que decidiu analisar aprofundadamente o livro de contas do falecido contabilista e efectuar os pagamentos que eram devidos a cada um dos que tinham sobrevivido. Assim fez, interrogando-se sobre a utilidade de tudo aquilo, depois do que distribuiu algumas tarefas administrativas simples a cada um, de modo a fazê-los sentir, indirectamente, que os velhos costumes se mantinham.

Mas era trabalho demasiado para ele. Descobriu que Jeff Thomas, o ajudante de cozinheiro, sabia escrever á máquina com relativa facilidade e tinha jeito para os números. Incumbiu-o de uma tarefa onde poderia aplicar as suas faculdades. Isso fez que Graham ficasse com mais trabalho, o que o levou a queixar-se, mas pensou que não lhe fazia mal nenhum, muito pelo contrário. Queria que todos os membros do seu destacamento se deitassem, todas as noites, completamente derreados.

Thomas teve ainda uma outra utilidade. Ardmore, sujeito a grandes pressões, tinha necessidade de alguém com quem pudesse conversar. Thomas demonstrou ser uma pessoa inteligente e de carácter passivo e calmo; quando deu por si, Ardmore descobriu que cada vez lhe falava com maior à-vontade. Não era muito próprio de um comandante dirigir-se a um soldado em termos tão informais, mas sentia, instintivamente, que Thomas não abusaria da confiança que nele depositava; além disso, necessitava de se descontrair.

Calhoun apresentou-lhe um problema que o fez libertar-se da rotina e virar a atenção para assuntos mais prementes. Calhoun viera pedir-lhe autorização para por o aparelho de Ledbetter em funcionamento, informando-o de que fizera algumas alterações da sua autoria, mas acrescentando uma outra pergunta deveras embaraçosa.

- Major Ardmore, poderá dar-me alguma idéia sobre o modo como tenciona utilizar o aparelho de Ledbetter?

Ardmore não sabia; respondeu-lhe com outra pergunta:

- Está assim tão certo de que o aparelho está já pronto para me fazer uma pergunta dessas, tão repentinamente? Se assim é, pode dar-me uma idéia dos resultados a que chegou até aqui?

- isso será um pouco difícil -respondeu Calhoun, com um ar Ligeiramente superior -, dado que não é possível utilizar termos matemáticos, os quais são, indiscutivelmente, a única forma de falar destas coisas.

- Ora, coronel, por favor - interrompeu Ardmore, mais irritado do que gostaria de admitir e inibido pela presença do soldado Thomas. - Ou você pode matar um homem com aquilo ou não pode e ou pode controlá-lo ou não pode.

- Isso é estar a simplificar demasiado as coisas - retorquiu Calhoun. - Apesar disso, pensamos que as alterações que lhe introduzimos nos vão permitir controlar os seus efeitos. As investigações do Dr. Brooks levam-nos a concluir que existe uma relação assimétrica entre a acção do aparelho e a vida orgânica sobre a qual actua, de tal forma que as características inerentes da forma de vida determinam o efeito da acção, assim como as características inerentes à acção em si. Por outras palavras, o efeito é função de todos os factores do processo, incluindo a forma de vida que se pretende atingir, do mesmo modo que a acção original...

- Calma, calma, coronel. Que significado tem tudo isso no que se refere, exclusivamente, à arma em si?

- Isto quer dizer que se pode apontá-la para dois homens e decidir qual dos dois se quer matar, se a soubermos controlar - respondeu Calhoun, bem disposto. - Pelo menos, é isso o que pensamos. Wilkie ofecereceu-se para pôr o aparelho a funcionar, fazendo uma experiência com os ratos.

Ardmore deu permissão para que a experiência se realizasse, embora sujeita a precauções e restrições. Quando Calhoun se retirou, a sua mente voltou-se novamente para o problema relacionado com a forma de utilizar a arma, se é que havia alguma forma de fazê-lo. E, para que isso se viesse a concretizar, necessitava de dados de que não dispunha. Raios! Tinha de arranjar um serviço de informações; era imprescindível que soubesse o que se passava fora da Cidadela.

Os cientistas, claro, encontravam-se fora de questão. O mesmo se passava em relação a Sheer, dado que o pessoal científico precisava do seu apoio. Graham? Não, Granam era bom cozinheiro, mas nervoso e irritável, emocionalmente instável, o último dos homens a escolher para uma tarefa perigosa de espionagem. Ficava apenas ele. Fora treinado para aquele tipo de coisas; teria de ser ele a ir.

- Mas o senhor não pode fazer isso - lembrou-lhe Thomas.

- Como? Que aconteceu?

Sem querer, pensara em voz alta. hábito que adquirira quando se encontrava sozinho ou apenas com Thomas. O comportamento do homem incentivava-o a que utilizasse esta forma de raciocínio.

- O senhor não pode abandonar o comando. Não apenas porque isso é contra o regulamento, mas, se me dá licença que dê a minha opinião, porque tudo o que conseguiu até aqui ficará reduzido a nada.

- Mas por que motivo isso aconteceria? Estaria de volta dentro de poucos dias.

- Bem, senhor, talvez a coisa se agüentasse durante alguns dias, embora eu não tenha bem a certeza disso. Quem assumiria o comando na sua ausência?

- O coronel Calhoun, evidentemente.

- Evidentemente. - E o rosto de Thomas tinha uma expressão que a ética militar lhe não permitiria pôr em palavras.

Ardmore sabia que Thomas tinha razão. Fora do seu campo de actividade habitual, Calhoun era um sujeito mal-humorado, autoritário, susceptível e convencido, isto, na opinião de Ardmore. Este tivera já de intervir para sanar problemas causados pela arrogância de Calhoun. Sheer continuava a trabalhar para este apenas porque Ardmore falara com ele, acalmando-o e fazendo um apelo ao seu sentido do dever.

A situação fazia lembrar-lhe os tempos em que trabalhara como homem de imprensa para uma famosa evangelista. Fora contratado para desempenhar as funções de director de relações públicas, mas passara dois terços do tempo a resolver os problemas levantados pelo terrível temperamento da santa múmia.

- Mas nada lhe pode garantir que conseguirá estar de volta daqui a alguns dias - insistiu Thomas. - É um grande risco; se for morto nessa missão, não tem aqui ninguém que possa tomar o seu lugar.

- Vejamos, Thomas. Isso não é verdade Nenhum homem é insubstituível.

- Não estamos em situação de ter falsas modéstias, senhor. Essa teoria poderá aplicar-se à generalidade, mas o senhor sabe que para este caso não serve. Estamos em número extremamente reduzido e o senhor é o único de entre nós que pode orientar-nos.

E, acima de tudo, o senhor é a única pessoa de quem o Dr. Calhoun aceitará ordens. E isto porque o senhor sabe como manobrá-lo. Nenhum dos outros elementos o conseguiria, nem ele seria capaz de fazê-lo a eles.

- Esse é realmente um argumento de peso, Thomas. Thomas não respondeu. Ardmore prosseguiu:

- Está bem, está bem... suponhamos que tem razão. No entanto, tenho necessidade absoluta de ter informações de carácter militar. Se não for eu a arranjá-las, quem o fará por mim?

Thomas demorou um pouco a responder. Finalmente disse, calmamente:

- Eu podia experimentar.

- Você?

Ardmore olhou pensativamente e perguntou a si mesmo porque é que não se lembrara antes de Thomas. Talvez porque não havia nada no homem que sugerisse alguma capacidade especial para uma tarefa desse tipo - isso e o facto de que era soldado raso, e não era costume dar trabalhos que implicassem acções autónomas e perigosas a soldados rasos. No entanto, talvez...

- Já alguma vez fez alguma coisa do género?

- Não, mas já passei por várias experiências que me proporcionaram conhecimentos que poderei aplicar neste caso.

- Ah, é verdade! Sheer contou-me qualquer coisa sobre isso. Antes de vir para a tropa, você era vagabundo, não era?

- Não era vagabundo - corrigiu Thomas delicadamente -, mas sim um ambulante.

- Desculpe a ignorância... Qual é a diferença?

- Um vagabundo é um detrito, um parasita, um homem que não trabalha. Um ambulante é um trabalhador itinerante, que prefere ter os movimentos livres a ter de estar preso a um local de trabalho. Trabalha para se manter, mas não se fixa em nenhum local.

- Ah, sim, compreendo. Hum... sim, e começo a aperceber-me de que é bem possível que você esteja especialmente adaptado a um trabalho de recolha de informações. Penso que passou por um tipo de vivência para a qual necessitou de um elevado nível de adaptabilidade e imaginação. Mas vejamos uma coisa, Thomas... Estou já a começar a contar consigo. Mas, se lhe vou confiar esta missão, tenho de saber mais coisas a seu respeito. Sabe, você não me parece nada um ambulante.

- E como costuma parecer um ambulante?

- Hem? Oh, bem, deixemos isso! Mas fale-me dos seus antecedentes. Como foi que se lembrou de começar a ser um trabalhador ambulante?

Ardmore apercebeu-se de que, pela primeira vez, conseguira vencer a natural reserva do homem. Thomas, após uma breve reflexão, respondeu:

- Penso que terá sido por não ter conseguido gostar de ser advogado.

-Quê?

- Exacto. Sabe, as coisas passaram-se assim: depois de ter tirado Direito, ingressei no funcionalismo público. No decurso do meu trabalho ocorreu-me a idéia de escrever a minha tese de doutoramento sobre o trabalho migrante e decidi que, para melhor me poder inteirar do problema, teria de passar pelas mesmas condições de vida em que essas pessoas viviam.

- Estou a ver. E foi nessa altura que o Exército o apanhou.

- Oh, não! - corrigiu Thomas. - Andei nessa vida mais de dez anos. Nunca cheguei a voltar. Sabe, descobri que gostava muito mais daquele tipo de vida.

Os pormenores foram rapidamente combinados. Thomas queria apenas levar como equipamento as roupas que usava quando chegou à Cidadela. Ardmore sugerira-lhe que levasse um saco-cama, mas Thomas não concordou:

- Não estaria de acordo com o resto - explicou. - Nunca precisei dessas coisas. Apenas necessito de uma boa refeição no estômago e de uma pequena quantia de dinheiro no bolso.

As instruções que Ardmore lhe deu eram de carácter bastante geral.

- Interessa-me que ouça e veja o maior número de coisas possível - disse-lhe. - Cubra a maior extensão de território que conseguir e tente estar de volta dentro de uma semana. Se até essa altura não voltar, partirei do princípio de que morreu ou foi feito prisioneiro e terei de pensar noutro plano.

"Veja se consegue descobrir uma forma de mantermos um serviço de espionagem permanente. Não lhe posso dar sugestões sobre esta questão, mas nunca deixe de ter isso em mente. Vejamos agora os pormenores: interessa-me tudo quanto se relacione com os Pan-Asiáticos, que armas possuem, como policiam o território ocupado, onde instalaram o quartel-general e, se tiver possibilidade de proceder a uma estimativa desse género, quantos são e de que forma se encontram distribuídos. Isto seria trabalho suficiente para o manter ocupado durante um ano, pelo menos, mas, mesmo assim, esteja de volta dentro de uma semana.

Ardmore ensinou a Thomas a forma de funcionamento de uma das portas exteriores da Cidadela: trautear dois compassos da melodia Yankee Doodle seria tudo quanto era preciso para fazer abrir uma porta recortada no que parecia ser uma das muitas muralhas rochosas da região - estratagema simples, mas que aos olhos dos Pan-Asiáticos passava despercebido. Depois apertaram as mãos e Ardmore desejou-lhe boa sorte.

Este deu-se conta de que Thomas não esgotara ainda o saquinho das surpresas; quando apertaram as mãos, Thomas fê-lo á maneira dos Dekes, uma associação a que pertencera. Ardmore ficou a olhar de boca aberta para a porta por onde ele desaparecera, muito atarefado a rever os seus preconceitos estabelecidos.

Quando se voltou para regressar, Calhoun encontrava-se atrás dele. Sentiu-se, de certo modo, como se tivesse sido apanhado a roubar compota do frigorífico.

- Oh, viva, doutor! - disse precipitadamente.

- Como está, major - replicou Calhoun de forma pouco natural. - Posso saber o que se passa?

- Com certeza. Enviei o tenente Thomas lá fora em missão de reconhecimento.

- Tenente?

- Exactamente: tenente. Vi-me forçado a dar-lhe uma missão que se encontrava acima do seu escalão, pelo que tive de lhe atribuir o escalão respectivo e pagar-lhe de acordo com o mesmo.

Calhoun não aprofundou a questão, mas respondeu-lhe ainda com o mesmo tom de voz insolente:

- Não sei se tem consciência de que o facto de o ter enviado ao exterior nos põe a todos em perigo... Estou bastante surpreendido com o facto de ter tomado uma decisão dessas sem nos consultar previamente.

- Lamento que pense dessa maneira, coronel -respondeu Ardmore, tentando deliberadamente não hostilizar o homem-, mas acontece que, em última instância, a decisão me cabe e que, além disso, é da máxima importância que nada desvie a vossa atenção do importantíssimo trabalho de pesquisa que estão a desenvolver. Já terminou as experiências? - perguntou rapidamente.

-Sim.

- E então?

- Os resultados foram positivos. Os ratos morreram.

- E Wilkie?

- Oh, claro que Wilkie não ficou ferido, o que estava de acordo com as minhas previsões!

Jefferson Thomas, bacharel em Artes magna cum laude, pela Universidade da Califórnia, bacharel em Direito, pela Faculdade de Direito de Harvard, trabalhador ambulante profissional, soldado e ajudante de cozinheiro e agora tenente dos serviços de espionagem do Exército dos Estados Unidos, passou a sua primeira noite fora da Cidadela a tiritar em cima de uma cama feita de caruma. No dia seguinte, de manhã bem cedo, chegou a uma fazenda.

Alimentaram-no, mas demonstraram estar ansiosos para que prosseguisse viagem.

- Nunca se sabe quando é que um daqueles pagãos aparece por aí a cheirar - desculpou-se o seu anfitrião. - E não me posso dar ao luxo de ser preso por albergar refugiados. Tenho de pensar na mulher e nos filhos.

Mas acompanhou Thomas durante uma parte do caminho, não parando de falar, deixando que a sua natural loquacidade vencesse a prudência. Parecia deliciado com aquela oportunidade de se poder lamentar da sua desgraça.

- Sabe Deus para que estou a criar os filhos que tenho. Há alturas em que penso que mais vale pôr fim à triste vida que os espera. Mas Jessie, a minha mulher, diz que é um escândalo e um pecado falar desta maneira, que Deus se encarregará de, na altura própria, fazer voltar as coisas à normalidade. Talvez isso seja verdade" mas o que sei é que é um triste destino para uma criança ter de crescer para vir a servir esses macacos. - Cuspiu para o chão. - Não é coisa própria de um americano.

- Que se passa com isso das penalidades para as pessoas que albergarem refugiados?

O rancheiro olhou-o espantado.

- Por onde tem você andado, amigo?

- Lá por cima, nas montanhas. Ainda não pus os olhos num desses estafermos.

- Mas descanse, que isso há de acontecer. Mas então não tem número, pois não? É melhor ver se arranja um. Não, isso não lhe ia valer de nada; se o tentasse, apenas faria que o metessem num campo de trabalho.

- Número?

- Número de registro Como este que tenho aqui. - Tirou do bolso um cartão plastificado e mostrou-lho. Tinha uma fotografia pouco nítida do rancheiro, as suas impressões digitais e dados relativos á profissão, estado civil, endereço, etc. Ao alto, bem em destaque, via-se um longo número. O rancheiro apontou-o com o áspero dedo. - Esta primeira parte corresponde ao meu número. Significa que o imperador me autoriza a que esteja vivo e me delicie com o ar e a luz do Sol - acrescentou, com ar amargo.

- A segunda parte é a classificação da minha série.Indica onde vivo e o que faço. Se quero ir a outro estado, tenho de requerer a alteração no cartão. Se pretendo dirigir-me a outra cidade que não aquela a que estou Ligado para fazer algumas compras, tenho de pedir uma autorização especial para um dia. Agora pergunto-lhe: acha que isto é maneira de um homem viver?

- Para mim não é - concordou Thomas. - Bem, é melhor ir andando antes que o meta em sarilhos. Obrigado pelo pequeno-almoço.

- Não tem importância. Nos tempos que correm é um prazer ajudar um americano.

Thomas pôs-se imediatamente a caminho para que o rancheiro não visse quão emocionado ficara perante a degradação a que aquele chegara. As implicações daquele cartão de registro tinham-lhe revoltado o amor à liberdade de uma forma que o simples conhecimento intelectual da derrota dos Estados Unidos não conseguira.

Durante os primeiros dois ou três dias movimentou-se lentamente, evitando os grandes centros urbanos, até ficar com uma noção dos novos costumes impostos que Lhe permitisse conduzir-se sem despertar suspeitas. Era absolutamente indispensável e urgente que se dirigisse a uma cidade a fim de poder ler os avisos afixados e descobrir uma forma de contactar com as pessoas cuja ocupação permitisse que se deslocassem frequentemente. Se o que estivesse em jogo fosse apenas a sua segurança pessoal, Thomas não teria hesitado em se arriscar mesmo sem cartão de identificação, mas recordava-se claramente da recomendação de Ardmore: "O seu dever supremo é o de voltar. Não arme em herói. Não se exponha a nenhum risco desnecessário e regresse!"

As cidades teriam de ficar para mais tarde.

Somente à noite é que Thomas se aventurava a aproximar-se das cidades, esquivando-se às patrulhas do mesmo modo que costumava fugir aos guardas dos caminhos-de-ferro. Na segunda noite conseguiu alcançar o seu primeiro objectivo, que era o de encontrar um local de reunião de trabalhadores ambulantes. Localizou-o exactamente onde previra, de acordo com o que conservara na memória, dos tempos em que fizera essa vida. Apesar de tudo, quase não o encontrava, pois a habitual fogueira estava dissimulada sob um velho bidão.

Aproximou-se do círculo reunido em redor da mesma e sentou-se sem proferir palavra, um velho costume, aguardando que olhassem para ele.

A dado momento, uma voz disse, simpaticamente:

- Mas é o Ex.mo Sr. Jeff. Caramba, Jeff, meteste-me um destes sustos! Julguei que eras um xui. Que tens feito, Jeff?

- Oh, tenho andado por aí a ver se me desenrasco!

- Quem o não anda, nos tempos que vão correndo? - retorquiu a voz. - Onde quer que vás, aqueles olhos esquisitos não te largam... - prosseguiu, referindo-se profusamente aos atributos dos progenitores e aos hábitos pessoais dos Pan-Asiáticos, de que, seguramente, não devia ter qualquer conhecimento.

- Deixa-te disso, Moe - ordenou uma outra voz. - Diga-nos que novidades traz, Jeff.

- Lamento muito -respondeu Jeff -, mas tenho andado pelas montanhas a ver se escapo ao recrutamento e a viver à custa da pesca.

- Devias ter ficado aqui. As coisas estão más por todo o lado. Ninguém se arrisca a dar trabalho a um homem que não esteja registado, e para escapares a um campo de trabalho tens de dar até a camisa que trazes no corpo. Tu nem fazes a mínima ideia do que aquilo é!

- Fala-me dos campos de trabalho - sugeriu Thomas. - Pode ser que algum dia a fome seja tanta que tente ir uns tempos para algum.

- Nem penses nisso! Ninguém poderia fazer uma coisa dessas, mesmo que estivesse a morrer de fome. - A voz fez uma pausa, como se o indivíduo a quem pertencia estivesse a meditar sobre aquele assunto, - Conhecias o Seattle Kid?

- Parece-me que sim. Aquele tipo baixote e vesgo, muito habilidoso com as mãos?

- Esse mesmo. Bem, esteve num desses campos durante cerca de uma semana e depois saiu. Não foi capaz de nos contar nada; estava completamente chalado. Vi-o na noite em que morreu. O seu corpo era uma massa informe, devido aos golpes que recebera.

Deve ter apanhado um envenenamento no sangue. - Fez uma pausa, depois do que acrescentou, pensativamente: - O cheiro que deitava era horrível.

Thomas desejaria que a conversa ficasse por ali, mas tinha de saber mais coisas.

- Quem é que eles mandam para esses campos?

- Todo o homem que não esteja ainda a trabalhar num sítio autorizado por eles. Dos 14 anos em diante. Todos aqueles que restaram do Exército, depois da derrota. Quem quer que seja apanhado sem cartão de registo.

- E isso ainda não é metade da questão - acrescentou Moe. - Devias ver o que eles fazem às mulheres que não têm trabalho. Ainda outro dia uma mulher me falou disso... uma boa pessoa; deu-me alguma coisa para comer. Contou-me o que aconteceu com uma sobrinha dela que era professora e que, quando se foi apresentar aos estafermos, eles...

- Cala-te, Moe. Já estás a falar de mais.

As informações que ia obtendo eram desconexas e fragmentadas, tanto mais que raramente tinha oportunidade de fazer perguntas directas sobre aquilo que realmente lhe interessava. Apesar de tudo, a pouco e pouco foi-se apercebendo de que o povo fora sistemática e totalmente reduzido à escravidão, tendo-se transformado hoje numa nação tão indefesa como um homem completamente paralisado, com as suas defesas destruídas, os meios de comunicação em poder total dos invasores.

Aonde quer que se deslocasse, encontrava um ressentimento latente, uma vontade firme de combater contra a tirania, mas não existia qualquer espécie de orientação ou de coordenação nem o mínimo armamento. As rebeliões esporádicas eram tão fúteis como esforços das formigas cujos formigueiros tivessem sido derrubados. Os Pan-Asiáticos podiam ser mortos, é verdade, não faltando homens para o fazer, mesmo sabendo que com isso perderiam a vida. Mas tinham as mãos atadas pela certeza absoluta das múltiplas retaliações brutais que seriam perpetradas pelos da própria espécie. Tal como acontecera com os Judeus na Alemanha, antes da última grande confrontação na Europa, a bravura não era o suficiente, pois qualquer acto de violência contra os tiranos seria pago por outros homens, mulheres e crianças.

De todas as misérias que ouvia e via, o que ainda o deixava mais entristecido era a constatação de que o inimigo planeava eliminar totalmente a cultura americana. As escolas estavam encerradas. Não era permitido imprimir qualquer palavra em inglês.

Estavam já a prever-se tempos futuros, talvez já daí a uma geração, em que o inglês passaria a ser uma linguagem iliterada, apenas utilizada na forma oral por escravos indefesos, que nunca teriam capacidade de se revoltar, porque não disporiam de qualquer forma de comunicação.

Era impossível fazer um cálculo racional sobre o número de asiáticos que naquele momento se encontravam nos Estados Unidos. Dizia-se que todos os dias chegavam transportes à costa ocidental com milhares de funcionários civis, muitos dos quais veteranos que já tinham servido no esmagamento da índia. Era difícil saber se estes homens vinham engrossar ou não as fileiras das forças armadas que tinham conquistado o país e agora o policiavam, mas era evidente que vinham substituir os poucos funcionários brancos que ainda prestavam serviço na administração civil, sob a mira das pistolas. Quando esses funcionários fossem "eliminados", seria ainda mais difícil organizar a resistência.

Foi num acampamento de trabalhadores ambulantes que Thomas descobriu de que forma poderia penetrar nas cidades.

Finny - sobrenome por que era conhecido - não era propriamente um cavaleiro das estradas, mas sim um homem que procurara abrigo entre eles e que dava a sua retribuição através do seu talento. Era um velho anarquista que servira o seu velho conceito de liberdade gravando excelentes notas de banco, sem se preocupar com a formalidade de pedir autorização ao departamento do Tesouro para fazê-lo.Alguns diziam que o seu nome fora Phineas; outros ligavam o seu diminutivo ao facto da nítida preferência que tivera para manufacturar notas de cinco dólares - "suficientemente grandes para serem úteis; não excessiva mente grandes para despertarem suspeitas".

A pedido de um dos membros daquela comunidade, fez um cartão de registo para Thomas. Enquanto este observava o seu trabalho, ele ia falando:

- A única coisa com que temos de nos preocupar verdadeiramente é com o número de registo, filho. A maior parte dos Pan-Asiáticos que te aparecerem à frente não sabem uma palavra de inglês; portanto, não interessa particularmente o que ponhamos aqui em relação a ti. Provavelmente, a frase da canção "Mana tinha um cordeirinho [...]" serve perfeitamente, Acontece o mesmo com a fotografia. Para eles, todos os homens brancos são iguais. - Retirou uma mão-cheia de fotografias variadas da sua mochila e observou-as de perto, através dos grossos óculos. - Toma, escolhe uma que se pareça minimamente contigo para a pormos no cartão. Agora em relação ao número...

As mãos do velhote, que até ali tinham parecido trémulas e quase entorpecidas, ficaram subitamente firmes e precisas quando desenhou no cartão, a tinta-da-china, caracteres de impressão extraordinariamente semelhantes aos das máquinas. E fê-lo sem equipamento apropriado, sem instrumentos de precisão, nas condições mais rudimentares. Thomas compreendeu então por que motivo as obras-primas do ancião tinham causado tantas dores de cabeça aos empregados bancários.

- Já está! - anunciou. - Dei-te um número de série que demonstra que foste dos primeiros a registar-se e um número de classificação que te autoriza a viajar. Aqui também consta que és fisicamente inapto para o trabalho manual e que podes ocupar-te de trabalhos eventuais ou mendigar. Para eles é a mesma coisa.

- Estou-lhe profundamente agradecido - disse Thomas. - Vejamos... hum... quanto lhe devo por isto.

A reacção que Finny teve fê-lo sentir-se como se tivesse dito alguma imoralidade.

- Meu filho, nem sequer fale em pagamento! O dinheiro é uma coisa má... é por causa dele que o homem escraviza o seu irmão.

- Peço-lhe imensas desculpas, senhor - disse Thomas com sinceridade. - Mesmo assim, gostaria de lhe ser prestável de algum modo.

- isso já é outra coisa. Ajuda o teu irmão quando puderes, e quando precisares de auxílio tê-lo-ás.

Thomas achou que a filosofia do ancião era confusa e impraticável, mas conversou com ele durante algum tempo, dado que parecia saber mais sobre os Pan-Asiáticos que qualquer outra pessoa que tivesse já encontrado. Finny parecia não ter qualquer medo deles e confiava totalmente nas suas capacidades para se desembaraçar deles quando tal fosse necessário, De todas as pessoas que Thomas já contactara, Finny parecia a que menos fora perturbada pelas alterações verificadas - de facto, parecia até não

se preocupar absolutamente nada com as novas circunstâncias que se viviam, não exprimindo, em relação ás mesmas, qualquer sentimento de ódio ou amargura. Esta constatação parecia difícil de aceitar da parte de um homem de coração tão generoso como

Finny, mas deu-se conta de que o facto de o anarquista considerar todos os governos mãos e achar que todos os homens eram irmãos fazia que encarasse a invasão de forma superficial. Quando se olhava para os Pan-Asiáticos através dos olhos de Finny, não surgia ódio; eram apenas espíritos mais errados do que os outros, de excessos mais deploráveis.

Thomas não os via com a mesma olímpica serenidade. Os Pan-Asiáticos eram os assassinos e os opressores de um povo outrora livre. Enquanto não atravessassem o Pacífico de volta às suas terras, a única maneira de suportá-los era vê-los mortos. Se a Ásia estava superpovoada, eles que fizessem controlo de natalidade.

Apesar de tudo, a atitude desprendida e a ausência de animosidade de Finny possibilitaram uma apreciação mais aprofundada da natureza do problema por parte de Thomas.

- Não cometas o erro de pensar que os Pan-Asiáticos são maus, porque não o são; mas são diferentes. Por detrás da sua arrogância esconde-se um complexo racial uma paranóia de massas, que os leva a provar a eles próprios, depois de nos provarem a nós, que são tão bons como os Brancos e até superiores. Lembra-te sempre disto, filho: aquilo que eles mais desejam na vida são os sinais exteriores de respeito.

- Mas por que motivo têm complexos de inferioridade em relação a nós? Já há mais de duas gerações que não tínhamos qualquer contacto com eles... desde o Pacto de Não-Ingerência.

- Pensas que a memória racial é assim tão curta? As sementes que conduziram a esta situação foram lançadas há muito tempo atrás, no século XIX, com os incidentes então verificados e que conduziram à derrota do Japão. Agora, esses incidentes estão a ser pagos com a morte de milhares de americanos.

- Mas os Pan-Asiáticos não são japoneses.

- Não, mas também não são chineses. Constituem uma mistura de raças, forte, orgulhosa e prolifera. Do ponto de vista americano, eles têm os vícios de ambas as raças e não possuem as qualidades de qualquer delas. Mas do meu ponto de vista são apenas seres humanos que caíram nas malhas da velha teoria que considera o Estado como entidade máxima. "Ich habe einen Kameraden." Uma vez compreendida a natureza da... - Prosseguiu a longa dissertação, que era uma mistura de Rousseau, Rocker, Thoreau e outros. Thomas achou-a inspirada, mas pouco convincente.

Mas a conversa que Thomas teve com Finny foi extremamente útil, permitindo-lhe que compreendesse aquilo que tinham de enfrentar. O Pacto de Não-Ingerência mantivera os Americanos afastados de qualquer conhecimento em relação aos Pan-Asiáticos.

Thomas franziu a testa, num esforço para se recordar do que sabia sobre o assunto.

Na altura em que esses acontecimentos se tinham verificado, o Pacto fora o reconhecimento de jure de uma situação de facto. A sovietização da Ásia obrigara os ocidentais, em especial os Americanos, a deixar aquele continente, de forma mais eficaz do que o fizera a Acta do Congresso. As razões obscuras que tinham levado o Congresso então vigente a ratificar oficialmente uma realidade, confirmando apenas aquilo que os comissários do povo já tinham feito, eram uma coisa que deixava Thomas espantado; o Congresso, possivelmente, achara que era mais simples ignorar a Ásia Vermelha do que promover uma guerra contra a mesma.

A política adjacente à Acta, certamente, parecera ser a mais justa durante mais de metade de um século; não houvera guerra. Os proponentes dessa medida tinham continuado a defender a teoria de que, mesmo para a União Soviética, a China era demasiado indigesta e que, enquanto essa situação se mantivesse, os Estados Unidos nada tinham a recear. Enquanto assim foi, não se tinham saído mal - "mas, em conseqüência do Pacto de Não-Ingerência, estivemos de costas voltadas, enquanto a China digeria a União Soviética... fazendo que a América viesse a ter de enfrentar um sistema ainda mais estranho à forma de pensamento ocidental do que o fora o soviético".

Com a sua coragem razoavelmente reforçada pelo falso cartão de registo e com os ensinamentos de Finny quanto à etiqueta de sobrevivência que era indispensável manter em relação aos invasores, Thomas aventurou-se até uma cidade medianamente populosa.

A perícia de Finny foi, imediatamente, posta à prova.

Parara á esquina de uma rua para ler um aviso que estava afixado numa parede, Era uma ordem dirigida a todos os Americanos para que todos os dias, às oito da tarde, ligassem os seus aparelhos de televisão, de modo a poderem receber as ordens que lhes estavam destinadas. Não era novidade para ele; a ordem fora dada havia já alguns dias e chegara-lhe aos ouvidos. Ia virar-se para se afastar, quando sentiu uma dolorosa chicotada nas costas. Rodou rapidamente sobre os calcanhares e viu-se diante de um pan-asiático que envergava o uniforme verde da administração civil e que tinha um chicote na mão.

- Afasta-te do caminho, rapaz!

Falava em inglês, mas com uma entoação cantante, que diferia totalmente do acento normal dos Americanos.

Thomas ajoelhou-se imediatamente diante do agressor, recordando-se daquilo que lhe tinham dito sobre os gostos dos mesmos -"eles gostam de olhar para baixo e não para cima" -, e juntou as mãos como era costume. Inclinou a cabeça e respondeu:

- O mestre ordena; o servo obedece.

- Assim está melhor - reconheceu o asiático, aparentemente mais calmo. - O teu cartão.

A pronúncia do homem não era má, mas Thomas não compreendeu imediatamente o pedido, possivelmente porque o impacto emocional da sua experiência no papel de escravo era muito mais desmedido do que esperara. Dizer que era com dificuldade que continha

a raiva que lhe ia na alma era estar a minimizar a realidade.

O chicote atingiu-lhe o rosto.

- O teu bilhete!

Thomas mostrou o cartão de registro. O tempo que o oriental levou a examiná-lo permitiu que se recompusesse minimamente, Naquele mo mento não estava muito preocupado em saber se o cartão passaria ou não; se houvesse sarilho, daria conta daquele tipo com as próprias mãos.

Mas tudo correu bem. O asiático devolveu lho com um resmungo e prosseguiu o seu caminho, sem suspeitar que a morte lhe passara por perto.

Chegou à conclusão de que pouco mais havia a descobrir nas cidades do que aquilo que já soubera nos acampamentos de trabalhadores itinerantes. Ali tinha apenas a oportunidade de calcular por si próprio até que ponto os governantes governavam e de ver in loco que as escolas estavam fechadas e que os jornais tinham desaparecido. Reparou, curioso, que as igrejas ainda se encontravam em funcionamento, embora fosse proibido qualquer outro ajuntamento de homens brancos.

Mas o que lhe meteu mais impressão foi o ar apático das pessoas e a quietude das crianças, isso fê-lo preferir dormir nos acampamentos, e não nas cidades.

Ao regressar a um dos acampamentos, Thomas deu de caras com um velho amigo. Frank Roosevelt Mitsui era tão americano como Will Rogers e muito mais americano do que o aristocrata inglês George Washington. Seu avô trouxera a sua avó, meio chinesa e meio havaiana, para Los Angeles, onde abriu uma loja de plantas e flores e criou uma série de criancinhas amarelas, crianças que nem eram chinesas nem japonesas, nem se ralavam com isso.

O pai de Frank conhecera sua mãe, Thelma Wang, que era mais caucasiana do que chinesa, no clube internacional da Universidade da Califórnia do Sul. Levou-a para South Valley e instalou-a num bonito rancho onde Frank foi criado.

Jeff Thomas apanhara alface e melão para Frank Mitsui durante três estações e sempre o considerara um bom patrão. Tornara-se amigo quase íntimo do seu patrão, devido ao amor que tinha pelo rebanho de crianças morenas que constituíam a colheita mais importante de Frank. Mas o deparar com aquele rosto amarelo no meio de um acampamento de trabalhadores itinerantes fez que Thomas franzisse os sobrolhos e quase não o reconhecesse.

Foi um encontro estranho. Embora conhecesse Frank perfeitamente, Thomas não estava com predisposição para confiar num oriental.

Foram os olhos de Frank que o convenceram; tinham uma expressão torturada que era ainda mais intensa do que aquela que se podia ver em olhos de brancos, uma expressão que não se suavizou nem quando sorriu e apertou a mão que Thomas lhe estendia.

- Bem, Frank - principiou Jeff, de improviso -. quem diria que ia encontrar-te aqui? Eu pensava que nào estarias a dar-te mal com o novo regime.

Frank Mitsui pareceu ficar ainda mais infeliz, mal conseguindo falar. Um dos outros trabalhadores itinerantes que se encontravam nas proximidades atalhou imediatamente:

- Não sejas parvo, Jeff. Então não sabes o que eles fazem às pessoas como Frank?

- Não, não sei.

- Bem. vê-se bem que não tens andado por aqui. A ti, se te apanham, vais para um campo de trabalho. Mas, se apanham aqui o Frank, ele vai logo desta para melhor. Dão-lhe logo um tiro.

- Então é isso. Que foi que fizeste, Frank? Mitsui abanou a cabeça, com ar infeliz.

- Ele não fez nada - prosseguiu o outro. - O império não precisa de asiáticos americanizados. Andam a liquidá-los.

Era muito simples. Os japoneses e os chineses que viviam na costa do Pacifico e seus semelhantes - especialmente os mestiços - não podiam ser englobados nem nos servos nem nos senhores. Constituíam um perigo para a estabilidade de uns e outros.

Raciocinando friamente, determinaram que fossem perseguidos e executados.

Thomas escutou a história de Frank:

- Quando cheguei a casa, estavam todos mortos. A minha irmãzinha Shirley, Júnior, Jimmy, o bebé... e Alice. - Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.

Alice era a sua mulher. Thomas recordava-se dela, uma mulher alta e morena, que andava sempre de calças e chapéu de palha na cabeça, pouco faladora, mas muito sorridente.

- A princípio pensei em matar-me - prosseguiu Mitsui, quando conseguiu recuperar o autodomínio-, depois pensei melhor. Escondi-me no dique de irrigação durante dois dias e depois fugi para as montanhas. Nessa altura, alguns brancos quiseram matar-me, mas consegui convencê-los de que estava do lado deles.

Thomas compreendia perfeitamente como as coisas se deviam ter passado e não conseguia encontrar as palavras apropriadas.

- Que pensas fazer agora, Frank?

Reparou que a vontade de viver voltava a animar o rosto de Frank.

- É por isso mesmo que não me deixarei matar! Quero dez cabeças por cada um - contou pelos dedos, escuros -, dez daqueles diabos por cada um dos meus filhinhos... e vinte por Alice. Depois, talvez mais dez por mim, e já poderei morrer em paz.

- Hum... E tiveste alguma sorte até aqui?

- Até agora já foram treze. Leva tempo, pois tenho de proceder com muita cautela para que eles não me matem antes de terminar aquilo que tenho de fazer.

Thomas ponderou no que acabara de ouvir, tentando encontrar uma forma de aplicar semelhante determinação ao objectivo que era comum. Se essa determinação fosse bem orientada, poderia ser bastante útil. Mas só algumas horas mais tarde é que se aproximou novamente de Mitsui.

- E que tal - perguntou suavemente - levantares essa quota de dez para mil por cada um... e dois mil por Alice?

 

Os alarmes exteriores trouxeram Ardmore até ao portal muito antes de Thomas assobiar a melodia que activava a porta. Ardmore estivera a observar a porta através do sistema de televisão montado na sala de guarda, tendo o polegar apoiado no botão de controlo, pronto a mandar pelos ares qualquer visitante inesperado. Quando viu Thomas aproximar-se, o dedo afastou-se do botão, mas, ao avistar o seu acompanhante, voltou a estar alerta. Um pan-asiático! Quase os aniquilou por simples reflexo, antes de recuperar o sangue-frio. Era possível, apesar de tudo, que Thomas trouxesse um prisioneiro para ser interrogado.

- Major! Major Ardmore! Sou eu, Thomas!

- Fiquem onde estão. Os dois.

- Não há novidade, major. Ele é americano. Respondo por ele.

- Pode ser que assim seja. - A voz que chegava aos ouvidos de Thomas através do amplificador ainda denotava indícios de suspeita. - Pelo sim, pelo não... ponham-se os dois em pêlo.

Assim fizeram: Thomas mordendo os lábios devido à humilhação e Mitsui tremendo de agitado. Como não compreendia o que se estava a passar, sentia-se como que numa ratoeira.

- Agora virem-se devagar e deixem-me vê-los bem - ordenou a voz. Depois de ter a certeza de que estavam desarmados, Ardmore disse-lhes que permanecessem onde estavam e que aguardassem, depois do que chamou Graham pelo intercomunicador!

- Graham!

- Pronto, senhor.

- Dirija-se imediatamente à sala da guarda.

- Mas, major, agora não posso. Se o fizer, o jantar ficará...

- O jantar não interessa. Venha imediatamente!

- Sim, senhor!

Ardmore explicou a situação a Graham, apontando para o televisor.

- Você vai até ali abaixo e ata-lhes as mãos atrás das costas, começando pelo asiático. Faça que este fique de costas para você e acautele-se. Se ele tentar subjugá-lo, é possível que eu também o atinja quando disparar.

- Não gosto nada disto, major - protestou Graham. - Thomas é um tipo fixe. Não iria enganar-nos.

- É claro, homem, também sei que ele não nos iria enganar. Mas pode estar drogado e sob controlo. Esta encenação pode ser um truque como o do cavalo de Tróia. Agora vá até lá e faça como eu disse.

Enquanto Graham executava o mais suavemente possível a sua desagradável missão - apelando a toda a sua coragem e candidatando-se, daquela forma, a uma medalha do Congresso que nunca receberia-, Ardmore telefonava a Brooks.

- Doutor, pode deixar por momentos o que está a fazer?

- Sim, talvez possa. Claro que posso mesmo. Que deseja?

- Se assim é, venha ao meu gabinete. Thomas está de volta. Quero saber se ele está ou não sob a influência de alguma droga.

- Mas eu não sou médico...

- Sei isso, mas é o que temos por aqui de mais parecido.

- Muito bem, senhor.

O Dr. Brooks examinou as pupilas de Thomas, fez-lhe o teste do joelho e verificou-lhe as pulsações e a respiração.

- Parece-me perfeitamente normal, embora exausto e sobreexcitado. Como é evidente, não se trata de um diagnóstico definitivo. Se dispusesse de mais tempo...

- Por agora, terá de chegar. Thomas, espero que não me leve a mal o facto de o deixar isolado até examinarmos o seu amigo asiático.

- Claro que não, major -respondeu-lhe Thomas, com um sorriso forçado-, dado que, de qualquer modo, vão fazê-lo.

Frank Mitsui estremeceu e começou a transpirar quando Brooks lhe espetou uma agulha hipodérmica no braço, a que não tentou escapar. Pouco depois, acalmou-se, sob a influência da droga desinibidora que lhe tinham aplicado. O rosto adquiriu uma expressão serena.

Mas, passado pouco tempo, quando o começaram a interrogar, essa expressão desapareceu, o mesmo acontecendo com os rostos daqueles que o rodeavam. A verdade era demasiado crua e brutal para que qualquer homem pudesse escutá-la sem se alterar.

Cavaram-se sulcos profundos no rosto de Ardmore à medida que ia ouvindo a história lamentável do homenzinho. Quaisquer que fossem as perguntas feitas, o infeliz voltava sempre á cena dos filhos mortos, do seu lar destruído. Finalmente, Ardmore decidiu terminar o interrogatório.

- Dê-lhe o antídoto, doutor. Não posso continuar a suportar uma coisa destas. Já sei tudo o que queria saber.

Depois de Frank ter recobrado a consciência, Ardmore apertou-lhe as mãos solenemente.

- Estamos muito satisfeitos por tê-lo aqui connosco, Sr. Mitsui. E vamos dar-lhe uma missão que lhe permitirá prosseguir a sua vingança. Por agora quero que o Dr. Brooks lhe dê um soporífero que o faça dormir durante cerca de dezasseis horas; depois disso poderemos pensar em fazê-lo prestar juramento e veremos então que trabalho lhe iremos dar.

- Não preciso de dormir, Sr.... Major.

- Mesmo que assim seja, é o que vai fazer durante algum tempo.

Vai passar-se o mesmo com Thomas, assim que ele apresentar o relatório. De facto... - Interrompeu-se, analisando o rosto aparentemente impassível. - De facto, quero que todas as noites tome um comprimido para dormir. É uma ordem que lhe dou.

Serei eu mesmo a dar lho e tomá-lo-á na minha presença, todas as noites, antes de se ir deitar.

O absolutismo militar tinha as suas vantagens, Ardmore não podia suportar a idéia de o homenzinho passar as noites acordado, estendido na cama, a olhar para o tecto.

Brooks e Granam teriam gostado imenso de ficar a ouvir o relatório de Thomas, mas Ardmore fez de conta que não reparava na pretensão deles e ordenou-lhes que saíssem. Queria estar só, para avaliar as informações trazidas por Thomas.

- Bem, tenente, estou muito satisfeito por tê-lo de volta.

- Eu também estou contente por voltar. Disse "tenente"? Julgo que tenho de regressar ao meu posto.

- E por que razão? Ando, na verdade, a pensar em arranjar um motivo plausível para promover também Graham e Sheer. As coisas ficariam muito mais simplificadas por aqui, se as diferenças sociais desaparecessem. Mas isso é coisa para mais tarde.

Ouçamos o que tem para contar. Calculo que tenha regressado com a solução para todos os nossos problemas, não é verdade?

- Não exactamente. - E Thomas sorriu e descontraiu-se.

-Também não era isso que esperava que acontecesse. Mas, falando a sério, aqui entre nós, tenho mesmo de ver se descubro alguma solução para esta situação e rapidamente. O pessoal científico, em especial o coronel Calhoun, já começou a fazer pressão sobre mim. Não vale de nada conseguir milagres a nível do laboratório se não se descobrir uma maneira de aplicar esses milagres em estratégias e tácticas.

- Eles já vão assim tão adiantados?

- Você vai ficar espantado. Agarraram no tal chamado "efeito de Ledbetter" e deram-lhe tantas voltas quantas um fox-terrier dá a um rato. Agora podem utilizá-lo em tudo, excepto em descascar batatas e pouco mais.

- Realmente?

- Realmente.

- Que espécie de coisas podem fazer?

- Bem... - Ardmore respirou fundo. - Honestamente, não sei por onde começar. Wilkie tem tentado manter-me informado através de explicações simplificadas, mas confesso que, aqui só para nós, não percebi muito mais do que uma palavra aqui e ali.

Uma das formas de pôr a questão é dizer que eles descobriram a forma de controlar o átomo... Oh, não me refiro à desintegração do átomo ou à radioactividade artificial. Olhe... costuma falar-se do espaço, do tempo, da matéria, não é verdade?

- Sim. É claro que há a teoria da relatividade, de Einstein.

- Claro.Essa teoria é ponto obrigatório hoje em dia nas faculdades. Mas estes homens transformaram essa teoria em realidade. Eles demonstraram que o espaço, o tempo, a massa, a energia, a radiação e a gravidade são apenas formas diferentes de encarar a mesma coisa, E basta sabermos como ela funciona num destes elementos para ficarmos a saber com actua era relação a todos os restantes. Segundo Wilkie, até agora, os físicos, mesmo após a descoberta da bomba atômica, andavam ás voltas com o assunto; tinham os primeiros dados que conduziriam a esta teoria, mas não estavam muito crentes em si próprios; encaravam-nos sempre como se se tratasse de coisas tão diferentes e independentes como os nomes que lhes eram atribuídos.

"Aparentemente, Ledbetter descobriu o significado real da radiação, e esse facto proporcionou a Calhoun e a Wilkie a oportunidade de descobrirem o resto que faltava. Fui suficientemente claro? - acrescentou, com um sorriso.

- Nem por isso - reconheceu Thomas. - Pode dar-me alguma idéia do que eles podem fazer com aquilo?

- Bem, para começar, ao efeito de Ledbetter original, aquilo que matou a maior parte do pessoal da Cidadela, Wilkie dá-lhe o nome de face acidental da experiência. Brooks diz que a radiação básica afectou a dispersão coloidal dos tecidos vivos; os indivíduos que morreram foram vitimados pela coagulação do seu sangue. Este fenómeno também pode ter um efeito contrário; de facto, ainda outro dia eles fizeram essa experiência com um bocado de carne que explodiu como se fosse dinamite.

- Como?

- Não me pergunte como isso foi possível; estou apenas a repetir -lhe a explicação que me deram. Mas o facto é que parece que descobriram os princípios que regem a matéria. Podem fazê-la explodir, por vezes, e utilizá-la como fonte de energia.

Parecem ter a certeza do que têm de fazer para descobrir o modo de utilizar a gravidade do mesmo modo como agora utilizamos a electricidade.

- Pensava que a gravidade não era considerada nos conceitos modernos como uma força.

- E não é... mas, segundo esta nova teoria, a "força" deixa de ser "força". Caramba, vejam só, você está a atrapalhar"me com todas estas dificuldades lingüísticas. Wilkie diz que a matemática é a única linguagem que possibilita a compreensão destes conceitos.

- Bem, então, o melhor é desistir de compreender a referida teoria. Mas, falando francamente, não estou a ver como conseguiram eles ser tão bem sucedidos em tão curto espaço de tempo. Isto altera tudo o que até aqui pensávamos sobre o assunto.

Honestamente, como explicar o facto de terem sido necessários cento e cinquenta anos para ir de Newton a Edison, quando, no entanto, estes rapazes apenas levaram algumas semanas a alcançar tais resultados?

- É coisa que eu próprio ignoro. Essa dúvida também já me ocorreu e pus o problema a Calhoun. Informou-me, com aquele seu ar doutoral, que isso se ficava a dever ao facto de aqueles pioneiros da ciência não possuírem, na altura" nem o cálculo tensorial, nem a análise vectorial, nem a matriz da álgebra.

- Bem, mesmo assim, não sei - observou Thomas. - Não costumam ensinar essas coisas nas faculdades de Direito.

- Também não percebo nada disso - admitiu Ardmore. - Tentei dar uma olhadela para as folhas onde tinham os cálculos. Sei alguma coisa de álgebra, embora não a utilize há alguns anos, mas não fui capaz de perceber nada do que lá estava.

Parecia sânscrito; a maior parte dos símbolos eram diferentes, até mesmo os antigos não pareciam ter o mesmo significado de outrora. Olhe... eu pensava que a vezes ò era sempre igual a b vezes a.

- Então e não é?

- Não para aqueles tipos, que têm aquilo tudo trocado. Mas estamos a afastar-nos do assunto. Voltemos ao ponto onde estávamos.

- Sim, senhor. - Jeff Thomas falou calmamente durante bastante tempo, tentando descrever minuciosamente tudo o que vira, ouvira e sentira. Ardmore não o interrompeu, excepto para fazer algumas perguntas conducentes a um melhor esclarecimento.

Quando acabou, fez-se silêncio durante algum tempo. Até que, por fim, Ardmore disse:

- Tinha esperanças, a nível do subconsciente, de que trouxesse alguma informação que acertasse em cheio naquilo que preciso de saber. Mas não vejo grandes esperanças de que isso aconteça com aquilo que me contou. Não consigo entrever qualquer forma de alterar a situação de um país que está tão cuidadosamente vigiado como acaba de me descrever.

- É claro que não vi o que se passa em todo o país. Não ultrapassei os trezentos quilómetros, a partir do ponto onde nos encontramos.

- Sim, mas obteve dados de outros trabalhadores itinerantes que se referem a todo o país, não é verdade?

-Sim.

- E em todo o lado se passa o mesmo. Penso que podemos concluir, com segurança, que o que ouviu, confirmado pelo que viu, nos dá já uma idéia razoavelmente aproximada da realidade. Quanto tempo tinham as informações que lhe foram dadas pelos ambulantes?

- Bem, talvez três ou quatro dias para as notícias oriundas da costa oriental, não mais do que isso.

- Isso já não é mau. As notícias espalham-se sempre muito depressa. Realmente não são muito encorajadoras. E, no entanto... - Fez uma pausa e pareceu ficar nitidamente intrigado. - E, no entanto, tenho a sensação de que disse uma coisa que é a chave para toda a questão. Só que não consigo lembrar-me de qual é. A idéia começou a formar-se-me na cabeça enquanto falava; de repente surgiu qualquer outra coisa que me distraiu e perdi-lhe o rasto.

- Talvez valesse a pena começar tudo outra vez do princípio - sugeriu Thomas.

- Não é necessário. Se entretanto não me lembrar, escutarei a gravação tantas vezes quantas forem necessárias até me lembrar.

Foram interrompidos por uma batida peremptória na porta. Ardmore disse:

- Entre!

O coronel Calhoun apareceu à porta.

- Major Ardmore, que história é essa de termos aqui um prisioneiro pan-asiático?

- A coisa não é bem assim, coronel, mas, de facto, encontra-se entre nós um asiático. Nasceu na América.

Calhoun ignorou a distinção.

- Por que razão não fui informado desta ocorrência? Já o tinha avisado de que precisava de um homem de sangue mongólico para as minhas experiências.

- Doutor, com o pessoal de que dispomos, é muito difícil respeitarmos todas as formalidades da etiqueta militar. Viria naturalmente a saber disso através do desenrolar normal dos acontecimentos... De facto, parece que até foi mesmo dessa forma que foi informado.

Calhoun resmungou:

- Foi através da má-língua de subordinados que, por simples acaso, soube do que se passou!

- Lamento muito, coronel, mas não havia hipótese de proceder de outro modo. Neste preciso momento estou a tentar receber o relatório da viagem de reconhecimento que Thomas fez.

- Muito bem, senhor. - Calhoun assumiu um ar gélido e formal. - Poderia fazer-me o favor de mandar o asiático apresentar-se a mim imediatamente.

- Não posso fazer o que me pede. Encontra-se a dormir, sob o efeito de drogas, e não é possível mandá-lo apresentar-se a si antes de amanhã. Além disso, embora tenha a certeza absoluta de que ele irá cooperar totalmente em qualquer experiência útil que seja necessário fazer, trata-se de um cidadão americano e de um civil que se encontra sob a nossa protecção, e não de um prisioneiro. Teremos de nos lembrar sempre disso.

Calhoun retirou-se tão abruptamente como aparecera.

- Jeff -disse Ardmore pensativamente, olhando para a porta que se fechara -, falando aqui só entre nós (mesmo só entre nós!), se algum dia me apanhar desligado destas obrigações militares, vou ter um prazer danado em esmurrar o focinho àquele tipo!

- Por que não o manda calar quando se dirigir a si naqueles modos?

- Não posso fazê-lo, e ele sabe disso. Ele é um elemento valioso, insubstituível. Não podemos dispensar o seu cérebro nas investigações que estão em curso, e não se mobiliza um cérebro apenas através de ordens. E sabe que mais? Apesar de ser um tipo brilhante, chego a pensar, por vezes, que ele não funciona lá muito bem da cabeça.

- Não me admiraria. Porque está ele tão ansioso por lá ter Frank Mitsui?

- Bem, tem a ver com as experiências que estão a fazer. Demonstraram que o efeito Ledbetter original depende das características da forma de vida a que se aplica... Pode chamar-lhe frequência natural, se quiser. Segundo parece, toda a gente tem o seu comprimento de onda próprio. Esta teoria parecia-me uma coisa fantástica, mas o Dr. Brooks diz que a mesma já é conhecida há muito tempo, que não é novidade nenhuma. Mostrou-me um documento escrito por um tipo chamado Fox, da Universidade de Londres, em 1940... Fox demonstra, nesse estudo, que a hemoglobina contida no sangue de cada coelho possuía o seu comprimento de onda específico. A simples análise dessa hemoglobina através do espectro permitia distinguir um coelho de outro, ou de um cão.

"Esse tal Dr. Fox tentou fazer a mesma experiência com os seres humanos, mas a coisa não resultou... não conseguiu detectar diferenças nos comprimentos de onda. Mas Calhoun e Wilkie conseguiram construir um espectroscópio a partir das experiências já iniciadas por Ledbetter, através do qual se vê claramente o comprimento de onda pertencente a cada amostra de sangue humano. Por outras palavras, se eles regularem um projector Ledbetter e o puserem a funcionar, quando a radiação incidir sobre a sua freqüência exclusivamente individual, os seus glóbulos vermelhos começarão a absorver energia, a hemoglobina sobre uma pressão excessiva e... zás! Morre. Eu, que estou mesmo ao seu lado, fico na mesma: não possuo a mesma frequência. Ora bem, Brooks tem idéia de que estes tipos de frequências são distintos de raça para raça. Pensa que conseguiria regular o aparelho para determinada raça, neste caso a dos Pan-Asiáticos, de modo a não atingir os brancos.

Thomas estremeceu.

- Caramba! Seria uma arma fantástica!

- Sim, realmente seria. Até aqui ainda não passou de teoria, mas querem experimentá-la em Mitsui. Se bem entendo o que eles pretendem fazer, não tencionam matá-lo, mas o teste não deixará de ser extremamente perigoso... para Mitsui.

- Frank não se importará de experimentar o aparelho - afirmou Thomas.

- Não, penso que não. - Ardmore tinha a impressão de que, provavelmente, Mitsui até agradeceria a possibilidade de poder morrer rapidamente e sem sofrimento, no laboratório. - Agora vejamos outra questão. Parece-me que é possível organizarmos uma espécie de serviço de informações permanente utilizando os seus amigos ambulantes e as fontes de informação a que habitualmente recorrem. Analisemos a hipótese.

Enquanto o pessoal científico testava as teorias relativas á interacção entre os tipos racionais e o sistema Ledbetter já melhorado, Ardmore pôde dispor de mais alguns dias para pensar aprofundadamente sobre a utilização militar a dar às armas que brevemente teria à sua disposição. O tempo de que dispôs não lhe solucionou o problema. Que possuía uma arma poderosa era um facto; efectivamente, dispunha até de várias armas poderosas, dado que os novos princípios descobertos podiam ter aplicações tão variadas como as da electricidade. Era perfeitamente visível que, se um ano antes as forças de defesa dos Estados Unidos tivessem tido à sua disposição os instrumentos de que a Cidadela dispunha, nunca teriam sido vencidas.

Mas seis homens não podem derrotar um império, pelo menos não o podem fazer através da força bruta. Se tal fosse necessário, o imperador enviaria seis milhões de homens para subjugar aqueles seis, As hordas do império poderiam acercar-se deles de mãos nuas e esmagá-los sob uma avalanche de corpos mortos. Ardmore tinha de arranjar um exército para combater o inimigo com as suas maravilhosas armas inéditas.

A questão que se punha era: como recrutar e treinar um tal exército.

Decerto que os Pan-Asiáticos não ficariam inactivos a vê-lo andar a recrutar forças nas auto-estradas e noutras vias de passagem. A minúcia com que tinham organizado a vigilância a o policiamento das populações tornava bem evidente que estavam perfeitamente conscientes do perigo de uma revolta, não hesitando em esmagar qualquer movimentação antes que a mesma pudesse assumir proporções que pusessem em perigo o seu poderio.

Só restava a possibilidade de recurso ao grupo clandestino que eram os trabalhadores ambulantes. Consultou Thomas relativamente á hipótese de os organizar para fins militares. Thomas encarou a idéia com cepticismo.

- O chefe não compreende o temperamento desses indivíduos. Em cem não encontra um em quem possa confiar minimamente em matéria de autodisciplina, factor que seria indispensável numa missão desse tipo. Suponha que conseguia armá-los a todos com projectores. E não estou a dizer que isso é possível, mas apenas que considere essa possibilidade. Continuaria a não dispor de nenhum exército, teria apenas um rebanho indisciplinado.

- Eles não lutariam?

- Oh, claro que o fariam! Lutariam individualmente e fariam mesmo muitos estragos antes de os Amarelos os apanharem desprevenidos e acabarem com eles.

- Gostaria de saber se poderíamos confiar neles como fontes de in formação.

- Isso é outra questão. A maioria dos rapazes não fará a mínima idéia de que estará a ser utilizada para se obterem informações de carácter militar. Poderei escolher aí uma meia dúzia deles para trabalharem como agentes de informações para mim e não lhes direi nada que não necessitem saber.

Por muitas voltas que desse à cabeça, não conseguia descortinar nenhuma forma de utilizar as armas a nível militar. Somente o comandante que dispusesse de um elevado número de homens sob as suas ordens poderia desencadear um ataque imediato e brutal.

O general Grant, do Exército dos Estados Unidos, não tivera qualquer problema em afirmar, havia muitos anos, as históricas palavras "combateremos até onde for preciso, nem que tenhamos de levar o Verão inteiro", porque podia dar-se ao luxo de perder três homens por cada inimigo abatido, sem que isso pusesse em perigo a vitória final. Essa táctica não podia ser seguida por um comandante que não podia permitir-se a perda de nenhum dos seus homens. O ataque teria de ser totalmente inesperado, uma coisa que os Pan-Asiáticos não pudessem entender como tal, até já não ser possível escaparem ao mesmo.Teria de organizar algo parecido com as quintas-colunas que tinham destruído as democracias europeias durante os conflitos vividos nos trágicos dias que conduziram ao esmagamento final da civilização europeia. Mas esta não seria uma quinta-coluna de traidores, com o objectivo de paralisar um pais livre, mas sim a sua antítese, uma sexta-coluna composta por patriotas a quem seria concedido o privilégio de destruir o moral dos invasores, fazendo que começassem a ter medo, a sentir-se inseguros.

E a chave dessa situação estava na duplicidade e na arte de enganar!

Ardmore sentiu-se um pouco melhor depois de chegar a essa conclusão. Tratava-se de uma solução perfeitamente perceptível a um homem que sempre estivera ligado ao trabalho publicitário. Tentara resolver o problema de uma forma militar, mas, como não era general, procedera erradamente ao tentar raciocinar como se o fosse. Não era daquela forma que a sua mente trabalhava. O problema era, antes de mais nada, um problema de publicidade, uma questão que tinha a ver com a psicologia de massas. Um

antigo patrão seu, junto do qual aprendera o ofício, costumava dizer-lhe: "Se dispuser de um orçamento conveniente e de liberdade de acção, sou até capaz de vender gatos mortos ao Ministério da Saúde!"

Bem, era certo que tinha liberdade de acção e que o orçamento não oferecia dificuldades. Claro que não poderia utilizar os jornais e os outros canais de informação habituais, mas haveria de encontrar uma forma de levar a sua avante. Naquele momento importava descobrir os pontos fracos do inimigo e decidir a forma de dirigir os pequenos dispositivos de Calhoun contra esses mesmos pontos fracos, até que os Pan-Asiáticos começassem a ver que a vida não lhes corria bem e ficassem ansiosos de voltar para casa.

Ainda não tinham forjado nenhum plano. Quando um homem pretende elaborar um plano de campanha, convoca habitualmente uma reunião com os restantes elementos do seu efectivo. Foi o que Ardmore fez.

Descreveu-lhes a situação existente, referindo-se igualmente a tudo o que Thomas soubera no exterior e a todas as informações que recolhera através dos programas "educacionais" difundidos via televisão pelos conquistadores. Procedeu seguidamente à descrição dos poderes inerentes às armas que o pessoal científico estava a ultimar, focando as várias formas óbvias através das quais esses poderes poderiam ser aplicados a nível militar, pondo em relevo o pessoal que era necessário para utilizar de forma eficaz cada tipo de arma. Depois disso solicitou aos presentes que se pronunciassem.

- Se bem compreendi, major - principiou Calhoun-, o senhor está a pedir a nossa opinião, depois de nos ter dado a entender, de forma bastante clara, que tenciona tomar todas as decisões militares que forem necessárias. Ou não é assim?

- Não é nada disso, coronel. É certo que ainda tenho a responsabilidade de tomar qualquer decisão militar que considere necessária, mas estamos numa situação militar especial. Qualquer sugestão pode vir a ser útil. Não tenho a veleidade de pensar que possuo o monopólio do bom senso ou da originalidade. Gostaria que cada um de vós se manifestasse sobre este problema.

- Tem já alguma sugestão a fazer?

- Reservo a minha opinião para depois de todos se pronunciarem.

- Muito bem, senhor - disse o Dr. Calhoun, empertigando-se. - Satisfazendo o seu desejo, vou dizer-lhe o que penso que se devia fazer nesta situação, que, de facto, é a única coisa que se pode fazer.

"Tem conhecimento do tremendo poder de que são dotadas as forças que descobri. - Ardmore reparou que Wilkie ficava tenso, mas nenhum dos dois o interrompeu. - O menos que se pode dizer em relação à exposição que acabou de fazer é que subestimou essas forças. Temos em nosso poder, aqui na Cidadela, uma dúzia de helicópteros velozes. Se os equiparmos com motores do tipo Calhoun, transformá-los-emos em veículos espaciais muito mais velozes do que quaisquer outros que porventura o inimigo possa

arranjar. Neles montaremos os projectores mais pesados e atacaremos. O facto de possuirmos armas espantosamente superiores fará que o facto de pormos o exército pan-asiático de rastos seja apenas uma questão de tempo!

Ardmore interrogou-se, espantado, sobre como era possível que um homem pudesse ter uma visão tão limitada da realidade, mas não desejava ser o primeiro a argumentar contra a idéia de Calhoun, disse:

- Obrigado, coronel. Agradeço que apresente esse plano por escrito, de forma mais pormenorizada. Entretanto, alguém deseja desenvolver ou pronunciar-se sobre a sugestão apresentada pelo coronel? - Aguardou ansioso e depois acrescentou: - Vejamos, nenhum plano é perfeito. Devem ter pelo menos alguns pormenores a acrescentar.

Graham aproveitou a deixa:

- Quantas vezes pensa que será necessário vir cá abaixo comer. Calhoun exaltou-se, antes que Ardmore pudesse intervir:

- Diabos me levem! Acho que a ocasião não é para brincadeiras.

- Calma aí! - protestou Graham. - Não estava a querer ser engraçado. Estou a falar a sério. A pergunta que fiz tem a ver com as minhas funções. Esses helicópteros não estão preparados para permanecer muito tempo no ar e parece-me que vamos precisar de muito tempo para reconquistar todo o território dos Estados Unidos, dispondo apenas de uma dúzia desses veículos, mesmo que arranjemos homens que cheguem para os mantermos permanentemente no ar. O que quer dizer que terão de vir à base para se alimentar.

- Sim, e isso também quer dizer que teremos de preparar a base para se defender de ataques vindos do exterior - acrescentou Sheer, subitamente.

- A base pode ser defendida com outros projectores. - Calhoun falava em tom depreciativo. - Major, gostaria que, realmente, esta discussão se limitasse a aspectos verdadeiramente úteis.

Ardmore esfregou o queixo e não respondeu.

Randall Brooks, que estivera pensativamente a ouvir a conversa retirou um pedaço de papel do bolso e começou a desenhar um esquema.

- Penso que Sheer teve uma boa idéia, Dr. Calhoun. Se quiser fazer o favor de olhar para aqui por alguns minutos... Pronto, aqui neste ponto está a base. Os Pan-Asiáticos podem cercar a base com armamento, a uma distância superior àquela que os projectores podem alcançar. Por mais rápidos que sejam os vossos helicópteros, isso não bastará para impedir que o inimigo utilize quantos aparelhos forem necessários para impedir que os nossos helicópteros ultrapassem a barreira por eles levantada.

É certo que estes irão munidos com os projectores para combater, mas não é possível fazê-lo simultaneamente com cem aparelhos, e as armas do inimigo também são poderosas... não nos podemos esquecer disso.

- Tem absoluta razão quando diz que são poderosas! - reforçou Wilkie. - Não podemos arriscar-nos a que localizem a base. Com os mísseis atómicos que possuem, podiam permanecer a uns mil e seiscentos quilómetros de distância e fazer esta montanha ir pelos ares, se soubessem que estamos neste sítio.

Calhoun ergueu-se:

- Não vou ficar aqui e continuar a ouvir disparates de tolos pusilânimes. O plano que concebi é para ser executado por homens. - E saiu altivamente da sala.

Ardmore ignorou a sua saída e prosseguiu apressadamente:

- As objecções levantadas ao esquema do coronel Calhoun parece-me que se aplicam nesta altura igualmente e a todo o plano de ataque directo. Já concebi vários e rejeitei-os mais ou menos pelas mesmas razões já referidas ou pelo menos por razões relacionadas com os abastecimentos militares. Contudo, pode ter-me escapado alguma hipótese que seja perfeitamente viável. Será que alguém tem algum método razoável a sugerir, um método que não ponha em perigo a vida das pessoas?

Ninguém respondeu.

- Muito bem, mas, se alguém se lembrar de alguma coisa mais tarde, que mo transmita. Sou da opinião de que devemos todos actuar de maneira coordenada. Se nesta altura não pudermos combater o inimigo directamente, teremos de continuar a enganá-lo enquanto pudermos.

- Compreendo - concordou o Dr. Brooks. - O touro investe contra a capa sem nunca ver a espada.

- É isso mesmo. Só que era bom que a coisa fosse tão simples como isso. Agora vejamos: alguém tem alguma sugestão a fazer quanto à utilização das armas de que dispomos, sem que eles fiquem a conhecer o local onde nos encontramos e quantos somos? E agora, enquanto pensam, vou fumar um cigarro.

Passado algum tempo, acrescentou:

- Lembrem-se sempre de que temos duas vantagens concretas em relação a eles: tudo indica que o inimigo não faz a mínima idéia da nossa existência e as nossas armas são-lhe completamente desconhecidas, eu diria mesmo misteriosas. Wilkie, não foi você que uma vez disse que o efeito Ledbetter parecia ter poderes mágicos?

- E não me importo de dizê-lo outra vez, chefe! Posso afirmar, com a maior das seguranças, que, com excepção dos instrumentos que temos aqui no laboratório, não há forma possível de detectarem as forças com que estamos a trabalhar. É assim como tentar ouvir rádio apenas com os ouvidos.

- É a esse aspecto que me refiro: mistério. Faz lembrar o primeiro contacto que os índios tiveram com as armas do homem branco; eles morriam sem saber como. Pensem nisso.

A primeira sugestão partiu de Graham. - Major, dá-me licença?

- Faz favor.

- Por que razão não os raptamos?

- Que quer dizer com isso?

- Bem, a sua idéia é aterrorizá-los, não é verdade? E que tal fazer mos uma investida de surpresa contra eles, armados com o efeito Led better? Podiamos deslocar-nos num helicóptero, à noite, e caçarmos alguns tipos importantes lá deles, quem sabe se o próprio príncipe real' Limpamos tudo o que encontrarmos pela frente com os projectores, entramos directamente no antro deles e apanhamos o tipo.

- Alguém quer dizer alguma coisa sobre isto? - perguntou Ardmore, reservando-se para o fim.

- A idéia não parece má de todo - comentou Brooks. - Sugiro que regulem os projectores para atordoar, e não para matar. Penso que o efeito seria muito maior se eles, quando acordassem, vissem que o grande líder deles desaparecera misteriosamente.

Como Wilkie e Mitsui podem testemunhar, uma pessoa nunca mais volta a lembrar-se do que lhe aconteceu.

- E porquê ficarmo-nos pelo príncipe real? - perguntou Wilkie. -Podíamos perfeitamente organizar quatro incursões, com duas pessoas a bordo de cada um dos aparelhos, para a mesma noite. Conseguiria mos, assim, apanhar um número muito maior de chefes, o que provocaria uma autêntica confusão.

- Parece uma boa idéia - concordou Ardmore. - Talvez não possamos fazer uma dessas incursões mais de uma vez. Mas, se apenas com um único golpe conseguíssemos fazer grandes estragos, talvez os tipos ficassem desmoralizados e desencadeassem uma sublevação geral. Que foi, Mitsui?

Ardmore reparara que o oriental, à medida que o traçado do plano ia evoluindo, ficava cada vez mais apreensivo. Mitsui, relutantemente, disse:

- Lamento muito, mas acho que isso não vai resultar.

- Quer dizer que não vamos poder raptá-los desta forma? Tem conhecimento de algum pormenor relativo aos métodos de vigilância deles que nós aqui não saibamos?

- Não, não, Não há dúvida de que, dispondo de uma força que atravessa paredes e os põe inconscientes sem que dêm por nada, é possível capturá-los. Mas os resultados não serão como aqueles que estão a prever.

- Por que não?

- Porque não tirarão daí nenhuma vantagem. Eles não pensarão que têm os seus chefes prisioneiros. Convencer-se-ão de que, logo após a captura, todos eles se suicidarão. O resultado será catastrófico.

Tratava-se apenas de um aspecto psicológico, em relação ao qual as opiniões se dividiam. Mas os ocidentais presentes não acreditavam que os Pan-Asiáticos se atrevessem a fazer retaliações, se tivessem a certeza de que os sagrados chefes se encontravam vivos e à mercê dos seus captores.Além disso, era um plano que permitia uma acção imediata, pela qual todos ansiavam. Finalmente, Ardmore decidiu que, se entretanto não descobrissem outro plano melhor, este seria posto em prática, embora, lá muito no fundo, tivesse o pressentimento de que algo não batia certo, sensação que depressa rechaçou.

Nos dias que se seguiram, todos trabalharam conjuntamente na preparação dos helicópteros para o projecto em vista. Sheer encarregou-se das tarefas relacionadas com a mecânica, trabalhando incansavelmente, entre dezoito a vinte horas diárias, e orientando os restantes elementos, que, entusiasticamente, seguiam as suas ordens. Até Calhoun se dignou descer do seu pedestal, concordando em participar na incursão, embora se limitasse unicamente a efectuar simples tarefas manuais. Thomas saiu

para o exterior, numa rápida batida, para se certificar da localização de doze redutos onde se encontravam altos dignatários pan-asiáticos, todos eles bem afastados uns dos outros.

No meio da euforia que costuma resultar da elaboração do plano de uma campanha de há muito desejada, de qualquer plano de campanha, Ardmore esqueceu-se da decisão que ele próprio tomara, segundo a qual era necessário organizar uma sexta-coluna, uma organização clandestina, ou pelo menos insuspeita, que pudesse agir no seio do inimigo, desmoralizando-o. O plano que naquela altura iam levar por diante não tinha essa característica, possuindo um objectivo essencialmente militar. Começou a pensar que era, se não um novo Napoleão, pelo menos um Swamp Rat ou um Sandino moderno, atacando de surpresa os soldados inimigos, pela calada da noite, antes de desaparecer sem deixar rasto.

Mas Mitsui tinha razão.

O receptor de televisão era regularmente utilizado para captar e gravar qualquer emissão que os senhores entendessem por bem transmitir aos seus escravos. Tinham criado o hábito de se reunir na sala de estar, por volta das oito da tardinha, a fim de ouvir as emissões habituais, durante as quais se difundiam as ordens dirigidas à população. Ardmore achava esta "parte das obrigações" muito útil; considerava a "sessão de ódio" muito útil para manter elevado o moral das pessoas.

Duas noites antes da projectada incursão, reuniram-se, como de costume, em frente do aparelho de TV. O rosto redondo e feio do artista que costumava fazer a propaganda foi rapidamente substituído por outro rosto, este pertencente a um artista pan-asiático mais velho, apresentado como o "guardião celeste da paz e da ordem". O homem abordou imediatamente a questão que ali o levara. Os servos americanos de determinado estado governamental tinham cometido o odioso pecado de se revoltar contra

os sábios dirigentes, tendo capturado a sagrada pessoa do governador desse estado, mantendo-a prisioneira no seu próprio palácio. Os soldados do imperador tinham aniquilado os insanos profanizadores e, durante esse recontro, o governador, lamentavelmente, partira para se reunir aos seus ancestrais.

Foi anunciado um período de luto, a ter início naquele preciso momento, o qual seria inaugurado através da permissão concedida ao povo desse estado no sentido de poder expiar o pecado cometido pelos seus irmãos. O rosto desapareceu, dando lugar a uma cena passada no referido estado.

A cena mostrava uma grande multidão formada por homens, mulheres e crianças comprimidos e amontoados por detrás de cercas de arame farpado. A câmara aproximou-se o suficiente para permitir que as pessoas da Cidadela vissem o ar de sofrimento que estava estampado nos rostos da multidão: crianças que já não conseguiam chorar mais, mães que levavam os bebés apertados contra o peito e pais que, desesperados, nada podiam fazer.

A câmara continuou a movimentar-se sobre aquele amontoado imenso de seres humanos, fixando-se finalmente, em grande plano, num determinado ponto da multidão.

Fizeram incidir um raio epileptogénico sobre o grupo de pessoas que se encontrava nesse local, as quais perderam, instantaneamente, qualquer aparência humana. Faziam lembrar milhares de galinhas monstruosas a que tivessem torcido o pescoço, sendo depois atiradas a monte para o mesmo recipiente, a fim de aí terminarem os estertores da agonia. Os corpos saltavam, distendidos, pelo ar, vindo depois estatelar-se violentamente no solo, onde quebravam a espinha e se desconjuntavam. As mães, levadas

por uma força incontrolável, arremessavam os seus bebés para longe de si ou, então, esmagavam-nos, utilizando as próprias mãos como um torno.

A cena foi substituída pelo plácido rosto do dignitário pan-asiático. Anunciou, num tom de voz vagamente pesaroso, que não bastava pagar pelos pecados, que também era necessário aplicar medidas correctivas a toda a população, á razão de uma em cada mil pessoas. Ardmore fez rapidamente um cálculo mental. Cento e cinquenta mil pessoas! Era inacreditável.

Mas depressa se viu que eles iam mesmo cumprir a ameaça. O rosto voltou a desaparecer, sendo substituído, desta vez, por uma rua residencial de uma cidade americana, Seguiu a incursão que um grupo de soldados pan-asiáticos fazia à sala onde uma família se encontrava reunida. Encontravam-se todos diante de um receptor de televisão, perfeitamente estupefactos com o que tinham acabado de ver. A mãe tinha uma pequenita, a chorar, agarrada a ela, a quem tentava acalmar. Pareciam mais estupidificados do que propriamente assustados por aquela invasão inesperada dos soldados no seu lar. Sem proferir palavra, o pai mostrou o cartáo que lhe fora pedido; o chefe do grupo confirmou que o número deste era igual ao número que vinha na lista que trazia e os soldados encarregaram-se dele.

Escolheram, como era evidente, um método de assassínio especialmente violento.

Ardmore desligou o televisor.

- A incursão foi ao ar - anunciou. - Vão-se todos deitar. E quero que, também todos, tomem um comprimido para dormir, é uma ordem.

Retiraram-se imediatamente. Ninguém disse palavra. Depois de todos saírem, Ardmore voltou a ligar o receptor e assistiu a tudo até ao fim. Depois permaneceu sentado durante muito tempo, tentando raciocinar com clareza. Para ele não podia haver soporífero algum.

 

Durante os dois dias que se seguiram a estes acontecimentos, Ardmore andou muito metido consigo, tomando as refeições no seu alojamento e recusando-se a outros contactos com o seu pessoal que não fossem os estritamente indispensáveis. Via agora, com perfeita clareza, onde estava o erro que pressentira em relação ao plano anteriormente elaborado; consolava-o muito pouco o facto de o engano que conduzira àquele massacre ter sido cometido por outros, e não por ele - sentia que, simbolicamente, também ele fora responsável pelo mesmo.

Mas guardou o problema para si. Sabia agora que estava certo ao pensar na sexta-coluna. A sexta-coluna! Algo que não entraria em litígio aberto com as regras estabelecidas pelos senhores" mas que contribuiria progressivamente para a sua queda.

Talvez o projecto levasse anos a concretizar-se, mas o tremendo erro da acção directa não devia repetir-se.

Sabia, intuitivamente que algures no relatório apresentado por Thomas se encontrava a idéia de que necessitava. Voltou a passar a gravação várias vezes, mas continuava sem descortiná-la, embora já soubesse tudo de cor:

"Eles estão a esmagar sistematicamente tudo quanto se relaciona com a cultura americana. As escolas fecharam, o mesmo tendo acontecido aos jornais. É pena capital imprimir alguma coisa em inglês. Anunciaram que iam criar um sistema de tradução que permitisse que toda a correspondência comercial fosse traduzida para a sua própria língua; enquanto tal não se concretiza, só o correio estritamente necessário é permitido. Foram proibidas quaisquer reuniões, excepto as de carácter religioso."

"Estou convencido de que esta forma de actuação resulta da experiência que eles tiveram na índia. É um bom processo para manter as pessoas tranquilas." A voz que ouvia era a sua, achando que soava de forma estranha no aparelho.

"Penso que é exactamente isso, senhor. É ou não é um facto histórico que os conquistadores bem sucedidos deixaram os povos subjugados conservar as respectivas religiões tradicionais, enquanto alteravam muitas outras coisas?"

"Tenho idéia de que sim. Prossiga."

"Acho que a verdadeira força do sistema que utilizam reside no método de registo. Tudo indica que deram especial atenção a esta questão, relegando para segundo plano outros pormenores. Isso transformou os Estados Unidos num enorme campo de concentração, onde é praticamente impossível as pessoas movimentarem-se ou comunicarem sem autorização dos seus carcereiros."

Palavras, palavras e mais palavras! Ouvira-as já tantas vezes que haviam perdido todo o significado. Talvez, afinal de contas, o relatório não contivesse nenhuma pista" não passando tudo de imaginação sua.

Bateram à porta. Era Thomas.

- Pediram-me que viesse falar consigo, major.

- Sobre quê?

- Bem.., estão todos reunidos na sala de estar. Gostariam de falar consigo.

Outra conferência..- e, desta vez, não convocada por ele. Bem, lá teria de ir.

-Diga-lhes que já vou.

- Sim" senhor.

Depois de Thomas sair, permaneceu alguns momentos sentado, depois do que se dirigiu a uma gaveta donde retirou um coldre onde tinha a sua arma pessoal. Bastava o facto de alguém ter tido a ousadia de convocar uma reunião sem a sua permissão para lhe fazer sentir que havia cheiro a rebelião no ar. Verificou se a arma estava carregada e ficou a olhar para ela, pensativo. Depois voltou a metê-la na gaveta. Nas actuais circunstâncias não lhe serviria de nada.

Entrou na sala e sentou-se numa das extremidades da mesa, aguardando.

- Então que se passa?

Brooks olhou de relance para os restantes elementos que se encontravam na sala, a ver se alguém desejava responder, depois do que, aclarando a voz, disse:

- Hum... queríamos perguntar-lhe se já pensou em algum plano para nós.

- Ainda não... por enquanto.

- Então temos nós um! - Fora Calhoun quem falara.

- Sim, coronel?

- Não faz sentido nenhum andarmos para aqui com as mãos atadas, sem possibilidade de fazer nada. Possuímos as armas mais poderosas que o mundo alguma vez viu, mas precisamos de homens que as manipulem.

- E então?

- Vamos evacuar esta área e partir para a América do Sul! Estou certo de que ali conseguiremos encontrar um governo que esteja interessado nas armas superiores que temos.

- Que vantagens poderá isso trazer para os Estados Unidos?

- São bem evidentes. Não há dúvida de que o império tenciona estender o seu domínio ao resto do hemisfério. Talvez possamos convencer os governos da América do Sul a organizarem uma guerra preventiva. Ou então arranjar um exército de refugiados.

- Não!

- Receio bem que não se possa opor a este projecto, major. - E a voz soava-lhe maliciosamente satisfeita.

Ardmore virou-se para Thomas:

- Partilha das ideias deles? Thomas assumiu um ar infeliz:

-Tinha esperança de que o meu major tivesse um plano melhor.

- E você, Brooks?

- Bem... o plano parece-me viável. Mas sou da mesma opinião que Thomas.

- E você, Graham?

O homem não respondeu, o que, por si só, era já uma resposta.

- Mitsui?

- Gostava de voltar lá para fora, senhor. Deixei as coisas por fazer.

- Sheer?

Os músculos do rosto de Sheer estremeceram.

- Se o senhor fica, eu também ficarei.

- Obrigado. - Voltou-se para os outros e disse: - Já lhes tinha dito que não e mantenho a minha palavra. Se algum de vós sair daqui, violará totalmente o juramento feito. Isso também se aplica a si, Thomas! Não estou a tomar uma posição arbitrária acerca desta questão. Aquilo que se propõe fazer não difere absolutamente nada da incursão que cancelei. Enquanto o povo dos Estados Unidos estiver à mercê dos Pan-Asiáticos, não poderemos desencadear qualquer acção militar directa! O facto de o ataque vir de dentro ou de fora não fará nenhuma diferença para o caso, dado que milhares ou até milhões de vítimas inocentes acabarão por pagá-lo com as suas vidas!

Embora se tivesse deixado empolgar pela cólera que sentia, não deixara de reparar no efeito que as suas palavras causaram nos presentes. Desarmara-os... ou já pouco faltava para isso. Todos menos Calhoun. Todos os outros pareciam perturbados.

- Suponhamos que tem razão, major - dissera Brooks, com ar grave. - Suponhamos que tem razão. Mas, então, existirá alguma coisa que possamos fazer?

- Já vos expliquei a minha idéia, aqui, há pouco tempo. Temos de formar aquilo a que chamo uma sexta-coluna, actuar com toda a calma, estudar os pontos fracos que o inimigo possui e elaborar o plano de ataque a partir dos mesmos.

- Compreendo. Talvez tenha razão. Talvez a coisa não possa ser feita de outra maneira. Mas, para isso, seria necessário que tivéssemos uma reserva de paciência muito superior àquela de que dispomos neste momento.

Ardmore sentiu que estava quase a ccorrer-lhe a tal idéia de que andara à procura. Mas, então, qual?

- O senhor está farto de nos recomendar que tenhamos paciência e de afirmar que precisamos de mais tempo para pensar - trocou Calhoun. - Não há dúvida de que dava um bom pregador, major Ardmore, Mas nós preferimos acção.

Era isso! Era isso!

- O senhor não está longe da verdade - respondeu Ardmore. - Lembra-se do relatório feito por Thomas?

- Ouvi a gravação.

- Recorda-se daquele trecho em que ele disse que ainda permitem que a população branca se organize?

- Ora, não, realmente não me lembro de ouvir nada parecido com isso.

- Nada? Então não havia um local onde era permitido que as pessoas se reunissem?

- Já sei! - disse Thomas, pondo-se bruscamente de pé. - Nas igrejas!

Ardmore permaneceu alguns minutos em silêncio, esperando que a idéia ganhasse corpo, depois do que disse, suavemente:

- Ainda nenhum de vocês se lembrou da hipótese de fundar uma nova religião?

Fez-se silêncio e todos pareciam petrificados pelo espanto. Calhoun foi o primeiro a quebrá-lo.

- O homem está doido!

- Tenha calma, coronel - disse Ardmore gravemente. - Não o censuro por pensar que enlouqueci. Não há dúvida de que parece coisa de loucos estar para aqui a falar em fundar novas religiões, quando o que pretendemos é desenvolver uma acção militar contra os Pan-Asiaticos. Mas repare... precisamos de uma organização que possa ser treinada e preparada para a luta. Necessitamos disso e de um sistema de comunicações que nos permita coordenar toda a actividade. E temos de organizar tudo isto sob os

olhos dos Pan-Asiáticos sem levantarmos suspeitas. Se" em vez de uma organização militar, tivermos a forma de uma seita religiosa, teremos possibilidade de fazer tudo isto.

- Tudo isso é um disparate pegado. Não quero participar numa coisa dessas.

- Por favor, coronel. Nós temos precisão absoluta da sua cooperação. Vejamos agora a questão do sistema de comunicações. Imagine templos espalhados por cada cidade do país e ligados entre si por um sistema de comunicações, o qual, por sua vez, estaria em contacto aqui com a Cidadela.

Calhoun resmungou:

- Sim, e os Pan-Asiáticos a escutar tudo o que se diria!

- É por isso mesmo que precisamos de si, coronel. Não seria capaz de engendrar um sistema de transmissão e recepção que eles não conseguissem detectar? Talvez algo parecido com a rádio, mas que fosse transmitido num dos espectros adicionais que já descobriu, de modo que os instrumentos deles não pudessem dar com isso? Ou não pode fazê-lo?

Calhoun voltou a resmungar, mas já com uma entoação diferente.

- Ora, claro que posso. O problema é perfeitamente elementar.

- Ora ai tem exactamente por que razão não podemos dispensar os seus serviços, coronel. Precisamos de si para resolver problemas que são elementares para um homem com o seu génio - Ardmore sentia-se nauseado, no seu íntimo, pois isto era muito pior do que escrever artigos publicitários -, mas que constituem autênticos milagres para todos nós. É mesmo disso que a tal religião precisa: milagres! Terá a oportunidade de produzir efeitos que ultrapassarão até o seu génio, coisas que os Pan-Asiáticos não tenham a possibilidade de compreender e que encararão como sobrenaturais. - Ao ver que Calhoun ainda se mostrava hesitante, acrescentou: - Você acha que tem capacidade para fazê-lo, não é verdade?

- É claro que tenho, meu caro major.

- Óptimo. De quanto tempo precisará para me arranjar um método de comunicação que não possa ser detectado ou inteligível pelo inimigo?

- É impossível estipular um prazo, mas não demorará muito tempo. Ainda não vejo muito bem qual é o esquema que quer pôr em prática, major, mas, apesar disso, vou começar a trabalhar naquilo que pretende. Levantou-se e saiu pomposamente.

- Major, dá-me Licença? - pediu Wilkie.

- Como? Oh, sim, diga, Wilkie!

- Se quiser, posso desenhar-lhe um sistema de comunicação desses de que precisa.

- Não tenho a mínima dúvida de que o consiga, mas vai precisar de todo o talento que tem para se sair bem da tarefa que tem pela frente. Pode estar descansado que também haverá muita coisa para você fazer. Agora relativamente ao resto do esquema, ouçam qual é o meu plano. A idéia ainda está muito crua. mas quero que vocês trabalhem nela arduamente até se transformar, tanto quanto possível, num projecto viável.

"Vamos empreender todas as movimentações necessárias para fundar uma religião evangélica e tentar fazer que as pessoas venham assistir aos nossos actos de culto. Assim que as apanharmos em sítio onde possamos falar-lhes, poderemos escolher os elementos em quem podemos confiar e juntá-los ao nosso exército. Nomeá-los-emos diáconos, ou coisa parecida, da igreja. A nossa grande arma publicitária será a caridade... é aí que você entra Wilkie, trabalhando no processo de transmutação. Terá de nos fabricar uma grande quantidade de metal precioso, sobretudo ouro, a fim de podermos utilizá-lo no que for necessário. Alimentaremos os pobres e os que tiverem fome (os Pan-Asiáticos já nos providenciaram bastante gente nessas condições!) e depressa os veremos acorrer ao nosso chamamento aos magotes.

"Mas isso não é tudo. Teremos também de fazer uma série de milagres espectaculares. Não apenas para impressionar a população branca, pois isso é secundário, mas sim para lançar a confusão no seio dos nossos senhores e mestres. Faremos coisas que eles se mostrarão incapazes de compreender, o que fará que se tornem inseguros e se sintam pouco à vontade. Nunca lançaremos nada contra eles. Percebem? Faremos todos os possíveis por parecer leais ao imperador, mas faremos coisas que eles não conseguirão imitar. Isso irá perturbá-los e enervá-los. - Tal como se estivesse a preparar minuciosamente uma campanha publicitária, a idéia ia ganhando forma no seu espírito. - Assim que estivermos prontos para atacar em força, estarão já desmoralizados, temerosos dos nossos poderes e quase histéricos.

Começavam a ficar afectados pelo entusiasmo que o possuía, mas o esquema fora concebido em moldes extremamente alheios ao seu padrão habitual de pensamento.

- Talvez isso seja viável, chefe - disse Thomas. - Não digo que não o seja. Mas como tenciona levalo por diante? Se uma religião aparecer assim de repente, não acha que os dirigentes pan-asiáticos desconfiarão de uma armadilha?

- Isso é possível, mas não me parece que seja provável.Os tipos consideram todas as religiões ocidentais igualmente extravagantes. Sabem que temos dúzias de religiões e não sabem absolutamente nada sobre a maior parte delas. Esse será um dos aspectos em que a era da não-ingerência nos será útil. Eles não sabem quase nada sobre as nossas instituições, desde o tempo em que foi feito o Pacto de Não-Ingerência. Este parecer-lhes-á mais um dos muitos cultos bizarros que todos os anos, por altura da

Primavera, desabrocham no Sul da Califórnia.

- Mas, relativamente a essa questão de a gente aparecer com a nova religião, chefe, como vamos nós começar a coisa?Não nos podemos limitar a sair da Cidadela e, ao topar com um desses amarelos que por aí andam, dizer-lhe que somos o S. João Baptista.

- Claro que não. Esse é um dos aspectos que têm de ser muito bem ponderados. Alguém tem alguma sugestão a fazer?

O silêncio que se seguiu à sua pergunta foi profundo e carregado de concentração. Finalmente, Graham sugeriu:

- Por que não nos instalamos e começamos a trabalhar, aguardando que reparem em nós?

- Que queres dizer?

- Bem, já temos aqui gente suficiente para começar a trabalhar em pequena escala.Se descobríssemos um templo em algum sítio, um de nós podia fazer de padre e o resto faria de discípulos, ou coisa parecida. Então, era só esperar que reparassem em nós.

- Hum... a sua idéia não é má de todo, Graham. Mas vamos dar início às nossas actividades na maior escala possível. Todos nós faremos de sacerdotes e Thomas Irá recrutar, entre os seus amigos, elementos para constituírem uma congregação. Não, esperem. Eles que se juntem a nós como peregrinos. Faremos a coisa começar através de uma campanha que lançaremos no seio dos trabalhadores itinerantes, a partir donde a notícia se espalhará rapidamente. Teremos de pô-los a dizer por aí: "O Discípulo

vai chegar!"

- Que quer isso dizer? - perguntou Sheer.

- Por enquanto, nada. Mas, quando chegar a altura propícia, esse dito terá um significado próprio. Ora bem,.. Graham, já sei que você é um artista. Terá de ter paciência durante os próximos dias e cozinhar apenas com a mão esquerda, enquanto, com a direita, desenha alguns modelos para os vários paramentos religiosos que vão ser necessários para o desempenho das nossas actividades sacerdotais. Penso que tanto a decoração do interior como do exterior do templo terão também de ficar sob a sua responsabilidade.

- Onde ficará localizado o templo?

- Bem, a essa pergunta não é nada fácil responder. Não deveria ficar muito afastado da Cidadela, a não ser que saiamos todos daqui, o que não me parece conveniente; precisamos da Cidadela para nos servir de base e de laboratório. Mas o templo não poderá ficar muito próximo dado que não nos podemos dar ao luxo de chamar a mínima atenção para esta zona montanhosa. - Ardmore tamborilou com os dedos sobre a mesa. - A questão é complicada.

- Por que razão - sugeriu o Dr. Brooks - não fazemos disto aqui um templo?

- Como?

- É claro que não me refiro a esta sala. Mas por que não pormos o primeiro templo mesmo em cima da Cidadela? Teria todas as vantagens imagináveis.

- Pois teria, doutor, mas também atrairia uma boa dose de atenção inconveniente sobre, Espere um pouco! Penso que já estou a ver aquilo que quer dizer. - Virou-se para Wilkie e disse: - Bob, acha que há possibilidade de utilizar o efeito Ledbetter

para esconder a existência da Cidadela se o templo principal for construído mesmo em cima dela. Seria isso possível?

Wilkie parecia mais confuso e embaraçado que nunca.

- Não se poderia aplicar o efeito Ledbetter numa coisa dessas. Mas será assim tão necessário que se aplique esse fenómeno para isso. É que, se assim não for, não haveria grande dificuldade em construir um écran do tipo sete, de forma que os instrumentos de tipo electro magnético pudessem ficar completamente inoperantes. Sabe...

- É evidente que o que menos importa é aquilo que vai utilizar Nem sequer sei o nome desses materiais que vocês, os tipos dos labora tórios, utilizam... O que interessa são os resultados. O. K... você encarregue-se disso. Iremos traçar aqui todo o esquema, reunir todos os materiais que sejam necessários, transportá-los para a superfície e depois construir a coisa o mais depressa possível. Será que alguém tem alguma idéia sobre o tempo que isso irá levar? Receio bem que a minha experiência não se estenda à construção de edifícios.

Wilkie e Sheer estavam muito animados a discutir algo entre eles. Até que Wilkie se voltou para os restantes elementos e disse:

- Com esse ponto escusa de se preocupar, chefe. Faremos funcionar as forças.

- Que forças?

- Tem na sua secretária um memorando sobre o assunto. Trata-se daquelas experiências que inicialmente levámos a cabo através do efeito Ledbetter, sobre as forças de tracção e pressão.

- Sim, major -acrescentou Sheer-, pode ficar descansado em relação a esta questão. Eu responsabilizo-me por ela. Dispondo de forças de tracção e pressão a funcionar num espaço donde a gravidade foi eliminada, construiremos o templo num abrir e fechar de olhos. Vou até começar a treinar com uma maqueta, antes de começarmos a construção.

- O. K, pessoal - disse Ardmore, concordando sorridente e sentindo no coração aquele entusiasmo que nasce da perspectiva de trabalho árduo mas útil. - É assim mesmo que gosto de ouvi-los falar. Por agora, o assunto está arrumado. Toca a andar.

Thomas, venha comigo.

- Só um momento, chefe - disse Brooks, levantando-se para segui-lo. - Não poderíamos... - E saíram da sala a falar.

Apesar de todo o optimismo demonstrado por Sheer, a tarefa de construir um templo no cimo da montanha que se encontrava sobre a Cidadela fomentou algumas dores de cabeça inesperadas. Nenhum elemento do pequeno grupo alguma vez tivera qualquer tipo de experiência com construções de grande porte. Ardmore, Graham e Thomas não tinham quaisquer conhecimentos sobre isso, embora Thomas já tivesse executado muitas tarefas manuais, algumas delas, de carpintaria. Calhoun era matemático e com um temperamento perfeitamente incapaz de se incomodar com quaisquer trabalhos que não fossem de tipo intelectual. Brooks tinha muito boa vontade, mas era biólogo, e não engenheiro. Wilkie era um físico brilhante e, paralelamente, um óptimo engenheiro; caber-lhe-ia, a ele, desenhar as peças necessárias ao trabalho que se seguiria, o que faria com a maior das facilidades.

No entanto, Wilkie nunca construíra pontes nem desenhara barragens ou dirigira grupos de trabalhadores. Apesar de tudo isso, ia desempenhando a sua tarefa com bastante desenvoltura. Sheer não dispunha da competência necessária para construir um edifício tão vasto; pensava que era capaz de fazê-lo, mas pensava em termos de coisas de pequena dimensão: ferramentas, esquemas e outros pormenores no género. Era capaz de construir o modelo miniatura de um grande edifício, mas, pura e simplesmente, não entendia nada de construção pesada.

De modo que foi Wilkie quem teve de encarregar-se do trabalho.

Alguns dias mais tarde apresentou-se no gabinete de Ardmore, com um rolo de plantas debaixo do braço.

- Dá-me licença, chefe?

- Como? Oh... Entre, Bob. Sente-se. Então que tem feito? Quando é que começamos a construir o templo? Olhe, estive a pensar acerca de outras formas para dissimularmos a existência da Cidadela sob o templo. Acha que seria possível construir o altar de maneira a...

- Desculpe, chefe.

- Como?

- Podemos incluir tudo o que quiser na planta" mas primeiro tenho de saber mais alguns pormenores sobre o esquema.

- isso é problema que terá de resolver... você e Graham.

- Sim, senhor. Mas qual é a área que deseja que o edifício tenha?

- Que área? Oh, não faço a mínima idéia. Mas tem de ser grande. - Ardmore fez um gesto amplo com as mãos. - Tem de ter um aspecto impressionante.

- Que tal dar-lhe dez metros de altura?

- Dez metros? Ora essa! isso é ridículo! Você não está a construir um bar para tomar drinks, mas sim a casa-mãe de uma grande religião... Claro que isso não é verdade, mas é mesmo assim que tem de encará-la, Tem de se ser uma coisa que faça as pessoas ficar de boca aberta. Qual é o problema? Materiais?

Wilkie sacudiu a cabeça negativamente.

- Não, com o aparelho de transmutação Ledbetter não ternos falta de materiais. Podemos usar a própria montanha para nos fornecer todos os materiais necessários.

- Foi exactamente isso que pensei que ia fazer: cortar grandes massas de granito e utilizar os feixes de tracção e pressão para as alinhar, à semelhança de azulejos gigantescos.

- Oh, não!

- Não? E porquê?

- Bem, poderíamos fazer isso, mas, quando o trabalho estivesse ter minado, o aspecto da obra não seria lá muito agradável,,. E não sei de que maneira poderíamos colocar-lhe um telhado em cima. Estava a pensar em utilizar o efeito Ledbetter não apenas para cortar ou transportar, mas para fazer transmutações... para os materiais que pretendo Sabe, o granito é composto sobretudo por óxidos de silício, o que complica um pouco as coisas, porque ambos os elementos se encontram quase no fim da escala de valências. Só se nos conseguirmos livrar da maior parte da energia em excesso, que não é nada pouca, é que evitaremos o aparecimento de qualquer complicação; neste momento não estou a ver como será isso possível.

- Vá direito à questão, homem!

- Ia já referir-me concretamente à questão, senhor - respondeu Wilkie, melindrado. - As transmutações que se verificam desde os valores superiores até aos médios da escala, libertam energia; aquelas que se efectuam no sentido contrário absorvem energia. Em meados do século passado descobriram como desenvolver a primeira forma; foi através dessa evolução que as bombas atômicas foram inventadas, Mas quando se quer levar a cabo transmutações para obter materiais de construção, não se pretende libertar energia igual á de uma bomba atômica, ou coisa parecida. Isso seria muito pouco conveniente.

- Também acho que sim.

- Portanto, vou utilizar a segunda espécie, a do género que absorve energia. Estou a pensar até em equilibra la. Veja o magnésio, por exemplo, A sua composição medem entre o silício e o oxigénio. As energias relativas a...

-Wilkie!

- Diga, senhor!

- Faça de conta que eu nunca passei do liceu. Agora vejamos: pode arranjar os materiais de que necessita ou não?

- Oh, sim, senhor, posso arranjá-los.

- Então, por que me veio consultar?

- Bem, senhor, é a questão do telhado que temos de pôr sobre o edifício... e das dimensões do mesmo. Disse que dez metros não eram suficientes para a altura...

- Claro que não são suficientes. Por acaso viu a exposição norte-americana onde se encontrava o pavilhão da bomba atômica?

- Já vi fotografias sobre isso.

- Quero uma coisa tão grandiosa e impressionante como essa, só que ainda maior. Está a ver por que motivo esses dez metros não são suficientes?

- Bem, um painel de dois metros por dez é o máximo que posso dar á porta para ter espaço suficiente para se poder virar depois para o corredor.

- Sirva-se do ascensor dos helicópteros.

- Já tinha pensado nisso. Poderei lá enfiar um painel com cinco metros de largura, o que já não é mau, mas a máxima altura que poderá ter é apenas de oito metros. Há também uma curva entre o hangar e o ascensor.

- Hum... Olhe, não poderá soldar os painéis uns aos outros através de algum truque mágico? Pensei que ia construir o templo em secções, aqui em baixo, e depois juntar as várias partes já lá em cima.

- Essa foi a idéia inicial Sim, penso que seria possível soldar painéis desse tamanho. Mas, diga-me, major, de que tamanho quer o edifício?

- O maior que lhe for possível fazer.

- Mas de que tamanho o quer?

Ardmore disse-lho. Wilkie assobiou, admirado.

- Suponho que será possível fazer paredes assim tão grandes, mas não vejo é como é que lhes vamos pôr um telhado.

- Tenho idéia de já ter visto edifícios com essas dimensões.

- Sim, claro que existem muitos Basta pôr-me à disposição um grupo de engenheiros, arquitectos e material de construção pesada, que eu construo-lhe o maior templo que alguma vez já viu na sua vida. Mas Sheer e eu não podemos fazê-lo sozinhos, mesmo

dispondo de forças de tracção e pressão. Lamento muito, senhor,-mas não vejo hipótese de avançarmos com a idéia.

Ardmore ergueu-se e pousou uma mão no braço de Wilkie.

- Quer dizer que ainda não encontrou uma hipótese. Não fique assim tão preocupado, Bob. Faça o melhor que puder. Mas lembre-se apenas disto: será através desse templo que iremos fazer a nossa primeira entrada em cena. Está muita coisa em jogo. Não podemos esperar que os grandes senhores fiquem muito impressionados se lhes apresentarmos uma casinhota qualquer. Faça-a o maior possível. Gostaria que resultasse uma coisa tão impressionante como a Grande Pirâmide do Egipto... mas não demore tanto tempo a construí-la como na altura aconteceu.

Wilkie parecia preocupado.

- Vou tentar, senhor. Vou voltar lá para dentro e pensar bem no assunto.

- Óptimo!

Depois de Wilkie partir, Ardmore voltou-se para Thomas.

- Que pensas disto, Jeff? Estarei a pedir de mais?

- Estava exactamente a pensar -disse Thomas lentamente- por que razão o senhor faz tanto empenho neste templo...

- Bem, em primeiro lugar, porque dá uma cobertura perfeita para a Cidadela. Se tencionarmos fazer alguma coisa mais do que ficarmos aqui sentados a ver passar os anos, há de vir uma altura em que precisaremos de nos movimentar para o exterior e vice-versa.Nessas circunstâncias, teremos muita dificuldade em manter secreta a nossa localização, pelo que temos de arranjar uma razão para a justificar. Num edifício dedicado à prática de um culto, as pessoas estão constantemente a entrar e a sair, para irem rezar e coisas do género. Quero que essas andanças e o que se encontra por detrás das mesmas se possa realizar sem problemas.

- Compreendo-o perfeitamente. Mas um edifício com dez metros pode esconder tão bem uma escada secreta como esse palácio de congressos que quer que Wilkie construa.

-Caramba! - exclamou Ardmore. - Será que mais ninguém é capaz de ver a importância que a publicidade tem? Olhe, Jeff, o evoluir de toda esta questão dependerá da boa impressão que possamos fazer de início. Se Cristóvão Colombo se tivesse posto a pedir esmola lá na corte onde estava, teria sido levado para fora do palácio por uma orelha. Mas armou em grande senhor e conquistou as jóias da coroa. Temos de dar uma boa impressão logo de inicio.

- Penso que tem razão - respondeu Thomas sem grande convicção. Alguns dias mais tarde, Wilkie pediu autorização para ele e Sheer irem até ao exterior. Sabendo que não tencionavam afastar-se muito, Ardmore deu-lhes permissão para tal, depois de lhes aconselhar a máxima prudência.

Voltou a encontrá-los quando se dirigiam, um pouco mais tarde, para o laboratório. Traziam com eles um enorme pedaço de granito. Sheer mantinha o bloco suspenso no ar e afastado das paredes, através do auxílio de um aparelho gerador de forças Ledbetter, portátil, de tracção e pressão, que trazia ao ombro, Wilkie atara uma corda á volta do grande pedaço de rocha e conduzia-o como se de uma vaca se tratasse.

- Diabos me levem! - exclamou Ardmore - Que levam aí?

- Hum... um pedaço de rocha da montanha, senhor.

- Isso já eu percebi, Mas porquê? Wilkie parecia misterioso.

- Major, não se importa de que falemos lá mais para o fim do dia? Talvez nessa altura já tenhamos alguma coisa para lhe mostrar.

- Se não falarem, não falam. Pronto!

Wilkie telefonou-lhe mais tarde, muito mais tarde, pedindo-lhe que fosse ter com ele, e sugeriu que Thomas também fosse, Quando chegaram à vasta sala para onde tinham sido convidados, verificaram que todos os restantes elementos se encontravam presentes, com excepção de Calhoun. Wilkie cumprimentou-os e disse:

... Se nos dá licença, vamos começar, meu major.

- Não seja tão formal. Não vai esperar que o coronel Calhoun chegue?

- Disse-lhe para vir, mas ele declinou o convite.

- Então comece.

- Sim, senhor. - Wilkie voltou-se para as restantes pessoas. - Este pedaço de granito representa o cume da montanha que se encontra por cima de nós. Prossiga a explicação, Sheer.

Wilkie colocou-se junto do projector Ledbetter. Sheer encontrava-se ao pé de outro; estes tinham sido especialmente munidos de visores e outros acessórios que Ardmore não conseguiu identificar. Sheer carregou num par de botões; do aparelho saiu um feixe de luz muito delgado.

Utilizando-o como se de uma serra se tratasse, cortou a parte superior do bloco. Wilkie, utilizando uma combinação de tracção e pressão, agarrou na porção seccionada e retirou-a de cima do bloco. Trabalhando com os controlos, manteve-a suspensa no ar; no sitio onde estivera o pedaço que fora retirado do bloco via-se uma superfície lisa e brilhante.

- Essa será a base do templo - disse Wilkie, Sheer continuou a trabalhar o bloco com o seu delgado feixe, movimentando o projector a medida das suas necessidades. Foi dando a forma pretendida ao bloco e de um dos lados começou a moldar as escadas.

- Já chega, Sheer - ordenou Wilkie. - Façamos agora uma parede. Prepare a superfície.

Sheer moveu o seu projector. Não se via qualquer feixe, mas a superfície lisa da parte superior tornou-se de cor negra.

- Carbono - anunciou Wilkie - Provavelmente diamante industrial. É nele que vamos trabalhar. O. K.t Sheer. - Wilkie voltou a colocar em cima da referida superfície o pedaço que fora serrado; Sheer cortou um pedaço do mesmo e depois fundiu-o, ajudando-o a espalhar-se na superfície lisa, até ás margens, depois do que adquiriu um fulgor metálico. Enquanto arrefecia, Sheer, servindo-se de um feixe compressor, reforçou as extremidades, de modo a fixá-las fortemente contra a superfície sobre a qual se espalhara. Conseguiu, desta forma, formar uma caixa sem tampa, com setenta e cinco centímetros de largura e três de espessura. Wilkie desviou a caixa para o lado e manteve-a suspensa no ar.

O processo voltou a repetir-se, mas desta vez surgindo uma simples folha, e não uma caixa. Wilkie colocou a de lado e voltou a colocar a caixa no pedestal.

- E agora atabafemos o animal - disse Wilkie.

Pegando no pedaço de granito, voltou a colocá-lo sobre a caixa aberta. Sheer retirou-lhe uma porção que introduziu na caixa" fazendo incidir, seguidamente, um feixe sobre a mesma. Esta fundiu-se e espalhou-se na base da caixa.

- O granito è praticamente formado só por vidro - informou Wilkie-, e aquilo que pretendemos arranjar é vidro sob a forma de espuma, de modo que, neste caso, não vamos utilizar nenhum processo de transmutação.Aplique aí um pouco de nitrogénio, Sheer.

O sargento fez um sinal de concordância e executou a ordem recebida, O granito que se espalhara no interior da caixa começou a aumentar de volume e a assumir uma textura de espuma, subindo até aos bordos da caixa.

Wilkie agarrou então na folha que mantivera de parte e colocou-a sobre a abertura, à maneira de tampa.

- Solde-me isso, Sheer.

A folha tornou-se vermelha e ajustou-se perfeitamente aos contornos da abertura, como se mão invisível a pressionasse contra a mesma. Sheer fez o projector incidir em todas as arestas, fundindo-as de forma perfeita. Quando terminou, Wilkie deslocou a caixa para uma das extremidades do pedestal Deixando o seu projector controlado para mantê-la naquela posição, dirigiu-se até ao fundo da sala, onde um pedaço de pano tapava qualquer coisa que ali se encontrava.

- Para que não se perdesse tempo e para praticarmos, tínhamos já feito outras quatro iguais - explicou, desviando o pano.

Viam-se vários painéis colocados por cima uns dos outros, exactamente iguais àquele que tinham acabado de construir. Não lhes tocou; em vez disso, Sheer levantou-os, com o auxílio do projector, um de cada vez, e construiu um cubo, utilizando o painel que tinham acabado de fazer como primeira face e o pedestal como base do cubo. Wilkie voltou para junto do seu projector e manteve a estrutura imóvel, enquanto Sheer soldava cada uma das suas arestas.

- Sheer é muito mais perfeito do que eu a fazer este trabalho - explicou Wilkie. - Deixo para ele todas as tarefas delicadas. O. K., Sheer... e que tal arranjarmos uma porta?

- De que tamanho? - murmurou o sargento, falando pela primeira vez.

- Isso fica á sua consideração. Mas penso que, se tiver uma altura de vinte centímetros, já não estará mal.

Sheer emitiu um murmúrio de aprovação e recortou uma abertura rectangular na face do cubo onde tinham começado a desenhar os degraus. Quando acabou, Wilkie anunciou:

- Aqui está o seu templo, patrão.

Durante todas as suas fases de construção, o cubo não fora tocado por qualquer mão humana.

Os aplausos que se ouviram pareciam partir de uma multidão, e não das cinco pessoas presentes na sala, de tal modo se encontravam todos entusiasmados com a demonstração. Wilkie corou intensamente e o rosto de Sheer crispou-se de emoção. Acercaram-se imediatamente do cubo.

- Está quente? - perguntou Brooks.

- Não - respondeu Mitsui. - Já lhe pus a mão em cima.

- Não queria dizer isso.

- Não, não está quente. - assegurou Wilkie. - Isso não acontece com o processo Ledbetter. Os isótopos que aqui se encontram são todos estáveis.

Ardmore endireitou-se, depois de examinar tudo muito bem.

- Presumo que esteja a pensar em fazer o trabalho todo lá fora, não é verdade?

- Acha que isso não faz mal, major? Claro que poderíamos trabalhar aqui em baixo, construindo pequenos painéis e depois juntá-los todos lá em cima, mas tenho a certeza de que isso ia demorar mais tempo e não tenho a certeza de que a coisa fique perfeita através desse processo. Este tipo de painéis são do tipo de estrutura mais leve, forte e segura que podemos utilizar. O que nos levou a descobrir este sistema foi a tentativa de resolvermos esse problema do telhado de que o senhor falava.

- Façam-no da maneira que entenderem ser a melhor. Tenho a certeza de que sabem o que estão a fazer.

- Claro - admitiu Wilkie. - Já se vê que não vamos poder construir o templo assim tão rapidamente como fizemos com esta amostra. Isto é apenas a carapaça exterior. Não sei de quanto tempo mais iremos precisar para revestir o interior.

- Revestir o interior? - perguntou Graham. - Então vocês têm uma construção assim tão bela e de formas tão perfeitas e vão retirar-lhe essas características todas com uma decoração? O cubo é uma das formas que possui as linhas mais puras e estéticas que existem.

- Concordo com Graham - disse Ardmore. - Vocês têm aí o templo á vossa frente na forma que ele deve ter. Não conseguirão arranjar nada que pareça mais impressionante do que essa enorme e inexpugnável massa de vidro. Quando se consegue alcançar um resultado assim tão simples e imponente como este, não se deve desperdiçá-lo com acrescentos desnecessários.

Wilkie encolheu os ombros e disse:

- Não sei. Pensei que vocês queriam uma coisa original.

- Isto é original. Mas olhe, Bob, há uma coisa que me deixa intrigado. Repare, não lhe estou a fazer nenhuma crítica... Antes disso criticaria o dia da Criação... Mas diga-me uma coisa: por que razão se arrisca a ir lá para fora? Porque é que não se enfia antes numa das salas que estão desocupadas e com o auxílio dessas máquinas mágicas que tem à sua disposição trabalha o granito a partir daqui mesmo, do coração da montanha?

Wilkie parecia assombrado.

- Nunca me lembrara dessa possibilidade.

 

O helicóptero patrulhava lentamente a região a sul de Denver. O tenente pan-asíático que o comandava consultou o mapa de fotografias aéreas, recentemente feito, que tinha à sua frente e fez sinal ao piloto para que fizesse o aparelho pairar sobre o local. Sim, lá estava ela, uma enorme construção de forma cúbica que se elevava no cimo da montanha. Fora registada pelos serviços cartográficos do novo reino ocidental do Celeste Império, e fora-lhe dada a missão de investigá-la.

O tenente considerava o trabalho como uma simples questão de rotina. Embora o edifício não constasse nos registos administrativos do distrito, esse facto não tinha nada de surpreendente. O novo território conquistado era extremamente extenso e os aborígenes, de hábitos tão indisciplinados -característica de todas as raças inferiores-, não conseguiam ter nada convenientemente registado. Iriam passar muitos anos antes que todas as coisas que integravam aquele novo país selvagem pudessem ficar devidamente inventariadas e registadas, especialmente devido ao facto de aquelas gentes, pálidas e anémicas, parecerem oferecer tanta resistência aos benefícios da civilização.

Sim, seria uma tarefa de longa duração, talvez tão longa como a da "uniformização" da índia. Naquela manhã recebera uma carta da esposa principal a informá-lo de que a segunda esposa acabara de lhe dar um filho masculino. Deveria agora pedir para ser reclassificado como colono permanente, de modo a poder mandar vir a família para junto dele, ou deveria solicitar que lhe fosse concedida a licença que há tanto lhe era devida?

Mas esses pensamentos não eram dignos de um servidor do Celeste Império! Recitou para si os sete princípios da raça guerreira e informou o piloto de que devia descer naquele local.

Visto do chão, o edifício era ainda mais impressionante do que do ar. Era formado por uma enorme massa de faces quadradas que tinha bem uns duzentos metros em cada aresta. A face que estava virada na sua direcção era de um verde-esmeralda brilhante, apesar de se encontrar do lado oposto ao sol-poente. Do sítio em que se encontrava podia ver uma pequena porção da face do lado direito: era dourada.

O grupo de patrulha que o acompanhava desceu juntamente com ele do helicóptero, seguidos pelo guia montanhês que tinham contratado para este serviço. Dirigiu-se ao homem branco em inglês:

- Já alguma vez tinhas visto este edifício?

- Não, mestre.

- E por que não?

- Não conheço esta parte da montanha.

Era provável que o homem estivesse a mentir, mas não valia a pena castigá-lo. Deixou ficar as coisas como estavam.

- Conduz-nos até lá.

Começaram a subir lentamente a encosta em direcção ao imenso cubo, cujas escadas de acesso eram ainda mais vastas do que o próprio cubo em si. Antes de principiar a subi-las, o tenente hesitou momentaneamente. Sentia um certo mal-estar inexplicável, uma sensação de inquietude, como se uma voz no seu íntimo estivesse a preveni-lo de algum perigo oculto.

Pousou o pé no primeiro degrau. Uma nota profunda e clara repercutiu-se ao longo do desfiladeiro; a sensação de mal-estar transformou-se num pavor irracional. Deu-se conta de que os seus homens estavam igualmente subjugados pela mesma inquietação.

Resolutamente, subiu ao segundo degrau. Uma outra nota, diferente da primeira, ecoou através das colinas.

Continuou a subir firmemente a longa escadaria, seguido relutantemente pelos seus homens. A laboriosa subida foi acompanhada por uma série de notas musicais majestosas e infinitamente trágicas - laboriosa porque os degraus eram demasiadamente vastos e altos para que pudessem ser transpostos com facilidade. À medida em que se ia aproximando do edifício, o oficial pan-asiático sentia pesar sobre ele, cada vez mais intensamente, a iminência de um perigo tremendo, de um desastre inevitável.

Enquanto o tenente ia subindo a escadaria com os seus homens, as monumentais portas foram-se abrindo lentamente e sob a arcada surgiu um homem envergando longos trajes de cor de esmeralda. Os brancos cabelos e a longa barba davam ao seu rosto um ar de dignidade e bondade. Quando o tenente atingiu o cimo da escadaria, o homem moveu-se majestosamente na sua direcção. Aquele deu-se conta, atónito, de que a cabeça do homem estava rodeada por um estranho halo luminoso. Mas não teve tempo de

se perder em conjecturas sobre o mesmo; o ancião ergueu a mão direita num gesto de bênção e disse:

- A paz seja convosco!

E foi tudo o que aconteceu! A sensação de terror, o medo irracional que o pan-asiático sentira, desapareceu subitamente, como se alguém tivesse desligado um interruptor. Aliviado, deu consigo a olhar para aquele membro da raça inferior - um padre, como tudo indicava - com uma simpatia que normalmente só reservava para os seus iguais. Tentou recordar-se das recomendações próprias para lidar com as religiões inferiores.

- Que lugar é este, santo homem?

- Vossa Senhoria encontra-se no limiar do Templo de Mota, deus dos deuses e deus de tudo!

- Mota... Hum... - Não se recordava de ouvir o nome desse deus, mas isso era o que menos importava, pois aquelas inferiores criaturas tinham milhares de deuses esquisitos; os escravos precisavam apenas de três coisas para se manter pacíficos, e essas três coisas eram o alimento, o trabalho e os seus deuses. Assim o dizia o livro Preceitos para Governar. - Quem és tu?

- Sou um humilde sacerdote, o primeiro-servidor de Shaam, Deus da Paz.

- Shaam? Percebi que disseste que o teu deus era Mota.

- Servimos o deus Mota em seis dos seus mil atributos. Vós servi-lo-eis á vossa própria maneira. Até mesmo o Celeste Imperador o serve a seu modo. O meu dever é servir o deus da paz.

Isto aproximava-se perigosamente da traição, pensou o tenente, se não mesmo da blasfémia. No entanto, talvez fosse possível que um mesmo deus possuísse vários nomes, e o nativo não parecia querer causar problemas.

- Muito bem, santo homem, o Celeste Imperador autoriza-te a que sirvas o teu deus da forma que te apetecer, mas é meu dever inspeccionar o templo. Afasta-te.

O ancião não se moveu, mas respondeu de modo pesaroso:

- Lamento muito, mestre, mas isso não pode ser.

- Tem de ser. Afasta-te!

- Por favor, mestre, imploro-lhe! Vós não podeis entrar aqui. Nos seus seis atributos, Mota é deus apenas dos brancos. Deveis ir ao vosso próprio templo; não podeis entrar neste aqui. Todos aqueles que não fizerem parte dos seus seguidores perecerão.

- Estás a querer ameaçar-me?

- Não, mestre, não... Nós servimos o imperador, tal como o nosso destino nos impõe. Mas é o próprio deus Mota que proíbe terminantemente que esta regra seja quebrada. Se o ofenderdes, não vos poderei salvar da morte.

- Em nome do Celeste Imperador, afasta-te! - Encaminhou-se resolutamente através do terraço, em direcção à porta, seguido pelo seu grupo de homens, em passo cadenciado. Sentia-se de novo invadir pelo pânico anterior, à medida que se aproximava da grande porta. Tinha a impressão de que algo lhe comprimia o coração e experimentava um desejo louco de desatar a correr dali para fora. Somente a coragem fatalista que o seu treino lhe incutira o impedia de fazê-lo. Via, através da porta, um hall enorme, ao fundo do qual estava um altar, também de grandes proporções, mas que parecia diminuto no meio de toda aquela imensidão. As paredes interiores brilhavam, cada uma delas com a sua própria luz, em vermelho, azul, verde e dourado. O tecto era

de um branco imaculado e o chão era totalmente negro.

Disse para consigo que ali não havia nada de que tivesse de ter medo, que o terrível e irracional pavor que sentia era uma fraqueza indigna de um guerreiro. Penetrou no limiar do templo. Sentiu a cabeça a andar-lhe à roda, uma sensação instantânea de insegurança e caiu inanimado no chão.

A escolta que o seguia teve o mesmo fim.

Ardmore saiu do esconderijo onde estivera e dirigiu-se para junto deles.

- Bom trabalho, Jeff - exclamou. - Devias trabalhar no teatro! O velho sacerdote descontraiu-se, finalmente.

- Obrigado, chefe. E agora que fazemos?

- Temos tempo de pensar nisso. - Virou-se na direcção do altar e chamou: - Sheer!

- Pronto, senhor.

- Desliga o aparelho! - Virando-se para Thomas, murmurou: - Aqueles malditos sons subsónicos dão-me cabo do sistema nervoso, mesmo conhecendo perfeitamente os efeitos que provocam. Gostaria de saber como se terá sentido aqui o nosso amigo amarelo.

- Acho que estava mortalmente apavorado. Nunca pensei que conseguisse passar para além da porta.

- Não o censuro por isso. Esta coisa dava-me vontade de berrar que nem um possesso e era eu que tinha de mandar ligá-la. Não há nada como o medo do desconhecido para deitar um homem abaixo. Bem, apanhámos o urso pela cauda. Agora temos de arranjar uma maneira de soltar...

- Então e ele? - perguntou Thomas, indicando o montanhês com a cabeça. Este permanecera imóvel próximo do cimo da escada.

- Ah, é verdade. - Ardmore assobiou-lhe e gritou: - Eh, você! Venha cá!

O homem hesitou e Ardmore acrescentou:

- Caramba... então você não vê que somos brancos? O homem respondeu:

- Isso já eu vi, mas não estou a gostar nada do que se passa aí. - Apesar de tudo, começou a aproximar-se.

Ardmore disse:

- Isto que aqui vê é uma encenação que montámos para enganar os estupores amarelos que por aí andam. Agora, que já sabe o que se passa, está metido na jogada. Quer juntar-se a nós?

Entretanto, os restantes membros da Cidadela tinham-se acercado. O montanhês olhou de relance para os seus rostos.

- Não me parece que tenha muito por onde escolher.

- Talvez não, mas preferimos ter um voluntário a ter um prisioneiro.

O montanhês mudou o pedaço de tabaco que estava a mascar, do lado esquerdo da boca para o direito, e olhou para o imaculado pavimento, à procura de um sítio onde pudesse cuspir; decidindo não o fazer, respondeu:

- Qual é a jogada?

-É um truque para enganar os nossos invasores asiáticos. Estamos a planear dar-lhes a volta... com a ajuda de Deus e do grande deus.

O guia olhou para eles novamente, depois do que, tirando uma das mãos do bolso, disse: - Contem comigo.

Ardmore, apertando-lhe a mão. - Como se chama?

- Howe. Alexander Hamilton Howe. Para os amigos, sou o Alec.

- O. K, Alec. Vejamos agora o que pode fazer. Sabe cozinhar? -acrescentou.

- Menos mal.

-Esplêndido. - Voltando-se para Graham, disse: - Graham já tem aqui um ajudante. Falarei com ele mais tarde. Ora bem Jeff não lhe pareceu que um destes tipos aqui se foi abaixo um pouco mais lentamente do que os outros?

- Talvez. Porquê?

- Foi este aqui, não foi? - Tocou, com o sapato, numa das figuras que jaziam por terra.

- Acho que sim, que foi esse.

- Muito bem, quero examiná-lo antes de o reanimarmos. Se fosse mongol, teria desmaiado mais rapidamente. Dr. Brooks, importa-se de verificar os reflexos deste rapaz? E não se preocupe em ser excessivamente delicado.

Brooks conseguiu detectar alguns reflexos imediatos do corpo inanimado. Ao ver isto, Ardmore debruçou-se sobre o mesmo e, colocando o polegar num ponto onde se encontrava determinado nervo, por detrás da orelha, pressionou firmemente. O soldado recobrou imediatamente os sentidos, pondo-se de joelhos e tremendo de pavor.

- Muito bem, meu caro... agora desembuche.

O soldado permaneceu impassível, olhando para ele. Ardmore analisou o rosto que tinha á sua frente durante alguns momentos, depois do que fez um rápido sinal de reconhecimento, sem que os outros dessem por isso.

- Por que não o disse há mais tempo? - perguntou o soldado pan-asiático.

- Posso dizer que se trata de um óptimo trabalho de maquilhagem - comentou Ardmore, de forma admirativa. - Qual é o seu nome e posto?

- O que vê aqui é trabalho de tatuagem e cirurgia plástica - respondeu o outro. - Chamo-me Downer e sou capitão do Exércitos dos Estados Unidos.

- Eu sou o major Ardmore.

- Muito prazer em conhecê-lo, major. - Apertaram as mãos. - Estou mesmo muito contente em encontrá-lo. Tenho andado nesta vida há meses, tentando descobrir alguém com quem pudesse contactar.

- Bem, não há dúvida de que nos vai ser muito útil. Esta organização ainda está muito incipiente. Agora tenho vários assuntos a tratar. Falaremos mais tarde.

Afastou-se e, dirigindo-se aos outros homens, disse:

- Voltem aos vossos lugares, senhores. O segundo acto vai começar. Verifiquem se os disfarces estão em ordem. Wilkie veja se esconde Howe e Downer. Vamos reanimar os nossos hóspedes.

Todos cumpriram imediatamente a ordem. Downer tocou no braço de Ardmore e disse-lhe:

- Só um momento, major. Não sei qual é o vosso plano, mas antes de prosseguir o mesmo, acha, de certeza, que não quer que eu mantenha a minha posição actual?

-Como? Hum... é capaz de ser "uma boa idéia. Sente-se capaz de continuar a desempenhar a mesma charada?

- Estou disposto a fazê-lo se considerarem que é útil - replicou Downer, sem hesitar.

- Claro que vai ser útil. Thomas, chegue aqui.

Dirigiram-se os três para um canto onde conferenciaram durante alguns minutos, combinando uma forma de Downer lhes fazer chegar os seus relatórios com regularidade, dando-lhe Ardmore a conhecer alguns aspectos mínimos do projecto em curso.

- Bem e agora desejo lhe boa sorte, meu velho - concluiu Ardmore. - Agora volte para junto dos outros e finja-se morto, enquanto reanimamos os seus comparsas.

Thomas, Ardmore e Calhoun começaram a tratar do tenente pan-asiático, que depressa recobrou a consciência.

- Deus seja louvado! - entoou Thomas. - O mestre está vivo! O tenente olhou em redor, sacudiu a cabeça e levou imediatamente

a mão ao coldre. Ardmore, impressionante com as vestes vermelhas de Dis, deus da destruição, que envergava, ergueu uma das mãos.

- Mestre, por favor tenha cuidado! Acabo de rogar ao nosso deus Dis que o trouxesse de novo ao nosso seio. Não o ofenda de novo.

O asiático hesitou e depois perguntou:

- Que aconteceu?

- O deus Mota, actuando através de Dis, o Destruidor, apropriou-se da vossa pessoa. Oramos e implorámos a Tamar, deusa da piedade, que intercedesse por vós. - Estendeu o braço na direcção da porta aberta. Wilkie. Graham e Brooks, convenientemente trajados, atarefavam-se em inúmeras genuflexões diante do altar. - A nossa prece foi magnanimente atendida. Podeis partir em paz!

Sheer, no seu posto, junto aos painéis de controlo, aproveitou o momento para conferir ainda maior solenidade ao ambiente, aumentando o volume dos sons subsónicos. Sentindo um medo acabrunhante apertar-lhe o coração, confuso e desvairado, o tenente não perdeu mais tempo e dirigiu se para a saída. Reuniu os seus homens e marchou pela vasta escadaria abaixo, acompanhado de uma colossal e terrífica amálgama de notas musicais de órgão.

- Pronto, as cartas estão lançadas - disse Ardmore, depois de o pequeno grupo ter desaparecido ao longe. - O primeiro round é por conta dos discípulos de deus. Thomas, quero que vá imediatamente para a cidade.

- Sim?

- Envergue a fatiota completa. Procure o responsável distrital e apresente uma queixa formal sobre o facto de o tenente pan-asiático ter profanado pecaminosamente o nosso recinto sagrado, para grande indignação dos nossos deuses, e peça que lhe assegurem que isso não voltará a acontecer. Terá de mostrar que está profundamente indignado com tudo o que aconteceu, veementemente indignado, veja se percebe, mas sempre muito respeitador para com a autoridade temporal.

- Sinto-me muito honrado com a confiança que deposita em mim - disse Thomas com um sorriso sardónico e Ardmore sorriu-lhe.

- Sei que é uma recomendação desnecessária, rapaz, mas não quero deixar de lhe chamar a atenção para a importância que isso vai ter. Se conseguirmos, através dos próprios costumes deles, estabelecer um precedente imediato que nos reconheça a legitimidade desta religião, que passará a usufruir de todas as imunidades que são habituais nestes casos, temos metade da batalha ganha.

- Suponha que me pedem o meu cartão de identificação?

- Se se conduzir com suficiente arrogância, eles nunca se atreverão a pedir-lho. Lembre-se apenas daquelas grandes damas que costumavam pavonear-se pelos clubes e encha-se da mesma arrogância. Quero que eles comecem a habituar-se à idéia de que quem quer que traga essas vestes e tenha esse halo à volta da cabeça não precisa de se identificar. Isso poupar-nos-á muitos aborrecimentos mais tarde.

- Vou tentar... mas não prometo nada.

- Acho que vai consegui-lo. De qualquer modo, vai equipado com material suficiente para se safar. Sempre que se aproximar de algum deles, ponha o seu escudo de protecção a funcionar. Não tente nunca dar-lhes qualquer explicação sobre o mesmo.

É um milagre... e pronto!

O relatório que o tenente apresentou aos seus superiores não os satisfez. Ele próprio não estava muito convencido daquilo que lá escrevera. Sentia-se ferido no seu amor-próprio e as palavras que ouviu dos chefes não serviram para atenuar essa sensação.

- Você, um oficial do Exército do Celeste Império, permitiu que elementos de uma raça escravizada o diminuíssem? Que tem a dizer sobre isso?

- Peço o vosso perdão, senhor!

- Não me cabe a mim concedê-lo. É questão que terá de resolver com os seus ancestrais.

- Compreendi, senhor! - E acariciou o cabo da espada que trazia à cintura.

- Não é necessário que se apresse; ordeno-lhe que faça um relato do que se passou, directamente ao governador imperial.

O governador local do Celeste Império, responsável militar por aquela região que englobava Denver e a Cidadela, ficou igualmente muito pouco satisfeito com o que ouviu.

- Que lhe deu para entrar no recinto sagrado deles? Esta gente é nervosa e excitável como as crianças. A sua actuação poderia desencadear uma série de assassínios de pessoas muito mais válidas do que você. E não podemos estar sempre a desperdiçar a vida de escravos para lhes dar lições.

- Sou indigno, senhor.

- Não direi o contrário. Pode ir.

O tenente retirou-se, não para junto dos seus familiares, mas sim dos seus antepassados.

O governador imperial voltou-se para o seu adjunto.

- É provável que venhamos a ser incomodados por alguma queixa dos sacerdotes deste culto. Veja se eles são bem atendidos e diga-lhes que os seus deuses não voltarão a ser incomodados. Tome nota das características da seita e envie uma notificação geral a avisar que eles devem ser tratados com cuidado. - Suspirou. - Esses selvagens e os seus falsos deuses! Estou a ficar farto deles. No entanto, são necessários; os padres e os deuses dos escravos lutam sempre do lado dos mestres. É uma lei da Natureza.

- O mestre ordena e as suas ordens são cumpridas.

Ardmore ficou radiante ao ver Thomas de volta à Cidadela. Apesar da sua confiança na capacidade de Jeff em se desembaraçar nas situações difíceis, apesar das afirmações que Calhoun lhe fizera acerca das propriedades de protecção do escudo, o qual, devidamente manobrado, protegia aquele que o utilizasse contra tudo quanto os Pan-Asiáticos quisessem atirar contra o mesmo, Ardmore andara extremamente enervado desde que Thomas partira para apresentar queixa às autoridades pan-asiáticas. Podia ser que, afinal, a atitude destas para com as religiões locais fosse apenas uma tolerância e estas não recebessem especial encorajamento.

- Bem-vindo seja, meu caro! - exclamou, abraçando-o e dando-lhe pancadinhas nas costas. - Estou muito contente por voltar a ver essa sua fronha... Diga-me, que aconteceu?

- Antes disso deixe-me tirar esta maldita fatiota, que já lhe conto tudo. Tem um cigarro? Esse é um dos aspectos mais dolorosos de quem se quer fazer passar por sacerdote; eles não fumam.

- Claro. Aqui tem. Comeu alguma coisa?

- Já lá vai algum tempo.

Ardmore falou para a cozinha, através do intercomunicador.

- Alec, traga algumas vitualhas para o tenente Thomas. E diga ao resto do pessoal que, se quiser ouvir a história que ele tem para contar, pode vir ao meu gabinete.

- Pergunte-lhe se ainda tem algum abacate.

Ardmore assim fez.

- Ele diz que ainda estão congelados, mas que já vai preparar um. Agora ouçamos a sua história. Que disse o Capuchinho Vermelho ao Lobo Mau?

- Bem... não vai acreditar no que lhe vou dizer, chefe, mas olhe que não tive qualquer problema. Cheguei à cidade, dirigi-me imediatamente ao primeiro guarda pan-asiático que encontrei, assumi uma atitude imponente e dei-lhe a bênção... pousando a mão direita no peito e erguendo a mão esquerda para fazer o sinal do costume; nada que se assemelhasse a essas atitudes de mãos postas e cabeça baixa que qualquer branco agora costuma usar diante dos tipos. Depois disse-lhe: "Que a paz seja convosco!

Mestre, importa-se de conduzir este seu servo ao governador do Celeste Império?"

"Não me pareceu que percebesse lá muito de inglês. Parecia espantado com os modos com que me dirigia a ele e chamou outro amarelo para ajudá-lo. Este conhecia um pouco melhor a língua, pelo que lhe repeti o pedido. Tagarelaram um pouco com aquela algaravia cantada que é a língua deles e, finalmente, conduziram-me até ao palácio do governador, íamos os três ao lado uns dos outros... eu no meio, a andar de forma a manter-me sempre ligeiramente mais á frente do que eles.

- Boa idéia - aprovou Ardmore.

- Foi também o que pensei. De qualquer modo lá cheguei e contei a história que levava preparada a um suboficial qualquer. O resultado deixou-me varado de espanto. Fui imediatamente levado à presença do governador em pessoa.

- Não me diga!

- Espere um pouco... isto não é tudo. Admito que estava bastante assustado, mas disse com os meus botões: "Jeff, meu velho, se começas agora a rastejar, nunca conseguirás sair daqui vivo." Eu sabia que, diante de um oficial com aquela patente, um branco tinha de se pôr de joelhos. Eu não o fiz; fiz a mesma pose ao dar-lhe a bênção como fizera com o seu acólito. E ele não ficou ofendido com isso! Olhou-me de alto a baixo e disse: "Agradeço-lhe a bênção, santo homem. Pode aproximar-se."

A propósito, o tipo fala muito bem inglês.

"Bem, dei-lhe a minha versão do que aqui se passara, uma versão semelhante àquela que o oficial deles lhes deve ter dado. E ele perguntou-me algumas coisas.

- Que espécie de coisas?

- Quis saber, em primeiro lugar, se a minha religião reconhecia a autoridade do imperador. Assegurei-lhe que sim e que os nossos seguidores tinham instruções para obedecer à autoridade temporal em questões de carácter temporal, mas que o nosso credo ordenava-nos que adorássemos os nossos deuses verdadeiros á nossa própria maneira. Depois fiz-lhe uma longa prelecção teológica. Disse-lhe que todos os homens adoravam Deus, mas que Deus tinha mil atributos, cada um dos quais era um mistério. Deus, na sua divina sabedoria, achara conveniente aparecer às várias raças através dos seus diversos atributos, porque não era próprio que servo e senhor prestassem a Deus tributo da mesma maneira. Por isso mesmo, os seis atributos de Mota, Shaam, Mens, Tamar, Barmac e Dis tinham sido destinados ao homem branco, tal como o Celeste Imperador tinha um atributo reservado apenas à raça dos mestres.

- E como é que ele aceitou isso?

- Creio que o tipo achou que a doutrina era muito apropriada... para escravos. Perguntou-me a que outras tarefas se dedicava a minha igreja, para além dos serviços religiosos, e eu disse-lhe que a nossa principal tarefa era cuidar dos pobres e dos enfermos. Pareceu ficar muito agradado ao ouvir isso. Tenho a impressão de que os nossos senhores consideram esta questão muito preocupante.

- O quê, a questão de cuidar dos pobres e dos enfermos?

- Não exactamente. Mas, quando se têm prisioneiros num campo de concentração, há que alimentá-los. A economia interna sofreu uma quebra muito grande e eles ainda não conseguiram endireitá-la. Penso que encararão com muita simpatia um movimento que os alivie de preocupações excessivas em relação à alimentação dos escravos.

- Hum... mais alguma coisa?

- Nada de especial. Voltei a assegurar-lhe que nós, como lideres espirituais, estávamos interditos pela nossa doutrina de nos metermos em política e ele disse-me que, de futuro, não voltaríamos a ser incomodados. Depois disse-me que podia retirar-me.

Voltei a dar-lhe a bênção, virei-lhe as costas e saí.

- Tenho a impressão - disse Ardmore - de que o deixou completa-mente convencido.

- Eu não estaria muito descansado em relação a isso, chefe. Aquele burro velho é arguto e maquiavélico. Não devia chamar-lhe propriamente burro velho, porque ele não o é... a nível dos seus compatriotas. É um homem de Estado. Reconheço que me impressionou. Olhe... estes Pan-Asiáticos... estúpidos é que não devem ser: conquistaram e mantêm quase metade do mundo, centenas de milhões de pessoas, Se toleram as religiões locais é porque chegaram à conclusão de que isso só lhes favorece a política. Temos de mantê-los a pensar assim em relação a nós, não nos esquecendo nunca de que estamos a lidar com dirigentes inteligentes e experientes.

- Não há dúvida de que tem razão. Temos mesmo de ter cuidado e não os subestimarmos.

- A coisa não ficou por aqui. Quando ia a sair do palácio, fui seguido por uma escolta que nunca mais me largou. Continuei a andar, não lhes prestando a mínima atenção. O caminho que me conduzia para fora da cidade passava pelo mercado principal.

Estava cheio de brancos, alinhados em filas, aguardando a sua vez para comprar alimentos através dos cartões de racionamento. Ocorreu-me uma idéia e decidi verificar até que ponto ia a minha imunidade. Parei e, subindo para uma caixa, comecei a pregar-lhes.

Ardmore assobiou de admiração.

- Caramba, Jeff, não devia ter-se arriscado a tanto!

- Mas, major, nós precisávamos de saber o que aconteceria num caso destes, e o pior que podia suceder-me era mandarem-me calar.

- Bem... sim, penso que tem razão. De qualquer modo, este trabalho necessita que se corram riscos, e você teria de tomar as suas próprias decisões. Talvez a audácia seja a política mais segura a seguir. Desculpe a minha interrupção...

Depois, que aconteceu?

- Inicialmente, a minha escolta pareceu ficar confundida e não saber que fazer. Continuei a pregar, não os perdendo de vista pelo canto do olho. Depressa apareceu um dos seus companheiros que parecia mais velho e ficaram todos a falar durante um bocado. Depois, o soldado mais velho foi-se embora, voltando passados cinco minutos e ficando ali a olhar para mim. Deduzo que tivesse ido telefonar e que lhe tivessem dado instruções para não me incomodar.

- Qual foi a reacção da multidão?

- Penso que ficaram sobretudo impressionados pelo facto de. aparentemente, um branco ter quebrado uma das regras estabelecidas pelos grandes senhores e não ser punido por isso. Não tentei dizer-lhes nada de especial. Baseei a minha prelecção no lema "o Discípulo vai chegar!" e teci uma série de generalidades inocentes sobre a questão. Recomendei-lhes que se portassem bem, que estava para breve a vinda do Discípulo que ia alimentar aqueles que tinham fome, sarar os que estavam enfermos e consolar os que padeciam.

-Hum... agora, que já começou a fazer lhes promessas, é melhor que pensemos em satisfazê-las.

- Já lá ia chegar, chefe. Será conveniente instalarmos uma filial do templo em Denver, o mais depressa possível.

- Ainda não temos pessoal que chegue para começarmos já a espalhar-nos.

- Tem a certeza? Não gosto nada de contradizê-lo, mas não estou a ver possibilidades de arranjarmos novos recrutas se não formos até onde os recrutas estão. Já temos todas as condições criadas para isso; pode ter a certeza de que não há branco em Denver que neste momento não esteja a falar do velho da auréola (veja bem, da auréola!), que pregou no mercado e a quem os Pan-Asiáticos não ousaram interromper. Acorreriam aos magotes!

- Bem... talvez tenha razão.

- Penso que a tenho. Partindo do princípio de que não pode dispensar nenhum dos elementos que se encontram na Cidadela, podíamos proceder da seguinte maneira: eu vou lá abaixo, até à cidade, com o Alec, escolher um edifício que possamos transformar em templo, a fim de começarmos a administrar os actos de culto. Inicialmente podemos ir munidos dos projectores, bem disfarçados entre as vestes, e depois Sheer poderia ir ter connosco para arranjar o interior do templo e instalar um emissor próprio no altar. Assim que as coisas estivessem a funcionar normalmente, deixávamos as operações de rotina ao cuidado de Alec. Ele seria o sacerdote local de Denver!

Enquanto Ardmore e Thomas iam falando, os outros iam chegando um a um. Chegados a este ponto, Ardmore virou-se para Alec Howe.

- Que me diz a isto, Alec? Pensa que pode desempenhar o papel de padre a dar sermões, organizar obras de caridade e coisas desse género?

O montanhês demorou um pouco a responder:

- Acho que preferia continuar a fazer o mesmo trabalho que me deram até aqui, major.

- A coisa não é assim tão dificil como parece - assegurou-lhe Ardmore. - Thomas e eu encarregamo-nos de escrever-lhe os sermões. O resto consistirá sobretudo em manter uma atitude reservada e os olhos bem abertos, enviando-nos para aqui todos aqueles que lhe parecem poder dar bons recrutas.

- O problema não está nos serrrões, major. Eu sei como dizer um sermão... Quando era novo, costumava fazer de sacristão. Só o que me choca é ter de conciliar esta falsa religião com a minha consciência. Bem sei que o objectivo que se propõem é digno e eu concordei en ajudá-los, mas preferia ficar na cozinha.

Ardmore, antes de responder, escolheu cuidadosamente as palavras.

- Alec - disse, em voz grave-, penso que estou a perceber o seu ponto de vista. Não poderia nunca obrigar nenhum homem a fazer uma tarefa que fosse contra a sua consciência. De facto, até nem teriamos adoptado a cobertura de uma religião para levar a cabo os nossos objectivos, se por acaso tivéssemos descoberto qualquer outra forma de lutarmos pelos Estados Unidos. A sua fé proíbe-o de lutar pelo seu país?

- Não, não proíbe.

- A sua tarefa principal como sacerdote desta igreja será a de ajudar os indefesos. Será que esta tarefa não se coaduna com a sua fé?

- Claro que sim. É exactamente por isso que não posso fazê-lo em nome de um falso deus.

- Mas será que se trata de um falso deus? Acha que Deus se rala alguma coisa com o nome que Lhe dá, desde que as acções que execute em Seu nome Lhe agradem? Repare bem - acrescentou vivamente. -Não quero com isto dizer que esta espécie de templo que construirão aqui seja a casa do Senhor; mas não será a adoração de Deus mais um sentimento que está dentro de si, em vez das formas verbais e dos cerimoniais utilizados?

- Tudo o que disse é verdade, major... mas, mesmo assim, não me sinto com capacidade de fazer uma coisa dessas.

Ardmore reparara que Calhoun estivera a escutar toda a conversa com um ar de mal contida impaciência. Decidiu dar o caso por encerrado.

- Alec, agora quero que vá lá para dentro e pense maduramente no assunto. Venha falar comigo amanhã. Se não puder reconciliar esta tarefa com a sua consciência, conceder-lhe-ei dispensa na qualidade de objector de consciência, sem qualquer problema.

Nem sequer terá de continuar a ajudar na cozinha.

- Não queria chegar a tanto, major. Parece-me que...

- Não, realmente não pode ser. Se uma coisa está mal, a outra também está. Não quero ser responsável por obrigar um homem a fazer alguma coisa que seja uma agressão à sua fé. Agora pode retirar-se e pensar nisso.

Ardmore obrigou o homem a sair sem lhe dar mais nenhuma oportunidade de falar.

Calhoun não conseguiu conter-se por mais tempo.

- Realmente, major, estou espantado consigo! Então o senhor permite que a superstição prejudique a prossecução dos objectivos militares?

- Não, coronel, não é assim. No entanto, neste caso, a superstição, como o senhor lhe chama, é um facto militar. O caso de Howe é um exemplo daquilo com que vamos ter de nos defrontar: a reacção das religiões ortodoxas em relação àquela que acabamos de forjar.

- Talvez - sugeriu Wilkie - nos devêssemos ter limitado a arranjar uma religião que não diferisse muito das religiões habituais.

- Talvez. Talvez. Pensei nisso, mas não fui capaz de descobrir uma maneira de fazê-lo. Não consegui imaginar um de nós a desempenhar o papel de padre de, digamos, uma das igrejas normais. Não sou grande frequentador de igrejas, mas não me pareceu que pudesse aguentar uma coisa dessas. É possível que, quando concretizarmos o projecto, me venha a sentir tão incomodado como Howe. Mas temos de enfrentar e ultrapassar esse problema. Temos de ter em consideração a atitude que as outras igrejas vão tomar. Devemos fazer os possíveis por não as hostilizar.

- Talvez a idéia que eu tenho, ajude - sugeriu Thomas. - Por que não incluirmos como uma das regras da nossa igreja a tolerância e mesmo o encorajamento de outras práticas de culto por que o homem prefira optar? Além disso, qualquer igreja tem, especialmente nos dias que vão correndo, muito mais trabalho social do que aquele que pode desempenhar. Poderemos dar-lhes apoio económico, sem exigir qualquer retribuição.

- Ambas as sugestões ajudarão a minorar os efeitos do nossos aparecimento - decidiu Ardmore-. mas será um empreendimento extremamente delicado. Sempre que tal for possível, traremos sacerdotes e padres verdadeiros para as nossas fileiras. Pode ter

a certeza de que todos os Americanos estarão do nosso lado, assim que souberem daquilo que nos propomos. O problema está em sabermos a quais poderemos contar todo o nosso secreto plano. Agora em relação a Denver, Jeff, está disposto a voltar já amanhã para a cidade?

- E em relação a Howe?

- Estou certo de que há-de acabar por decidir-se.

- Só um momento, major. - Fora o Dr. Brooks, que estivera calmamente sentado a escutar os outros, como era seu hábito, quem falara. - Penso que seria bom aguardarmos um ou dois dias, até Sheer terminar algumas alterações que está a fazer aos projectores.

- Que espécie de alterações está ele a fazer?

- Recorda-se de lhe termos dito que tínhamos estado a fazer experiências com o efeito Ledbetter, aplicando-o como agente esterilizador?

- Claro que me lembro.

- Foi por isso mesmo que nos sentimos seguros ao predizer que ajudaríamos a sarar os enfermos. Na realidade, subestimamos a potencialidade do método. Inoculei-me a mim próprio com antraz, no princípio da semana...

- Antraz! Por amor de Deus, doutor, que idéia foi essa de arriscar a sua vida desse modo?

Brooks olhou calmamente para Ardmore.

- Mas tratava-se de uma experiência obviamente indispensável - explicou pacientemente. - É certo que os testes feitos com os porquinhos-da-índia deram resultados positivos, mas era necessário fazer uma experiência com um ser humano para estabelecer definitivamente o método. Como ia dizendo, infectei-me voluntariamente com antraz e permiti que a doença se instalasse, expondo-me seguidamente ao efeito Ledbetter em todas as suas várias formas de emissão, com excepção da série de frequências que são fatais aos vertebrados de sangue quente. A doença desapareceu. Em menos de uma hora, foi restabelecida a superioridade natural do anabolismo sobre o catabolismo e haviam desaparecido quaisquer vestígios dos sintomas patológicos. Encontrava-me de perfeita saúde.

- O Diabo seja surdo, cego e mudo! Pensa que a coisa funcionará com a mesma rapidez em relação a outras doenças?

- Tenho a certeza disso. Não só já comprovei esse dado em relação a outros tipos de doença, em experiências levadas a cabo com animais, como também tive oportunidade de obter um resultado inesperado, ainda que teoricamente previsível. Como alguns de vós deveis ter reparado, andei durante algum tempo com uma inflamação na mucosa do nariz, bastante intensa. Quando me expus ás radiações, não só fiquei curado do antraz como também da referida inflamação. O vírus que origina esta doença é constituído por cerca de uma dúzia de organismos patogénicos que são conhecidos e provavelmente por muitos outros que ainda não o são. As radiações exterminaram-nos a todos, sem excepção.

- Estou deliciado com o relatório que acaba de fazer-me, doutor - murmurou Ardmore. - Esta aplicação do efeito Ledbetter poderá vir a ser muito mais importante para a humanidade do que qualquer utilização militar que lhe possamos dar agora. Mas só não vejo de que modo poderá influir na criação da filial da nossa igreja em Denver?

- Bem, senhor, talvez não tenha nenhuma influência. Mas tomei a liberdade de mandar Sheer introduzir algumas alterações num dos projectores portáteis, de modo que qualquer dos nossos agentes possa utilizá-los nas acções curativas, sem dificuldade.

Pensei que preferiria esperar até Sheer poder fazer a mesma modificação nos aparelhos desenhados para Thomas e Howe usarem.

- Penso que tem razào, se a coisa não demorar muito. Posso ver a modificação que estão a introduzir?

Sheer mostrou o material com que estivera a trabalhar. Aparentemente, não parecia diferente do resto dos elementos. Tratava-se de um bastão com dois metros de comprimento e encimado por um cubo decorado, com dez centímetros de aresta. As faces do cubo eram coloridas, correspondendo cada um dos tons ás cores do grande templo. As faces do cubo encontravam-se cobertas de intricados arabescos, gravados a dourado, e delicados desenhos em baixo-relevo. Todos estes artifícios escondiam, efectivamente, os controlos do projector, que se encontrava no interior do cubo.

Sheer não modificara a aparência exterior do aparelho; limitara-se a acrescentar um pequeno circuito interno ao mesmo, o qual se encontrava no interior do cubo, forçando-o a emitir apenas radiações que não representassem qualquer perigo para a vida dos vertebrados. O referido circuito servia para controlar a acção do projector, através do simples pressionar de uma determinada saliência que fazia parte do desenho decorativo.

Sheer e Graham tinham trabalhado em conjunto na elaboração do desenho do projector, até conseguirem obter um conjunto integrado, no qual a acção mecânica fosse disfarçada por uma camuflagem artística. Constituíram um óptimo duo. De facto, os talentos de ambos não diferiam grande coisa um do outro; o artista tem dois terços de artesão e o artesão tem, na sua essência, a mesma necessidade de criar que o artista.

- Eu sugeria - acrescentou Brooks, depois de terminada a explicação e a experimentação do novo controlo - que este novo efeito fosse atribuído a Tamar, deusa da piedade, e que a sua luz colorida fosse ligada de cada vez que é aplicado.

- Tem razão, é uma esplêndida idéia - disse Ardmore aprovada-mente. - Nunca utilizem o aparelho, seja para que fim for, sem ligar a luz colorida que se encontra associada a esta deusa específica, cujo auxílio se supõe ter sido invocado. Trata-se de uma regra que nunca deve ser negligenciada. Deixem-nos esquentar os miolos a tentar descobrir por que motivo uma simples luz monocromática consegue fazer semelhantes milagres.

- Para quê preocuparmo-nos com tanto palavrório? - perguntou Calhoun. - De qualquer modo, os Pan-Asiáticos não têm possibilidade de detectar os efeitos que utilizamos.

- Temos uma razão duplamente importante para actuarmos desta forma, coronel. Se lhes dermos uma pista falsa, esperamos que façam incidir os seus esforços científicos no sentido errado. Não nos podemos dar ao luxo de subestimar as suas capacidades.

Mas ainda o mais importante é o efeito psicológico que se fará sentir sobre o subconsciente, tanto de brancos como de amarelos. As pessoas pensam que tudo o que parece ser maravilhoso é maravilhoso. O americano médio não se deixa impressionar pelos milagres da ciência; quando estes surgem, aceitam-nos com naturalidade, como que dizendo: "E que tem isso de especial? Não é para isso que eles são pagos?"

"Mas acrescentem-lhes uns pozinhos de mistério e não os classifiquem de "científicos", e já ficarão impressionados. Será essa a forma de lhes dar uma boa publicidade.

- Bem -disse Calhoun, dando o assunto por encerrado-, não há dúvida de que você é que sabe... deve ter já tido uma grande prática a enganar o público. Quanto a mim, nunca dei qualquer atenção a esse tipo de assunto; as minhas preocupações relacionavam-se exclusivamente com a ciência. Se não precisa mais de mim, major, retiro-me, pois tenho muito que fazer.

- Com certeza, coronel, com certeza! Pode ir, o seu trabalho está à frente de tudo...

"Apesar de tudo - acrescentou, pensativo, depois de Calhoun se retirar-, não percebo muito bem por que motivo a psicologia de massas não faz parte do campo das ciências. Se alguns cientistas se tivessem dado ao trabalho de analisar determinados conhecimentos que os vendedores e os políticos já sabiam, talvez nunca tivéssemos chegado a esta situação.

- Acho que posso responder a isso - disse o Dr Brooks, timidamente.

- Como? Oh, com certeza, doutor... Que ia a dizer?

- A psicologia não é considerada uma ciência, porque é demasiado complicada para isso. A mente científica é habitualmente ordenada, possui um amor todo especial à ordem. Reage mal e tende a ignorar os campos de investigação onde aparentemente a ordem não existe. Prefere incidir em áreas onde a ordem seja detectada com facilidade, como é o caso das ciências físicas, deixando as questões mais complexas para aqueles que actuam por instinto. Desta forma, possuímos uma ciência rigorosa da termodinâmica, mas é muito pouco provável que possamos dizer o mesmo, nos próximos anos, em relação á psicodinãmica.

Wilkie deu meia volta, de modo a ficar de frente para Brooks.

- Você acredita mesmo nisso, Brooks?

- Claro que sim, meu caro Bob. Ardmore bateu com a mão na secretária.

- O assunto é muito interessante e gostaria que pudéssemos prosseguir esta discussão, mas parece-me que é estarmos a perder tempo. Agora vejamos, relativamente à questão de fundarmos uma igreja em Denver... Alguém tem alguma sugestão a fazer?

 

Wilkie disse:

- Ainda bem que não tenho de ser eu a agarrar nisso. Não faria a menor idéia por onde começar.

- Ah, mas talvez tenha mesmo de agarrar naquilo, Bob - afirmou Ardmore. - Talvez tenhamos todos de agarrar naquilo. Raios... se ao menos tivéssemos à nossa disposição uma centena de indivíduos com que pudéssemos contar! Mas não temos; somos apenas nove. - Permaneceu um momento imóvel no seu lugar, tamborilando com os dedos no tampo da mesa. - Só nove.

- Nunca conseguirá levar o coronel Calhoun a disfarçar-se de pregador - comentou Brooks.

- O. K. Portanto, somos oito. Jeff, quantas cidades e vilas têm os Estados Unidos?

- E não pode utilizar Frank Mitsui - insistiu Brooks. - Em relação a isso, também não estou a ver como há-de utilizar-me, embora boa vontade não me falte. Além disso, tenho tanta imaginação para ir lá para fora instalar uma falsa igreja como tenho para dar aulas de ballet.

- Não se rale muito com isso, doutor, que eu também tenho o mesmo problema. Faremos o melhor que soubermos. Felizmente não existem regras fixas para este tipo de coisas. Podemos arranjar as coisas da forma que melhor nos convier.

- Mas como é que pretende convencer as pessoas?

- Não temos de tentar convencê-los, pelo menos no sentido de arranjarmos convertidos. Os verdadeiros convertidos acabam por ser um empecilho. Apenas temos de ser suficientemente convincentes para demonstrar aos nossos senhores que somos uma religião legítima. E para isso não precisamos de fazer grande esforço. Todas as religiões parecem igualmente disparatadas para os leigos. Vejam, por exemplo... - Ardmore reparou na expressão de Sheer e disse: - Desculpe! Não pretendia ofender ninguém. Mas trata-se, apesar de tudo, de um aspecto do qual podemos tirar partido a nível militar. Tome como exemplo qualquer mistério religioso, qualquer teoria teológica: se a analisarmos em termos normais, parecerá absurda aos olhos de qualquer profano, como é o caso do ritual simbólico do corpo e do sangue de Cristo, que se toma nas cerimónias religiosas cristãs; isso é tão válido para a comunhão dos católicos como para o canibalismo autêntico praticado por algumas tribos selvagens na África.

"Esperem aí um pouco! - prosseguiu. - Não interpretem mal aquilo que acabo de dizer. Não estou a querer julgar nenhuma crença ou prática religiosa; quero com isto dizer apenas que somos livres para fazer o que muito bem entendermos, desde que lhe dêmos o nome de prática religiosa e com isso não desrespeitemos a autoridade dessas bestas. Mas temos é de pensar muito bem no que vamos fazer e no que vamos dizer.

- O que me preocupa não é a conversa fiada - disse Thomas. - Digo umas frases pomposas que pouco ou nenhum significado têm, e è quanto basta. Preocupa-me é saber como é que nos vamos introduzir nas cidades. Não temos gente que chegue para isso.

Era nessa questão que estava a pensar quando me perguntou quantas cidades e vilas tem o país?

- Hum... sim. Não podemos actuar... não devemos actuar enquanto não pudermos cobrir a totalidade dos Estados Unidos. Temos de nos convencer de que a guerra vai ser muito longa.

- Major, por que motivo quer cobrir todas as cidades e vilas? Ardmore pareceu interessado:

- Diga lá qual é o seu ponto de vista.

- Bem -prosseguiu Thomas, timidamente-, por aquilo de que já nos apercebemos, os Pan-Asiáticos não têm guarnições militares em todos os centros populacionais. Devem-se contar entre sessenta e setenta e cinco as cidades onde eles instalaram efectivos militares.A maior parte das cidades têm uma espécie de cobrador de impostos, xerife e chefe da polícia, que zelam para que as ordens do governador sejam cumpridas. O figurão que detém o poder nessas cidades nem sequer é militar, na verdadeira acepção do termo, embora ande armado e use uniforme. É uma espécie de servo civil que desempenha as funções de governador militar. Penso que nos podemos dar ao luxo de não lhe ligar nenhuma; o seu poder não duraria cinco minutos se perdesse o suporte das tropas e do armamento das cidades que possuem destacamentos completos.

Ardmore fez um sinal de concordância:

- Estou a perceber o seu ponto de vista. É de opinião de que nos devíamos concentrar nas cidades que têm grande aglomeração de militares e ignorarmos as outras. Mas repare, Jeff... não devemos subestimar o inimigo. Se o grande deus Mota só aparece nos locais que têm tropas, alguns dos agentes dos serviços de espionagem pan-asiáticos vão achar a coisa muito estranha quando se puserem a mexer nas estatísticas do país ocupado. Acho que temos de surgir um pouco por toda a parte.

- E eu digo-lhe, muito respeitosamente, que não devemos fazer isso, senhor. Não temos homens suficientes para concretizar um projecto dessa envergadura. Já bastam os problemas que vamos ter em recrutar e treinar homens suficientes para instalarmos um templo em cada uma das cidades que têm uma guarnição.

Ardmore roeu a unha do polegar e pareceu ficar desapontado:

- É provável que tenha razão. Bem, por este andar, se continuamos para aqui sentados a preocupar-nos com as dificuldades que vamos encontrar, não fazemos nada. Eu já tinha dito que vamos ter de improvisar, e é isso mesmo que vamos fazer. O primeiro passo a dar é instalarmos um quartel-general em Denver. Jeff, de que vai precisar para isso? Thomas franziu a testa:

- Não sei. Do dinheiro, suponho.

- Isso não tem problema - disse Wilkie. - De quanto vai precisar? Posso fazer uma tonelada de ouro com a mesma facilidade com que faço meio quilo.

- Não me parece que possa carregar mais do que alguns quilos.

- Penso que não é conveniente termos o ouro em lingotes - comentou Ardmore. - Devia ser em moedas.

- Posso utilizá-lo em lingotes - insistiu Thomas. - Basta-me levá-lo ao Banco Imperial. A troca de ouro por moeda corrente até é uma coisa que eles encorajam; do dinheiro que lá fica depositado, os nossos respeitáveis mestres ficam com uma boa fatia para eles.

Ardmore sacudiu a cabeça:

- Está a esquecer-se do aspecto propagandístico. Um sacerdote envergando uma longa batina e portador de uma barba esvoaçante não pode puxar do seu livro de cheques e da sua caneta; não é próprio da sua condição. De qualquer modo, não quero que fique com nenhuma conta bancária; isso fará que o inimigo fique a conhecer pormenores sobre a sua movimentação. Quero que pague tudo o que adquirir com belas e resplandecentes moedas de ouro, montes delas. Terá um impacto tremendo. Sheer, tem algum jeito para falsificador?

- Nunca experimentei, senhor.

- Então, não guarde para amanhã aquilo que pode fazer hoje. Toda a gente deve ter uma profissão alternativa. Jeff, você ainda não teve oportunidade de arranjar nenhuma moeda imperial, pois não? Precisamos de ter um modelo.

- Não, ainda não. Mas penso que não vou ter dificuldade em arranjar uma, se fizer constar entre os itinerantes que preciso de uma.

- Detesto perder tempo. Mas sem dinheiro não será possível tomar Denver.

- Terá de ser moeda imperial? - perguntou o Dr. Brooks.

- Como?

O biólogo retirou uma moeda de ouro de cinco dólares do bolso.

- Tenho aqui uma moeda como talismã, que trago comigo desde os tempos de miúdo. Penso que é uma boa oportunidade de gastá-la.

- Hum... E que acha disso, Jeff? Poderá passar dinheiro americano?

- Bem, dinheiro americano em papel não vale nada para eles, mas moedas de ouro... tenho cá a impressão de que essas sanguessugas não levantarão grandes dificuldades, desde que se trate de ouro, pelo menos ao preço a que está o lingote vendido a peso e tendo em conta a parte que fica para eles.

- Não temos de preocupar-nos com o desconto que fizerem. - Ardmore pegou na moeda e atirou-a a Sheer. - Quanto tempo levará a fazer uns quantos bons quilos daí?

O sargento analisou a moeda.

- Não precisarei de muito se não tiver de cunhá-las. Têm de ser exactamente iguais a esta, senhor?

- Qual é a dificuldade?

- Bem, senhor, há a questão da data.

- Oh, já estou a perceber. Bem, só dispomos deste modelo; acho que só nos resta esperar que os tipos não reparem nesse pormenor ou, pelo menos, que não se preocupem com isso.

- Se me puder conceder um pouco mais de tempo, penso poder resolver esse problema. Fabrico umas vinte com este modelo e depois, com um pouco de trabalho manual, modifico as datas de todas elas. Isso fará que fique com vinte modelos diferentes, em vez de um.

- Sheer, você é um artista! Faça o melhor que souber. E, já que vai ter esse trabalhão todo, dê-lhes também uma aparência de uso variado.

- Já tinha pensado nisso, senhor. Ardmore sorriu.

- Este grupo que temos aqui ainda vai dar umas boas dores de cabeça ao imperador vilão. Bem, que acha disto, Jeff? Há mais alguma coisa a sugerir antes de darmos a reunião por terminada?

- Só uma coisa, chefe. Como é que vou para Denver? Ou como é que vamos para Denver, partindo do princípio de que Howe também vai?

- Já calculava que levantasse essa questão. O problema é bicudo; não podemos esperar que o governador nos forneça um helicóptero para nos deslocarmos. Como está de pés? Tem alguma deficiência nos mesmos? Algum calo?

- Não, mas é o que acontecerá se tiver de fazer todo esse caminho a pé. É uma distância enorme.

- Tem absoluta razão. E o pior de tudo é que esse será um dos problemas que iremos enfrentar com maior frequência, já que estamos a pensar em espalhar-nos por todo o pais.

- Não compreendo a dificuldade - disse Brooks. - Estava convencido de que os cidadãos ainda tinham autorização para conduzir qualquer tipo de veículo, com excepção dos aéreos.

- Claro que a têm... se tiverem licença para se deslocar e passar por uma série infindável de processos burocráticos. Não importa - prosseguiu Ardmore. - Ainda há-de vir o dia em que as vestes dos sacerdotes de Mota serão tudo de quanto precisarão para se movimentarem. Se fizermos a coisa como deve ser, depressa passaremos a ser os servos favoritos dos mestres, o que nos valerá uma série de privilégios especiais. Entretanto, o problema que se coloca de imediato é saber como é que vamos pôr Jeff em Denver sem atrairmos atenção indesejável sobre nós e sem que ele fique com os pés rebentados. Diga-me uma coisa, Jeff. Nunca chegou a contar-me de que forma viajou quando se deslocou ao exterior. Não sei já porquê, mas de qualquer forma não chegámos a ver esse aspecto.

- Pedi boleia. O que não foi nada fácil. A maioria dos camionistas tinha demasiado medo da polícia de estrada para se arriscar.

- Ah, foi assim? Mas olhe que não o devia ter feito, Jeff. Os sacerdotes de Mota não têm o hábito de andar à boleia. Isso não se coaduna com os milagres que fazem.

- Bem, então como é que se desenvencilham? Deixe-se disso, major. Se eu não tivesse utilizado esse meio de transporte, a estas horas ainda vinha a meio do caminho... ou, o que seria mais provável, teria sido preso por algum guarda do interior que ainda não soubesse das novas ordens em relação a nós. - E o rosto de Thomas denotava uma irritação que era pouco habitual.

- Desculpe. Não devia ter posto em causa o seu julgamento. Mas teremos de descobrir uma forma mais segura de nos deslocarmos no futuro.

- Por que não levá-lo até lá num dos helicópteros? - perguntou Wil-kie. - De noite, claro.

- A noite não impede os radares de funcionar. Bom, depressa o varriam do céu.

- Não me parece. Temos à nossa disposição uma quantidade de poder quase ilimitada... Por vezes, quando me ponho a pensar nisso, fico assustado. Penso que consigo construir um aparelho que neutralize qualquer tipo de radar que eles se lembrem de utilizar contra nós.

- Dando assim oportunidade de o inimigo descobrir que ainda existe alguém no território com capacidade de causar estragos com instrumentos electrónicos? Não nos devemos arriscar tão prematuramente a isso, Bob.

Wilkie calou-se, desanimado. Ardmore continuou a expor a sua linha de pensamento:

- No entanto, não há dúvida de que vamos ter de arriscar-nos desta vez. Bob, construa lá esse seu anti-radar... Depois disso pode concretizar o estabelecido, mas voe rente ao solo durante todo o percurso. Faremos a coisa por volta das três ou quatro da manhã e pode ser que até ninguém dê por si. Se não puder deixar de utilizar o anti-radar, faça-o, mas depois toda a gente regressa à base. O incidente não pode ser conectado com os sacerdotes de Mota, nem mesmo em termos de horas. Esta regra é para ser aplicada por si, Jeff, mesmo depois de Wilkie o deixar no seu destino. Se por qualquer motivo alguém o surpreender, não hesite em utilizar o efeito Ledbetter para matar qualquer inimigo que se encontre perto de si. Depois disso desapareça.

Esconda-se. Os Pan-Asiáticos não devem suspeitar, em nenhuma circunstância, de que os sacerdotes de Mota são mais do que aquilo que vêem. Abata todas e quaisquer testemunhas e fuja.

- Muito bem, chefe.

O pequeno helicóptero poisou sobre a montanha Lookout, a pouca distância do túmulo de Búfalo Bill. A porta abriu-se e viu-se um padre de longas vestes saltar para o chão, tropeçando por causa dos pesados sacos de dinheiro que trazia ao ombro e presos à cintura. Uma outra figura, vestida da mesma maneira, seguiu-o, parecendo um pouco mais ligeira.

- Você está bem, Jeff?

- Óptimo.

Wilkie pôs a cabeça de fora do veículo e gritou:

- Boa sorte!

- Obrigado. Mas agora cale a boca e ponha-se a andar.

- O. K. - A porta fechou-se e o aparelho desapareceu na noite. Já era quase dia quando Thomas e Howe chegaram à base da montanha e começaram a caminhar em direcção a Denver.

Até ali pensavam que ninguém os detectara, embora em determinada ocasião tivessem corrido a esconder-se atrás de uns arbustos, durante alguns minutos, suspendendo a respiração, enquanto uma patrulha passava perto. Jeff mantivera a arma preparada e tinha um polegar pousado numa folha dourada que fazia parte dos elementos decorativos do cubo de Mota, Mas a patrulha não se deteve, completamente alheia aos raios destrutivos que tinham estado prestes a abater-se sobre ela.

Uma vez chegados à cidade, em plena luz do dia, deixara de fazer qualquer tentativa para evitar chamar a atenção. Ainda era cedo, e poucos pan-asiáticos andavam já por ali; os membros da raça escravizada calcorreavam as ruas, em direcção aos seus postos de trabalho, mas a raça dominadora ainda dormia. Os americanos que os avistaram detiveram-se por momentos a olhar para eles, mas não tentaram fazê-los parar nem os interrogaram; os americanos nativos tinham já aprendido a primeira das leis impostas pela polícia distrital: não te metas onde não és chamado; preocupa-te apenas com a tua vida!

Jeff provocou deliberadamente um encontro com um polícia pan-asiático. Ao avistarem um, ligaram os escudos de protecção e aproximaram-se, aguardando a reacção do mesmo. Não se encontravam americanos nas proximidades; sempre que a polícia de ocupação aparecia, tentavam passar o mais despercebidamente possível. Jeff humedeceu os lábios e disse:

- Deixe-me ser eu a falar, Alec.

- Por mim, está bem.

- Lá vem ele. Oh, meu Deus! Alec, ligue o seu halo! -Quê?

Howe levou um dedo a determinado ponto debaixo do turbante, por detrás da orelha direita; imediatamente a luz iridescente e brilhante surgiu, rodeando-lhe a cabeça. Tratava-se apenas de um simples efeito de ionização, um vulgar truque feito com os espectros adicionais, muito menos misterioso do que o fenómeno da aurora natural, mas que tinha um efeito surpreendente.

- Assim está melhor - sussurrou Jeff, disfarçadamente. - Que se passa com a sua barba?

- Está a começar a descolar-se por causa do suor.

- Não a deixe descolar-se agora! Lá vem o tipo...

Thomas adoptou a pose de bênção e Howe fez o mesmo. Jeff entoou:

- A paz seja convosco, mestre!

O polícia pan-asiático estacou. Os seus conhecimentos de inglês limitavam-se ás palavras "alto", "venha comigo" e "mostre o cartão""; era quanto bastava, pois para o resto bastava-lhe utilizar o cacete. Por outro lado, reconhecia o vestuário dos indivíduos; era igual àquele que se via num cartaz que fora afixado no posto... Esta era uma das muitas tolices que os escravos tinham autorização para fazer.

Apesar de tudo, um escravo era um escravo e devia ser mantido na linha. Todos os escravos se deviam curvar perante os seus senhores; estes não estavam a fazê-lo. Projectou o cacete para a frente, tentando atingir o escravo que estava mais próximo.

Antes que o cacete pudesse atingir a figura envolta nas longas vestes, saltou-lhe da mão; os dedos do polícia ficaram a latejar dolorosamente devido ao facto de o cacete parecer ter batido em algo bastante duro.

- A paz seja convosco! - murmurou Jeff de novo, olhando para ele com ar inocente.

O tipo encontrava-se armado com uma pistola de raios vórtice; embora Jeff não receasse este tipo de arma, não lhe convinha nada que a criatura descobrisse que eles eram imunes ás armas do imperador. Arrependeu-se de ter utilizado o escudo para se proteger do golpe do cacete e esperou que o pan-asiático não desse muito crédito àquilo que acontecera.

Era bem evidente que o homem estava atónito. Olhou para o cacete e levantou-o novamente, como se tencionasse utilizá-lo de novo, mas de repente pareceu mudar de idéias. Recorrendo aos diminutos conhecimentos de inglês, disse:

- Venham comigo!

Jeff ergueu novamente a mão:

- A paz seja convosco! - E, proferindo algumas palavras estranhas, apontou para Howe.

O polícia pareceu hesitar e depois deu alguns passos para o meio da rua e, olhando para um lado e outro, fez soar o apito que levava. Alec segredou:

- Por que motivo apontou para mim?

- Nem sei. Parece-me uma boa idéia para distraí-lo. Repare! Aproximava-se um outro polícia; ambos caminharam em direcção a Howe e Thomas. O segundo parecia ter uma patente superior á do primeiro; depois de trocarem meia dúzia de palavras na sua cantante língua, o segundo indivíduo adiantou-se um pouco em relação ao outro, apontando-lhes, simultaneamente, uma pistola.

- Vocês dois venham imediatamente comigo.

- Ande, Alec - disse Thomas, seguindo o polícia e desligando o escudo. Esperou que Alec tivesse reparado nesse pormenor, procedendo do mesmo modo. Parecia-lhe mais prudente não lhes dar a conhecer, por enquanto, a existência dos escudos protectores.

O pan-asiático conduziu-os ao posto da polícia que se encontrava mais próximo. Jeff caminhava resolutamente, distribuindo bênçãos a torto e a direito. Ao aproximarem-se do posto, o agente mais graduado mandou o subalterno ir à frente. Quando o pequeno grupo chegou, estava o oficial de serviço à porta, à sua espera, aparentemente cheio de curiosidade em ver os curiosos espécimes que os seus homens tinham capturado.

Para além de curioso, estava igualmente apreensivo; tivera conhecimento das circunstâncias em que o tenente que entrara anteriormente em contacto com aqueles estranhos homens santos fora forçado a reunir-se aos seus antepassados. Estava resolvido a não cometer qualquer erro que o fizesse ter o mesmo fim.

Jeff dirigiu-se com dignidade para ele e, pondo a pose do costume, disse:

- A paz seja convosco! Mestre, vejo-me forçado a apresentar-vos uma queixa contra os vossos subordinados. Estes impediram que desempenhássemos as nossas tarefas sagradas, tarefas que foram abençoadas pela pessoa de Sua Alteza Sereníssima, o Governador Imperial!

O oficial agitou o cacete e dirigiu-se aos subordinados, na própria língua. Depois voltou-se para Jeff:

- Quem és tu?

- Um sacerdote do grande deus Mota.

O pan-asiático fez a mesma pergunta a Alec; Jeff interveio apressadamente, dizendo:

- Mestre, o santo homem que estais a ver aqui fez voto de silêncio. Se o forçardes a quebrar o seu voto, esse sacrilégio recairá sobre a vossa cabeça.

O oficial hesitou. O boletim que recebera e que se referia àqueles selvagens tarados era extremamente categórico, mas não prestava nenhuma indicação sobre a forma de se lidar com eles. Ele detestava criar precedentes; aqueles que o faziam eram muitas vezes promovidos, mas também eram, ainda mais frequentemente, chamados a juntar-se aos seus ancestrais.

- Ele não precisa de quebrar o voto sagrado. Mas quero que os dois me mostrem os cartões de identificação.

Jeff fingiu ficar espantado.

- Somos servidores humildes e anónimos do grande deus Mota Por que é que temos de identificar-nos?

- Despachem-se!

Jeff tentou esconder o nervosismo, aparentando, em vez disso, uma tristeza profunda. Ensaiara mentalmente o discurso que ia fazer; dele dependia, em grande parte, a possibilidade de escaparem ilesos.

- Lamento por vós, jovem mestre. Rezarei por vós a Mota. Mas agora devo insistir em que nos leveis á presença do governador, imediatamente.

- Isso é impossível.

- Sua Alteza já me recebeu antes; voltará a receber-me desta vez. O governador do Celeste Império está sempre disposto a falar com os servidores do grande deus Mota.

O oficial olhou para ele e, virando-se, entrou no posto. Aguardaram.

- Acha que ele vai mesmo levar-nos até ao governador? - perguntou Howe, em voz sumida.

- Espero bem que não. Não me parece que isso aconteça.

- Bem, e, se isso suceder, que fará?

- Aquilo que for preciso. E agora cale-se... não se esqueça de que fez voto de silêncio.

O oficial voltou passados alguns minutos e disse, em tom brusco:

- Podem ir.

- Até junto do governador? - perguntou Jeff, maliciosamente.

- Não, não! Vão-se simplesmente embora. Desapareçam desta zona. Jeff retrocedeu um passo e deu uma última bênção ao oficial. Os dois "sacerdotes" afastaram-se. Jeff viu, pelo canto do olho, o oficial erguer o cacete e agredir selvaticamente o subordinado menos graduado; fez de conta que não viu nada. Caminhou ao longo de um quarteirão antes de se dirigir a Howe.

- Já está! Tão cedo não voltam a incomodar-nos.

- Como é que sabe? De certeza que o tipo não ficou a gostar nada da gente.

- Isso não interessa. Não podemos permitir que esse ou outros polícias pensem que podem incomodar-nos como fazem com as outras pessoas. Quando chegarmos ao terceiro quarteirão, já toda a cidade estará ao corrente do que aconteceu, ficando a saber que estou de volta e que me devem deixar em paz. É mesmo assim que temos de proceder.

- Talvez. Apesar de tudo, continuo a achar que é perigoso termos os guardas todos em estado de alerta em relação a nós.

- Não está a perceber - disse Jeff, com impaciência. - Não nos resta outra solução senão esta. Os policias são polícias, independentemente da cor da pele. Lidam com o medo e compreendem-no. Quando perceberem que não nos podem atingir, que não é aconselhável molestarem-nos, começarão a tratar-nos com tanta delicadeza como fazem com os seus superiores. Vai ver.

- Espero que tenha razão.

- Sei que tenho razão. Os polícias são iguais em toda a parte. Não faltará muito para que os tenhamos a todos sob o nosso poder. Oh, oh! Repare, Alec... lá vem outro. - Aproximava-se calmamente na sua peugada um polícia pan-asiático. No entanto, em vez de interpelá-los ou de mandá-los parar, ultrapassou-os e foi postar-se do outro lado da rua, ignorando-os propositadamente.

- Que acha que está a acontecer, Jeff?

- Estamos a ser vigiados. Temos toda a conveniência nisso, Alec...

Assim que o resto dessa macacada que por aí anda souber disto, não nos voltarão a incomodar. Vamos prosseguir a execução das nossas tarefas. Conhece bem esta cidade, não é verdade? Em que sítio é que acha que será mais conveniente instalarmos o templo?

- Creio que isso depende daquilo que procuras.

- Ainda não sei exactamente o que é. - Parou e limpou o suor que lhe escorria pelo rosto; a sotaina era quente e o cinto carregado de dinheiro dificultava ainda mais as coisas, - Agora, que estou aqui, tudo isto me parece um disparate. Tenho a impressão de que não tenho jeito nenhum para fazer de agente secreto. E que tal achas instalá-lo na zona ocidental, no bairro elegante cá do sítio? Queremos impressionar o mais possível as pessoas.

- Não, isso não me parece aconselhável, Jeff. Agora, o bairro chique da cidade só lá tem duas espécies de pessoas a viver.

- Ah, sim? E quem?

- Pan-Asiáticos e traidores... negociantes do mercado negro e outros tipos de colaboracionistas.

Thomas pareceu chocado.

- Parece-me que tenho andado fora da circulação há demasiado tempo. Alec, pode crer que até este preciso momento não me passara pela cabeça que um americano, qualquer americano, pudesse pactuar com os invasores.

- Bem, eu também não teria acreditado se não o tivesse visto com os meus próprios olhos. Tenho idéia de que há gente capaz de tudo.

Decidiram instalar-se num armazém vazio que encontraram no outro extremo da cidade, num bairro pobre e populoso que se situava junto de um rio. A área encontrava-se de há muito em estado precário; a sua actividade decrescia progressivamente. A maior parte das lojas tinham fechado; o comércio estagnara. O edifício era um dos muitos armazéns que por ali abundavam, vazios. Thomas escoiheu-o devido ao facto de possuir uma forma quase cúbica, assemelhando-se, assim, à casa-mãe, e também por estar separado dos outros edifícios, de um lado por uma travessa e do outro por um terreno descampado.

A porta principal estava meio destruída. Espreitaram para o interior e depois entraram para dar uma vista de olhos. O interior encontrava-se num verdadeiro caos, mas o tecto estava intacto e as paredes eram fortes. O rés-do-chão era constituído por uma única divisão e a abóbada, que se encontrava a cerca de sete metros do chão, era sustentada por alguns pilares; parecia óptimo para a prestação dos actos do culto.

- Acho que isto serve perfeitamente - decidiu Jeff e, ante um rato que saltou de um monte de lixo que se encontrava amontado contra uma parede, de forma quase aérea puxou do projector e experimentou-o sobre o animal, que foi projectado no ar e caiu morto. - Como teremos de fazer para comprá-lo?

- Os Americanos não podem possuir bens imóveis. Teremos de descobrir qual é o oficial que está encarregado dele.

- A coisa não deve ser difícil - Saíram do edifício. O polícia "dama de companhia" aguardava-os na rua. Fingiu não vê-los.

Apesar de se tratar de um bairro periférico, tinha já as ruas razoavelmente cheias, devido ao avanço da manhã. Thomas chamou um rapazito que passava, uma criança que não teria mais de 12 anos, mas que possuía já os olhos amargos e experientes de um homem cínico.

- A paz seja contigo, filho. Sabes quem arrenda este edifício?

- Eh, deixe-me em paz!

- Não te quero fazer mal. - Meteu na mão do rapaz uma das moedas de cinco dólares de ouro que Sheer fizera.

O rapaz olhou para ela e seguidamente na direcção do guarda pan-asiático que se encontrava do outro lado da rua. Este não parecia estar a olhar para eles; o rapaz fez a moeda desaparecer num ápice.

- O melhor é falarem com Konsky. Ele é quem percebe de todas estas coisas. - Quem é Konsky?

- Toda a gente conhece Konsky, Diz-me, avozinho, que idéia é essa de andares com essas roupas esquisitas? Os Amarelos vão-vos meter em sarilhos.

- Sou um sacerdote do grande deus Mota. O deus Mota sabe zelar pelos seus. Leva-nos até junto de Konsky.

- Nada feito. Não quero arranjar sarilhos com os Amarelos. - E o rapaz tentou escapar-se.

Jeff agarrou-o firmemente pelo braço e mostrou-lhe outra moeda. Ele não a agarrou.

- Não deveis recear nada. O deus Mota também te protegerá.

O rapazito olhou para a moeda, depois deu uma olhadela em volta e disse:

- Venham daí.

Conduziu-os até uma outra rua, donde lhes indicou um escritório situado por cima de um bar:

- Pode ser que ele lá esteja.

Jeff deu-lhe a segunda moeda e disse-lhe que os fosse visitar brevemente ao armazém, pois era possível que o deus Mota tivesse mais alguns presentes para lhe dar. Enquanto subiam as escadas, Alec aproveitou a oportunidade para pôr em dúvida a sensatez da atitude tomada por Jeff.

- O miúdo não é mau - disse Jeff. - É claro que as coisas por que já passou na vida fizeram que se transformasse num oportunista. Mas não há dúvida de que está do nosso lado. Será um bom instrumento de propaganda a nosso favor, e não a favor dos Pan-Asiáticos.

Konsky demonstrou ser um indivíduo untuoso e desconfiado. Depressa se tornou evidente que possuía muitos "contactos", mas só depois de ver a cor ao dinheiro é que se dispôs a falar. Depois disso, deixou de se mostrar impressionado com as vestes e os modos bizarros dos seus clientes (Thomas deu-lhe o tratamento completo, com bênçãos e tudo, absolutamente certo, no entanto, de que Konsky não lhe ligava nenhuma, mas não abdicando de manter a sua posição). O homem certificou-se da localização do edifício que Thomas pretendia alugar, discutiu minuciosamente o preço do aluguel e o subsídio a pagar - que dizia ser para as "despesas especiais" - e retirou-se durante algum tempo.

Thomas e Howe sentiram-se aliviados com as momentâneas tréguas. Ser "santo" tinha os seus inconvenientes; nada tinham comido desde que tinham saído da Cidadela. Jeff retirou algumas sandes de entre as dobras da túnica, que devoraram. E, o que ainda era mais extraordinário, junto à sala onde se encontravam havia um toilet.

Três horas depois estavam de posse de um documento traduzido em inglês que lhes assegurava que o Celeste Imperador tinha todo o gosto em conceder aos seus fiéis súbditos, etc, o aluguel do armazém. A troco de mais uma excessiva quantia, Konsky concordou em contratar alguma mão-de-obra para proceder à limpeza imediata do local ainda naquele dia, e em mandar fazer algumas reparações, fornecendo ele o material necessário. Jeff agradeceu-lhe com uma expressão impassível no rosto, convidou-o a estar presente nos primeiros ofícios religiosos que se realizassem no novo templo.

Regressaram ao armazém. Assim que saíram do limite auditivo de Konsky, Jeff disse:

- Alec, vamos ter de recorrer mais algumas vezes a este figurão, mas olhe que, quando chegar o dia, hei-de ter cá a minha listazinha preparada, e ele há-de figurar no princípio dela. Tenciono tratar-lhe pessoalmente da saúde.

- Deixe um bocadinho para mim - respondeu-lhe Howe, sem mais comentários.

Quando chegaram ao armazém, subitamente, o rapazito vadio apareceu-lhes á frente.

- Tem mais algum recado para eu fazer, avozinho?

- Deus te abençoe, meu filho; sim, tenho vários.

Depois de mais uma transacção financeira, o moço partiu a fim de adquirir duas camas e a respectiva roupa. Jeff observou-o enquanto afastava e disse:

- Tenho a impressão de que ainda hei-de fazê-lo sacristão deste templo. Ele pode deslocar-se a locais e fazer coisas que para nós são impossíveis. E os polícias têm menos tendência para mandar parar pessoas com a idade dele.

- Acho que não devia confiar nele.

- E não confio. Ele continuará, ainda por muito tempo, a pensar que somos apenas sacerdotes do deus Mota. Não podemos dar-nos luxo de confiar em ninguém. Venha... Vamos exterminar a rataria que por aí abunda, antes de os homens da limpeza chegarem.

Quer que verifique o funcionamento do seu bastão?

Ao fim do dia, o primeiro templo de Denver consagrado ao deus Mota começava a tomar forma, embora ainda tivesse mais aspecto de armazém do que propriamente de templo sagrado. O local tresandava a desinfectante, o lixo fora removido e a porta da frente fora reparada. Já lá estavam duas camas e uma quantidade de mantimentos suficiente para alimentar os dois homens durante quinze dias.

O guarda que os vigiava continuava postado na rua, em frente do edifício.

A vigilância policial manteve-se durante quatro dias consecutivos.Um destacamento da polícia foi por duas vezes fazer uma busca ao local. Thomas não fez absolutamente nada para impedi-los; por enquanto nada tinham a esconder. A única fonte de energia que ainda possuíam eram os bastões e nada mais tinham em seu poder para além do transmissor Ledbetter, que Howe carregava ás costas constantemente, durante o dia, o que lhe dava um aspecto encurvado, Thomas carregava com o cinto que continha o dinheiro.

Entretanto tinham adquirido, através de Konsky, um veículo terrestre e a respectiva licença para o conduzir, ou para alguém o fazer por eles, dentro do território que se encontrava sob a jurisdição do governador. O condutor que contrataram não foi arranjado por Konsky, mas sim através de Peewee Jenkins, o rapazito que os ajudara no primeiro dia.

Por volta das doze horas do quarto dia, a guarda de vigilância foi retirada. Na tarde do mesmo dia, Jeff deixou Howe a tomar conta da casa e dirigiu-se á Cidadela de carro. Regressou com Sheer, que parecia muito pouco à vontade dentro das vestes sacerdotais e com a falsa barba que trazia no rosto. Mas transportava consigo uma caixa de forma cúbica, esmaltada, com as seis cores sagradas de Mota. Uma vez dentro do armazém e com as portas bem trancadas, Sheer abriu cuidadosamente a caixa, de forma a não provocar qualquer explosão que os fizesse ir pelos ares mais o edifício. Aplicou-se atarefadamente à preparação do altar, que já fora construído. Pouco passava da meia-noite quando terminou; depois foi necessário trabalhar fora do

edifício, e Thomas e Howe permaneceram de vigia, prontos a intervir, se necessário fosse, para impedir que o sargento fosse interrompido.

Quando os primeiros fulgores matinais irromperam no horizonte, caindo sobre a fachada verde-esmeralda do templo, iluminaram também as restantes paredes, estas de cor vermelha, dourada e azul-celeste. O templo de Mota estava pronto a receber os seus adoradores... e outros.

E, o que era ainda mais importante, nenhum caucasiano podia, dali em diante, atravessar a soleira da porta impunemente.

Uma hora antes do alvorecer, Jeff pôs-se á porta e aguardou ansiosamente o desenrolar dos acontecimentos. A súbita transformação sofrida pelo edifício iria certamente desencadear outra busca por parte dos invasores; para impedi-lo, não hesitaria em recorrer a todos os poderes de que dispunha, até mesmo à destruição, se preciso fosse. Tudo menos permitir que se fizesse uma busca. Esperava ter capacidade para dissuadi-los; o templo devia passar a ser considerado como um local destinado ao uso exclusivo da raça escravizada. Mas bastava algum excesso de zelo da parte de um subalterno qualquer para deitar tudo a perder e obrigá-lo a utilizar meios de persuasão violentos, ficando, assim, irremediavelmente perdida a esperança de infiltração pacífica. Howe aproximou-se silenciosamente dele, pelas costas, provocando-lhe um sobressalto.

- Hã? Ah, è você, Alec! Não volte a fazer isso. Ando extremamente enervado.

- Desculpe. O major Ardmore ligou para cá. Quer saber como estão as coisas a correr.

- Terá de ser você a falar com ele. Não posso sair agora daqui da porta.

- Ele também quer saber quando é que Sheer regressa.

- Diga-lhe que o terá de volta assim que eu tiver a certeza de que não há qualquer perigo em pormos o pé fora daqui. Antes disso, nem pensar.

- O.K. - E Howe afastou-se.

Jeff olhou de novo para a rua e sentiu os cabelos da nuca porem-se em pé. Em frente do edifício encontrava-se um pan-asiático fardado, a olhar espantado para a frontaria. Depois de mirá-la durante algum tempo, afastou-se no passo empertigado, que parecia ser o habitual quando se encontravam de serviço. "Mota, meu velho", disse Jeff para consigo, "chegou a altura de mostrares o que vales."

Ainda não tinham passado dez minutos quando um esquadrão se aproximou, comandado pelo mesmo oficial que anteriormente orientou as buscas ao edifício.

- Afasta-te, santo homem.

- Não, mestre - disse Jeff com firmeza. - A partir de agora, este templo é sagrado. Somente os adoradores do deus Mota aqui podem entrar.

- Não faremos nenhum estrago no teu templo, santo homem. Deixa-nos passar.

- Mestre, se entrardes não poderei impedir que a maldição do deus Mota caia sobre vós. Também não vos poderei salvar da maldição do governador imperial. - Antes que o oficial tivesse tempo de assimilar o que ouvira, Jeff acrescentou, apressadamente:

- O deus Mota já esperava a vossa visita e saúda-vos. Incumbiu-me a mim, seu humilde servo, de vos oferecer três humildes dádivas.

- Dádivas?

- Esta é para si... - Jeff mostrou a pesada bolsa que trazia numa das mãos. - Esta é para o seu superior, bendito seja ele... - Mostrou uma segunda bolsa - E esta é para os vossos homens. - E apareceu uma terceira bolsa.

O pan-asiático viu-se obrigado a utilizar ambas as mãos para conseguir agarrar nas três bolsas.

Permaneceu alguns momentos sem saber que fazer. A avaliar pelo peso, não tinha dúvidas quanto ao conteúdo das mesmas. Nunca na vida vira tanto ouro junto, Virou-se para os seus homens, deu-lhes uma ordem e afastaram-se.

Howe aproximou-se novamente de Jeff.

- Conseguiu convencê-lo, Jeff?

- Pelo menos neste round. - Thomas observou o grupo de homens que já iam ao fundo da rua. - Os polícias são iguais em todo o mundo. Faz-me lembrar um detective que uma vez conheci.

- Acha que ele vai repartir o dinheiro da forma que sugeriu?

- De certeza que os homens não apanham nada. Talvez o divida com o chefe, para mantê-lo de boca fechada. Arranjará provavelmente maneira de esconder o terceiro lote antes de voltar ao posto. Mas gostaria de saber é se ele será um político honesto...

-Quê?

- É que um político que é honesto "é comprado e fica comprado". Venha daí, vamos preparar-nos para receber os primeiros clientes.

Os primeiros serviços religiosos foram celebrados na tarde daquele mesmo dia. Não entraram em grandes complicações, visto Jeff ainda não se sentir muito à vontade no seu papel. Limitaram-se a aplicar o velho método das missões: cantaram um hino e

deram uma refeição aos presentes. Mas esta era composta por boa carne e pão branco, coisa que os fiéis não provavam há muito tempo.

 

- Está? Está? Jeff, está a ouvir-me?

- Claro que estou a ouvi-lo. Não-grite, major.

- Gostava de, em vez desta maldita aparelhagem, poder falar por um telefone normal. Quando falo com um homem, gosto de vê-lo.

- Se utilizássemos telefones normais, os nossos amigos pan-asiáticos poderiam deliciar-se a ouvir nos. Porque não pede ao coronel e a Bob que acrescentem um circuito visual ao aparelho? Aposto que eram capazes de fazê-lo.

- Bob já o fez, Jeff, mas Sheer anda tão ocupado a tratar dos mecanismos para instalar nos altares que ainda não tive coragem para pedir-lhe que o aplicasse. Acha que será possível recrutar alguns assistentes para ajudarem Sheer? Um maquinista ou dois, talvez, ou um técnico de rádio? As tarefas manuais deste empreendimento são cada vez mais numerosas e Sheer vai ter um esgotamento com o excesso de trabalho. Todas as noites tenho de ir à procura dele e ordenar-lhe que se vá deitar.

Thomas reflectiu no que acabara de ouvir.

- Estou a lembrar-me concretamente de um homem. Antigamente era relojoeiro.

- Relojoeiro! É fantástico!

- Não sei. Ele é um tanto ou quanto amalucado; a família foi toda massacrada. Um caso muito triste, tão triste como o de Frank Mitsui. A propósito, como está ele? Sente-se mais ambientado?

- Parece que sim. Ainda não o está totalmente, claro, mas tudo indica que se encontra razoavelmente satisfeito com o trabalho que faz aqui dentro.

- Dê-lhe um abraço meu.

- Será entregue. Mas em relação a esse tal relojoeiro... escusa de ser tão exigente para com os indivíduos que escolher para trabalharem aqui, na Cidadela, bem como para com aqueles que têm de fazê-lo no exterior, pois, uma vez cá dentro, já não podem sair.

- Sei disso, chefe. Não fiz nenhuns testes especiais a Estelle De-vens, quando a enviei para aí. É claro que não a teria enviado se ela não estivesse para ser destacada para a prostituição.

- Fez muito bem. Estelle é uma óptima pessoa. Ajuda Frank na cozinha, dá uma mãozinha a Graham na confecção das túnicas, e Bob Wilkie anda a treiná-la para operadora de rádio. - Ardmore deu uma risada. - As tendências amorosas já começam a despontar.

Tenho idéia de que Bob anda apaixonado pela rapariga.

A voz com que Thomas respondeu tornara-se subitamente grave:

- Que acha desse problema, chefe? Isso não conduzirá à deterioração da situação?

- Não me parece, Bob é pessoa respeitadora e Estelle é a rapariga mais ajuizada que alguma vez encontrei. Se as questões biológicas começarem a interferir no trabalho deles, resolvo o problema cansando-os, dentro das capacidades que me são conferidas como alto-sacerdote do supercolossal deus Mota.

- Bob não irá nessa. Se quer saber a minha opinião, acho que ele é até um pouco puritano.

- Está bem, Então fá-lo-ei na qualidade de magistrado supremo desta pequena comunidade. Ou então envie-me um padre verdadeiro.

- E que tal mandar-lhe mais algumas mulheres, major? Quando enviei Estelle para aí, fi-lo mais por impulso do que por outra razão qualquer, mas existem por aqui muitas outras jovens tão necessitadas de auxilio como ela.

Ardmore demorou algum tempo a responder:

- Capitão, a proposta que acaba de fazer-me é complicada. Embora com muita relutância, vejo-me forçado a lembrar-lhe que esta organização tem um carácter exclusivamente militar, não podendo permitir-se desempenhar um papel de recolha caridosa de pessoas. Só poderá recrutar mulheres para aqui se elas tiverem capacidade para desempenhar tarefas de tipo militar, mesmo que com isso as salve de acabarem nas cidades de prazer dos Pan-Asiáticos.

- Muito bem, senhor. Entendi perfeitamente. Não devia ter enviado Estelle para aí.

- O que está feito está feito. Ela está a sair-se muito bem do trabalho que lhe foi atribuído. Não hesite em recrutar qualquer mulher que veja que pode desempenhar alguma tarefa necessária na Cidadela. A guerra em que nos encontramos empenhados vai ser longa, e acho que será mais fácil manter o moral elevado se tivermos uma organização mista, em vez de um clã exclusivamente masculino. Mas da próxima vez tente arranjar uma mulher mais velha, alguém que possa fazer simultaneamente de madre superiora e de dama de companhia. Serviria de assistente no laboratório de Brooks e seria, assim, uma espécie de mãe de toda a gente.

- Verei o que se pode arranjar.

- E mande-me esse tal relojoeiro. Está a fazer-nos muita falta.

- Vou fazer-lhe um teste hipnótico ainda esta noite.

- Será isso necessário, Jeff? Se os Pan-Asiáticos lhe mataram a família, não há que pôr absolutamente em dúvida a dimensão do ódio que ele lhes deve ter, não acha?

- Essa é a versão dele, Ficarei muito mais descansado depois de ouvi-lo falar sob a acção das drogas. Não sei se sabe que pode muito bem ser um espião a tentar infiltrar-se.

- O. K. Como de costume, você tem toda a razão. Faça as coisas à sua maneira. Pela parte que me cabe, vou tentar aguentar as coisas por aqui. Quando é que acha que será altura para passar a responsabilidade do templo para as mãos de Alec? Estou a precisar muito de si aqui.

- Alec podia já tomar conta disto. Mas penso que a minha obrigação prioritária é a de recrutar mais "sacerdotes" capazes de se desembaraçar sozinhos e de fundar novas células.

- Isso é verdade, mas não poderá também Alec fazer isso? No fim de contas é aqui que os novos elementos são submetidos aos testes finais. Concordamos que nunca, em nenhuma circunstância, deveríamos dar-lhes a conhecer a verdadeira natureza do que estamos a fazer e que isso aconteceria apenas com os indivíduos que ficassem na Cidadela, visto que a esses seria fácil vigiar. Se Alec cometer algum erro na escolha dos homens, isso não será, de forma alguma, fatal à nossa organização.

Jeff ficou hesitante, não sabendo como dizer o que lhe ia no íntimo.

- Chefe, a coisa pode parecer muito fácil vista daí de dentro, mas olhe que por aqui as coisas não são bem assim. Eu... - Fez uma pausa.

- Que se passa, Jeff? Está com medo de alguma coisa?

- Acho que sim.

- Porquê? Parece-me que a operação está a correr de acordo com os planos que traçámos.

- Bem, sim... talvez. Major, o senhor disse que a guerra ia ser longa.

- E então?

- Então, isso não pode ser. Se a guerra for longa, vamos perdê-la.

- Mas tem de ser desta forma! Não nos atreveremos a avançar enquanto não tivermos um número suficiente de pessoas de confiança espalhadas por todo o país.

- Sim, sim, mas isso tem de ser feito no mais curto espaço de tempo possível. Qual é o maior perigo que o chefe acha que enfrentamos?

- Como? Ora, acho que é o da possibilidade de alguém nos denunciar deliberada e involuntariamente.

- Não concordo consigo, senhor... de forma nenhuma. Tem essa opinião porque se encontra aí enclausurado na Cidadela. Cá fora, vejo a coisa de modo completamente diferente, e isso traz-me constantemente preocupado.

- Bem, Então de que se trata, Jeff. Diga.

- O perigo maior que corremos, e que pode rebentar a qualquer momento, é o de as autoridades pan-asiáticas começarem a desconfiar de nós. Podem lembrar-se de pensar que não somos aquilo que aparentamos ser: uma religião ocidental esquisita, óptima para manter calmos os escravos. Se por acaso eles começam a convencer-se disso antes de estarmos instalados, ficamos arrumados.

- Não deixe que isso o deite abaixo, Jeff. Na pior das hipóteses, tem armas suficientes que o defendam até regressar à base. Eles não podem mandar-lhe com uma bomba atômica para cima, numa das cidades que eles próprios ocupam, e Calhoun diz que o novo escudo da Cidadela a protegerá até de uma bomba desse tipo.

- Tenho as minhas dúvidas sobre isso. Mas qual era a nossa vantagem se assim fosse? Imagine que podíamos ficar aí escondidos até chegarmos a velhinhos: se não pudéssemos sair de lá para fora, não poderíamos reconquistar o país.

- Hum... não, mas isso poderia dar-nos tempo para pensarmos em alguma outra solução.

- Não se iluda, major; se nos apanharem, estamos arrumados. E o povo americano perde a última oportunidade que tem para se Libertar, pelo menos nesta geração. Apesar de todas as armas que Calhoun e Wilkie possam inventar, continuamos a ser muito poucos.

- Suponhamos que tem razão: já sabia tudo isso quando daqui saiu. Porquê o pânico neste momento? Fadiga de combate?

- Dê-lhe o nome que quiser. Mas quero discutir os perigos que prevejo cá fora, no próprio terreno onde eles se encontram. Se fôssemos uma verdadeira seita religiosa, sem poderes militares, eles deixar-nos-iam sossegados até à eternidade. É verdade ou não?

- Claro que sim.

- Portanto, o perigo está no facto de termos de esconder uma série de coisas que possuímos, e que não devíamos possuir. Esse perigo encontra-se aqui fora, no terreno de batalha. Primeiro... - Thomas começou a contar pelos dedos, esquecido de que o seu comandante não podia vê-lo - é o escudo que protege o templo. Não podemos dispensá-lo; este local não pode sofrer uma busca. Mas, se precisarmos de utilizá-lo, isso também não será nada bom. Se algum veterano pan-asiático se lembra, apesar da nossa imunidade, de inspeccionar o templo, vai haver problema, de certeza; não me atrevo a matá-lo, mas também não posso deixá-lo entrar. Até aqui, graças a Deus, à muita conversa fiada e a muitos subornos, tenho conseguido mantê-los à distância.

- Jeff, eles já sabem que temos o templo protegido por um escudo; ficaram a sabê-lo desde o primeiro dia, em que contactámos com eles pela primeira vez.

- Saberão mesmo? Não me parece. Relembrando o que se passou na entrevista que tive com o governador, fico convencido de que ninguém acreditou no relatório feito pelo tal soldado que tentou entrar no nosso templo-mãe. E pode ter a certeza absoluta de que ele já não vive; é assim que eles funcionam. Quanto aos restantes soldados que faziam parte do pelotão, esses não contam. O segundo aspecto negativo é este escudo pessoal que cada "sacerdote" tem. Eu já utilizei o meu uma vez e bem arrependido fiquei de o ter feito. Felizmente, o homem também não passava de um soldado raso. Não o relataria; se o fizesse, ninguém o acreditaria e teria de partir para junto dos antepassados.

- Mas, Jeff, os "sacerdotes" têm de usar escudos; não nos podemos arriscar a que algum bastão caia nas mãos do inimigo, e isto para não falar da possibilidade de os tipos poderem apanhar algum de nós desprevenido e sem escudo, drogá-lo e obrigá-lo a falar antes de poder pôr termo à vida.

- A quem o diz! Temos mesmo de usá-lo e, ao mesmo tempo, não nos atrevemos a pô-lo em funcionamento, o que requer uma grande capacidade da nossa parte para resolvermos as coisas pela via do diálogo. O outro ponto delicado a considerar é o do halo.

Chefe, a idéia da auréola foi um erro.

- Por que diz isso?

- O. K., não há dúvida de que impressiona os supersticiosos. Mas acontece que os grandes líderes pan-asiáticos são tão supersticiosos como você. Veja o exemplo do governador... Eu levava a auréola em torno da cabeça quando me apresentei a ele.

Não ficou absolutamente nada impressionado; a minha grande sorte foi o tipo não dar grande importância ao fenómeno, tendo certamente calculado que se tratava de algum truque para impressionar os fiéis. Mas suponha que ele começava a encarar a coisa seriamente e se dispunha a descobrir do que se tratava. Que é que acontecia?

- Talvez tenha razão - disse Ardmore. - É melhor não utilizarmos o truque do halo na próxima cidade onde nos instalarmos.

- É demasiado tarde. A designação oficial que nos dão aqui é "os santos homens do halo". É uma espécie de marca de origem.

- Ari, sim? Jeff, acho que, apesar de tudo, tem feito um magnífico trabalho de cobertura.

- Há ainda um outro ponto fraco. Trata-se de uma falha que vai ganhando forma lentamente, uma espécie de bomba de relógio que um dia poderá explodir.

- Que é?

- O dinheiro. Temos demasiado dinheiro. É uma circunstância que levanta muitas suspeitas.

- Mas vocês tinham de ter dinheiro para poder seguir o plano previsto.

- Sei-o demasiado bem. Tem sido a única coisa que nos tem possibilitado evoluir. Esta gentalha ainda é mais corrupta do que os Americanos, chefe: entre nós a corrupção é considerada um crime, mas entre eles não é mais do que um aspecto que faz parte da sua cultura. O que nos tem valido é a posição de respeito que alcançámos no papel da galinha dos ovos de ouro.

- Mas por que razão diz que esse aspecto constitui uma espécie de bomba de relógio? Ou, até, por que é que vê nele um obstáculo à vossa segurança?

- Recorda-se do que aconteceu à tal galinha na história? Há-de chegar o dia em que um tipo mais espertalhão quererá saber donde è que provém todo este ouro que distribuímos. Enquanto isso não acontece, todos aqueles que beneficiam da nossa prodigalidade fecham os olhos à estranheza do facto, arrecadando o mais possível, enquanto têm possibilidade disso. Aposto que nenhum deles abrirá a boca enquanto não sentir a sua segurança posta em causa. Duvido de que o governador saiba que parecemos disporde uma reserva ilimitada de moedas de ouro americanas. Mas algum dia a coisa há-de chegar aos ouvidos dele; é aí que se encontra o elemento fundamental que faz o processo assemelhar-se a uma bomba de relógio. Se não o conseguirmos igualmente subornar, de forma discreta, como é evidente, ele mandará fazer algumas investigações que nos levantarão problemas embaraçantes. Podemos dar, algures no decorrer do processo, com algum oficial deles que esteja mais interessado na verdade dos factos do que no crescimento do seu pecúlio pessoal. Antes que isso aconteça, é melhor passarmos à acção!

- Hum... estou a ver que sim. Bem, Jeff, faça o melhor que puder e envie-nos alguns "sacerdotes" recrutados, cá para cima, assim que for possível. Se dispuséssemos já de uma centena de homens de confiança e tão hábeis a lidar com as pessoas como você, poderíamos marcar o dia "D" já para daqui a um mês. Mas isso ainda pode levar anos, e, como diz, os acontecimentos podem sofrer alguma alteração que nos estrague os pianos.

- Está a ver por que é que tenho tanta dificuldade em encontrar elementos recrutáveis? A lealdade não basta; há que haver um talento especial para enganar o público, sempre que tal for necessário. Eu aprendi esta arte nos meus tempos de trabalhador itinerante. Alec não tem grande jeito para isso, é demasiado honesto. No entanto, é bem possível que já possa dispor, neste momento, de um novo recruta: um tipo que se chama Johnson.

- Sim? E que tal é ele?

- Trabalhava na compra e venda de propriedades e tem muita habilidade para convencer as pessoas. Como é evidente, os Pan-Asiáticos acabaram-lhe com o negócio e ele anda ansioso a ver se escapa aos campos de trabalho. Tenho uma boa impressão dele.

- Bem, se acha que ele serve, mande-mo. Talvez possamos utilizá-lo aqui mesmo.

- Como?

- Enquanto falava, lembrei-me de uma coisa, Jeff. Não sei o suficiente sobre a situação real que se vive aí fora; tenho de ir para aí uns tempos a fim de me informar directamente do que se passa. Se tenho a meu cargo a direcção das manobras, tenho de compreendê-las integralmente. E não posso fazê-lo aqui, metido neste buraco cavado na terra; estou a começar a perder o sentido da realidade.

- Pensei que isso já ficara definitivamente resolvido há muito tempo, chefe.

- Que quer dizer?

- Vai deixar Calhoun no comando da Cidadela.

Ardmore permaneceu alguns momentos em silêncio, depois do que disse:

- Diabos o levem, Jeff!

- Então, vai ou não?

- Pois bem, esqueça o que eu disse.

- Não fique aborrecido, chefe; tenho tentado traçar-lhe uma panorâmica o mais pormenorizada possível do que se passa cá fora; é por isso mesmo que tenho estado todo este tempo a falar.

- Estou muito satisfeito com isso. Quero, aliás, que repita tudo o que me revelou, mas de forma mais pormenorizada. Vou pôr Estelle em contacto consigo a fim de tomar nota de tudo o que disser. Vamos elaborar, a partir desses elementos, um manual de instruções para "sacerdotes" aprendizes.

- O. K., mas depois volto a ligar para ai. Tenho um serviço religioso dentro de dez minutos.

- Então, Alec nem sequer é capaz de dirigir uma prática?

- Sim, é, e até o faz muito bem. Os sermões dele são muito melhores do que os meus. Mas este é o meu período preferido para recrutar novos elementos, major; analiso a multidão e depois contacto-os individualmente.

-O. K., O. K. Vou desligar.

- Adeus.

O salão do templo encontrava-se completamente apinhado de gente. Thomas não tinha ilusões de que a fé no grande deus Mota que animava aquela multidão fundamentava-se sobretudo no incentivo que constituía o amontoado profuso dos víveres que já se encontravam dispostos sobre várias mesas que tinham sido colocadas no hall, víveres adquiridos com o belo ouro de Sheer. Mas Alec deu um bom show. Ao ouvi-lo discursar, Jeff tinha a impressão de que o corpulento homem conciliara de tal modo o novo e estranho ofício com a sua consciência que acreditava agora que estava a ensinar a sua própria religião, através de símbolos, evidentemente, e de estranhos rituais... Mas o tom da sua voz mostrava-se profundamente convicto.

"Se ele continua assim", disse Jeff para consigo, "não tarda muito que tenhamos mulheres a desmaiar no meio da assistência. Talvez seja melhor dizer-lhe para não se empolgar tanto."

Mas Alec chegou ao hino final sem incidentes. A congregação cantou com fervor e depois dirigiu-se para as mesas. Inicialmente, a música sacra constituíra um problema de difícil resolução, mas Jeff resolvera a questão ao lembrar-se de inserir novas letras em conhecidas canções patrióticas americanas. Com isso alcançou dois objectivos: por um lado, fazia que a lembrança das letras originais ocorresse facilmente ao espírito dos presentes e, por outro, fazia renascer o velho sentido patriótico.

Jeff circulava por entre o seu rebanho enquanto se comia, dando pancadinhas na cabeça das crianças, distribuindo bênçãos e escutando o que se dizia. A determinada altura foi abordado por um homem. Era Johnson, o antigo vendedor de propriedades.

- Permite-me que lhe dê uma palavrinha, santo homem.

- Que se passa, meu filho?

Johnson deu-lhe a entender que pretendia falar-lhe a sós; refugiaram-se na sombra que um dos cantos do altar fazia com a parede.

- Santo homem, não me atrevo a voltar para o meu quarto esta noite.

- Então porquê, meu filho?

- Ainda não consegui revalidar o meu cartão de identificação e hoje termina o prazo do anterior. Se volto para casa, espera-me o campo de trabalho com certeza.

Jeff olhou-o gravemente.

- Sabeis que os servos de Mota não incentivam a resistência à autoridade mundana.

- Não deve querer que eu seja preso, pois não?

- Não recusamos asilo a ninguém. Talvez a coisa não esteja tão má como pensais, meu filho; talvez, ficando aqui esta noite, amanhã possais arranjar alguém que vos revalide o cartão.

- Então posso ficar?

- Podeis ficar.

Thomas achava que Johnson podia até ficar definitivamente; se se visse que servia, poderia ser enviado para a Cidadela a fim de submeter-se ao teste final. Caso contrário, Johnson poderia continuar ali na qualidade de simples ajudante do templo, pois em cada dia que passava era necessária mais ajuda no templo, sobretudo na cozinha.

Depois de a multidão se retirar, Jeff trancou a porta e deu, ele próprio, uma volta ao edifício para se certificar de que ninguém tinha ficado lá dentro, com excepção dos auxiliares residentes e daqueles a quem fora concedido asilo por aquela noite.

Já tinha mais de uma dúzia de refugiados desse tipo; Jeff estava a estudar alguns deles, numa perspectiva de recrutamento.

Depois de a inspecção terminar e de o local ter ficado completamente limpo, Jeff levou todos os presentes, com excepção de Alec, para o andar de cima, onde se encontravam os dormitórios; depois de todos terem subido, fechou à chave a porta que dava para as escadas.Tratava-se de uma medida de precaução rotineira; o altar, juntamente com os seus maravilhosos instrumentos, encontra-se a salvo de curiosos, dado que possuía o seu próprio escudo de protecção, o qual era accionado por um comutador que se encontrava na cave; de qualquer modo, porém, Jeff não queria que ninguém tentasse lá chegar, sofrendo, assim, as consequências desse acto. A justificação apresentada para as medidas de isolamento nocturno era, como é evidente, o carácter "sagrado" das instalações do rés-do-chão.

Alec e Jeff desceram à cave, fechando, atrás deles, uma pesada porta chapeada a aço. As instalações onde dormiam eram constituídas por uma dependência de vastas dimensões, onde se encontravam a unidade que fornecia a energia ao altar, o aparelho de comunicação que fazia as ligações à base e as duas camas que Peewee Jenkins lhes arranjara no dia em que tinham chegado a Denver. Alec despiu-se, refrescou-se na casa de banho adjacente e preparou-se para dormir. Jeff libertou-se da túnica e do turbante, mas não da barba, que já era genuína. Depois vestiu o pijama e, acendendo um cigarro, estabeleceu ligação com a Cidadela. Falou durante três horas seguidas, por entre o ressonar de Alec. Depois também se deitou.

Jeff acordou com uma sensação desconfortável. As luzes não tinham sido ligadas; portanto, não fora acordado pelo despertador matinal. Permaneceu imóvel durante algum tempo, depois estendeu a mão para o chão e agarrou no seu bastão.

Estava alguém no quarto, alguém além de Alec, que continuava a ressonar na outra cama. Tinha a certeza disso, embora naquele momento não ouvisse qualquer ruído. Tacteando silenciosamente o bastão, ligou o escudo protector, de modo a abranger ambas as camas. Depois acendeu as luzes.

Johnson encontrava-se em frente do comunicador. Tinha os olhos cobertos por uns complicados óculos; numa das mãos segurava um projector de luz negra.

- Não se mexa - disse Jeff calmamente.

O homem deu meia volta, empurrando os óculos para a testa. Demorou algum tempo a recompor-se, com os olhos a pestanejar perante a luz.

Uma pistola de raios vórtice surgiu-lhe quase instantaneamente na mão.

- Não faça movimentos bruscos, padre - rosnou. - Isto aqui não é nenhum brinquedo.

- Alec - chamou Jeff. - Alec! Acorde!

Alec sentou-se no leito, imediatamente alerta. Relanceou o olhar em volta, à procura do seu bastão.

- Estamos ambos a coberto - disse Jeff rapidamente. - Agora domine-o, mas não o mate.

- Se se mexem, abato-os - avisou Johnson.

- Não seja tolo, meu filho - respondeu Jeff. - O grande deus Mota protege os seus. Largue essa arma.

Sem perder tempo em conversas, Alec começou a trabalhar com o bastão. A operação levou-lhe algum tempo, dado que só ainda o utilizara em operações de tracção e pressão. Johnson observou-o desconfiado, pareceu indeciso e depois disparou.

Nada aconteceu; o escudo de Jeff absorveu a energia.

Johnson parecia atónito; daí a pouco, ainda mais atónito ficou quando Alec lhe faz saltar a arma da mão com o raio tractor.

- Agora - disse Jeff-, diga-nos, meu filho, por que razão pretende profanar os mistérios de Mota.

Johnson olhou em redor, com os olhos a denotar a apreensão que lhe ia no espírito, mas tentando manter a atitude de desafio.

- Não me venha com essa história do deus Mota. Não conseguiram enganar-me.

- O deus Mota não deve ser insultado.

- Acabem com isso, já vos disse. Qual é a explicação que dão para terem aqui este aparelho? - disse, apontando com um dedo para o comunicador.

- O deus Mota não necessita de dar explicações. Sente-se, meu filho, e façamos as pazes.

- Sento-me uma ova! Vou mas é já embora daqui. Se vocês porventura não querem ver isto cheio de amarelos, não tentem impedir-me. Não sou do género de denunciar um branco, mas, se ele me causar problemas, não hesitarei em fazê-lo.

- Quer-nos fazer acreditar que não passa de um vulgar ladrão?

- Veja lá o que me chama. Vocês têm andado a espalhar ouro por aí; não se deviam admirar que aparecesse alguém interessado nele.

- Sente-se.

- Vou-me embora. Virou-se para sair. Jeff disse:

- Imobiliza-o, Alec! Mas não o magoes.

A ordem retardou um pouco a reacção de Alec. Johnson ia já a meio da escada quando Alec fez incidir sobre ele o feixe de tracção, que o fez cair pesadamente, batendo com a cabeça num degrau.

Calmamente, Jeff levantou-se e envergou as vestimentas.

- Mantenha o bastão apontado para ele. Vou lá acima dar uma vista de olhos. - E subiu as escadas.

Manteve-se no andar superior cinco minutos, findos os quais regressou. Johnson estava estendido no leito de Alec, adormecido.

- Não há grandes estragos - comunicou Jeff. - O fecho da porta lá de cima foi apenas forçado. Ninguém estava acordado; voltei a arranjá-lo. Quanto ao fecho da porta que dá aqui para baixo, terá de ser substituído; ele fundiu-o com alguma coisa.

Aquela porta devia realmente ter um escudo; hei-de falar com Bob a respeito disso. - Olhou para a figura estendida. - Continua sem sentidos?

- Não, já não. Estava a recuperá-los e resolvi dar-lhe uma injecção de pentotal de sódio.

- Fez bem. Quero interrogá-lo.

- Foi isso que calculei.

- Anestesia?

- Não, só uma dose muito pequena.

Thomas apertou um dos lóbulos das orelhas de Johnson com os dedos. O homem mexeu-se.

- Está ligeiramente inconsciente. Deve ser da pancada na cabeça. Johnson! Está a ouvir-me?

- Hum, sim.

Thomas interrogou-o pacientemente durante vários minutos. Finalmente Alec interrompeu-o.

- Jeff, temos mesmo de continuar a ouvir isto? É como estar a olhar para um cano de esgoto.

- Ele também me dá vontade de vomitar, mas temos de fazê-lo. Prosseguiu. Quem lhe pagava? Que é que os Pan-Asiáticos estavam à espera de encontrar? Como é que ele comunicava depois com eles? Quando é que devia voltar a fazê-lo? Havia mais alguém metido naquilo? Que pensavam os Pan-Asiáticos do templo de Mota? A pessoa que o encontrara sabia que ele estava ali naquela noite?

E finalmente: que é que o levara a trair o seu próprio povo?

A droga já estava a começar a perder o efeito. Johnson recuperava parte da noção do local onde se encontrava, mas os seus sentidos ainda se encontravam vagamente adormecidos, pelo que continuava a responder sem qualquer inibição às perguntas que lhe faziam:

- Um homem tem de zelar pelos seus interesses, não tem? Quando se é esperto, pode-se conseguir tudo o que se quer.

- Tenho idéia, pelo que ouço, que quem não tem estado a ser esperto somos nós, Alec - observou Thomas, que permaneceu silencioso durante alguns minutos e depois disse:

- Creio que ele nos disse tudo quanto havia a dizer. Estou a ver se decido o que é que vamos fazer dele.

- Se lhe der outra injecção, pode ser que ele diga mais coisas. Johnson disse:

- Não me conseguem fazer falar! - E parecia desconhecer totalmente que já o fizera.

Thomas deu-lhe uma pancada no rosto com as costas da mão.

- Cale-se imediatamente. Você só fala quando lhe disserem para fazê-lo. Por enquanto não abre a boca. - Dirigindo-se a Alec, prosseguiu: - Se o mandarmos para a base, pode ser que consigam obter mais informações dele. Mas isso parece-me um pouco remoto e, além disso, seria estarmos a dar um passo perigoso e arriscado. Se fôssemos apanhados com ele ou se o tipo conseguisse fugir, estava tudo estragado. Penso que o melhor que temos a fazer é desfazer-nos dele aqui e agora.

Johnson parecia ter ficado em pânico e tentou sentar-se, mas o bastão de Alec mantinha-o preso à cama.

- Eh! De que é que estão a falar? isso é assassínio!

- Dá-lhe outra injecção, Alec. Não podemos tê-lo para aqui a fazer barulho desta maneira.

Howe, sem se pronunciar, deu-lhe rapidamente a referida injecção. Johnson tentou escapar-lhe e depois contorceu-se um pouco antes de ceder ao efeito da droga. Howe endireitou-se. Tinha o rosto quase tão alterado como o de Johnson estivera momentos antes.

- Você estava a falar a sério há pouco, Jeff? Se assim for, eu também não alinho num assassínio.

- Não é assassínio, Alec. Executaremos apenas um espião. Howe mordeu os lábios:

- Creio que, se se tratasse de matar um homem num combate leal não me importaria. Mas tê-lo assim amarrado e matá-lo como se não passasse de um animal de matadouro dá-me voltas ao estômago.

- As execuções são sempre assim. Alec. Já alguma vez viste um homem morrer numa câmara de gás?

- Mas isto é um assassínio, Jeff. Nós não temos autoridade para executá-lo.

- Eu tenho essa autoridade, Alec. Sou o comandante encarregado deste reduto independente e estamos em tempo de guerra.

- Mas repara, Jeff, nem sequer lhe fazemos um julgamento de guerra!

- Os julgamentos servem para se verificar se um homem é culpado ou inocente. Ele é culpado ou não?

- Oh, sem dúvida que é culpado. Mas um homem tem direito a ser julgado.

Jeff respirou fundo:

- Alec, eu já fui advogado. A complicada estrutura da jurisprudência ocidental em matéria criminal, tal como tem vindo a ser aplicada ao longo dos séculos, não tem tido outro propósito senão o de evitar que os inocentes sejam condenados e castigados pelos crimes que não cometeram. Por vezes acontece que o culpado sai ileso do processo, mas isso não acontece voluntariamente. Não disponho nem do pessoal nem do tempo para organizar um tribunal militar que possa proporcionar a este homem um julgamento justo, mas a sua culpabilidade foi já comprovada com muito mais provas do que aquelas que um tribunal poderia alguma vez reunir, e eu não tenciono pôr esta operação em perigo e arriscar o resultado final desta guerra, só para lhe proporcionar o sistema de protecção que foi criado para defender inocentes.

"Se eu conseguisse apagar-lhe a memória do que se passou e o deixasse partir a fim de comunicar a quem o contratou que tudo quanto encontrou foi uma igreja onde se pratica um culto bizarro e uma multidão de gente a comer, não me importaria de fazê-lo, não para evitar qualquer complexo de culpabilidade quanto á sua morte, mas sim porque isso iria lançar a confusão no seio do inimigo. Não posso, de forma alguma, pô-lo em liberdade...

- Nem eu queria que o fizesse, Jeff!

- Cale-se, soldado, e ouça o que lhe vou dizer. Se o soltar com o conhecimento pleno do que aqui viu, os Pan-Asiáticos fazem-no falar do mesmo modo que nós o conseguimos, mesmo que ele tente esconder alguma coisa. Não temos possibilidade de o manter aqui; é perigoso enviá-lo para a base. Tenciono executá-lo imediatamente. - E fez uma pausa.

Alec disse timidamente:

- Capitão Thomas...

- Diga.

- Por que não liga ao major Ardmore e lhe pede opinião?

- Porque não há razão para fazê-lo. Se de cada vez que tiver de tomar uma decisão recorrer ao julgamento dele, então é porque não sirvo para este lugar. Tenho apenas mais uma coisa a acrescentar: você é demasiado brando e sensível para este tipo de trabalho. Aparentemente pensa que os Estados Unidos vão conseguir ganhar esta guerra sem que ninguém fique ferido... Você nem sequer tem a coragem necessária para ver um traidor morrer. Tinha pensado em passar-lhe muito brevemente o comando desta unidade para as mãos; em vez disso vou mandá-lo de volta para a base, já amanhã, com um relatório para apresentar ao comandante a dizer que não tem capacidade absolutamente nenhuma para fazer frente ao inimigo. Entretanto limitar-se-á a cumprir as minhas ordens. Ajude-me a levar este tipo para a casa de banho.

Howe apertou os lábios, mas nada disse. Os dois transportaram o homem inconsciente para o compartimento contíguo. Antes de o templo ter sido "consagrado", Thomas mandara demolir uma parede que separava duas salas e nesse espaço mandara instalar uma banheira à moda antiga. Puseram-no dentro da referida banheira.

Howe passou a língua pelos lábios.

- Por que o põe na banheira?

- Porque vai haver muito sangue por aqui.

- Não vai utilizar o seu bastão?

- Não, levaria uma hora a desmontá-lo e a instalar a frequência do circuito supressor de brancos. E não sei se seria capaz de voltar a montar o sistema anterior. Dê-me a sua navalha de barba e saia daqui.

Howe foi buscar a navalha e regressou. Mas não a entregou a Thomas.

- Já participou numa matança de porcos? - perguntou.

- Não.

- Então não há dúvida de que percebo mais disso do que você. - Inclinando-se, ergueu o queixo de Johnson. O homem respirava pesada e ruidosamente. Howe, com um gesto rápido, cortou-lhe a garganta. Largou a cabeça do homem e, levantando-se, ficou a olhar fixamente para a torrente de sangue que saía. Cuspiu para dentro da banheira e, dirigindo-se ao lavatório, limpou a navalha.

Jeff disse:

- Creio que o julguei de forma muito precipitada, Alec. Alec não olhou para ele.

- Não - disse vagarosamente -, não foi nem um pouco precipitada. Acho que uma pessoa leva algum tempo a habituar-se à idéia de que se está em guerra.

- Sim, penso que sim. Bem, vamos despachar isto.

Apesar da movimentada noite, Jeff Thomas levantou-se cedo para comunicar a Ardmore o que acontecera, antes da prática da manhã. Ardmore ouviu cuidadosamente o relato dos acontecimentos e depois disse:

- Vou mandar aí Sheer para instalar um escudo de protecção à porta da cave. De agora em diante, todos os compartimentos dos templos a instalar vão passar a dispor destas medidas de protecção. E em relação a Howe? Quer mandá-lo para aqui?

- Não - decidiu Thomas. - Penso que o problema foi ultrapassado. Ele é sensível por natureza, mas tem muita força moral. Caramba, chefe, temos de confiar em alguém!

- Está disposto a passar-lhe a responsabilidade do templo?

- Bem... sim, agora posso dizer que estou. Porquê?

- Porque quero que parta imediatamente para Salt Lake City. Estive a maior parte da noite acordado a pensar no que me disse ontem. Você estimulou-me, Jeff; estava a começar a amolecer e a ter dificuldade em pensar em novos planos.

Quantos potenciais recrutas tem neste momento?

- Treze, já sem contar com Johnson. Nem todos são, claro, candidatos ao "sacerdócio".

- Quero que mos envie para aqui imediatamente.

- Mas, chefe, ainda não os interroguei.

- Decidi alterar o esquema dos testes. Os interrogatórios que se fazem sob a acção das drogas passam a ser feitos aqui na Cidadela. Vocês aí não têm facilidade em fazê-lo convenientemente. Vou encarregar Brooks dessa tarefa; eu próprio farei o exame final àqueles que ele seleccionar. Doravante, a missão principal dos "sacerdotes" passará a ser a de localizar novos candidatos e enviá-los para o templo-mãe.

Thomas pensou no que acabara de ouvir.

- E que acontecerá quando aparecerem tipos como Johnson? Com certeza que não queremos que pessoas como ele penetrem na Cidadela.

- Previ essa eventualidade... Será por isso mesmo que os exames serão feitos aqui. O candidato será drogado antes de ir deitar-se, mas não dará por isso. Durante essa mesma noite será submetido a um teste hipnótico. Se for aprovado, óptimo. Se isso não acontecer, então nunca saberá que foi interrogado sob a acçáo de drogas, mas continuará a pensar que foi aceite.

- Como?

- Aí é que está a inovação. Será aceite ao serviço do grande deus Mota, será empossado no seu papel de irmão leigo... Depois, nós nos encarregaremos de tornar-lhe a vida um inferno! Passará a dormir numa cela desprovida de qualquer conforto, lavará o chão, comerá pessimamente, tanto em termos de qualidade como de quantidade, e passará várias horas diárias de joelhos no cumprimento das suas devoções. Será tão rigorosamente vigiado que nunca terá a mínima oportunidade de descobrir que por baixo do templo-mãe se encontra algo mais que matéria rochosa. Quando já não puder aguentar mais o ritmo, dar-lhe-emos, pesarosamente, a oportunidade de desistir dos seus votos, depois do que poderá regressar para junto dos seus mestres a fim de relatar-lhes o que muito bem entender.

Thomas parecia deliciado:

- Isso tem todo o ar de uma boa idéia, major. Parece até divertido... e até é capaz de resultar.

- Penso que sim e que também, desta maneira, tiramos partido dos próprios agentes mandados pelo inimigo. Depois de a guerra terminar recolhemo-los a todos e executamo-los... Refiro-me aos espiões que vamos encontrar, e não a quem não dê mostras de capacidade por qualquer outro motivo. Mas isso ainda vem longe; por agora falemos dos candidatos que vão passar nos testes. Preciso de recrutas e depressa. Tenho necessidade imediata de várias centenas deles. Para além dessas várias centenas, quero arranjar pelo menos mais seis candidatos que sirvam razoavelmente para as lides do "sacerdócio"; vou treiná-los simultaneamente e logo de seguida enviá-los conjuntamente aí para fora. Você conseguiu convencer-me dos perigos que existem em esperarmos demasiado tempo, Jeff; quero penetrar em todas as cidades onde os Pan-Asiáticos tenham instalado os seus redutos mais importantes e fazê-lo em simultâneo. Agora tenho a certeza de que essa é a única forma de acabarmos com esta mascarada.

Thomas soltou um assobio.

- O senhor não está a querer fazer muita coisa ao mesmo tempo, pois não, chefe?

- Não se trata de nada impossível. Vou passar a ler-lhe o novo método de recrutamento. Ligue o gravador.

- Já está ligado.

- Óptimo.Envie os recrutas que tenham perdido membros da sua família devido á invasão dos Pan-Asiáticos ou que tenham, à primeira vista, motivos fortes para odiar os invasores e que aparentem poder manter a sua lealdade em situação de stress. Elimine todos aqueles que derem sinais evidentes de instabilidade, mas deixe ao cuidado da Cidadela qualquer outra discriminação de ordem psicológica. Escolha os candidatos que sirvam apenas para as seguintes categorias: para o "sacerdócio": vendedores, profissionais de publicidade, jornalistas, prega dores, políticos, psicólogos, animadores culturais, chefes de pessoal psiquiatras, advogados, directores de espectáculos; para trabalhar em contacto com o público, mas não com o inimigo: operários metalúrgico! especializados em todos os tipos de trabalho, técnicos electrónicos, joalheiros, relojoeiros, quaisquer trabalhadores com instrumentos de precisão, cozinheiros, estenógrafos, técnicos de laboratório, físicos, alfaiates. Neste último grupo podem entrar mulheres.

- Não pode haver mulheres entre aqueles que vão fazer de sacerdotes?

- Qual é a sua opinião?

- Acho que não. Essas ratazanas têm um conceito muito fraco sobre a mulher. Não me parece que a mulher-sacerdote pudesse ter alguma operacionalidade a contactar com eles.

- Tenho a mesma opinião. Agora vejamos uma coisa: acha que Alec é capaz de fazer o recrutamento de acordo com estas directrizes?

- Hum... Chefe, não me parece nada aconselhável estar já a atira -lhe com esta responsabilidade para cima dos ombros.

- Ele não é pessoa para cometer um erro que nos deite a perder, pois não?

- Não, mas talvez não alcance grandes resultados.

- Bem, creio que a única coisa que tem a fazer é mandá-lo avançar e vamos ver o que sucede. Daqui em diante temos de acelerar o processo, Jeff. Entregue-lhe a direcção do templo e apresente-se aqui. Você e Sheer partem para Salt Lake City imediatamente e instalam-se publicamente. Compre outro carro e utilize o condutor que já tem. Alec pode recrutar outro mais tarde. Quero Sheer de volta dentro de quarenta e oito horas e espero que me envie os primeiros recrutas daqui a dois dias.

Passadas duas semanas enviarei alguém para substituí-lo, ou Graham ou Brooks...

- Que disse? Nenhum dos dois tem temperamento para uma coisa destas.

- Com certeza que serão capazes de prosseguir o trabalho que você já deixar iniciado. Depois, assim que for possível, enviarei alguém que melhor se adapte á tarefa. Você voltará para aqui e dará início a uma escola para "sacerdotes"... ou então,

se nessa altura já existir alguma, ajudá-la-á e aperfeiçoará as matérias nelas administradas. Estou a pensar em dar-lhe início imediatamente, com as pessoas de que disponho. Essa é a tarefa que lhe destino; não penso voltar a mandá-lo novamente aí para fora, a não ser, possivelmente, para resolver alguma encrenca que porventura surja.

Thomas suspirou:

- Não há dúvida de que tenho mesmo de me despachar com este trabalho, não é verdade?

- Sem dúvida que tem. E agora mãos à obra.

- Só um momento. Por que razão me manda para Salt Lake City?

- Porque me parece um bom local para o recrutamento. Os mórmones são tipos espertos e de espírito prático, e não me parece que consiga encontrar um único traidor entre eles. Se trabalhar para isso, estou certo de que conseguirá convencer os membros mais idosos de que o grande deus Mota é um aliado que lhes convém ter, não constituindo nenhuma ameaça para a sua própria fé. Ainda não fizemos qualquer uso das religiões já existentes; elas deviam constituir o apoio do movimento. Repare nos mórmones

... Eles têm missionários; se souber fazer a coisa como deve ser, poderá recrutar alguns deles já experientes, corajosos, habituados a trabalhar organizadamente em território hostil, bons oradores, inteligentes. Compreendeu a idéia?

- Perfeitamente. Bem, pode estar certo de que tentarei.

- Você pode fazê-lo. Assim que for possível, mandamos alguém substituir Alec e deixamo-lo fazer uma tentativa, pelos seus próprios meios, em Cheyenne. Não é uma localidade muito populosa; se a coisa falhar, não terá grande importância. Mas estou certo de que ele consegue dar conta de Cheyenne. Agora vai você para Salt Lake City.

 

Denver, Cheyenne, Salt Lake City, Portland, Seattle, São Francisco, Cansas, Chicago, Little Rock, Nova Orleães, Detroit, Jérsia, Riverside, Five Points, Buttler, Hackettstown, Natick, Long Beach, Yuma, Fres-no, Amarillo, Grants, Farktown, Bremerton,

Coronado, Worcester, Wickenberg, Santa Ana, Vicksburg, Lasalle, Morganfield, Blaisviile, Barstow, Wallkyll, Boise, Yakima, St. Augustine, Walla Walla, Abile-ne, Chattahoochee, Leeds, Laramie, Globe, South Norwalk, Corpus Christi.

- A paz seja convosco! Quão maravilhoso é podermos usufruir de paz! Vinde, todos aqueles que de entre vós se encontrarem enfermos e sentirem as agruras da vida! Vinde! Trazei os vossos sofrimentos até ao templo do deus Mota. Entrai no santuário

onde os mestres não se atrevem a seguir-vos. Renovai orgulhosamente o vosso orgulho de brancos, porque "a vinda do Discípulo aproxima-se"!

"A vossa criança está a morrer de febre tifóide? Trazei-a aqui! Trazei-a aqui! Deixai que os raios dourados de Tamar lhe restituam de novo a saúde. Não tendes trabalho e temeis ser enviados para os campos? Vinde até nós! Vinde até nós! Dormi aqui e

comei à nossa mesa, que nunca está vazia. Encontrareis todos aqui trabalho com fartura; podereis ser peregrinos e espalhar a nossa palavra aos outros. Para tal, apenas tereis de vos instruirdes nela.

"Quem paga tudo isto? Mas, meus filhos, Deus ama-vos, e o ouro é uma dádiva de Mota! Apressai-vos! "O Discípulo está prestes a chegar!"

Chegavam aos magotes. Inicialmente vinham por curiosidade e porque esta nova e espantosa religião constituía uma bem-vinda diversão que os distraía da sua amargurada e monótona vivência de escravos. Ardmore e a sua instintiva fé nos métodos de publicidade sensacionalistas demonstravam dar bons resultados; se tivessem pretendido levar á prática uma forma de culto mais convencional e mais dignificada, nunca teriam obtido semelhante sucesso.

Tendo-se lá dirigido inicialmente por simples diversão, acabaram por passar a ir por outras razões. Os alimentos eram de graça e não se faziam perguntas - por tudo isto, quem se importava de cantar alguns hinos inocentes? É que aqueles sacerdotes tinham possibilidades de comprar produtos de luxo que os Americanos raramente viam á sua própria mesa, tais como manteiga, laranjas, boa carne, tudo pago nos armazéns imperiais com as moedas de ouro puro que tão largos sorrisos abriam no rosto dos comerciantes pan-asiáticos.

Além disso, o sacerdote do templo local estava sempre pronto a dar uma ajuda a um homem que estivesse em maus lençóis.Para quê ter problemas de consciência relativamente à religião em si? Aquela igreja não exigia que um homem se vinculasse às crenças que defendia; podia-se lá ir e usufruir de todos os benefícios, não sendo, para isso, forçado a desistir da sua antiga religião - nem sequer lhes perguntavam se por acaso tinham alguma religião. É evidente que o sacerdote e os seus acólitos pareciam levar muito a sério o seu deus, de seis atributos; mas que importância tinha isso? Esse era o seu trabalho. Não tinham os Americanos sempre defendido a liberdade religiosa? Além disso, não havia dúvida de que faziam um bom trabalho.

No caso de Tamar, deusa da misericórdia, talvez houvesse ali alguma coisa muito de sério. Quando se vê uma criança que está quase à morte com difteria ser adormecida pelo servidor de Shaam, seguidamente banhada pelos dourados raios de Tamar e depois sair dali perfeitamente curada, começa-se a pensar muito a sério em tudo aquilo. Com metade dos médicos mortos, com o Exército e muitos dos outros homens enclausurados em campos de concentração, quem quer que fosse capaz de curar as enfermidades tinha mesmo de ser tomado a sério. Que importância tinha que aquilo parecesse uma palhaçada supersticiosa? Os Americanos eram ou não eram um povo de espírito prático? O que contava eram os resultados.

Mas mais importante ainda do que os benefícios materiais eram as benesses psicológicas. O templo de Mota era um local onde um homem podia andar de cabeça erguida sem receio, uma coisa que nem sequer na sua casa podia dar-se ao luxo de fazer.

"Não ouviram dizer? Eles dizem que nunca um amarelo pôs os pés em qualquer dos seus templos, nem mesmo para fazer uma inspecção. Nem sequer lá podem entrar, mesmo que vão disfarçados de brancos; quando o fazem, há alguma coisa que os atinge, não os deixando passar da porta. Pessoalmente, acho que aqueles macacos têm um medo de morte de Mota. Não sei porquê, mas lá no templo uma pessoa sente-se perfeitamente à vontade. Venham comigo e vão ver se tenho ou não razão!"

O Reverendo Dr. David Wood foi visitar o seu amigo, o igualmente Reverendo Padre Doyle. Este, um homem mais velho, convidou-o a entrar:

- Entre, David, entre - disse, cumprimentando-o. - Mas que agradável surpresa. Já há muitos dias que não o via.

Conduziu-o ao seu pequeno gabinete de trabalho e, pedindo-lhe que se sentasse, ofereceu-lhe tabaco. Wood, com ar preocupado, recusou.

Conversaram durante algum tempo sobre vários assuntos sem importância. Doyle podia ver que Wood tinha algo em mente que não ousava confessar, mas o velho sacerdote estava habituado a ser paciente. Quando se tornou evidente que o sacerdote mais novo não teria coragem para abordar o assunto que o acabrunhava, incitou-o a isso directamente.

- Parece-me que anda preocupado com alguma coisa, David. Não se importa que lhe pergunte do que se trata?

David Wood aproveitou a deixa:

- Padre, que pensa desses mascarados que se autodenominam de sacerdotes de Mota?

- Que penso disso? Que deveria eu então pensar?

- Não fuja à minha pergunta, Francis. Não se rala que uma heresia pagã se instale mesmo debaixo do seu nariz?

- Bem, vejamos, a sua pergunta levanta vários aspectos a considerar. Em primeiro lugar, que acha que é uma heresia pagã?

Wood resmungou:

- Sabe muito bem o que quero dizer! Deuses falsos! Túnicas e tem pios bizarros e... fantochadas!

Doyle sorriu delicadamente.

- Esteve quase a dizer "fantochadas papistas", não esteve, David. Não, não posso dizer que essas curiosas derivações me tragam excessivamente preocupado. Mas, relativamente à definição da palavra, "pagã", do ponto de vista estritamente teológico, sou forçado a considerar como tal qualquer seita que não admita a autoridade do vigário de Cristo na Terra...

- Não esteja a gozar comigo, homem! Não ando nada com disposição para isso.

- Não estou a gozar consigo, David. Ia acrescentar que, apesar da estrita lógica da teologia, Deus, na sua bondade e sabedoria infinitas encontrará forma de permitir que até mesmo aqueles que não se parecem com Ele, possam ascender ao Seu reino.

Mas no que se refere a esses sacerdotes de Mota ainda não me debrucei pormenorizadamente sobre o credo que defendem, mas parece-me que têm estado a fazer uma boa obra, obra que não tenho sido capaz de levar a cabo.

- É precisamente isso que me preocupa, Francis. Lá na minha paróquia havia uma mulher que sofria de um cancro incurável. Soube de casos iguais aos dela que aparentemente tinham sido tratados com sucesso por... por esses tais charlatães! Que podia eu fazer? Procurei a resposta na oração, mas não a encontrei.

- Que fez?

- Num momento de fraqueza, disse-lhe que fosse ter com eles.

- E que aconteceu?

- Curaram-na completamente.

- Então, eu não me preocuparia mais com o assunto. Deus tem outros instrumentos para além de mim e de si.

- Espere um pouco. Ela voltou só mais uma vez à minha igreja. Depois voltou a partir. Entrou para o convento, ou lá o que é, que eles têm para mulheres. Perdemo-la completamente para aqueles idólatras! Isto tem-me trazido torturado, Francis. Que importou curar-se-lhe o corpo se se perdeu a alma?

- Era boa mulher?

- Uma das melhores pessoas que já conheci.

- Então penso que Deus zelará pela sua alma, sem a sua ajuda ou a minha. Além disso, David - prosseguiu, enquanto voltava a encher o cachimbo-, esses tais autodenominados sacerdotes... eles não deixam de procurar o seu apoio ou o meu em questões espirituais. Eles não celebram casamentos, como sabe. Se desejasse utilizar os edifícios deles, tenho a certeza de que não encontraria qualquer obstáculo...

- Mas nem pensar nisso!

- Talvez, talvez, mas olhe que um dia encontrei um aparelho de escuta escondido no meu confessionário... - A boca do padre transformou-se numa linha dura, de tal modo estava furioso. - Desde essa altura, tenho utilizado um pequeno canto do templo para ouvir alguma confissão que possa eventualmente interessar os nossos senhores pan-asiáticos.

- Francis, não me diga que fez uma coisa dessas! - Depois acrescentou, de forma mais moderada: - O seu bispo tem conhecimento disso?

- Bem, sabe... o bispo é uma pessoa muito ocupada...

- Francamente, Francis...

- Ora, ora... escrevi-lhe realmente uma carta, expondo a situação o mais claramente possível. Pode ser que por um destes dias encontre alguém que vá para os lados onde ele vive e possa levá-la. Desagradar-me-ia profundamente ter de fazer passar estas questões da nossa igreja por um tradutor público; poderiam ser mal interpretadas.

- Portanto, não lhe comunicou o que tem feito?

- Não lhe disse já que tenho a carta escrita? Deus é testemunha disso; não fará mal que o bispo venha a lê-la um pouco mais tarde.

Mal tinham passado dois meses, David Wood prestou juramento nos serviços secretos do Exército dos Estados Unidos. E não ficou particularmente surpreendido quando se deu conta, através de pequenos indícios, de que o seu velho amigo, o padre Doyle,

partilhava da mesma posição.

A organização crescia ininterruptamente, espalhando-se por todo o país. Nos subterrâneos que se encontravam sob cada templo, protegidos por escudos que não permitiam a sua detecção por parte de qualquer tipo de aparelho ortodoxo, encontravam-se operadores, permanentemente alerta, trabalhando incansavelmente em aparelhos de rádio ou semelhantes e que funcionavam através dos espectros adicionais, operadores que nunca viam a luz do dia, que não contactavam com mais ninguém para além do sacerdote do templo onde se encontravam; eram homens que tinham sido dados como desaparecidos nos campos de trabalho dos senhores pan-asiáticos, homens que aceitavam filosoficamente a sua rígida rotina como uma exigência de tempo de guerra. O seu moral encontrava-se elevado; eram de novo homens livres que combatiam, ansiosos, pelo dia em que os seus esforços permitiriam que todos os outros homens do seu país também fossem libertos.

Na Cidadela encontravam-se mulheres de serviço junto aos aparelhos de comunicação, as quais através dos auscultadores postos, recebiam todas as informações que os operadores de rádio transmitiam, dactilografavam-nas, classificavam-nas, condensavam-nas, arquivavam-nas. O oficial responsável pelo serviço apresentava ao major Ardmore, duas vezes por dia, um relatório com as informações recebidas nas últimas doze horas. Ao longo do dia chegavam, constantemente, dados dirigidos especialmente a Ardmore, enviados de cerca de dezena e meia de dioceses e que se iam amontoando sobre a secretária deste. Para além desta miríade de folhas de papel fino, cada uma delas a requerer a sua atenção pessoal, juntavam-se os numerosos

relatórios provenientes dos laboratórios, dado que Calhoun dispunha agora de assistentes suficientes para preencherem as vastas salas, até ali vazias, fazendo-os trabalhar dezasseis horas por dia.

O departamento de pessoal também o enchia de relatórios, classificações de temperamentos, pedidos de autorização, notificações de que esta ou aquela secção necessitavam de tantos elementos adicionais; poderia o serviço de recrutamento proceder à sua localização?

Pessoal: era aí que estava a principal fonte de dores de cabeça! Quantos homens são capazes de manter um segredo? Havia três divisões destinadas ao pessoal: o pessoal menor encarregado das tarefas de rotina, como era o caso das mulheres que trabalhavam na secretaria e dos empregados burocráticos, todos estes permanentemente isolados do mundo exterior; o pessoal que trabalhava nos templos locais em contacto com o público, a quem diziam apenas o mínimo indispensável, sem nunca saberem do facto de se encontrar organizados num exército secreto; e, finalmente, os "sacerdotes" em si, os quais não podiam deixar de conhecer o que se encontrava por detrás da doutrina que pregavam.

Estes tinham de jurar sigilo sobre o facto de se encontrarem ao serviço do Exército dos Estados Unidos, sendo permitido que tomassem conhecimento de todo o plano. Mas até mesmo eles não estavam a par de determinados aspectos ultra-secretos e dos princípios científicos que se encontravam por detrás dos milagres que realizavam. Eram treinados para utilizar os aparelhos que lhes eram confiados, e esse treino era extremamente rigoroso, para que não pudessem cometer nenhum erro no manuseamento dos símbolos mortais. Mas, exceptuando as raras saídas para o exterior dos sete elementos originais da organização, nenhuma pessoa que estivesse de posse do conhecimento do efeito Ledbetter e seu derivados tinham permissão para sair da Cidadela.

Os candidatos ao sacerdócio eram enviados, como peregrinos, dos templos espalhados por todo o país para o templo-mãe, que se encontrava em Denver. Chegados ali, instalavam-se no mosteiro subterrâneo, situado entre o edifício do templo e a Cidadela.

Ali eram submetidos a todos os testes habituais para aqueles casos. Aqueles que não eram indicados para aquele tipo de tarefa eram enviados para os templos a fim de servir como irmãos leigos, exactamente de acordo com as informações que lhes tinham sido dadas quando tinham deixado os seus lares para ir para ali.

Aqueles que eram aprovados, que sobreviviam aos testes destinados a ver até que ponto eram pacientes, capazes de guardar sigilo, de manter a sua lealdade, de se manter imperturbáveis perante as adversidades, eram pessoalmente entrevistados por

Ardmore, na sua qualidade de alto sacerdote de Mota, deus dos deuses. Por vezes, mais de metade dos candidatos era recusada sem qualquer motivo especial, apenas por, instintivamente, se pressentir que esses homens não serviam para essa tarefa.

Apesar de todas estas precauções, nunca Ardmore instruía nenhum oficial e o mandava para o exterior cumprir a sua missão sem a profunda preocupação de que talvez fosse aquele o elo fraco que faria ruir todo o plano.

A tensão estava a começar a deitá-lo abaixo. Era demasiada responsabilidade para um homem só, demasiados pormenores, demasiadas decisões a tomar. Cada vez tinha mais dificuldade em concentrar-se nas questões do momento, cada vez lhe era mais penoso tomar qualquer decisão, por muito simples que fosse. Tornou-se inseguro e proporcionalmente irritável. A sua má disposição contagiava todos aqueles com quem contactava e espalhava-se a toda a organização.

Teria de fazer-se algo rapidamente.

Ardmore era suficientemente honesto para consigo próprio para reconhecer, se não mesmo diagnosticar, as suas próprias fraquezas. Chamou Thomas ao seu gabinete e confessou-lhe os seus problemas. No fim, perguntou:

- Que achas que devo fazer, Jeff? Estarei já ultrapassado pela própria evolução dos acontecimentos? Deverei escolher outra pessoa para prosseguir esta tarefa?

Thomas sacudiu a cabeça lentamente:

- Não me parece que o chefe deva fazer isso. Ninguém poderia ter trabalhado tão arduamente como o senhor. E o dia tem apenas vinte e quatro horas. Além disso, quem quer que viesse substituí-lo encontraria exactamente os mesmos problemas e não disporia da vantagem que lhe confere o conhecimento de toda a engrenagem e o facto de possuir espantosos recursos de imaginação para pô-la em funcionamento.

- Bem, o que sei é que tenho de fazer alguma coisa. Estamos prestes a dar inicio à segunda fase deste show, que será destinado a tentarmos, sistematicamente, desmoralizar os Pan-Asiáticos. Quando atingirmos o ponto crítico desta situação, teremos de ter todas as congregações dos templos prontas a actuar como unidades militares, isso significa que vai ser preciso mais trabalho, e não menos. E não me sinto com capacidade para tomar a liderança de uma movimentação dessa envergadura! Caramba, homem... será que existirá em algum lado alguém que tenha inventado uma ciência relacionada com organização executiva que possa ajudar um homem a dirigir uma grande organização sem que, para isso, tenha de perder o juízo?! No decorrer destes últimos

duzentos anos, esses malfadados desses cientistas nunca deixaram de inventar coisas e mais coisas nos seus laboratórios, coisas que somente podiam ser levadas à prática por grandes organizações, mas deles nunca saiu uma palavra sobre a forma de pôr essas organizações a funcionar. - Acendeu um fósforo com um gesto raivoso. - Não faz qualquer sentido!

- Calma, chefe, calma. - Thomas tinha a testa franzida, num esforço intenso para se recordar de algo. - Talvez isso já tenha sido feito... Lembro-me de uma vez ter lido uma coisa que se referia ao facto de Napoleão ter sido o último dos generais.

- Como?

- Vem a propósito. A idéia do tal tipo que escreveu isso era que Napoleão foi o último grande general a exercer o comando directo, porque o empreendimento se tornou demasiado grande para as suas possibilidades. Alguns anos mais tarde, os Alemães inventaram o princípio do grupo de apoio ao comando e, segundo esse mesmo tipo, os generais deixaram de funcionar... como generais. O tipo era de opinião que, se Napoleão tivesse alguma vez enfrentado um exército inimigo comandado por um grupo de apoio deste tipo, nunca teria ganhado uma batalha. Provavelmente aquilo que lhe faz falta, chefe, é mesmo um grupo de apoio.

- Por amor de Deus, eu já tenho um grupo de apoio! Uma dúzia de secretários e o dobro desse número noutros elementos de apoio... são tantos que até estou sempre a tropeçar neles a cada passo.

- Não me parece que seja a esse género de grupo de apoio que esse tipo se referia. Napoleão também deve ter tido um apoio desse género.

- Bem, então que queria o tipo dizer com isso?

- Não sei exactamente, mas tudo indica que se trata de uma noção dessas que se usam nas organizações militares modernas. Por acaso não esteve no Colégio Militar, pois não?

- Sabe perfeitamente que não!

Era verdade, de facto. Thomas há muito depreendera que Ardmore não passava de um leigo na matéria, que ia improvisando à medida das necessidades; e Ardmore sabia que ele não desconhecia esse facto. No entanto, nunca nenhum deles tocara nesse assunto.

- Bem, parece-me que um tipo formado no Colégio Militar seria capaz de nos fornecer alguns dados sobre organização.

- Olha que novidade. Mas esses ou morreram nos recontros ou foram abatidos depois da rendição. Se algum escapou, está muito bem escondido e a fazer todos os possíveis para não ser detectado, o que acho até muito bem.

- Lá isso é verdade. Bem, esqueça... Acho que, afinal de contas, a idéia até nem era lá muito boa.

- Não seja precipitado. A idéia era mesmo boa. Olhe... Os exércitos não são as únicas grandes organizações que existem. Veja as grandes empresas, como a Standard Oil, a U. S. Steel e a General Motors... Elas devem ter trabalhado com base nos mesmos princípios.

- Talvez. De qualquer modo, algumas devem tê-lo feito, embora algumas também façam que os seus executivos se esgotem ainda bastante jovens. Quanto aos generais, parece-me, a mim, que estes só morrem de velhos.

- Mesmo assim, alguns devem ter conhecimentos importantes sobre o assunto. É capaz de ver se consegue descobrir alguns?

Quinze minutos mais tarde, um seleccionador automático de cartões percorria as filas dos numerosos cartões correspondentes aos homens e mulheres que tinham dado entrada na organização.Descobriu-se que vários homens que tinham outrora tido a seu cargo tarefas executivas, à frente dos mais variados empreendimentos, se encontravam naquele momento a trabalhar na Cidadela, em trabalhos administrativos de maior ou menor importância. Foram todos chamados e emitiram-se ordens para se arranjassem alguns outros para serem enviados ao templo-mãe em "peregrinação".

A primeira experiência não resultou. O homem, extremamente nervoso, era um indivíduo que dirigira os seus negócios em linhas muito semelhantes àquelas que Ardmore utilizara no seu esquema. As sugestões tinham a ver com a rotatividade e outras formas de trabalho, não tendo apresentado nenhuma idéia básica que alterasse os princípios já estabelecidos. Mas, à medida que os contactos iam sendo feitos, apareceram homens de espírito calmo que dispunham, por instinto e por experiência própria, de conhecimentos sobre os princípios administrativos.

Um deles, antigo director-geral de uma multinacional de transportes, era, na verdade, um curioso e um especialista dos modernos métodos de organização militar. Ardmore nomeou-o responsável do grupo de apoio. Com a sua ajuda, procedeu à selecção dos restantes elementos: o antigo chefe de pessoal da empresa Sears, de Roebuck; um homem que fora, durante muitos anos, subsecretário do Ministério das Obras Públicas num dos estados do país; o secretário executivo de uma companhia de seguros. À medida que foi sendo necessário arranjou-se mais gente.

A coisa resultou. Ardmore teve inicialmente alguma dificuldade em se habituar ao novo sistema de trabalho; toda a vida fora um profissional independente, achando desconcertante o facto de agora encontrar a sua autoridade repartida por várias personalidades, cada uma delas falando pela sua própria cabeça e assinando com o seu próprio nome. Mas com o tempo chegou á conclusão de que aqueles homens eram capazes de aplicar as mesmas directrizes que ele, Ardmore, preconizava. Aqueles que não se mostraram capazes de fazê-lo foram afastados, de acordo com a sugestão do responsável do grupo de apoio. Mas não deixava de ser curioso ver outros indivíduos a fazer o SEU trabalho, á SUA maneira, através da simples aplicação dos princípios de comando apoiado por um grupo de trabalho.

Ficou finalmente livre para se poder dedicar com maior cuidado ao aperfeiçoamento da política a desenvolver, passando a ter igualmente maior disponibilidade para se ocupar da resolução das eventuais situações de imprevisto que o seu grupo de apoio lhe apresentava. E dormia mais profundamente, seguro de que um ou mais dos seus "cérebros" de apoio se encontravam alerta para o que fosse necessário. Sabia então que, mesmo que fosse morto, a sua tarefa não morreria com ele. antes seria prosseguida por outros, até à vitória final.

Teria sido um erro pensar que as autoridades pan-asiáticas tinham observado com agrado ou indiferença o crescimento e a difusão da nova religião. No entanto, na fase crítica em que esta se encontrava relativamente ao seu desenvolvimento, ainda lhes era difícil dar-se conta de que estavam a lidar com algo realmente perigoso. Não tinham dado qualquer importância aos factos que o falecido tenente que tivera o primeiro contacto com o culto de Mota deixara expressos no seu relatório.

Tendo definitivamente estabelecido o direito de se deslocar e de trabalhar no seu culto, Ardmore e Thomas recomendavam a todos os missionários a importância de serem tacticamente humildes em relação ás autoridades locais, desenvolvendo relações amigáveis com as mesmas. A ansiedade com que os Pan-Asiáticos estavam a fazer o país pagar os dividendos da debilidade económica em que se encontrava, assim como o espírito recalcitrante que encontravam naquele povo, fazia que o ouro dos sacerdotes fosse muito bem-vindo, levando-os a ser muito mais tolerantes em relação aos sacerdotes de Mota do que o teriam sido se a situação destes fosse mais modesta. Sentiam, de forma não totalmente desprovida de lógica, que uns escravos que ajudam a equilibrar o orçamento não podem deixar de ser bons escravos. Foram difundidas ordens, por todos os postos, para que os sacerdotes de Mota fossem incentivados nas suas práticas, visto que as mesmas contribuíam para a consolidação do país.

A verdade seja dita, ocasiões houve em que alguns membros da polícia pan-asiática e outros oficiais menores tiveram experiências deveras incidentes em relação aos sacerdotes de Mota, mas desde que esses incidentes envolvessem qualquer risco que pudesse forçá-los a apresentasse antecipadamente perante os seus ancestrais, estavam firmemente dispostos a não os mencionar.

Só passado muito tempo é que a acumulação de dados indiscutivelmente suspeitos fez que as altas autoridades pan-asiáticas se convencessem de que os sacerdotes de Mota, sem excepção, possuíam várias características preocupantes - sim, características até mesmo intoleráveis. Eram intocáveis. Nem sequer se podia chegar muito próximo deles, pois parecia mesmo que se encontravam rodeados por uma película de vidro transparente e inquebravel. As pistolas de raios vórtice não tinham o menor poder sobre eles. Se por acaso algum deles era preso, submetia-se humildemente, mas, não se sabia como, nunca permanecia na cadeia onde era encerrado. E o pior de tudo é que já se tinha a certeza de que nenhum templo de Mota podia, fosse em que circunstância fosse, ser revistado por um pan-asiático. Era perfeitamente intolerável!

 

Não se podia tolerar uma coisa daquelas. Foi o próprio Real Príncipe que ordenou a detecção de Ardmore.

Mas a ordem não foi cumprida de qualquer maneira. Enviaram um mensageiro ao templo-mãe, informando que o Celeste Neto desejava encontrar-se com o alto sacerdote do deus Mota. Foi Kendig, o responsável do seu grupo de apoio quem lhe entregou a mensagem, quando se encontrava no seu gabinete da Cidadela, mostrando Kendig, pela primeira vez, sinais de grande agitação.

- Chefe -exclamou-, aterrou um cruzador aéreo em frente do templo e o comandante diz que tem ordens para levá-lo com ele!

Ardmore pousou os papéis que estivera a analisar.

- Hum - murmurou -, parece que é agora que a coisa vai rebentar. Um pouco antes do que eu esperava. - E franziu a testa.

- Que está a pensar fazer?

- Você conhece os meus métodos. Que acha que vou fazer?

- Bem, acho que o mais provável é que vá com eles, mas isso é uma coisa que me preocupa. Preferia que não o fizesse.

- Que outra coisa posso fazer? Ainda não estamos totalmente preparados para uma confrontação aberta; eles não aceitariam uma recusa.

- Ordenança!

- Pronto, chefe!

- Mande preparar o meu equipamento completo. Apresente os meus cumprimentos ao capitão Thomas e peça-lhe que venha aqui rapidamente.

- Imediatamente, senhor. A ordenança pôs-se a falar pelo vídeofone.

Ardmore falou ainda um pouco com Kendig e Thomas, enquanto lhe envergavam a vestimenta e o respectivo equipamento.

- Jeff, você vai ficar como responsável de tudo isto.

- Como?

- Se me acontecer alguma coisa que me impossibilite de comunica com a sede, você fica no comando. Encontrará a sua nomeação sobre minha secretária, devidamente assinada e selada.

- Mas, chefe...

- Não discuta as minhas ordens. Já tomei esta decisão há muito tempo. Kendig sabe disso; acontece o mesmo com os restantes elementos do meu grupo de apoio. Já o teria incluído neste grupo se não precisasse de si nas funções de responsável pelos serviços secretos. - Ardmore olhou de relance para um espelho e passou a mão pela barba, loura e encaracolada. Todos eles tinham deixado crescer as barbas, sobretudo aqueles que tinham de aparecer em público na qualidade de sacerdotes.

Esta particularidade fazia que os Pan-Asiáticos se sentissem intimamente inferiorizados pela ausência de pêlos que ostentavam, particularidade que lhes dava uma aparência efeminada e, ao mesmo tempo, despertava nas pessoas uma repugnância inconsciente em relação aos ocupantes do seu país.

- Não sei se já reparou que nenhum dos elementos que dirigem os vários templos tem um cargo superior ao seu. Fi-lo com a intenção de deixá-lo a substituir-me, se um dia isso fosse necessário.

- E Calhoun?

- Oh, sim... Calhoun. O facto de você ter sido investido numa posição de comando torna-o automaticamente superior a ele, como é evidente. Mas receio bem que isso não tenha valor para ele. Terá portanto de proceder para com ele da maneira que achar

mais indicada. Se necessário for, empregue a force majeure1 de que dispõe, mas seria preferível levar as coisas a bem. Mas não é preciso eu estar para aqui a dizer-lhe o que deve fazer.

 

'1º Em francês no original. (N. da T)

 

Um mensageiro, disfarçado de acólito, entrou apressadamente pela sala dentro, fazendo a saudação.

- Senhor, o oficial do templo encarregado da segurança manda dizer que o comandante pan-asiático está a ficar muito impaciente.

- Óptimo. É mesmo assim que quero que ele fique. Os subsónicos estão ligados?

- Sim, senhor, e isso também nos torna nervosos.

- Calculo, mas vocês podem suportá-los; sabem do que se trata. Diga ao oficial da segurança para informar o técnico de serviço para introduzir maiores variações no volume dos sons. Quero que, quando lá chegar, esses pan-asiáticos estejam de cabeça completamente perdida.

- Sim, senhor. Digo alguma coisa ao comandante do cruzador?

- Não directamente. Mande o oficial da segurança informá-lo de que me encontro nas minhas devoções e não posso ser incomodado.

- Muito bem, senhor. - E o mensageiro afastou-se.

Aquilo é que ia ser uma cachola para aqueles amarelos! Tentaria estar por perto a fim de não perder a cara que os tipos iam fazer quando ouvissem aquilo!

- Estou muito satisfeito pelo facto de os mecanismos do turbante terem ficado prontos a tempo - observou Ardmore, enquanto o ajudante lhe punha o referido objecto na cabeça.

Inicialmente, os turbantes tinham sido concebidos apenas para esconder o mecanismo que produzia o halo brilhante que flutuava em redor da cabeça de todos os sacerdotes de Mota. O turbante juntamente com o halo faziam o sacerdote parecer ter cerca de dois metros de altura, com os consequentes efeitos psicológicos de inferioridade que daí derivavam sobre a psique dos Pan-Asiáticos. Mas Sheer vira a possibilidade de nele esconder também um receptor-transmissor de ondas curtas; esse novo aparelho encontrava-se já incluído em todos os equipamentos.

Colocou o turbante com as próprias mãos, assegurando-se de que receptor de indução óssea estava bem apoiado ao seu osso mastóide, começou a testá-lo, falando em várias tonalidades de voz:

- Sede... experiência.

Parecendo surgir de dentro da sua cabeça, ouviu uma voz que, embora velada, era perfeitamente nítida ao responder:

- Oficial das comunicações à escuta... experiência confirmada.

- Óptimo - disse Ardmore em tom aprovador. - Mantenham as ligações mais directas em contacto comigo, até ordens em contrário. Organize os circuitos de modo a conseguirem apanhar-me, através do te pio mais próximo do local para onde me levarem, até aqui à sede. Posso ter de utilizar o circuito "A" a qualquer momento.

O circuito "A" era um método de difusão destinado aos contactos com todos os templos do país.

- Já há notícias do capitão Downer?

- Chegou uma agora mesmo, senhor; acabei de mandá-la para o seu gabinete - informou a voz que vinha de dentro do turbante.

- Ah, sim? Bom, compreendo. - Ardmore dirigiu-se até à secretária, carregou num botão que emitia uma intensa luz vermelha e onde se podia ler a palavra "prioridade" e retirou uma folha de papel de um aparelho na qual vinha escrita uma mensagem.

"Informem o chefe", dizia a mensagem, "de que os acontecimentos estão prestes a sofrer uma súbita evolução. Não consigo descobrir do que se trata, mas todos os oficiais superiores parecem andar extremamente arrogantes. Estejam atentos e tenham muito cuidado." Era tudo.

Ardmore franziu a testa e comprimiu os lábios, fazendo sinal à sua ordenança para se aproximar.

- Chame o Sr. Mitsui.

Quando este chegou, Ardmore entregou-lhe a mensagem.

- Suponho que já lhe tenha chegado aos ouvidos que estou prestes a ser preso, não é verdade?

- Já toda a gente sabe - afirmou Mitsui polidamente, devolvendo a mensagem.

- Frank, se você estivesse na pele do Real Príncipe, quais seriam as suas intenções ao prender-me?

- Chefe - protestou Mitsui, com os olhos carregados de tristeza -o senhor está a falar como se eu fosse um desses... desses assassinos.

- Desculpe... mas insisto em que me dê a sua opinião.

- Bem... creio que tentaria dessa forma fazê-lo desaparecer do mapa para depois cair sobre a sua igreja.

- Mais alguma coisa?

- Não sei. Mas não me parece que me atrevesse a fazê-lo, a não ser que já tivesse descoberto uma maneira de ultrapassar as suas defesas.

- Sim, também me parece que seja isso. Voltou a falar para o emissor do turbante:

- Secção de comunicações. Prioridade para o circuito "A".

- Em directo ou em diferido?

- Envie você uma mensagem. Quero que todos os sacerdotes voltem imediatamente, o mais depressa possível, para os seus templos, se por acaso se encontram fora dos mesmos. Prioritário, urgente, indique recepção e concretize.

Voltou-se para os presentes:

- Agora quero comer alguma coisa e depois estarei pronto para partir. A esta hora já o nosso amigo amarelo lá em cima deve ter levado a sua conta. Há mais alguma coisa a tratar antes de ir-me embora?

Ardmore entrou na nave principal do templo pela porta que se encontrava por detrás do altar. Avançou majestosamente em direcção às grandes portas, que já estavam abertas. Sabia que, do sítio onde se encontrava, o oficial pan-asiático podia vê-lo a avançar; percorreu os duzentos metros que o separavam da saída com uma atitude de dignidade indiferente, seguido por uma pequena multidão de acólitos vestidos com túnicas em tons vermelho, verde, azul e dourado. As vestes que ele próprio envergava eram de um branco imaculado. Ao chegarem à porta, os acólitos dispersaram, deixando-o sozinho; dirigiu-se calmamente para o pan-asiático, que espumava de raiva.

- O vosso senhor deseja ver-me?

O pan-asiático estava a ter grande dificuldade em recompor-se o suficiente para poder responder em inglês. Finalmente conseguiu articular:

- Recebeu ordens para se apresentar perante a minha pessoa. Como se atreveu a...

Ardmore interrompeu-o imediatamente.

- O vosso senhor deseja ver-me?

- Evidentemente! Por que não...

- Então podeis escoltar-me até à sua presença. - E recomeçou a andar.

Passou em frente do oficial e desceu a escadaria, dando àqueles pan-asiáticos a alternativa de correrem para conseguir acompanhá-lo ou de seguirem atrás dele. O comandante do cruzador obedeceu ao primeiro impulso e começou a correr, quase caindo nos vastos degraus, e acabou por seguir ignominiosamente á retaguarda, sendo secundado pela sua guarda.

Ardmore já antes estivera na cidade que o Real Príncipe escolhera para residir, mas nunca lá voltara depois de os invasores a terem ocupado. Quando o aparelho em que seguia aterrou na plataforma municipal, olhou em redor com mal contida ansiedade, temeroso das modificações que esperava encontrar. O tráfego aéreo parecia intenso, provavelmente devido à maior percentagem de população asiática que la se encontrava. Apesar disso, eram aparentemente muito diminutas a alterações que se vislumbravam.

A cúpula do Capitólio continuava ver-se, à direita; sabia que era ali que o Real Príncipe fizera o seu palácio. Tinham sido feitas algumas alterações no exterior; não consegui detectar exactamente quais eram as diferenças, apenas se dando conta de que já não parecia um edifício de linhas arquitectónicas ocidentais.

Nos primeiros minutos que se seguiram à sua chegada esteve demasiado ocupado a prestar atenção à cidade, que o rodeava. O oficial que fora buscar caminhava agora a seu lado e, não se afastando dele acompanhou-o até à escada rolante que os levaria ao interior da cidade. Passaram através de muitas portas, junto de cada uma das quais se encontrava uma guarda de soldados. À sua passagem, cada uma das guardas apresentava armas ao captor de Ardmore. Ardmore retribuia solenemente cada uma das saudações com um gesto de bênção, fazendo de conta que a saudação lhe fora exclusivamente dirigida. O seu acompanhante mostrava-se indignado, mas não ousava tomar nenhuma medida; ás tantas quase corria à frente de Ardmore, tentando mostrar-lhe que era para ele que a saudação se destinava, obtendo-a antes aquele chegar junto da guarda. O comandante ganhou, mas fê-lo à custa de uma atitude que o pôs a ridículo perante os seus oficiais mais jovens.

Ardmore aproveitou um pequeno interregno nas andanças para verificar o funcionamento do seu mecanismo de comunicação.

- Grande deus Mota - disse -, estais a ouvir este vosso servo?

O comandante olhou de relance para ele, mas nada disse. Ouviu imediatamente a abafada voz responder-lhe do interior do turbante:

- Estou a ouvi-lo perfeitamente, chefe. Estamos a receber as comunicações através do templo que se encontra perto do Capitólio, respondeu a voz de Thomas.

- O deus Mota fala e os seus servos escutam. Na verdade está escrito que até mesmo as paredes têm ouvidos...

- Quer dizer que esses macacos estão a ouvir o que está a dizer?

- Assim seja, agora e para todo o sempre. Que o deus Mota possa compreender este seu servo, através da sua sacra fala.

- Claro, chefe... estamos a perceber perfeitamente. Fale lá nesse seu modo esquisito, mas faça-o devagar, se possível.

Ardmore acrescentou mais algumas informações, utilizando uma garaviada que só na base conseguiam compreender. Depois, satisfeito desligou. Talvez o pan-asiático tivesse naquele momento um gravador a registar o que dizia. Assim esperava; pois isso iria contribuir para dar-lhes uma boa dor de cabeça para se entreterem. Para se perceber uma linguagem quando esta é mal falada, é indispensável ter-se sido nado e criado no seio daqueles que a falam.

Quando o Real Príncipe ordenou a prisão do sumo sacerdote de Mota, fê-lo mais por curiosidade do que propriamente por qualquer receio. É certo que as coisas não estavam a correr exactamente a seu gosto, mas achava que os conselheiros que passavam a vida a avisá-lo contra a existência de um hipotético perigo não passavam de velhas histéricas. Desde quando é que a religião de um povo escravizado representava outra coisa que não um apoio ao conquistador? Os escravos precisavam de ter um sítio onde desabafar as suas mágoas; iam para os seus templos rezar aos deuses para que os livrassem do opressor e depois voltavam para os campos e para as fábricas, aliviados, libertos, perfeitamente inofensivos, devido à catarse emocional que a oração lhes proporcionara.

- Mas - salientou um dos seus conselheiros - é costume os deuses não atenderem nunca as preces que lhes são dirigidas.

Isso era verdade; ninguém esperava que um deus descesse do seu pedestal para concretizar a satisfação de algum pedido.

- Mas, então, que fez este tal deus Mota, se é que fez mesmo alguma coisa? Alguém já o viu?

- Não, Alteza Sereníssima, mas...

- Então, que fez ele?

- É difícil dizer. Não podemos entrar nos templos deles...

- Dei ou não dei ordens para não perturbarem os escravos quando estes se encontram no culto? - E o tom de voz do príncipe soava perigosamente suave.

- É verdade, Alteza Sereníssima, é verdade - assegurou-lhe apressadamente. - E é assim que se tem feito, mas a vossa polícia secreta não tem conseguido penetrar nos templos de forma nenhuma, por muito bem disfarçada que esteja.

- E então? Talvez tenham sido descuidados. Que os impediu de fazer isso?

O conselheiro abanou a cabeça:

- Aí é que está o problema, Alteza. Nenhum deles se lembra do que aconteceu depois.

- Que quer dizer com isso? Mas isso é ridículo! Traga-me imediatamente um deles à minha presença para o interrogar.

O conselheiro torceu as mãos.

- Lamento muito, Alteza...

- Lamenta o quê? Ah, claro, claro... paz aos seus espíritos. - Afagou o tecido de seda bordada que lhe cobria o peito. Enquanto meditava no que acabara de ouvir, a sua atenção foi atraída por um tabuleiro de xadrez de peças curiosamente ornamentadas e esculpidas, que se encontrava sobre uma pequena mesa, mesmo ao alcance da mão. Negligentemente, fez uma jogada. Não, não era aquela a solução; mover as brancas e fazer xeque-mate em quatro lances... Para isso eram precisos cinco. Voltou a prestar atenção ao assunto de que estivera a tratar. - Talvez seja melhor fazê-los pagar uma taxa.

- Já o fizemos...

- E com autorização de quem? - E a voz do príncipe soava ainda mais suavemente do que da outra vez.

O suor começou a escorrer pelo rosto do conselheiro.

- Se houvesse algum erro, Alteza, preferíamos que ele tivesse partido de nós.

- Julgam-me capaz de cometer erros? - O príncipe fora o autor, na sua juventude e na altura em que fora governador da índia, de um documento que regulamentava os aspectos de administração relacionados com as raças escravizadas. - Muito bem, deixemos passar isso. Presumo então que os tenha feito pagar um imposto elevado, não é verdade? E então?

- Eles pagaram essa quantia, Alteza.

- Triplique-a.

- Tenho a certeza de que a pagarão porque...

- Faça aumentá-la para dez vezes mais. Ponha o seu valor tão alto que não consigam pagá-la.

- Mas. Alteza Sereníssima, aí é que está o problema. O ouro que eles utilizam é quimicamente puro. Os nossos cientistas dizem que ele é obtido através de transmutação. Assim sendo, podem pagar uma taxa ilimitada. De facto -prosseguiu apressadamente

-, somos de opinião (a qual pode ser sempre corrigida pela vossa superior sabedoria) - fez uma vénia rápida - de que não se trata de uma religião, mas sim de forças científicas de tipo desconhecido!

- Está a querer sugerir que esses bárbaros possuem qualificações científicas superiores às da raça eleita?

- Por favor, Alteza, eles têm algo, e esse algo está a desmoralizar o vosso povo. A incidência de suicídios de honra está a atingir um número alarmante e têm-nos chegado demasiadas petições para o regresso à terra pátria.

- Com certeza que encontrou formas de desencorajar esses pedidos, não é verdade?

- Sim, Alteza Sereníssima, mas isso apenas teve como resultado um aumento dos suicídios de honra, sobretudo entre aqueles que se encontram mais em contacto com os sacerdotes de Mota. Lamento muito ter de fazê-lo, mas parece-me que esses contactos enfraquecem consideravelmente o espíritos dos vossos filhos.

- Hum... Estou a pensar em ver realmente esse tal sumo sacerdote de Mota.

- Quando deseja Vossa Alteza Sereníssima vê-lo?

- Depois lhe direi. Entretanto comunique aos meus sábios cientistas que, se acham que não viveram ainda o número suficiente de anos para ter deixado de ser úteis, terão de suplantar e anular qualquer ciência que os bárbaros possam ter desenvolvido.

- Vossa Alteza Sereníssima o disse.

À medida que Ardmore se aproximava do Real Príncipe, este ia sentindo a curiosidade crescer dentro de si. O homem caminhava sem demonstrar qualquer receio. E o príncipe era forçado a admitir que lhe encontrava mesmo uma certa dignidade, apesar da sua condição de bárbaro. Não havia dúvida de que aquele encontro iria ser interessante. Que coisa era aquela a brilhar-lhe à volta da cabeça? Que idéia tão engraçada!

Ardmore deteve-se diante dele e, erguendo a mão bem alto, administrou-lhe a bênção. Então disse:

- Segundo creio, o mestre pediu-me que o visitasse; aqui estou.

- Assim fiz. - Seria que o homem não sabia que tinha de ajoelhar? Ardmore relanceou o olhar em torno de si.

- Poderá o mestre ter a gentileza de pedir aos seus servos que me tragam algo onde possa sentar-me?

O homem era realmente uma delícia... Lamentavelmente, teria de morrer. A não ser que fosse possível mantê-lo no palácio para lhe servir de diversão... É claro que isso implicaria ter de fazer desaparecer todos aqueles que tinham assistido àquela cena... Possivelmente, seriam também necessárias mais algumas mortes, mais tarde, se aquele divertido comportamento voltasse a verificar-se na frente de alguém. Mas o príncipe chegou à conclusão, pela evolução que os acontecimentos tomaram, de que mais valia não pensar nisso.

Ergueu a mão. Aproximaram-se imediatamente dois servos menores, escandalizados mas transportando um tamborete. Ardmore sentou-se. O seu olhar recaiu sobre o tabuleiro de xadrez que se encontrava junto do príncipe. Reparando nisso, este perguntou-lhe:

- Sabe jogar xadrez?

- Um pouco, mestre.

- Como resolveria este problema?

Ardmore ergueu-se e inclinou-se sobre o tabuleiro. Estudou-o durante alguns minutos, enquanto o oriental o observava. Os membros da corte encontravam-se tão silenciosos como as peças do tabuleiro: aguardando.

- Eu avançaria com este peão... assim - disse Ardmore, finalmente.

- Dessa maneira? Mas que jogada tão pouco ortodoxa.

- Mas indispensável. Depois, apenas em três jogadas, é mate, mas claro que o mestre já está a ver a coisa tão bem como eu.

- Claro. Sim, claro. Mas não foi para o ver jogar xadrez que o chamei aqui - acrescentou, desviando o olhar. - Temos de falar de outras questões. Têm-me chegado ao conhecimento, com muita pena minha, várias queixas contra os seus fiéis.

- A tristeza que o mestre sente é também a minha. Poderá este seu servo perguntar de que forma os seus filhos erraram?

Mas a atenção do príncipe já se deixara arrastar novamente para o tabuleiro de xadrez. Levantou um dedo; a seus pés veio imediatamente ajoelhar-se um servo que trazia nas mãos material de escrita. O príncipe mergulhou o pincel na tinta e desenhou com perícia vários caracteres, depois do que selou a missiva com o seu brasão. O servo afastou-se, inclinando-se sucessivamente, enquanto um mensageiro partia toda a velocidade com o despacho.

- Onde ia eu? Ah, é verdade... fui informado de que as ovelhas do seu rebanho têm estado a ter um comportamento pouco próprio em relação ao povo eleito.

- Poderá o mestre indicar a este humilde sacerdote qual dos seus fiéis foi considerado culpado de tais faltas e de que forma deverá ser corrigido?

O príncipe achou este pedido despropositado. Não sabia como, mas aquela criatura conseguira colocá-lo na defensiva. Não estava habituado a que lhe pedissem explicações sobre os seus actos e decisões; não era próprio da sua condição. Consequentemente, não havia resposta dar; a conduta dos sacerdotes de Mota fora impecável e irrepreensível em todos os aspectos.

No entanto, a sua corte ali estava, à espera de ouvir a resposta que ele daria a esta incrível indiscrição. Deveria ele seguir os costumes antigos? E como eram estes exactamente?

- Não é próprio que um servo peça explicações ao seu senhor. Neste momento está a ter o mesmo comportamento errado dos seus seguidores.

- Rogo-lhe que me perdoe, mestre. Embora ao servo não seja permitido fazer perguntas, está escrito que ele pode implorar a clemência e auxílio dos seus senhores, não é assim? Nós somos apenas servos humildes, que não possuem nem a sabedoria do Sol nem a da Lua. Não sois vós o nosso pai e a nossa mãe? Não ireis vós dizer-nos, a partir da vossa alta sabedoria, de que modo devemos proceder?

O príncipe fez um esforço para conter-se. Como podia aquilo ter acontecido? Aquele bárbaro conseguira enganá-lo novamente, não sabe por que malabarismo verbal. Não era nada seguro deixar o homem abrir a boca para falar! No entanto, havia que resolver aquela situação quando um servo pede a clemência do seu senhor, atendê-lo é uma questão de honra.

- Consentimos em vos informar sobre um ponto em particular; aprendei bem a lição, que outras formas de sabedoria virão até vós mesmos. - Fez uma pausa, sopesando bem as palavras. - A maneira como vós e os vossos sacerdotes de menor importância saudais os eleitos é inaceitável.

- Deverei então crer que a raça eleita desdenha as bênçãos do deus Mota?

Lá voltara ele outra vez as suas palavras contra si! Era de todo aconselhável não pôr em dúvida os deuses que os escravos adoravam.

- A bênção é aceite, mas a forma de saudação deve ser própria um servo que se dirige ao seu mestre.

Subitamente Ardmore deu-se conta de que estavam a chamá-lo com urgência através do sistema montado no seu turbante. A voz de Thomas soavalhe, insistente, na cabeça.

- Chefe! Chefe! Está a ouvir-me? Está um esquadrão de guardas em frente de cada templo, exigindo a rendição dos sacerdotes... Estamos a receber avisos vindos de todos os pontos do país!

- O deus Mota ouve! - disse Ardmore, dirigindo-se ao príncipe e na esperança de que Jeff também compreendesse.

Ouviu Jeff falar de novo:

- Isso era-me dirigido, chefe?

- Faça os possíveis para que os vossos seguidores o entendam. - O príncipe respondera demasiado depressa para que Ardmore conseguisse arranjar outra frase de duplo sentido com que pudesse igualmente responder a Thomas.

Mas Ardmore, estava naquele momento, de posse de um elemento que o príncipe ignorava que fosse do seu conhecimento. Agora havia que aproveitá-lo...

- Como poderei eu instruir os meus sacerdotes de acordo com os vossos ensinamentos, se neste preciso momento os estão a prender sob as vossas ordens? - E Ardmore alterara subitamente a sua atitude, que de humilde passou a acusatória.

O rosto do príncipe continuava inexpressivo, somente os olhos denunciavam o espanto de que se encontrava possuído. Teria o homem adivinhado a natureza do despacho?

- Estais a falar em vão.

- Digo-vos que não estou! Mesmo na altura em que estáveis a dizer-me de que maneira deveria instruir os meus sacerdotes, os vossos soldados batiam à porta de todos os templos de Mota. Esperai! Tenho uma mensagem para vos transmitir da parte do deus Mota: os seus sacerdotes não receiam o poder temporal. A vossa tentativa de os prenderdes não resultou nem resultará, visto que o deus Mota não lhes ordenou a rendição. Daqui a trinta minutos, depois de os sacerdotes terem purificado as suas almas e se terem preparado para enfrentar as provações deste mundo, cada um deles se apresentará no umbral do seu templo, entregando-se às mãos dos soldados. Até lá, a maldição cairá sobre quem quer que, de entre os vossos soldados, tente violar a casa de Mota!

- Isso é que é falar chefe! Quer dizer que em todos os templos os sacerdotes devem esperar trinta minutos antes de se render... É assim, não é? E também quer que todos levem consigo o bastão, o comunicador e todos os aparelhos ultimamente inventados, não é assim? Se puder, confirme.

- Na mouche, Jeff - teve Ardmore de arriscar: não passavam de palavras sem sentido para o príncipe, mas Jeff entendê-las-ia.

- O.K. chefe. Não sei bem qual é a sua idéia, mas pode crer que vamos cumprir a coisa a cem por cento!

O rosto do príncipe tinha uma expressão gelada.

- Levem-no.

Alguns minutos tinham passado já depois de terem levado Ardmore, mas Sua Alteza Sereníssima continuava a olhar fixamente para o tabuleiro de xadrez, mordiscando no lábio inferior.

Colocaram Ardmore numa sala subterrânea, com paredes de metal e com maciças fechaduras nas portas. Não contentes com isso, mal acabara de entrar quando ouviu um silvo ligeiro e viu determinada ponta da porta começar a ficar incandescente. Estavam a soldá-la! Era perfeitamente evidente que queriam ter a certeza de que os guardas não se deixariam cair em nenhuma fraqueza humana que possibilitasse a fuga do prisioneiro. Chamou a Cidadela.

- Deus Mota, ouvi o vosso servo!

- Sim, chefe.

- O tempo urge.

- Entendido, chefe. Pelos vistos ainda se encontra num sítio onde podem ouvir. Pode falar em calão que eu percebo.

- Cá o chefão mandão quer dar duas de conversa com o resto do pessoal de voo.

- Quer utilizar o circuito "A"?

- Aos montes.

Thomas demorou algum tempo antes de responder.

- O. K., chefe, está ligado. Ficarei em Unha para o caso de ser preso, o que provavelmente não vai ser necessário, pois os rapaces têm praticado esta espécie de conversa com sentido duplo. Prossiga... Tem ainda cinco minutos, antes do fim do prazo de tempo que estipulou para a rendição.

É possível decifrar qualquer tipo de linguagem cifrada, qualquer código pode ser compreendido. Mas, por mais exacto que seja o conhecimento de uma língua, não é possível conhecer tão pormenorizadamente o seu calão, as suas expressões idiomáticas e os múltiplos sentidos que determinada palavra pode ter. Ardmore sentia que, logicamente, os Pan-Asiáticos deviam ter instalado um microfone na sua cela. Muito bem; já que eles estavam com vontade de ouvir a sua conversa até o fim, não deixaria de aproveitar essa circunstância para confundi-los baralhá-los ainda mais, fazendo-os concluir que ou ele perdera o juízo ou era aquela a maneira habitual como se dirigia ao seu deus.

- Olhem lá seus querubins... a mamã quer que os bebés vão ter com o homem bom. Tudo corre sobre rodas desde que os bebés levem os seus lindos guizos. Sim, verdadeiramente, guizo é a palavra de ordem Vocês não, e eles sim. Levem-na avante numa boa, que eles ficarão numa de pasmaceira pegada. Nada de mãos a abanar.

- Corrija-me se eu tiver percebido mal, chefe. Quer que os sacerdotes se entreguem e deixem os Pan-Asiáticos confundidos pela aparente despreocupação com que o fazem. Quer que façam a coisa da mesma forma como o chefe a fez, demonstrando uma descontracção total. Também me pareceu que deseja que eles levem todo o equipamento, embora só o utilizem em caso extremo. Está certo?

- Elementar, meu caro Watson!

- E, depois disso, que devemos fazer?

- O programa segue dentro de minutos.

- Que foi isso? Oh, "segue mais tarde"... Depois nos dirá, mais tarde. Muito bem, chefe... está na hora!

- Porreiríssimo.

Ardmore esperou até ter minimamente a certeza de que todos os pan-asiáticos que não tinham responsabilidade directa na vigilância sobre os prisioneiros estivessem a dormir ou pelo menos recolhidos nos seus alojamentos. Aquilo que se propunha fazer só teria efeito total se ninguém viesse a saber do que se iria passar. Teria melhores hipóteses à noite.

Assobiou parte da melodia Anchors Aweigh para chamar Thomas. Este respondeu imediatamente, pois não abandonara ainda o seu posto de serviço junto ao aparelho de comunicação, proporcionando aos prisioneiros palavras de apoio e informações e fazendo passar marchas militares.

- Pronto, chefe.

- Chegou a altura de dar o fora. Ala, ala, que se faz tarde!

- Fuga da prisão para toda a gente?

- À boa maneira dos Árabes... nem mais.

Já anteriormente tinham falado sobre a técnica a utilizar em caso de evasão; Thomas transmitiu informações pormenorizadas sobre o assunto e depois disse:

- Diga quando, chefe.

-Já!

Quase podia ver Thomas abanar afirmativamente a cabeça.

- O. K., pessoal, toca a avançar!

Ardmore levantou-se donde estivera sentado e desentorpeceu os membros. Caminhou até junto de uma das paredes da prisão, detendo-se de modo que a sua sombra se desenhasse nitidamente na mesma parede. Aquele ponto devia servir exactamente para o que

queria. Manobrou o bastão, de modo a poder ligar o efeito Ledbetter no seu grau de alcance máximo, verificou se a banda de frequência estava ligada para a raça mongólica e ajustou-a para atordoar, e não para matar. Depois pôs o aparelho a funcionar.

Passados alguns momentos, desligou-o, olhando de novo para a sombra que o seu vulto desenhava na parede. Tornava-se agora necessário alterar a acção do aparelho. Ligou o raio vermelho de Dis para o orientar no seu trabalho, ajustou o dispositivo e depois pô-lo a funcionar.

Calmamente, sem precipitações, os átomos de metal alteraram-se e transformaram-se em nitrogénio, substância que se foi misturar inofensivamente com o ar. Onde antes estivera uma sólida parede encontrava-se agora uma abertura do tamanho e com a forma de um homem de estatura considerável, vestido com hábitos sacerdotais. Ardmore olhou para a abertura e lembrou-se de desenhar o traço meticuloso de uma elipse por cima da parte que representava a cabeça, uma elipse com o tamanho e a forma de um halo. Feito isto, voltou a ajustar as ligações que tinham estado anteriormente feitas no seu bastão, desligou-o e atravessou a abertura. Esta ajustava-se-lhe perfeitamente; teve mesmo de esgueirar-se o melhor possível.

No exterior foi necessário passar por cima de cerca de uma dúzia ou mais de corpos de soldados pan-asiáticos, que se encontravam amontoados a esmo. Aquele não era o lado da porta; calculou que todas as outras paredes, assim como o tecto e a parte de baixo, também teriam estado a ser guardadas por soldados.

Teve ainda de passar por várias outras portas e de saltar por cima de muitos outros corpos antes de chegar ao exterior do edifício. Quando isso aconteceu, perdera por completo a noção da direcção em que seguia.

- Jeff -chamou-, qual a minha posição?

- Só um momento, chefe. Encontra-se... Não nos é possível fornecer-lhe a posição exacta em que se encontra, mas sabemos que está virado para a parte sul da zona em que se situa o templo mais próximo. Ainda está perto do palácio?

- Estou exactamente no exterior deste.

- Então dirija-se para norte... São apenas nove quarteirões dai até ao templo de que lhe falei.

- Para que lado fica o norte? Estou completamente desorientado. Não, espere um pouco... Acabo de avistar o Big Dipper; portanto, já sei por onde hei-de seguir.

- Apresse-se, chefe.

- É o que vou fazer.

Começou a correr com ligeireza, o que conseguiu manter durante um par de quarteirões, continuando depois a marcha em passos rápidos. "Raios", pensou. "Um homem perde mesmo a prática com todo aquele trabalho de secretária!"

Ardmore encontrou ao longo do percurso, vários polícias pan-asiáticos, mas estes não se encontravam em condições de reparar nele, dado que mantivera o efeito primário Ledbetter ligado. Não havia brancos à vista - as ordens de recolher eram muito rigorosas -, com excepção de dois trabalhadores da limpeza, que o olharam perfeitamente atónitos. Ocorreu-lhe convencê-los a ir com ele para o templo, mas mudou de ideias; estes dois homens corriam o mesmo perigo que outros cento e cinquenta milhões de cidadãos americanos.

Lá estava o templo! As quatro paredes brilhavam esplendorosamente nas quatro cores dos atributos. Começou a correr e irrompeu no interior do templo, seguido logo de imediato por um sacerdote local que também chegava naquele momento.

Saudou o sacerdote calorosamente, dando-se conta, de repente, da tensão a que estivera sujeito ultimamente e de como era agradável finalmente falar com um homem da sua espécie. Ambos se dirigiram para a porta existente por detrás do altar e desceram até à sala de comunicação e controlo, onde os operadores de rádio ficaram exultantes ao vê-los. Ofereceram-lhes café forte, que Ardmore aceitou, agradecido. Seguidamente, Ardmore disse ao operador que interrompesse o circuito "A" e fizesse uma ligação directa à sede, utilizando o vídeofone.

Thomas quase pareceu que ia dar um salto para dentro do écran:

- Whitey! - gritou.

Era a primeira vez desde o colapso que alguém chamava Ardmore pelo diminutivo. Nem sequer sabia que Thomas o conhecia. Mas sentiu-se emocionado com a familiaridade amistosa do tratamento.

- Viva, Jeff - disse, dirigindo-se à imagem. - É óptimo vê-lo. Já chegaram algumas notícias?

- Sim, algumas. Têm estado constantemente a chegar.

- Ligue directamente para várias dioceses. O circuito "A" é demasiado lento. Quero obter os relatórios o mais depressa possível.

Passados apenas vinte minutos, a última diocese apresentava o seu relatório. Todos os sacerdotes tinham regressado aos respectivos templos.

- Óptimo - disse Thomas. - Agora quero que o projector de cada templo seja ligado para o contra-ataque, e, depois, disso, podem acordar todos os macacos amarelos que por lá se encontrarem. Devem fazer incidir os raios na direcção do caminho percorrido pelos sacerdotes até ao templo, desde o ponto donde partiram, ou seja, da prisão onde estiveram encerrados.

- O. K., como o chefe quiser. Dá-me licença que pergunte por que motivo não os deixa simplesmente acordar quando o efeito se dissipar?

- Porque - explicou Ardmore -, se eles recuperarem os sentidos antes de alguém os encontrar nesse estado, o efeito será muito mais misterioso do que se eles forem encontrados aparentemente mortos. O objectivo de toda a campanha é o de quebrar o moral dos Pan-Asiáticos. Este pormenor aumentará grandemente esse facto.

- Tem razão... como de costume, chefe. Vou já transmitir as suas ordens.

- Óptimo. Quando isso estiver feito, diga-lhes que verifiquem o funcionamento do escudo de protecção do respectivo templo, que liguem o sistema musical da escadaria e que vão deitar-se... todos aqueles que não estão de serviço. Tenho idéia de que amanhã vamos todos ter um dia muito atarefado.

- Sim, senhor. Quando é que volta a ligar para nós, chefe? Ardmore abanou a cabeça negativamente:

- É um risco que não vale a pena correr. Posso orientar daqui as operações com a mesma eficácia, através da televisão, como se estivesse aí, ao seu lado.

- Sheer vai meter-se num helicóptero para ir buscá-lo. Pousará no terraço do templo.

- Diga-lhe que agradeço muito, mas que isso não pode ser. Agora ponha o pessoal de serviço a tomar conta disso e vá ver se dorme alguma coisa.

- Como queira, chefe.

Ceou frugalmente, conversou um pouco com o sacerdote do templo local e depois deixou que o conduzissem até um quarto situado na cave, a fim de poder repousar um pouco.

 

Ardmore foi acordado pelo operador de rádio de serviço, que o abanava vigorosamente.

- Major Ardmore! Major! Acorde!

- Hum... Hum... Que se passa?

- Acorde... estão a ligar para si da Cidadela. É urgente!

- Que horas são?

- Quase oito. Depressa, senhor!

Quando chegou junto do videofone já ia razoavelmente desperto. Thomas encontrava-se do outro lado e assim que viu Ardmore começou a falar.

- A coisa está a aquecer, chefe... e de maneira pouco favorável para a gente. A polícia pan-asiática está a prender todos os membros simpatizantes das nossas congregações... e estão a fazê-lo sistematicamente.

- Hum... creio que era mesmo isso que se esperava. Onde é que eles já vão?

- Não sei. Chamei-o assim que recebi o primeiro relatório sobre isto; estão a chegar calmamente, vindos de todos os pontos do país.

- Bem, acho melhor prepararmo-nos.

Uma coisa era os sacerdotes serem presos, armados e protegidos como estavam; mas essa gente não tinha hipótese alguma de defender-se.

- Chefe, lembra-se do que eles fizeram quando eclodiu a primeira revolta? Isto não está nada bom, chefe... Estou assustado!

Ardmore compreendia o temor de Thomas; ele próprio o sentia. Mas não permitiu que a expressão do seu rosto o demonstrasse.

- Tenha calma, meu velho - disse, de forma gentil. - Ainda não aconteceu nada de irreparável ao nosso povo... e não penso que isso venha a verificar-se.

- Mas, chefe, que vai fazer em relação a isso? Não somos em número suficiente para fazê-los parar antes de matarem uma quantidade de gente.

- Não somos talvez em número suficiente para fazê-lo directamente, mas há uma maneira. Continue a recolher dados e avise todos os nossos elementos para que não se precipitem. Voltarei a ligar para si daqui a quinze minutos. - E desligou antes de Thomas poder responder.

Tinha de pensar muito no que se deveria fazer. Se pudesse equipar todas as pessoas com um conjunto de mecanismos de defesa, a coisa seria simples. O efeito de protecção dos equipamentos podia, teoricamente, dispensar ao seu portador uma protecção eficaz contra quase todas as formas de agressão conhecidas; talvez até contra uma bomba atômica ou contra uma infiltração de gases venenosos. Mas o departamento encarregado de sua construção trabalhara ao máximo a fim de fornecer equipamentos suficientes para proteger todos os sacerdotes; um para cada homem seria impensável, visto não possuírem capacidade para grandes produções. De qualquer modo, precisava deles então... naquela manhã.

Um sacerdote podia estender o raio de acção do seu escudo a determinada área ou número de pessoas, mas, quando se tratava de uma grande extensão, o campo tornava-se tão ténue que uma bola de neve bem lançada poderia quebrá-lo. Bolas!

Subitamente deu-se conta de que estava novamente a pensar no problema em termos directos, embora reconhecesse a futilidade desse tipo de análise. O que ele queria era uma espécie de jiu jitsu psicológico... alguma coisa que voltasse a sua própria força contra eles próprios. Leva-los a enganarem-se: aí estava a solução do problema! O que quer que eles esperassem que ele fizesse, nunca fazê-lo! Fazer sempre o contrario.

Mas como fazê-lo? Quando pensou ter encontrado uma resposta para aquela pergunta, ligou para Thomas.

- Jeff -disse, sem hesitar-, ponha-me no circuito "A".

Falou durante alguns minutos aos sacerdotes, de forma calma, pormenorizada, salientando alguns pontos.

- Alguém tem dúvidas? - perguntou finalmente.

Depois respondeu, durante algum tempo mais, às perguntas que lhe chegavam das várias dioceses.

Ardmore e o sacerdote local deixaram o templo juntos. O sacerdote tentara persuadi-lo a ficar, mas foi em vão. O sacerdote tinha razão. Ele tinha plena consciência de que não deveria arriscar-se desnecessária mente, mas sentia necessidade de sair de dentro da influência restritiva de Thomas.

- Como pensa descobrir para onde é que eles levaram o nosso povo? - perguntou o sacerdote, que era um antigo agente de vendas chamado Ward, um homem consideravelmente inteligente e com quem Ardmore simpatizava.

- Bem, que faria se eu não estivesse aqui?

- Não sei. Penso que me dirigia ao posto da polícia mais próximo e tentaria tirar informações do amarelo que lá estivesse de serviço.

- Parece-me uma boa idéia. Onde é que há um posto da polícia?

Entre o oitavo e o nono bloco da zona sul da cidade encontrava-se um posto da polícia pan-asiática, situado muito próximo do palácio. Encontraram muitos pan-asiáticos no caminho, mas estes não os incomodaram. Aqueles pareciam extremamente confusos

por ver dois sacerdotes de Mota caminhar despreocupadamente na rua. Mesmo aqueles que usavam a farda da polícia pareciam não saber que atitude tomar, como se as instruções que tivessem recebido não englobassem aquela situação.

No entanto, alguém telefonara para o posto a avisá-los da chegada dos dois visitantes; foram interceptados por um oficial pan-asiático, nervosíssimo, que lhes ordenou:

- Rendam-se! Estão presos!

Caminharam resolutamente na sua direcção. Ward ergueu a mão para abençoá-los e disse:

- Paz! Leve-nos á presença do nosso povo.

- Vocês não percebem o que digo? - gritou-lhes o pan-asiático, num tom de voz progressivamente estridente. - Estão presos! - E a sua mão dirigiu-se nervosamente para o coldre que trazia na cintura.

- As vossas armas temporais não possuem qualquer eficácia - disse Ardmore calmamente- quando postas em confronto com o grande deus Mota. Ele ordena-vos que nos conduzais até junto do nosso povo. Tende cuidado! - E continuou a avançar até o seu

campo de forças ir de encontro ao corpo do homem.

Aquilo - a pressão invisível do campo de forças incorpóreo - era mais do que o pan-asiático podia suportar. Retrocedeu um passo, tirou a arma do coldre e disparou à queima-roupa. O raio vórtice embateu inofensivamente no campo de protecção e foi absorvido por este.

- O deus Mota está impaciente - observou Ardmore, em tom calmo. - Conduzi o seu servo antes que o deus Mota vos retire a alma do corpo. - Desencadeou outro efeito que nunca antes fora utilizado no contacto com os Pan-Asiáticos.

O princípio em que se baseava era simples: manobrando o bastão, fazia projectar um feixe tractor-pressor de forma cilíndrica, formando um efeito especial. Ardmore fê-lo incidir no rosto do homem e depois fê-lo descer pelo corpo do infeliz pan-asiático, que tentava respirar, sufocado, e estrebuchava. Quando o nariz lhe começou a sangrar, Ardmore suspendeu o suplício.

- Onde estão os meus filhos? - perguntou, com voz igualmente calma.

O oficial da polícia, provavelmente respondendo a um reflexo espontâneo, tentou fugir. Ardmore prendeu-o com o raio pressor de encontro à porta e aplicou novamente o tubo de sucção, desta vez no estômago do homem.

- Onde é que eles estão?

- No parque - disse o homem, gaguejando e vomitando violentamente.

Viraram-se e, com dignidade altaneira, desceram as escadas, empurrando todos aqueles que por acaso se tinham aproximado demasiado, com o raio pressor.

O parque rodeava o antigo edifício do Capitólio. Encontraram os membros da congregação apinhados dentro de um espaço vedado com arame farpado, lá posto à pressa, o qual estava rodeado de filas de soldados pan-asiáticos. Numa plataforma próxima, os técnicos estavam a instalar aparelhagem televisiva. Era fácil deduzir que estavam a preparar outra "lição" de exemplo para oferecer aos escravos. Ardmore não viu sinais do aparelho de grandes dimensões que costumava ser utilizado para produzir o raio epileptogénico; ou ainda não o tinham trazido ou tencionavam utilizar qualquer outro método de execução - talvez os soldados ali presentes tivessem instruções para disparar e para fazer um massacre naquela multidão.

Por momentos sentiu-se tentado a utilizar o bastão para pôr todos aqueles soldados fora de acção - estes mantinham-se numa atitude descontraída e não tinham as armas engatilhadas, sendo talvez possível fazê-lo antes que qualquer deles conseguisse atingir não Ardmore, mas sim algum dos desprotegidos membros da congregação. Mas decidiu não se arriscar; quando dera aos sacerdotes as indicações a seguir, a coisa fora cuidadosamente pensada - a principal arma de que dispunham era o bluff; não tinha possibilidade de combater todos os soldados que as autoridades pan-asiáticas lançassem contra ele, no entanto, era indispensável pôr esta pequena multidão a salvo, dentro das paredes de templo.

As pessoas amontoadas dentro da cerca de arame farpado reconheceram Ward e muito provavelmente Ardmore também, pelo menos de nome.Era bem visível a súbita esperança que despontou nos seus desesperados rostos: aguardaram ansiosamente o que ambos iriam fazer Mas estes limitaram-se a passar por eles, abençoando-os, e eles sentiram a esperança desvanecer-se e ser substituída pela dúvida e pela in compreensão, sobretudo quando verificaram que ambos se dirigiam ao comandante pan-asiático e lhe administravam a mesma bênção.

- Paz! - exclamou Ardmore. - Venho para vos socorrer.

O pan-asiático gritou uma ordem na sua língua. Dois pan-asiáticos correram para Ardmore, tentando agarrá-lo. Foram de encontro ao campo de forças, fizeram nova tentativa e depois ficaram a olhar interrogativamente para o oficial superior, aguardando instruções, como cães desconcertados por ordens que não conseguiam executar.

Ardmore ignorou-os e continuou a andar em direcção ao comandante, em frente do qual parou.

- Disseram-me que o meu povo caíra em pecado - anunciou. - O deu Mota encarregar-se-á de puni-los por isso.

Sem aguardar uma resposta, virou as costas ao perplexo oficial e dirigindo-se à multidão de prisioneiros, gritou:

- Em nome de Shaam, deus da paz! - E ligou o raio verde do bastão.

Fê-lo incidir sobre os mesmos. Todos caíram por terra como se o raio fosse um forte vendaval que os tivesse feito vergar como espigas maduras. Num segundo, todos os homens mulheres e crianças jaziam no solo, aparentemente mortos. Ardmore virou-se de novo para o oficial pan-asiático e fez uma profunda vénia:

- Os servos rogam que a sua penitência seja aceite.

Dizer que o oriental se sentia desconcertado é estar muito aquém da realidade. Fora habilmente instruído quanto ás formas de lidar com aqueles que se lhe opunham, mas aquela cooperação espontânea deixava-o sem saber que fazer: não constava nos regulamentos.

Ardmore não lhe deu tempo para que pensasse num plano.

- O deus Mota não está ainda apaziguado - informou - e ordena-me que faça a Vossa Senhoria e aos vossos homens oferendas: oferendas em ouro!

Ao dizer isto, fizera incidir uma estranha luz branca sobre as armas que os soldados da ala direita empunhavam. Ward imitou os seus movimentos e fez o mesmo com os da esquerda. Sob a acção do raio, as armas começaram a brilhar e a cintilar. Todo o metal em que o raio incidia começava a brilhar com um novo brilho, de cor dourada. Era ouro! Ouro puro!

Os militares pan-asiáticos de baixa patente não eram mais bem pagos do que o eram quaisquer outros militares de baixa patente. Assim, ao darem conta do fenómeno, começaram a agitar-se, pouco à vontade, como cavalos que, a meio de uma corrida, deparam com uma barreira. Um sargento aproximou-se de uma das armas, examinou-a e ergueu-a no ar. Denotando grande excitação, gritou algo na sua língua.

Os soldados desfizeram as fileiras.

Gritavam, gesticulavam e dançavam. Lutavam uns com os outros pela posse das preciosas armas, agora inúteis sob o ponto de vista militar. Não prestavam qualquer atenção aos seus superiores; tão-pouco estes tinham escapado à febre do ouro.

Ardmore olhou para Ward e fez-lhe um sinal com a cabeça, dizendo:

- Vamos a eles, agora! - ordenou, enquanto fazia incidir o raio aniquilador sobre o comandante pan-asiático.

O oriental caiu sem saber o que o atingira, pois a sua agonizante atenção não se desviara ainda do seu desfeito comando. Ward fez o mesmo com os restantes oficiais presentes.

Ardmore administrou o efeito contrário aos prisioneiros americanos, enquanto Ward desintegrava uma vasta porção do arame farpado. Então, a parte mais difícil da encenação estava ali: persuadir trezentos seres humanos confusos, entontecidos e desorganizados a darem-lhe atenção e a seguirem na direcção indicada. Mas dois berros e uma fria determinação conseguiram-no. Era então necessário abrir caminho por entre aqueles orientais, que, enlouquecidos, lutavam entre si pela posse do ouro.

Conseguiu-o com a ajuda do feixe de pressão. Isso deu uma idéia a Ardmore; à semelhança da guardadora de patos que com uma vara lhes vai indicando o caminho a seguir, manobrou o feixe de modo a orientar o seu rebanho no caminho que este devia seguir.

Percorreram os nove quarteirões que os separavam do templo, em dez minutos, deslocando-se em passo de corrida ligeiro, que fez muitos deles queixar-se. Mas conseguiram-no sem que o seu percurso fosse interrompido por quaisquer forças da ordem, embora Ward e Ardmore tivessem, de vez em quando, tido necessidade de pôr fora de acção um pan-asiático ou outro.

Quando, finalmente, chegaram à entrada do templo, Ardmore limpou o suor que lhe escorria pelo rosto, suor que não era devido exclusivamente à precipitação da marcha.

- Ward - perguntou, suspirando-, tem por aqui alguma coisa que se beba?

Antes de ter tempo de terminar um cigarro, já Thomas estava a ligar-lhe.

- Chefe -disse-, estamos a começar a receber algumas notícias. Calculei que gostasse de saber a que se referem.

- Prossiga.

- Até aqui, a táctica parece ter sido bem sucedida. Cerca de vinte por cento dos sacerdotes que já comunicaram connosco anunciaram te regressado com a respectiva congregação.

- Não houve baixas?

- Sim, houve. Perdemos a totalidade dos membros da congregação de Charleston, na Carolina do Sul. Quando o sacerdote lá chegou, já estavam mortos. Ele ligou o bastão para matar e deu cabo de um número de macacos amarelos duas ou três vezes superior ao dos nossos, antes de se refugiar no templo e de comunicar nos o acontecido.

Ardmore abanou a cabeça ao ouvir a notícia.

- Foi uma pena. Lamento as vidas que se perderam, mas ainda tenho mais pena de que ele se tenha descontrolado e matado um punhado de pan-asiáticos. Isso faz que as coisas se precipitem, ainda que não tenha chegado a altura propícia para avançarmos.

- Mas, chefe, não o pode culpar por isso... A própria mulher dele encontrava-se no meio daqueles que foram assassinados!

- Não estou a culpá-lo do acontecido. De qualquer modo, a coisa está feita... Era inevitável que, mais tarde ou mais cedo, sucedesse uma coisa do género; isso apenas quer dizer que temos de trabalhar um pouco mais depressa. Houve mais algum problema?

- Mais nada de especial. Em alguns locais teve de se travar luta corpo a corpo com soldados e perderam-se algumas pessoas.

Ardmore viu no écran um mensageiro entregar a Thomas uma série de folhas. Este olhou-as de relance e prosseguiu:

- Chegaram mais alguns relatórios, chefe. Quer ouvir o que dizem?

- Não. Depois de chegarem todos, faça-me uma súmula dos acontecimentos. Ou então quando a maior parte deles já tiver chegado, desde que isso não seja mais tarde do que daqui a uma hora. Vou desligar.

O relatório, resumido, que Thomas lhe apresentou mais tarde mostrou que mais de noventa e sete por cento dos membros do culto de Mota tinham conseguido refugiar-se, ilesos, nos templos. Ardmore convocou uma reunião de urgência com o seu grupo de apoio e traçou os contornos do plano a levar a cabo de imediato. Tratou-se, para todos os efeitos, de uma reunião onde Ardmore esteve presente em pleno, através do vídeofone.

- Fomos forçados a isto - disse-lhes. - Como sabem, não estávamos a pensar em desencadear a acção antes de mais duas semanas, ou mesmo três. Mas agora já não nos resta outra solução. Na minha opinião, temos de passar ao ataque e fazê-lo de tal modo que lhes consigamos levar a dianteira.

O ponto foi sujeito a discussão; todos concordaram quanto à necessidade de passar imediatamente á acção, mas levantaram-se algumas discordâncias relativamente aos métodos a adoptar. Depois de todos se terem pronunciado, Ardmore escolheu o plano de desestabilização "IV" e comunicou a todos que deveriam dar imediato início aos preparativos.

- Lembrem-se - recomendou - de que, quando o plano tiver começado a ser posto em prática, não mais será possível retroceder. A acção é irreversível e progride rapidamente. Quantas armas de base temos?

As "armas de base" eram unicamente o projector Ledbetter na sua forma inicial. Tinha uma forma muito semelhante à das pistolas vulgares e devia ser utilizado de forma similar. Apenas estava preparado para projectar os feixes que eram fatais aos indivíduos de sangue mon-gólico. Qualquer pessoa podia utilizá-lo apenas com umas breves instruções, visto que tudo quanto era necessário era apontar a arma para o alvo e carregar no gatilho, e isso era tudo... Aquele que a utilizasse nem uma mosca molestaria, e muito menos um homem branco. Mas para os Asiáticos era morte certa.

Fora muito complicado resolver o problema do fornecimento de armas em quantidades suficientes. Os bastões que eram utilizados pelos sacerdotes estavam fora de questão; cada um deles era um instrumento de precisão que se poderia comparar a um relógio suíço da melhor qualidade. O próprio Sheer trabalhara laboriosamente, à mão, as partes mais delicadas que compunham cada exemplar, e, apesar disso, era necessária a participação de muitos outros técnicos especializados, de modo a ser possível

satisfazer todos os pedidos. Era um trabalho essencialmente manual; a produção em série só seria possível se, um dia, os Americanos voltassem a ter o controlo das suas fábricas.

Além disso, era necessário administrar uma aprendizagem cuidada e uma prática rigorosamente vigiada antes de um sacerdote estar minimamente preparado para utilizar os poderes notáveis do seu bastão.

A resposta ao problema estava na arma de base. Era simples de manobrar e não era necessário regulá-la ou mexer em qualquer das suas partes constituintes, para além do gatilho e do botão de ligação. Mesmo assim, não podia ser manufacturada em grandes quantidades na Cidadela, assim como não teria havido forma possível de distribuir as armas por áreas tão distantes do país sem atrair a atenção, pouco saudável, das autoridades pan-asiáticas. Cada sacerdote levava para seu templo um exemplar da arma de base; tinha depois a responsabilidade de escolher, no seio da sua comunidade, homens com habilidade perícia suficientes para trabalhar na produção do aparelho, que, em comparação com o bastão, era de construção deveras mais simples.

Havia muitas semanas que, nas caves subterrâneas dos templos varios homens trabalhavam arduamente naquela tarefa: moldando, polindo, torneando, reproduzindo à mão, peça a peça, os pequenos dispositivos letais.

O responsável pelo armamento forneceu a Ardmore os dados que lhe tinham sido pedidos.

- Muito bem - disse este. - Temos menos armas do que membros da congregação, mas terão de chegar. Seja como for, nem com toda gente podemos contar. Esta questão danada do culto atraiu uma série de malucos e pessoas de juízo duvidoso que por aí andavam... tudo homens e mulheres de aparência muito bizarra. Se os descontarmos veremos que ainda nos restam algumas armas de base. Isso dá-me idéia de que devem existir, em todas as congregações, algumas mulheres jovens, fortes e suficientemente ajuizadas que possam utilizar a luta o número de armas excedente. Vamos armá-las. Quanto aos desmiolados... nas instruções gerais do plano poderão encontrar uma no que traça a orientação que cada um dos sacerdotes deve seguir para comunicar aos fiéis a verdade dos factos, ou seja, que toda aquela encenação mais não era do que uma tentativa de organização para fins militares. Nove de entre cada dez elementos devem ficar radiantes com a verdade, mostrando-se fortemente dispostos a cooperar.

O tal décimo elemento pode querer causar problemas, ficar histérico ou querer fazer um pandemónio no templo. Por amor de Deus, todos os sacerdotes devem ter a máxima prudência na transmissão da notícia; façam-no progressivamente, por grupos, prontos a ligar o raio sonífero sobre aqueles que dêem mostras de querer levantar problemas. Depois fechem esses elementos até o perigo passar, pois não temos tempo para convencer os fracos de cérebro.

- Agora, mãos à obra. Os sacerdotes utilizarão o resto do dia para doutrinar as suas congregações e para as organizar em algo que se assemelhe a forças militares. Thomas, quero que o helicóptero destacado para a missão relativa ao Real Príncipe passe por aqui esta noite a fim de transportar-me. Levarei comigo Sheer e Wilkie.

- Muito bem, senhor. Mas estava a pensar em ir eu próprio nesse aparelho. Importa-se que introduzamos essa pequena alteração no plano?

- Importo-me - disse Ardmore secamente. - Se for consultar plano de desestabilização "IV", verificará que é ao comandante que compete ficar na Cidadela. Dado que já me encontro no exterior da Cidadela, você ficará no meu lugar.

- Mas, chefe...

- Não nos podemos dar ao luxo de arriscar a cabeça de ambos, e muito menos nesta altura dos acontecimentos. Agora, ao trabalho.

- Sim, senhor.

Ao fim da manhã, Ardmore foi novamente chamado ao vídeofone. No écran apareceu o rosto do oficial de serviço.

- Oh... Major Ardmore, estão a ligar para si de Salt Lake City e pedem que os atenda com urgência.

- Ponha-os na linha.

O rosto do oficial foi substituído pelo do sacerdote de Salt Lake City.

- Chefe - principiou este -, temos em nosso poder um prisioneiro verdadeiramente extraordinário. Sou de opinião de que é melhor ser o chefe a interrogá-lo.

- Não tenho muito tempo. Por que razão?

- Bem, ele é pan-asiático, mas afirma que é branco e que o chefe há-de reconhecê-lo. O mais engraçado disto tudo é que ele conseguiu passar na entrada do templo. Pensei que isso era totalmente impossível.

- E é. Deixe-me vê-lo.

Era Downer, tal como Ardmore suspeitara. Depois de apresentá-lo ao sacerdote local e de ter assegurado ao oficial que o aparelho montado à porta dos templos nunca falhava, dirigiu-se directamente a Downer:

- Ora bem, capitão, diga lá o que tem a dizer.

- Senhor, decidi voltar aqui e apresentar-lhe um relatório pormenorizado dos acontecimentos, pois estes estão a precipitar-se.

- Sei disso. Dê-me todos os pormenores que conheça sobre o assunto.

- Imediatamente, senhor. Não sei se sabe dos estragos que já causou ao inimigo. O moral deles está a deteriorar-se rapidamente. Andam todos nervosos, inseguros de si. Que aconteceu?

Ardmore traçou uma breve panorâmica sobre os acontecimentos ocorridos nas passadas vinte e quatro horas: a sua própria detenção, a dos sacerdotes e a de todos os seguidores do culto de Mota e a libertação subsequente. Downer fez um sinal afirmativo com a cabeça:

- Isso explica tudo. Não conseguia realmente perceber o que se passara; eles nunca dizem nada a um soldado raso, mas estava a vê-los a ficar completamente desmoralizados e decidi que era melhor pô-lo ao corrente desse facto.

- Que aconteceu?

- Bem... penso que é melhor dizer-lhe exactamente o que vi e deixar que o chefe tire as suas próprias conclusões. O segundo batalhão do Regimento de Dragões, aqui estacionado em Salt Lake City, está sob detenção. Ouvi dizer que todos os oficiais que o comandavam cometeram suicídio. Suponho que tenha sido esse o grupo que deixou a congregação escapar, mas não tenho a certeza.

- Provavelmente é. Continue.

- Só sei aquilo que vi. A meio da manhã dirigiram-se em marcha, sem os estandartes, para um barracão onde ficaram encerrados, sob forte guarda. Mas isso não é tudo. O acto em si é extremamente desmoralizador, não só para as suas vítimas directas mas também para aqueles que ficam cá fora. O chefe sabe como é que isto funciona: quando o comandante começa a perder as rédeas do comando, todo o regimento se desorganiza, não é verdade?

- Isso é verdade. É assim que as coisas se estão a passar lá entre eles?

- Exactamente... pelo menos no comando estacionado em Salt Lake City. Tenho a certeza de que o grande chefe lá do sítio tem medo de algo que não consegue definir, e esse receio propagou-se aos seus oficiais e destes aos soldados rasos. Tem havido montes de suicídios, até mesmo entre os militares de menor patente. Os tipos andam todo o dia taciturnos, depois sentam-se em algum recanto isolado, de frente para o oceano Pacífico, e cortam as goelas.

"Mas há outra coisa que prova ainda mais definitivamente que o moral deles está em baixo em todos os pontos do país. O Real Príncipe, em pessoa, mandou difundir uma ordem em que proíbe, em nome do Celeste Imperador, todos os suicídios de honra.

- Que efeito teve essa ordem?

- Ainda é demasiado cedo para dizer, pois só a transmitiram hoje. Mas o chefe, com certeza, não está a ver o que isso significa. Para compreendê-lo, é indispensável ter vivido entre essa gente, como eu fiz. Para os Pan-Asiáticos é tudo uma questão de honra: tudo. Preocupam-se muito mais com as aparências do que um americano pode imaginar. Dizer a um homem que perdeu a sua honra, que não pode regularizar as contas do seu livro e pôr-se de bem para com os seus ancestrais, cometendo suicídio, é como arrancar-lhe o coração de dentro do peito. Isso é privá-lo daquilo que mais preza na vida.

- Não tenha dúvidas de que o próprio Real Príncipe também está assustado, ou não teria recorrido a tais medidas. Deve ter perdido ultimamente um número muito elevado de oficiais para ter sido forçado a tomar essa resolução.

- Aí está uma excelente notícia. Lá para o fim do dia devem já estar muito mais desmoralizados do que até aqui. Portanto, pensa que os temos já arrumados, não?

- Não diga uma coisa dessas, major, e muito menos a pense. Esses estuporados amarelos - falava totalmente esquecido da suas próprias semelhanças físicas com os Pan-Asiáticos - são precisamente quatro vezes mais mortíferos e perigosos no estado de espírito em que se encontram agora do que o eram anteriormente. São muito bem capazes de, à mais pequena coisa, perder a cabeça e desatar a massacrar, a torto e a direito, crianças, mulheres... indiscriminadamente!

- Hum. Tem alguma sugestão a fazer?

- Sim, chefe, tenho. Atire contra eles tudo o que possua, o mais depressa possível, antes que desencadeiem um massacre geral. Por enquanto já os conseguiu abrandar... Arrase-os de uma vez por todas! Antes que tenham tempo de lembrar-se da população civil que têm à sua disposição. Caso contrário, terá pela frente acontecimentos de tal forma sangrentos que farão o colapso parecer uma festa inocente.

"Essa foi uma das outras razões por que decidi voltar para aqui - acrescentou-, pois não queria ver-me obrigado a receber ordens para assassinar os da minha própria espécie.

O relato feito por Downer a Ardmore deixou-o profundamente preocupado. Calculou que Downer estava provavelmente a fazer um julgamento correcto sobre os meandros da mente oriental. Aquilo que Downer dizia que podia acontecer - as retaliações contra a população civil- fora sempre a chave de todo o problema: fora por isso mesmo que a religião de Mota fora fundada, porque nunca se teriam atrevido a atacar directamente, com medo da retaliação sistemática que o inimigo podia desencadear contra os indefesos. Naquela altura, se Downer tinha razão, ao atacarem indirectamente iam muito provavelmente provocar uma reacção desse tipo.

Deveria mandar cancelar o plano "IV" e atacar ainda naquele mesmo dia?

Não... isso não era, pura e simplesmente, praticável. Era indispensável conceder aos sacerdotes algumas horas, pelo menos para transformar os componentes dos respectivos rebanhos em guerrilheiros. Nessa conformidade, o melhor seria prosseguir o plano "IV" e atrapalhar ainda mais os senhores pan-asiáticos. Uma vez a coisa encaminhada, não ficariam com muito tempo para pensar em massacres.

Descendo de uma grande altura, um pequeno helicóptero pousou suave e silenciosamente no telhado do templo da cidade onde o Real Príncipe estava instalado. Ardmore subiu para ele, assim que uma das portas laterais se abriu. Entretanto, Wilkie saíra para saudá-lo.

- Viva, chefe!

- Olá, Bob. Isso é que foi pontualidade: é exactamente meia-noite. Pensa que foram localizados?

- Não me parece, pelo menos nenhum projector foi apontado na nossa direcção. Viemos lá bem em cima e velozmente; o controlo gravítico deste aparelho é muito eficiente.

Quando entraram no aparelho, Sheer, sem tirar as mãos dos comandos, fez um aceno de cabeça ao chefe, acompanhado de uma "boa tarde, senhor". Assim que os cintos de segurança foram fechados, fez subir vertiginosamente o helicóptero no espaço.

- Quais são as ordens, senhor?

- Leve-nos directamente para o telhado do palácio... e tenha cuidado.

Voando sem luzes, a grande velocidade e sem qualquer fonte de energia que o inimigo pudesse detectar, o pequeno aparelho pousou no mencionado telhado. Wilkie ia a abrir a porta, quando Ardmore lhe disse:

- Antes disso, verifique se há alguém lá fora.

Viram um cruzador aéreo pan-asiático, que fazia a patrulha habitual sobre a residência do Real Príncipe, mudar de curso e acender subitamente os holofotes. O raio do projector, guiado pelo radar, incidiu em cheio sobre o helicóptero.

- Consegue atingi-lo a esta distância? - perguntou Ardmore, falando desnecessariamente em segredo.

- É a coisa mais fácil do mundo, chefe.

No écran do aparelho, o alvo ficou distintamente sinalizado. Wilkie carregou no botão. Nada pareceu acontecer, mas o feixe de luz do projector desviou-se.

- Tem a certeza de que o atingiu? - perguntou Ardmore, em tom de dúvida.

- Absoluta. Aquele aparelho continuará a funcionar até o combustível se acabar. Mas já lá não tem ninguém com vida.

- O. K., Sheer, substitua Wilkie junto do projector. Não o utilize, a não ser que o localizem. Se não estivermos de volta dentro de trinta minutos, regresse à Cidadela. Vamos a isto, Wilkie.

Sheer cumpriu a ordem, mas via-se, pela contracção dos poderosos maxilares, que esta não lhe agradara nada. Ardmore e Wilkie, ambos envergando as vestimentas sacerdotais, atravessaram o terraço, em busca de uma saída que os conduzisse ao interior do edifício. Ardmore mantinha o bastão ligado numa onda a que os orientais eram sensíveis, mas que não os matava, deixando-os apenas atordoados. Antes de descerem, tinham feito incidir um feixe com estas características sobre todo o palácio, através da utilização do projector de maior potência que estava montado no helicóptero. Era de esperar, consequentemente, que todos os pan-asiáticos encerrados no edifício estivessem inconscientes - Ardmore não queria arriscar-se desnecessariamente.

Encontraram uma porta de acesso ao telhado que lhes poupou o trabalho de ter de abrir um orifício. Desceram por uma escada de serviço, feita de metal, somente utilizada pelo pessoal. Uma vez chegados ao interior do palácio, Ardmore teve alguma dificuldade em orientar-se e receou ter de ir buscar um pan-asiático, reanimá-lo e arrancar-lhe a indicação da localização dos aposentos do príncipe através de métodos pouco gentis. Mas a sorte encontrava-se do seu lado; ao chegar ao segundo andar, deparou com uma porta que, pela quantidade e pelo aspecto dos guardas que se encontravam caídos junto à mesma, o fez deduzir que se tratava da que dava para os referidos aposentos.

A porta não se encontrava fechada; o príncipe dependia mais da vigilância dos seus militares do que de chaves e fechaduras - nunca na sua vida se fechara à chave. Encontraram-no estendido na cama, com um livro caído entre os esguios dedos. Em cada um dos cantos do espaçoso quarto encontrava-se um criado pessoal, desmaiado.

Wilkie olhou o príncipe com interesse.

- Com que então é aqui que este passarão tem o ninho. Que fazemos agora, major?

- Você vai para o outro lado da cama; eu fico aqui. Quero que ele, quando acordar, seja obrigado a dar atenção aos dois lados da cama. E fique de pé, bem perto dele, de modo que o tipo tenha de erguer os olhos para olhar para si. Quem falará a maior parte do tempo serei eu, mas quero que, de vez em quando, faça uma observação que o obrigue a desviar a atenção para si.

- Que espécie de observação?

- Qualquer chachada aparentemente relacionada com o nosso culto. Mas que seja suficientemente impressionante e dotada de sentido para desviar a atenção dele. Acha que consegue fazê-lo?

- Acho que sim, pois antigamente costumava vender assinaturas para revistas.

- O. K. Este tipo é rijo... mesmo muito rijo. Vou tentar atacá-lo com os dois receios básicos e congénitos que são próprios a todos os homens: o medo de sufocar e o medo de cair. Podia fazê-lo apenas com o meu bastão, mas será mais simples você fazê-lo com o seu. Acha que é capaz de seguir os meus movimentos e perceber o que quero que faça?

- Não poderá clarificar um pouco mais aquilo que pretende? Ardmore explicou pormenorizadamente aquilo que se propunha fazer e depois acrescentou:

- Muito bem... vamos ao trabalho. Tome o seu lugar.

Ligou as quatro cores luminosas do seu bastão. Wilkie fez o mesmo. Ardmore atravessou o quarto e apagou as luzes.

Quando o pan-asiático Real Príncipe, neto do Celeste Imperador e governador do Real Império Ocidental, recobrou os sentidos, avistou junto de si, no meio da escuridão, duas figuras impressionantes. A de maior estatura encontrava-se envolta em vestes que cintilavam com uma esbranquiçada luminescência. O turbante que trazia brilhava igualmente com uma luz suavemente clara, que parecia provir do mesmo, enquanto, flutuando em redor da sua cabeça, se via uma auréola de luz: um halo.

Na mão esquerda segurava um bastão que emanava, de cada uma das cúbicas faces que o encimavam, várias luzes coloridas: vermelha, dourada, verde-esmeralda e azul-safira.

A segunda figura era em tudo semelhante à primeira, com excepção das vestes, cuja cor era idêntica à de um braseiro aceso. O rosto de ambos estava parcialmente iluminado pelos raios emitidos pelos bastões que empunhavam.

A figura de branco ergueu a mão direita num gesto que não era de bondade, mas sim imperioso:

- Voltamos a encontrar-nos, ó príncipe miserando!

O príncipe recebera um treino severo e eficaz; medo era sentimento que nunca conhecera. Tentou levantar-se, mas viu-se impedido de fazê-lo por uma força invisível que o empurrava, á altura do peito, de encontro à cama. Quis falar.

Não conseguiu proferir palavra.

- Silêncio, filho da iniquidade! O deus Mota irá dirigir-se a vós por meu intermédio. Ouvi-lo-eis em silêncio.

Wilkie julgou chegada a altura de intervir e desviar a atenção do pan-asiático. Entoou O Deus Mota É Grande! Ardmore prosseguiu:

- As vossas mãos estão manchadas com o sangue de inocentes. É necessário que isso não volte a repetir-se.

- O deus Mota é justo!

- Tendes oprimido o seu povo. Haveis deixado a terra dos vossos antepassados e convosco haveis trazido a destruição e a morte. Deveis voltar para lá!

-O deus Mota é paciente!

- Mas haveis atentado contra a sua paciência - acrescentou Ardmore, - Agora a sua ira está prestes a abater-se sobre vós. Trago-vos, em seu nome, um aviso; vede se podeis atendê-lo!

- O deus Mota é misericordioso!

- Regressai ao local donde haveis partido; voltai imediatamente e levai convosco a vossa gente... E nunca mais volteis aqui! - Ardmore estendeu uma das mãos e fechou-a lentamente. - Se não atenderdes a este aviso, o ar será roubado do vosso corpo!

A pressão que se fazia sentir sobre o peito do oriental aumentou intolerantemente, os olhos quase lhe saíram fora das órbitas e sufocou com falta de ar.

- Se não atenderdes a este aviso, sereis precipitado de uma grande altura!

Subitamente, o príncipe sentiu-se extremamente leve; teve a sensação de que subira no ar. até ao tecto, sentindo o corpo comprimir-se contra o mesmo. Tão inesperadamente como subira, sentiu-se cair desamparadamente sobre o leito.

- Assim fala o deus Mota!

- Sábio é o homem que o escuta! - Wilkie estava a sentir cada vez mais dificuldade em arranjar expressões convenientes.

Ardmore estava prestes a acabar. O seu olhar recaiu sobre um objecto vagamente familiar: o bizarro tabuleiro de xadrez do príncipe. Achava-se junto à cama, como se em noites de insónia este se entretivesse com ele. Tudo indicava que o homem apreciava muito aquele jogo. Ardmore fez uma última intervenção:

- O deus Mota terminou o que tinha para vos comunicar, mas deveis ouvir o conselho que vos dá o homem que já viveu muitas luas: os homens e as mulheres não são peças de nenhum jogo!

Uma mão invisível pareceu abater-se sobre o valioso e requintado tabuleiro de xadrez, atirando-o para o chão. Apesar de se encontrar bastante entorpecido, o príncipe conseguiu arranjar forças para mostrar nos olhos a cólera que lhe ia na alma.

- E agora o meu deus Shaam ordena-vos que durmais!

A luz verde brilhou ainda mais intensamente e o príncipe adormeceu profundamente.

- Caramba! - exclamou Ardmore, dando um profundo suspiro. - Ainda bem que isto acabou! Foi óptima a sua colaboração, Wilkie... Eu nunca tive grande jeito para representar, - Erguendo uma das pontas da túnica, retirou um maço de tabaco de dentro do bolso das calças, - É melhor fumar um - ofereceu. - O trabalho que nos espera não é nada agradável.

- Obrigado - disse Wilkie, aceitando a oferta. - Olhe, chefe: será mesmo necessário matar toda a gente que aqui se encontra? Isso não me agrada nada.

- Não arme em cobardolas, filho - repreendeu-o Ardmore, com uma ponta de censura na voz. - Estamos em guerra... e a guerra não é uma brincadeira. Isso de guerra humanitária é coisa que não existe. O local onde nos encontramos é uma fortaleza militar; para que os nossos planos possam ser levados a bom termo, é necessário destruí-la completamente. Não seria possível fazê-lo do ar, pois queremos que o príncipe fique vivo.

- Por que é que não bastará deixá-los inconscientes?

- Você discute de mais. Parte do plano de desorganização consiste em deixar o príncipe vivo e a comandar, mas sem o auxílio dos seus assistentes habituais. Isso irá provocar uma onda de ineficácia muito maior do que se o tivéssemos simplesmente matado e deixado o comando entregue ao homem número dois. Você sabe isso. Continue lá com o seu trabalho.

Com os raios letais dos seus bastões ligados na máxima potência, varreram com eles as paredes, o chão e o tecto, provocando a morte de centenas de orientais numa área de centenas de metros - os raios atravessavam rocha, metal, plástico e madeira.

Wilkie levou a cabo a sua tarefa com uma eficiência implacável, mas tinha o rosto extremamente pálido.

Cinco minutos mais tarde sulcavam a estratosfera em direcção à Cidadela.

Onze outros helicópteros apressavam-se igualmente através da noite.Em Cincinnati, Chicago, Dálias e noutras grandes cidades do continente americano, a coberto da escuridão da noite, aniquilavam toda a oposição que encontravam e desembarcavam pequenos grupos de homens determinados e resolutos. Estes penetravam nos redutos inimigos, passavam pelos adormecidos guardas e levavam consigo os oficiais mais importantes: governadores distritais, comandantes militares e outros elementos com responsabilidades locais. Deixavam todos os elementos raptados e inconscientes sobre o terraço do templo de Mota da respectiva localidade a fim de que o sacerdote local os transportasse depois para o interior do mesmo.

Dirigiam-se depois para a cidade seguinte, onde repetiam a mesma operação, assim continuando a fazer ao longo de toda a noite.

 

Mal Ardmore chegou à Cidadela, foi imediatamente abordado por Calhoun, que lhe disse:

- Major Ardmore, tenho estado levantado toda a noite a fim de discutir consigo um assunto da máxima importância.

"Este homem", pensou Ardmore, "consegue escolher as alturas menos convenientes para conversar."

- Sim?

- Segundo creio, o senhor espera um rápido culminar dos acontecimentos.

- Sim, realmente, as coisas devem estar quase a resolver-se.

- Suponho mesmo que o desenlace final já está mesmo definido a nosso contento. Não tenho conseguido obter as informações que pretendo do seu assistente, Thomas... Ele não é muito cooperante: ainda não consegui compreender por que motivo o colocou no seu lugar durante a sua ausência, mas isso é outra questão - disse Calhoun, dando o assunto por encerrado com um gesto magnânimo. - Aquilo de que lhe quero falar é o seguinte: por acaso, já pensou na forma como o país vai ser governado depois de expulsarmos os invasores pan-asiáticos?

Que diabo queria o homem dizer com aquilo?

- Não, em especial... Por que deveria fazê-lo? É evidente que terá de haver uma espécie de período de governação provisória de tipo militar, enquanto não se localizam todos os antigos oficiais que conseguiram sobreviver e os reajustamos novamente às suas funções e se fazem eleições nacionais. Mas isso é coisa para ser feita a seu tempo... Teremos os sacerdotes locais para dar uma ajuda.

Calhoun ergueu violentamente os sobrolhos:

- Não me diga, meu caro, que tenciona, verdadeiramente, voltar a adoptar os métodos eleitorais ineficientes e fora de moda que se usavam antigamente?

Ardmore ficou a olhar para ele.

- Que outra coisa sugere?

- É mais do que evidente! Temos nas nossas mãos uma oportunidade única para acabar com as tolices cometidas no passado e substituí-las por regras científicas verdadeiramente eficazes, à frente das quais ficará um homem escolhido pela sua inteligência e pelas suas capacidades científicas, e não pela perícia com que lida com as multidões.

- Assim uma espécie de ditadura,.hem?! E onde encontraria eu um homem com essas características? - E a voz de Ardmore soava ingénua e perigosamente suave.

Calhoun não respondeu, mas todos os seus gestos de mal disfarçada afectação davam a entender que Ardmore não teria de ir muito longe para encontrar esse homem.

Ardmore preferiu não dar a entender que percebera a evidente sugestão de Calhoun para aquele posto:

- Não interessa - disse, com um tom de voz que perdera já o tom suave. - Coronel Calhoun, é-me profundamente desagradável ter de recordar-lhe os seus deveres, mas compreenda o seguinte: o senhor e eu somos militares. E os militares não têm por missão envolver-se em politiquices. A missão que nos foi conferida partiu de regras constitucionais, e o seu dever é devido exclusivamente a essa constituição. Se o povo dos Estados Unidos nos quiser confiar o governo dos seus destinos, dar-nos-á conhecimento disso!

"Entretanto tem os seus deveres militares a cumprir e eu tenho os meus. Faça favor de cumprir os seus.

Calhoun pareceu prestes a responder. Ardmore, antes que ele o fizesse, disse-lhe rapidamente:

- É tudo. Retome o seu posto, senhor! Calhoun virou-se abruptamente e partiu.

Ardmore chamou o responsável pelos serviços secretos.

- Thomas - disse -, quero um relatório pormenorizado mas discreto sobre a movimentação do coronel Calhoun.

- Muito bem, senhor.

- Chegou o último helicóptero, senhor.

- Óptimo. Em quantos prisioneiros já vamos? - perguntou Ardmore.

- É só um momento, senhor. Cada aparelho tem feito à volta de seis operações. Contando com este que chegou agora são, no total... hum... nove mais dois faz onze... o que dá setenta e um prisioneiros em sessenta e oito operações. Alguns fizeram dois prisioneiros.

- Há baixas?

- Somente do lado dos Pan-Asiáticos...

- Raios... é mesmo a isso que me refiro! Não, refiro-me aos nossos homens, claro.

- Não se perdeu nenhum, major. Houve um que partiu um braço ao cair de umas escadas, no meio da escuridão.

- Penso que não foi nada mau, se tivermos em conta a dimensão da operação levada a cabo. Devemos estar quase a receber os relatórios sobre os resultados obtidos nas várias localidades, pelo menos nas que se situam na costa oriental. Assim que chegarem, comunique-mos.

- Com certeza.

- Não se importa de pedir à minha ordenança que me traga alguns comprimidos de cafeína... O melhor é você também tomar alguns; vai ser um dia muito longo.

- Boa idéia, major. - E a comunicação foi interrompida.

Em sessenta e oito das cidades espalhadas pelo território, levavam-se a efeito preparativos para as manifestações que iriam constituir a segunda fase do plano de desestabilização "IV". O sacerdote do templo de Oclaoma delegara parte das suas tarefas locais a dois homens: um motorista de táxi chamado Patrick Minkowski e um comerciante a retalho chamado John W. (Jack) Smyth. Estavam ocupados a prender uns ferros aos tornozelos do representante local do governador, o administrador pan-asiático da cidade de Oclaoma. O corpo, nu e flácido, do oriental jazia em cima de uma longa mesa, numa das salas existentes sob o templo.

- Já está - anunciou Minkowski. - É o melhor trabalho de rebitagem que poderia fazer sem utilizar ferramentas de fundição. De qualquer modo, terá muita dificuldade em libertar-se. Onde está o stencil?

- Ao pé do teu cotovelo. O capitão Isaacs disse que, assim que pudesse, soldaria essas juntas com o bastão dele; portanto, eu não me preocuparia muito com isso. Olha lá: parece um bocado estranho chamarmos capitão a um sacerdote, não parece? Achas que estamos mesmo num exército... isto é, em termos legais?

- Não faço a mínima idéia... mas, desde que tenha oportunidade de dar a minha contribuição para acabar com esses macacos amarelos, tanto me faz. No entanto, penso que se trata de uma coisa a sério, pois, se partirmos do princípio de que Isaacs é um oficial do Exército, ele pode perfeitamente arranjar recrutas. Olha... pomos este stencil nas costas ou no estômago do tipo?

- Acho que devíamos pô-lo de ambos os lados. No entanto, esta coisa do Exército parece mesmo estranha. Quer dizer, num dia uma pessoa vai à igreja para rezar ou coisa parecida e no outro dizem-lhe que essa igreja é um reduto militar e presta juramento, ficando alistado.

- Pessoalmente, a idéia agrada-me - comentou Minkowski. - Sargento Minkowski... soa bem. Nunca consegui alistar-me na tropa por causa dos problemas de coração que tenho. E em relação à questão da igreja em si... seja como for, nunca levei muito a sério essa questão de deus Mota; vim mais pela possibilidade que eles nos davam de poder ter comida de borla e de respirar um pouco de paz. - Tirou o stencil das costas do oriental e Smyth começou a preencher o espaço do traçado de um ideograma, com

uma tinta indelével e de secagem rápida. - Que quererão estes diabólicos sinais dizer?

- Então não sabes? - admirou-se Smyth, contando-lhe. O rosto de Minkowski abriu-se num sorriso deliciado:

- Caramba, raios me levem! - disse. - Se alguém me chamasse uma coisa dessas, de bem pouco lhe valeria estar a sorrir nessa altura Não estás, por acaso, a brincar comigo?

- Claro que não. Estava lá na sala de comunicações quando eles receberam a informação sobre o traçado, emitida pelo templo-mãe. Isso é mais uma coisa que me espanta. Reparei que o tipo que aparecia no écran e que fornecia as indicações sobre isso era tão asiático como aqui este macaco - Smyth indicou o homem inconsciente. - Mas eles chamaram-lhe capitão Downer e trataram-no de igual para igual. Que pensas disso?

- Não faço a menor idéia. Mas o tipo deve estar do nosso lado; se assim não fosse, não andaria lá pela sede. Que fazemos com o resto da tinta?

Entre os dois, lá descobriram o que fazer com ela, facto em que o capitão Isaacs reparou imediatamente quando entrou na sala para ver como iam as coisas. Disfarçou um sorriso.

- Vejo que aplicaram as instruções recebidas um pouco á vossa maneira - comentou, tentando dar um tom sobriamente oficial à voz.

- Era uma pena termos de deitar fora o resto da tinta - explicou Minkowski, com ar ingénuo. - Além disso, o homem parecia tão nu, da forma como estava...

- É uma questão de opinião. Pessoalmente, acho que agora ele parece ainda mais nu. Esqueçamos isso; despachem-se e rapem-lhe essa cabeça. Devo ter de estar a partir a qualquer momento.

Minkowski e Smyth estavam, passados cinco minutos, à porta do templo, com o representante do governador enrolado num cobertor e colocado no chão, entre ambos. Viram uma camioneta virar a curva ao fundo da rua e aproximar-se do templo a toda a velocidade, parando subitamente em frente do mesmo. A buzina soou e a cabeça do capitão Isaacs apareceu à janela da cabina do condutor. Minkowski deitou fora o resto do cigarro que estivera a fumar e agarrou nos ombros da figura inanimada que tinha a seus pés; Smyth pegou nos pés e, juntos, transportaram-na desajeitadamente para a viatura.

- Ponham-no na parte de trás - ordenou o capitão Isaacs.

Feito isso, Minkowski colocou-se ao volante, enquanto Isaacs e Smyth se instalavam atrás, ao pé daquele que ia ser objecto da planeada manifestação.

- Quero que se dirijam para um local onde se encontre um grande ajuntamento de pan-asiáticos - odenou o capitão. - Se estiverem americanos presentes, tanto melhor. Conduza a uma certa velocidade e não se preocupe com o que possa encontrar. Se surgirem dificuldades, encarregar-me-ei delas com o meu bastão. - Instalou-se de modo a poder observar, por cima do ombro de Minkowski, a rua por onde seguiam.

- Muito bem, capitão! Diga-me uma coisa. Esta carripana não é nada má - acrescentou, enquanto a viatura seguia velozmente. - Como é que conseguiu arranjá-la num espaço de tempo tão curto?

- Despachei uma série de amigos orientais que estavam na posse dela - respondeu Isaacs rapidamente. - Atenção ao sinal!

- Já o tinha visto.

O carro passou velozmente mesmo rente á fila de veículos que já se aproximava da parte lateral, deixando para trás um polícia pan-asiático a esbracejar inutilmente para eles.

Alguns segundos mais tarde, Minkowski perguntou:

- E que tal aquele sítio ali adiante, capitão? - apontou, com o queixo, na direcção indicada.

Tratava-se de uma praça onde se via grande movimento.

- O.K. - E inclinou-se para a silenciosa figura que ia estendida no fundo da camioneta, trabalhando afanosamente com o seu bastão.

O asiático começou a debater-se. Smyth caiu sobre ele, apertando-lhe o cobertor mais fortemente sobre a cabeça e os ombros.

- Escolha o sítio onde vai parar. Quando o fizer, estaremos prontos. O carro parou subitamente, fazendo chiar os pneus. Smyth abriu

violentamente a porta das traseiras; ajudado por Isaacs, agarrou nas pontas do cobertor e fizeram que o oficial pan-asiático, então totalmente consciente, rolasse para o meio da rua.

- Toca a andar, Pat!

O carro arrancou velozmente, deixando que os boquiabertos e escandalizados asiáticos que assistiam à cena resolvessem aquela situação, tão profundamente degradante, como melhor entendessem. Vinte minutos mais tarde, Ardmore recebia no seu gabinete da Cidadela o relato pormenorizado da missão cumprida. Leu-o rapidamente e passou-o a Thomas.

- Aqui tem um exemplo de gente com imaginação, Jeff. Thomas pegou no relatório e leu-o, manifestando, seguidamente, a sua concordância.

- Espero que todos eles sejam tão bem sucedidos como estes aqui. Talvez devêssemos ter dado instruções mais pormenorizadas ao pessoal.

- Não me parece que isso fosse necessário. As instruções demasiado precisas são a morte da iniciativa. Agindo deste modo, deixamos que cada um deles as execute do modo que achar mais conveniente e mais eficaz para estragar a vida aos nossos amos de olhos oblíquos. Estou a contar com alguns resultados verdadeiramente divertidos e engenhosos.

Às nove horas da manhã, hora da sede, cada um dos setenta oficiais superiores pan-asiáticos fora devolvido, em perfeitas condições de saúde mas desonrado para todo o sempre, aos seus irmãos de raça. Em todos os casos, de acordo com as informações já recolhidas até ali, os Pan-Asiáticos não se tinham lembrado de relacionar directamente a terrível afronta recebida com o culto de Mota. Consideravam os acontecimentos apenas como uma catástrofe, uma catástrofe psicológica da pior espécie, que fora desencadeada durante a noite, sem aviso e sem deixar rasto.

- Major, ainda não marcou a altura exacta em que devemos dar inicio á terceira fase - lembrou Thomas a Ardmore, depois de todos os relatórios chegarem.

- Sei disso. Estou a pensar em dar lhes, lá fora, umas duas horas. Temos de deixar-lhes algum tempo para se darem conta do que lhes aconteceu. A desmoralização deles será muito maior quando começarem a receber as informações que lhes vão chegar de todas as zonas do país e a compreender que todas as suas grandes personalidades foram publicamente humilhadas. Isso, juntamente com o facto de termos aniquilado, quase por completo, os pontos-chave que tinham nos vários estados, poderá desencadear neles uma deliciosa crise de histeria colectiva. Mas temos de dar-lhes tempo para assimilar bem a coisa. Onde está Downer?

- Está de serviço na sala de comunicações.

- Diga-lhe que me ligue, aqui para o meu gabinete, um circuito directo. Quero ouvir tudo o que ele conseguir captar.

Thomas ligou o comunicador interno e falou brevemente. Seguidamente, o rosto pseudo-asiático de Downer apareceu no écran que se encontrava por cima da secretária de Ardmore. Este dirigiu-lhe algumas palavras. Downer tirou os auscultadores dos ouvidos e olhou interrogadoramente para Ardmore.

- Perguntei - repetiu Ardmore - se já tinha recebido alguma notícia.

- Algumas. Os tipos estão terrivelmente agitados. Tenho estado a registar tudo o que consigo traduzir. - Carregou num botão do microfone que tinha em frente de si. Uma sombra de preocupação velou-lhe o olhar e acrescentou: - De São Francisco estão a tentar entrar em contacto com o palácio real...

- Não me deixe interrompê-lo - disse Ardmore, desligando o seu próprio microfone.

- ...pois o governador lá da cidade foi dado como morto. São Francisco quer uma espécie de autorização... Espere um pouco; aqui nas comunicações querem que eu tente outra onda de recepção. Já está ligada... Eles estão a utilizar o sinal do Real Príncipe, mas a frequência utilizada é a do governador. Não consigo perceber o que estão a dizer: ou é um código ou um dialecto que desconheço. Oficial de serviço, tente outra onda, pois com esta aqui estou apenas a perder tempo... Assim está melhor.

- A face de Downer tornou-se atenta e depois iluminou-se subitamente: - Chefe, ouça isto: alguém está a dizer que o governador do estado do Golfo enlouqueceu e pede permissão para substituí-lo! Aqui está outra: este quer saber o que se passa com os circuitos do palácio e como comunicar com ele; este está a comunicar o eclodir de uma sublevação...

Ardmore interrompeu-o imediatamente.

- Onde é isso?

- Não consegui perceber. As interferências são imensas e quase todas elas sem sentido. Não dão uns aos outros tempo para sair da ligação: enviam imediatamente a mensagem seguinte.

Alguém bateu suavemente na porta do gabinete de Ardmore. Esta entreabriu-se ligeiramente e a cabeça do Dr. Brooks espreitou.

- Posso entrar, major?

- Oh, certamente, doutor. Entre. Estamos a ouvir o que o capitão Downer está a captar pela rádio.

- É uma pena que não tenhamos uma dúzia de homens como ele... tradutores, quero dizer.

- Sim, mas não parece haver muito para recolher, para além de uma idéia geral.

Ficaram a ouvir o que Downer conseguia apanhar, durante quase uma hora, tratando-se, na maior parte das vezes, de mensagens dispersas ou incompletas, o que não impedia que se tornasse cada vez mais evidente que a sabotagem feita na organização do palácio, mais o terrível impacto provocado pela desgraça sofrida pelos responsáveis principais, semeara o caos no funcionamento, até ali regular e impecável, do governo pan-asiático. Finalmente, Downer disse:

- Vai sair agora uma ordem geral... Aguardem um minuto. Eles estão a ordenar a suspensão imediata de todas as transmissões por via rádio; passam a ser feitas em código.

Ardmore olhou para Thomas:

- Creio que chegou a altura exacta de avançarmos, Jeff. Há por lá ainda alguém com juízo suficiente que está a tentar restabelecer a ordem... Provavelmente é o nosso velho amigo, o príncipe. Chegou a altura de os arrumarmos de vez. - Ligou para a

sala de comunicações. -O. K., Steeves - disse para a imagem do oficial de serviço. - Dê luz verde a toda a organização para actuarem de acordo com o plano estabelecido.

- Vamos esmagá-los?

- Exacto. Avise todos os templos através do circuito "A" e ordene -lhes que avancem imediatamente.

- Estão todos preparados, senhor. Acção?

- Muito bem... Acção!

Wilkie inventara um pequeno dispositivo através do qual o tremendo poder de que os projectores dos templos eram dotados podia ser rectificado, sempre que necessário, para diversas radiações de tipo electro magnético, através de frequências de rádio,

estáticas. Agora podiam criar, a seu bel-prazer, efeitos como manchas solares, tempestades eléctricas, auroras boreais, etc.

Viram Downer tirar um dos auscultadores do ouvido.

- Por amor de... Porque não me avisaram? - Voltou a aproximar auscultador cautelosamente do ouvido e sacudiu a cabeça. - Não se ouve nada. Aposto que demos cabo de todos os receptores do país.

- Possivelmente -observou Ardmore, dirigindo-se às pessoas que se encontravam no seu gabinete-, mas vamos esmagá-los na mesma. - Naquele momento, em todo o território dos Estados Unidos não havia um único aparelho de transmissões a funcionar, excepto o sistema de rádio de posse do culto de Mota. Os dirigentes pan-asiáticos nem sequer podiam recorrer ao telefone, dado que o fio de cobre das linhas fora há muito retirado.

- Quanto tempo ainda falta, chefe?

- Já não falta muito. Deixamos que falassem o tempo suficiente para que dessem conta de que algo de muito diabólico se está a passar em todo o país. Agora cortamos o pio a todos eles. Isso deverá produzir uma sensação de pânico. Quero dar-lhes tempo para que esse pânico cresça e se espalhe por todos os pan-asiáticos que se encontrem no território. Quando vir que estão bem maduros, caímos em grande sobre eles.

- Como é que saberá que chegou a altura ideal?

- Não tenho possibilidades de sabê-lo. Teremos de basear-nos na nossa intuição. Entretanto, deixemos que aquelas belezas andem às voltas durante um pedaço, desde que isso não ultrapasse uma hora, e depois apliquem-lhes o tratamento respectivo.

O Dr. Brooks fez uma tentativa nervosa para não deixar morrer a conversa:

- Será certamente um alívio ver este assunto resolvido de uma vez por todas. Temos tido alturas muito difíceis de ultrapassar... - E a voz esmoreceu-lhe.

Ardmore virou-se para ele e disse:

- Se pensa que as coisas vão ficar resolvidas "de uma vez por todas", pode tirar daí o sentido.

- Mas com certeza que... se derrotarmos definitivamente os Pan-Asiáticos...

- É aí que você se engana. - A tensão nervosa em que se encontrava era bem visível nos modos bruscos com que respondeu. - Arranjámos esta linda brincadeira por pensarmos sempre que podíamos resolver as coisas de uma vez por todas. Assinámos o Pacto de Não-Ingerência com os Asiáticos e montámos as nossas principais defesas na costa do Atlântico... E eles vieram pelo Pólo Norte!

"Tínhamos obrigação de o ter adivinhado; a história está cheia de exemplos semelhantes. A velha República Francesa tentou suspender a evolução dos acontecimentos com o Tratado de Versalhes. Quando viram que isso não resultara, construíram a Linha Maginot e puseram-se a dormir atrás dela. Aonde é que isso os conduziu? À derrota total!

"A vida é um processo dinâmico, e não podemos torná-la estática. Essa coisa que vem nos contos de fadas, "e todos viveram felizes para todo o sempre", não passa de uma estu... - E foi subitamente interrompido pelo soar de uma campainha e pela luz vermelha que se acendeu no botão das emergências.

No visor do vídeofone surgiu o rosto do oficial de serviço à sala de comunicações:

- Major Ardmore!

Em sua substituição apareceu, repentinamente, a face de Frank Mitsui, alterada por uma expressão de pânico:

- Major! - exclamou, aflito. - O coronel Calhoun... enlouqueceu!

- Calma, homem, calma! Que aconteceu?

- Conseguiu iludir a vigilância... subiu lá acima ao templo. Pensa que é o deus Mota em pessoa!

 

Ardmore cortou a ligação com Frank, contactando directamente o oficial das comunicações:

- Passe-me imediatamente ao comando do painel do altar principal... Rápido!

Quando a ligação foi estabelecida, não foi o rosto do operador de serviço que viu. Em sua substituição encontrava-se Calhoun, inclinado sobre o quadro dos instrumentos de controlo. A seu lado, sobre uma cadeira e com a cabeça de lado, via-se o operador, inanimado. Ardmore cortou imediatamente a ligação e correu para a porta.

Thomas e Brooks seguiram rapidamente atrás dele, deixando a ordenança desesperada, na retaguarda. Os três meteram-se no elevador, acelerando ao máximo a sua ascensão até à zona superior do templo. Saíram num ponto que se encontrava a cerca de cem metros de distância do altar.

- Encarreguei Frank de vigiá-lo - tentou Thomas dizer, quando, de repente, Calhoun levantou a cabeça por detrás do altar.

- Não se aproximem!

Assim fizeram. Brooks sussurrou:

- Ele tem o projector principal apontado para nós. Cuidado, major!

- Já o percebi - assegurou-lhe Ardmore, falando pelo canto da boca. E, aclarando a voz disse:

- Coronel Calhoun!

- Eu sou o grande deus Mota. Veja como se dirige à minha pessoa!

- Sim, com certeza, deus Mota. Mas permiti que estes vossos servos esclareçam uma dúvida que trazem nos espíritos... Não é o coronel Calhoun um dos vossos atributos?

Calhoun pareceu reflectir na pergunta.

- De vez em quando - respondeu finalmente-, de vez em quando penso que é. Sim, é.

- Então desejo falar com o coronel Calhoun. - E Ardmore adiantou-se mais alguns passos.

- Fique onde está! - Calhoun encontrava-se rigidamente inclinado sobre o projector. - Os meus raios estão ligados para os brancos... Tomem cuidado!

- Atenção, chefe - segredou Thomas -, que ele pode fazer que tudo isto vá pelos ares, com aquela coisa.

- Sei isso perfeitamente! - respondeu Ardmore inaudivelmente, principiando a utilizar o mesmo tipo de linguagem ao dirigir-se a Calhoun.

Mas algo desviara a atenção deste. Viram-no virar a cabeça e fazer girar rapidamente o projector, manobrando os comandos com ambas as mãos. Ergueu a cabeça quase imediatamente, pareceu fazer um reajustamento no projector e mexer novamente nos mecanismos de controlo. Quase simultaneamente, viram um pesado corpo atingi-lo; caiu para trás do altar, desaparecendo do campo visual dos três homens.

Foram encontrá-lo caído na plataforma do altar, tentando libertar-se. Mas tinha os braços e as pernas bem presos sob o peso do bem entroncado e moreno... Frank Mitsui.

Os olhos deste pareciam de porcelana e mostravam-se sem vida, tendo todos os músculos do corpo completamente rígidos.

Foram precisos quatro homens para meter Calhoun numa camisa de forças e carregá-lo para a enfermaria.

- Penso que a coisa se passou do seguinte modo - disse Thomas, enquanto observava a operação de remoção do louco. - O Dr. Calhoun tinha o projector regulado para matar os Brancos. O primeiro raio não afectou Frank e ele teve de fazer uma pausa para verificar o controlo. Foi isso que nos salvou.

- Sim... mas não aconteceu o mesmo a Frank.

- Bem... vocês sabem a história dele. O segundo raio deve tê-lo atingido em cheio quando ainda ia no ar. - Sentiram como estavam os braços dele? Ficaram instantaneamente coagulados!

Mas não tinham tempo para estar a tecer considerações sobre o fim da curta e trágica vida de Mitsui; o tempo estava a passar. Ardmore e o resto das pessoas apressaram-se a regressar ao gabinete daquele, onde encontraram Kendig, o chefe do seu grupo de apoio, a analisar calmamente a série de relatórios. Ardmore pediu-lhe que fizesse um rápido resumo da situação.

- Houve uma alteração, major: eles tentaram fazer deflagrar uma bomba atômica sobre o templo de Nashville. Erraram por pouco, mas o engenho caiu na zona sul da cidade, que ficou destruída. Já determinou a hora zero? Já várias dioceses o perguntaram.

- Ainda não, mas já não falta muito para ela. Se não tiver mais nenhuma informação para dar-me, vou transmitir-lhes imediatamente as instruções finais através do circuito "A".

- Não, senhor, pode avançar à vontade.

Quando informaram Ardmore de que o circuito "A" estava pronto a entrar em funcionamento, este aclarou a voz. De repente sentia-se nervoso.

- Senhores, dentro de vinte minutos passaremos à acção - principiou. - E quero que, juntos, façamos a revisão dos pontos essenciais do plano estabelecido.

Deu início à referida revisão: os doze helicópteros destinavam-se cada um deles a uma das doze maiores cidades, que era o mesmo que dizer que iriam para os doze principais pontos de concentração do poderio militar pan-asiático. O ataque dos helicópteros constituiria sinal para se desencadear o ataque por terra nas mesmas áreas.

Todos os helicópteros, com excepção de um, se encontravam já, na altura em que Ardmore principiara a falar, bem dissimulados na estratosfera, por cima dos respectivos objectivos.

Os pesados projectores montados em todos eles deviam ser manobrados de modo a infligir o maior dano possível nos objectivos militares situados na superfície do continente americano, nomeadamente nos quartéis e campos de aviação. Os sacerdotes, tornados quase invulneráveis com os seus equipamentos, iriam, por sua vez, apoiar o trabalho de destruição, o mesmo acontecendo com os projectores dos templos. As "tropas", compostas pelos elementos das congregações, avançariam sobre o inimigo.

- Digam-lhes que, se tiverem dúvidas, atirem primeiro e perguntem depois. Não fiquem à espera de lhes ver o branco dos olhos. As armas de base podem ser activadas milhares de vezes sem precisar de ser recarregadas, e não há possibilidade de ferir nenhum homem branco com elas. Atirem sobre tudo quanto se mova!

"E diga-lhes também - acrescentou - que não fiquem alarmados se lhes deparar alguma coisa esquisita. Se a coisa parecer impossível, podem ficar descansados, que a coisa é da responsabilidade de algum dos nossos rapazes; somos especialistas em fazer milagres!

"É tudo. Boa caçada!

A sua última recomendação dirigiu-se a Wilkie, Graham, Sheer e Downer, que tinham a seu cargo o desempenho de uma tarefa especial. Wilkie estivera a trabalhar em alguns efeitos especiais, com a colaboração artística de Graham. A concretização da referida tarefa em campo de batalha necessitava da participação de quatro elementos, mas não fazia parte do plano normal de ataque. O próprio Wilkie não sabia muito bem como a coisa funcionaria, mas Ardmore destinara-lhes um helicóptero para seu uso exclusivo e dissera-lhes que procedessem como entendessem.

Ardmore, enquanto transmitira estas recomendações, estivera a ser vestido com os seus trajes sacerdotais. Ele próprio colocou o turbante na cabeça, verificou se o seu transmissor individual estava ligado à sala de comunicações e despediu-se de Kendig e Thomas. Reparou que Thomas tinha uma expressão estranha e sentiu-se corar.

- Você também quer ir, não é verdade, Jeff? Thomas não respondeu. Ardmore acrescentou:

- Claro... sou um monstro. Sei isso. Mas apenas um de nós pode ir a esta festa, e tenho de ser eu!

- O chefe está enganado: até nem gosto de matar.

- Ah, é? Também não sei muito bem se gosto se não. Seja como for, vou lá para fora acabar o que Frank Mitsui deixou a meio. - Apertou a mão aos homens e partiu.

Thomas deu sinal de execução do plano, antes de Ardmore chegar á cidade que constituía o principal reduto pan-asiático. Depois de os combates já terem principiado, o piloto do helicóptero deixou Ardmore no terraço do templo, depois do que partiu para executar a tarefa que lhe estava destinada.

Ardmore olhou em redor. As cercanias mais próximas do templo estavam calmas; o grande projector do templo encarregara-se de zelar para que isso acontecesse. Quando ia a aterrar, vira um cruzador aéreo pan-asiático esmagar-se de encontro ao solo, mas a velocidade do pequeno helicóptero não lhe permitira ver donde partira o ataque. Entrou no templo.

Parecia deserto. Pouco depois encontrou um homem que estava junto a uma camioneta que fora guardada no interior do próprio templo. Ao avistá-lo, o homem foi ter com ele e apresentou-se:

- Sou o sargento Bryan, senhor. O sacerdote, isto é, o tenente Rogers, disse-me que ficasse aqui à sua espera.

- Muito bem. Então... vamos. - E subiu para o carro.

Bryan levou os pequenos dedos aos lábios e assobiou fortemente.

- Joe! - gritou, por cima do altar espreitou a cabeça de um homem. - Vamos embora, Joe.

A cabeça desapareceu; as grandes portas do templo abriram-se. Bryan subiu para junto de Ardmore e perguntou:

- Para onde?

- Veja se me descobre um sítio onde a coisa esteja mais acesa... ou seja, onde haja pan-asiáticos, montes deles.

- O que vai dar ao mesmo.

A viatura desceu trepidantemente a escadaria do templo e depois, virando à direita, ganhou velocidade.

A rua ia dar a uma pequena praça circular plantada de arbustos. Por detrás destes, camuflados pela ramagem, encontravam-se quatro ou cinco figuras, e, quando o carro se aproximou, uma delas deixou-se cair sobre o solo. Enquanto o carro abrandava, Ardmore ouviu o ping característico das pistolas de raios vórtice e viu um segundo vulto dobrar-se e cair igualmente.

- Quem atirou encontra-se ali naquele edifício - gritou-lhe Bryan. Regulou o seu bastão e varreu o prédio de alto a baixo com o raio mortal. O ruído característico parou. Da porta do referido edifício, porta que ainda não fora atingida pelo raio, saiu um pan-asiático que se dirigiu para o meio da rua a correr. Ardmore suspendeu o raio e fez incidir um outro raio, mais fino e luminoso, sobre o pan-asiático. Quando este foi atingido, ouviu-se um pequeno estrondo, e o homem desapareceu. No seu lugar ficou uma grande nuvem oleosa que depressa se dissolveu no ar.

- Caramba! Que coisa era aquela? - perguntou Bryan.

- Uma explosão coloidal. Libertei a superfície de contenção das células do corpo dele. Temos estado a guardar esta arma para o dia de hoje.

- Mas que foi que o fez explodir?

- A pressão das suas células. Podem atingir várias centenas de quilos. Mas continuemos.

Nos quarteirões seguintes apenas se viam corpos espalhados; apesar de tudo, Ardmore manteve o projector ligado, varrendo sistematicamente todos os edifícios por onde iam passando. Aproveitou as tréguas para fazer uma ligação à sede.

- Já chegaram algumas notícias, Jeff?

- Nada de especial por enquanto, chefe. Ainda é demasiado cedo.

Antes que Ardmore se desse conta para onde Bryan o levava, desembocaram num vasto espaço aberto. Era o pátio da Universidade Estatal, situada na extremidade da cidade, então transformada em quartel do exército imperial. Os campos destinados à ginástica e os que eram utilizados para o golfe tinham sido adaptados para servir de aeroporto.

Aí deu-se conta, pela primeira vez e com grande mágoa, de quão diminuto era o número de americanos que armara para destruir os Pan-Asiáticos.Parecia terem organizado uma estreita linha de assalto á direita; Ardmore podia ver os progressos que estavam a ser feitos em relação aos Pan-Asiáticos. Mas estes eram aos milhares, número suficiente para subjugar, apenas pela sua quantidade, os comparativamente escassos americanos. Raios, por que diabo não tinha o helicóptero encarregado de limpar aquele local cumprido a sua missão? Teria tido alguma avaria?

Chegou à conclusão de que os tripulantes do helicóptero deviam ter estado tão atarefados com as manobras do mesmo que não tinham tido possibilidades de arrasar as casernas. Dava-se conta, naquele momento, de que teria sido muito mais eficaz desenvolverem o ataque numa cidade de cada vez, utilizando todas as unidades de transporte disponíveis, em simultâneo, dado que os Pan-Asiáticos tinham deixado de poder recorrer á rádio para comunicar entre si, o que teria permitido levar a bom termo um tipo de acção desse género. Seria já demasiado tarde para alterarem os planos? Sim: as cartas estavam lançadas, a batalha desenrolava-se já em todo o país. Havia que prossegui-la a todo o custo.

Começara a utilizar o seu bastão, numa tentativa de acelerar os acontecimentos. Irrompeu no meio das formações de pan-asiáticos, manobrando o bastão na sua potência máxima e fazendo uma quantidade considerável de vítimas. Decidiu então alterar a sua táctica: começar a utilizar as explosão coloidais. Era mais lento e complicado, mas o efeito que tinha sobre a moral do inimigo trazia muito mais vantagens.

Emitiu o raio-guia de modo a tornar as explosões muito mais misteriosas, e passou a utilizar um pequeno orifício do cubo do seu bastão para localizar as vítimas. Pronto! Um dos amarelos desvaneceu-se em fumo! Tinha-os agora a todos debaixo de mira.

Dois! Três! Quatro. Repetiu a operação mais de uma dúzia de vezes.

Aquilo era mais do que os orientais conseguiam aguentar. Eram soldados corajosos e experimentados, mas não podiam combater aquilo que não compreendiam. Entraram em pânico e fugiram de volta aos aquartelamentos. Ardmore ouviu os brados de saudação dos a americanos espalhados nas imediações, os quais se apressaram a perseguir os espavoridos asiáticos.

Ardmore ligou novamente à sede:

- Circuito "A"!

Alguns segundos mais tarde transmitiram-lhe:

- Está em ligação.

- Atenção a todos os oficiais! Utilizem o mais possível a explosão coloidal. Assusta-os terrivelmente! - Voltou a repetir a memsagem e desligou o circuito.

Ordenou a Bryan que se aproximasse mais dos edifícios. Este impulsionou a viatura para a frente, dando a volta a uma curva e prosseguindo a sua marcha por entre as árvores que por ali se encontravam. De repente sentiram uma tremenda explosão; o carro foi atirado ao ar, a uma altura de quase um metro, e depois veio estatelar-se no chão, ficando de lado. Ardmore recompôs-se rapidamente e tentou erguer-se. Foi então que se deu conta de que, fosse como fosse, conseguira não largar o bastão.

Tentou sair, mas a porta do seu lado ficara empenada. Desintegrou-a com o bastão e saiu para o exterior. Olhando para Bryan, perguntou-lhe:

- Está ferido?

- Não é nada de especial. - Bryan tentou recompor-se. - Acho que tenho a clavícula esquerda partida.

- Vamos... agarre na minha mão. Consegue sair? Vou ter de recorrer à ajuda do bastão. - Depois de alguns esforços, conseguiu tirá-lo de dentro da viatura. - Vou ter de deixá-lo. Tem a sua arma de base consigo?

- Sim, senhor.

- Muito bem. Boa sorte.

Enquanto se afastava, Ardmore de relance olhou para a cratera escavada no solo. Ainda bem, pensou, que conservara o escudo de protecção ligado.

Um número considerável de homens movia-se cautelosamente na direcção dos edifícios, alvejando-os à medida que progrediam. Ardmore foi alvejado por duas vezes pelos homens a quem tinham sido dadas instruções para atirar primeiro e perguntar depois quem era. Ótimos rapazes! Antes de mais nada, atiravam sobre tudo o que se movia.

Da extremidade do campo universitário aproximava-se um helicóptero pan-asiático. Deixava atrás de si um rasto de fumo amarelo muito espesso. Gás! Estavam a gasear as suas próprias tropas, de modo a poderem matar simultaneamente meia dúzia de americanos. A densa névoa assentava lentamente no solo, rolando na sua direcção. Deu-se subitamente conta de que aquele ataque representava um sério perigo tanto para si como para os seus homens. O escudo de protecção era pouco eficaz contra os gases, visto ser indispensável permitir que o ar se filtrasse através do mesmo.

Apesar de ver que o seu fim se aproximava, decidiu dar conta do helicóptero antes de cair no seu posto. O veiculo começou a balançar terrivelmente e veio esmagar-se de encontro ao solo, mesmo antes de ter conseguido atingi-lo. Afinal, o helicóptero designado para cobrir aquela área não fora posto fora de acção: era óptimo! Entretanto, a cortina de gás aproximava-se. Conseguiria correr o suficiente para contorná-la? Não. Talvez conseguisse suspender a respiração e atravessá-la a correr, confiando à protecção do escudo qualquer outro perigo que pudesse surgir. Mas o sucesso da operação pareceu-lhe muito duvidoso.

Mas, subitamente, um recesso inconsciente do seu cérebro forneceu-lhe a solução: transmutação. Alguns segundos mais tarde, Ardmore fazia o seu bastão emitir um cone de radiação que atravessou a nuvem mortífera. Movimentou o cone, fazendo-o incidir em toda a nuvem, como se de um jacto de água se tratasse, e as partículas que compunham o nevoeiro transformaram-se em vivificante oxigénio.

- Jeff!

- Pronto, chefe.

- Tiveram algum problema com o gás?

- Não foi nada fácil. Em...

- Não interessa. Transmita o seguinte, através do circuito "A": "Regulem o bastão para..." - E prosseguiu a descrição do processo através do qual era possível combater aquela arma intangível.

O helicóptero de serviço na área surgiu subitamente, vindo do alto, começando a baixar sobre as casernas e percorrendo-as na totalidade. A Universidade ficou subitamente muito silenciosa, o que era bom sinal; tudo indicava que o piloto estivera demasiado atarefado na batalha, o que fez Ardmore sentir-se subitamente só, acreditando que perdera uma boa parte da mesma batalha enquanto lutava contra a nuvem de gás. Olhou em redor, à procura de um meio de transporte que lhe permitisse dar uma volta pelas várias frentes e verificar como se estava a desenrolar o combate no resto da cidade. Pensou para consigo que o problema daquela maldita batalha estava na sua ausência de coerência; lutava-se em todos os lados e ao mesmo tempo. Não havia nada a fazer contra isso; era uma conseqüência da própria essência do problema.

- Chefe? - Era Thomas a chamar.

- Diga, Jeff.

- Wilkie dirige-se ao seu encontro.

- Óptimo. Ele teve alguma sorte?

- Sim, mas espere até vê-lo! Tive uma vaga idéia do que se tratava quando recebi a transmissão da Cidade de Cansas. Por agora é tudo.

- O.K. - E Ardmore continuou a tentar ver se arranjava um meio de transporte.

Queria estar perto de pan-asiáticos, mas de pan-asiáticos vivos, quando Wilkie chegasse. Junto de uma esquina que ficava ali perto, viu um montículo abandonado. Aproximou-se dele.

Descobriu grande quantidade de pan-asiáticos perto do palácio - e a batalha não estava a correr muito bem para o lado dos Americanos. Começou imediatamente a trabalhar com o seu bastão e encontrava-se muito ocupado a fazer explodir os inimigos camuflados nas redondezas quando Wilkie apareceu.

Era enorme, monstruoso, uma figura de Gargântua de um negro retinto - media mais de trezentos metros e aproximava-se por entre edifícios, com os pés enchendo as ruas por onde passava. Dava idéia de que o Empire State Building fora dar uma volta - era a sombra tridimensional, gigantesca, de um sacerdote de Mota munido de todas suas vestimentas e equipamentos.

Tinha voz.

Tinha uma voz que soava trovejante, perfeitamente audível e distinta em muitos quilómetros de distância:

- Americanos, avançai! Chegou o dia da libertação! O Discípulo chegou! Erguei-vos e esmagai os vossos opressores!

Ardmore admirou-se de como fora possível produzir um som tão potente e tentou, em vão, descobrir donde estava a imagem a ser projectada.

A voz começou então a falar em língua pan-asiática. Ardmore não conseguia entender as palavras, mas apercebia-se do sentido geral que estava a ser dito. Downer estava a dizer aos mestres guerreiros que o espírito da vingança se estava a abater sobre eles e que todos aqueles que desejassem salvar as suas amarelas peles deviam, sabiamente retirar-se de imediato. Dizia-lhes tudo isto, mas com um ênfase muito maior e uma atenção muito rigorosa em relação aos pormenores, demonstrando um arguto conhecimento das fraquezas psicológicas do inimigo.

A enorme e monstruosa pseudocriatura deteve-se no parque defronte do palácio e, inclinando-se, tocou com um dedo gigantesco num pan-asiático que fugia. Este desapareceu. Endireitando-se, dirigiu novamente a palavra aos Pan-Asiáticos, mas já não havia quaisquer pan-asiáticos à vista.

Os recontros prosseguiram esporadicamente durante mais algumas horas, mas já não se podia dar-lhes o nome de batalha; era então mais uma exterminação do que outra coisa. Alguns dos orientais renderam-se, muitos morreram às suas próprias mãos e a maior parte morreu às mãos daqueles que tinham sido seus escravos. Na altura em que Thomas fazia a Ardmore um relatório sobre o progresso da reconquista do território, foi interrompido por um oficial das comunicações:

- Tem aqui uma chamada urgente do sacerdote da capital, senhor.

- Estabeleça a ligação.

Ouviu-se uma segunda voz dizer:

- Major Ardmore?

- Sim, fale.

- Capituramos o Real Príncipe...

- Não me diga!

- Exacto, senhor. Solicito permissão para executá-lo.

- Não!

- Que disse, senhor?

- Não! Ouviu perfeitamente o que eu disse. Vou vê-lo aí à sede. Agora veja se não deixa que lhe aconteça alguma coisa!

Ardmore ainda teve tempo de barbear-se e de mudar de uniforme antes de ordenar que trouxessem o Real Príncipe à sua presença. Quando, finalmente, viu o líder pan-asiático de pé á sua frente, disse, dispensando quaisquer cerimónias:

- Todos aqueles que sobreviverem serão reunidos e embarcados de volta à terra donde vieram.

- Sois muito generoso.

- Penso que já se deu conta de que foi vencido por uma ciência que a vossa cultura não conseguiu suplantar. Poderia ter-vos aniquilado em qualquer altura, mesmo até ao último momento.

O oriental permaneceu impassível. Ardmore desejava fervorosamente que toda aquela calma fosse apenas superficial. Prosseguiu:

- Aquilo que eu disse em relação ao seu povo não se aplica a si. Vou mantê-lo aqui preso, como um criminoso vulgar.

O príncipe ergueu as sobrancelhas:

- Por ter feito a guerra?

- Não... Se fosse só por esse motivo, podia ser que escapasse. Foi por causa do assassínio em massa que ordenou em território dos Estados Unidos... pela chamada lição "educacional". Será julgado num tribunal como qualquer criminoso vulgar e, desconfio bem... pendurado pelo pescoço até morrer!

"É tudo. Levem-no.

- Só um momento, por favor.

- Que deseja?

- Recorda-se do problema de xadrez que viu no meu palácio?

- Que tem o problema?

- Poderia dizer-me qual era a tal solução de quatro jogadas?

- Oh, isso. - Ardmore desatou a rir a bandeiras despregadas. - Vocês acreditam em tudo quanto se vos diz! Não havia solução nenhuma; eu estava apenas a fazer bluff.

Numa fracção de segundo, Ardmore teve a nítida sensação de que o príncipe perdera o seu autodomínio.

Nunca chegou a ser julgado. Encontraram-no na manhã seguinte com a cabeça caída sobre o tabuleiro de xadrez, que entretanto pedira.

 

 

                                                                                Robert Anson Heinlein 

 

 

                      

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