Biblio VT
O Dia dos Milagres é uma viagem apaixonante aos últimos dias do regime filipino que haveria de baquear no golpe de Estado que daria início à dinastia de Bragança.
O autor centra a acção em Vila Viçosa, onde viviam os duques de Bragança, e conduz-nos pelos dias terríveis de ansiedade, vividos entre crenças e superstições, marcados por revoltas e sofrimento, num Portugal pobre e cansado, traumatizado pela tragédia de Alcácer Quibir, de onde espera que chegue o rei D. Sebastião.
Moita Flores cruza os vários ambientes da época. Desde o fatalismo supersticioso, à preparação cautelosa da conspiração que iria mudar o curso da História de Portugal. João de Bragança e Luísa de Gusmão são os protagonistas, a que associa figuras populares como o Laparduço, mercador de ervas milagrosas, e Efigénia Pé de Galinha, bruxa afamada.
O dia 1 de Dezembro de 1640 foi um momento único na História de Portugal. Uma data que foi desprezada, até deixou de ser feriado, decisão que enxovalha a memória portuguesa. Um punhado de fidalgos, apoiado pelo povo de Lisboa, enfrentou o mais poderoso império do mundo. E devolveu a dignidade a Portugal. São os preparativos dessa saga extraordinária que percorrem as páginas deste romance apaixonante, terno, para que a memória colectiva não esqueça aquilo que os novos servos do nosso tempo esqueceram, julgando Portugal do tamanho de um mero livro de contabilidade.
A VELHA BRUXA
Naquele tempo, a velha Efigénia Pé de Galinha não se chamava assim. Era jovem e rija de carnes. No rosto reluziam duas rosas nas bochechas, medradas ao sol alentejano. Peitos redondos, do tamanho das romãs, daquelas bem crestadas, que ela recolhia da Horta do Reguengo, no Paço Ducal. E tinha um par pernas elegantes e esguias. Uma potra esbelta, leve, que embasbacava de fome, ou de inveja, quem por ela passava.
Quando embarcou para África, no séquito do pequeno duque D. Teodósio II, não houve cavaleiro ou infante que não a cobiçasse, pronto a trocar o desejo da próxima batalha pelo prazer do seu corpo esbelto e sedutor. Valeu-lhe Gertrudes, cozinheira do palácio e responsável pelo grupo de criados que partia para servir o seu jovem senhor, olho e ouvido alerta, qual loba guardando as crias dos guerreiros mais bêbados e atrevidos.
Corria o Verão de 1578. As cigarras cantavam, em coro, pelos olivais e chegavam patos e rolas de arribação aos campos do Alentejo. Por essa altura, ainda respondia por Efigénia do Abegão. Apelido de homenagem ao pai, artesão com mãos de ouro, conhecido nas redondezas pela sua arte na feitura de rodas para carroças de trabalho com a mesma perfeição daquelas que burilava para os coches da Casa de Bragança. Conseguira, devido a este talento raro, ganhar as graças do senhor duque, pai de D. Teodósio I, e, aos dez anos, a sua única filha entrava para a criadagem da cozinha do Paço de Vila Viçosa.
Efigénia do Abegão cresceu entre caldeirões de guisado e amassaduras, despachada para fazer papas, que a Gertrudes lhe ensinara, paciente junto ao espeto que assava os javalis. E ria por tudo e por nada. Gargalhadas em harmonia com o cantarolar da fonte onde traçava à cintura os cântaros cheios de água.
Vila Viçosa, naquele tempo, era um povoado do tamanho de um punho, entalado entre o Castelo e o Paço Ducal dos Bragança, e o mundo de Efigénia era quase perfeito. Em Lisboa, havia um rei chamado Sebastião, que mandava em Portugal, e ali existia um duque, baptizado de João, que era o dono da terra adornada de conventos e de um Paço Episcopal, várias casas senhoriais, e ela, que pertencia ao povo, aprendera esta ordem natural das coisas e não se preocupava com o que quer que fosse. A não ser com a cozinha, onde servia, e temente no amor a Deus.
Conforme foi crescendo, cresceram os pretendentes. Efigénia conhecia os truques das abelhas quando as papoilas desabrocham, alegres, coalhando de vermelho as planícies em redor. Picam, sugam os melhores doces da flor e fogem. Por tal motivo, afastava os mocetões que zumbiam à sua volta, ainda que, nos últimos tempos, sentisse estranhas vibrações pelo corpo quando dava por algum eguariço ou almocreve a mirar-lhe gulosamente a cinta e os seios. Afastava-os com um sorriso ambíguo e eles ficavam na dúvida se a rapariga lhes dera um não ou, tão-só, uma promessa adiada.
Preferia namorar os rouxinóis que, noite após noite, gorjeavam cantigas de amigo entre a folhagem do esplendoroso sobreiro que se via da janela do seu quarto. E ao ouvi-los deixava-se ir nos sonhos que a embalavam e lhe traziam, montado num cavalo branco, um jovem príncipe encantado, que irradiava luz, coisa que não a espantava porque ele vinha sempre do lugar, lá longe, onde nascia o Sol. O jovem que surgia nas suas visões era belo, tão magnífico que merecia mesmo a pena sonhá-lo, vestia uma armadura que refulgia, de ouro, e os olhos brilhavam como duas enormes estrelas, daquelas que chegam nas noites mais claras de Agosto.
Sonhava assim, descuidada, até que os rouxinóis se calavam e a madrugada despontava, ali, para as bandas de Juromenha, anunciando a hora de regressar à cozinha, e acordava com essa fé. Um dia, daqueles em que o nevoeiro esconde o Sol, quando os homens são vultos e as árvores parecem fantasmas ressequidos, escutaria o galope do cavalo branco e, resplandecente de luz, surgiria o desejado amante, que a puxaria para a garupa, e partiriam pelas cumeadas da serra de Ossa até às praias onde começava o mar das caravelas. Então, ele despojá-la-ia das vestes, os seios de romã pertenceriam aos seus lábios quentes e Efigénia pressentia-lhe os dedos doces afagando-lhe o rosto e a pele, viagem infinita por um outro mar feito de beijos e ternura.
Nesse dia, fosse ele qual fosse, dizia-lhe o coração, o grande berço onde nascem os sonhos estava marcado na palma da mão como destino. Por tal crença prometera a Nossa Senhora da Conceição e ao seu Santo Filho dez terços de enfiada. E escutava, noite após noite, o vento e os rouxinóis, à espera do seu cavaleiro encantado, que se descobriria perante os seus olhos, vindo dos nevoeiros que se acomodavam nos vales da serra.
Foram os contos que lhe abriram as asas da imaginação, pois Efigénia não sabia ler nem escrever. À noite, em volta da lareira, em tempos mais invernosos, ou sentada no chão, quando o calor apertava, reunia-se a criadagem mais jovem no Pátio das Galinhas, no Paço Ducal, escutando o rabadão Ti Honório, que não resistia à pedinchice por uma história, daquelas antigas, mesmo que tivesse acontecido em reinos muitos distantes. E lá partiam pelos mares, serão após serão, fascinados com as lutas de Bartolomeu Dias, que afrontou os maiores gigantes e as tempestades que mandavam no cabo das Tormentas.
O valente marujo, desse Ti Honório as voltas que desse ao conto, acabava sempre por vencê-los, matando os monstros e domesticando os ventos para que, noutra história, Vasco da Gama chegasse à índia. Por vezes, renasciam os feitos de Nun'Alvares Pereira, pai fundador da Casa a que pertenciam, herói dos heróis, que pusera a estremecer de raiva e glória os campos de Aljubarrota.
O silêncio encantado com que a criadagem mais jovem escutava os contos era como a ingenuidade de um cachorrinho acabado de nascer. Sobretudo, quando as histórias metiam monstros e milagres, como aquela do nosso primeiro rei D. Afonso, antes do confronto de Ourique com os sarracenos.
O pai fundador do Reino, silencioso, do cimo da montada e à frente de quinhentos homens, observava o horizonte onde não existiam prados, nem árvores, nem silvados. Tudo o que a vista alcançava eram infiéis enraivecidos. Nem se conseguia contá-los. Noutras vezes, o rabadão metia mais cavaleiros ao lado de Afonso I e reduzia as tropas inimigas, embora fossem sempre em muito maior número. Aquilo que empolgava os jovens criados era o momento sagrado. O Matamouros, antes de qualquer batalha, erguia sempre a espada ao céu numa breve oração. E naquele dia, Dia de Santiago, por entre as pequenas nuvens dispersas, surgiu Cristo, rodeado de anjos, abrindo as vestes para lhe mostrar as cinco chagas. E sorria para o exército cristão, indicando-lhe o caminho da batalha. Tão extraordinário milagre multiplicara a fé das tropas portuguesas e o temor, até à debandada, dos inimigos. Corriam os infiéis assustados pelos campos de Ourique, procurando resguardo do ataque fulminante que Afonso Henriques desencadeara, caindo mortos aqueles que resistiam ou que mais retardavam. Nos céus, Cristo iluminava o primeiro rei dos portugueses.
Terminada a batalha, os anjos dançavam e um deles, como se fosse um raio de uma trovoada, voou na direcção do campo de Ourique, colocando na cabeça de Afonso uma coroa de luz. Todos os presentes ajoelharam e o reconheceram como rei, ungido pelas mãos de Deus. Nesse dia milagroso, nasceu o Reino de Portugal.
Efigénia deleitava-se ao som da voz de Ti Honório. Pouco importava a quantidade de guerreiros, se havia muitos ou poucos anjos em volta de Cristo. Ele falava e ela imaginava e via as temerosas aventuras que escorriam em contos no Pátio das Galinhas. Gozava as grandes vitórias e as extraordinárias viagens dos descobridores porque as sentia como suas, partilha de uma herança que ia pelo passado dentro, de pais para avós, destes para bisavós, como se fosse um caminho da memória antiga, um silêncio de muitos mortos e de tantas vidas, porque ela era um pedaço de tudo o que já acontecera.
Chorava de emoção com os amores impossíveis de Tristão e Isolda ou de Pedro e Inês. O rabadão empolgava-se, arrebatando a assistência, quando embarcava até Fez, nos confins de uma África longínqua, para narrar as desventuras do infante Fernando, mártir em defesa da cristandade, as aventuras de Gil Eanes e a bravura de Camões, que perdera um olho para salvar o seu livro.
Tinha a certeza de que o seu cavaleiro encantado habitava num desses contos e, de um deles, saltaria para a agarrar num abraço mágico que perduraria por todos os dias das suas vidas. Talvez fosse um dos valentes cavaleiros da Távola Redonda, conto que o Ti Honório começava sempre de maneira que a assustava: «Era uma vez, num reino muito distante, um feiticeiro chamado Merlin...», e Efigénia benzia-se três vezes, pois nem todas as palavras são boas de dizer ou de ouvir. E aquela soava a heresia, esconjurada pela Santa Madre Igreja, pois feitiçarias, bruxarias e outros pactos com o Anjo da Morte eram coisa proibida no Reino e pecado tão grave que abria, em vida de quem o cometesse, as portas do Inferno. Mas também poderia ser um gentil-homem daquela nostálgica Ala dos Namorados que servira o Mestre de Avis, como os anjos servem Nosso Senhor.
Outras histórias de encantar animavam o serão. Mais próximas no tempo e, portanto, com menos possibilidades de inventar. Como aquela do velho duque D. Jaime, antigo duque de Bragança, negra e brutal, quase sussurrada, para que a sua alma penada, perdida nos corredores e câmaras do Paço, não viesse apoquentar quem a contava e quem a escutava.
Desde cedo que a morte o acompanhava. Encontrou-a naquele dia, em Évora, quando viu o rei D. João II assassinar o duque, Fernando de Bragança, pai de D. Jaime. Da morte fugiu para Espanha sem perceber por que razão um rei apunhalava um dos seus melhores servidores, mas ela acompanhou-o. Escondeu-se num pedaço da sua alma, cinzenta e fria, sempre à espera, quieta mas atenta, até que explodiu mais uma vez, agora pelas mãos de quem dela julgara fugir. D. Jaime tomara por esposa, em contrato político, Leonor de Mendonza, nobre da mais alta estirpe, sangue dos Medina Sidónia, senhores da Andaluzia, parentes de reis e de rainhas, generais do rei de Espanha. Leonor pariu dois filhos do duque de Bragança. Um deles chamava-se Teodósio. Mais tarde seria o pai de D. João, que agora era seu senhor e amo. E já não era conto, pois que a mãe de Ti Honório assistira a tudo, ali mesmo ao lado do Pátio das Galinhas, na imensa cozinha do Paço.
A duquesa Leonor dava ordens à criadagem. Atrás de si, seguiam os seus serviçais de confiança. Um deles era António Alcoforado, rapaz vindo do Sul, moreno e espadaúdo, quando pela porta dos fundos entra D. Jaime, punhal na mão, com um escravo a seu lado e grita:
– Adultera! Pagarás com sangue a traição aos teus juramentos!
O espanto silenciou o imenso espaço. As mulheres entreolhavam-se, os homens, desorientados, procuravam saber quem era a pecadora. Leonor, boquiaberta, olhava o marido sem perceber a quem ele dirigia tão terrível ameaça. Apenas se ouvia o crepitar das lareiras nos fornos e o medo ocupou a imensa cozinha ducal.
Em três passos, D. Jaime ficou frente à esposa e esticou o punhal, cravando-lho no baixo-ventre, lascivo e possessivo. Nela havia espanto e dor quando o abraçou, submissa, duquesa-serva do seu senhor, que dispusera da sua vida e, agora, da sua morte. Ele rugiu de cólera e, amparando-a com o braço esquerdo, soltou a arma para a enterrar, outra vez, no peito da mulher e o abraço esmoreceu. Escorregou pelo corpo do marido sem um gemido, espirrando sangue e vida, até que caiu, devagar, voluptuosa, entre os caldeirões das águas para os banhos. Um silêncio de morte cruzava a atmosfera. Alguns caíram de joelhos, muitos em lágrimas, todos choravam por dentro, aterrados, vendo a morte na ponta do punhal.
D. Jaime, ensanguentado, lançou um olhar breve à duquesa dobrada a seus pés e ordenou ao escravo:
– Mata o culpado!
Os homens, ainda não refeitos do que acabavam de ver, encolheram-se sem saber qual deles era a vítima de tal fúria, e o gesto foi tão rápido que descobriram o condenado quando ele caiu com estrondo, varado no coração. Alcoforado, o leal escudeiro, era, depois de morto, reconhecido como o amante da duquesa. Para espanto geral, pois jamais passara pela cabeça, ou pelo testemunho de alguém, semelhante ofensa à honra do senhor duque.
Nesta altura da história, Ti Honório pigarreava e fazia um estudado silêncio para rematar:
– Ainda hoje ninguém sabe essa verdade embaraçosa. Talvez o senhor D. Jaime apenas estivesse farto dela, pois casara por contrato e, como veio a descobrir-se, estava enamorado da filha do alcaide de Mourão com quem voltaria a casar. Seja como for, o amor não se contrata – concluía, como se proferisse uma sentença.
Efigénia não sonhava com um cavaleiro assim nos seus sonhos. Felizmente que D. João, neto de D. Jaime e agora duque de Bragança, não tinha esses ódios pela senhora D. Catarina. Era austero mas respeitoso, e Efigénia ruborizava de vergonha à sua passagem. E diga-se para que não restem dúvidas. Não queria casar por contrato. O amor não se combina nem se escreve. Aprende-se e constrói-se. Pedra a pedra, sorriso a sorriso, de sobressalto em sobressalto, de carícia em carícia. E, tal como se aprende, também se pode destruir, na imensidão dos silêncios, na indiferença mais rude ou no desapego mais doloroso.
Era notório que a assistência feminina tomava o partido da infeliz Leonor, filha de príncipes de Espanha. Por mais que o contador amaciasse com explicações a atitude do matador, tal como o preço da honra, os deveres de submissão e lealdade da mulher ao marido, as humildes criadas rezavam pela desditosa duquesa, servida tão dramaticamente a um bruto.
Mal sabia Efigénia o que o futuro lhe destinava, pobre infeliz!
Começou a conhecê-lo no dia seguinte quando carregava lenha e viu D. Catarina a falar com Rosário, a cozinheira que comandava o pequeno exército que labutava na cozinha do palácio. Reparou que a duquesa estava inquieta e gesticulava, mas não ficou surpreendida. Havia já algumas semanas que D. João estava com febres que não o deixavam sair dos aposentos, sem forças sequer para montar um cavalo, tão enfraquecido e ruim de saúde que os mais timoratos rezavam pela sua alma. Nunca se sabia do que alguém padecia quando ficava assim tão alquebrado. Bem poderia ser coisa que estava acima do saber dos médicos e curandeiros afamados. Tal como vinha escrito na Bíblia, não raras vezes Deus enviara sofrimento aos seus melhores filhos para testar a sua fé. Talvez as febres do duque D. João fossem idêntica provação à que Ele enviou a Job para, depois de tanto sofrimento, o recolher no Seu colo divino. Como repetia muitas vezes o padre Cansado, secretário do senhor bispo, os desígnios do Senhor são um mistério!
Contudo, a enfermidade poderia de ser de causa bem mais natural. Efigénia não se admirava de que fosse praga rogada, quando a situação era discutida entre a D. Rosário e a Gertrudes. Um quebranto, um mau-olhado feito a preceito, um poderoso trabalho de bruxedo ou, até mesmo, uma vingança directa do Maligno por saber o senhor duque tão devoto a Deus e tão dedicado à Santa Madre Igreja. A verdade é que, desde Maio, altura em que se recolhem os fenos, as febres o abrasavam. Nos primeiros tempos, ainda resistira, cavalgando para a Tapada, com outros fidalgos amigos, à caça de javalis e de gamos. Até que um dia partiu e, passado poucas horas, regressava ao Paço, apoiado em dois caçadores, sem forças que a enfermidade lhe roubara.
Ficou mais alerta quando cortava espinafres e reparou que Rosário discutia em surdina com Gertrudes, que, de mãos na cabeça, se agitava em estremeções de corpo e alma, debulhada em lágrimas e atarantada como as galinhas quando entrava raposa no galinheiro. Ainda Efigénia não se recompusera de tal perturbação entre as duas mulheres e já Rosário, de dedo no ar, indicava este, aquele, o outro, entre os criados, e repetia os nomes para a pobre estarrecida. Até que apontou para ela e a rapariga esqueceu o que estava a fazer. Não! Não podia ser a doença do senhor D. João que inquietava a duquesa e, agora, punha a cozinha em alvoroço.
Que conversas estranhas seriam aquelas que tanto agitavam a senhora D. Catarina, que conferiram um ar ainda mais grave à Rosário, em alerta, como soldado em vigia numa guarita, que destrambelharam em lágrimas e soluços a Gertrudes, uma das suas principais ajudantes, e a levava a contar criados qual eguariço a contar cavalos?
A verdade é que nenhuma das mulheres desvendou o estranho mistério até que a noite chegou. Por mais que procurasse adivinhar o que de tão grave acontecera para quebrar daquela forma estranha a rotina dos dias, tudo fora em vão. Até se oferecera, numa hora mais calma, para ajudar a limpar castiçais no piso onde os duques estavam instalados, e o pouco que ouviu ainda a deixou mais inquieta. O abade do Convento dos Agostinhos viera saber do estado de saúde do enfermo e, na Sala das Virtudes, escutou, de fugida, algumas palavras que a senhora D. Catarina trocava com ele. E as palavras eram ásperas.
– Apetece-me ir a Lisboa e dizer a el-rei que o meu filho é uma criança. Tem dez anos. Dez anos! Isto é uma verdadeira loucura.
– O senhor duque sabe o que se passa?
Respondeu, ainda mais irritada.
– Não só sabe como sugeriu a troca por causa do seu estado de saúde.
– Ainda por cima, o menino D. Teodósio é pajem de Sua Majestade, duque de Barcelos e herdeiro directo desta nobre Casa de Bragança.
– Mas é uma criança! – repetiu a duquesa, numa voz que revelava grande angústia.
Efigénia não conseguiu ouvir mais nada sem se tornar indiscreta. Porém, tirara as suas conclusões. Toda a agitação da manhã não tinha nada a ver com o agravamento do estado de saúde do senhor duque. A matéria estava relacionada com o herdeiro D. Teodósio e qualquer coisa que, no Paço Real, não agradava à mãe.
Fosse o que fosse, não conseguia ligar essa apoquentação às preocupações das duas cozinheiras, contando criados, cenhos carregados donde, de vez em quando, escapava um soluço ou uma lágrima. Só ao final da noite a intriga se deslindou. Um a um, os criados assinalados foram chamados ao quarto de Rosário, ao lado da qual se sentava uma Gertrudes cabisbaixa, para lhes serem transmitidas as ordens.
Quando chegou a vez de Efigénia, ao saber finalmente o segredo, arregalou os olhos de espanto:
– África?! Vamos para África?
– El-rei D. Sebastião assim o ordenou. Faremos parte da equipagem do senhor duque.
O choque foi tal que contraditou a cozinheira.
– Mas o senhor duque está doente. Nem sai dos aposentos por causa das febres.
Foi então que recebeu a mais extraordinária das revelações, tão impensada quanto fantástica, digna de um dos contos de Ti Honório. Quem partia era o filho, D. Teodósio! Primogénito do duque doente, uma criança ainda rebento sem sinal de flor a despontar.
– D. Teodósio fez dez anos em Abril! – exclamou, incrédula, Efigénia, compreendendo as palavras indignadas que durante a tarde ouvira a D. Catarina.
– Não tens nada a ver com isso. Estás aqui para servir e não para perguntar – respondeu-lhe com rispidez e ordenou: – Trata das tuas coisas. A Gertrudes será a responsável pela cozinha e a ela obedecerás durante esta viagem. O senhor duque D. Teodósio esperava-vos em Lisboa.
Nessa noite não ouviu os rouxinóis e nem embarcou na sua caravela de sonhos. O Pátio das Galinhas ficou vazio de contos, pois Crisóstomo, filho de Ti Honório e pombeiro, também partia com outros moços e o velho rabadão ficara sem disposição.
A rapariga estava sobressaltada com o desencontro de emoções. A ideia de que partia para Lisboa inundava-lhe o coração de alegria. Ia encontrar-se com o mar! Esse mar tão profundo como os vales da serra de Ossa, que, diziam uns, era azul da cor do céu, embora mais carregado, e outros juravam que era verde, cintilante, como as esmeraldas da senhora duquesa. O chão das caravelas e das naus aproadas às terras do fim do mundo onde habitavam reis tão magníficos que o Preste João, embora poderoso, não passava de um pequeno senhor perante reinos extraordinários. Pelo menos era assim que contava o rabadão. Que África era o outro lado do Brasil, apenas separados por um oceano e onde tudo era diferente. Onde os burros que cruzavam os campos alentejanos se haviam transformado em camelos, que guardavam numa bossa água suficiente para atravessar qualquer deserto. Por lá abundavam riquezas e mistérios, montanhas mágicas que pariam ouro e pedras preciosas, terra tão fabulosa que mais parecia um conto de encantar.
Por outro lado, o coração mirrava de medo quando se lembrava de que ia para uma guerra. Uma batalha qualquer que ainda não fora vivida e, portanto, não podia ser contada no Pátio das Galinhas. Devia ser coisa ruim por mais nobre que fosse a sua arte. Sabia que os seus patrões, e toda a nobreza que os visitava, eram educados para esse terrível recontro com inimigos, onde se morria ou se regressava herói, carregado de glória, impante de imortalidade. A Casa de Bragança, a quem Efigénia devia obrigação, era uma galeria de guerreiros que escreveram a golpes de espada a história da mais importante dinastia de linhagens do Reino de Portugal. Ainda não havia muitos anos que o seu senhor, o duque D. João, partira para África, armado de seiscentos cavaleiros e mais de dois mil infantes, para devolver ao seu rei as terras e praças que os infiéis tinham usurpado. Nem o Paço Ducal chegava para acolher tanta honraria recebida. Tornara-se condestável, o general dos generais, o príncipe da guerra que D. Sebastião queria sempre a seu lado. E agora que África regressava, clamando justiça, marchava D. Teodósio, que já era duque de Barcelos antes de ter nascido, para honrar a memória e os heróis que a sua família oferecera aos reis de Portugal.
Efigénia ria e chorava. Contente e descontente. Ávida de conhecer o mar e as terras quentes de África, temerosa da guerra onde ia para ajudar a matar a fome dos exércitos. Nem sabia como se inventava comida para dar a tanta gente. Rosário apenas explicara que elas ficariam, com os servos de outras casas senhoriais, num acampamento montado na retaguarda da batalha para dar de comer à multidão de cavaleiros e infantes que iria bater-se contra o rei inimigo.
– Não tenhas medo. Nós vamos servir os senhores da guerra, mas não entramos nela – dissera-lhe Crisóstomo, o pombeiro.
Talvez o rapaz tivesse razão, porém, as lágrimas de despedida que o pai chorava quando a abraçou antes da partida, ficaram-lhe na memória como um mau augúrio e foi de pernas a tremer que saltou para a carroça que havia de a levar até Lisboa.
Efigénia não sabia que vivia num dos paraísos que Deus construiu para os homens. Vila Viçosa é um ninho de pardal donde nasce a tranquilidade serena do Alentejo. Um sossego inquieto, perturbado pelo ladrar dos cães e o uivo agudo de algum lobo mais próximo do povoado. Os contos do Ti Honório falavam de muitas guerras, porém, não tinham o odor do sangue nem os gemidos daqueles que estão a morrer. Nem a barafunda dos gritos de ódio, nem o tropel medonho da cavalaria investindo com brutalidade, nem o frenesi das espadas, o troar dos canhões, o medo e a morte reinando e decidindo sobre quem não vive e quem sobrevive. Os contos, aqueles que alimentavam os seus sonhos de menina, não falavam dos berros de dor que lhe chegavam do fragor da batalha. E dos uivos de guerra que assustariam todas as alcateias que habitavam entre o Tejo e os confins do Guadiana.
Do acampamento pouco se via do tumulto que envolvera os três reis nos campos de Alcácer Quibir. Do interior de uma nuvem levantada do chão, talvez fosse areia daquele deserto imenso, talvez fosse nevoeiro, embora o sol de Agosto reluzisse a pique e quente, chegavam sons bravios, que arrepiavam os serviçais e assustavam os animais. Mais pareciam ecos do Inferno ou do turbilhão de almas que se libertavam dos corpos esventrados, atropelando-se, a caminho do céu. Nada do que ali testemunhava tinha comparação com aquilo que imaginava nas suas noites de serão ou que sonhava ao escutar os rouxinóis a brincarem entre a folhagem do sobreiro.
A terra estremecia. De repente, viu um vulto que se aproximava saído daquela nuvem medonha onde os homens se matavam.
Era um cavalo que fugia espavorido, devidamente aparelhado, mas sem cavaleiro. Passou em louco galope pelo acampamento, onde se preparava o caldo que serviriam às tropas depois do combate, babando espuma, transpirando nervos, veloz, sem parar à voz fosse de quem fosse. Decerto que fugia da morte que lhe matara o cavaleiro. Mal deixara de o ver e, agora, regressavam num galope tresloucado mais dois, não, mais três cavalos sem dono. Afinal eram seis, mais três, agora mais nove, e já não sabia contar, pois corriam alvoroçados em todos os sentidos, e, desorientada, tremia tanto como eles, aterrada com a confusão de cascos e relinchos, até que um baio com uma estrela branca na testa se aproximou do grupo de serviçais, cada vez com o passo mais fraco, caindo de joelhos, sangrando, para morrer num suspiro profundo. Tinha o ventre rasgado e as vísceras espreitavam pelo ferimento por onde se lhe escapara a vida. E a terra tremia como se nas suas entranhas estoirasse a maior e mais terrível das tempestades.
Alguns dos presentes correram para o animal ao grito de Crisóstomo.
– É carne! Vamos esquartejá-lo enquanto está quente.
Tapou o rosto com as mãos, debulhada em soluços. Não queria ver a chacina. E sem olhar não deixava de ver com os olhos da alma o olhar meigo e triste do cavalo que viera despedir-se dos homens.
O aterrador ruído que se libertava da nuvem de areia, ou de nevoeiro, era cada vez mais agudo, o estrondo das explosões rebentava nos ouvidos, o Sol queimava, o odor doce de muito sangue espraiando-se pela planície sufocava o ar e abrasava o peito. E o chão estrebuchava com medo.
Efigénia suplicava a Deus que terminasse aquele imenso trovão da batalha, rezava, tremente, a Nossa Senhora da Conceição que parassem os cavalos de correr sem cavaleiro, loucos que a enlouqueciam, implorava a São Bartolomeu dos Mártires que minguasse a força do Sol e devolvesse a paz àquele dia que nascera tão esperançoso e, agora, não passava da visão infernal da morte e da dor mais aguda. Implorava a Cristo e aos anjos de Ourique que surgissem nos céus, ajudando Sebastião e os seus fiéis guerreiros e, por fim, quando já não tinha mais divindades para invocar, gritou com as mãos apertando a cabeça, que parecia estoirar:
– Pail Ajuda-me, meu pai!
Porém, o Abegão não podia escutar a aflição da filha. No dia em que ela embarcou para África, um dor forte no peito, que muitos diziam ser da saudade, levou-o bem mais cedo para junto de Deus.
Foi, então, que Efigénia viu o primeiro soldado, replicado em miragem nas areias de Alcácer Quibir. Cambaleava. Cabisbaixo. Caiu e todos julgaram que estava morto. E mal o avistara, outra visão do Demónio passou à sua frente. Um cavalo negro, tão negro que brilhava, em transtornada correria, galopava na direcção do rio, levando consigo um cavaleiro despedaçado, preso nos estribos, pendurado, balouçando aos saltos terríveis do animal assustado.
Abraçou-se a Gertrudes e tremiam as duas de horror e dor.
– É a morte, D. Gertrudes. É a morte! – gritava Efigénia, transtornada.
– É a guerra, minha filha. É a guerra! – sussurrou a outra entre soluços.
Não tinha mais lágrimas para chorar. Estava seca de tanto pranto e medo. Perdida na imensidão do deserto, com as entranhas queimadas pelo horror, incapaz de pensar, correu ao rio que passava perto, julgando que, lavando-se, limpava o pesadelo que a transfigurava e foi aí que viu as águas do Inferno.
A ribeira de Mekasen, onde no dia anterior lavara panelas e se divertira, salpicando outras criadas que a acompanhavam na lide da cozinha, perdera-se. A água calma e cristalina da véspera, que permitia ver os peixinhos a nadarem entre as pedras, sumira-se. Pelo leito escorria um líquido avermelhado, como se o riacho sangrasse, despejado nas bandas onde ocorria a batalha escondida na nuvem medonha de areia ou nevoeiro.
O grito de horror morreu, de súbito, quando escutou muito próximo o tropel de cavalos e outros gritos que mais pareciam cães a ganir. Voltou-se, escondendo-se num arbusto. Aproximavam-se seis cavaleiros, em galope desenfreado. Estrebuchavam de ansiedade e suor. Reconheceu um deles, que encontrara na única vez que, pouco tempo antes, conseguira ver D. Sebastião.
– Aquele que está ao lado do nosso rei também é rei – dissera, naquela ocasião, o seu amigo Cristóvão.
Efigénia olhara-o, surpreendida.
– Rei? Mas tem vestes de mouro. Não é inimigo? – perguntou.
– Somos aliados contra outro rei. Lembra-te do que te digo. Se houver batalha, vai ficar conhecida pela batalha dos três reis.
Aquela conversa do pombeiro deixara-a confusa. Desde que soubera da expedição que estava convencida de que embarcava numa cruzada contra os infiéis e, de repente, um deles estava do lado dos cristãos, traindo a sua crença e, até, combatendo contra ela. Ou talvez, nestas coisas de batalhas, houvesse outros interesses necessários à produção de heróis e de glória, que depois se pendurava nas paredes dos palácios da nobreza.
Crisóstomo respondeu-lhe com uma risada que ela não entendeu.
– Qual fé, Efigénia, qual carapuça?! És parva? Isto é uma batalha pelo poder e mais nada. Quem ganhar, fica mais rico. Se houver glória, melhor, mas é riqueza que esta gente procura!
– Mas o nosso rei está aliado a outro, quer dizer que vamos ganhar – alvitrou ela.
Crisóstomo encolheu os ombros com descontracção.
– Ganhamos sempre. Ou não escutas os contos do Ti Honório?
Nem ouviu por inteiro o que o rapaz dizia. Achava que tinha sorte porque, de uma assentada, vira dois reis, coisa invulgar mesmo nas histórias de inventar.
– Como disseste que ele se chamava? – gritou a rapariga para se fazer ouvir por cima da multidão de cavaleiros que aclamava os dois aliados.
– Mulay Mohammed! Ou qualquer coisa parecida com isto.
– E o rei inimigo?
– É o Mulei Moluco.
– Moluco ou Maluco?
– Moluco! É o rei de Marrocos.
– Deve ser também maluco para se meter com dois reis assim – retorquiu, animada com a exaltação de fé que via entre as tropas, que os saudavam com brados guerreiros.
Estava fascinada com a imagem do rei Mohammed. O branco das vestes contrastava com a sua tez castanha, carregada, barba negra. Era garboso em cima do seu cavalo, rosto ao vento em ar de desafio como se não houvesse lugar para o medo naquele corpo elegante.
E, agora, eis que ele surgia envolvido em poeira, transfigurado, picando o animal para a ribeira de sangue, seguido por outros dos seus companheiros. Entraram pela margem em galope acelerado. Não percebia se eles fugiam ou apenas manobravam, trazendo a batalha para junto de si. Procurou descortinar se outros cavaleiros os seguiam, porém, do local onde se encontrava, junto à margem, apenas se via recortada contra o céu a nuvem que envolvia a batalha dos três reis.
Os animais entraram nas águas ensanguentadas e, estranhamente, começaram a cabriolar, a sacudir os donos, a relinchar de pânico, e os gritos dos homens transformaram-se em berros de angústia quando se desprenderam das cavalgaduras. Alguns agarraram-se às garupas, outros mergulhavam e voltavam à superfície daquela água de sangue, em aflição, e Mulay Mohammed só surgiu uma vez, com um estertor engasgado, para desaparecer definitivamente.
Atónita, Efigénia observava-os em dificuldades, ensarilhados na aflição do afogamento, e acreditou que o Anjo da Morte lhe estava a oferecer mais um pesadelo. Era grande o tormento de homens e cavalos, ora gritando pelo rei, ora fazendo esforços para chegarem à outra margem, e, para aumentar a confusão, na ribeira entraram mais dois cavalos desesperados, cujos guerreiros tinham caído na batalha. Era um turbilhão de animais que relinchavam, colidindo uns com os outros, provocando forte ondulação e uma chuva de salpicos de sangue.
Quando procurou com mais atenção perceber a confusão, apenas viu oito cavalos a subirem a margem oposta e dos homens nem sinal. Haviam sido engolidos pelo rio de sangue que brotava em Alcácer Quibir.
Efigénia caiu de joelhos, implorando a Deus que chegava de lhe mostrar tanto mal e tanto medo. Tanta aflição e tanto sangue. E pediu-Lhe por todos os anjos que a levasse já até ao seu cantinho doce, feito de contos e sonhos, nos campos de Vila Viçosa. É verdade que já não sabia se falava com Deus ou com o Diabo, pois o que os seus sentidos testemunhavam não podia ser obra de quem era adorado por ser a Misericórdia infinita e a paz de todos os céus. Nem a tragédia que acontecera na ribeira sangrenta, que salvava cavalos e matava os homens, poderia ser obra vinda do Criador de todas as coisas finitas e infinitas. Matar um rei numa leva de sangue era, forçosamente, uma coisa do Malvado apostado na humilhação dos crentes.
Tornou a correr para o acampamento e, agora, o campo transfigurara-se quase por artes mágicas. Os raios incandescentes do Sol tinham ganho tons vermelhos, cortando o ar em camadas de espelhos que cintilavam no horizonte, e multiplicavam-se os cadáveres de cavalos e de homens esventrados, sujos, em posições medonhas, que a morte é feia, ecoavam os gritos dos feridos, os gemidos dos moribundos. E não havia aves a pairarem nos céus.
Efigénia olhou em volta à procura dos seus amigos, no acampamento. Não encontrava ninguém. A terra girava em redor de si, provocando-lhe uma agonia de nojo, que a fazia cambalear. Aqui tropeçando num cavalo morto, mais adiante encalhando num cadáver desfeito de um soldado, sem rumo, perdida no imenso território, do qual a tragédia se apossara. E surgiam mais homens exaustos, ensanguentados, vagueando sem rumo, a quem já fugira a alma, e como bêbados cambaleavam de juízo perdido.
Até que mãos gigantes a agarraram pela cintura. Alguém a abraçava e voltou-se, aterrada, pensando que fossem as da morte. Não conseguia ver quem assim a prendia com tanta ferocidade, encandeada pela intensa luz quente do Sol.
Julgou ver três soldados desconhecidos, transpirados da batalha, arfantes, rindo para si, alarves e gulosos. Efigénia estrebuchou desesperadamente para se soltar e sentiu uma adaga a raspar-lhe o pescoço, enquanto os roncos de fúria que soltavam a deixaram sem forças. Um deles disparou um soco violento contra o rosto da rapariga.
Caiu desamparada. Chegara o momento de ser vencida pela guerra. Pressentiu-o quando aquele que a abraçara lhe enfiou uma das mãos brutais pelas saias, abrindo-lhe as pernas nuas com sofreguidão. Queria gritar e a voz não respondia, a alma dizia-lhe que resistisse, mas não havia força no seu corpo extenuado. Fez um esgar ao sentir uma dor aguda entre as pernas quando ele a penetrou.
Gritou lágrimas de dor. Já era muito escassa a consciência de que estava viva, embora a soalheira lhe queimasse os olhos com a mesma força brutal com que o soldado lhe queimava as entranhas. Tal como se um ferro em brasa se tivesse enfiado pelo seu sexo, disposto a arrancar-lhe o que restava de vida. Entrou e saiu por três vezes e o homem caiu sobre ela e três vezes grunhiu, saciado, para logo outro o empurrar e vará-la novamente, roncando gemidos de prazer que lhe doíam por todo o corpo. Até que o terceiro saltou para cima dela e não sentiu mais nada. Apenas reparou que a nuvem medonha nascida no chão da batalha se afastava, cada vez mais longe, como se corresse para o horizonte, e desmaiou.
Efigénia do Abegão, a menina dos sonhos e dos rouxinóis, não sabia, mas acabara de morrer ali, em Alcácer Quibir.
Quando, alguns dias depois, deu conta de si, percebeu que era Crisóstomo quem lhe falava, à sombra de um arvoredo. O rapaz tentava forçá-la a comer tâmaras, que guardava no alforge. À sua frente abria-se um imenso areal pintalgado de palmeiras, e o mar, ainda mais azul do que céu, desfazia-se em ondas mansas quase aos seus pés. Nem mortos, nem gritos, nem o troar dos canhões, nem homens brutais, nem cavalos assustados. Apenas uma brisa ligeira a afagar-lhe o rosto e acreditou que estava no paraíso.
– Os outros? – perguntou num murmúrio.
O pombeiro sorriu, afagou-lhe o cabelo com piedosa ternura e respondeu:
– Estamos vivos, Efigénia. É um milagre de Deus!
Ela olhou o céu com desprezo. Era tal a frieza que o rapaz se encolheu, afastando-se.
– Milagre? – perguntou em revolta surda.
Foi então que reparou nas vestes encharcadas de sangue seco e que regressou a dor no baixo-ventre, e, com ela, as memórias recentes do jogo de encontros e desencontros com a morte nos campos de Alcácer Quibir, onde os contos não tinham lugar e os sonhos se despedaçavam no sangue frio dos cadáveres. Finalmente, respondeu:
– O Deus dos teus milagres é cruel e mau.
E tornou a adormecer.
SEBASTIÃO! SEBASTIÃO!
Desde esse dia, em que todos os demónios se libertaram das profundezas do Inferno para destruir os melhores jovens de Portugal, que continuam mães de joelhos rezando pelo regresso dos seus filhos. Pais de luto, sem esperança de qualquer esperança. Crianças órfãs que não sabiam onde era Alcácer Quibir.
Entre mortos e cativos, foram mais de vinte mil almas que penaram em penitência, perdidas dos caminhos de regresso ao Reino donde um dia partiram, comandados por um rei sonhador.
As primeiras notícias chegaram a Vila Viçosa na pata de um pombo de Crisóstomo. O jovem duque D. Teodósio fora feito refém. Tal como uma multidão de vencidos. E eram tantos milhares de cadáveres que ninguém os conseguia contar. Os abutres refastelavam-se em mesa tão farta. Os reis mouros morreram e el-rei D. Sebastião desapareceu, desconhecendo-se se estaria perdido entre as pilhas de mortos, se fora tomado cativo, mais um do enorme contingente que, em horas, passara de nobre a escravo, ou se partira envolto na nuvem da batalha, protegido pela piedade divina.
Nem se falava em derrota. Alcácer Quibir, para quem lá esteve e para quem dela notícias recebeu, foi o Apocalipse anunciado no Livro Sagrado. Naqueles campos de África, brotou um estertor imenso de desencanto que anunciava um longo luto do qual o Reino se vestiu de norte a sul.
Passaram sessenta e oito anos sobre esse terrível dia de Agosto. Não houve uma semana em que não chegassem mais notícias, contadas por alguns que se tinham salvo, por muitos cativos que regressavam, aos poucos, vindos dos mais estranhos sítios de África, pelas narrativas dos mercadores que atracavam em Lisboa, oferecendo frutos secos, sedas e peles, cujas histórias embasbacavam quem as escutasse.
À pergunta sagrada ninguém sabia responder. No desejo de iludir a vitória da morte, cruzavam-se palpites e certezas ditadas pelo coração. Não, ele não morreu. Batalhou heroicamente e desapareceu no deserto. Foi feito cativo e ninguém sabe onde ficou prisioneiro. Outros garantiram que o viram morto e outros tantos juraram que se cruzaram com ele em Ceuta, dias depois de Alcácer Quibir. A verdade é que os outros dois reis morreram. Disso não havia dúvidas. O rei de Marrocos logo no início da refrega, o outro afogado num rio. E toda a gente sabia que os mortos não fogem. Logo, ele estava vivo. Seria uma questão de tempo. Cada cativo que regressava trazia novas esperanças, jurando que ele não se encontrava preso em Fez. Outros chegavam e tinham a certeza de que não o viram nas prisões de Larache, nem de Tânger, nem noutros locais mais esconsos onde ficaram aprisionados até à chegada do resgate. Um ano depois da tragédia, o jovem duque D. Teodósio chegava à casa dos Medina Sidónia, por influência do rei de Espanha junto do novo monarca marroquino, para grande sossego da senhora D. Catarina e do senhor duque e, perguntado sobre o mesmo mistério, confessou que não o sabia nem morto, nem cativo. O mesmo depoimento juraram, anos depois, outro e mais outro cativo, provenientes dos mais estranhos lugares do Inferno.
E a verdade tornou-se numa espera.
Sebastião não morrera, nem fora agrilhoado. Andaria perdido ou, como a maioria acreditava, em peregrinação pelos lugares santos, até que haveria um tempo em que regressaria. E, se houvesse dúvidas, as Trovas do sapateiro Bandarra aí estavam, para quem as ouvisse ler, assim como as preces que se erguiam pelas igrejas e conventos do Reino. Em breve, tudo estaria certo e perfeito, que paciência não faltava para saudar tão desejada vinda do garboso rei de Portugal. E surgiria por uma das praias dos Algarves, quase encostadas ao lugar do martírio, descobrindo-se do nevoeiro que o envolvera na batalha. A fé crescia. D. Sebastião haveria de despontar para o Sol junto do seu povo que tanto o ansiava. É verdade que também havia quem admitisse que poderia chegar por terras de Espanha ou desembarcar ao longo da costa atlântica, trazido por um qualquer galeão que cruzasse os mares do Sul.
Fidalgos e almocreves, comerciantes e ganhões, padres e eguariços, camponeses e pastores, vigiavam a costa e os caminhos por onde poderia regressar o rei perdido. À noite, armavam-se fogueiras nas praias, e pelo cimo das cumeadas corriam lumes, faróis de longa distância, para que Sebastião se orientasse. Por todos os povoados não se perdiam orações, as bruxas tinham sido convidadas pelos crentes a exercer os seus mistérios para lhe dar protecção na viagem e, de repente, as vozes dispersas tornaram-se num rumor de florestas e montanhas, de animais e aves do céu, intercedendo junto do Altíssimo, como se de um coro se tratasse.
– Sebastião! Sebastião! Sebastião!
Respondia o silêncio. Mas não admirava. Ele ainda estaria longe e o vento precisava de tempo para lhe entregar a suplica que chegava de seus servos.
– D. Sebastião! D. Sebastião! D. Sebastião!
Alcácer Quibir, a tragédia que engolira um reino inteiro, era agora o ponto de partida da peregrinação de Sebastião, o sinal do adiado encontro entre o rei e a sua gente que o esperava, tarde ou cedo, e com ele o regresso da esperança que daria sentido aos dias por viver.
Era tão grande a dor que quando Filipe II assumiu a Coroa de Portugal foi apenas recebido com um baque de amargura. Tomava um país submisso, empobrecido, que se arrastava sob peso das feridas antigas e aceitava o destino como uma desculpa reconfortante. Era um soberano temporário. E tinha de ser o rei mais poderoso do mundo, pois outro não haveria com tanto brilho para ocupar o trono deserto, até à chegada do seu cavaleiro andante.
O mesmo cavaleiro que habitara os sonhos antigos de Efigénia do Abegão. A ingénua criatura que partira para África regressou a Vila Viçosa no mesmo dia em que o rei de Espanha jurava compromissos com Portugal, nas Cortes de Tomar. Haviam passado dois anos depois de ter adormecido naquela praia que julgou ser o paraíso. Ao colo trazia uma criança e, ao lado, Crisóstomo, o seu salvador e companheiro de jornada. O pombeiro envelhecera cem anos, curvado, sem carnes, olheiras tão fundas e negras que mais pareciam duas noites de breu. Era a mão de Efigénia que o segurava de pé. De força, era somente a determinação do passo. Pagamento de promessa ou juramento entre ambos de, vivos ou mortos, regressarem ao regaço de Vila Viçosa. Ao tempo em que foram felizes.
Pela janela de Lisboa, a duquesa olhava a estrada quando viu surgir os dois esqueléticos andrajosos. De início, não estranhou, embora ficasse intranquila. Ao primeiro olhar, pareciam leprosos, almas do outro mundo desfiguradas pela maldita doença. Porém, ao vê-los mais próximos percebeu que apenas se tratava de dois vagabundos. Eram iguais a muitos outros que por ali passavam, esmolando pelas alminhas, clamando caridade pelo amor de Deus. No entanto, a criança chamou-lhe a atenção. Talvez tivesse um ano. Foi a cor da pele, mestiça, que a intrigou. Parecia filho de outra gente e o homem era tão velho, recurvado como uma cepa retorcida, e a mulher tão altiva e amarelecida que dir-se-ia terem sido desenterrados de um coval miserável. Apesar do terrível aspecto, aqueles rostos não eram estranhos à duquesa, embora Efigénia, hirta, trôpega, nem tivesse olhado para a janela de Lisboa, pedindo por caridade. O homem olhou. O sorriso que dirigiu, querendo ser um cumprimento, não foi mais do que uma careta e em voz débil gemeu:
– Chegámos, senhora duquesa. Sou o Crisóstomo.
De súbito, iluminou-se a lembrança, exclamando num grito:
– Crisóstomo! Efigénia! Ai, meu Deus!
Afastou-se a correr pelo jardim em direcção ao Paço. Já não viu o pombeiro deixar-se cair contra o muro e dizer à companheira:
– Chegámos, Efigénia. Estamos em Vila Viçosa. Já não consigo andar mais.
– Não sei se chegámos.
– Não ouviste a senhora duquesa? Olha ali o Convento dos Agostinhos, o Paço do Bispo. Vê com os teus olhos o Terreiro. Obrigado por me ajudares a vir morrer na nossa terra.
– Vou-me embora – respondeu, continuando a andar.
– Espera. Vivemos tantos tormentos para aqui chegar. O teu pai deve estar à tua espera e...
– Não tenho pai, nem mãe. Morri em Alcácer Quibir.
Entretanto, alertados pela duquesa, da Ilha do Palácio surgiam eguariços e ferradores em socorro dos viajantes. A admiração era geral, pois, passado tanto tempo, já ninguém acreditava que alguém da criadagem de D. Teodósio tivesse sobrevivido e acudiam emocionados.
– Crisóstomo!
– Efigénia!?
– Santo Deus! O estado em que eles estão.
– Como vieram?
– E a criança? Quem é?
Ao alvoroço acorreram curiosos que deambulavam por perto e outros servos do Paço. Até a duquesa desceu à rua, afogueada, para confirmar tão inusitada aparição.
– São eles, não é verdade? – perguntou para quem os assistia.
– É verdade, senhora. Quem havia de dizer? O Crisóstomo e a Efigénia...
– Tragam-nos depressa. Precisam de ser tratados.
Foi, então, que se deu o caso. Efigénia soltou-se, irada, da mão que a agarrava e gritou:
– Larguem-me!
Para espanto geral, afastou-se bruscamente com passo mais decidido do que aquele com que havia chegado.
Entreolharam-se, espantados. A menina que partira, doce e sorridente, não reagiria com tal fúria a quem procurava ajudá-la. Alguma coisa de muito mau acontecera, ainda pior do que a batalha que tanto luto trouxera, para transformar a doce donzela naquele bicho enraivecido.
Com um gesto, a duquesa ordenou:
– Deixem-na! Quer estar sozinha. Ela virá. Levem o Crisóstomo e a criança.
Enganou-se a senhora D. Catarina. A Efigénia do Abegão, que partira para África, não mais voltaria àquele lugar. No corpo franzino que procurava caminhar sem vacilar, fora construída outra criatura marcada pela violência, possuída por revoltas e mágoas tão terríveis que só se apaziguavam longe de outras gentes.
A duquesa desejava saber de viva voz o que se passara com os dois peregrinos. Tratou do pombeiro, mandou cuidar da criança. Quem partira para servir o seu filho Teodósio em tão dura missão merecia receber todos os cuidados e gratidão.
Quis ouvir de Crisóstomo. Que jornada tão longa e medonha fora aquela que os trouxera tão frágeis e doentes, enquanto lhe dava um caldo para retemperar as forças.
Às perguntas o pombeiro balbuciou respostas atabalhoadas. Mas contou. Da morte da Gertrudes, devorada pela ressaca da batalha. Da violação e loucura de Efigénia e da caminhada terrível, junto à costa, à procura de regressar. Contou como inchara o ventre da rapariga e sobre a gruta onde ela pariu, nos arredores de Ceuta, tendo Crisóstomo como parteiro e ladrão que foi roubar panos de uma caravana, que pernoitava por perto, para abrigar o anjinho.
A história extraordinária ia impressionando a duquesa, que desconfiava da absoluta verdade do que ouvia, pois, com frequência, ele delirava, acometido por febres e transtornos de memória em que nada se entendia. Mandou vir médicos para o salvarem. Foram vãos os esforços. Nem a presença de D. Teodósio, que foi confortá-lo, apazigou a tempestade de febre e, passados três dias sobre o regresso, o pobre criado desistiu sem que ninguém soubesse quais os outros caminhos por onde o par andara mais de dois anos.
A verdade é que partiram jovens e regressaram farrapos ressequidos. Eram uma metáfora perfeita sobre a sorte do Reino. Depois dos sonhos que enfunaram a conquista de África, aí estava o pesadelo da humilhação e da morte.
Passaram-se muitos anos desde esse dia. Efigénia refugiara-se na colina, no velho casebre que fora de seu pai, longe do povoado, solitária, vivendo do que a terra e a imaginação lhe davam. Conforme a idade avançou, a figura austera e rígida ficou mais frágil. A velhice tornou-a mais magra, silhueta esquálida a quem o xaile negro devolvia dela uma visão dramática. Poucas foram as pessoas que se aproximaram do seu casebre. Temiam a maldição daquela figura sinistra. Era conhecida no povoado mais pelo que inventava a coscuvilhice medrosa que a desprezava.
Efigénia fora feita de mistérios com origens que se suspeitava serem as mãos do próprio Demónio e viveu sempre tão sozinha quanto as águias da serra de Ossa. Ao certo, ao certo, apenas se sabia que esperava por D. Sebastião e que era bruxa de muitos poderes recebidos de feiticeiros poderosos durante o exílio africano.
Entretanto, D. Teodósio fez-se duque de Bragança, e no Paço, entre a Ilha das Cavalariças e a Horta do Reguengo, cresceu o menino trazido de África, que foi baptizado com o nome do primeiro apóstolo, e Filipe II de Espanha era rei de Portugal. O segredo da origem e do destino da criança ficou como pertença de duques.
Pedro fez-se um bom eguariço e casou com Leonarda, filha de um carpinteiro de Borba. Tiveram uma filha, a quem deram o nome de Coralina, o jovem D. João II, filho de Teodósio e futuro duque de Bragança, foi seu padrinho, e Filipe III de Espanha reinava em Portugal. Leonarda morreu e tempos depois Pedro, com saudades dela, também partiu. Não se conta a história destes leais servos da Casa de Bragança porque não houve história alguma para contar, tal como sucede com todos os criados submissos e gratos a quem deles se serviu.
Coralina seguiu as pisadas do pai, crescendo com os cuidados da criadagem do Paço. Quando D. Teodósio morreu, ela tinha seis anos, o jovem duque D. João de Bragança fizera vinte e seis e reinava em Portugal o rei de Espanha, Filipe IV. E reinavam os espanhóis. Os compromissos celebrados nas Cortes de Tomar foram esquecidos e os Habsburgos fizeram do país uma província onde mandavam o medo e a brutalidade dos impostos. E D. Sebastião ainda não regressara.
Porém, não se aquietavam as vozes que cruzavam cada lamento, clamando pelo seu regresso. Não se calavam os profetas e os adivinhos. Desesperavam aqueles que vigiavam o futuro e o horizonte, procurando avistar o corcel que o traria de regresso. Garantiam muitos que Sebastião voltaria tão jovem quanto partira, iludindo os desprevenidos que esperavam por um rei já velho e mirrado pelo cansaço de tão longa peregrinação. Poderia ter a forma de águia ou de mulher, embora houvesse maior concórdia quando se garantia que vestiria a pele de um jovem majestoso e belo.
O desespero da fome alucinava as mais extraordinárias visões. Quando àquela se juntava o desespero pela sobrevivência, Sebastião era mais urgente. Tão necessário que muitos lhe quiseram vestir a pele, acabando na forca. E supunha-se. Talvez fosse o Manuelinho, que, em Évora, pusera o povo em pé de guerra contra os impostos e o aumento do real de água. Talvez fosse o novo duque João, que agora chegava para substituir o defunto D. Teodósio, pois sangue mais real do que o dele não haveria no Reino de Portugal.
A espera estava prenha e começou a parir sementes de revolta, que floresceram pelo que restava das Casas mais ilustres. Foi assim que, certo dia, D. António Luís de Meneses, quando caçava com o duque, na Tapada, o confrontou, no seu jeito desabrido:
– Está a chegar a sua hora, senhor duque.
João olhou-o, surpreendido, e perguntou com alguma ironia:
– Qual hora? Já me quer ver morto?
– Não. Queremos vê-lo rei.
O duque sorriu. Olhou em volta com cautela, não fosse alguém escutá-lo, e respondeu:
– Para que esse dia aconteça é preciso andar muito, meu caro amigo.
– Já é longo o caminho percorrido – comentou Meneses.
– Que me está a querer dizer?
– Há meses que um grupo de gente de confiança tem vindo a discutir o estado a que o Reino chegou com a política de Filipe e da sua vice-rainha. Já ultrapassaram todos os limites onde a dignidade se converte em humilhação. Deixaram de governar. O duque de Mântua e o seu secretário, Miguel de Vasconcelos, já roubam sem um pingo de pudor e Madrid aplaude e, aqui, o povo chora de fome.
– Eu sei – concordou, lacónico. O amigo estava furioso e continuou com a voz cada vez mais alterada: – De norte a sul, a revolta cresce porque, entre a morte e viver como vivemos, mais vale olhá-la de frente e deixar de herança aos nossos filhos a honradez de amar a nossa terra. Precisamos de um rei que fale a nossa língua e que ame aquilo que os portugueses amam. Esta rapina tem de acabar. Custe o que custar.
O semblante do duque alterou-se.
– Compreendo o que diz, mas é cedo.
– Cedo? Sessenta anos de castigo é pouco? Podem pedir-se mais sacrifícios a um povo que entregou tudo? A uma nobreza enxovalhada e expulsa da administração do Reino? A um clero que reza em latim, mas ama a sua Igreja em português? Já não há muito a esperar, senhor duque de Bragança.
– O conde-duque de Olivares não tem sido prudente, de facto. Os povos da Catalunha estão também na iminência da insurreição.
– E com toda a razão. Ninguém quer como rei alguém que faz do roubo e da humilhação uma maneira de governar.
– Se D. Sebastião não tivesse aceitado aquela batalha, tudo teria sido tão diferente... – reflectiu o duque em voz alta.
– Era um jovem tonto e mal aconselhado. Um palerma! – a rudeza de Meneses era ditada pelo temperamento guerreiro e João não o contraditou. – Digo-lhe mais, senhor duque. A morte dele é um trunfo a nosso favor. Muitos vêem na sua pessoa a reencarnação de el-rei D. Sebastião. Basta dar fogo ao rastilbo e o Reino acorre a celebrar em si o Desejado.
D. João soltou uma gargalhada, coisa rara no seu comportamento reservado, picou o cavalo e, já a afastar-se do amigo, gritou-lhe:
– Prudência, meu caro António. Prudência é a maior das virtudes nos tempos que corremos.
Este esporeou o cavalo para se aproximar e perguntou-lhe sem rodeios:
– Aceita a Coroa que legitimamente lhe pertence?
– Não está a comer o gamo antes de o esfolar? Reze para que a Catalunha se revolte. Dessa revolta dependerão muito as decisões que viermos a tomar.
– Juro-lhe, senhor duque, que amanhã mesmo parto para Barcelona com o fim de pôr a minha espada ao serviço dos insurrectos, se tal for preciso para que o nosso Reino se liberte destes velhacos.
João de Bragança riu com prazer da ideia do seu amigo.
– Guarde a sua espada. Precisa de duas armas bem mais poderosas. Paciência e prudência. São estas as duas grandes qualidades dos linces. Saber cultivá-las é decisivo para apanhar a presa.
António de Meneses sorriu, satisfeito. O duque não aceitara o desafio, mas não o afastara. Era o sinal de que precisava. Entusiasmado, saltou para o cavalo e jurou a si próprio que só descansaria quando chegasse a Lisboa para dar a boa nova a D. Antão de Almada.
Foram meses de conversas, de cautelas, de impaciência e cansaço. Para se furtarem à vigilância dos espiões de Miguel de Vasconcelos, mudavam os encontros de lugar, desde o Palácio Almada ao Paço de Bragança. Uma dúzia de fidalgos discutia o processo para restaurar a voz livre de Portugal. Pouco tempo depois, eram duas dúzias e mais quiseram contribuir, pelo que, rapidamente, chegaram a quarenta. Fecharam-se as portas. Era número suficiente para preparar a conspiração e o limite do risco para evitar alguma traição.
Discutia-se com paixão. Cada dia que passava era um desespero. Cada semana sem agir uma verdadeira amargura. E tal era a ebulição dos revoltosos que os descontentava a prudência de João de Bragança, que, por vezes, mais parecia cobardia. Enquanto ele adiava, como se fosse dono de um segredo maior, a duquesa de Mântua e o seu lacaio, Miguel de Vasconcelos, dizimavam o que restava do orgulho português.
Nos momentos de maior desalento entre os conspiradores, soava sempre a voz de João Pinto Ribeiro, administrador da Casa de Bragança em Lisboa.
– Continuemos os trabalhos. Tenho a certeza de que, quando chegar a hora, D. João estará no lugar que lhe destinámos!
O desânimo dava outra vez lugar ao entusiasmo, a esperança vicejava com maior confiança porque, afinal de contas, morrer por morrer, mais valia que fosse por amor à memória que receberam como herança.
Efigénia dizia isto de outro modo à velha Ambrósia, com quem trocava leite por ovos:
– Ele vai voltar. Eu sei que ele vai voltar, numa manhã de nevoeiro, daquela terra maldita para tornar a ser o nosso rei.
UM DEUS QUE ERA DUQUE
João de Bragança não necessitava de confrontar Filipe para ser rei. Era um conflito desnecessário, pois o seu universo de poderes e encantamentos estava muito além da força bélica do monarca dos Habsburgos. O ducado era um reino dentro do império espanhol.
No Paço, em Vila Viçosa, reunia-se uma verdadeira corte na Sala dos Tudescos. Fidalgos e clérigos vinham de todos os pontos do país para saudar o duque como chefe supremo e herdeiro da mais ilustre Casa portuguesa. Os antepassados deixaram-lhe um tesouro de memórias honradas e os vários reis de Avis e de Espanha entregaram-lhe honrarias que poucos príncipes possuíam. Sobravam-lhe títulos e o seu poder não tinha fim, contando propriedades, prédios, fazenda e servos. Não lhe faltavam camareiros, monteiros, pajens e escudeiros, aias e eguariços. Nem abundantes riquezas. E a mulher contratada para casar com ele tornara-se na sua maior paixão.
Amava Luísa! Um amor aprendido passo a passo, construído por cumplicidades e opostos. A música unia-os até aos limites da emoção. A paixão pelos cavalos e galopes à desfilada, que ele aprendera nas planícies de Vila Viçosa e Luísa nos prados de Sanlúcar de Barrameda. Se ele era reservado, ela só podia ser a alegria mais estridente. João ponderava as palavras, Luísa deixava-as correr como um regato cristalino sem açudes. O duque gostava do silêncio, a andaluza era a vibração guerreira dos Medina Sidónia.
Um ano depois do casamento, nascera Teodósio, duque de Barcelos pela primogenitura, amado e educado como se de um futuro rei se tratasse.
Para além deste poder herdado e administrado para se tornar maior, João vivia rodeado de deuses, que com ele falavam conversas próprias de divindades. Alguns dos lugares do Paço eram pertença de Tritão, filho de Posídon, por todo o lado barafustavam faunos, vindos da Eneida e dos poemas de Ovídio, que lera com ardor. Hércules, filho de Zeus e Alcmena, o herói que lhe ensinara a força e a coragem, que vencera o Leão de Nemeia, que conseguira limpar as cavalariças de Áugias, que enfrentara o Touro de Creta, que matara Cérbero, entre outros grandes trabalhos, tinha sala própria, e pelas paredes surgiam sátiros esfuziantes.
As musas eram amigas e com elas partilhava os segredos mais perfumados. Conhecia todas as nove filhas de Zeus e Mnemósine. Porém, Calíope e Melpómene eram as suas preferidas.
Pelas mãos da primeira, visitara Homero e Petrarca, que lhe ensinou os sonetos, Virgílio e Dante. Juntos, viajaram pelas narrativas de dezenas de poetas e romancistas. Discutia com Calíope a maravilhosa fábula do Rei Artur, a imaginação fabulosa de Chrétien de Troyes, e ela jurava que também o acompanhara com mil cuidados. Tal como viajara com Cervantes, ajudando-o a criar o triste D. Quixote, e habitara o génio de Camões, cantando uma Pátria liberta. E seguiu João de Bragança, com lágrimas no coração, quando tomaram Os Lusíadas como jornada.
– Lê aqui – disse-lhe, depois de folhear o poema.
João aproximou-se para ver melhor.
Estavas tu, linda Inês, posta em sossego
Dos teus anos colhendo o doce fruito,
Naquele encanto de alma ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego
De teus formosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas,
O nome que no peito escrito tinhas.
– Que beleza, Santo Deusl – exclamou o duque, embevecido.
E via as ninfas a correrem em devaneio. Híades emergindo do rio, consolando a pobre infeliz Inês, e Náiades salpicavam o Mondego de gritos e risos, querendo, com esta animação, desvanecer a nostalgia que o amor e a saudade de Pedro lhe provocava.
«Nunca houve amor assim em Portugal. Nem a morte os separou!», pensava João.
Melpómene, irmã de Calíope, era a confidente das descobertas dos mistérios do canto gregoriano e do canto moçárabe, da tranquilidade serena da monofonia submetida aos versos dos cânticos, rezados, suplicantes ou em elegia, celebrando a sagrada natureza da existência divina. A musa apresentou-lhe a polifonia e o contraponto, que escapavam à velha tradição do cantochão e do cantar, e entusiasmado corria ao órgão, procurando os sons extraordinários que ela lhe ensinava. Fora Melpómene e a ninfa Euterpe que lhe trouxeram a ópera e, nesse dia, João de Bragança imaginou que estava no interior de um imenso foguetório de lágrimas incandescentes que iluminavam o céu da música. Ao pé de L' Arianna, a doce Ariana abandonada por Teseu, na ilha de Naxos, não havia cântico ou madrigal que se lhe pudesse comparar. Desde a organização da lógica tonal, as variações de escalas, os acordes complexos que mais pareciam coisa de mágicos, casavam na perfeição a sacralidade da retórica com a expressão material da música, deixando que a polifonia convivesse com outras sonoridades, em contrastes surpreendentes, recitativos trabalhados, transformando a harmonia no encontro dos homens com os sentidos e com a própria razão. Monteverdi dera o passo audacioso que já se adivinhava em Desprez e Palestrina, e que o duque tanto prezava.
D. João não tinha dúvidas. A música era, agora, a fala de deuses com Deus para que quem a escutava pudesse aspirar à Vida Eterna. Na Sala do Cântico dos Cânticos – alegoria ao amor eterno entre Salomão e Sulamita, livro sapiencial do Antigo Testamento, evocativo da omnipresença divina expressa em acordes do coração e das flautas –, multiplicavam-se as notas musicais e as melodias, as infinitas falas dos sons que ecoavam até ao Altíssimo. Aqui, neste recanto do Paço, João aprendia e criava partituras com a certeza profunda de que eram as orações mais belas.
Foi neste universo mitológico e mágico que o Paço Ducal se transformou numa corte de príncipes e princesas, de fadas encantadas e de todos os magos da beleza. Pelas paredes e corredores, nos jardins e nos lagos, surgiam os sinais desta presença constante de seres vivos e imaginários, um verdadeiro colo maternal que resguardava a raiz mais exuberante do reino dos Braganças.
Uma noite em que se escutavam os grilos, depois de uma viagem a Évora onde foram recebidos com esfuziante alegria pelo povo, bem antes dos graves tumultos que tanto magoaram a cidade, os duques albergavam-se um no outro sem horas para adormecer. Luísa sussurrou:
– És senhor no teu ducado e és rei para este povo que tanto te ama.
– Porque dizes isso? – perguntou, surpreendido com o despropósito da afirmação, no momento em que se amavam tão intensamente.
– Sinto, vejo, percebo, que o povo se precipita para ti quando sais das tuas rotinas. És o favo de mel que todos desejam. Nunca pensaste que podes vir a ser rei a sério, ocupar o lugar onde se senta Margarida de Sabóia?
Esta insistência de Luísa esmoreceu-lhe a libido. Não sabia como responder. Procurou ser hábil.
– O meu avô reconheceu Filipe II como rei de Portugal. O meu pai ficou-lhe grato para o resto da vida depois do seu cativeiro após a tragédia de Alcácer Quibir, onde lutou apenas com dez anos. Por outro lado, nenhum deles ofendeu os valores da nossa Casa, atribuindo-nos funções dignas e honrarias invulgares. Mais do que uma relação de vassalagem, cresceu entre a Casa de Filipe e a nossa um ambiente de cordialidade.
Luísa fitou as estrelas que se mostravam através da janela. Era uma luz intensa que substituía o minguante da Lua. Parecia estar longe, para lá dos céus.
– O meu pai diz o mesmo. É por isso que não se rebela clamando para a nossa terra a independência usurpada por Fernando e Isabel. Mas diz, e eu concordo com ele, que não existe um reino da Ibéria.
João beijou-lhe a fronte.
– Não sabia que gostavas de política.
Encolheu os ombros nus num gesto de indiferença.
– Creio que os reinos devem ser das pessoas que os amam. Tu amas esta terra e esta gente ama-te ao ponto de querer ver em ti a alma de Sebastião reencarnada.
– É a ingenuidade dos simples. Não se pode levar a sério – ripostou, querendo mudar de conversa, beijando-lhe os seios. Porém, a mulher afastou-o.
– Espera, João. Não confias em mim, pois não?
Parou, desconfiado.
– Que queres dizer com isso? Claro que acredito na tua lealdade.
– Não é em lealdade que estou a falar. Falo de mim, do nosso casamento. Eu não sou espanhola, João. Sou tua!
– Ainda não percebi onde queres chegar – afastou-se mais do corpo dela.
– Se tiveres sonhos para cumprir, não tenhas medo de que haja traição dentro desta Casa. O conde-duque de Olivares enganou-se redondamente quando pensou que os seus casamentos de conveniência política poderiam consolidar o poder de Filipe IV. Enganou-se! Troquei o negócio dele por um bem mais precioso. Pela descoberta do homem mais sábio, mais delicado, mais seguro, mais sonhador, que existe. Amo-te, João de Bragança! É essa a grande descoberta que me ajudaste a realizar, e por ti, pelos teus sonhos, caminharei ao teu lado até ao limite das minhas forças.
Inebriado com tão surpreendente e sincera confissão de amor, João de Bragança tomou-a apaixonadamente nos braços, murmurando-lhe ao ouvido.
– És o grande amor da minha vida!
Mergulharam com avidez nos abraços que trocaram e, nessa noite, já a madrugada despertava quando voltaram a ouvir os grilos cantarem.
Os duques eram felizes, como jamais poderia ser outro qualquer rei por esse mundo fora, naquele cantinho alentejano. E livres, que os Filipes lhe outorgaram tais poderes de governança que só a actividade dos espiões denunciava que Vila Viçosa não era a capital da Pátria.
Luísa tinha razão. João era senhor dos seus domínios e era o rei latente, aquele que partira de Alcácer Quibir com destino incerto e que regressaria. Um dia, voltaria para devolver ao Reino de Portugal a esperança liberta igual à que habitava no reino dos Braganças.
D. João jamais esquecera aquela noite de prazer e paixão. Sobretudo porque a intuição de Luísa tocara no seu segredo que umas vezes adormecia e que, noutras alturas, erguia-se com estrondo dentro de si. Era um impulso que se libertava do coração, vibrante e inquieto, que o tornava ainda mais reservado. Uma luz iluminava, bruxuleante, um caminho vago cujo destino desconhecia. Como se o seu anjo-da-guarda lhe exigisse uma peregrinação de sofrimento trocada pela Jerusalém Celeste em que se transformara Vila Viçosa. E pelas veredas das montanhas, pelos carreiros dos vales, pelas estradas das planícies, uma multidão de homens sequiosos e esfomeados seguia o seu andar, sem que João percebesse donde vinha tanta sede e tanta fome que os punha em marcha ao seu encontro. Durante o sono, nesses períodos de maior tormento, surgia-lhe Afonso Henriques, severo, apontando com a espada para a candeia que iluminava o trilho desconhecido.
Outras vezes, era o Mestre de Avis, quem, envergando a couraça da batalha, lhe impunha que se libertasse do demónio Belfegor, afastando o pecado da preguiça, para agir para lá do conforto que rodeava a sua existência. E de cada vez que tais pesadelos o interpelavam acordava esgotado, num estado de exasperação profunda, perguntando a si próprio:
«Mas como? Se nem a funda de David possuímos para enfrentar tamanho gigante? Como, Santo Deus?»
Rezava com devoção, suplicando que a melancolia, pecado capital que o magoava, desse lugar à convicção que o libertasse da censura dos seus antepassados transformados em visões acusadoras.
Em vez de sossego, os anjos enviavam-lhe sinais. A multidão bizarra dos sonos agitados não era mais do que o povo alegre que o aplaudia quando ia ao seu encontro. Aquela sede tão dolorosa e a fome mais doentia eram a esperança de um Reino liberto. Como lhe dissera Luísa, naquela noite, os reinos deverão ser de quem os ama e não de quem deles se apropria.
O seu irmão, D. Duarte de Bragança, deu-lhe um brusco empurrão para fora do conto de fadas, musas e sátiros enriquecido por memórias dos gloriosos tempos idos.
E foi uma bruxa quem lhe abriu as portas do destino.
Duarte batalhava na Flandres, nos exércitos de Fernando III, imperador do Sacro-Império, tão amante da música quanto João de Bragança. A guerra religiosa entre luteranos e católicos, acelerada pelo surto calvinista, era o palco onde servia. Viera passar uma temporada a Portugal, meses depois dos graves tumultos que puseram Évora em insurreição, e fora a Vila Viçosa despedir-se do irmão, antes do regresso aos campos de batalha. Caçavam na Tapada, longe de todos os ouvidos curiosos, e afrontou-o com desapiedado amor fraterno:
– Fui abordado por um grupo de fidalgos, em Lisboa, amigos desta Casa, que sugeriram que liderasse um golpe, que estão a preparar, contra Filipe de Habsburgo. Dizem-me que o teu desinteresse pelo futuro do Reino é um sinal de que estarias disposto a reconhecer-me como teu rei.
– Consideram-me um cobarde, queres tu dizer – comentou o duque com algum despeito.
Duarte, um ano mais novo, não estava habituado a lidar com as palavras. Comandava tropas em guerra e as falas que melhor entendia soltavam-se do tilintar de espadas, de cargas de cavalaria, de explosões de artilharia.
– Se não tens medo, aos olhos de quem ama o país pareces um rato assustado, escondido no teu paraíso.
– Não me escondo, meu irmão – respondeu, sereno.
– É o que parece. Não são poucos aqueles que te julgam indiferente ao sofrimento e à humilhação que este pobre Reino tem sofrido nos últimos sessenta anos e, quando a fome aperta, a paciência vai-se embora.
– O que lhes respondeste?
– Que era meu dever de irmão falar contigo e aqui estou a fazê-lo.
Deram alguns passos em silêncio. Dois gamos saltaram, assustados, ao pressentirem os homens, escapando em grandes saltos da clareira onde comiam, e um coelho correu apressado para um montículo perfurado por várias tocas.
– Eles não percebem – suspirou João.
– Podes ajudar-me a compreender o que os nossos amigos não entendem? Também gostava de saber as razões que levam o primogénito da Casa de Bragança, com mais legitimidade do que Filipe para ser rei de Portugal, a preferir caçadas, touradas e tocar trovas e madrigais em vez de assumir o compromisso que tem com o seu povo.
Era visível a perturbação do duque. As palavras de D. Duarte não tinham verniz, sendo verdadeiras setas apontadas ao coração.
– Ninguém compreende – insistia, voltando a reforçar a ideia conspiradora: – Todos esperam o teu sinal para a insurreição. Todos estão cansados de ver o chefe dos Habsburgos como usurpador de uma Coroa que não lhe pertence, de não terem um chefe que os comande, impacientes com a espera do regresso de D. Sebastião. Diz-me: o que é que não se percebe? O povo, que suspira por ti, ou tu, que ignoras o teu dever de patriota?
João de Bragança hesitou. O cenho carregado era sinal de ponderação daquilo que ouvia e seria forçado a dizer. Tornou a olhar o sítio onde desapareceram os gamos em correria e percebeu que as cigarras tinham começado a cantar.
– Queres a verdade? – perguntou por fim.
– Não espero outra coisa.
– Estou preparado para ser rei. Para aceitar todos os riscos, sejam quais forem, desde que devolva a dignidade perdida a este reino.
– Então, porque não assumes esse propósito perante os fidalgos que te são fiéis e dedicados, dispostos a morrerem pela liberdade?
– Porque eles propõem um golpe inspirado na Defenestração de Praga, de 1618, e que levou à guerra onde ainda hoje combates. Não temos forças para uma luta com cheiro de vitória sem retaguarda política e militar. Portanto, uma insurreição destinada ao fracasso. Em poucos meses, os exércitos de Filipe terminarão com os sonhos de Portugal independente com banhos de sangue em que os mais desfavorecidos pela sorte sofrerão ainda maiores martírios.
D. Duarte fez um gesto de contrariedade.
– Sou um homem de armas, meu irmão. Preciso de pensar rápido para salvar aqueles que comando e derrotar quem se nos opõe. Essa conversa, afinal de contas, quer dizer o quê? Queres ou não queres?
– A pergunta é outra – respondeu o duque misteriosamente.
– Qual pergunta, João? – reagiu D. Duarte com alguma exaltação e repetiu: – Diz-me com frontalidade. Queres ou não queres?
– A França quer? Carlos I quer? O Vaticano quer? Fernando III, o imperador que tu serves, quer?
Uma reacção tão firme surpreendeu D. Duarte, que encolheu os ombros e respondeu:
– Não sei.
– Nem eu. Sem apoio político e militar de aliados poderosos qualquer conjura é apenas uma conjectura. Um acto de loucura que terminará numa carnificina.
Agora falava como se tivesse necessidade de pensar em voz alta aquilo que guardava só para si há tanto tempo.
– Este Reino foi humilhado em Alcácer Quibir. Foi humilhado quando os Filipes assumiram os nossos destinos. Temo que uma terceira e formidável humilhação nos transforme nos mais desgraçados dos reinos indigentes. Os portugueses, os descendentes de Afonso Henriques, não merecem isso. As nossas caravelas construíram um imenso império e, maior do que tudo, difundimos uma língua nossa. Há pouco mais de trezentos anos que se fala português. Há mais de um século que se ouve português pelo mundo. É um património que se tornou herança de muitos, de milhões que nem sabem onde se situa a Pátria-Mãe, onde todos os dias se cumprimentam, amam, riem e choram os seus mortos. Não podemos arriscar uma insurreição que pode matar tudo isto. Os nossos antepassados jamais perdoariam tal vilania.
Percebeu que se entusiasmara em demasia e decidiu refrear o ímpeto, resumindo:
– É isto, meu caro irmão. Não estou disposto a ser um novo prior do Crato. De que valeu ao reino e a si próprio o reconhecimento da sua valentia em Alcântara e depois nos Açores?
– Foi um acto de resistência e de bravura de D. António – contrapôs D. Duarte.
– Cujo reverso foi a imponente manifestação de poder de Filipe II, que submeteu o país de tal forma que se deu ao luxo de ser magnânimo.
– O quê? – o irmão tornava a não compreender.
– Quando reuniu as Cortes em Tomar distribuiu prebendas e delegou poderes nos vencidos que mais parecia que éramos independentes. Só a Coroa mudara. Depois, foi aquilo que se viu até chegarmos ao ponto em que agora nos encontramos. Por tudo isto, meu querido irmão, e por mais fundo que me doa, prefiro ser lembrado como um cobarde do que morrer com a mágoa de ter arrastado o nosso povo para maior infortúnio.
O militar, de mãos cruzadas atrás das costas, olhava o matagal em volta como se passasse revista às tropas em parada. Digeria vagarosamente as palavras do irmão e, embora contrariado, reconhecia que ele tinha razão.
– Que podemos fazer, então? – perguntou por fim.
– Precisamos de emissários seguros e hábeis que coloquem o assunto a Richelieu e ao rei de Inglaterra. Que digam o necessário, e nada mais do que o suficiente, para que saibamos quais são os seus interesses e simpatias para o caso português. Que, no teu regresso, tenhas ja habilidade para apaziguar Fernando III, que as potências em guerra não nos peçam que participemos nesse combate para o qual nem exército temos.
– E o Vaticano?
João meneou a cabeça com visível tristeza.
– Urbano VIII prefere o favor dos poderosos do que apoiar a legítima esperança dos justos. Se alguma notícia sobre a conjura contra Filipe lhe chegasse aos ouvidos, nesse mesmo instante partiria um mensageiro para alertar Filipe e Olivares.
– Tens razão. Roma está mais interessada nos negócios de poder do que na fé dos seus mais generosos filhos. Deus tornou-se numa segunda figura na própria casa que o Filho mandou construir.
Mudando então de tom, o duque informou:
– Pedi a João Pinto Ribeiro que encontrasse os homens com qualidades para tão delicada missão.
Duarte abraçou-o com firmeza.
– Conta comigo, duque de Bragança. Quando chegar a hora das armas, serei o teu primeiro guerreiro.
O duque retribuiu o cumprimento com emoção.
– Vai com Deus. E com a certeza de que a prudência não significa cobardia, que é pecado bem ruim. Felizmente, não padeço dessa fraqueza.
D. Duarte sorriu.
– Eu sei. Sempre soube. Que Deus, na Sua infinita sabedoria, te ilumine sempre os passos e o pensar.
Mal sabiam os dois irmãos que se despediam definitivamente. D. Duarte regressava à Flandres, para servir na guerra e, anos depois, morrer, em Milão, por Portugal.
Aquela conversa confessional aliviara as angústias de João. Os sonhos e as visões regressaram, porem, o sentido mudara. A luzinha bruxuleante que seguia pelo carreiro, na noite de breu, transformava-se, conforme os dias passavam, num farol potente que iluminava a multidão de rostos que o acompanhava. Já não eram cadáveres que se abeiravam em prenúncio de morte. Fechava os olhos e ouvia sinos a tocarem aleluias, passeava pelos campos alentejanos e era um mar de malmequeres brancos que se abria à sua frente. Era forçosamente um caminho de esperança!
Semanas depois de se despedir do irmão, outro sinal lhe fortaleceu o alento.
Certa manhã, caçava fora de portas, acompanhado do seu falcoeiro. Experimentava uma jovem ave treinada para caçar coelhos. Viram-na a pairar no céu, em rodopio cada vez mais rápido até que mergulhou, decidida, sinal de que vira e atacava uma presa. Contudo, uma mancha de azinheiras fez com que perdessem o falcão de vista. Fosse qual fosse o alvo, escondia-se por detrás do pequeno bosque. Decidiram separar-se e ladear o arvoredo, procurando localizar o pássaro e a sua vítima.
Ao voltear uma enorme azinheira, o duque reparou numa mulher, já idosa, vestida de negro, que com as mãos rasgava a terra em volta da raiz da árvore, em busca de cogumelos.
A velha assarapantou-se ao sentir a inesperada visita do cavaleiro e tentou fugir. Em vão! As pernas trôpegas foram mais preguiçosas do que o medo que lhe acelerava o coração, caindo, enredada nas próprias saias. João saltou do cavalo para a socorrer e reconheceu Efigénia Pé de Galinha. Ao sentir-se agarrada pelo braço, desatou em gritos alucinados, surpreendendo o duque.
– Não se assuste, senhora. Não sou salteador de estrada. Apenas procuro um falcão que poisou por estas bandas.
– Larga-me, filho do Maldito! Larga-me.
– Pronto, pronto. Fique em paz – disse-lhe com um sorriso apaziguador.
Efigénia observou-o, desconfiada, e disparou, áspera:
– Não pode caçar aqui. Estas terras são do duque.
Não sabia com quem estava a falar e João não se deu a conhecer, divertido com o ralhete da apanhadora de cogumelos.
– Se eu não posso caçar sem a autorização dele, também a senhora, para apanhar cogumelos, precisa que haja consentimento.
– Não peço nada a ninguém. Sou dona de mim.
– Somos dois ladrões! – retorquiu D. João, bem-disposto.
Porém, a resposta da velha deixou-o embatucado.
– Esse parvalhão empanturrado de vento bem merece ser roubado. Quem do povo se esquece, fica à mercê do Diabo.
Nunca alguém o havia tratado com tal rispidez, embora soubesse que a mulher tinha fama de bruxa e de maluca. Teve vontade de se afastar, mas a curiosidade foi mais forte.
– É assim tão tonto, o duque de Bragança?
– Foi escolhido para ser águia-real e prefere ser pavão. Veja bem o tino do estupor do homem.
– Quem é que o escolheu? – perguntou, intrigado.
– Numa sexta-feira, certo dia treze do ano em que nasceu, juntaram-se todos os anjos dos céus e todos os demónios dos infernos e decidiram que fosse rei do Sol e das tempestades. Já passou os trinta anos e nunca cumpriu o seu destino.
– É muito estranha essa história! Como soube de tal concílio, senhora?
Ficou hirta, queixo levantado, como se tal pergunta fosse um desafio ou a invenção de uma falsidade. Respondeu, altiva:
– Eu sei que é assim! Nele vive o espírito do outro que eu vi partir em Alcácer Quibir. Eu estava lá! Partiu envolto em nevoeiro, deixando um rasto de mortos, e foi-se por caminhos tão desconhecidos dos homens que não houve pregoeiro nem peregrino que o conseguisse encontrar. Até que regressou sob a forma de pomba, mas era um espírito que entrou no corpo do duque no momento em que nasceu. Ainda hoje ninguém sabe como a pomba desapareceu, e não se pode saber, porque é mistério sagrado.
João estava angustiado com o discurso que ouvia. Nem queria imaginar que houvesse gente que pudesse acreditar em semelhante crendice, e a velha continuava:
– Regressou em espírito, mas esqueceu o seu povo. Desconhece a fome e o medo que vai por esses montes e vales. É um dó, senhor. Ignora quem o chama e faz-se de cego para quem dele precisa.
– Quem lhe garante que é uma pessoa tâo má? Nunca ouvi tal coisa.
– Porque ensurdeceu. Oiça! Escute o clamor da terra. Escute as vozes que suplicam por ele.
– Vozes? Quais vozes?
– Deixe de ser surdo e oiça quem mingua de sofrimento e quem tem frio, e vá dizer-lhe que há um mar de gente que lhe suplica que ilumine o caminho da salvação. Deve pensar que sou maluca. Que pense! Não passo de uma velha eremita que rouba cogumelos para matar as dores da fome.
Começou a afastar-se dele com uma passada que fazia lembrar uma galinha coxa. De súbito, parou e voltou-se para João com a mão estendida, com o dedo apontado ao peito dele.
– Vá e diga-lhe! Está um povo inteiro pronto a desfraldar-se como uma bandeira quando ouvir outra vez o seu grito de guerra. O mesmo que lançou em África e que está guardado no coração de quem o viu partir.
Ouviu-se o trote de um cavalo e o duque virou-se para ver quem se aproximava. Era o empregado, trazendo o falcão poisado no antebraço. Na sela, estava dependurado o coelho que fora caçado. Quando tornou a olhar, a velha tinha desaparecido por artes mágicas.
– Viste-a? – perguntou, atarantado, ao falcoeiro.
– Vi-a? Quem, senhor?
– Estava a falar comigo quando chegaste. Ela disse-me que... Nada. Não é nada! – parou bruscamente. Hesitava sobre a natureza da conversa, desconfiado de que tudo não passara de uma alucinação. Perturbado, saltou para o cavalo e ordenou, lacónico: – Regressemos ao Paço!
Chamara-lhe pavão! A velha bruxa maltratara-o impiedosamente e, embora lhe tivesse perdoado o desbragamento da língua, não podia deixar de sentir um grande desconforto. Havia entre o povo quem desesperava por um renascimento português e olhava com desprezo para o desejado redentor, vendo em cada uma das suas mil penas coloridas todas as dores do imenso calvário em que se tornara o Reino. E se os mais simples o consideravam assim, os amigos fidalgos, alguns companheiros de juventude, desconfiavam da sua coragem para afrontar Filipe IV. Para todos era um enfeite. Um adorno submisso às ordens de Miguel de Vasconcelos, o arauto zelador dos interesses de Madrid.
Foi este incómodo que surpreendeu João Pinto Ribeiro, numa das suas visitas ao Paço, quando viu um duque exaltado, bem distante do sereno e afável João de Bragança.
– Há muito que a política deixou de ser feita com a ponta da espada. É cada vez mais a arte da razão, onde o poder do Estado se funda na observação do comportamento dos outros e na organização do pensar. A força serve o poder da ética política sem a qual se desmoronam sonhos e projectos. Não me falem mais em golpes, chega de bravatas e aventuras da Távola Redonda. Política! É de política que precisamos. Quem não souber isto, jamais será merecedor de um Reino. Que raio de fidalgos labregos produziu esta terra? Uma multidão de idiotas, que confunde os seus interesses pessoais com ímpetos guerreiros?
– Não os leve a mal, senhor duque. É grande o amor a Portugal que lhes vai na alma.
– É grande a idiotice. Grupo de imbecis!
– Imbecis, talvez seja exagerado. Esperam com impaciência o sinal de Vossa Senhoria para darem o seu sangue por Portugal.
João cortou a conversa ainda a ferver de ira.
– Não há sinais, Pinto Ribeiro! Não sou uma personagem de um conto de cavalaria, nem cavaleiro do encantador, mas tonto, Ricardo Coração de Leão. Li todas essas histórias de encantar, mas também li sábios como Thomas More e Bacon, aprendi o pessimismo com Montaigne e, apesar de ser considerado herético, percebi a razão de Maquiavel e a sua ideia de Estado.
– Esse homem está no Index! – exclamou o administrador.
– Os livros proibidos guardam verdades tão poderosas que metem medo a quem vive de verdades absolutas e inquestionáveis. Mais valia que os meus fidalgos arriscassem as proibições do Santo Ofício e aprendessem alguma coisa sobre o futuro em vez de continuarem em delírio com o Amadis de Gaula e o Palmeirim de Inglaterra. Ainda existem por aí muitos descendentes da feiticeira Urganda e do mago Arcalaus, mas já não protegem príncipes nem cavaleiros.
– Senhor, eu...
– É como digo! Sinais, espero eu e nunca mais chegam porque os meus conspiradores preferem discussões exaltadas sobre valentia e cobardia e não tratam do que devem para que tudo isto faça algum sentido.
– Que quer dizer, senhor duque?
O tom de voz de João de Bragança continuava agressivo.
– Chegaram notícias de França? Algum emissário conseguiu saber o que pensa Carlos I? Temos alguém de confiança em Barcelona que nos avise quando rebentar a insurreição catalã de que tanto se fala?
– Tudo está a ser feito com a discrição que Vossa Senhoria pediu. De França chegam notícias animadoras. Numa breve conversa, Richelieu terá ficado satisfeito querendo saber mais detalhes. Em Inglaterra, está a ser mais difícil. El-rei D. Carlos está a viver graves contendas internas com a Igreja escocesa e com os republicanos, para além das frentes de batalha no exterior.
– E da Catalunha?
– Os motins são cada vez mais frequentes, protestos sobre protestos contra os aumentos de impostos, mas não se chegou à insurreição aberta. As forças locais de Sua Majestade D. Filipe vão controlando as escaramuças.
– Como se vê, faltam todos os sinais essenciais para se pensar num afrontamento definitivo contra Madrid.
João Pinto Ribeiro não respondeu. Seria tão difícil congregar todos os pressupostos exigidos pelo duque que temia que o plano insurreccional fosse sendo adiado infinitamente.
D. João reparou no ar desanimado do seu administrador e, passada a exaltação, procurou confortá-lo.
– É difícil, não é?
– Não sei se vamos conseguir essa complexa concordância de astros sem que os espiões do conde-duque de Olivares e de Miguel de Vasconcelos descubram os nossos propósitos.
– É preciso saber resistir, meu caro. A temperança é uma virtude consagrada por Deus. Quando queremos fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha, temos de saber esperar pela boa vontade dos homens, os caprichos dos astros e a bondade de Deus.
– Muito bem! – assentiu Pinto Ribeiro e, mais resignado, informou: – Irei reforçar as mensagens já enviadas e dar esperança à nossa gente.
– Mais do que esperança é dar-lhes um banho de verdade e de realismo. Não se trata de preparar uma batalha contra moinhos de vento nem de combates pela bela Dulcineia. À espera deste golpe de Estado está, nem mais nem menos, o maior exército de que há memória e, ciente da herança de Hernán Cortês, que dizimou uma população inteira de astecas, capaz das maiores crueldades, incapaz de mostrar grandeza nas suas vitórias.
Luísa de Gusmão entrou na Sala das Virtudes e parou, surpreendida.
– Desculpem-me. Não sabia que estavam aqui.
Pinto Ribeiro aproveitou a oportunidade. Pegou na pasta, dirigindo-se à porta em passo apressado.
– Não vale a pena, senhora. Já recebi as ordens do senhor duque e devo pôr-me ao caminho.
Fez uma vénia e saiu rapidamente. A duquesa ficou a vê-lo afastar-se, com curiosidade. Conhecia bem os dois homens para decifrar na gravidade das expressões de ambos que a conversa que interrompera incendiara uma acesa discussão.
Desconfiada, dirigiu-se ao marido:
– Está tudo bem?
– Sim. Tudo bem – respondeu ele, lacónico.
D. João dissimulava a tensão que, momentos antes, se gerara naquela sala e Luísa pressentiu que não era o momento de fazer perguntas impertinentes.
– Posso ficar sentada ao pé de ti? Prometo que não vou dizer nada. Apenas preciso de companhia. Da tua companhia – sublinhou, e sentou-se de imediato, sem que ele tivesse tempo para reagir.
João não conseguiu esconder um sorriso bem-disposto. Luísa tinha esse condão. Transformava o mais dramático dos ambientes com o milagre da sua presença inquieta e vibrante.
O duque serviu-se de um licor e aproximou-se da janela que se abria para o Terreiro. Alguns espadachins exercitavam as armas e vários bufarinheiros esperavam clientela. Chamou-lhe a atenção um deles, o Laparduço, que tinha à volta meia dúzia de possíveis compradores. Retirava produtos dos alforges do seu burro, o Manjerico e, com grande gesticulação, falava aos presentes. Entreabriu a janela para conseguir ouvir o que o mercador vendia com maneiras tão entusiasmadas e chegou-lhe a voz esganiçada do mentiroso.
– É este louro, digo-vos eu. Toda a gente queima louro para livrar as casas de assombrações e maus-olhados. Mas usam louro escolhido a eito, do loureiro mais à mão. Nem todas as árvores têm a mesma força milagrosa. Não é nada disto que vos mostro. Estas folhas vieram das Beiras. Não existe outro lugar no Reino com tanta casa assombrada e onde esvoaçam tantas almas penadas. Deus foi generoso. Onde pôs a pior maleita, também pôs a melhor mezinha, e não existe mais poderoso remédio para limpar ambientes infestados pelos desígnios do Maligno do que as folhas de louras beirãs. Mesmo da aba da serra, criadas à chuva e à neve, para uma alma pura ficar tão limpinha como deve entrar no Reino dos Céus.
Fechou a janela e permaneceu, ainda por instantes, a observar o Terreiro. Eram-lhe familiares os sons daquela bela praça, companhia amiga que dava vida a Vila Viçosa. Por fim, voltou-se para Luísa de Gusmão.
– Encontrei uma mulher do povo que não me reconheceu e falou do duque de Bragança chamando-lhe pavão.
– São aves lindíssimas. Os nossos são tão belos que me perco a admirá-los – comentou, procurando assim transformar em lisonja aquilo que o marido, na realidade, sentia como censura.
– Não foi por me achar bonito que fez essa afirmação.
– Então?
– Em Portugal, pavão é um indivíduo com muito brilho por fora e tão fraco de espírito que as penas são tudo.
Ela soltou uma gargalhada sincera.
– É uma boa imagem. Sendo a assim, a corte de Filipe está cheia de pavões.
– Serei mais um deles? – perguntou, pensativo.
– Essa pergunta faz de ti apenas um tonto.
– Porquê?
– Porque és o homem mais sábio, mais sensível e prudente que existe e, como sabes, conheço boa parte da fidalguia portuguesa e andaluza.
– Não exageres.
– Um dos raros homens que pensa tudo aquilo que diz – fez um compasso de espera e rematou com ironia: – Embora raramente diga aquilo que pensa.
Calaram-se por momentos. Luísa vigiava-lhe com atenção a expressão do rosto para perceber o alcance das suas palavras e, porque não obteve reacção, concluiu o juízo:
– Como é agora o caso.
João olhou-a, surpreendido.
– O quê?
– O que te preocupa é outra coisa. Não creio que uma mulher do povo que, num momento de tontice, te chamou pavão possa fazer com que a tua testa fique franzida da maneira como está agora.
– Falas com a minha testa? – tentou brincar.
A fogosa andaluza foi directa ao assunto:
– A tua conversa com o doutor Pinto Ribeiro pôs mais rugas nessa testa do que cores existem nas penas de qualquer pavão. Foi discussão que não correu bem, não queres falar sobre ela e, por isso, te digo que pensas o que dizes, mas não dizes tudo o que pensas.
O duque não respondeu. Aproximou-se novamente da janela, olhando vagamente os mercadores. Laparduço tinha agora à sua volta uma verdadeira multidão e gesticulava com maior exuberância.
– Pensava em Ulisses e no seu regresso a Ítaca. Aos braços da sua Penélope. Depois de ter fugido do ciclope Polifemo, visitou Éolo, o senhor dos ventos, que lhe ofereceu um saco que continha todos os ventos favoráveis para o seu regresso a casa. Porém, os seus homens, impacientes de curiosidade por pensarem que nele havia ouro, abriram o saco, libertando um terrível vendaval que os haveria de levar ao naufrágio. Ítaca já estava à vista e a tempestade fê-los recuarem até à ilha Eólia – comentou o duque, que, suspirando profundamente, sem conseguir afastar a preocupação, acrescentou: – Eles não sabem que a impaciência e a precipitação de gestos impensados podem não nos deixar chegar à nossa Ítaca, que, parecendo tão perto, pode estar longe, perdida no infinito para sempre. A espera provoca tanto sofrimento, Luísa.
– Embora só conheças a felicidade se beberes todo o fel que existe no cálice do sofrimento. Sem ele, jamais conheceríamos os mais puros estados de alma – proferiu a duquesa com solenidade.
O marido cumprimentou-a com um sorriso terno.
– Muito hem. É um juízo filosófico profundo para uma jovem que vai fazer vinte e seis anos.
Ela encolheu os ombros, divertida com a conversa.
– O meu pai é que costumava dizer isto. Prefiro a música à filosofia – depois a expressão dela tornou-se grave. – Sabemos que é assim. A dor imensa que vivemos quando perdemos a nossa filha Ana, vai para três anos, provocou tantas mágoas que, ao mesmo tempo, abriu as portas da felicidade para vermos crescer Teodósio e Catarina. A noite e o dia fundidos num só, em espelho, que nos revela o sofrimento e a felicidade.
João afagou-lhe o ventre. Ela estava novamente grávida e estava decidido que, se fosse um varão, chamar-se-ia Manuel, se fosse uma menina, teria o nome de Maria. E beijou-lhe a fronte.
– Tens razão, minha querida. Esperemos que Deus te ajude neste teu novo regresso a Ítaca.
– És um homem bom, João de Bragança! Cada um de nós, todos os seres vivos, tem um regresso a fazer dentro de si. Ao ventre da terra e, até lá, está nas nossas mãos construirmos o percurso que nos leva até Deus.
Luísa amava-o com tal dedicação que não queria forçá-lo a contar o que acontecera com João Pinto Ribeiro. Porém, exercitava-o para que, caso entendesse, lhe saciasse a curiosidade. Rematou com intencionalidade:
– Embora existam homens que, pelos seus saberes e pelos seus actos, garantem a imortalidade na memória dos povos antes do regresso ao definitivo encontro com o Eterno.
Correu mal a tentativa. João enfrentou-a crispado.
– Quer dizer-me alguma coisa, senhora?
– Não. Nada de especial. Falava dos destinos dos homens e do seu encontro com Deus.
Instalou-se um silêncio incómodo entre ambos. O duque não tinha dúvidas de que a esposa pressentia que alguma coisa fora do normal se estava a passar com tantas idas e vindas ao Paço, visitas curtas, sem pompa nem festa, que mal terminavam as conversas cada visitante partia, rápido.
Gostaria de partilhar com ela o segredo que lhe enchia a cabeça, mas também duvidava das consequências dessa decisão. Ia expô-la a um risco que talvez a levasse à morte, pois seria esse o reverso da medalha, caso a conspiração fosse descoberta. E embora não duvidasse da sua lealdade, o seu pai, o duque de Medina Sidónia, era um dos poderosos de Espanha e conselheiro de Filipe. Julgava que colocaria Luísa numa posição delicada, obrigada a escolher entre os deveres de filha e para com a sua terra, e o marido e o chão que vira nascer os seus filhos. Não podia permitir que se transformasse na Cordélia de seu pai, fiel no seu amor por Lear, num libelo de traição que conduzisse a sua amada à ruína. João de Bragança tinha consciência de que escolhera um jogo de vida e morte. Não arrastaria consigo aqueles que mais amava. Foi isto que lhe disse com prudência:
– Minha querida Luísa, sei o que me quer dizer e a senhora sabe aquilo que eu penso. Mas não é o tempo da confissão. Deixe-me percorrer esta caminhada, não querendo conhecê-la. Não é por deslealdade que me calo. É por amor.
Ela sorriu docemente. Aproximou-se e beijou-o.
– Eu sei, meu senhor. Sei bem a fogueira onde nasce a sua febre e a sua angústia – murmurou, para depois sublinhar cada palavra que proferiu: – Seja aquilo que for, estarei sempre aqui. Este é o ninho onde crescem os nossos filhos e eu sou como as rolas. Por mais distantes que sejam os voos, regressam sempre para lhes dar colo e alimento.
E perderam-se num abraço emocionado.
PIRILAMPO E CORALINA
O tempo escorria em Vila Viçosa com a mesma lentidão mansa de há séculos, marcado pelos sinos dos campanários. Sebastião levantava-se quando, ao toque das laudes, no Convento dos Agostinhos se elevavam as vozes mornas dos frades, consagrando mais um dia a Deus, entoando o Cântico de Zacarias, Benedictus.
Benedictus Deus Israel
Quia visitavit et fecit redemptionem plebe.
Crescia pelos campos silenciosos um clamor brando, suplicando pelo encontro dos caminhos da salvação e pela remissão dos pecados. O Alentejo despertava ao som do coro e os pardais, saindo dos abrigos sob os telhados dos casarios, imitavam-nos em chilreada viva, que acordava os mais indolentes.
O pombeiro seguia em direcção às cavalariças para tratar dos cavalos que lhe estavam destinados, trabalho que havia, por força, de terminar antes da hora média, quando comia um farrapo de pão com banha ou umas sopas de cavalo cansado.
Depois, seguia para o pombal. Subia as escadas em caracol, abria a portinhola e os pombos saíam em revoada, sacudindo as asas e espreguiçando-se pelos céus. Limpava com vigor os poleiros e o piso por forma a evitar a multiplicação de piolhos e tornava a descer. Media meio alqueire de sementes e voltava a subir, espalhando a comida no beiral em redor do pombal. Não demorava muito tempo até começarem a regressar, depois do voo matinal, para se banquetearem. Era o momento mais feliz dos dias de Sebastião. A maioria atacava gulosamente as sementes, outros vinham poisar nos ombros e nos braços do rapaz, alguns na sua cabeça, e ele, divertido, deixava cair grãos ao longo do corpo para que debicassem naquele conluio extremo com o seu tratador.
Não era a falta de alimento nos azinhais e bosques em volta que obrigavam àquela refeição matinal. No bando, militavam pombos-correios, mensageiros treinados para levar mensagens até ao Paço Ducal. Eram transportados em gaiolas para os locais mais distantes, à pata atava-se a mensagem com um pequeno fio e soltavam-se aos céus. O pombo-correio ganhava altura, escutava os ventos, estudava o Sol, descortinava o rumo de regresso e voava como um raio de trovoada em direcção ao pombal para entregar as novas de que era portador. Um mistério! Ninguém conseguia explicar que mecanismo tão exacto havia na cabeça daquela ave que, a dezenas de léguas do seu destino, não desperdiçava voo, tacteando outros caminhos, e chegava sempre pela estrada mais curta do céu.
Sebastião chamava-lhes os doze apóstolos, mensageiros das palavras de muitos senhores, e cada um deles fora baptizado conforme o seu gosto. O Brasil já voara da cidade do Porto até Vila Viçosa. Era o mais forte, com peitorais de guerreiro, cabeça de cinza prateada, asas musculadas decoradas com penas azuis perfeitas. O Guerreiro tinha muitas manchas brancas nas costas e nas penas do rabo, que se agitavam como se fossem bolhas quando debicava, entusiasmado, no beiral. Vulgarmente ia com o alcaide de Soure e quando regressava mais parecia que tinha feito um pequeno volteio sobre a Tapada, tal era o seu fôlego. Depois havia o Pirilampo, o mais vivo e mais rápido de todos. Pequeno, com o bico ondulado, parecia rosnar como os gatos, quando se lhe fazia festas. Era um daqueles que gostavam de comer na mão de Sebastião e o preferido de Coralina, a empregada da cozinha, que partilhava com o pombeiro a paixão por aquelas aves. Ainda tratava do D. Sebastião, baptizado em homenagem a o Desejado, pombo soberbo de olhar vivo e tons avermelhados.
Ele próprio recebera, pela mesma razão, esse nome quando nasceu numa casa na Rua de Angerino. Sebastião andaria pelos vinte anos e com o seu nome forçosamente haveria mais de trinta homens só naquela vila. E sabia que assim se chamava por ser uma lembrança e um desejo, uma espera e uma esperança, uma saudade e um sonho. Por tal razão, também acreditava que o rei perdido haveria de regressar numa qualquer manhã de nevoeiro.
Depois da média, fechava os pombos-correios para os soltar mais tarde e fazê-los voarem antes das vésperas.
A Ilha do Paço, mesmo ao lado da habitação dos duques, fervilhava de vida. Eguariços, ferreiros e ferradores, almocreves e ganhões, entravam e saíam do território onde descansavam dezenas de puros-sangues lusitanos, cavalos de nobreza e qualidades invulgares.
Eram lindos! Ali eram cuidadas com desvelo as melhores esquadras do Reino. E, embora tivessem passado mais de sessenta anos, os hábitos eram tão lentos quanto o tempo, depois da ceia, no Pátio das Galinhas, juntavam-se os mais novos, em torno da velha Ermesinda, rainha das cozinheiras, que debitava as mesmas histórias que, noutros tempos, Ti Honório contara à Efigénia do Abegão e seus companheiros de criadagem.
Sebastião era dos mais velhos e, de vez em quando, intrometia-se contando aventuras dos dias em que se afastava do Paço, com os pombos em gaiolas, para os treinar no sentido do pombal. Porém, era da velha cozinheira que vinham os mais fascinantes dos relatos, e os mais jovens, olhando as estrelas, imaginavam os heróis empenhados na luta contra monstros marinhos e criaturas fantásticas, que eram metade homem e a outra metade cavalo, verdadeiros centauros, que urgia vencer para salvar a princesa encantada presa no castelo daquele reino que ficava sempre muito, muito longe de qualquer lugar.
Coralina gostava, sobretudo, de um dos contos de Ermesinda. Noite após noite fazia o pedido.
– Conte aquele da Cinderela.
E não era a única. Fazia-se silencio, esperando a narrativa da pobre órfã, maltratada pelas irmãs, que, numa noite de baile no palácio, uma fada tocara com a sua varinha mágica, transformando-a na mais bela das mulheres. Dos ratos, fez cavalos. De uma enorme abóbora, o mais delicado dos coches, e conseguiu entrar na festa com sapatos de cristal e um aviso: à meia-noite, o encanto desapareceria e teria de voltar à casa onde a madrasta e as irmãs a tratavam como escrava. O príncipe, um garboso mancebo, dançou toda a noite com ela que, de tão encantada, se esqueceu das horas. Quase no limite do prazo, fugiu apressada, deixando um sapato para trás. Arautos do príncipe correram o reino em busca do pé em que ele servisse. E quando já esgotavam as esperanças e abundava tristeza no palácio, eis que se descobre a dona, a miserável criadita que vivia infeliz. Levaram-na ao príncipe, que a recebeu, encantado. Casaram e foram felizes para sempre.
Coralina não considerava o final do conto. Terminavam todos assim. Casaram e foram felizes para sempre. Apreciava o baile. Quando a velha Ermesinda não se sentia muito cansada, estendia a história e explicava com minúcia o ambiente iluminado por candelabros de cristal que reflectiam todas as cores do universo; os vestidos das damas relampejavam, os sorrisos multiplicavam-se, dizendo que estavam todos felizes. Era num reino assim, onde a felicidade fosse coisa farta, que sonhava viver. Em que estar feliz não exprimisse um momento efémero, antes fosse todo o tempo como um só, passando por todas as horas litúrgicas, dia e noite, um sorriso eterno com coração alegre, sem espaço para a amargura e, muito menos, para a solidão, que era, para Coralina, o mais sinistro dos buracos do Inferno.
Nascera e nem recordava o dia em que se tornara órfã. Não tivera tempo para despertar quando os dois partiram e, por tal motivo, não sabia o que era colo de mãe, nem afago de pai. Crescera no Paço entre sorrisos fugazes, ralhetes sem direcção, ouvindo a voz de Ermesinda.
– Aprender a talhar o melão. Não é assim. Não te distraias quando o caldo está a ferver. Vai mexendo para não pegar. O forno para cozer o pão tem de estar bem quente. Mete mais lenha. Não olhes para os rapazes com esse sorriso de orelha a orelha que eles querem todos o mesmo. O que Deus te pôs entre as pernas é para tu dares ao homem que Ele escolher para ti. Gostas muito de ir ao pombal falar com o Sebastião, mas toma cuidado. Não é má pessoa, mas já é homem feito.
Não passavam de falas desgarradas, tão soltas que se tornavam numa mão-cheia de juízos desvairados. Sem coração.
Só à noite, quando se juntava aos outros, as histórias de contar faziam sentido porque tinham um princípio e um fim, e pelo meio havia afectos e sonhos por cumprir.
Mal sabia a infeliz Coralina que, naquele mesmo pátio, a sua avó, Efigénia do Abegâo, sonhara com cavaleiros encantados, escutando os mesmos contos que ela, agora, ouvia.
Divertia-se com o Pirilampo. O pombo era brincalhão e gostava dela. Aconchegava-se no seu colo para que lhe acariciasse as penas. Saltava para a cabeça da moça esperando que ela fizesse trejeitos e, de asas abertas, equilibrava-se para não cair. Coralina punha sementes nos lábios e Pirilampo ia debicar, para saltar para o seu ombro e arrulhar no seu ouvido como se namorasse e lhe contasse histórias de amor.
Sebastião olhava a formosa criada a brincar com a ave e não podia deixar de sorrir com ternura.
– Um dia, gostaria de ser pombo para poder beijar os teus lábios.
– És um palerma! – respondia-lhe Coralina, corando.
– Qual era o mal?
– Não és o Pirilampo. É bem mais divertido do que tu.
À cabeça vinham os avisos de Ermesinda e fugia à conversa, embora gostasse dos olhos negros, cintilantes, do pombeiro e do seu sorriso bem-disposto. Quando as noites chegavam e se reuniam em torno das histórias da velha cozinheira, procurava ficar junto dele. A sua presença dava-lhe segurança e gostava do seu cheiro.
– Por hoje, acabaram-se os contos. Os sinos tocam a completas – declarava a velha.
Pelo ar abriam-se as vozes gregorianas dos frades, recitando o Cântico de Semião.
Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbuum tuum in pace..., e agradeciam a Deus pelo dia já ido, pedindo uma noite tranquila para os seus servos; o coro era a suave e tranquila brisa que se interpunha entre a escuridão do céu e o sossego da terra, um véu sagrado que ajudava à paz no descanso para mais um dia de faina. Quando os frades se calavam, os grilos começavam a cantar.
A HORA DO DUQUE
João de Bragança passeava, silencioso, na Sala do Cântico dos Cânticos. Num dia normal, àquela hora, estaria na Ilha do Paço a observar o trabalho dos eguariços com os seus cavalos. Mas não era o caso. Esperava a chegada de dois amigos que traziam novas importantes de Lisboa, e procurava adivinhar que sentido iria ter a conversa que poderia decidir um novo e misterioso caminho para os destinos do Reino e da sua própria vida.
O pombo-correio enviado por Pêro de Mendonça, alcaide de Mourão e um dos seus maiores amigos, trouxera a mensagem curta. «Está tudo tratado. Depois de amanhã vou aí.»
Não era a primeira vez que recebia uma mensagem semelhante. Depois, ao fazer o levantamento de cada problema por resolver, surgiam novas dúvidas e era adiada a decisão que há tanto lhe era pedida. Sabia da impaciência dos outros conjurados, porém, já tomara a decisão de não aceitar riscos desnecessários. Já bastava a audácia para tão grande feito. O movimento, que estava em marcha há vários meses, poderia ser a última Alcácer Quibir e, desta feita, desfazendo em cinzas aquilo que restava de um Reino que há cerca de um século era dos mais poderosos do mundo.
De vez em quando, aproximava-se da janela e espreitava o picadeiro, onde dois moços de estrebaria faziam correr o Júpiter, cavalo já velho, cansado, que servira com galhardia o seu pai, D. Teodósio. Agora, envelhecia com dignidade, sendo tratado com a mesma deferência de qualquer outro garanhão da coudelaria.
Porém, a inquietação de João de Bragança era grande e desviou o olhar. Havia um pressentimento que, desta vez, estaria mesmo tudo tratado, como sublinhava a mensagem do alcaide Pêro de Mendonça. Tantas vezes tinha repelido a aventura apresentando os mesmos argumentos, que, forçosamente, não o incomodariam para o informar de mais devaneios e impaciências cavaleirescas.
Mais adiante, perto da Horta do Reguengo, reparou em Coralina, moça da cozinha, que, de cócoras, ouvia as explicações que lhe eram dadas por Sebastião, enquanto segurava um pombo na mão. A conversa era, sem dúvida, sobre a ave, a rapariga acariciou-lhe suavemente a penugem da cabeça e um breve sorriso surgiu no rosto preocupado do duque. Tinha a estranha sensação de que o tempo acelerara dentro de si. Conforme a ideia ia ganhando corpo, o preguiçoso tempo assinalado pelos sinos da Igreja de São Bartolomeu dos Mártires ganhava outra velocidade dentro da sua mente, numa correria infernal para pensar os problemas que a França colocaria a tão audacioso golpe contra o império dos Habsburgos, querendo adivinhar os caprichos de Carlos I de Inglaterra, a braços com tumultos internos e ambíguo nas alianças externas.
Pedira cautela acrescida em Roma. Sabia que não contaria com aplausos caso fossem expostos claramente os propósitos portugueses. A convicção desta resistência era tal que João de Bragança ficava bloqueado quando queria imaginar a forma de entendimento e concordância do Vaticano. Se Urbano VIII mantivesse a mesma atitude amistosa dos Papas São Pio e Gregório XIII para com a Casa de Habsburgo quando Filipe se instalou no trono português, teria de inventar um negociador excepcional, exímio na retórica, excelente na argumentação, para o convencer da razão lusitana.
Havia um homem com esses atributos. Estava guardado nos seus pensamentos. Um tribuno como nunca se vira, que escrevia de forma tão brilhante e clara que parecia ser a pena que empunhava guiada por Deus. Um homem que usava as palavras como canhões a bombardearem ferozmente o inimigo, que as levava até aos limites da ternura, que transformava sermões em pedradas, epístolas em grandiosos poemas.
Infelizmente, estava no Brasil. Era o padre António Vieira, jesuíta, pregador e inquietador de almas. Iludindo os espiões espanhóis, escrevera-lhe uma missiva ambígua. Depois de reconhecer as suas extraordinárias capacidades argumentativas, mostrava como seriam importantes as qualidades morais e cristãs para a boa educação do seu filho Teo- dósio. Lançara o isco e esperava. Para além de um esmerado educador, seria o mais terrível dos embaixadores. O Vaticano seria forçado a escutar um homem com o seu génio, caso a pequena barca onde estava enfiado não se despedaçasse contra o soberbo galeão espanhol.
Ouviu o sino a tocar para a sexta e a inquietação tornou-se maior. Os mensageiros que esperava de Lisboa tardavam e bem sabia como as estradas eram verdadeiras armadilhas onde espiões de Miguel de Vasconcelos poderiam liquidar definitivamente as expectativas de notícias que o pombo lhe trouxera.
Olhou em torno da Sala do Cântico dos Cânticos. Estava para breve uma despedida definitiva, fosse qual fosse a escolha que iria fazer. Aquele inspirado recanto do Paço, onde aprendera música e se deliciara com algumas das mais belas partituras, estaria muito tempo longe de si. Assim como as discussões intermináveis com João Lourenço Rebelo, seu mestre e músico invulgar, sobre a virtude da ópera, a construção de polifonias, a doutrina dos afectos que procurava transformar as notas musicais em cada uma das emoções que brotavam do coração.
Ali nascera o Adeste Fidelis, que compusera para as festas de Natal, tocado pelos mestres europeus que remetiam para o passado o cantar gregoriano.
Adeste fidelis, laeti triumphante
Venite, venite in Bethlehem
Natum videte Regem Angulorum
Venite adoremos, venite adoremos
Venite adoremos Domine.
Aflorou-lhe novo sorriso ao recordar o ar de espanto do seu mestre quando escutava os primeiros borrões que o duque tocava no órgão e trauteava. No fim da peça, com o olhar embaciado pela emoção, João Rebelo proclamara, solene:
– Senhor duque, muito enganado andarei pelos caminhos da música se não vos disser que a vossa inspiração criou uma obra imortal.
– Não exagere, meu caro mestre. Não passa de uma simples cantiga de natal.
– Então, preparai-vos, que muitos natais passarão para além das nossas vidas e este Adeste Fidelis continuará a ser recitado com a mesma alegria com que agora o ouvimos.
– Mestre João Rebelo, somos demasiado amigos para que me ofereça louvaminhas pueris.
– Não sou homem de aplauso fácil. Nunca o fui e Vossa Senhoria sabe-o. Porém, a peça que escrevestes conseguiu aquilo que é o sonho de grandes artistas. Entregar contributos para a universalidade desta fala que todos os homens do mundo entendem.
– Está a falar a sério? – perguntou João de Bragança, desconfiado e justificou-se: – É uma simples cantiga.
– O tempo será testemunha daquilo que vos digo. Vamos apenas fazer uns acertos.
E passaram dias experimentando este e aquele acorde, compondo para as flautas, para os alaúdes, para as violas, numa tempestade de entusiasmo que transformou a sala de música numa alucinação criadora de sons.
Regressou à janela e tornou a observar o parzinho. Sebastião tratava do pombal e treinava os pombos-correios, mensageiros do ar que recolhiam notícias de guerras e de outros acontecimentos que urgiam em tempo, que um mensageiro a cavalo não conseguia ultrapassar.
Fora assim que, há muitos anos, chegara ao Paço a notícia de que seu falecido pai, D. Teodósio, ficara cativo na batalha de Alcácer Quibir. Era um menino de dez anos que a imprudência do jovem rei queria a seu lado no momento do terrível confronto. Contou quem viu que quer amigos, quer inimigos se espantaram com a bravura da criança.
Pobre rei Sebastião, que olhou a nuvem e quis ver Juno! Se no lugar que ocupava no céu visse as consequências dos seus irreflectidos gestos, saberia que a verdadeira glória e a mais árdua das valentias se alcançam ao serviço daqueles que tanto o amavam. Que ainda o desejavam e por ele esperavam, iludindo a força da morte, acreditando que o maior dom que Deus entregou aos homens foi a esperança.
Não se surpreendia João de Bragança por ter sido convidado para padrinho de baptismo de tanto menino a quem foi entregue o nome de Sebastião. Tal como o pombeiro. Nome nascido da saudade e do desejo de futuro, testemunho material na crença sebastiânica que vivia apaixonadamente no imaginário das gentes de todo o Reino.
Sobressaltou-se quando ouviu nas costas a voz da sua esposa. O tumulto interior em que estava, saltitando de memória em memória, não o deixara perceber a entrada de Luísa de Gusmão na sala.
– Luísa!?
– Sei que é este o lugar onde te recolhes quando precisas de estar só com os teus pensamentos – adiantou com um sorriso sereno.
O duque retribuiu com outro sorriso.
– Aqui, a música acompanha-me. Parece que as notas musicais e as partituras respiram e falam através destas paredes.
– Estás preocupado – afirmou, desconfiada.
– Espero por Pêro de Mendonça e António Pais Viegas, que me hão-de trazer notícias de Lisboa.
Luísa deu um passo na direcção da janela e viu Sebastião lançar o pombo com aplausos divertidos de Coralina. A ave agitou freneticamente as asas para ganhar altura, rodopiou por cima da Horta, à procura de orientação, e decidiu-se, mergulhando em voo rápido na direcção do pombal.
– Está para breve? – perguntou a medo.
João hesitou. Os tempos de desconfiança que o Reino vivia desde a ocupação filipina haviam-no educado na prudência e sobre o limite das palavras. Nem com a esposa conseguia ter o entusiasmo da partilha.
– Talvez – respondeu, evasivo.
Ficaram os dois em silêncio. Luísa conhecia-o e bastava atentar no rosto fechado e pálido para compreender que o alcaide de Mourão e Pais Viegas, leal seguidor de seu falecido sogro D. Teodósio e que agora servia seu marido com o mesmo desvelo, traziam consigo um problema para D. João resolver.
– Queres que mande alguém vigiar a estrada de Lisboa para anunciar a chegada desses nossos amigos?
– Não. Nada de alvoroço. Quando chegarem, logo saberemos.
Haviam passado dois anos desde a despedida de D. Duarte de Bragança e, de tempos a tempos, regressava aquela inquietação que o deixava sisudo, olhando apenas para dentro de si, e de todas as vezes que ela quisera ajudá-lo fugia da conversa como lebre de galgo ou galinha de raposa.
Luísa não insistia, embora desconfiasse saber a origem do turbilhão que o torturava. Sobretudo desde Junho desse ano, quando a Catalunha se levantara em armas contra o poder dos Habsburgos. Revolução anunciada durante meses de motins e que estoirara como uma imensa explosão, que obrigou Filipe a socorrer-se do exército para dominar os ânimos. Dois meses depois, chegava uma ordem de Madrid, pedindo ao condestável português que mobilizasse forças em terras lusitanas para ajudar a debelar os insurrectos, e João tinha recusado esse desafio.
– Não temos exército, a Catalunha não é um problema português, portanto, o senhor conde-duque de Olivares que trate dos assuntos que preocupam Madrid e deixe-nos em paz. Já bem basta as miseráveis condições em que colocou este Reino.
Depois dessa decisão firme, talvez a primeira vez que afrontou claramente o rei Filipe, um sino tocou a rebate na cabeça de Luísa. O reservado marido cogitava desígnio bem maior do que a brandura das palavras com que desviava o assunto quando ela o questionava sobre a multiplicação de reuniões discretas. Começaram logo a seguir às graves alterações de Évora, e agora, desde esse Agosto, quase não passava uma semana sem que houvesse concílio à porta fechada com fidalgos que acorriam de Lisboa.
Não fora o caso de o conhecer tão bem e magoá-la-ia tanta discrição. Porém, numa noite chuvosa de Fevereiro de 1640, abraçados na cama onde celebravam a notícia da sua gravidez mais recente, sussurrara-lhe entre beijos e carícias.
– Não tenhas medo de mim.
João afastara-a, intrigado.
– Medo de ti?
– Eu sei o que se passa – retorquiu, tornando a beijá-lo com paixão.
– Que conversa é esta, Luísa? – perguntou, disfarçando a perturbação que, de repente, o invadiu.
A jovem duquesa embrulhou o corpo nu nos lençóis, apenas com a cabeça descoberta e com o olhar fixo num ponto, algures, do aposento, e adiantou como se estivesse em confissão:
– Sei que o nosso casamento não teve como primeira razão o amor entre os dois. O meu pai aceitou a política do nosso rei Filipe. Cultivar casamentos entre portugueses e espanholas, e também ao contrário, com o objectivo de dissolver a nobreza do Reino que tem ocupado há sessenta anos. Não fui uma dádiva. Fui um negócio.
– Foi sempre assim e... – ia responder o marido, contudo ela interrompeu-o:
– Não vale a pena mentir, João. Quando, há sete anos, parti de Sanlúcar de Barrameda não sabia quem era o homem que iria ser o meu marido. Se era alto, se era baixo. Temia que fosse um bruto, mas era minha obrigação obedecer às ordens do meu pai e do meu rei. Era, então, uma miúda com vinte anos. E cumpri o meu dever de filha do duque de Medina Sidónia, titular de uma das casas senhoriais mais poderosas de Espanha. Ordenou-me que casasse com o duque de Bragança, de Portugal, e não resisti.
Soltou um sorriso divertido antes de continuar.
– As minhas aias temiam por mim. Aquilo que se contava sobre os portugueses, gente ruim, preguiçosos, sem educação, traiçoeiros, não previa que o meu casamento fosse um encontro com a felicidade.
– Somos assim tão malvistos em Espanha?
Luísa fez uma careta divertida.
– Para lá do Guadiana, vivem os bárbaros. É o melhor elogio que podes ouvir da fidalguia andaluza. Afinal, são um bando de ignorantes parecidos com aqueles que vivem nesta margem do rio – rematou Luísa com desprezo.
Calou-se por momentos, olhando para as unhas das mãos como se nelas encontrasse inspiração para o que ia dizer. A sinceridade, por mais incómodos que causasse, era um dos traços do carácter da duquesa. Soltou um profundo suspiro e continuou como se o marido não estivesse ali, desnudado contra a sua nudez.
– Vim como serva e tornei-me amante. Não eras galante como os cavaleiros que frequentavam a casa dos meus pais. Eras delicado. Não eras um herói tonto, orgulhoso, que te envaidecias por ter esventrado muita gente em grandes batalhas. Afinal, o tal bárbaro que as minhas aias temiam era um homem de paz, que amava a música. Não praguejavas e sorrias com doçura.
– Não tenho dúvidas de que essa ideia dos portugueses é obra da propaganda do conde-duque de Olivares para denegrir a fidalguia lusitana, zangado com os motins que se erguem por todo o lado contra Filipe – observou o duque.
Luísa de Gusmão não retorquiu, continuando no mesmo registo confessional.
– Nos salões onde cresci falava-se de generais, exércitos e futuras batalhas. Aqui, discutes, com o mestre João Lourenço Rebelo, os dotes musicais de Palestrina e de Monte- verdi, de Cavalli e Abbatini. Como se tudo isso não bastasse, quando nasceu o nosso filho Teodósio a tua felicidade não era por teres um herdeiro, mas sim porque eras pai. Nunca mais vou esquecer o teu sorriso de felicidade quando lhe pegaste ao colo pela primeira vez e me agradeceste com os olhos húmidos de emoção. E nesse momento descobri que já não era tua serva, que já não eras o meu senhor. Dei graças a Deus porque em ti tinha descoberto o grande amor da minha vida.
João abraçou-a, comovido.
– Minha Luísa, minha querida Luísa!
Ela afastou-o com alguma brusquidão e, sentando-se na cama, a voz tornou-se mais firme.
– E contigo aprendi a amar a tua gente que labuta por estes campos. Aprendi e chorei e rezei para que diminuísse tanto sofrimento. Eu vi, João. Eu vi! Quando foram as rebeliões de Évora, como os pobres foram tratados pelos soldados espanhóis e pelo bispo. Não foram só espancados e corridos à espadeirada. Perseguiram os mais dedicados à sua terra como se fossem animais selvagens, maltratados e humilhados apenas porque tinham fome e os querem matar dessa forma. Que rei cruel é este que trata assim os seus servos? Como pode alguém espezinhar, em nome da arrogância dos Habsburgos, a terra que é berço e raiz dos nossos filhos?
João interrompeu-a.
– Cuidado, que estás quase a ofender o teu rei.
Reagiu, indignada:
– O meu rei és tu!
– Luísa!? Fala baixo.
– O meu rei és tu! – repetiu com maior convicção e explodiu: – Não sou espanhola. Os Medina Sidónia prestam vassalagem a um rei espanhol, mas sou andaluza por nascimento. Nos campos de Andaluzia, onde cresci e vivi, eu ouvia e sabia como tanta gente quer libertar-se do poder de Madrid. Nenhum povo quer viver submetido à tirania. Nem o teu, nem o meu. Nenhum!
Deixou-se cair na cama, enrolando os cabelos na ponta dos dedos da mão direita, mais serena.
– Decidi, quando descobri que te amava com tanta força, meu Deus!, que sou portuguesa por casamento e por amor. Sanlúcar de Barrameda é o doce berço onde nasci e cresci. Vila Viçosa e as terras do Alentejo, a grande nau onde me fiz mulher, aprendi o amor e dei à luz os nossos filhos, e vou dar outro que, agora, cresce dentro de mim. Amor maior não há e foi neste chão que esse amor nasceu. É a ti, aos nossos filhos, a esta terra tão doce quanto martirizada, que devo lealdade. Por ela sou capaz de pegar em armas e seguir-te para onde precisares de mim.
O duque abraçou-a, divertido e emocionado.
– Minha querida Luísa, és a minha Joana d’Arc. Adoro-te.
– Não acreditas? – perguntou com vivacidade.
– Claro que acredito. Não existe outra fidalga com a tua paixão pela vida.
– E por ti!
– Amo-te!
Sofregamente, tornou a procurar-lhe o corpo de pele sedosa e vibraram de paixão, que Luísa tinha o sangue dos cavalos árabes nas veias, amando-se em espasmos de prazer até que os primeiros raios de sol anunciaram a madrugada.
Apesar de lhe abrir o coração até ao tutano, João partilhava todos os segredos e encantamentos, com excepção daquele que guardava ciosamente, e ela chegou a temer que ele a julgasse capaz de trair tão nobre causa. Assustava-a a ideia. Porém, afastava-a a pontapé e aos encontrões, acreditando que seriam outros os motivos. Apesar das várias provocações, sempre respeitou esse silêncio. Haveria um dia e uma hora que João consideraria ser o momento da partilha.
Agora, meses depois daquela noite de confissões, ali estavam à espera de que chegassem os mensageiros de Lisboa. Os dois inquietos e João silencioso. Através da janela viram Coralina, que regressava da Horta, com o avental coalhado de limões.
Para afastar a tensão, o duque apontou para a rapariga e comentou:
– Sabes que aquela nossa criada é neta de uma bruxa?
– A Coralina? De uma bruxa? – perguntou, surpresa.
João conseguiu soltar uma gargalhada.
– Há pouco tempo encontrou-me fora de portas e chamou-me pavão. Pobre coitada! – e, mudando de tom, explicou: – Bruxa é forma de dizer para quem dela tem medo. Vivemos um tempo em que quem seja diferente no pensar e no agir ou é bruxo ou é conspirador contra Filipe. Segundo creio, não passará de uma pobre velhota que acompanhou a comitiva do meu falecido pai na tragédia de Alcácer Quibir. Teria nesse tempo a idade de Coralina, dezasseis ou dezassete anos. Não se sabe ao certo o que lhe aconteceu. Regressou muito tempo depois da batalha. A jovem que partira rija e sã de cabeça voltou louca e com um filho, produto de uma violação. Nunca mais recuperou o tino.
– Pobre mulher. E o filho?
– O meu avô tomou conta dele. Foi nosso eguariço durante muitos anos até que morreu de peste. Ainda viveu com uma nossa criada, que era de Borba e morreu do mesmo mal. Os dois tiveram esta filha, que cresceu aqui entre nós. O meu pai tinha-lhe uma afeição especial. Talvez por ter sabido quanto a avó sofreu em África.
Compreendia-se porque ficou com o nome de Coralina. Embora fosse lindíssima, a tez morena mais carregada deixava adivinhar uma ascendência africana, o cabelo de azeviche reflectia a luz do Sol, e os olhos negros, redondos, eram belos.
– E a velha? Que é feito dela? – perguntou a duquesa sem deixar de olhar a serviçal, que se dirigia ao Pátio das Galinhas.
– Vive num casebre na estrada de São Romão. Nunca mais se aproximou das pessoas, mas garante, a quem a visita, que viu o nosso rei D. Sebastião partir a coberto de um manto de nevoeiro que envolveu a batalha. É desse manto que, um dia, se vai libertar para regressar pelas praias do Algarve. Embora, quando me chamou pavão, a versão sebas- tiânica tenha sido diferente.
Luísa notou alguma perturbação na voz dele e inquiriu:
– Que te disse ela?
– Disparates, Luísa. Que se pode esperar de uma velhota cuja vida foi destruída na juventude por acontecimentos tão terríveis? É uma pobre infeliz!
Ficaram em silêncio observando Coralina, que desaparecia no interior da cozinha. Luísa alvitrou, insinuante:
– É a crença de toda a gente. Um dia, esse belo rei voltará sob a pele de um príncipe jovem e austero. Assim como tu – insinuou Luísa.
– Disparates! El-rei D. Sebastião, se fosse vivo, teria agora oitenta e seis anos. Aceito a crença, mas não acredito nesse regresso. A verdade é que a avó de Coralina chegou, anos depois, estropiada por tanto sofrimento, e escondeu-se, medrosa, numa vida de eremita. Não fala do que viu. Apenas dos medos que sentiu e das angústias que viveu até lhe transtornarem a razão. Chamam-lhe Efigénia Pé de Galinha porque usa uma pata de galinha, já seca, presa ao pescoço por um cordel.
– Pobre mulher! – repetiu Luísa e perguntou: – Ao menos a neta visita-a?
– Duvido de que ela saiba que tem uma neta.
– O quê? – Luísa olhou-o, espantada.
– É uma história muito antiga, Luísa. Não sei pormenores. Apenas recordo esta conversa com o meu pai e a certeza de que a minha avó Catarina sempre protegeu o filho que Efigénia trouxera de África, ainda muito pequenino.
A estranha história que D. João contara a Luísa deixou-a intrigada. Era uma enorme injustiça avó e neta não se conhecerem porque a vida lhes trocou as voltas. Porém, foi interrompida por um aio. Vinha afogueado, cabeça descoberta, fez uma vénia e o duque antecipou-se, denunciando a ansiedade:
– Chegaram?
– Estão a subir a escadaria do Paço, meu senhor.
– Leva-os para a Sala de Hércules. Já lá vou ter.
O aio fez outra vénia e saiu, apressado. João de Bragança voltou-se para a duquesa, pegou-lhe nas mãos e olhou-a nos olhos com firmeza.
– Escuta-me! Uma noite, há muito tempo, quando engravidaste do nosso inditoso filho Manuel, que, infelizmente, morreu no dia em que nasceu, há três meses, con- taste-me da tua paixão pela nossa Casa, por esta terra, que te pertence, e pelo nosso povo, que amas.
– Lembro-me. O amor aprende-se e hoje conheço-o ainda melhor do que nessa noite – respondeu com um sorriso terno.
– Então, confia na minha prudência. É por te amar e para te proteger, assim como aos nossos filhos, que não te falo destas visitas e dos mensageiros que chegam e partem cada vez com mais frequência. Confia em mim, Luísa de Gusmão.
– Eu confio – murmurou esta.
Beijou-a na testa e saiu. Ela não conseguiu segurar as lágrimas. Afinal, a fuga dele a cada insinuação, às abordagens mais directas, às sugestões mais distantes sobre o segredo que fechara a sete chaves no coração, confirmava as suas suspeitas de que algo de grande e perigoso iria acontecer. João evitava expô-la a tais ameaças. E estava para breve, sem dúvidas. A visita dos dois amigos, que frequentavam regularmente o Paço, esperada com indisfarçável inquietação, era a prova disso.
Luísa deu por si ajoelhada no oratório, a rezar por João de Bragança e pela sorte do seu destino.
Na Sala de Hércules, os dois cavaleiros esperavam pelo duque. As portas foram fechadas com ordens para ninguém entrar e cumprimentaram-se. O alcaide de Mourão entregou uma carta.
– Aqui está a mensagem – esclareceu em voz baixa.
– Vem assinada pelos que nos estão mais próximos?
– Sim, meu senhor. Nós não assinámos porque viemos dizer-vos de viva voz aquilo que vai ler – respondeu Pais Viegas.
D. João procurou as assinaturas. Reconheceu logo a letra do arcebispo, D. Rodrigo da Cunha, do seu amigo João Pinto Ribeiro, de D. Miguel de Almeida e do destemido D. Antão de Almada. Outros nomes se lhes seguiam.
Aproximou-se da janela para ler a missiva e os dois mensageiros recolheram-se em silêncio. Não se lhe notava a mínima expressão no rosto, enquanto os olhos passeavam pelas palavras que lhe eram dirigidas
Ao terminar a leitura, ficou em silêncio, pensativo, cabisbaixo. A postura inquietou Pêro de Mendonça, que deu um passo em frente.
– Qual é a vossa decisão, senhor?
– Há notícias do cardeal Richelieu? E do rei Carlos I? – quis saber, iludindo a pergunta do alcaide.
– Apoiam a nossa intenção de libertar a Coroa portuguesa.
A resposta não o satisfez.
– Apoiam, como? Com exércitos? Com o reconhecimento imediato e ajuda?
– Querem negociar a ajuda, com a certeza de que desejam ver o poder dos Habsburgos diminuído nesta guerra que travam entre eles há tantos anos. A revolta da Catalunha obrigou Filipe a reorganizar as tropas e as frentes de batalha. A nossa acção vai apanhá-lo sem força para atacar – esclareceu o alcaide.
O duque brandiu a carta, num gesto de desalento.
– É o cinismo político na sua forma mais pura. Richelieu quer-nos em luta, a Inglaterra também, mas o objectivo é enfraquecer os seus próprios inimigos para resolver os seus problemas. Pouco lhes interessam as nossas fragilidades. Se formos derrotados, lavam as mãos como Pilatos. Se vencermos, vão negociar a ajuda para nos pilharem territórios e a fazenda. São verdadeiros abraços de jibóia.
Havia alguma irritação na voz de João de Bragança. O poder das grandes nações tratava sempre com desprezo os sonhos dos humildes. A política, por vezes, deixava de ser uma arte de galhardia sustentada na palavra e na honradez dos princípios para se tornar num mesquinho negócio de bufarinheiro.
– A verdade, senhor, é que o povo não suporta mais o poder dos dízimos, dos impostos, do aumento dos preços que a duquesa de Mântua e Miguel de Vasconcelos impuseram. Cada vez há mais fome e revolta. Há pouco tempo, rebentou mais um levantamento em Santarém, do Norte do Reino chegam notícias de amotinações todas as semanas e, aqui, nunca pararam desde as alterações de Évora – argumentou Pais Viegas, e finalizou intencionalmente: – Os nossos amigos esperam apenas a palavra de Vossa Senhoria.
– Eu sei, meu caro amigo. Julgam que a causa me é indiferente? Que não vejo e não sinto a injustiça? Que não oiço o clamor de indignação que vai por esse Reino fora? Não é apenas Filipe que tem espiões. Todos os dias recebo queixas e protestos de todo o lado – calou-se por instantes para se acalmar, e em tom mais sereno continuou: – Mas também sei que a conjura é feita por quarenta fidalgos, cuja coragem e honradez todos admiram. Não há causa mais nobre pela qual se possa oferecer a vida em sacrifício do que morrer pelo seu país. E digo bem. Morrer! Do outro lado, contra nós, está o maior exército do mundo.
– A nossa razão é mais forte do que qualquer exército, meu senhor – retorquiu o alcaide.
– Embora a razão sem força seja uma desgraça tão terrível como a força sem razão – concluiu o duque.
As respostas de serpente de Richelieu haviam-no deixado irritado. Assim como a já conhecida tontice de Carlos I, que levara a guerra à sua própria casa, criando sarilhos com os bispos escoceses, com o parlamento, afinal com tudo aquilo que contrariava os seus caprichos absolutistas.
Deixou-se cair num cadeirão, relendo a carta perante a inquietação dos dois mensageiros. Pais Viegas não se conteve.
– Senhor D. João, duque de Bragança! Sirvo esta Casa desde que me conheço. Servi vosso avô, D. João, o vosso dedicado pai, D. Teodósio, e aqui estou, já velho, disposto a dar a vida por esta família, a mais honrada de Portugal. Bem se pode dizer que Vossa Senhoria é o testemunho e o depositário da maior glória dos nossos antepassados e ninguém se atreve, nem el-rei Filipe, a pôr em causa o património português que os Bragança protegem. É convosco que mora a alma do Reino e é em Vila Viçosa que estão postas as esperanças de Portugal inteiro. Não existe hoje um português, dos mais humildes aos mais remediados, que não vos tenha nas suas orações, que só espere um sinal, um mero sinal, para poderem morrer por vós e por este desgraçado país, há sessenta anos humilhado e maltratado. Peço-vos, senhor! Imploro-vos que, em nome de tanto sonho por cumprir, tomeis a decisão que tantos infelizes anseiam. Para que possam alimentar alguma esperança de não passarem o resto dos seus dias como escravos dos caprichos de rei estrangeiro.
D. João levantou-se do cadeirão, guardou a carta no bolso da casaca e enfrentou o interpelante com firmeza.
– Não confundam as minhas cautelas com hesitações, nem as minhas perguntas com dúvidas que nunca tive. O meu silêncio não é medo, a minha reserva não é aceitação do estado de coisas em que o Reino se encontra. Penso, apenas penso, nas consequências desta conjura. Naqueles que há pouco dizias que desejam morrer por mim e por Portugal. Porque lhes quero bem e não desejo destruir ainda mais tantas vidas já destruídas.
– Eu compreendo a dificuldade da decisão – Pêro Mendonça procurava apaziguar a tensão que se havia gerado na sala e contribuiu com um novo argumento: – Mas, senhor duque, ou é agora ou vão passar muitos anos até chegar uma nova oportunidade. O grosso das tropas estacionadas em solo ibérico dirige-se à Catalunha. Os grandes exércitos de Filipe estão dispersos pelos Países Baixos e pelo Sul de França.
João cortou o discurso com rudeza.
– Sei tudo isso. Ou não fosse o meu cunhado, irmão da minha esposa, quem comanda o exército da Andaluzia. E também sei que basta mobilizar as guarnições de Badajoz, de Mérida, de Ávila, de Ciudad Rodrigo, para nos entrar pelo Reino um outro exército de seis a oito mil homens que não vão encontrar quem os enfrente pela simples razão de que Portugal não tem tropas. Os nossos melhores foram mobilizados para os exércitos filipinos.
– Há muita gente em armas – tentou o velho administrador dos Bragança.
– Um exército é muito mais do que muita gente em armas, meu caro Pais Viegas. Uma força de combate implica guerreiros, é certo, comandantes, motivação, armamento semelhante, estratégia e experiência. E, como já vos disse, os nossos mais experimentados generais combatem na Flandres, na Itália, em França. Vejam o caso do meu irmão Duarte.
Referia-se a D. Duarte de Bragança, que, tal como boa parte da nobreza portuguesa, pelejava, sob a flâmula dos Habsburgos, no Norte da Europa. Deu alguns passos pela sala e era visível a agitação. Daquela decisão que lhe era pedida dependia o destino de um reino e de um povo inteiro. Poderia ser o momento de Portugal ressurgir, saindo da submissão e afastando as humilhações sem honra nem glória. Por outro lado, caso o plano falhasse, transformar-se-ia na porta por onde chegaria a brutalidade e a violência, escravizando um povo já débil, esfomeado e maltrapilho, expondo vilas e cidades à soberba que se alimentava de procissões de cadáveres.
– Há um ponto em que têm razão. É difícil encontrar uma brecha no tempo que vivemos tão favorável como esta. O segredo continua?
– O mais seguro possível. A maior parte dos fidalgos espanhóis já partiu para celebrar o Natal com os seus familiares, em Espanha, e a duquesa de Mântua anda feliz como uma donzela em véspera de casar.
– E Miguel de Vasconcelos?
– Passa os dias no Paço da Ribeira, sem se aperceber de nada. Nenhum dos nossos foi, até agora, molestado.
Suspirou de alívio. Para que se vislumbrasse uma pequenina oportunidade para tão audacioso plano triunfar, era forçoso que as guarnições espanholas e os representantes de Filipe e de Olivares não suspeitassem das intenções daquele punhado de patriotas.
– Tem de haver a certeza de que Margarida de Sabóia e Miguel de Vasconcelos estão no interior do Paço da Ribeira. Só a prisão de ambos e a surpresa ditarão o êxito da conjura.
– Os passos de ambos serão vigiados dia e noite três dias antes do assalto – informou Pêro de Mendonça.
D. João insistiu.
– É fundamental essa cautela. Ou eles são presos para negociarem as condições da rendição ou entrarão naquele Paço quarenta mártires que não sairão dali com vida.
– Vamos usar a surpresa, senhor duque – garantiu o alcaide.
– E a prudência! – afirmou João de Bragança, ordenando com firmeza: – Que fique claro que ninguém toca num cabelo da duquesa de Mântua. Uma beliscadura será suficiente para que uma acção honrada seja vista como uma vilania pelos nossos adversários e pelos nossos amigos. Além de que é a nossa única moeda de troca para anular as forças militares e proteger o povo de Lisboa.
– Pode confiar em nós, senhor duque. Todos os homens envolvidos no movimento têm por certo que a vice-rainha tem de ser protegida. Mantê-la viva é uma preocupação comum.
João levantou-se e dirigiu-se à lareira com as mãos apertadas atrás das costas. Chegara a sua hora. Estavam em concordância todos os pressupostos para o cometimento da acção que devolveria a dignidade a Portugal ou o cadafalso aos conjurados. E reconhecia a determinação daquele punhado de fiéis, que aceitou todas as exigências que fizera para dar o seu apoio a acção tão tresloucada.
– Quando precisam de levar a minha resposta? – perguntou por fim.
– Hoje é sábado, dia 24. Amanhã à noite, o grupo volta a reunir-se no palácio de D. Antão de Almada.
– Muito bem. Daqui por uma hora, tê-la-ão.
Dito isto, saiu da sala sem qualquer outro cumprimento.
Dirigiu-se à capela do Paço, em largas passadas, sem cumprimentar os criados que se cruzavam consigo.
Há um destino inscrito em instantes de cada vida que têm o tempo da eternidade. Decisões que mudam os dias e dão novo caminho aos sentidos. Que rasgam, em breves momentos, cansaços e canseiras para reinventar trilhos desconhecidos, inóspitos, por onde se avança a tactear. Como se a vontade dos conjurados fosse um pardal escondido num quarto em escuridão de breu a quem, de repente, abrem uma janela por onde jorra o sol, cegando ainda mais, em vez de mostrar o outro lado da luz. Portugal seria esse pardalito estonteado com a luz do sol da liberdade, no caso de a operação ter sucesso. Seria necessário voltar a pô-lo a voar confiante na sua vontade. E prepará-lo para a guerra.
De joelhos, D. João procurava na prece que rezava à Nossa Senhora da Conceição que a santa lhe iluminasse a razão. Não se apercebeu, por estar de costas, de que num dos varandins da capela donde assistiam à missa, espreitava, silenciosa, Luísa de Gusmão. Por momentos, observou o marido, prostrado aos pés da Virgem. Da algibeira retirou um terço. Benzeu-se, com a mesma discrição com que o espreitara, e retirou-se silenciosamente. Luísa pedia a Deus pelo seu marido e por Portugal.
Pouco importava ao duque o que se dizia à boca pequena sobre a sua falta de vontade para derrubar o poder filipino. Bem sabia que a impaciência de muitos, prejudicados e ofendidos pela governação espanhola, exigia há bastante tempo que ele tomasse essa decisão. A esperada revolta da Catalunha talvez abrisse um trilho de esperança.
Filipe não tinha escolha. Se perdesse Portugal, os portos de Cádis e Vigo continuavam abertos às Américas e às rotas do Atlântico. Se perdesse Barcelona, o Mediterrâneo transformava-se numa muralha que separaria o mar de Sevilha dos mercados orientais. Ainda por cima, uma Catalunha independente, tão vizinha de França, era uma presa cobiçada por Richelieu e uma ameaça constante para o poder de Madrid.
Acrescentava-se à discussão sobre a oportunidade, o problema da resistência. Qualquer conspiração pode fazer um rei por uma hora ou por vários dias. Basta ter a sorte do ataque pelo seu lado, e Portugal não podia glorificar-se e ficar confortado, no espaço de tempo deixado pelo recuo de uma onda, à espera de ser submergido por outra ainda mais forte. Nem chegava a ser um acto de heroísmo, como muitos lhe queriam fazer crer. Não passava de um gesto impensado que seria pago com sangue e morte, semeados a eito pelos opressores ofendidos.
Pensara nesta hora durante muitos dias e muitas noites, e agora, frente à Virgem de Vila Viçosa, questionava-a, questionando-se. Não queria ser rei de um país cravado de cadáveres injustos, consequência da sua ambição pessoal. A música ensinara-o a libertar-se da pesporrência insolente que forja falsos heróis e fanfarrões. Quando se constrói uma partitura, as notas chamam umas pelas outras, transformando a criação numa ordem harmónica e organizada de símbolos. Um fá ou um ré, um dó ou um mi, ou seja ela qual for, sozinha é um som sem sentido, que não agrada, nem desagrada, mais pobre do que o tinir do chocalho de um boi a pastar num prado. Reconhecia que a condescendência da França e da Inglaterra era um grande passo em frente, que o cansaço por tanta infâmia e humilhação invadia as casas senhoriais, os bispados e os campos. Porém, ainda não se calara o estertor de Alcácer Quibir, onde o rei desejado pagara o preço da imprudência com a morte e o cativeiro de toda a nobreza.
Passados mais de sessenta anos, essa ferida continuava a doer no peito de muita gente. Quase dez mil mortos, mais de quinze mil feitos cativos, era a visão, ainda presente, do Apocalipse anunciado há mil anos. Tão brutal e tão ruim que nele não se acreditava ainda, esperando o regresso dos mortos e, sobre todos eles, de Sebastião, rei da esperança e da perdição.
Quanto mais falava com a Virgem, maior era a enchente de problemas que via à sua frente. O Reino estava à míngua, multiplicavam-se os deserdados da fortuna, a fome e as maleitas varriam os campos e os povoados, e a rapina instalara-se pelo império. Nem um grama de gengibre ou de canela chegava aos portos de Portugal. Barcos espanhóis, holandeses, corsários ingleses, abarrotavam de mercadorias roubadas desde o Brasil à índia até ao Extremo Oriente. As praças africanas sob o poderio dos Habsburgos e de Marrocos. O tesouro exaurido. A nobreza mais poderosa diluída nos exércitos de Filipe ou amancebada na corte madrilena. O que sobrara neste Reino cativo há sessenta anos?, perguntava o duque ao altar.
A resposta era um imenso abismo da mais ruim pobreza, de gente desfalecida por tanto sofrimento, de coração minguado, de esperança desgastada pela erosão de Alcácer Quibir.
A conjura, que estava prestes a confirmar, era gesto que jamais algum reino testemunhara. Por vezes, recordava as ameaças de 1383, a morte do conde Andeiro, o Mestre de Avis aclamado rei pelo povo de Lisboa. João de Portugal contra João de Castela. Houvera traições, é certo. Porém, no meio da turbulência, sobrara um exército que garantiu um generalato firme a Nun'Alvares Pereira. E agora eram apenas quarenta valentes e o povo generoso de Lisboa.
Ergueu-se do oratório sem resposta e a hora prometida aos mensageiros estava a esgotar-se. Subia vagarosamente as escadas que vinham da capela para os seus aposentos quando reparou num quadro de Nun’Alvares Pereira, pai fundador da Casa de Bragança, pintado com o hábito de monge. O olhar vivo, que a secura do rosto exacerbava, parecia censurá-lo. Ficou a observá-lo com emoção, na penumbra do corredor, e de súbito sentiu uma forte vertigem que o obrigou a encostar-se à parede para não cair. Arrepios de frio sacudiram-lhe o corpo e enormes bagas de suor escorriam-lhe pela fronte, enquanto a vertigem regressava, fazendo balouçar o corredor e os quadros pendurados com as imponentes personagens da dinastia ducal.
Tudo se transformou numa poderosa visão de vozes e comandos que emergiam do passado para o interpelar naquele momento tão decisivo. E se escutava os gritos dos mortos, pedindo-lhe que fugisse de maior sofrimento, outros reclamavam em fortes brados que irrompesse com toda a audácia contra o castelhano.
Tornou a fixar Nun’Álvares. No estado febril que o tomara, viu que o condestável mexia os lábios e falava para ele. Aproximou-se mais da pintura e «ouvia» uma voz murmurada do fundo dos tempos.
«Acorda, João! Esquece a prudência, ignora os males que o futuro reserva ao teu povo. Nenhum será pior do que ser servo e viver de joelhos perante homens que valem pelo poder e pela riqueza. Desperta, João! De joelhos, só perante Deus. De pé, sempre de pé, perante os homens! Foi assim que afirmámos a soberania ameaçada desde o nosso pai fundador, desafiando o risco, afrontando a prudência. Sempre fomos poucos, João de Bragança. Em cada batalha, em cada combate, eram sempre mais os inimigos do que os aliados. Fomos sempre o mais pequeno exército. Daí que pouco importem as derrotas e que se cantem todas as nossas vitórias. Poucos, mas rijos. Pequenos, mas com uma fé tão forte no futuro que ultrapassava os limites da alma. Deixa que a emoção empurre a tua tão cuidada razão até ao limite. É essa força viril, sem queixumes, que sacode o povo de Lisboa quando está em aflição, que fez nascer este Reino, que transformou Aljubarrota na vitória de David e na submissão de Golias, que deu a meia dúzia de marinheiros o talento para descobrirem as rotas de todos os mares. És filho do ventre em que nasceu Camõesl Conheces-lhe os versos e a odisseia que canta e nunca te perguntaste como, sendo tão pequeninos, tão magros de tantas fomes, fomos capazes de vencer os mares? Não existe maior e mais poderoso exército do que um mar revolto. E nós vencemo-lo com um punhado de caravelas. O mesmo mar que derrotou a Invencível Armada quando ela o cobria com os maiores e mais potentes galeões e artilharia de que há memória. Esquece a prudência, João! És filho desta língua que multiplicámos pelo mundo. Já te perguntaste que milagre foi este? Que temeridade foi esta de tão fraca e humilde gente que impôs ao mundo o seu falar? Descobre em ti esta imensa força para o risco. Foi assim que nos construímos e assim seremos. Sempre no fio da navalha, sempre com um pé na sorte e outro na desdita. E tu és herdeiro legítimo desse passado que Afonso I fundou e ergueu. Das estrofes que D. Dinis, tal como tu, compôs, das mil pequenas batalhas travadas por mil alcaides que forjaram fronteiras e limitaram o poder dos invasores. Sempre de pé, João! Tu és filho dos ourives e mercadores de Lisboa, dos tanoeiros e artesãos do Porto, dos almocreves e ganhões, de campinos e estivadores, que sofrem, que amam, que vivem e morrem em português. E da melhor nobreza que morreu por amor deste Reino. Eu vi-os morrer sob o meu comando em Aljubarrota e noutras batalhas onde se ofereceram alegremente a Deus. Não tenhas compaixão deste povo, duque de Bragança! Merece o teu respeito, mas é um insulto tratá-lo com piedade. Não temas pelos infelizes que te preocupam. São o sangue escorreito e honrado de todos os mortos, a força e a confiança de todos os vivos. Quando chegar a hora, João, quando surgir o momento em que precisarás de toda a gente para defender este chão dos teus avós, verás nascer a maior vaga de força e vontade que vai fazer estremecer os céus e afugentar todos os animais para as suas tocas mais profundas. Verás, para além dos homens, a vontade. Sim, a vontade de vencer tem rosto. Feito de dignidade e fúria de viver. Levanta-te, João! Ergue esse queixo ao vento, empenha a tua inteligência e arrasta este nobre povo para os combates onde se quebram os grilhões da servidão e da vergonha. Chegou a hora, duque de Bragança! Os mortos de Alcácer Quibir chamam pelo teu nome para que Deus lhes reconheça a imortalidade.»
Uma nova tontura fê-lo encostar-se, outra vez, à parede. Transpirava de emoção. O velho general respondia-lhe com as palavras que a Virgem não lhe dissera, revelando-lhe a verdade escondida para lá da razão. A dignidade dos homens não se conta por mosquetes, nem por artilharia. E a de um Reino com quinhentos anos de vida, muito menos.
Pelas paredes do Paço, o seu pai Teodósio, o seu avô João, D. Jaime, todos os duques de Bragança pareciam ter os olhos cravados nos seus gestos. No silêncio do corredor, aquelas figuras solenes eram o som de todas as vozes que despertavam do passado para lhe exigir um destino de desafio contra a prepotência e a ignomínia.
Começou a caminhar vagarosamente, mãos apertadas atrás das costas. Meditabundo. Conforme avançava, o passo tornava-se mais firme e, simultaneamente, o peito respirava com maior alívio. As multidões de rostos cadavéricos que lhe entravam nos pesadelos mais agitados sorriam-lhe, os cavalos erguiam-se, imponentes, soberbos, prontos para o combate, e a luz da antiga candeia era de tal modo intensa que mais parecia um sol a habitar o Paço de Vila Viçosa. Não era uma decisão acerca da sua vida ou da sua morte. Sobre os ombros carregava a mais terrível cruz. Dependia de si a vida ou a morte de muitos.
Entrou na Sala de Hércules e os corações de Pêro de Mendonça e Paes Viegas aceleraram. Procuravam a resposta à carta que haviam trazido. Porém, a gravidade era a mesma com que saíra uma hora atrás.
– Qual é o dia que os nossos amigos acham mais conveniente?
A pergunta sobressaltou-os.
– O dia? O ideal seria no próximo sábado, depois da missa – alvitrou o alcaide de Mourão com algum receio e, rapidamente, corrigiu: – Também se pode pensar no movimento para depois do Natal. O senhor duque decidirá.
– Sábado? Dia um de Dezembro.
– Exactamente, Excelência! Já terá passado o mês dos finados e começa aquele que celebra o nascimento de Cristo. É um novo tempo para os homens – reforçou Pais Viegas.
– D. Antão de Almada e o senhor arcebispo concordam com esta data? – quis saber.
– É o momento certo. Está combinado que espalharemos a notícia para que o povo se concentre no Terreiro do Paço e, enquanto a multidão se junta, desencadearemos o golpe – esclareceu o alcaide.
– E se a duquesa de Mântua não estiver no palácio?
– Aguardaremos que chegue. A maioria vai transportada em coches, onde esperará a decisão definitiva. Sem a vice-rainha detida, não temos força para suster a segurança militar, como Vossa Senhoria sublinhou.
– A prisão dela é a chave desta porta complicada que a História nos impõe que se abra – e o duque tornou a avisar com firmeza: – Que ninguém tente matá-la. Se Filipe souber que assassinaram Margarida de Sabóia, a representante real, não haverá piedade.
– Pode o senhor duque estar descansado.
D. João passou a mão pelo queixo e repetiu:
– Dia um de Dezembro, não é verdade?
– A maioria concorda, porém, submete-se à escolha que o senhor duque fizer.
Ficou perdido nos seus pensamentos por alguns instantes.
– Vai ser longa a espera, Santo Deus! – pensou em voz alta. Decidido, voltou-se para os dois amigos e ditou a sua decisão: – Muito bem. Digam-lhes da minha parte que seja sábado, dia um de Dezembro.
Os dois homens, comovidos, iam ajoelhar para agradecer a resposta e João, bruscamente, segurou-os pelos braços.
– De pé! Despeçam-se de mim, em pé. De joelhos, só perante Deus.
O alcaide de Mourão pegou-lhe na mão para lhe prestar vassalagem e João puxou-o para si, num abraço emocionado. Ao ouvido, disse-lhe:
– Passe pelo meu pombeiro. O Sebastião entregar-lhe-á o nosso pombo mais veloz para que a notícia chegue cedo a Vila Viçosa. Boa sorte e que Deus vos proteja!
Depois abraçou o seu fiel servidor Pais Viegas. Havia lágrimas de orgulho nos olhos deste.
– Quando voltar a encontrar-vos, meu senhor, já sereis rei.
– Mais importante do que isso, meu amigo, é que nos encontremos vivos e que o Reino esteja liberto deste garrote que há tanto tempo o diminui.
Partiram, apressados.
João ficou parado, recolhido nos seus pensamentos, avaliando o peso da sua decisão. Deus era o juiz de todos os cuidados que precavera. Que o julgasse como entendesse do alto da Sua infinita misericórdia. Estranhamente sentia-se prenho, como se dentro de si houvesse um país inteiro a acompanhá-lo na longa espera que se adivinhava. Não tinha dúvidas de que a semana que faltava cumprir, antes do ataque, seria a mais lenta de todas aquelas que já vivera. O tempo da angústia é bem mais apressado do que qualquer outro. Tem a urgência que não se compadece com o preguiçoso tempo das horas litúrgicas e corrói a serenidade com acidez. Sobretudo quando se espera a morte no final desse percurso.
De súbito, acudiu-lhe um inusitado sentimento de saudade. Precisava com urgência de abraçar os seus filhos.
O DIABO ANDAVA POR ALI
Vila Viçosa vivia dias estranhos e havia medo pelos lugares em redor. Era o segundo caso naquele mês de Novembro. O primeiro acontecera na Cavaleira, mesmo na aba da serra de Ossa, lugar ermo cravado de estevas altas, com algumas clareiras onde refocilavam javalis e lugar de pasto de enormes grupos de lebres. Embora de difícil acesso, por vezes algum camponês mais afoito, ou com mais fome, atravessava aquele mato denso e armava, por ali, uns laços na esperança de caçar alguma presa para uma ceia decente.
Foi o caso de Felisberto. Era um dos ferreiros da Casa de Bragança. Metera-se pelo mato com o ensejo de enganar uma lebre com as suas armadilhas quando, mal entrou num pequeno descampado, se lhe deparou o quadro. Encostado a uma grossa azinheira, jazia um homem que, de longe, lhe pareceu que dormia ou que estava morto. Hesitou perante a visão, sem saber se havia de fugir ou aproximar-se. Esperou alguns momentos, antes de se decidir, e a imobilidade do outro convenceu-o. Deu alguns passos na direcção dele e tornou-se claro que era um cadáver.
Ficou intrigado com a descoberta. Como teria ido ali parar, num local tão afastado de estradas e povoações? Mais de perto, percebeu que se tratava de um desvalido. O cabelo desalinhado, os calções rotos, a barba desgrenhada, a língua inchada fora da boca. À sua volta, as moscas zumbiam, excitadas, atraídas pelo odor pestilento. Foi então que reparou no punhal cravado na garganta. O sangue gorgolejara em abundância, devido à posição do corpo, escorrendo para as costas.
A descoberta assustou-o. O silêncio que o envolvia, a estranha tranquilidade do matagal, indiferente àquele achado macabro, a sensação de solidão, espevitaram as defesas de Felisberto. Bastava que outro caçador o visse junto do morto para se levantar uma terrível suspeita, que poderia desgraçar a sua vida.
Não se comeria lebre. Os cardos com grãos também enchiam barriga. Tornou a olhar o cadáver antes de partir e, subitamente, deu um salto atrás. Arregalaram-se-lhe os olhos ao ver, junto do corpo, um boneco de trapos castanho com um alfinete cravado entre as pernas.
Afinal, não se tratava de uma agressão feita por um qualquer salteador mais desvairado ou um ajuste de contas mais violento. O boneco de trapo mostrava a diabólica evidência. Aquele desgraçado morrera por razões heréticas, que metiam bruxaria ou magia negra.
Já tinha ouvido falar de sinistros casos que o Maligno comandava com artimanha e maldade, mas nem lhe passava pela cabeça acreditar em semelhantes descrições, que mais eram histórias de inventar. Porém, ante os seus olhos revelava-se a tremenda verdade. O infeliz tinha os calções rasgados entre as pernas e o sexo havia sido arrancado. Benzeu-se pressurosamente por três vezes e, com as pernas a tremerem, desatou a correr pelo matagal, ignorando obstáculos e buracos, fugindo daquele sítio amaldiçoado, pedindo a Deus que lhe conservasse o escroto até chegar a lugar seguro, longe das forças diabólicas cujos actos acabara de presenciar.
Não correra cem metros quando sentiu o tropel de cavalos a aproximarem-se. Faltaram-lhe as forças por tanto medo. Adivinhava, nas suas costas, corcéis negros vindos do fundo dos infernos, chispando fogo, querendo roubar-lhe a alma.
Tentou esconder-se, porém, era tarde. Um fidalgo e três soldados espanhóis acercavam-se do ferreiro e, por mais estranho que lhe parecesse, sentiu algum alívio por não se tratar de uma perseguição maléfica. Eram homens de carne e osso, iguais a tantos outros que com ele se cruzavam em Vila Viçosa.
No entanto, a forma ameaçadora como se aproximaram dele fê-lo temer o pior, ajoelhando de imediato em sinal de submissão. Murmurava já uma prece, encomendando a alma ao Criador, quando alguém, com a ponta da espada, lhe fez saltar o chapéu.
– Que haces aqui, D. Felisberto?
Ergueu a cabeça, surpreendido. O interpelante falava um português espanholado. Todavia, aquilo que mais espantou o ferreiro foi ser tratado pelo nome.
– Eu? Nada, meu senhor.
– Porque mataste aquele hombre? – perguntou com fúria.
– Não matei ninguém, meu senhor. Juro pelas alminhas. Vim à procura de uma lebre e, de repente, vi-o estendido contra a azinheira. Juro, meu senhor! Que não veja mais um raio de luz à minha frente.
Desatou a chorar convulsivamente. Confirmavam-se, afinal, os medos que o haviam acometido quando viu o cadáver. Nem fez um gesto. Em voz baixa, entre soluços, continuou a rezar à espera do golpe de misericórdia que haveria de injustamente pôr termo à sua vida.
No entanto, sentiu que uma mão lhe puxava o braço, para que se levantasse. Ousou olhar e viu o fidalgo a sorrir-lhe.
– Não te assustes.
– Eu não fiz nada, meu senhor. Não conheço o desgraçado que morreu. Nem armei os laços – gemeu o aflito Felisberto.
– O problema é que estes espanhóis dos diabos, por mais que a gente os queira convencer de uma coisa, acreditam naquilo que vêem e pronto! Viram-te de longe junto ao infeliz e não há nada a fazer. Foste tu!
– Não, não fui. Juro por tudo, meu senhor. Foi a primeira vez que vi aquele homem e já estava morto – replicou, desesperado.
O fidalgo olhou-o com aparente piedade e, dando-lhe uma palmada nas costas, disse:
– Acredito em ti. Percebe-se que és um bom homem. Deixa lá ver como te posso ajudar.
Afastou-se na direcção dos soldados, que continuavam montados com as espadas em punho. Felisberto não percebeu que palavras trocavam porque a conversa seguia em voz baixa e em castelhano. Por momentos, acreditou que o homem intercedia por ele, que, numa hora amaldiçoada, resolvera ir caçar lebres e acabara por encontrar o mais temido testemunho do Demónio. Enquanto esperava, a aflição crescia e repetia para si mil juramentos de que jamais voltaria àquelas terras amaldiçoadas, onde não havia sinal de Deus.
Momentos depois, o fidalgo aproximou-se. Vinha macio e com um sorriso cúmplice nos lábios.
– És ferreiro no Paço do duque de Bragança, não é verdade?
– Sou sim, meu senhor – confirmou, surpreendido por saberem o seu ofício.
– Pois é – o outro parecia hesitante em prosseguir a conversa. Acariciou a barba adelgaçada e informou: – Esta gente está decidida a poupar-te a vida, mas precisam de um pequeno favor.
– O que quiser, meu senhor. Eu não matei ninguém. Faço aquilo que pedirem.
– Trabalhas na Ilha do Paço, não é verdade?
– Faço ferraduras. Aprendi com o meu pai e tornou-se na minha arte.
– Eu sei. O que eles pedem é muito pouco e não vai prejudicar-te.
– O que for preciso. Para além de ferraduras, desde que tenha uma forja à mão, faço o que me pedirem – respondeu, solícito.
– Não será necessário.
Pigarreou, ganhando tempo para escolher as palavras, e a voz surgiu ameaçadora, quando lhe disse:
– Queremos saber quem são os amigos que visitam o senhor duque. Sobretudo aqueles que vêm de longe. De Lisboa e de outras cidades do Reino.
– Como posso eu saber tal coisa? – perguntou, intrigado com a proposta.
– Quem visita o Paço, vindo de grandes distâncias, ou vai a cavalo ou de coche. Seja como for, enquanto os visitantes estão com os duques os eguariços tratam dos animais.
– Sim, isso é verdade. Mas eu só cuido das ferraduras. Quando é necessário vou ferrar um ou outro cavalo. E mais nada. Não trato deles – explicou com sinceridade, ainda sem perceber a armadilha.
– Mas vês quem entra e quem sai.
Não respondeu. Devagar, começava a entender o que lhe pediam e, para que não restassem dúvidas, o fidalgo acrescentou:
– E todos os domingos encontras-te connosco num ponto a combinar para nos dizeres quem esteve no Paço.
– Pois – balbuciou, com os olhos pregados no chão.
Deixavam-no viver, se espiasse o seu amo. Conforme tomava consciência da proposta, mais claro se tornava que o morto era o engodo para cercar um homem desprevenido, assustá-lo até que ele se transformasse em espião. Falava-se em surdina destes negócios onde se indagava acerca do paradeiro de traidores a el-rei Filipe e das muitas desconfianças que recaíam sobre o duque de Bragança. No seu caso, não lhe ofereciam moedas. A proposta era tão simples que, de um lado da balança, estava a sua vida e, do outro, ficar atento às equipagens dos fidalgos que visitavam o Paço.
O instinto de sobrevivência pesava mais do que a lealdade a um nobre que lhe dava emprego e guarida. Até achou a proposta infantil. Ninguém se escondia! Quem quer que fosse falar com o senhor duque fazia-o às claras, pelo que não era muito desleal o que lhe era proposto. Porém, o fidalgo, que o observava atentamente, temendo uma resposta orgulhosa, reforçou a sedução:
– Caso tragas sempre boas notícias, não me admira que, para além de te livrares da fama de assassino, ainda recebas alguns reais.
Felisberto acenou afirmativamente com a cabeça. Não era assim tão desonroso o negócio. Apesar de espião, sentia que não traía o seu amo. Eram muito frequentes as visitas de convidados que chegavam para caçar na Tapada, ou, tão-só, para almoçar no Paço. Tudo feito às claras, sem segredos, pelo que salvar a vida e, ainda para mais, receber umas moedas não viria mal ao mundo, se contasse aquilo que qualquer pessoa podia ver.
– Conte comigo, meu senhor. Farei o que me pede. E o morto? – quis saber, ansioso.
– Deixa por nossa conta. Quem o matou foi, de certeza, um bruxo. Não és bruxo, pois não? – perguntou bem-disposto.
– Deus me livre dessa praga.
– Vai à tua vida e agradece a estes militares serem tão generosos contigo – ordenou.
– Obrigado, meu senhor. Que Deus vos ilumine sempre.
Já o ferreiro se afastava quando o fidalgo um tal D. Aranjuez o chamou:
– Felisbertol
– As suas ordens, meu senhor.
– Nem te atrevas a faltar à palavra dada. Com a mesma prontidão com que te salvei a vida também sou capaz de te acusar de bruxaria e assassínio daquele pobre infeliz.
– Conte comigo, meu senhor. Pode contar comigo.
Fazendo vénias, afastou-se em passo acelerado que, pouco depois, se transformou em desenfreada correria na direcção de Vila Viçosa. Cruzou-se com Laparduço – que, pela arreata, puxava o seu burro, o Manjerico – com tal velocidade que nem o saudou. O mercador ficou a olhar o ferreiro com curiosidade. Coisa estranha deveria ter acontecido para Felisberto correr que nem um gamo com uma matilha de cães no encalço.
Não se sabe o quê, pois o inditoso espião contratado para vigiar D. João jamais abriu a boca. Nem à família contara que fora caçar uma lebre e descobrira um homem apunhalado a quem haviam cortado as partes. E muito menos alguém soube da sua boca o estranho negócio que acabara de fazer para se livrar da acusação de matar o desgraçado.
Fosse como fosse, a notícia correu à boca pequena pelas gentes mais humildes, conversa clandestina, não fosse aparecer deputado do Santo Ofício procurando saber do bruxo ou da bruxa que apunhalara o vagabundo e o deixara em tal preparo. Pois, só podia ser coisa de bruxaria!
A notícia correu veredas e atalhos, passando de mensageiro em mensageiro, e Laparduço, vendedor ambulante de ervas que tiravam o quebranto e de tisanas que matavam as sezões, alcoviteiro de nomeada e reconhecido como o maior mentiroso das redondezas, espalhava o evento, pelo canto da boca, olhar atento a quem o escutava, e dramatizava nas palavras:
– As autoridades andam de ventas no ar farejando o assassino. Cá para mim, só poder ter sido a minha amiga Efigénia Pé de Galinha ou o bruto do Castanho, que para coisas de bruxaria e mau-olhado não há quem lhes ganhe.
A maioria dos ouvintes, a quem avançava tais suposições, duvidava. Quer a bruxa quer o bruxo eram tão velhos que nem forças tinham para matar uma galinha quanto mais um homem. Ao que Laparduço respondia para maior temor de quem o escutava.
– Se não é nenhum deles, que o povo se mantenha alerta, pois anda um novo bruxo pelas redondezas. Sobretudo os homens, que este arranca-lhes os tomates.
O mercador era uma criatura reboluda, com bochechas redondas e uns olhos grandes, tão redondos que parecia uma raposa. Só a língua era afiada, tão grande que chegava a qualquer ponto do mundo.
– Digo-lho eu, Ti Maria, que até fiquei de boca aberta quando soube que a encomenda que o padre Búzios me pediu era para o Santo Padre. Em Roma, não há ervas destas e o Papa, que também sofre de bicos de papagaio, desde que toma uma chávena disto por dia, em jejum, anda bem melhor das costas. O que lhe estou a vender é remédio no Vaticano, para que saiba. Meta as folhas em infusão de um dia para o outro e, ao levantar, emborque uma caneca e diga um pai-nosso. Não lhe dou uma semana para andar direita e sem dores. E já agora, sabe do que aconteceu na Cavaleira, não é verdade? Temos um bruxo novo. E mau!
A verdade foi tantas vezes retocada e era tão diversa a opinião que se formou que chegou ao ponto de já haver quem duvidasse do caso, mas também quem o alimentasse com tal imaginação que até afirmava ser o lugar onde fora encontrado o mendigo com o punhal cravado no pescoço o ponto de encontro das bruxas à sexta-feira. Não era uma nem duas pessoas que poderiam jurar, pelas alminhas do Purgatório, que as viram voando nas suas vassouras até lá. E sabia-se, porque era hábito antigo, que se juntavam naquele dia da semana para reforçar o pacto com o Anjo da Morte, que lhes atribuía maiores e mais poderosos saberes mágicos para contrariar a vontade de Deus, pois o Mafarrico só estava feliz quando fazia mal às boas almas.
É certo que o medo impedia que a história contada pelo Laparduço, e por outros caminhantes, fosse confirmada por qualquer testemunha. A maldição do lugar obrigava a rezas e ao arredio, que o Diabo quer-se longe, assim como os seus serviçais que lhe venderam a alma. Por outro lado, havia algum prazer naquele negro episódio e era notória a santa aliança entre os conhecedores para que a discrição imperasse.
Aquela morte era a evidência de um saber antigo: a certeza de que os acontecimentos mais negros são resultado da luta entre Deus e as forças do Mal, e era tal o poder invisível das legiões de anjos contra os regimentos de demónios que todos temiam ser apanhados em tão rija refrega. Ainda estavam quentes as emoções vividas há algum tempo, depois de as gentes de Évora terem incendiado as paixões contra os castelhanos.
Laparduço, quando o povo se tornou herói, até se dizia primo do Manuelinho. Garantia, com convicção tão firme que poucos duvidavam da sua palavra, que estavam perante um fornecedor do barbeiro de espadas João Barradas, que era ao tempo escrivão, e do borracheiro Sesinando Rodrigues, juiz do povo, os dois grandes heróis da insurreição eborense e dos povos vizinhos.
O governo espanhol queria mais impostos, sempre mais impostos, desde o real da água até à sisa, para alimentar exércitos e batalhas, e Portugal, que já dera tudo, desde a honra até ao último real, só já podia pagar com mais fome aquilo que o corregedor André Sarmento, português vendido, exigia ao povo de Évora. Era o Diabo em pessoa. Ameaçou enforcar juiz e escrivão, se não obedecessem, e eles, guiados pela mão de Deus, em vez de aceitarem o medo do usurpador, afrontaram-no. E o povo saiu à rua com sete pedras nas mãos, apoiando o seu juiz.
Puxaram fogo à residência do corregedor, que o traidor assegurava também ser o patíbulo onde enforcaria os dois homens, invadiram as praças e as ruas, e Évora libertou-se, por instantes, do poder ocupante. A nobreza e clero que serviam Filipe assustaram-se perante tão feroz multidão. Dia após dia, circulavam folhas, assinadas pelo Manuelinho, convocando as gentes para a insurreição que já crescia pelos campos, chegando a outros povoados, os quais arremetiam contra as ordens assinadas por Miguel de Vasconcelos.
Laparduço, medroso, assistia de longe e no dia seguinte pintava a manta entre os fregueses.
– Ontem à noite foi um fartote. Ninguém obedeceu ao toque de recolher e o povo em armas pendurou três fidalgos e três padres, leais ao arcebispo, nas pedras das ruínas do templo romano que serve de açougue. Ou eram quatro fidalgos e dois padres? Já não sei, que era tanto o povo e a gritaria que as ruas rugiam de cólera. Talvez fossem dois fidalgos e quatro padres. Eu vi de longe que a minha mãe não me pôs neste mundo para levar pancada. E se houve pancadaria! Não se vê fidalguia. Tudo escondidinho que não há exército nem autoridade que pare a revolta. Digo-lho eu. Em Évora, os espanhóis e os seus aliados têm os dias contados. Não põem já o pé em ramo verde. Já provou este meu licor para as dores de barriga?
O mercador dava azo à sua imaginação sobre uma situação cada vez mais grave. Escondidos na Igreja de Santo Antão, bispo e nobres locais apelavam à Espanha que apaziguasse a fome de justiça dos servos que a eles serviam, medrosos, vergados ao peso da traição, mais infiéis do que os próprios infiéis. Quem se vende a um rei estranho contra a sua própria terra, mais por medo do que para obter vantagens, perde o respeito dos homens de cabeça levantada. E foi aquilo que se viu. Nem o arcebispo percebia como se insurgira um povo em armas às ordens de um maluquinho que dormia ao relento e, quando queria falar, em vez de saírem palavras, se babava.
– O Manuelinho não pode ser o chefe de tão grande revolta. É doido! – desconfiava o clérigo, trancado a sete chaves com medo do rebanho do qual devia ser pastor.
Por detrás da insubordinação só podiam estar o juiz e o escrivão e, quase de certeza, o duque de Bragança, que tempos antes fora recebido com grande ovação pelas gentes de Évora.
Ainda tentou uma procissão para apaziguar a exaltação, seguido de fidalgos afeiçoados ao duque. Do cortejo faziam parte, entre outros mais assustados, o marquês de Ferreira, o conde de Vimioso, D. Jorge de Melo, mas foi em vão.
Os insurrectos, furiosos, cuspiram raiva contra a vergonha de quererem uma paz que servia quem os desprezava e enxovalhava a terra dos seus avós, e a malograda procissão teve de recolher a galope com o arcebispo na frente. E os editais do Manuelinho continuavam sem que ninguém soubesse onde paravam João Barradas e Sesinando Rodrigues.
Laparduço continuava a observar, de longe, os protestos, dos quais, segundo diversa versão que avançava a outros ouvintes, não se aproximava porque as grandes confusões lhe provocam tonturas, e comentava:
– Nunca se viu coisa assim. Só no tempo em que Portugal era português. Estalada a sério é coisa que há muito tempo não aparecia por estas redondezas. Olarila! Eu só não me meto por causa das tonturas, senão também ali estava a distribuir porrada. Vejam bem o que meu primo Manuelinho arranjou!
– Tu não tens pátria, Laparduço. As tuas tonturas são medo e serves quem contigo fizer negócio – gritara-lhe um revoltoso em fúria e o redondinho nem pestanejou. Não valia a pena discutir com um homem furioso. Não quer ouvir e, ainda por cima, pode bater.
Incendiaram-se os campos alentejanos de protesto e desespero. A revolta chegou ao Algarve e subiu para lá do Tejo. Já não era só contra a brutalidade dos impostos. Os povos clamavam por liberdade. E Manuelinho, ausente das paixões, babando-se pelas ruas, batia palmas por ver tanta gente revoltada.
Laparduço contou sempre esta história como se dela tivesse feito parte, reclamando, a quem o escutava, a sua ligação de primo ao maluquinho. Por vezes, quando a audiência era mais tenrinha, enunciava a sua crença:
– Tenho cá para mim que o meu primo não tem cabeça para mandar em tão grande revolta. Aquilo foi incorporação!
Como poucos soubessem o que a palavra queria dizer, esclarecia após um momento de pausa para dramatizar o desfecho.
– O rei. O espírito do nosso rei perdido em África entrou nele e pôs Évora em pé de guerra.
Era o ponto fraco dos mais tristes. Dia após dia, em voz aberta ou insinuada, o regresso de Sebastião era o alento, o sopro de esperança que apaziguava as mais radicais impaciências. Todos sabiam que ele não morrera. A velha Efigénia Pé de Galinha, que lá estivera, nos momentos mais lúcidos contava que el-rei partira na nuvem feita de areia ou nevoeiro. Um outro velhote de Juromenha, que batalhara até desmaiar, matando mouros a eito, jurava que o vira afastar-se no seu cavalo branco, calmo e sereno, seguido por dois pajens.
Todos os contos do Laparduço deram para o torto quando foi tramado pelas suas invenções. Tempos depois do evento misterioso no lugar da Cavaleira, num carreiro que vai de Santa Bárbara para Valmonte, certa manhã de Outubro, marchava a caminho do lugar de Borba quando reparou num rasto de sangue na beira de um valado.
Intrigado, baixou-se para melhor observar a cena e, de repente, por detrás de uns arbustos, viu as solas de duas botas, empinadas, como se ali estivesse alguém deitado. Curioso, largou o burro e avançou alguns passos. O coração parecia querer saltar-lhe do peito, tal foi o espanto. Mesmo à sua frente, jazia um morto, medonho, desfigurado por uma multidão de larvas que lhe comiam a carne com prazer. A seu lado, lá estava o honeco de trapo com o alfinete espetado nas partes. Embora o cheiro fosse nauseabundo, resistiu à fuga, questionando a braguilha do cadáver, e tal como ouvira contar também a este fora cortado o sexo.
Tremendo de medo, que a voz fanfarrona sumira-se, pegou na arreata do Manjerico e, pondo o burro a trote, a trote dali se afastou, clamando piedade aos céus e jurando por todas as alminhas que não voltaria a mentir a cristão algum.
Foi, então, cercado por soldados e pelo misterioso fidalgo que interpelara Felisberto no lugar da Cavaleira, e a chantagem foi a mesma. Ou dava informações dos seus fregueses que conspiravam contra el-rei D. Filipe, ou seria acusado de bruxaria e de assassínio do homem que apodrecia perto do valado.
Porém, D. Aranjuez, que Laparduço conhecia desde que se amotinara o povo de Évora, quando o fidalgo chefiava uma tropa que arremetia com brutalidade contra os mais incautos, desconhecia o carácter do mercador ambulante.
– Ó meu senhor, pela sua rica saúde. Eu não faço outra coisa desde que me conheço.
– O quê? – perguntou, sem perceber.
Laparduço atentou na surpresa do outro e discorreu como um profeta.
– Vossa Senhoria não me conhece. Já vi que não me conhece – respondeu, triunfante.
– Claro que te conheço. És o Laparduço, mercador ambulante e primo do Manuelinho.
– Não é bem assim, meu senhor. Com o devido respeito, permita-me que me apresente. O nome que me chamou é uma alcunha que me persegue desde pequeno por causa de um cão do meu defunto paizinho, que nunca me largava. Sou parente do Manuelinho por uma afinidade ligeira, pois o avô dele era primo direito de uma prima da minha bisavó. Como Vossa Senhoria pode ver, chamar-lhe primo é mais coisa de se meterem comigo quando querem chamar-me maluco. A verdade é que não falo com doidos porque eles não trazem negócio e nunca se sabe se estão possuídos pelo Malvado. A verdade, meu senhor, é que me chamo Cassandro Soares, neto do célebre general Castrim Soares, herói de Alcácer Quibir, pai de doze filhos, dos quais um foi meu pai, Serôdio Soares, que, por sua vez, teve nove filhos, sendo eu o mais novo de todos.
– E que tenho eu a ver com isso? – perguntou Aranjuez, desconfiado.
– Já lá chegamos, se Vossa Senhoria mo permitir. Ora, o meu avô general Castrim Soares era irmão de Hermenegildo Soares, outro nome honrado da nossa história fidalga, e que foi pai de D. Diogo Soares, o mais fiel e o melhor servidor do senhor conde-duque de Olivares, secretário permanente do Conselho de Portugal em Madrid. Ou, para simplificar as coisas, está à sua frente um primo-irmão de D. Diogo Soares de quem Vossa Senhoria já ouviu falar por certo.
O espião espanhol olhou-o, intrigado. A conversa era tão confusa que não sabia se escutava uma monumental mentira ou haveria algum rasto de verdade em tudo o que ouvia. Laparduço aproveitou o momento para estocar até ao fundo no cachaço do interlocutor.
– Venho de boas linhagens, meu senhor. Ficámos na ruína para pagar o resgate pedido pelos infiéis, para libertar o meu avô do cativeiro, mas nunca perdi o contacto com os familiares que estão vivos e, entre eles, com muito orgulho, o meu primo Diogo. Quando for a Madrid e estiver com ele, pergunte-lhe quem lhe ofereceu o licor que lhe tirou a dor que tinha sempre nas cruzes. Foi a mim que pediu ajuda quando a sua primeira esposa, D. Francisca de Melo, andou com as sezões, e fui eu quem lhe apresentou a segunda esposa, a D. Mariana de Eça, irmã do nosso amado Miguel de Vasconcelos, figura maior do governo de Portugal e secretário fiel de Sua Majestade e da vice-rainha, D. Margarida de Sabóia. Infelizmente a coisa não correu bem entre o casal e o meu primo casou mais uma vez com a senhora D. Antónia de Melo. Como saberá, é filha de D. Miguel de Vasconcelos, fazendo com que o meu primo seja seu cunhado e genro. Eu vi crescer a Antónia, meu senhor. Um anjo que Deus pôs na terra e que destinou ao meu querido primo.
E com uma intencionalidade bem dirigida, culminou a apoteose:
– Saiba Vossa Senhoria que de vez em quando lhe mando para Madrid umas tisanas que o confortam e, claro, vai sempre uma cartinha com as coisas que por aí se dizem e podem ser prejudiciais a el-rei D. Filipe. Pode Vossa Senhoria usar o morto para contratar outro espião que da minha parte já está a Espanha servida. E fico à sua disposição, se precisar de alguma coisa da parte do meu primo.
Aranjuez não tugiu nem mugiu. O mercador sabia tanto da vida do português mais poderoso junto da corte em Madrid que acreditou na sua triste história. Nem ele conhecia tão a fundo esta gente tão ilustre, que privava com os maiores de Espanha. Atordoado com tal confissão, chegou a esboçar uma vénia quando o mercador se afastou com o burro pela rédea.
Laparduço só parou junto à Azenha do Paraíso, na margem da ribeira do Beiçudo. Ali perto roncava o Engenho de Ferro e abrigou-se entre as silvas, escondendo o burro. Procurou descansar e acalmar o nervosismo, depois de tão apressada caminhada para longe dos trabalhos do Diabo.
Bendito o dia em que desperdiçara uma tarde a escutar o Ti Alcibíades, antigo tosquiador, que passara a vida tratando dos cavalos e das bestas de D. Manuel de Meneses, fidalgo que comprara o antigo palácio de Diogo Soares. Com o passar dos anos, o tosquiador deixou de ver, abandonou a arte, regressou ao lugar de Bencatel e tornou-se bêbado afamado. Não passara ainda um mês quando, numa tarde de chuva, Laparduço procurou abrigo de uma bátega puxada pelo vento e ficou, de caneca na mão, frente a frente com o velhote. A água escorria em força e a conversa alongou-se. Mal sabia Aranjuez que o Ti Alcibíades contava a história dos amores de Diogo Soares, tratando-o por cão e por traidor. Quando estava mais bêbado, reforçava o desprezo cuspindo para o chão.
Deu graças a Deus por ser tão mentiroso. Não tivesse a astúcia para responder ao canalha do Aranjuez, que lhe montara a armadilha, ou agora estaria morto ou obrigado a servir os polícias de Miguel de Vasconcelos.
Não parava de tremer com medo, embora suspirasse de alívio por tão dura prova que acabara de passar, e descobriu três segredos naquele encontro que o assustavam.
O primeiro revelava que quem matava os vadios eram os espanhóis capitaneados pelo Aranjuez, usando-os para forjarem emboscadas aos incautos e forçá-los a colaborar com os ocupantes do Reino. E tudo em volta da Casa de Bragança. Era mais do que certo que Filipe sabia que dali podia vir a principal ameaça contra a Coroa usurpada.
Não menos grave era o segundo segredo, pois uma coisa parecia ser certa. Aos dois desgraçados que morreram cortaram-lhes as partes e, raios!, qual seria o motivo para desonrar um homem desta maneira? Só havia uma explicação: Aranjuez era bruxo. Chantageava os vivos e aproveitava-se dos tomates dos mortos para fazer coisas ditadas pelo Diabo. Ao pé de algo tão terrível, as rezas e invocações da Efigénia Pé de Galinha ou do Castanho de Juromenha eram coisas inocentes.
Serviriam para fabricar alguma mezinha? Não sabia, nem conseguia adivinhar, atormentado com o terceiro segredo. Não tinha dúvidas de que o último engodado para espiar o duque fora Felisberto, o ferreiro, que se cruzara com ele, correndo espavorido, no dia em que se soube que havia um morto sem as partes nas terras da Cavaleira.
A canalha atemorizara o pobre homem e, agora, seria mais um entre os muitos olhos que, na sua própria casa, vigiavam o duque. Pela segunda vez, elevou o olhar aos céus, agradecendo por Deus lhe colocar na boca as mentiras que o salvaram de tamanha aflição. Era da sua natureza. Para vender pomadas, óleos, licores e tisanas era fundamental contar sempre um caso igual ao do possível comprador onde se aplicasse determinado unguento.
– Tem peitogueira? Nem sabe a sorte que lhe calhou por me ter encontrado. Um fidalgo das Alcáçovas estava à beira da morte com peitogueira, daquela mesmo ruim, e foi quase por piedade que lhe vendi esta pomada para ele pôr no peito. Em dois dias estava curado. Já lhe mostro.
E assim estava dado o primeiro passo para começar a vender.
– Licor de poejo? Claro que tenho. O senhor padre Pereira, homem mais santo não há no Redondo, levou-me quase tudo, mas ainda aqui levo uma botija. Para a tosse, não há nada igual. Mel com limão também cura, mas o licor de poejo, quando chega o frio, o senhor padre Pereira bebe pela manhãzinha e nem um espirro, quanto mais tosse. Aqui tem!
Estava mais calmo depois da refrega com o fidalgo Aranjuez e deu por si a rir da galga que o libertou da armadilha do canalha. Se na aflição desesperada jurara que não contaria a ninguém o que se passara naquela terrível manhã, não lhe saía da cabeça o motivo que o levaria a capar os homens que matava. Lembrou-se da Efigénia Pé de Galinha, que morava perto, e bem podia esclarecer aquela matéria em que, segundo se dizia, era uma entendida. E começava a sentir fome. Levantou-se do local onde se acoitara, assobiou ao Manjerico e meteu-se ao caminho.
Pouco restava da bela Efigénia do Abegão, a não ser os intensos olhos negros, naquela velha ressequida, o rosto rasgado por sulcos profundos que pareciam ter sido feitos por rios de lágrimas infinitas, pois lhe nasciam em volta do olhar e escorriam pela face, aproximando-se junto ao queixo. A velhice secara ainda mais as carnes da outrora viçosa menina dos sonhos e dos rouxinóis que partira com Gertrudes para o inferno de Alcácer Quibir. Até o nariz arrebitado de outros tempos ficara retorcido, fazendo lembrar um dos falcões do senhor duque.
Olhou, desconfiada, para o mercador e, antes de ele dizer ao que ia, atirou, com rispidez gelada:
– Não tenho ovos e não quero espargos – referia-se ao último negócio que houvera entre ambos.
– Estou aqui por outra coisa, Ti Efigénia. Um problema. Um verdadeiro problema.
Respondeu sem procurar saber o desconforto que ia no coração alvoroçado do Laparduço, percebendo mal o sentido das palavras.
– Se não fosses tão mentiroso, talvez não tivesses problemas.
– Oiça. Eu vi um homem morto.
– É o que não falta são homens mortos. A maioria não o sabe e ainda anda por aí. Estão mortos por dentro.
– Este não tinha as partes. Quem o matou cortou-lhe a picha e os tomates – perante a surpresa de Efigénia, ganhou tempo para recuperar o fôlego, e sublinhou: – Levaram-lhos.
– Laparduço, não me estás a mentir? – perguntou, mais atenta, acreditando na aflição dele.
– Juro-lhe pelas alminhas. Já estava podre. A bicharada comia-lhe as carnes e a verdade é que não é o primeiro caso. Aconteceu outro igual ali para os lados da Cavaleira. Já deve ter ouvido falar.
– Falo com pouca gente.
– Eu sei. Não me leve a mal, Ti Efigénia, aquilo que lhe vou dizer. Desde que me conheço que oiço falar de si como uma pessoa que tem artes e saberes que não são vulgares a qualquer alma por mais anos que viva.
– O que se diz por esses campos não é sobre mim, mas sobre o medo que as pessoas têm de lidar com uma velha que vive sozinha.
– Seja como for! – insistia o Laparduço. – Toda a gente sabe que vossemecê esteve em África, que ali aprendeu coisas estranhas, que é das poucas pessoas vivas que viu o nosso amado rei D. Sebastião e, de lá, trouxe mistérios que nunca revelou a ninguém.
– Disparates.
Efigénia Pé de Galinha abrandara. A rispidez inicial dera lugar a um interesse indisfarçável pelo dono do Manjerico. Sentou-se numa pedra, à frente dele, e perguntou:
– Tens a certeza de que os homens não tinham as partes?
– O outro só ouvi contar. Mas este eu vi e não tinha. Foram-lhe cortadas com um punhal ou com uma faca.
Com um pequeno ramo começou a fazer desenhos na terra, mergulhada em pensamentos que o interlocutor nem imaginava. Este prosseguiu
– Dei comigo a pensar se isto não será mau-olhado que me deitaram. Acho que falei de mais do primeiro caso, confesso com humildade que tenho a língua grande e multipliquei a coisa por todos os lugares por onde passei e, de repente, isto! Como se alguém me quisesse dizer: já que falas tanto do vagabundo sem tomates, toma lá um só para ti. Só pode ser mau-olhado, se não for coisa pior, por ser primo do Manuelinho.
Efigénia levantou o olhar do chão e perguntou com severidade.
– Tens a certeza?
– Eu? Certeza do quê? – retorquiu, atrapalhado.
– Que és primo do Manuelinho. Não venhas pedir ajuda e mentir ao mesmo tempo que tenho idade para ser tua mãe! – ralhou Efigénia Pé de Galinha.
– Sou primo afastado – murmurou.
– Laparduço?!
– Pronto, pronto. Não sou primo de ninguém. Inventei essa coisa para fazer conversa. Não foi por mal. Uma pessoa passa tantos dias sem falar com alguém que, quando chega a altura, tem de dizer qualquer coisa.
E como se fizesse um aparte, recordando a conversa que tivera de manhã com o fidalgo Aranjuez, suspirou:
– Nem imagina de quem às vezes temos de ser primos para safar a pele de piores males.
– Conheci os teus pais. Moravam à entrada da Rua dos Fidalgos e nunca dei conta de que tivessem família em Évora, muito menos um sobrinho maluco que se chamasse Manuelinho. Não saíste a eles, não. Que eram pessoas de trato e não mereciam que o filho fosse um aldrabão como tu.
– Ti Efigénia! Pelas alminhas, eu...
– Deixa as alminhas em paz. É verdade que viste o homem morto e com as partes cortadas?
– Vi! – garantiu com convicção, e esclareceu: – Embora cheirasse muito mal e só pensasse em fugir dali. Nunca pensei que a morte desfigurasse tanto uma pessoa. Mas o outro caso que se passou na Cavaleira veio-me à cabeça e fui então ver mais de perto para saber se estava ou não capado. Estava mesmo!
A velha tornou ao silêncio. Agora de braços cruzados, a olhar o horizonte, empertigada, parecia uma estátua, pois que nem pestanejava. Laparduço gemia em voz baixa uma lamúria quase imperceptível, de tão apoquentado, e ela não o escutava.
– Só pode ser coisa do outro mundo. Só pode! Como é que a duas léguas de distância aparece isto? E, ao lado, os mesmos bonecos de trapos com o alfinete espetado no cu, ou nas partes, ou seja lá no que for?!
Não contava tudo. O vendedor ambulante só falava daquilo que a curiosidade lhe pedia, omitindo o cerco dos soldados e a conversa com o fidalgo.
O Sol começava a cair por detrás da serrania, mostrando em contraste Evoramonte, pendurada no alto da última colina. O Alentejo aconchegava-se numa neblina suave, preparando-se para adormecer. Pelos céus, bandos de zurzais recolhiam aos montados e, ao longe, ouviam-se sinos tocando as vésperas.
Efigénia estremeceu com a aragem fria que, de repente, surgiu e acordou do torpor em que se mantivera.
– Queres comer? Estava a fazer um caldo de beldroegas quando aqui chegaste.
– Não me diz nada sobre aquilo que aconteceu? Vim de propósito.
– Não sei. Eu não vi coisa alguma. Já que estás aqui, vai buscar lenha, que as minhas pernas não ajudam muito nessa função.
Voltou as costas ao mercador, entrando na choupana. Laparduço levantou-se a contragosto. A velha procurava fugir às perguntas e ele tinha a certeza de que só ela, e poucos mais, poderiam ajudá-lo a sair daquele susto. Como se sentiria cada um daqueles infelizes se, por vontade divina, ressuscitassem e, ao apalparem-se entre as pernas, descobrissem que estavam sem os aparatos que Deus lhe deu?
Só podiam ser coisas de bruxaria e desta matéria, por menos astuta que fosse, Efigénia sabia. Ganhara fama por causa das suas artes misteriosas que curavam maleitas de corpo e de alma, afastando pestes e demónios, e conseguia produzir maldição ou felicidade suprema a quem estivesse sob a sua atenção.
Veja-se o caso da Luzia do Carpinteiro, de São Romão. Andou mais de cinco anos para emprenhar. Fez promessas à Senhora da Conceição, meteu velas às carradas em São Bar- tolomeu dos Mártires e nada. Até já se dizia que o Ricardo Carpinteiro não tinha arte para a função e não nascera com dotes de cobridor.
Ninguém sabe que trabalhos a Efigénia fez. Nem a rapariga contava. A verdade é que bastaram meia dúzia de visitas à bruxa e, pouco tempo depois, aí estava a Luzia de barriga cheia, à espera de um rebento. Quando o mulherio chamava bruxa a Efigénia, Luzia respondia sempre que era uma santa.
Embora ninguém soubesse, não era por bondade que Luzia respondia assim. É certo que houve um tempo em que, já desamparada de outras esperanças, a procurou, tristonha, pois não havia jeito de emprenhar.
A velha despediu-a bruscamente.
– Não há mezinha para resolver tal vazio. O teu marido que te cubra e que tu o aceites quando estás limpa. A natureza há-de cumprir-se. Aceita o que o destino te der e um dia vais ser mãe.
Desiludida, regressou pelo mesmo carreiro, quando ao caminho lhe saiu o Domingos Bicharoco, pastor dos rebanhos do senhor duque e poeta de quadras soltas. Atrevido e brincalhão, soltou-lhe este cumprimento.
Onde vais papoila linda
Com tão grande formosura?
Tens olhos de alegria infinda
E os teus lábios são ternura.
Recebe do pastor um beijo
Das minhas mãos, uma flor
És um anjo, o meu desejo
Eu te dou o meu amor.
Ainda hoje Luzia não sabe explicar tamanho encantamento. O marido carpinteiro era mais dado a vinho e nunca lhe dissera uns versos, e agora, no meio daquele imenso vale, surgia um trovador a cantar-lhe segredos do coração. Quase desfaleceu nos seus braços quando ele a deitou sobre um tufo de ervas macias, beijando-lhe os seios com o mesmo entusiasmo com que Ricardo levava aos beiços a caneca de carrascão, e ao ser possuída escutou hinos de glória às virtudes da carne e do prazer. Afinal, Efigénia dera-lhe conselho valioso. Mandara-a aceitar o destino e ela assim fez por muitas largas semanas até a barriga ficar disforme. Graças a tão sábio conselho, o Ricardo Carpinteiro era o pai orgulhoso do filho que o Bicharoco fizera por ele, entre quadras e beijos, tornando Luzia a mais grata das crentes nos poderes da bruxa.
Ninguém sabia ao certo o passado de Efigénia. Falava-se das suas aventuras em África, dos feiticeiros que a salvaram, das juras que fizera ao Diabo para regressar a Vila Viçosa, dois anos depois do desastre de Alcácer Quibir. Os mais antigos acusavam-na de ter trazido um filho, que depois abandonara. Outros diziam que não. Revelara à chegada a sua condição de poderosa bruxa africana. Pela mão trouxera el-rei D. Sebastião, em forma de criança para não ser descoberto pelos inimigos, e deixara-o partir outra vez, transfigurado em cavalo alado. Não se sabia ao certo e Efigénia Pé de Galinha tinha o passado sepultado num túmulo. A verdade, garantida e segura, é que partira como criada da Casa de Bragança. Retornara vadia e arisca, sem trazer sinal da Efigénia do Abegão, a jovem bela e apaixonada por rouxinóis de quem toda a gente gostava no Paço Ducal.
Envelheceu sozinha. Longe do mundo. Sem procurar ninguém. Nas traseiras do casebre, cuidava de uma horta e de um galinheiro. Não comprava, nem vendia. Trocava ovos por pão, couves por grãos. Não frequentava a igreja, nem procissões e nunca ninguém a viu na feira de Agosto. Quem quisesse saber dela, forçosamente teria de meter-se à estrada e subir a colina no cimo da qual passara os anos, como se fosse uma cegonha vigilante poisada sobre o ninho.
Iam a meio do caldo e a noite já se instalara, que em Novembro cai bem depressa, quando ela falou.
– Quem matou os homens e os capou sabia o que queria. As partes, quando ficam secas, podem ser pisadas até se transformarem em pó, são remédio do melhor para os religados.
Laparduço engoliu em seco, boquiaberto, perante a inesperada confissão.
– Religados? O que é isso?
– Homens que, por doença ou malvadez, não têm força no pau para cobrir as mulheres – respondeu com o ar mais natural do mundo.
– Como?
– É o que te digo. Eu não faço esses trabalhos.
Laparduço perdeu o apetite. Aqueles mistérios que rebentavam com a força viril de um homem atemorizavam-no. Efigénia percebeu a angústia do mentiroso e soltou uma gargalhada rouca. Os olhos ganharam brilho à luz da candeia quando proclamou, satisfeita:
– Alguns desses impotentes que procuram tal remédio fui eu quem os deixou nesse estado. Façam os trabalhos que quiserem, nunca mais terão verga para gozar uma fêmea.
Instintivamente, Laparduço olhou para a braguilha das calças e segurou o sexo com a mão.
– Nossa Senhora da Conceição! A Ti Efigénia não me vai causar tal desgraça. Não faço mal a ninguém.
Ela encolheu os ombros e continuou a comer o caldo.
– Ouviu o que eu disse? – perguntou, desconfiado.
– Não passas de um pobre diabo e não abusas de mulheres. Apenas da paciência de quem te ouve.
Tornaram ao silêncio. Sabiam que a vida era um estranho labirinto, um destino moldado conforme a vontade de Deus e os caprichos do Diabo, submetendo cada criatura a uma vontade maior. E se a igreja era, por vezes, o abrigo que afastava malfeitorias e os espíritos ruins, a verdade é que estavam sujeitas a todas as manigâncias que decorriam da contenda entre as forças da virtude e os truques mais malévolos ditados pelo Mafarrico.
A dúvida matava de angústia, admitia Laparduço, ainda incomodado com as magias que davam cabo das partes de um homem. Era difícil de entender qual era a separação do Bem e do Mal. Um pobre de Cristo não conseguia saber se o que lhe acontecia era castigo divino ou ódio puro do exército de anjos negros que contrariavam os desígnios do Senhor. Um jogo cruel, carregado de medos, que obscurecia os destinos de gente esmagada pelo jugo espanhol e por essa batalha invisível, que cruzava os povoados e os campos, entre o Inferno e a paz celestial, onde cada alma era o mais insignificante joguete para tão imponentes poderes do Além.
– O melhor que faço é esquecer aquilo que vi. Se calhar, inventei.
Laparduço temia, como ninguém, os sinais que lhe punham no caminho e aquele cadáver bem poderia ser uma armadilha para anunciar desgraça futura.
– Se calhar – corroborou laconicamente a velha.
Não se susteve. Os segredos que transportava desde manhã eram mais fortes do que ele. Por mais que se penitenciasse por ser linguarudo, era um desejo tão intenso de partilha que perguntou:
– E se eu lhe dissesse que conheço o bruxo que cortou o sexo dos mortos?
A velha respondeu-lhe com uma pergunta desconfiada:
– Conheces ou vais inventar uma mentira sobre alguém?
– Pelas alminhas, Ti Efigénia. A senhora nem imagina o apertão que vivi esta manhã. Por mais anos que dure não vou esquecer a aflição. O bruxo é espanhol.
Reforçou a entoação quando fez a denúncia, mas ela não reagiu.
– Matam os homens para criar armadilhas e com elas obrigam quem eles querem a serem espiões do rei de Espanha. A senhora chama-me mentiroso e é verdade. As vezes digo cada uma que até eu fico espantado. É defeito profissional. Mas hoje passei as marcas para salvar a pele.
– Os bruxos não têm pátria. Vivem num outro lugar onde não há fronteiras.
Laparduço não percebeu e reagiu vivamente.
– Que conversa é a sua, mulher? Eu ouvi-o, esteve à minha frente e falou comigo. Quando foram as alterações de Évora, era chefe de um grupo de soldados que dava porrada no povo amotinado. O cabrão chama-se Aranjuez. Queria fazer de mim espião. Meti-lhe uma galga que até foi ardendo. Durante meia hora, o animal esteve a falar com o primo de D. Diogo Soares. Contei-lhe uma história que tinha ouvido ao Ti Alcibíades.
Parou o discurso. Estava crispado com a recordação da conversa.
– O ordinário fez o mesmo com o pobre do Felisberto e não tenho dúvidas de que o infeliz caiu no engodo. Anda a espiar o senhor duque, de certeza absoluta.
Efigénia não respondeu. Laparduço observou-a com atenção, desconfiado de que a velha não entendera nada.
– Não ouviu o que eu disse?
– Ouvi. Mas não sei nada sobre aquilo de que falas. Não conheço ninguém.
À luz da candeia, o rosto dela denunciava a tristeza que vivia dentro da alma. Parecia que o sofrimento lhe enchia o corpo de tal maneira que as marcas das rugas, a rigidez do corpo magro, a sobranceria das palavras, a invulgaridade de um sorriso, atemorizavam quem com ela se cruzava. Agora, tão perto de Efigénia, repartindo as beldroegas, aquecidos pelas mesmas chamas crepitantes, o mercador ambulante pressentia que a maldade que lhe atribuíam não passava de tristeza, tão grande que ganhara forma de gente.
– E a Ti Efigénia? Não tem medo?
– Já passei a idade dos medos. Apenas espero a minha hora que bem atrasada está.
– Ninguém sabe quando ela chega para nos levar – sentenciou Laparduço para a animar.
– Espero-a e desejo-a há tantos anos que todos os dias me pergunto porque não parto ao encontro do meu fim – hesitou antes de continuar e, enigmática, declarou: – Talvez esteja à espera de saber se há um resto de bondade no Deus de quem se fala.
– Senhora da Conceição! Acabou de dizer uma heresia – bradou Laparduço, levando as mãos à cabeça.
Ela não reagiu à imprecação. O olhar fixado na lareira, as mãos cruzadas no peito, o único dente a esmagar o lábio, repetiu solenemente.
– Se Ele for justo como apregoam, vai compensar-me por tanto mal que me fez. Talvez seja a única razão por que não morri. Espero esse sinal há mais de sessenta anos. Desde o dia em que me roubaram o prazer de viver.
SEGREDO DE DUQUES
João e Luísa de Gusmão ceavam nos seus aposentos. Soprava uma aragem fria, das bandas de Badajoz, e tinham mandado pôr a mesa perto da lareira. Grave, embora aparentemente calmo, o duque debicava sem grande apetite uma perna de faisão, enquanto a esposa, inquieta, o observava com desconfiança. Era um silêncio estranho. Quando estavam sozinhos, sem os vulgares comensais que quase diariamente eram seus convidados, costumavam tagarelar sobre coisas triviais ou mais graves, sem grandes cerimónias e sem reservas. E Luísa suspeitava de que aquela ceia sem palavras tinha tudo a ver com a conversa que o marido travara com o alcaide de Mourão e com Pais Viegas. Depois da partida dos dois amigos, ele não tornara a falar sobre os preparativos da conspiração e a irrequieta andaluza procurava ler no comportamento do marido aquilo que lhe ia na alma. Mas sem sucesso. A tranquilidade reservada do duque escondia qualquer vestígio do que fora dito.
Luísa sabia que, logo após a revolta da Catalunha, os mais impacientes quiseram precipitar os acontecimentos para Setembro. Entre as desculpas para justificar o adiamento estava o luto dos duques.
Nesse mês, Manuel de Bragança nascera e morrera no mesmo dia, e o funesto acontecimento deixara D. João alquebrado, vendo nele um mau augúrio para os graves desafios que estavam em preparação. Considerou-se o adiamento para Outubro, porém, tardavam respostas de chancelarias estrangeiras, que não davam por garantido o apoio à causa portuguesa. Quando chegaram as tão desejadas mensagens, Novembro estava à porta e ninguém admitia desencadear tão arriscado evento no mês de finados, um mês negro, onde as almas dos mortos eram agitadas pelas invocações e orações dos vivos.
De entre as conversas que conseguira apanhar, Luísa de Gusmão estava convencida de que Dezembro seria o mês de todas as verdades e associava o encontro do alcaide de Mourão e de Pais Viegas com o marido aos últimos preparativos antes da decisão final.
Por fim, D. João rompeu o mutismo e começou a falar do tempo.
– Está muito frio e desconfio de que este Inverno vai ser ruim. Não chove e desde o São Martinho que não se passa uma noite sem que uma geada nos venha atormentar.
– Desde que cheguei a Vila Viçosa que os invernos são assim – comentou Luísa, apenas para prolongar a conversa.
– Pois, mas este é mesmo muito frio. Não me lembrava de tanto gelo há muitos anos. É de mais. Até tenho pensado num projecto que iria agradar muito aos teus pais e que divertiria os nossos filhos.
– Que projecto? – perguntou, parando de cear, em alerta.
Conhecia-o bem de mais para saber que aquele início de conversa sobre o tempo era como um voo de águia, que rondava nos céus várias vezes a observar a presa e, de súbito, mergulhava para lhe lançar as garras.
– Isto só vai piorar. Até meados de Fevereiro ou faz geada ou chove a cântaros.
– O que é que os meus pais têm a ver com o tempo que faz em Vila Viçosa?
– Nada, nada! – redarguiu, enquanto, de repente, começou a comer com pressa, como se um apetite repentino tivesse tomado conta de si.
Procurava ganhar tempo para encontrar as palavras certas, e Luísa, que lhe conhecia os gestos, percebeu a manobra. As pausas para escolher palavras eram uma das qualidades que faziam dele um diplomata invulgar. A águia girava no alto à espera da oportunidade para o ataque final.
– Estava a pensar em irmos passar o Natal a Sanlúcar de Barrameda – avançou por fim e a duquesa ficou boquiaberta, mas ele não a deixou falar e prosseguiu: – O tempo é melhor do que este, os nossos filhos vão visitar os avós, tu reencontras-te com a tua casa paterna e eu aproveito para descansar alguns dias e visitar Cádis.
A águia lançou-se sobre a vítima. Era claro o propósito do marido. Queria afastá-la do Paço e do país para a proteger de eventuais desaires que trariam pesados castigos a quem ousasse afrontar o poderoso Filipe.
Porém, a ideia era tão despropositada e tão longe daquilo que ela esperava saber que não encontrou resposta a jeito, tal era a perplexidade. João de Bragança aproveitou para levar o conseguimento da sua ideia até ao fim.
– Falei com o alcaide de Mourão, que fornece escolta para entrarmos em Olivença e irmos sempre com segurança até Sanlúcar de Barrameda.
– Bem, se tu achas...
Luísa não conseguia reagir à invulgaridade de tal viagem e João aproveitou para tomar a resposta evasiva da mulher como um sinal de assentimento.
– Ainda bem que concordas. Sendo assim, vou mandar preparar transporte para que, na próxima semana, vocês partam. Quando terminar a faina da azeitona e da lavra das terras, lá para meados de Dezembro, vou ter convosco.
Foi então que Luísa de Gusmão descobriu o ardil. Olhou-o longamente com uma expressão de desafio. Depois, cruzou os braços sobre a mesa e fez sinal aos criados para se retirarem, pedindo que fechassem a porta, sem deixar de fixar o marido.
João conhecia aquele ar combativo da mulher e o apetite repentino esvaiu-se. Mal a porta se fechou, Luísa de Gusmão, queixo levantado, desafiou-o:
– Nem penses, João de Bragança!
– Não penso, o quê? – perguntou, atabalhoado.
– Não me tomes por uma idiota que não conhece o seu marido.
– Luísa, que termos são esses? Eu não admito... – a voz de João tornou-se mais firme.
– Não me afastas de ti para morreres sem mim – a altivez dos Medina Sidónia tinha aquele tom de desafio.
– Luísa?!
– Se quiseres falar comigo, abre o coração a quem se entregou ao teu sem condições. Se não quiseres, guarda para ti os segredos que não me queres revelar, que eu respeito a tua decisão.
– Chega, Luísa de Gusmão! Chega.
Com o calor da discussão ambos haviam saído da mesa. A duquesa respirou fundo para controlar a exaltação e, por momentos, um silêncio tenso atravessou a sala. O marido, de braço apoiado no vão da lareira, olhava, sem ver, o crepitar da lenha.
Em voz baixa, mas firme, Luísa declarou, solene:
– Entenda como quiser, meu senhor. Mas aqui lhe juro! Prefiro morrer rainha, nem que o seja por uma hora, ao lado do meu rei e marido, do que ser duquesa e viúva toda a vida. Se a tragédia vier, nem a ferros me levarão de perto de si. Jurei isso no altar. Se houver morte, morreremos juntos!
Saiu precipitadamente da sala e o duque, cabisbaixo, continuou, imóvel, frente ao lume da lareira.
Faria sete anos, no próximo mês de Janeiro, que haviam casado em Elvas. Tornara-se num acontecimento que pusera Vila Viçosa em festa durante vários dias, recebendo a jovem duquesa com grande alegria. Quem conhecia a história dos Braganças, desejava-lhe melhor sorte do que a que tivera outra Medina Sidónia, que, em tempos idos, fora apunhalada por D. Jaime, o então duque, num acesso de cólera e ciúmes.
Luísa de Gusmão chegara com vinte anos. Era um mar de energia e alegria. Filha do oitavo duque de Medina Sidónia, um dos mais poderosos aristocratas da corte de Filipe, trouxera consigo um pedaço do sol andaluz, por onde crescera na companhia do seu irmão Gaspar de Guzmán, que se tornaria num dos grandes generais de Espanha. Ao temperamento rebelde, a jovem Luísa somava uma fina inteligência e um jeito natural para estimar os mais próximos.
D. João de Bragança não teve muito tempo de aprendizagem daquela fogosa criatura, que, rapidamente, se instalou dentro dele, entregando-se-lhe com uma paixão estonteante. Luísa amava-o. João percebeu nela a grandeza da entrega por amor. Enamoramento mágico quando ambos sabiam que o casamento fora um negócio político. Com a paixão pelo seu duque, a jovem Luísa de Gusmão esquecera acordos nupciais, estratagemas de conveniência, dedicada ao marido e aprendendo a amar aqueles que com eles privavam, que Vila Viçosa era, agora, o nome do seu coração.
Um ano depois do primeiro encontro entre os dois amantes, nascia Teodósio, nome herdado do avô paterno, futuro chefe da Casa de Bragança. À felicidade extasiada de Luísa quando lhe mostrou o filho, João respondeu com emoção profética:
– Deste à luz um rei.
E fez espalhar a boa nova entre a fidalguia mais leal que frequentava o Paço e permanecia fiel à memória do Reino. O sonho esperado desde Alcácer Quibir, desejando Sebastião, ansiando por que a humilhação nacional terminasse por força do amor às raízes que deram flor e fruto à beira do Atlântico havia mais de cinco séculos.
A desagregação do poder dos Filipes, sobretudo a política levada a eito pelo último, sob a direcção de Olivares e da vice-rainha Margarida de Sabóia, fizera apodrecer a pouca fé que Portugal tinha no governo espanhol.
Olivares desprezou a nobreza, retirando-lhe privilégios e cargos de administração pública, que haviam sido jurados nas Cortes de Tomar. Permitiu o esbulho do ultramar, desinteressou-se dos ataques dos navios holandeses e ingleses, corsários a soldo, desbaratando o comércio português por rotas marítimas, e o povo, exaurido pela carga de impostos e pela perseguição política, desesperava por encontrar um rei lusitano que amasse a sua terra.
D. João não sabia quando Teodósio nasceu, seis anos antes, se as condições para a insurreição ainda chegariam enquanto estivesse vivo. Mas tinha uma certeza. Não demorariam muito para que o primogénito não continuasse só duque. E tornou a repetir:
– Deste à luz um rei.
Agora, meia dúzia de anos depois, nesta noite em que Luísa se recusou a viver sem ele, recordava a discussão que, depois do nascimento do filho, tivera com o hispo que os casara e que, nesta altura, era arcebispo de Braga.
– Não o entendo, meu caro duque! Esta sua resistência passiva a aceitar Filipe, rei legítimo por sangue e herança de Portugal. A sua casa está decorada com privilégios e homenagens que ele lhe tem feito com tal generosidade que a sua indiferença pode ser tomada como uma afronta. Tornou o Paço Ducal numa verdadeira corte. Vêm aqui traidores prestarem-lhe vassalagem, conspirar contra a Coroa.
– Está enganado, eminência. Esta é a casa do meu pai, do pai do meu pai, de todos os fidalgos que guardam respeito à memória do Reino. Nesta casa, não se conspira. Ama-se a nobreza de sentimentos e recorda-se o carácter dos grandes homens. Diga-me um só gesto da minha parte que afronte o rei Filipe. Um único gesto.
– Toda a gente sabe que evita a duquesa de Mântua, que não convida o conde-duque de Olivares nem fidalgos espanhóis para a sua Casa. E fala-se à boca pequena da corte que aqui se reúne e com quem se encontra quando vai a Lisboa. Todos são inimigos declarados dos Habsburgos. Nem um escapa. O conde de Vimioso, o marquês de Ferreira, D. António de Mascarenhas, os Távora, D. Antão de Almada. Até esse descarado João Pinto Ribeiro, que não perde um pretexto para afrontar o nosso rei, é seu amigo e administrador da sua Casa. E pior do que tudo isto, o povoléu vê em si a reencarnação de D. Sebastião. Para além de uma crença herética, é a maior prova da sua resistência à política de Filipe.
– Está a indicar o nome de alguns dos melhores e brilhantes filhos de Portugal. Diga-me, eminência, qual é o bem mais caro para um povo que durante séculos nasceu, morreu, para se reerguer das cinzas e tomar o seu destino nas mãos, sofrendo mágoas e delas fazendo poemas e poetas? Qual é o maior anseio de um povo, de uma nobreza investida na condição das suas linhagens por serviços prestados em mil batalhas? De um clero que, tantas vezes, empunhou armas para defender a cristandade, divulgar a fé, em nome de Portugal?
– O maior anseio é servir a Deus e, através dele, os homens que Ele ungiu como reis – declarou o bispo, peremptório.
João respondeu com ironia.
– Antes de chegarmos às nossas obrigações com o Divino, há uma fome, maior do que a fome, que une nações e os seus povos. Chama-se dignidade!
O clérigo olhou-o, contrariado, porém João não lhe permitiu que o contraditasse.
– Sem ela não há amor-próprio. Nem o amor é um gesto livre. Um povo sujeito à humilhação nem consegue alcançar a Deus, de tão magoado com a sua condição. É isto que Portugal e os portugueses procuram e, nesta Casa, encontrarão sempre acolhimento. Em nome de todos aqueles que nos antecederam. Da dádiva da vida de muitos pelo seu Reino, na dádiva de todos para a grandeza de uma nação que chega aos confins do mundo. Por isso, senhor bispo, não veja nesta defesa da dignidade uma afronta a Filipe. Ele é nosso rei, é certo, mas não sabe chorar, nem rir, nem amar em português. A sua dignidade vem de outra raiz e de outra gente com uma história rica e respeitável, mas não é a nossa gente.
O bispo engoliu a resposta com alguma irritação.
– Confunde paixões do coração com política – comentou, desaprovando o discurso.
– Quem faz política sem coração produz insensatez e injustiça. Foi por amor que Jesus Cristo morreu por nós. Não se sacrificou porque queria ser rei dos judeus.
– A resposta é jocosa e ilude a questão essencial – redarguiu o eclesiástico.
A conversa ficara por ali e João não teve dúvidas de que chegaria aos ouvidos da duquesa de Mântua. Embora ninguém o tenha incomodado, a verdade é que, passados alguns meses, aquela discussão sobre dignidade promovera o seu interlocutor a arcebispo de Braga, e ele tinha informações seguras de que se multiplicara a vigilância sobre a sua vida social e sobre aqueles que estavam mais próximos.
Por tal motivo, impusera algumas condições a João Pinto Ribeiro e a D. Antão de Almada.
– Somos vigiados. Sei que os espiões de Margarida de Sabóia espreitam os nossos mais pequenos gestos e toda a cautela é pouca.
– Qual é a ideia de Vossa Senhoria?
– Nos próximos tempos, só vêm a Vila Viçosa as pessoas que trabalham na minha Casa, assim como um ou outro velho amigo de família. O alcaide de Mourão era próximo do meu pai, o João Pinto Ribeiro e o Pais Viegas são administradores da Casa de Bragança. Não darão nas vistas, se me vierem visitar. Há sempre a desculpa de tratar de negócios. Quanto aos nossos amigos, é bom que não nos encontremos durante estes tempos mais próximos. Para segurança de todos.
Concordaram com a proposta. Em Lisboa, também se sentia o peso da vigilância apertada sobre alguns dos conspiradores e qualquer deslize poderia despertar as autoridades espanholas, sobretudo o desconfiado secretário de Estado Miguel Vasconcelos.
Desde então tinham-se rodeado de mil cuidados. As reuniões clandestinas eram marcadas no próprio dia, e muitas vezes, horas antes de começarem, transferidas de um local para outro. Qualquer viagem a Vila Viçosa era justificada com uma escritura que era necessário fazer, com a entrega de mercadorias, vindas pelo mar, à senhora duquesa e outros expedientes vulgares que não sobressaltavam vizinhos nem servidores.
Agora, nas vésperas do dia decisivo, era confrontado por Luísa. No fundo, sentia algum conforto na insubmissão da esposa. Apesar da delicadeza do momento, das ameaças tão sombrias, as cumplicidades que construíra com ela, durante os últimos sete anos, permitiam que encontrasse alguma paz na ríspida decisão que Luísa lhe comunicara à hora da ceia. Não havia maior declaração de amor. Quando a morte está frente a frente com cada um, encará-la em desafio é dádiva rara no caminho de dois amantes. Tal como Romeu e Julieta, que ambos tinham lido e relido com sôfrega emoção. Luísa era a sua doce Julieta, embora de têmpera mais rija e determinada, como um cavalo de sangue árabe criado nas planícies de Andaluzia. Nela não havia quebrantos, nem fatalismos dramáticos. Respirava confiança e força, muleta confortável para um duque determinado e cauteloso.
Encontrou-a no oratório, à luz pálida de dois castiçais mortiços. Era uma silhueta de costas, recortada pelo luar frio de Novembro, que entrava pela janela. Rezava.
– Luísa? – chamou-a num sussurro e, lentamente, aproximou-se dela. Ao tocar-lhe o ombro, a duquesa estremeceu, como se tivesse despertado de um sonho.
– Quando é? – perguntou, hirta, sem deixar de olhar Cristo crucificado à sua frente.
– Dia um de Dezembro.
– Faltam seis dias – pensou em voz alta, apertando as mãos em oração.
– Pode ser o primeiro dia das nossas vidas. Ou da nossa morte. Devias proteger-te. A minha ideia de....
– Não quero ouvir as tuas ideias sobre a minha protecção. Só o teu amor me protege.
João levantou-a do oratório, tomou-a nos braços e beijou-a longamente.
– És a mulher mais extraordinária que existe à face da Terra – sussurrou com ternura.
– E tu o mais prudente e generoso dos homens. Amo-te!
Tornaram a beijar-se com paixão. Desde Setembro, quando, no mesmo dia, nasceu e morreu Manuel de Bragança, que o desgosto pela perda daquele filho embotara a libido do casal. Depois de Ana, que também morrera durante o parto, de Joana e de Catarina, este era o segundo filho varão. Um novo cavaleiro que se juntava a Teodósio nos destinos da família e Deus não quis. Levou-o consigo, no momento em que recebera a luz dos dias, para lhe entregar a Luz Eterna. João chorara em silêncio, recolhido, longe de todos, na Sala do Cântico dos Cânticos. Luísa chorara mágoa e revolta, jurando para quem a quisesse ouvir que o seu ventre só descansaria quando desse mais homens à Casa de Bragança. Embora não soubesse, Deus ficou impressionado com a rebeldia irritadiça e, mais tarde, haveria de lhe oferecer Afonso e Pedro.
O beijo fez despertar a fibra de corcel da jovem duquesa. Abraçou o marido com desejo e João despertou do breve luto, tornando a beijá-la e a abraçá-la com maior ímpeto. Cristo, no oratório, observava-os em silenciosa displicência, abençoando o amor transformado num turbilhão de gemidos e desejo, de dádiva e paixão, como se os dois se tivessem convertido num só, esfomeados, pois faltavam seis dias para renascer uma nova vida. Ou para morrer.
Quando despertaram da posse, descobriram, então, que haviam chegado à cama e respiravam, ofegantes. Luísa desembaraçou-se do que restava das roupas, desnudou o seu homem e puxou as mantas, escondendo-se num ninho onde ficaram abraçados, esperando o regresso da bonança depois de tão intensa tempestade de amor.
Abraçada contra ele, a mulher afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe a testa. Sorriu com doçura.
– Vais ser rei – segredou docemente.
– Se assim for, serás rainha – retribuiu João, acariciando-Ihe o rosto.
– Serei tudo o que necessário for desde que esteja a teu lado. Duquesa, rainha, cativa, pouco importa. Contigo sou capaz de descer ao porão mais nojento de um barco negreiro e voar até às estrelas do céu.
João sorriu e apertou-a contra si.
– O teu pai é capaz de sentir esta decisão como uma afronta.
– O senhor duque de Medina Sidónia, D. Juan de Guzmán, vai rejubilar por saber que a filha está envolvida em grandes batalhas, espadeiradas, duelos e cavalgadas contra inimigos – soltou uma gargalhada e rematou: – O meu pai nasceu com uma costela do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Tem um prazer lascivo por um bom combate.
– O teu irmão Gaspar comanda as tropas de Filipe, que podem invadir este Reino.
– Meu irmão vai ter um orgulho enorme de saber que a irmã é rainha de Portugal.
– Não sei, Luísa – duvidou João, outra vez pensativo. – Foi um dos problemas que tive em conta e não sou capaz de resolver contigo a meu lado. Como vai o teu pai explicar ao Olivares e a Filipe que a filha Luísa, contratada para um casamento que deveria favorecer o rei de Espanha, rompe o compromisso e se revolta contra ele?
– Vou contar-te um segredo. Filipe de Habsburgo não é a pessoa mais apreciada na Casa dos Medina Sidónia.
– O quê? – questionou o duque, surpreendido.
– A Andaluzia tem sonhos muito parecidos com aqueles que agora se revelaram na Catalunha e estão prestes a acordar Portugal.
– Tu estás a falar a sério? – D. João olhava-a, espantado.
– O teu pai...?
– Sobretudo o meu irmão.
– Como sabes isso, Luísa?
– Não sei nada. Ainda não tínhamos casado, quando ouvi certas conversas entre eles e outros fidalgos de Huelva onde percebi que o amor à Andaluzia era bem maior do que à Espanha e à lealdade a Castela. Desconfio, até, de que foi para amansar as fúrias separatistas do meu irmão que Filipe o nomeou general dos seus exércitos. Tal como tu és condestável dos exércitos de Portugal.
– Que não tenho. Foram dissolvidos nas tropas dos Habsburgos – lamentou.
– Não é do meu pai, nem das tropas do meu irmão que virá o perigo. Se a conjura triunfar, será Olivares que terá de responder perante o teu primo Filipe. É dele que virá a fome de vingança.
D. João ficou por instantes com o olhar fixado no dossel da cama e sublinhou:
– Tens razão. Olivares e Diogo Soares ficarão em maus lençóis. Vem aí um grande sarilho, minha querida duquesa – confessou, afagando-lhe o rosto.
– Por isso me querias mandar passar o Natal em Sanlúcar de Barrameda.
– É verdade. Sobretudo para te proteger.
Ela enrolou as pernas nuas nas dele e beijou-o.
– És tão cauteloso que mais parece que transportas todos os problemas do mundo às tuas costas.
João afagou-lhe as coxas nuas e admitiu:
– Gosto de saber que a razão dos meus actos é melhor fonte de decisão do que as minhas paixões e desejos.
– Quem não te conhece, julgar-te-á um indeciso. Mas eu sei que és um sábio.
– Nem tanto. Prudente, talvez.
De repente, Luísa virou-se na cama, esmagando os seios contra o peito dele e confidenciou, divertida:
– Quando te conheci, estranhava o teu temperamento. Nunca retorquias de imediato a uma pergunta. Esperavas um instante e depois lá vinha a resposta. Aquilo enervava-me. Tudo era brandura, serenidade. Mais silêncios do que palavras. E eu que adoro falar, despachar-me, fazer logo, depressa, rápido. Comecei a compreender-te quando me procuravas na cama. Gentil, mas firme. Delicado, mas forte. Meu Deus! Tinha tanto medo de que fosses bruto comigo. Ainda era pequena, talvez com onze, doze anos, estávamos em Cádis e um dos meus cães correu atrás de um gato. Segui-o, entrei na cozinha e vi um dos fidalgos que costumavam visitar o meu pai a montar uma nossa criada, bonita, muito parecida com a Coralina. A moça chorava de dor, esbracejava, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Ele, quando me viu, puxou as calças e desapareceu e a infeliz ficou a soluçar, desfeita em pranto. Tive tanto medo que nem fui capaz de dizer nada e fugi dali, assustada. Fiquei com medo do sexo. Se dava prazer aos homens, fazia chorar as mulheres – suspirou e uma névoa de tristeza toldou-lhe o olhar. – Só muito tempo depois soube que ela fora violada. Pobre Maria! Morreu bem cedo, com os pulmões desfeitos, a vomitar sangue e sem forças para andar.
João não respondeu. Conhecia muitas daquelas histórias onde a brutalidade dos homens destruía os sonhos de muitas mulheres. Porém, Luísa continuou:
– Foi com medo que te recebi. E sinto uma alegria que não consigo descrever quando sou levada ao céu cada vez que me possuís. És um sábio, João de Bragança! Na política e no amor.
A mão dele percorreu com volúpia a pele sedosa da mulher, que o abraçou com renovado vigor.
– Quando falas muito depressa, é sinal de que estás nervosa – comentou, por fim.
– É bom estar abraçada a ti – e anichou-se no seu colo.
Gostava daquele temperamento frenético. Possessiva e fremente de desejo. Atrevida e generosa. E depois terna e doce como se fosse um luar de Janeiro. Beijaram-se e Luísa caiu sobre a almofada. Ele abraçou-a e tornaram a beijar-se. Afagou-lhe os seios suavemente, a mulher estremeceu e voltaram a mergulhar um no outro, apaixonados, sem ouvirem os rouxinóis que cantavam no beiral da janela.
Há uma Pátria que vai para além de um Reino. É feita com a argamassa do tempo, dos dias de maior sofrimento, que é um território de pertença sem limite, qual oceano a perder-se no horizonte. É qualquer coisa mais densa do que o chumbo e bem mais leve do que uma pena de falcão a esvoaçar pelos ventos. É maior do que um sentimento, do que uma ascendência e do que grandes conquistas e descobertas. É uma Pátria que se diz, que vive dentro de nós, que reconhece cada rua e cada praça como nossos, tão nossos que só nos conhecemos porque essa rua e essa praça existem e são marcos por onde se escoam os dias das nossas vidas. Podemos ver as montanhas e os desfiladeiros de um Reino qualquer, mas não veremos nunca a Pátria que vive dentro de nós. Dizemo-la, amamo-la, por ela poderemos morrer, e será sempre um tempo que não começa nem termina. Que habita em nós como se respira, como se ama e até como se morre. É, afinal de contas, o âmago do nosso ser. A dimensão espiritual mais sublime que dá significado à existência. É um exército de odores e de palavras, de cantares e de memórias comuns. É amor ao passado, àquilo que fomos e fome de futuro.
Assim se explicava, no dia seguinte, o duque de Bragança a Luísa. Falava-lhe do amor transcendente que une gente tão diversa, apenas irmanada pela mesma fala. Porém, a jovem duquesa revelava agora as inquietações que escondera durante a noite anterior, cheia de emoções e amor.
– E nós o que fazemos? Faltam cinco dias e ficamos aqui? Parados? Não é preciso fazer mais nada?
– Saber esperar é um dom divino – respondeu João.
Levantou-se da mesa, ainda mais agitada com a resposta do marido.
– Não sei como se espera tão grande dia. Não sei como fico a olhar o Terreiro, a passear no Jardim da Duquesa, à escuta do galope do cavalo que nos vai trazer a notícia.
– Não será um cavalo que ouvirás, mas um pombo que há-de chegar com as novidades. Pêro de Mendonça levou um dos nossos pombos-correios para que as novas cheguem mais depressa.
– Seja como for, João, ficamos quietos?
– Luísa, escuta-me, por favor.
– Quando dizes isso é para me obrigares a calar.
– Está tudo pronto, minha querida. Tudo pronto! – sussurrou enigmaticamente.
– Tudo pronto, como?
– Está em alerta quem deve estar e planeado o que tem de ser previsto, não existe mais nada de que nos possamos ocupar – ia terminar, hesitou e depois recomeçou: – Sabes o que há a fazer? É sermos soldados do silêncio.
– Tenho de me calar, queres tu dizer.
– A surpresa é a única arma de um Reino sem exército contra o maior exército do mundo. Filipe tem dezenas de milhares de soldados experimentados por anos e anos de guerra. Nós temos quarenta conjurados, alguns deles já envelhecidos, e a vontade do povo de Lisboa.
Sentou-se devagar. Os contrastes que João lhe apresentava eram de tal modo poderosos que tudo lhe parecia uma enorme loucura.
– Só quarenta? – foi a única coisa que conseguiu perguntar.
– E a maior parte deles nunca aprendeu a arte de esgrimir, nem a manipular um mosquete.
Agora percebia melhor as palavras do marido sobre o sentido da Pátria. O amor a si próprio e aos seus, tão intenso que fazia de cada fraqueza uma força, de cada hesitação um arranque para determinar o destino. Afinal, fora este o motivo por que, durante anos, se estendeu sobre a sua família um manto negro de tristeza e incompreensão da guerra.
Seu avô, D. Alonso Perez, comandara a mais poderosa esquadra contra Inglaterra. Chamaram-lhe a Invencível Armada. Contra a sua vontade, que confessava a quem o quisesse ouvir que nada percebia de mar e, ainda por cima, enjoava. Porém, o rei quis entregar-lhe essa honraria, demonstrando-lhe o apreço da Coroa pelos Medina Sidónia. Enganara-se redondamente. Títulos e honras podem comprar países, mas não iludem o amor convertido em memória de muitos. Por mais portentosos que fossem os galeões, por maior que fosse o seu poder de fogo, tudo naufragou entre uma batalha naval e uma tempestade. O amor dos guerreiros ingleses à sua Pátria fora bem mais decisivo do que o poderio espanhol. Tal como a defesa dos seus, daqueles que, sem se conhecerem, eram pertença uns dos outros, que se amavam na invisibilidade dos laços que uniam memórias de vidas vividas em comunhão. Deu conta deste exemplo ao duque.
– Nem a maior armada que Deus viu sobre os mares foi capaz de destruir a vontade dos homens que se batiam pela sua terra – fez um compasso de espera e disse: – Olha Aljubarrota. Foi a batalha que João de Castela nunca pensou perder, tal era a sua vantagem militar.
O duque sorriu com benevolência.
– Não é apenas o vigor da valentia e do amor pátrio que explica esses confrontos. Nem sempre a razão do coração é superior à força das armas. Em Alcácer Quibir, fomos varridos pela força – depois emendou: – E pela força da razão. Seja como for, Luísa, a nossa principal tarefa é o silêncio. Aquilo que vai acontecer em Lisboa será um momento único da nossa história de vida. É imaginar um frágil caminho de pedras no meio de um oceano revolto pela tempestade. A astúcia de quarenta homens determinados contra o maior império que existe à face da Terra.
Luísa desanimou por momentos.
– Visto assim, parece impossível.
– É quase impossível. A janela da esperança abriu-se quando os astros se combinaram de tal forma que foi possível acreditar nessa única arma, embora eficaz, que é a surpresa.
– Quais astros? – perguntou sem perceber.
– As várias frentes de batalha que Filipe comanda, sobretudo a preocupação com a Catalunha, que se levantou em armas, o desejo de Richelieu de destruir a soberba dos Habsburgos, a irritação de Carlos I em Inglaterra, sem saber para onde se voltar, com os bispos escoceses em guerra, o parlamento a desafiá-lo, mais preocupado com o inimigo francês. Um Vaticano que nos esqueceu e algum desleixo do governo de Olivares, que toma como segura a sua política para Portugal, baixando as guardas, preocupado com tão grande esforço de guerra por esse continente fora. É este alinhamento dos astros que abre as portas a um sonho impossível.
– Falas dos astros como se tivéssemos um destino já traçado para cumprir.
João de Bragança sorriu em discordância.
– Soubesse eu que o nosso destino estava traçado e não teria hoje a fama de hesitante entre alguns dos meus amigos. É preciso ter a astúcia da raposa, a paciência da coruja e a determinação de um lobo para forçar o caminho que trilhamos – disse João, como se pensasse em voz alta.
Luísa de Gusmão aproximou-se da janela. O Terreiro estava quase deserto. Dois ou três mercadores apresentavam mantas e agasalhos a meia dúzia de interessados friorentos. O Laparduço, acompanhado do seu inseparável Manjerico, aproximava-se do lugar onde se encontravam mais fregueses e, ao fundo, do Convento dos Agostinhos saíam dois frades apressados, enroscados nos hábitos, na direcção do Paço do bispo.
– O nosso bispo sabe? – perguntou.
– Não. Só o preocuparia e não traria nenhuma vantagem à causa.
Ficou calada, apreciando o passo rápido dos frades. A geada cobrira de branco as ruas e os edifícios, como se um manto de prata se tivesse desprendido dos céus para embelezar Vila Viçosa.
– Não falarei deste segredo a ninguém. Nem ao meu confessor – proclamou com solenidade, e a seguir, outra vez exasperada, desabafou: – Mas não sei como vou passar estes dias à espera de sábado. O coração pede-me que faça alguma coisa, que aprenda a disparar uma arma, a manejar melhor uma espada, sei lá, Deus me ajude!
– Vais fazer a tua vida como se nada estivesse para acontecer. Hoje temos convidados para o almoço e um deles será o nosso amigo João Pinto Ribeiro, que deve trazer as últimas notícias de Lisboa.
– Posso falar com ele? – perguntou, ansiosa.
– Talvez ao serão. Vamos caçar para a Tapada. Eu lhe direi que estás a par da conjura.
– A minha boca é um túmulo. Um túmulo!
E saiu, apressada. A expressão do duque mudou. Regressava a gravidade preocupada e admitia, com algum pudor, que era grande o esforço para não seguir a excitação da duquesa. Fervia por dentro, adornado com uma máscara de serenidade. As horas tinham agora passo de caracol, os dias pareciam eternos, aquele sol mole, preguiçoso e frio tornara-se tão vagaroso como se o Verão estivesse à porta.
Nem a música o chamava. Desde que recebera o alcaide de Mourão e Pais Viegas que o órgão se calara e a harpa emudecera. Ele – que tornara o Paço de Vila Viçosa numa das mais importantes escolas de música da Ibéria, que compunha sob a direcção do seu mestre João Lourenço, que se deleitava perante a execução de uma boa peça musical, que, por vezes, ouvia dentro de si melodias quando lhe chegavam partituras de outros compositores, que, extasiado, procurava horas e horas a nota mágica, a tonalidade certa, embrenhado nos mistérios da polifonia – ficara sem concentração para tal paixão. Em vez de pautas musicais, revia cada conversa com os seus aliados. Avaliava repetidamente as possibilidades de sucesso e o intervalo do erro, e regressava sempre à mesma conclusão. Tudo dependeria da captura da duquesa de Mântua, apanhando desprevenida a guarnição militar, da anulação de Miguel Vasconcelos, seu secretário de Estado, da adesão popular à insurreição e, sempre, a surpresa como arma decisiva para desferir o golpe definitivo.
Era o seu maior receio. Que o segredo fosse descoberto por espiões a soldo de Diogo Soares, conselheiro de Olivares e seu homem de mão, traidor confesso que, em Madrid, mourejava sem descanso contra o seu próprio Reino. Pusera em Lisboa, como secretário de Estado da vice-rainha, o seu genro e cunhado Miguel de Vasconcelos, que domesticara à medida dos seus desejos. Tinha os movimentos da Casa de Bragança registados por espanhóis e portugueses vendidos, que viam em Vila Viçosa o centro de uma corte que concorria com o poder instalado no Paço da Ribeira.
Importava, naqueles dias, inventar a magia que acelerasse o tempo, que pulasse pelas horas e saltasse sobre os dias, depressa, ao encontro do primeiro de Dezembro. Sobretudo agora, quando os conspiradores começassem a chamar amigos e conhecidos para o Terreiro do Paço sem lhes dizer ao que iam. Que bastava um aviso mal entregue a um espião e no sábado, pela manhã, encontrariam uma praça cercada de mosquetes apontados aos seus corações.
– Meu Deus, meu Deus, se eu pudesse pegar no tempo e espremê-lo na minha mão!
OS DIAS DO MEDO
Quem passasse na Rua das Vaqueiras, em direcção à Rua da Freira, encontrava a Rua do Bequinho. Fazendo esquina havia uma estalagem que dava guarida e cavalariça aos viandantes. Vinho a granel e caldo. Dois reais por cabeça, fosse pessoa ou animal, e para os hóspedes de confiança a Chica do Forno ou a Alzira Perdigão aliviavam qualquer um por três vinténs. Mas fora da hospedaria, no recanto do Bequinho, que o estalajadeiro, que tratavam por Colhoadas, não queria problemas com as autoridades. Quem quisesse, bastava dizer:
– Ó Colhoadas, vai dar o assobio – e pagava os três vinténs.
Ia até à porta que abria para o quintal e assobiava como um melro. Bruru-bruru, bruru!
Se respondesse outra voz de melro, chegava-se ao balcão e informava.
– Já pode ir. É ao virar da esquina, junto ao portão mais escuro.
E o cliente ia servir-se enquanto o caldo aquecia. Havia outras estalagens na vila, como a do Lucena, mas o preço não era tão em conta, e o Laparduço gostava daquele ambiente de eguariços e tanoeiros, cheirando a vinho avinagrado e a suor. Ali poderia contar as histórias que quisesse, pois almas mais crentes não havia, e o Colhoadas, desde que se fizesse despesa, não fechava o estaminé enquanto não estivessem todos bêbados.
Já fora chamado ao ouvidor para escutar queixas de desacatos na rua. Jurava sempre que não voltava a acontecer, embora Sua Senhoria tivesse de admitir que a rua não era da sua responsabilidade, e a autoridade mandava-o de volta com a reprimenda detrás da orelha, cantarolando em voz baixa.
Nessa noite, Laparduço entrou de rompante, cumprimentando os presentes com uns versos.
Dizem que a Terra gira
Com os balanços do mar
Eu gostava de saber
Se alguém a viu girar
Gira o Sol e gira a Lua
Giram as mós do moinho
Gira a cabeça d’um homem
Com uma caneca de vinho!
Aplausos dos presentes receberam esta entrada apoteótica do vendedor ambulante.
– Obrigado, meus senhores, muito obrigado. Dedico estes versos aos presentes, em geral, e ao meu amigo Colhoadas, em particular.
– Chegou o aldrabão-mor! – comentou o estalajadeiro, bem-disposto.
– Tinha saudades da tua cara, Colhoadas. Esse teu ar gordurento, com mais nódoas do que pedras há na ribeira de Borba, é uma inspiração para qualquer mercador. Espero que as pulgas que encontrei da última vez se encontrem de saúde.
– O que queres tu dizer com isso?
– És o exemplo vivo da verdadeira natureza do negócio. Andasses no mercadejo por esses caminhos, como eu, bastava aparecer a tua figura cheirando a azedo, os piolhos a saltitarem na cabeça, brincando ao esconde-esconde, e todos fugiam com medo do leproso. Mas o povo mais humilde não larga este buraco imundo. Por tua causa? Não. Porque aqui se bebe vinho com alguma decência. Ora, quando é necessária boa mercadoria a coisa não vai bem. O verdadeiro talento é convencer o freguês de que ao comprar a maior porcaria do mundo fez o melhor negócio da sua vida. É isto!
O outro não entendeu a lengalenga do Laparduço e perguntou, desconfiado:
– O que queres tu? Se vens para dizer versos e conversas sem tino, estamos servidos de poetas e malucos.
O mercador apresentou-lhe um piporro feito de bexiga de boi..
– Quero que me enchas isto de vinho que amanhã tenho de madrugar e vou embebedar-me ao pé do meu Manjerico.
Olhou os presentes e foi então que viu o Felisberto a beber, sozinho, na ponta de um banco corrido onde se sentavam outros homens, que conversavam entre si. As lembranças recentes sobre os mortos e o fidalgo espanhol espevitaram o interesse em saber o que haviam prometido ao ferreiro. Foi sentar-se junto dele.
– Compadre Felisberto, é com muita pena que sei que não gostas de mim.
O homem sobressaltou-se, olhando em volta para perceber se alguém ouvira o vendedor.
– Não gosto de homens! – respondeu secamente.
– Nem eu, nem eu! – ressalvou Laparduço e continuou a moenga: – Quando digo gostar, é dar dois dedos de conversa, para me comprarem uns produtos para a saúde. Ainda outro dia, no caminho da Cavaleira, passaste por mim numa correria tal que julguei que fugias de um lobisomem. Nem sequer um bom-dia me disseste, tal era a tua pressa, homem de Deus!
Os ombros do ferreiro descaíram e duas rugas surgiram na testa. Laparduço sorriu. Acertara no alvo.
– Porque fugias tão desalmado? Até pensei que ias em aflições.
– Estava atrasado para o trabalho – respondeu o Felisberto sem levantar os olhos do chão.
– Ser ferreiro numa Casa com tantos cavalos deve ser trabalho de escravo. Dizem que o duque terá mais de cinquenta. É verdade?
– São quase sessenta.
Laparduço ficou derreado de espanto. Era uma fortuna que estava enfiada naquelas cavalariças.
– Um destes dias tens de me apresentar ao estribeiro-mor. Vendo uns produtos para cólicas que não existe cavalo, nem mula, nem burro que sofra de tal padecimento. O meu Manjerico toma e é remédio santo. Solta um ou outro peido, mas isso é a natureza a funcionar.
Felisberto andaria pelos quarenta anos. Era magro, a carantonha chamuscada pelo calor da forja, mãos calosas e enegrecidas de bater ferro. A conversa do Laparduço puse- ra-o desconfiado.
– Onde estava você quando me viu a correr?
O espertalhão iludiu a pergunta, baixou o tom de voz e murmurou, cúmplice:
– Eu sei o que te fizeram.
O outro sobressaltou-se, assustado.
– Sabe o quê? Não sabe nada.
– Felisberto, sou um homem de negócios que não quer saber de quem manda. Tanto vendo a espanhóis como a portugueses e dou-me bem com todos.
Calou-se. O Colhoadas acenava-lhe com o vinho. Levantou-se para ir buscar, mas estacou:
– Levanta-te sem dar nas vistas e encontramo-nos lá fora. Aqui dentro há muita orelha à escuta. Tenho um recado para ti.
Dirigiu-se ao taberneiro, pagou e despediu-se.
– Já te vais embora? – perguntou o Colhoadas.
– Não gostas de poetas, desgraçado. Como posso conviver com bárbaros quando até o meu burro chora com a minha poesia?
E saiu, rebolando o corpo. Já o esperava Felisberto, encolhido de frio e de medo.
– Qual é o recado que tem para mim? – perguntou quando se acharam os dois sozinhos da rua.
– Mente.
– O quê?
– Inventa, desculpa-te, dá nomes falsos. Nunca se trai quem nos dá de comer e nos ampara. Isto não é política. É saber viver.
Felisberto estava desesperado. O Laparduço dava-lhe a oportunidade de atirar cá para fora o sobressalto que não o deixava em paz por um instante que fosse.
– Não sei o que hei-de fazer da minha vida. Há duas noites que não durmo nem saio da Ilha do Paço. Só hoje vim a casa e não tenho paz. E se fazem mal à minha mulher e aos meus filhos? E se me fazem o mesmo, quem dá de comer aquelas quatro alminhas, que o mais velho é da idade do duque herdeiro, apenas com seis aninhos?
– Acusaram-te de matares um vadio e puseram-te entre a espada e a parede, não foi?
Felisberto desatou a chorar.
– Fui à caça de uma lebre e aparecem-me aqueles pela frente. Maldita a hora em que me veio tal ideia à cabeça.
Laparduço não era homem de se contristar com os padecimentos dos outros. Até o divertiam e era sempre pretexto para uma das suas histórias de vendilhão. Porém, ao ver o aspecto transtornado do ferreiro, nem se atreveu a contar-lhe como se libertara da mesma armadilha que lhe tinham estendido.
– Foi o Diabo quem te meteu esse laço nas mãos. Só pode ter sido. Se não dás informações ao espião espanhol, cortam-te o pescoço. Se alguém da parte do duque descobre que andas metido com tal canalha, fazem-te o mesmo.
– Já viu a minha vida? – soluçava o ferreiro, clamando piedade.
– Nunca pensei que a tua arte pudesse ser tão ruim. És morto por fazeres ferraduras e tornas a ser morto se não as fizeres. Raios de vida!
Laparduço olhou o homem, contristado. Enroscou-se no pelico, que a geada começara a congelar a noite, puxou o ferreiro para uma zona mais escura e falou baixo.
– Escuta o que eu te digo. Eu sei que os homens que te procuraram não são apenas maus. O Aranjuez é bruxo. Precisa de cortar as partes aos desgraçados que mata para fazer mezinhas para os religados. Mezinhas poderosas que só raros e grandes feiticeiros sabem criar. Como vês, o bandido está bem acima de nós. Fala com os demónios e comanda a vida de desgraçados como quer e entende.
– É o meu fim! – gemia Felisberto, ainda mais aterrado com o que estava a ouvir.
– Foi a Ti Efigénia Pé de Galinha quem me contou deste grande poder. Fala com ela e fica a par da força deste Aranjuez. Quem faz mezinhas para endireitar o pau de um homem também inventará outras para lho murchar de vez.
– Mas porquê este castigo? Eu não quero mal a ninguém. A minha vida é fazer bicos de charrua e ferraduras. Minha Mãe do Céu me acuda!
– Queres ou não queres ouvir o conselho de um homem que conhece essa corja toda? – inquiriu Laparduço, já impaciente com a lamúria.
– Diga. Se me puder ajudar, ajude-me pela sua rica saúde.
– É como te disse. Está nas tuas mãos salvares-te dessa cambada. Troca-lhe as voltas, inventa desculpas. Inventa cavaleiros que são fiéis a D. Filipe. Convence-os de que há uma ligação secreta entre o duque e a vice-rainha. Conheces o conde de Cuenca?
– Não!
– Eu também não. Nem sei se existe tal título. Conheces o marquês de Segóvia?
– Não! – respondeu o ferreiro, intrigado.
– Nem eu. Nem o Aranjuez, que é fidalgo pé descalço, consegue chegar aos grandes senhores que mandam neste mundo – ganhou entusiasmo com os argumentos que estava a arranjar para salvar o outro:
– Se fosse eu, era já no próximo encontro com os espiões. Vendia-lhes um gato e convencia-os de que era um lebrão. Acho que Vossa Senhoria está enganado no que respeita ao senhor duque. Ainda esta madrugada, chegou um cavaleiro de Espanha, o senhor conde de Cuenca, que trazia uma mensagem de Madrid. O estribeiro-mor pediu que se desse de comer ao cavalo e um cómodo para descansar porque teria de regressar antes de amanhecer. Ainda o Sol não se levantara e já o senhor conde ia a caminho da corte espanhola. Esta noite estão dois eguariços à espera do senhor marquês de Segóvia. Traz mais correspondência para o senhor D. João. Confesso humildemente que não sei a que se deve este movimento nocturno, mas tenho cá para mim que estas conversas directamente com Madrid mostram duas coisas. O senhor duque de Olivares confia na duquesa de Mântua, mas el-rei Filipe confia no senhor duque. Afinal de contas, são primos, não é verdade? – parou para tomar fôlego e perguntou, triunfante: – Estás a ver? De uma cajadada matas dois coelhos.
Felisberto continuava desorientado e protestou:
– Mas como vou eu dizer uma coisa dessas, se esta noite não chegou nenhum conde de Espanha?
– Não chegou. Sou eu a inventar. Estás a perceber? – ralhou Laparduço, já exasperado com a puerilidade do homem.
– Nunca serei capaz de armar essa confusão. Nem agora percebi bem o que estava a dizer. Começava a contar uma coisa dessas e, às tantas, metia os pés pelas mãos e era morto mais depressa – replicou o outro.
Laparduço compreendeu que aquela pobre alma nunca iria para além do raciocínio mais simples que um ser humano poderia fazer. Tentou de outra forma.
– Seja como for, não podes ser um traidor. Mais cedo ou mais tarde, vem a saber-se e será uma vergonha que te acompanhará o resto da vida. Nunca mais terás coragem de beber um copo no Colhoadas ou de enfrentar os teus filhos. Se não trabalhasses para o senhor duque, vá que não vá. Agora sendo seu empregado, vivendo da confiança que te entregam todos os dias, como podes espiar gente que te protege?
– Eu não quero ser nada disso! – exclamou com firmeza, procurando encontrar uma desculpa. – Afinal, não há nada que eu possa dizer que faça mal ao meu amo. Eles apenas querem proteger el-rei e o senhor duque nunca fala dessas coisas com os caseiros. A única coisa que vejo são cavalos. Não há nada de mal em falar deles.
O vendedor ambulante ficou a observá-lo gravemente. Não era apenas um simples a quem Deus não dera mais cabeça. A cobardia morava dentro dele e o medo comandava- -lhe a vontade. Com este, Aranjuez tinha acertado no alvo. Seria um chibo perfeito. Laparduço achou prudente recolher as garras. Continuar aquela conversa com quem estava disposto a ser filho do medo tornava-se perigoso para si, se fosse mais longe. Embora clamasse pelos filhinhos, era bem capaz de os denunciar todos, se tal decisão o livrasse de um perigo. Despediu-o com palavras conciliadoras.
– Farás como entenderes. Afinal de contas, o que importa é salvar a pele, não é verdade? Saúde, Felisberto. Boa noite, que amanhã tenho de me fazer à estrada bem cedo.
Dirigiu-se à cavalariça, onde Manjerico, pachorrento, se entretinha com uma mão-cheia de feno. Ajeitou-se na palha da cama do burro, emborcou do piporro de vinho e dispôs-se a dormir. Ficara preocupado. Talvez tivesse exagerado nos conselhos a Felisberto. A fraqueza de espírito era tal que lhe passou pela ideia que o outro era bem capaz de contar ao bruxo espanhol aquilo que ouvira da sua boca. Teria de andar com um olho no ferreiro e outro no Aranjuez.
– Digo-te uma coisa, Manjerico. Nunca confies num cobarde. Quando o medo manda mais do que a vontade de um homem, já não é homem. É um burricalho. Sem ofensa para ti, que és um burro como deve ser. Quisesse Deus que existissem mais homens como tu. Pelo menos, com um par de tomates do tamanho dos teus. De certeza que não havia tanto espião a coscuvilhar a vida dos outros. Dorme bem, Manjerico. Se tivesses alma, eras santo por aturar um dono com a bebedeira com que eu estou. Até amanhã!
Acordou já tarde. O vinho do Colhoadas deixava um homem entre a vida e a morte, atordoado como um peru que leva com um varapau na cabeça. Eram tais as tonturas que admitiu que o estalajadeiro tivesse envenenado a bebida. Passou a cara por água para despertar da bebedeira e retirou Manjerico do estábulo.
O Sol já ia alto e provocou-lhe nova tontura. Que raio de vinho aquele! Fez das fraquezas forças para se orientar, pois os últimos dias tinham sido ruins de negócio e havia que bater os cantos de Vila Viçosa para recuperar tempo perdido. Passaria a manhã junto à Porta dos Nós, que a estrada de Lisboa tinha sempre movimento e gente interessada em viver sem dores. De tarde, iria para a Porta de Évora, junto ao sino de correr da Câmara, e terminaria no Terreiro dos Foitos, que, ao final do dia, era passagem de quem chegava dos campos. E precisava de água! Um homem só sabe dar valor à água dos regatos, das fontes e dos ribeiros quando a ressaca abrasa o estômago e seca a boca de tanta sede. Era uma ideia! Arranjar umas bexigas de água, contar a história de que tinha qualidades especiais para matar ressacas, vendê-las a vintém que bêbados não faltariam à procura de cura.
Depois dos primeiros passos ainda cambaleantes, Laparduço enfiou na direcção do Terreiro do Paço. Reparou que as obras no Convento dos Agostinhos continuavam em boa marcha e apontou ao Jardim da Duquesa, perto da qual estava o seu primeiro ponto de vendas.
Cruzou-se com dois bufarinheiros, que saudou sem grande entusiasmo, mais preocupado em encontrar um caldeirão com água, mesmo que fosse das bestas, que o beberia de um trago. Um grupo de Ordenanças passou a caminho do Castelo e Manjerico zurrou, lascivo, quando viu a burra do Ti Ambrósio latoeiro, que entrava na vila. Reparou que o velho falava para a janela que fica no topo do Jardim da Duquesa e apressou o passo. Talvez houvesse alguma empregada do palácio que estivesse interessada nas suas tisanas. O latoeiro despedia-se com cerimónia quando lobrigou, para sua grande surpresa, que a interlocutora era a senhora D. Luísa de Gusmão. Os vapores ruins do vinho avinagrado do Colhoadas desapareceram num ápice e até da sede se esqueceu. Laparduço desfez-se numa vénia.
– Deus salve Vossa Senhoria, senhora duquesa!
Luísa de Gusmão olhou com curiosidade o mercador e respondeu à saudação:
– Eu conheço-vos, não é verdade?
– É a segunda vez que tenho a honra de ser interpelado por Vossa Senhoria. Da primeira, foi há tempos, durante a feira de Maio. Ofereci-vos salva-brava, que não há melhor para resolver um almoço pesado.
Luísa sorriu.
– Já me lembro. É o senhor Laparduço e o seu burro chama-se Manjerico.
Fez outra vénia.
– Prodigiosa memória, a de Vossa Senhoria! São poucos os fidalgos que sabem os nomes dos mais humildes. E, ainda por cima, tem na lembrança o nome do meu burro. Perdoe-me a pergunta, senhora duquesa, mas chegou a experimentar o meu chá de salva-brava?
– Não precisei. Mas sei que essa tisana foi apreciada por vários comensais. O nosso vedor passou a tê-la na lista de compras do Paço.
– Diga-lhe que me compre, pois melhor do que a minha salva-brava, não há. Vem dos altos da serra de Ossa. Escolhidinha a dedo.
– Dir-lhe-ei. Fique descansado. E o que traz mais nos alforges?
Laparduço abriu o coração. Tivesse arte e talento e era a oportunidade de realizar o seu grande sonho. Ser fornecedor do Paço.
– Muita coisa, senhora duquesa. Saiba Vossa Senhoria que de Évora até Elvas, passando por Estremoz, toda a gente aprecia as minhas mercadorias. Para os nervos trago flor de laranjeira e manjerona. Se uma pessoa anda com o Diabo no corpo, com calores e as entranhas às voltas, não existe melhor remédio. É quase milagre. Perpétuas-roxas, quando as febres vêm do peito e fazem rouquidão, e flor-de-sabugueiro, que dá cabo de qualquer delas. Tenho espinheiro-branco para as palpitações e para o coração, quando bate depressa de mais, beladona e bolsa-de-pastor para as dores de barriga, folhas de salgueiro para as febres, rosmaninho para quem abusa da bebida, tília para acalmar e licores para todos os paladares – depois da breve apresentação, perguntou: – Será que posso oferecer algum destes chás de ervas a Vossa Senhoria?
Luísa olhou a carga que o vendedor lhe mostrava e deu consigo a pensar que bem precisava de alguma coisa que a pusesse a dormir. Depois de saber o segredo, já lá iam duas noites que não pregava olho, tal era a ansiedade com que esperava os acontecimentos do próximo sábado.
Laparduço, com olho de águia, avançou:
– Vejo que a senhora duquesa tem os olhos fundos. É capaz de dormir pouco.
Enquanto falava, remexia nos alforges, pelo que não reparou no estremecimento da duquesa.
– Acordo muitas vezes – foi a melhor desculpa que ela encontrou para a insónia.
– Aqui está! – exclamou, triunfante, enquanto puxava de um molho de ervas, e comentou os efeitos: – Chama-se erva-dos-gatos. Já lhe ouvi chamar valeriana, mas cá para mim é erva-dos-gatos, porque, se algum destes animais bebe ou come deste remédio, fica mais maluco do que um maluco. Mas confie em mim, senhora duquesa. Isto é remédio como não há para fazer dormir um santo. Manda ferver uma infusão durante cinco minutos e deixa repousar. Depois, assim quando o Sol se põe e escutar o toque de vésperas, toma uma xícara do líquido e outra depois da ceia e quando ouvir as completas. Saiba Vossa Senhoria que passará a noite como um anjo. Podia falar-lhe da tília ou da manjerona, mas esta é a rainha. Para dormir e para os nervos não há igual. Aceite, que lha ofereço com muito prazer. Se, depois de a experimentar, quiser encomendar mais dê essa ordem ao seu vedor que estarei à disposição.
Luisa de Gusmão estendeu a mão pela janela e recebeu o molho de plantas.
– Aceito, mas desta vez não é oferecida.
– É uma honra, senhora duquesa.
– Não. Espere um bocadinho, por favor.
Cortou a conversa, decidida, e afastou-se da janela. Laparduço sentiu algum desconforto. Ela não queria ficar em favor e obrigar o vedor a comprar-lhe mercadoria. Se um dia conseguisse negociar com ele, metade das suas aflições estavam resolvidas, que o Paço consumia tantos alimentos, ervas e bebidas que nem Vila Viçosa junta conseguia igual.
Ouviu a duquesa a falar no interior do jardim com outras mulheres e, passados instantes, reapareceu e estendeu a mão para fora da janela. Atrás dela, espreitava uma das suas aias.
– Tome.
Laparduço estendeu o braço e escorreu-lhe para a mão um punhado de moedas. Tantas que o mercador deixou cair duas.
– Senhora, mas isto é uma fortuna!
– Uma fortuna encontrarei eu, se a sua erva-dos-gatos me fizer dormir – de repente, ficou com a voz áspera: – Mas ai de si, se me enganou! Nunca mais lhe compro nada.
Laparduço sorriu de felicidade, enquanto vertia os reais para o bolso.
– Aceito o desafio. Com uma condição, se não a ofender a minha ousadia. Depois de amanhã, passarei por aqui e pedirei para falar com uma das aias de Vossa Senhoria. Se a infusão tiver resultado, passo a fornecedor de erva-dos-gatos do Paço Ducal.
Luísa de Gusmão não conseguiu evitar um riso divertido com o descaramento do vendedor. E respondeu:
– Combinado. Adeus, Laparduço!
– Que Deus proteja Vossa Senhoria e toda a vossa família.
Tornou a meter a mão no bolso para confirmar o punhado de moedas. Ganhara naquele negócio a renda de duas semanas a calcorrear estradas e povoados.
Estava de tal modo eufórico que segredou ao burro:
– Isto merece uma celebração, Manjerico. Vamos embebedar-nos. Desta vez com vinho bom.
Luísa brincava com os filhos no jardim. Joana de Bragança tinha quatro anos e Catarina fizera dois. O mais velho, Teodósio, com seis anos, estava com o pai no picadeiro. Gozavam o sol de final de Novembro, acolhedor, na companhia das amas e das aias, quando ela comprou o chá de erva-dos-gatos. Mostrou o molho às outras e perguntou:
– Erva-dos-gatos. Será que ajuda mesmo a dormir?
Nenhuma delas ouvira falar, embora Raimunda, a ama de Catarina, conhecesse o Laparduço.
– É um linguareiro. Tem fama. Quando começa a falar nunca mais se cala.
A duquesa sorriu, observando a erva. Coralina surgiu no jardim com uma travessa com pratinhos de comida, fez uma vénia a Luísa e perguntou à ama:
– Onde ponho a mesa para as meninas?
Indicou-lhe um dos muros que separam as sebes. Luísa de Gusmão seguiu-a com curiosidade. Era a criada que, ao lado de Sebastião, brincava com pombos e recordou-se da história que lhe contara o marido. Quando ela terminou o serviço, chamou-a:
– És a Coralina, não é verdade?
– Sim, minha senhora.
Estendeu-lhe as ervas.
– Toma. Prepara uma tisana com isto e logo, quando tocar as vésperas, vai ter comigo para eu tomar uma chávena.
Coralina corou. Era a primeira vez que a duquesa reparava nela. Tornou a fazer uma vénia e saiu apressada com a erva-dos-gatos na mão. Era tão bonita e luminosa que Luísa se enterneceu e sentia que fora uma injustiça deixar que uma menina crescesse sem saber donde veio, como se não tivesse direito à memória, e decidiu, gostasse ou não seu marido, que iria ter uma conversa com ela.
Ouviu o som das rodas de um coche e correu a espreitar. Era João Pinto Ribeiro, administrador da Casa, que chegava de Lisboa, e a ansiedade cresceu. Sabia que aquela seria a última visita antes do confronto preparado para o primeiro de Dezembro e sentiu palpitações. Fez uma festa na cabeça das filhas e dirigiu-se ao interior do Paço. Depois hesitou. Não podia permitir que transparecesse o estado de angústia que a dominava. Para dar tempo a que o visitante falasse com D. João, desceu à cozinha, onde viu Coralina a preparar o remédio do Laparduço, querendo saber do almoço. Já ninguém se atrapalhava com a entrada da senhora.
De início, quando chegara a Vila Viçosa, assustaram-se na sua primeira visita àquele imenso lugar, onde dezenas de criados trabalhavam para servir o duque e os seus convidados. Um silêncio conventual acompanhou a sua entrada com os empregados de cabeça baixa, como se estivessem perante Deus. Foi ali que deu o primeiro sinal do seu espírito buliçoso.
– Não quero vénias, nem paranças só porque entrei na cozinha. Sei que me respeitam e eu respeito o vosso trabalho. Continuai, pois, os vossos deveres fazendo de conta que não estou aqui.
Era uma verdadeira revolução. Jamais duquesa alguma se atrevera a tal quebra de cerimónia e o mordomo-mor, quando a apanbou sozinha, chamou-lhe a atenção. Não gostou.
– Que disparatei A cozinha não é o local apropriado para vénias e cerimónias. Além de que sou gulosa e gosto de provar os doces com o dedo. Se estiverem a trabalhar, ninguém repara nesse meu pecado, do qual não sou capaz de me arrepender.
Desde então, acabaram as formalidades quando se dirigia às cozinheiras. Desta vez, não tinha nada a pedir. Queria apenas fazer tempo. Espreitou a Sala dos Espetos, onde girava um javali, provou o doce de abóbora, que arrefecia numa das mesas, e reparou em Sebastião, que entrava com duas galinhas depenadas. Dirigiu-se a ele.
– Vejo-te a tratar dos pombos e acho graça. Tens a certeza de que quando os largas longe regressam sempre?
Lembrava-se de o marido lhe ter dito que Pêro de Mendonça levara uma ave consigo e tal correio intrigava-a.
– Desde que me conheço a fazer este trabalho, todos voltaram, senhora duquesa. São domesticados e treinados para voltar sempre.
– É tão estranho, não é? Como encontram eles a direcção do pombal a léguas de distância?
– Não sei, minha senhora. Esse é um grande mistério que só os pombos conhecem. A verdade é que voltam, mesmo que sejam largados a cem léguas.
Ficou impressionada com o testemunho do rapaz. Cem léguas era mais longe do que Madrid. Como se fosse movida só pela curiosidade, perguntou:
– E quanto tempo levam a chegar, se saírem de Lisboa?
– Talvez três horas. Com o vento a favor, talvez duas e tal.
– São rápidos.
O rapaz sorriu, bem-disposto:
– São pombos. Voltam sempre ao sítio onde são bem tratados.
– Obrigado, Sebastião. Um destes dias vais ensinar-me a dar-lhes de comer.
– Quando Vossa Senhoria entender.
Já passara tempo suficiente para o marido se inteirar dos negócios de que Pinto Ribeiro trazia notícias. Despediu-se das cozinheiras e saiu.
Encontrou D. João sozinho, meditabundo, e perguntou-lhe, aflita:
– Há problemas? O doutor Pinto Ribeiro?
– Foi fazer contas com o mordomo-mor. Está tudo calmo.
– O que quer dizer tudo calmo quando o meu coração estremece e tu andas tão absorto que mais pareces de luto?
– O João Ribeiro confirma tudo aquilo que já sabes. As coisas correm como foram planeadas, embora tenha chegado o momento de arriscar mais um bocadinho.
– Que bocadinho, João?
– Começou o passa-palavra a outros fidalgos, padres e comerciantes para irem ao ajuntamento no Terreiro do Paço, às nove da manhã, depois da missa.
Deixou-se cair num cadeirão, deveras assustada.
– Meu Deus! E se alguém vai denunciar o caso ao Vasconcelos?
– Não há como evitar, a não ser encomendar os nossos trabalhos ao Criador.
A notícia atormentava-a. Bastava um ouvido desconfiado, uma pessoa errada, alguém desesperado por um favor, e o secretário de Estado da vice-rainha soltaria os cães contra os conjurados, prendendo-os um a um. Não suportava imaginar tal situação e as mãos tremeram-lhe.
– Ainda faltam três dias.
D. João procurou confortá-la. Beijou-lhe a testa e disse com bonomia:
– Poderias pensar de outra maneira.
– Qual maneira? Não há mais nenhuma.
– Só já faltam três dias.
– Não durmo, João. Hoje até comprei umas ervas para dormir a um mercador que passou na janela de Lisboa. Olho para os nossos filhos e chegam-me as lágrimas aos olhos. Penso nos nossos amigos, que vão desafiar a morte, e dou comigo a rezar muito depressa, como se escasseasse o tempo para que Deus me oiça. Afinal, ainda faltam tantas horas e já se espalha por Lisboa que, no sábado, Filipe vai ser afrontado. Três dias têm a duração de um século para mim, são tempo em excesso para Miguel de Vasconcelos atirar a soldadesca contra os mais generosos e mais puros filhos de Lisboa.
Enquanto falava, saltava do assento, dava meia dúzia de passos pela sala e tornava a sentar-se para recomeçar tudo de novo. D. João conhecia aquela agitação e pacientemente esperava que o turbilhão de emoções se esgotasse.
– Juro que tenho cumprido o silêncio que te prometi. Não falo a não ser contigo e falo com Ele. Mas com a boca fechada para nem as moscas saberem. Perdoa-me, meu esposo e senhor, os meus desabafos. Eu queria ser diferente. Ter a calma de uma lagoa em dia de Verão e apoiar-te. Sei bem como deves estar a sofrer. Perdoa-me! – depois animava-se: – É claro que são boas notícias. O doutor Pinto Ribeiro não poderia trazer outras e também é verdade que se há-de juntar toda a gente no Terreiro no Paço sem que ninguém vá trair quem luta pela sua liberdade. Só um monstro ou alguém possuído pelo Diabo faria semelhante maldade. Vai correr bem. Nossa Senhora da Conceição, Jesus Cristo e todos os santos do céu zelarão por nós e por todos aqueles que vão defender a honra de Portugal.
O duque tentou desdramatizar a emoção de Luísa com palavras de conforto:
– Quando o povo de Lisboa se levanta, não há inimigos que o consigam vencer. É um rebate que lhe vem da alma, uma centelha de coragem de inspiração divina. Foi sempre assim. Será sempre assim.
Abraçou-o com paixão.
– Que Deus te ouça, meu amor. Que Deus te ouça!
D. João tentou gracejar.
– Daqui por três dias, serás rainha do povo mais destemido que existe à face da Terra.
– Não quero saber. Depois desta aflição, talvez me agrade tal ideia. Agora, só preciso de ter a certeza de que não te vai acontecer, nem àqueles que te apoiam, mal algum. É esse o meu maior desejo e o meu maior medo.
– Vai correr tudo bem. É um movimento tão louco que nem o próprio Miguel de Vasconcelos, mesmo que seja informado, acredita que uns miseráveis quarenta fidalgos e padres podem atentar contra o poder filipino.
– Lá isso é verdade. É uma demência tão grande que custa a crer que seja possível ser cometida por homens que se julgam sensatos.
Calaram-se quando entrou um camareiro.
– Peço perdão a Vossas Senhorias, mas precisava de saber onde ponho a mesa para o almoço.
– Na Sala das Virtudes. Somos apenas quatro.
O empregado afastou-se.
– Quatro? Quem vem mais? – perguntou a duquesa.
– O nosso deão da capela. É-nos leal e vou pô-lo ao corrente do que se passa. Precisamos de alguém que nos ajude em caso de aflição.
– Tens razão. Mas eu não almoço convosco. Sofro de destemperança e não quero que eles me vejam tão desnorteada dos nervos com a conversa. Não me fica bem invocar insistentemente Deus, clamando aos céus no meio de uma discussão sobre as nossas vidas.
Riram os dois.
– Um dia, daqui por uns anos, ainda nos divertiremos a recordar as más horas que temos vivido.
– Deus te oiça, João de Bragança. Cada momento é uma aflição, cada instante é uma amargura, à espera do próximo momento e da próxima amargura, e o Sol não anda, os dias não acabam, nem as noites terminam!
Suspirou profundamente e saiu, apressada. Pressentiu que os homens subiam as escadas e não queria que a vissem na agitação em que se encontrava.
O almoço foi prolongado. A porta fechada. Entre D. João, Pinto Ribeiro e o deão terão repassado todas as motivações, adesões, planos de rebelião, projectos de ataque ao Palácio da Ribeira. Luísa imaginava que o marido, como sempre fazia todos os dias, repetiria os riscos, os pontos fortes e os pontos fracos da arremetida que os quarenta fidalgos haviam preparado no maior dos segredos.
Não deixava de ser um paradoxo portugueses a conspirarem por Portugal no seu próprio Reino. Já não se tratava de inventar um caminho para ir ao encontro de Preste João, nem navegar pelos mares à procura de pimenta e canela. O golpe em curso desejava fazer renascer Portugal, reencontrá-lo com o seu destino secular, salvar o que poderia ser salvo depois de décadas de menorização, que fora acelerada, nos últimos anos, com a rapina inglesa e holandesa no Brasil e no Oriente, e agravada pela desconsideração absoluta pelo ser português. Chegara um momento em que é insuportável tanta afronta, grosseira e desprezível, e que a submissão consentida por respeito à hereditariedade de Coroa já não merecesse consideração. Quando se ultrapassa o limite da respeitabilidade, a sublevação é um direito fundamental.
O deão ouviu a conversa com mansidão. à medida que escutava os argumentos seguros de João Pinto Ribeiro, a avaliação estratégica desenhada pelo duque de Bragança, ficava com o rosto cada vez mais sombrio. Depois de três horas de repasto, onde os pratos de conversa foram mais bem servidos do que os das iguarias que tinham à disposição para degustar, o deão falou.
– Enquanto vos ouvia dissertar, falava com Deus para que me iluminasse a compreensão.
– Fez-se alguma luz no seu espírito? – perguntou D. João.
– Pelo que me contam, diria que há mais possibilidade de aqui por três dias estarem todos a entrar no reino dos céus do que na sala do trono do Paço da Ribeira. David, quando derrotou Golias, tinha uma funda de pastor. A nossa gente nem isso. Apenas um grande entusiasmo em derrubar o gigante.
– Esperava mais apoio do senhor deão – comentou João Pinto Ribeiro, com uma expressão decepcionada.
A resposta foi pronta.
– Estou disposto a morrer convosco. A grandeza da obra que se propuseram realizar, pela justiça que encerra, abre directamente as portas de São Pedro. Será para mim uma alegria acompanhar-vos nessa entrada triunfal no reino dos céus.
D. João de Bragança admirou a entrega e a dedicação do seu servidor e desdramatizou a profecia.
– Eu, pelo contrário, espero abraçá-lo no Paço da Ribeira quando tudo estiver cumprido.
– Ámen!
D. João desviou a conversa.
– Preparo um livro com composições musicais que fui criando entre o estudo da música e a minha paixão por ela. Inspirei-me em documentos coevos, de canto gregoriano. Tenho duas, entre outras que estou a trabalhar, que aprecio e estão quase prontas. Espero que o meu mestre faça as correcções necessárias. Uma delas, só para canto, dei-lhe o nome de Crux Fidelis e é uma homenagem à cruz que Cristo carregou até à morte. Abro a peça chamando-lhe doce, a mais rica relíquia do sofrimento de Jesus, porque é nela que a vida vence a morte: Crux fidelis, inter omnes arbor una nobilis: nulla silva talem profert, frondre, flore, germine. Dulce lignum, dulces clavos, dulce pondus sustinet.
– Ó Cruz fiel, entre todas as árvores a mais nobre:/ /Nenhum bosque produz igual, em ramagens, frutos e flores/ /O doce lenho, que os doces cravos e o doce peso sustentas. Belas palavras! – cumprimentou o deão, traduzindo o cântico.
– Compus pensando no sofrimento do Senhor que, na cruz, se libertou e nos libertou da morte. Mas também é verdade que pensava naquela que carregamos e continuaremos a suportar por estes dias e por outros mais ruins, que chegarão quando Filipe decidir reconquistar um Reino que julga seu. Muito será o sangue espalhado por estas terras. Muitos serão os mortos que cobrirão os montes e se amontoarão nos vales, porque a vitória no próximo sábado será sempre entendida como um acto de guerra, que vai exigir resposta castelhana.
Abriu-se num sorriso quando, ironicamente, concluiu dirigindo-se ao deão da capela:
– Espero que quando chegar essa hora já tenhamos pedras nas fundas para disparar contra o Golias que nos ataca. Embora seja necessário recorrer à mitologia para encontrarmos maior semelhança com os trabalhos que nos esperam. Hércules enfrentou as mais duras provas e venceu-as em doze trabalhos. Nós estamos obrigados a ganhar os mesmos doze desafios, mas só em meia dúzia de confrontos. De uma só vez, enfrentaremos o Leão da Nemeia e a Hidra de Lerna, e por aí adiante. Quando entrarmos no Jardim das Hespérides e dominarmos Cérbero, o mais temível dos cães, já exercitámos a coragem e a experiência para afugentar as tropas castelhanas.
Ficaram em silêncio. João Pinto Ribeiro concordou:
– É essa a minha fé!
– Por tal sorte vou rezar com toda a devoção! – declarou o deão.
– Se me permite, senhor duque, peço autorização para me ausentar e transmitir aos nossos companheiros que a fé dos futuros reis de Portugal se mantém inabalável – solicitou o administrador.
– Dê-lhes um abraço. Um por um, abrace-os por mim e recorde a Pêro Mendonça que levou um pombo-correio para que a notícia chegue depressa a Vila Viçosa.
– Assim o farei, senhor duque!
Abraçaram-se, comovidos. Poderia ser o último entre dois bons amigos. O próximo encontro talvez fosse testemunhado por São Pedro.
João Pinto Ribeiro partiu e o deão olhou, aflito, para o duque.
– Senhor, que posso eu fazer?
– Guardar este segredo e rezar por nós.
– Assim o farei, embora com o coração cheio de aflição.
– Parece-lhe assim tão dura esta Odisseia?
Sorriu com tristeza.
– Se Homero tivesse vivido nos dias de hoje, comparando os tormentos de Ulisses com os deste punhado de homens, podeis crer que os seus heróis eram outros. Seja como for, com a sua permissão vou organizar duas novenas na capela. Não dá nas vistas, pois que estamos no final do mês de Finados. Invocaremos as almas daqueles que partiram para que se unam à paixão deste punhado de portugueses para desafrontarem a sua Pátria.
– Lá estaremos a rezar consigo, meu caro amigo.
O deão afastou-se e João sentiu-se confortado por ter partilhado com ele tão instante e decisivo momento da sua vida e da sua família. O padre estudara no Colégio dos Jesuítas, tornara-se confessor da mãe do duque, a duquesa Ana Velasco, e um amigo fiel dos Bragança. Ainda por cima, para além de sacerdote era um excelente caçador e não eram raras as vezes que acompanhava o duque à Tapada à cata de um gamo ou de um javali.
Luísa de Gusmão também gostava dele. Era um padre bondoso, sempre preocupado com a saúde dos meninos, prestando atenção pastoral a todos aqueles que trabalhavam no Paço.
A duquesa recebeu Coralina nos seus aposentos perante camareiros contrariados, que viam com maus olhos a entrada de uma empregada da cozinha nos seus territórios. Trazia a tisana de erva-dos-gatos e um sorriso de bochechas coradas que lhe enlevavam a beleza natural dos olhos negros e lábios carnudos.
– A minha tisana! – exclamou Luísa.
A rapariga sorriu, envergonhada, e confessou, nervosa:
– Espero que esteja do agrado de Vossa Senhoria. Esforcei-me para que ficasse boa. Nem demasiado leve, nem demasiado carregada.
Beberricou. Não lhe desagradou o sabor e ordenou a Coralina:
– Senta-te. Preciso de falar contigo.
Surpreendida pelo convite, procurou, atarantada, um tamborete e ficou em silêncio. Era raro o privilégio de um empregado se sentar ao lado da duquesa, com excepção das suas aias de companhia ou das amas das filhas.
Percebia, assim tão perto, como Luísa de Gusmão era bonita e viva. O duque tivera bom gosto ao escolhê-la para esposa.
– Diz-me uma coisa. Quem são os teus pais?
Coralina empalideceu, deixando ver uma melancolia bem triste, por sinal.
– Não tenho pais, minha senhora. Morreram quando era pequena.
– Não tens avós? Outros parentes?
Meneou a cabeça, visivelmente incomodada com as perguntas da duquesa. O rubor apossara-se dela e parecia que a qualquer momento iam rebentar as lágrimas. Luísa insistiu:
– Tens dificuldade em falar sobre a tua família, não é?
Respirou fundo, depois de encher o peito de ar, contendo a emoção, porém, uma lágrima rebelde escorreu-lhe pela face.
– Não sei falar sobre uma coisa que ignoro o que é – disse por fim.
– Pois, compreendo.
– Cresci no Paço. Algumas pessoas ainda se recordam do meu pai e da minha mãe e falam-me deles, mas não tenho qualquer lembrança.
Era notório que o assunto incomodava Coralina. O seu passado era um buraco negro no que respeitava a afectos mais profundos, e a duquesa imaginava que a espontânea alegria resultava do apoio dos amigos que fora criando entre a criadagem do Paço. Como se fosse uma ilha deserta de memórias, Coralina era a solidão.
– Nunca ninguém te contou quem era a tua avó, donde veio, como morreu?
– Não, minha senhora.
Luísa percebeu que a rapariga sofria com o interrogatório.
– Talvez esteja na hora de saberes a verdade. Não mereces viver com tantas perguntas e tão poucas respostas – comentou, pensativa.
A rapariga não compreendeu e atreveu-se a questionar a duquesa.
– Qual verdade, minha senhora?
Terminou a tisana. Não lhe soubera mal. Dispôs-se a seguir as indicações do Laparduço e a tomar outra porção antes de se deitar. Colocou a xícara sobre a mesa e pegou nas mãos da menina.
– Há um segredo, que ficou entre os duques, sobre a tua família. A bisavó do senhor D. João recolheu-o quando chegaram os cativos de Alcácer Quibir e guardou-o para si, apenas o transmitindo ao esposo e ao filho. É uma história terrível, com muitos anos, que deveria estar morta. Se tu não existisses.
Coralina não entendia aquela conversa. Sabia do que acontecera na triste batalha, por tanto ouvir contar, e também acreditava no regresso de D. Sebastião, porém, tudo se passara há tanto tempo que nada lhe poderia dizer respeito.
Por outro lado, Luísa de Gusmão sentia-se incomodada com a narrativa. Se era verdade que a afligia saber que Coralina aparentava ser uma andorinha feliz, convivendo e disfarçando a sua solidão de afectos, sentia que estava a ser egoísta se continuasse a guardar o tonto segredo que o marido lhe revelara.
Por outro lado, o psicodrama da rapariga consumia tempo mau – o tempo da sua ansiedade – e assim esquecia, por momentos, o martírio que vivia à espera da hora marcada para que a conspiração explodisse.
Luísa reconhecia que tinha poucas possibilidades de entregar àquela jovem o direito à sua memória. Se tudo corresse bem, haveria de ausentar-se para Lisboa com D. João. Se corresse mal, também partiria, mas para a prisão. Ou para a forca. Coralina tinha de saber, quanto antes, que havia uma dimensão do afecto que poderia aquecer um pedaço do seu coração. E contou-lhe:
– A tua avó trabalhou nesta Casa. Era bonita como tu e fez parte da comitiva que partiu com D. Teodósio II para África. Ele tinha dez anos, a tua avó fizera dezasseis. Foram vários servos do Paço com o jovem duque para Alcácer Quibir. Depois, aconteceu o desastre de que ouviste falar. Muitos morreram, a maioria ficou cativa ou fugiu por terras desconhecidas, perdendo-se naquela imensidão. Parece ter sido o caso da tua avó e daquele que ocupava o lugar que agora é de Sebastião. O pombeiro que sempre a acompanhou durante os dois anos enquanto andaram sem rei nem roque, à procura de uma oportunidade para regressar a casa.
Coralina ia ficando hirta, conforme avançava a narrativa sobre a odisseia da avó, sorvendo cada palavra como uma flor ressequida recebe as primeiras águas das chuvas.
– Quando chegaram, vinham ambos muitos doentes, enfraquecidos por tanto sofrimento, e traziam consigo uma criança mestiça. Teria pouco mais de um ano. A tua avó fora violada por soldados mouros quando tudo já estava perdido para as forças portuguesas. A terrível batalha e os tormentos que passou deixaram-na demente. Quando chegou não conhecia ninguém e refugiou-se longe das pessoas. A criança cresceu no Paço, tal como tu, e foi o teu pai.
– E a minha avó? – perguntou, lívida com a medonha história que ouvia.
– Foi envelhecendo, sozinha, atormentada pelos seus fantasmas, raivosa dos homens que tanto mal lhe fizeram, sem saber que deixara família, tão zangada com Deus que passou a ter fama de bruxa.
Coralina, de semblante desfeito, procurava agora o norte naquela estrada negra por onde caminharam os seus antepassados. Queria falar, mas não conseguia articular as palavras, e Luísa de Gusmão adivinhou o que lhe ia no coração.
– Queres saber onde pára e quem é. Eu digo-te. Ainda está viva e chamam-lhe Efigénia Pé de Galinha.
A jovem não conseguiu conter um grito e as lágrimas soltaram-se em soluços. A cabeça rodopiava feita braseiro de emoções contraditórias e Luísa de Gusmão esperou que ela se acalmasse. Com ternura, afagou-lhe o rosto, limpando uma lágrima mais grossa.
– Aproveita enquanto é tempo, minha querida. Vai procurá-la e goza o tempo que lhe resta para que se sintam uma família. Verás como a velhice dela será mais doce depois de te conhecer e saber que abraçou a sua neta. E tu sentirás o coração mais quente.
À ESPERA DO DESEJADO
Momentos depois de João Pinto Ribeiro sair do Paço Ducal, surgiu Felisberto na estrada de Lisboa. Espreitava o coche do administrador a distanciar-se. Hesitou por alguns momentos e, a seguir, fez-se à estrada discretamente. Não havia nada de mal naquela visita. Era normal empregados da Casa de Bragança, sobretudo administradores, virem ter com o duque tratar de negócios ou de outros assuntos do funcionamento das vastas propriedades que aquele tinha espalhadas pelo Reino. Apenas o intrigou Pinto Ribeiro chegar e partir no mesmo dia. Não era hábito. Embora o ferreiro não soubesse muito bem o que ele fazia por Lisboa, tinha a certeza de que se tratava de uma das pessoas de maior confiança do duque e, dizia-se, que era muito rigoroso e justo no modo como dirigia empregados e assuntos que lhe diziam respeito. E que não escondia o desprezo que nutria por Miguel de Vasconcelos e pelos restantes párias que gravitavam em torno do governo de Madrid.
Fosse como fosse, Aranjuez poderia saber da visita por outro espião e corria o risco de ser acusado de não estar a cumprir a sua parte do contrato. Acelerou o passo quando alcançou a Porta dos Nós, olhando de vez em quando para trás com a preocupação de não ser seguido. Não viu ninguém.
Felisberto meteu-se ao caminho sem descortinar Laparduço, que, à sombra de um sobreiro perto da estrada, curava a monumental bebedeira que apanhara durante o almoço. Olhou o ferreiro, mas nem as pernas, nem a voz entaramelada tinham força para chamar a atenção do outro.
De súbito, sobressaltou-se. Antes vira passar o coche do administrador, logo de seguida o manhoso do ferreiro, escapulindo-se como uma raposa, e apesar do juízo toldado pelo álcool associou a saída do primeiro à escapadela do segundo. De certeza! Felisberto ia bufar. Ainda sentiu um arroubo de vontade para chamá-lo à razão, mas as pernas estavam tão pesadas, a cabeça pensando com a velocidade de uma lesma, o corpo alquebrado da tosga, que não conseguiu levantar-se.
– Cão tinhoso. Não passas de um cão tinhoso – resmungou, enquanto se aconchegava para dormir a sesta.
A bebedeira ofereceu-lhe um pesadelo. Vendia os alforges, carregados de erva-dos-gatos, aos duques quando viu, nas costas do casal, Felisberto a aproximar-se pé ante pé com um enorme cutelo nas mãos. Aquele que seria o maior negócio da sua vida estava na iminência de fracassar devido à previsível morte dos dois compradores. Em pânico, gritava, desesperado, para o casal fugir. E eles sorriam, bem-dispostos, enquanto recolhiam as ervas da tisana. O ferreiro, língua de fora, babando-se de prazer, estava cada vez mais perto para desferir o golpe fatal. Os gritos do mercador eram surdos, aumentando-lhe a aflição e o desgosto, porque a ruindade daquele espião ia destruir-lhe um negócio de tão grande monta. Quanto mais tentava berrar, maior era o seu pânico, pois Deus roubara-lhe a voz, e mais a jeito estava o ferreiro – que já não empunhava um cutelo, mas um enorme machado ensanguentado – de decepar as sorridentes vítimas. Foi no momento em que descia a arma sobre os pescoços delas que acordou sobressaltado, sem perceber donde vinha a voz que o sacudia.
– Eh, Ti Laparduço! Acorde, homem de Deus!
Levantou-se, atarantado.
– Onde estou? Onde estou?
– Sou eu, o Sebastião. Não se assuste. la a passar e viu-o dar tantas voltas no chão que pensei que estivesse doente. Sente-se bem?
– Sim. Acho que sim. Vendia umas ervas e...
Procurava orientar-se depois do sobressaltado despertar e procurou em volta, assustado.
– O meu burro? Onde está o meu Manjerico?
– Não estava aqui nenhum burro – informou o pombeiro.
– Olha que porra! Querem ver que perdi o animal? Onde estive eu? Não me lembro onde o deixei.
O rapaz riu, divertido.
– O vinho desmemoria as pessoas. Você ainda está a andar aos ziguezagues.
– Pois é. Que raios! Onde estará o Manjerico?
Nem se despediu do rapaz tal era a preocupação. Perder o burro significava perder a mercadoria, ou, de forma mais simples e dramática, ficar com a vida desfeita.
Começou a andar, apressado, na direcção da vila. De repente, parou. Voltou-se para Sebastião e disse-lhe:
– Avisa o teu amo. Esse ferreiro que vocês aí têm, o Felisberto, não presta para nada.
E desatou a marchar em passo acelerado à procura do Manjerico.
Sebastião não ligou. Laparduço era conhecido pelas conversas tontas, que, às vezes, deixavam zonzos aqueles que o escutavam. Dirigia-se à cavalariça quando reparou em Coralina, sentada junto ao pombal, cabisbaixa. Parecia que chorava e o pombeiro foi ao seu encontro, preocupado.
– Que tens, Coralina?
– Uma mão-cheia de mágoas.
Sentou-se ao seu lado, olhando-a com atenção.
– Estiveste a chorar. Ralharam contigo?
– Não. Ninguém se zangou comigo – respondeu, suspirando profundamente.
– Será que te posso ajudar? – quis saber ele, prestimoso.
– Gostava de perceber como é que, tanto tempo passado sobre os dias de Alcácer Quibir, a batalha ainda não terminou.
Sebastião olhou-a, surpreendido, sem alcançar que relação teria a malfadada tragédia com o estado de espírito da amiga. Porém, reconhecia que ela tinha razão.
– É verdade. Por mais que sejam os anos passados, continua viva essa esperança de que regresse D. Sebastião. Não há dia que não oiça alguém com tal conversa.
– Soube hoje que sou neta dessa maldita batalha.
– O quê? – perguntou, desconfiado do juízo de Coralina.
Teve como resposta um mar de lágrimas. Puxou-a para o seu ombro, colocando-lhe o braço por cima.
– Não sei o que fazer – soluçou ainda mais quando sentiu o conforto e acrescentou como desculpa: – Vim para aqui à procura do Pirilampo para lhe fazer festinhas e falar com ele.
– O teu Pirilampo foi para Lisboa com o senhor alcaide de Mourão. Deve regressar ao pombal um dia destes.
– Tenho saudades dele.
Sebastião fez-lhe uma festa nos cabelos e insinuou:
– Estás a querer fugir de contar-me aquilo que tanto te magoa.
Ficou por momentos absorta, olhando o picadeiro onde dois cavalos eram exercitados.
O Sol começava a descer no horizonte, embora continuasse brandamente a aquecer o dia. Era um dos momentos de maior animação na Ilha, com o regresso dos animais e dos ranchos que trabalhavam nos campos. Tornou a olhar o picadeiro. Um dos cavalos empinou-se, relinchando vigorosamente, e o eguariço falou-lhe com voz calma, procurando aquietá-lo.
– A senhora duquesa contou-me esta tarde como estou aqui. Sou neta da Efigénia Pé de Galinha.
Sebastião afastou-se dela para a observar melhor.
– Estás a falar a sério?
– Tal como eu, trabalhava na cozinha do Paço e partiu para África com a mesma idade que tenho agora. Regressou louca e com o meu pai nos braços. Sou sua neta. Da bruxa mais temida de Vila Viçosa.
– Isso são crenças dos antigos. Não passa de uma velhota que vive sozinha na estrada de São Romão. Devias estar contente com a novidade em vez de te desfazeres em pranto.
– Não sabes o que é ser órfã – redarguiu, lacónica. Tornou a olhar os cavalos e desabafou: – É viver sem um colo. Nas horas de maiores aflições, procuramos um abraço e não existe. Temos fome de um beijo e a fome seca-se nos lábios vazios. Queremos partilhar uma dor e temos de confessá-la ao colchão. Não existe mais nada. Apenas um imenso deserto. Como o de Alcácer Quibir. E, agora, de repente, existe uma avó. Mesmo que seja bruxa, tenho uma avó. Sempre tive, mas sempre chorei sozinha.
Sebastião agarrou-lhe a mão e apertou-a com ternura. Naquele momento, pensou em contar-lhe o segredo que há tempos guardava para si. Amava Coralina. Amava o seu sorriso e a luz que dela se desprendia. Hesitou e fez um esforço para afastar a vontade de a abraçar que sentia naquele momento.
– Eu estarei sempre aqui, Coralina. O meu abraço e o meu ombro serão sempre teus, se assim o entenderes.
Levantou a cabeça, surpreendida.
– O que estás a querer dizer-me?
– Que não estás assim tão sozinha. Há muita gente que te quer bem.
– Eu sei.
Coralina deixara ficar a mão na dele. Entrelaçada. Apreciando o calor que sentia ao ser assim tocada. Como se aquela mão fosse um porto de abrigo. Olhou-o com timidez e sussurrou:
– Gosto muito de ti, Sebastião.
O coração do pombeiro deu vários pinotes. Coralina abria-lhe a porta que ele temia ver sempre fechada e não se conteve.
– Amo-te, Coralina. Sentes-te órfã e eu preciso tanto de ti!
Encostou-se a ele com um sorriso triste. Sebastião abraçou-a, beijando-lhe os cabelos, e Coralina murmurou:
– Deixa-te ficar. É tão quentinho o teu abraço!
Porém, não demorou muito tempo o enlevo. Os eguariços, que lidavam os cavalos no picadeiro, desataram a provocá-los com assobios e piadas maliciosas, e Coralina, envergonhada, correu para a cozinha.
Logo que a viu, Ermesinda, a verdadeira comandante de todos os tachos e panelas, dos espetos e dos fornos, interpelou-a:
– Não te esqueças de preparar o chá para levares à senhora duquesa.
No campanário do Convento das Chagas ressoava o sino convidando os fiéis à oração de vésperas. Ainda era cedo para fazer o preparado. A duquesa só o tomaria antes de o sino badalar as completas, quando chegasse a hora de, pelo sono, entregar-se a Deus.
Luísa de Gusmão começava a confiar no mercador. Sentia-se mais calma, até sonolenta, sem aquela dor no peito como uma faca aguda que a dilacerava. Acabara de receber notícias de Sanlúcar de Barrameda. Quando o camareiro lhe entregou a carta, sobressaltou-se. Temia sinais de que em Espanha se soubesse do golpe, porém, o pai escrevera-lhe uma carta terna, falando das coisas mais doces da sua terra natal, das responsabilidades militares do irmão e da Guapa, a égua que lhe fora oferecida quando ainda não sonhava com casamentos, e que agora envelhecia longe da sua dona. Não havia crispação, nem desconfiança, sinal de que o segredo não chegara aos ouvidos de Filipe.
Não duvidava de que, mal rebentasse a conjura, chamariam seu pai a Madrid e deu consigo a pensar se não seria avisado escrever-lhe sobre o que estava a acontecer em Lisboa e em Vila Viçosa. Quando a carta chegasse às suas mãos, tudo estaria consumado e o duque de Medina Sidónia teria mais informações para explicar a el-rei os desvarios da filha e do genro. Ainda procurou papel, no entanto, desistiu. E se a carta fosse interceptada por algum espião? Só de pensar em tal hipótese ficou assustada. Escreveria depois, contando todos os detalhes da extraordinária aventura que estava a viver.
Nesse instante, D. Teodósio surgiu vindo da aula de música. Luísa sorriu-lhe com os braços abertos.
– Dás um abraço à tua mãe?
O menino correu a anichar-se no seu colo e ela apertou-o com ternura desvelada.
– Acabou mais cedo. Sabes o que fiz? – perguntou, entusiasmado.
– Não. Tocaste?
– Desenhei notas. Notas musicais.
– E desenhaste muitas?
– Algumas – fez beicinho de amuado e queixou-se: – O pai interrompeu a aula para falar com o Mestre e nem quis saber de mim.
– Que disparate. O teu pai tem um orgulho enorme de ti e ama-te profundamente.
– Então porque anda com cara de zangado?
– Não está zangado. Sabes que os pais, às vezes, têm muitos problemas para resolver e ficam assim, com umas carantonhas muito feias, os sobrolhos franzidos, a resmungarem pelos corredores, mas não é zanga nenhuma. Falam com os problemas.
– Como se fala com um problema?
Luísa soltou uma gargalhada.
– É uma forma de dizer. Ficam de tal modo absorvidos em procurar a melhor solução que fazem coisas estranhas e caras muito feias.
– Deve ser por isso que esta manhã, no picadeiro, dei com ele a mexer as mãos e a falar, mas não estava ninguém ao pé dele.
– Estás a ver? Discutia com o problema que deve andar a preocupá-lo – comentou, divertida.
Teodósio era um menino inteligente. Apesar de apenas contar seis anos, possuía uma argúcia fora do comum, aprendendo com facilidade e interpretando os comportamentos dos mais velhos com perspicácia. D. João, por maior que fosse a sua cautela em disfarçar a tensão em que viviam, não escapava ao olhar atento do filho. Este pressentia que alguma coisa andava no ar e Luísa espantava-se com tal sensibilidade. Quando nascera, da primeira vez que o duque olhara para ele, profetizara:
– Vais ser rei.
Nunca lhes passou pela cabeça que essa possibilidade se abria agora, embora com elevado risco. Teodósio poderia vir a ser rei de Portugal.
Olhou-o, embevecida. Se Deus os ajudasse, aquele menino bondoso estava destinado a carregar sobre os ombros a governação de um império onde o Sol nunca se punha. Era grande o desafio. Tão avassalador que exigiria ao pai, e a si própria, uma vontade de vencer que pertencia ao domínio da força dos deuses. De súbito, sentiu um estremecimento. Era bem possível que nenhum destes sonhos se cumprisse e que, no próximo sábado, começasse o mais trágico dos pesadelos.
Precisava de falar com o deão. Se os acontecimentos descambassem, estava disposta a exalar o seu último suspiro ao lado do seu amado. Não lhe interessava viver sem D. João. Por maior que fosse o amor aos filhos, e só Deus sabia quanto os amava, era-lhe insuportável a condição de viúva sabendo como, naquele momento, ele entregava a vida pelo seu Reino e pela sua família. Quem ama não recua na adversidade do seu amante. Entrega-se como se fossem só um para vencer os limites, pois o amor é do tamanho do infinito.
O deão haveria de arranjar amigos que conduzissem os filhos a Sanlúcar de Barrameda, aos braços protectores dos avós, que cuidariam deles com grande desvelo.
Deu por si a rezar por Teodósio, por Joana e Catarina. Deus acompanhá-los-ia, longe de inimigos e traições.
Depois, saltou-lhe a lembrança para o mercador da erva-dos-gatos. Talvez fosse linguareiro, como lhe disseram, mas a verdade é que sentia uma paz interior que há muito não conhecia. Se conseguisse dormir, haveria de lhe comprar maior quantidade. Parecia-lhe remédio santo.
Mal sabia que o seu fornecedor de tisanas vivera um dia terrível e por causa dela. Não lhe tivesse forrado o bolso com reais e não se perderia no vinho ao ponto de largar o burro. Porém, Manjerico conhecia as voltas do dono e ficou pacientemente à espera junto ao Arco dos Remédios, próximo da cadeia e da venda onde se encharcara em vinho. Esperou horas até que o viu chegar desabrido, transpirando, tão aflito que Manjerico saudou-o, zurrando. Abraçou-o.
– Pensei que te tinha perdido. Que seria da minha vida sem ti, burro de um raio?
Algumas mulheres que passavam riram-se do quadro e Laparduço, indignado, protestou:
– Riem-se do quê? De gostar do meu burro? É o meu maior amigo. O meu companheiro de alegrias e tristezas. Se não fosse ele, já estava morto ou não passava de mais um desgraçado. Não é um burro qualquer! É o meu Manjerico.
«Continua bêbado», admitiu o animal ao ver o dono em tamanho estardalhaço.
Nessa noite, voltou ao Colhoadas. Já sóbrio, mas atravessado com o ferreiro. Até admitia que tivesse sido uma alucinação, mas era capaz de jurar que o vira sair do Paço a correr na direcção do montado, depois de sair dali um coche.
– Ainda estás por cá? Aperfilhaste Vila Viçosa ou foi Vila Viçosa que te aperfilhou? – perguntou o estalajadeiro.
– Espero notícias! – informou em tom de cumplicidade.
– Alguma novidade?
– Estou quase, quase, a fazer o negócio da minha vida. Só espero que o meu cliente durma bem. Nunca o facto de alguém conseguir dormir foi tão importante na minha vida. Por acaso, hoje fiz uma bela sesta. Estava com os copos. Mas não é o meu sono que interessa. É o sono do meu cliente.
– Algum fidalgo com insónias a quem ofereceste a porcaria das tuas ervas – sugeriu o outro.
– Não são porcaria, nem são ervas daquelas que nascem no esterco dos animais da tua cavalariça, que és porco e não limpas aquilo há não sei quantos anos. E quanto ao cliente, não te preocupes. É gente com posses – rematou, iludindo o assunto. Olhou em volta. Havia pouca freguesia. – O Felisberto, que é ferreiro no Paço, não esteve por aqui?
– Hoje não o vi.
Não conseguiu disfarçar a contrariedade. Queria ter com ele uma última conversa de homem para homem, contudo, dava graças por não o encontrar. É que quanto mais pensava no que se passara durante a tarde mais dúvidas tinha sobre a regulação do seu juízo embrutecido pelo vinho. O sino de correr tocou a recolher. Era a hora de as Ordenanças vigiarem quem andava pelas ruas e enfiar na cadeia vadios e bebedeiras. Decidiu ir-se embora. Ainda não se esquecera da ressaca que sofrera com a zurrapa que o Colhoadas lhe fornecera.
Fosse como fosse, a duquesa tinha ervas para dois ou três dias, pelo que poderia ir fazer o mercado de São Romão, que todas as quintas-feiras juntava comerciantes de gado, e depois regressar à cata do seu tão desejado negócio.
– Afinal de contas, vou-me embora. Há mercado em São Romão pela manhã e posso fazer algum negócio.
– Não dormes aqui? Não fazes despesa? – perguntou o Colhoadas contrafeito com a decisão do mercador.
– Entre as pulgas e os piolhos da tua estalagem e dormir ao relento, não há escolha. Além de que metes no vinho uma mistela do diabo que faz um homem morrer de sede.
– O meu vinho é o melhor das redondezas! – protestou o estalajadeiro.
– Porque não conheces as redondezas – retorquiu Laparduço. E rematou à laia de despedida. – Um dia, Colhoadas, irás acompanhar-me nas minhas voltas. Vais provar pingas que até te envergonharás de dizer que isso que vendes é vinho.
Meteu-se ao caminho. Ainda não andara meia hora quando, recortados pelo luar, no meio da estrada, lobrigou dois vultos, perto da colina onde vivia Efigénia Pé de Galinha. Abrandou o passo, desconfiado com tal encontro, àquela hora da noite. Os caminhos estavam cheios de salteadores e, bem pior do que isso, equipas de vigilância política, que farejavam conspiradores. Aproximou-se mais, a medo, e o coração desafogou. Afinal, conhecia o casal. Eram Sebastião e Coralina. Entrou ao ataque, aliviado por encontrar gente decente, e com a prosápia do costume disparou:
– O que faz o casalinho por aqui a estas horas da noite? Não sabem que de qualquer esteva sai um ladrão?
– Viemos fazer um recado – Sebastião quis iludir a conversa, dispondo-se a afastar-se.
Porém, Laparduço não estava pelos ajustes.
– Um recado ou vieram consultar os prodigiosos saberes de Efigénia Pé de Galinha? Mora ali em cima e não são muitos os que se atrevem a parar por aqui com medo de que ela mande um mau-olhado ou um enguiço. Sei de um caso que...
Sebastião cortou-lhe a palavra. Adivinhava um rosário de historietas inventadas que o vendedor estava sempre disposto a distribuir, fizesse frio ou calor, sol ou chuva.
– Temos de regressar, Laparduço. Estão à nossa espera.
Começou a andar, puxando Coralina pelo braço, mas o outro gritou:
– Sebastião!
– Sim?
– Põe-me o olho em cima do Felisberto. Olha que ele anda a mijar fora do penico e cheira-me que gosta em demasia da espanholada e dos seus amiguinhos.
– Fique descansado.
Sebastião queria afastar-se dali o mais depressa possível. O frio era cada vez mais cortante e, se havia gente que achava graça às mentiras do Laparduço, o pombeiro não tinha muita paciência para o ouvir. Era da sua natureza. Preferia falar com os animais de que cuidava, generosos e gentis, do que com pessoas que inventavam mundos de fantasias tão espantosos que só poderiam ser coisas de delírios medrosos.
– Não gostas do Laparduço – comentou Coralina, enquanto caminhavam.
– Não gosto, nem desgosto. Cansam-me as suas aldrabices – mudando de conversa, continuou: – Agora já sabes onde vive a tua avó. Tens de visitá-la durante o dia.
– Não sei o que lhe vou dizer. Ela nunca me viu e eu mal a conheço.
– Dir-lhe-ás aquilo que o teu coração ditar.
OS POMBOS DA LIBERDADE
Nessa manhã, o duque de Bragança levantou-se cedo. Mal ouviu o sino a assinalar as matinas, saltou do quarto sem falar com o camareiro-mor, nem acordar qualquer dos criados. Doía-lhe o corpo da insónia e precisava de transformar o tempo em actos para que lhe custasse menos passar as horas até chegarem notícias de Lisboa.
Era o dia de todas as decisões e sabia que não ia terminar com a mesma tranquilidade como se iniciava, fosse qual fosse o resultado dos esforços dos conjurados.
Foi à janela espreitar o céu. A aurora começava a clarear, desenvencilhando-se da noite, que, mais uma vez, trouxera geada, distribuindo-a pelos telhados e ruas de Vila Viçosa. Encaminhou-se para a Ilha do Palácio, onde, àquela hora, os tratadores começavam a cuidar dos cavalos. Atravessou o longo corredor mal iluminado, desceu à cozinha, onde só duas criadas iniciavam os preparativos do dia. Ficaram surpreendidas ao vê-lo, curvaram-se numa vénia e ele cumprimentou na passagem.
– Bom dia. Não se preocupem comigo que só vou comer mais tarde.
A voz, bem-disposta, não levantou qualquer desconfiança nas mulheres, que não estavam habituadas a vê-lo tão cedo.
Dirigiu-se à porta de acesso à Ilha e foi então que sentiu o frio gélido e cortante que sacudia a madrugada. Apressou o passo na direcção da cavalariça mais próxima e entrou de rompante, enquanto esfregava as mãos, procurando algum calor.
Para seu alívio, os eguariços haviam acendido uma fogueira onde, de tempos a tempos, iam aquecer-se e D. João correu para ela.
Diogo Bernardo, um dos responsáveis pelas éguas parideiras, saudou-o alegremente.
– Aqueça-se, senhor duque, que a magana da geada hoje veio mesmo fria!
– É verdade, Diogo. Está tudo gelado – respondeu, estendendo as mãos sobre as labaredas.
– A Donzela pariu esta noite. Vossa Senhoria tem de ir ver o potro – informou com um sorriso de satisfação no rosto.
– É bom?
– Bom? A Donzela nunca pariu coisa ruim. Acredite no que lhe digo. Aquele que ali está vai ser um rei!
Esta observação do empregado fê-lo sentir um baque. Daí por umas horas, quando a noite estivesse para chegar, talvez Vila Viçosa tivesse de celebrar o nascimento de dois reis. O filho da Donzela e ele próprio. Ou choraria a sua morte, varado por traição. Quis afastar os pensamentos que sabia que iam dominar a sua espera de novidades e perguntou:
– Então qual é o nome que vamos dar a esse filho da Donzela que vai ser rei dos meus cavalos?
– Vossa Senhoria é que sabe. Pelos registos do ano, tem de começar por D.
– Por D? – pensou por alguns momentos e declarou:
– Dezembro. Vai chamar-se Dezembro.
O rapaz olhou-o, decepcionado.
– Dezembro? Isso é nome de mês.
– Um nome promissor, Diogo Bernardo. Nasceu no primeiro dia do mês em que celebramos o nascimento de Cristo. Embora esteja um frio de rachar, é o tempo do nascimento do rei dos reis, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Agradou-lhe a ideia posta naqueles termos.
– Quer ir vê-lo? – perguntou o eguariço.
– Vou mais tarde. Preciso de falar com o Sebastião. Está aqui ou na outra cavalariça?
– Ainda é cedo para ele. Entra ao nascer do Sol. Vou chamá-lo.
D. João fez um gesto com a mão.
– Não vale a pena. Já falta pouco. Vamos lá ver o rebento que a nossa égua pôs cá fora.
Era, de facto, um belo potro. Cor de cinza malhada de branco, a cabeça levantada, vivo, puxava com genica o leite das tetas da Donzela. O duque fez uma festa no focinho da égua e comentou com apreço:
– Esta égua ficará na história. Faz de cada parição um milagre de vida.
– Um belo animal, sem dúvida! – confirmou Diogo Bernardo, recordando: – Já fez três barrigas e sempre saiu coisa perfeita. Digo-lho eu, senhor duque, que tenho mais de vinte anos a ver éguas a parir. Esse potro que aí está vai ser um cavalo de se lhe tirar o chapéu.
João voltou a afagar o focinho da égua e ela respondeu-lhe, agradecida, com um curto relincho. Afastaram-se na direcção da lareira, que o frio não dava tréguas, e nesse mesmo instante Sebastião entrou na cavalariça. O duque dirigiu-se a ele.
– Vem comigo!
O pombeiro, surpreendido com tão matinal visita, seguiu-o sem dizer palavra, e mais curioso ficou quando, em vez de entrarem no Paço, D. João se dirigiu ao picadeiro, que, àquela hora, estava deserto. Pegou no braço do rapaz e falou-lhe em voz baixa.
– Aquilo que te vou pedir é um segredo absoluto entre nós.
– Vossa Senhoria pode contar sempre com o meu silêncio.
– Muito bem. O senhor alcaide de Mourão, da última vez que cá esteve, levou um dos nossos pombos, não é verdade?
– Levou o melhor e mais seguro. O Pirilampo. Tem olhos de águia e asas com a força de um braço de homem.
– Espero esse correio hoje. É de tal modo importante que quero que fiques no pombal quando começar a missa. Só de lá sais assim que o tiveres na mão e vais logo entregar-me a mensagem. Esteja onde estiver, e com quem estiver. Ouviste bem?
– Pode Vossa Senhoria ficar descansado.
– Nem uma palavra, Sebastião. Confio em ti, como confiava no teu pai. Não largues o pombal. Ouviste?
– Quando chegar a hora da missa já escovei os cavalos que tenho a cargo. Nem dará nas vistas. Pode Vossa Senhoria confiar. Mal o Pirilampo chegue, a mensagem estará nas vossas mãos.
O duque ia despedir-se quando percebeu que o rapaz lhe queria dizer mais alguma coisa.
– Está tudo bem, Sebastião?
– Não sei, meu senhor. O Felisberto saiu ontem à tarde e não voltou. Dorme na enxerga ao lado da minha e, quando acordei, não o vi.
Respondeu às preocupações do pombeiro com um sorriso.
– Não te preocupes. O Felisberto quando bebe de mais, perde o norte. Ou talvez fosse dormir com a família. Vais ver que daqui a pouco está por aí.
– Não sei se será só mais uma bebedeira – titubeou o rapaz.
– Então, o que poderá ser? – - perguntou o duque, desconfiado.
Sebastião andou à procura das palavras, como se a inquietação que o perturbava não parecesse que se preocupava com coisas que não lhe diziam respeito.
– Vossa Senhoria conhece um mercador que aparece por aí a vender ervas e licores e que dá pelo nome de Laparduço?
– Conheço. Já me cruzei com ele várias vezes. Fala muito, não é?
– Fala de mais. Não tenho paciência para o aturar. Mas a verdade é que nas últimas duas vezes que o encontrei pareceu-me que me queria dar um recado e eu não liguei muito. Só a falta do Felisberto me deixou de pé atrás.
D. João olhou-o, intrigado.
– O que te disse o bufarinheiro?
– Nada de especial. Mal fala comigo, que eu não deixo. Mas nessas duas vezes disse-me o mesmo: «Tem cuidado com o Felisberto. Anda metido com a espanholada.»
O duque ficou de cenho carregado. Que quereria dizer o Laparduço com tal aviso? Não tinha grandes conversas com aquele ferreiro, não dava nas vistas, sempre metido consigo próprio, mas, sobretudo naquele dia tão decisivo, esta conversa deixava-o preocupado.
– Só te disse isso? – perguntou, finalmente.
– Por duas vezes, meu senhor.
Apertou-lhe o braço em gesto de amizade e despedida.
– Não te preocupes. O Felisberto pode ter os amigos que quiser, além de que o mercador tem uma língua de palmo e meio. Não tarda está aí. Vá, vai fazer o que te mandei. Quando tiveres a mensagem leva-ma. Até logo!
Aquilo que nem D. João, nem Sebastião sabiam é que Felisberto não voltaria ao Paço Ducal. Alguém se encarregara de lhe acabar com a traição.
Regressou ao Paço. O rapaz ficou a vê-lo afastar-se sem desconfiar. Sabia da amizade entre os dois fidalgos, das frequentes visitas que D. Pêro de Mendonça fazia a Vila Viçosa e, por certo, era notícia de algum negócio que carecia de decisão urgente. Ficou confortado com a confiança do duque e regressou à cavalariça. Quando entrou, Diogo Bernardo estava com a curiosidade ao rubro.
– Que queria de ti o senhor duque a esta hora do dia?
Encolheu os ombros.
– Nada de especial. Quer que eu aparte uns borrachos para oferecer ao pombal do senhor bispo. O Felisberto já chegou?
– Ainda não o vi. Deve estar a curar a bêbada.
O Sol já despontara e a cozinha fervilhava de movimento quando o duque entrou no paço. Para evitar a coscuvilhice entre a criadagem, seguiu em frente para chegar aos seus aposentos por outro caminho onde sabia não encontrar mais pessoal. No estômago, começavam os nervos a fervilhar e pela cabeça passou-lhe a citação de São Paulo, que João Pinto Ribeiro pronunciara na sua última visita: «Tanto mais que sabeis em que tempo estamos vivendo: já chegou a hora de acordar, pois a nossa salvação está mais próxima agora do que quando abraçámos a fé. Portanto, deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz.»
Pressentia que, à mesma hora, a trinta léguas do Paço Ducal, quarenta homens espalhados por Lisboa procediam aos preparativos para o momento decisivo. Teriam vivido uma noite de insónia como ele? Despediam-se dos familiares mais próximos, sabendo que aquele poderia ser o último abraço? Imaginava os primeiros passos de cada um deles, naquela madrugada definitiva. Os gestos comedidos e graves do conde de Vimioso e de D. Jorge de Melo, a impaciência guerreira de António Luís de Meneses e do alcaide de Soure, a euforia determinada de D. Afonso de Meneses e de D. António Telo. Era capaz de jurar que os capitães Gomes Freire de Andrade e Gonçalo de Távora passavam revista às suas próprias armas e que o arcebispo D. Rodrigo da Cunha e o prior de São Jorge rezavam discretamente pelos destinos de Portugal.
Antes de entrar, passou o olhar em volta com alguma nostalgia. O picadeiro, a Horta do Reguengo, o jardim, as cavalariças mais adiante. Por ali estavam espalhados pedaços da memória da sua vida. Os exercícios equestres com o pai, D. Teodósio II, os passeios com os amigos, as conversas dos caseiros na faina e, tal como agora escutava, em cada amanhecer, o chilrear de bandos de pardais, despertando nos beirais e arvoredos onde dormiam. E o suave som do voo dos pombos, desembaraçando as penas depois de uma noite de sono.
Fora feliz naquela terra e sabia, fosse qual fosse o resultado da contenda em Lisboa, que pouco mais tempo lhe restava para viver naquele chão que amava até às entranhas da alma.
Quando entrou, Luísa já o esperava com impaciência. Correu para ele e abraçou-o com força.
– Minha querida Luísa! Chegou o dia – cumprimentou-a, beijando-lhe o rosto.
– As minhas pernas tremem como ramos de salgueiro. Não consigo comer, não consegui dormir, procurei por ti e estavas desaparecido. Meu Deus! Já não sabia o que fazer. Até pensei que te tivessem vindo buscar durante a noite.
João abraçou-a outra vez e sorriu bem-disposto, disfarçando a angústia.
– Ainda é cedo para me virem prender.
Ao ouvir isto, a aflição da duquesa transformou-se em firmeza.
– Ninguém te virá buscar. A não ser os teus fidalgos para aclamarem o seu Rei.
– Mas foste tu quem falou nessa possibilidade.
– Porque sou parva e tenho medo da noite. De vez em quando, surgem pesadelos com fantasmas e almas penadas. Noutras, invento coisas tontas para me assustar a mim própria. Mas o dia surgiu cheio de sol, a geada desaparecerá e as notícias vão ser tão luminosas que não há fantasma nem monstro que lhe possam fazer sombra – baixou o tom e não se conteve sem perguntar: – Está tudo certo, não é verdade? Não chegaram novidades?
– Não. Fui falar com o Sebastião para o pôr de sentinela ao pombal. Depois das nove da manhã, pode chegar a notícia trazida por um pombo. Imagina, a liberdade de um Reino atada à pata de um pombo – gracejou o duque.
– Está certo. As aves foram criadas por Deus para nos mostrarem sempre a liberdade que existe nos céus e pode existir na terra – respondeu com convicção.
João beijou-a, comovido.
– És a minha força e a minha fome de liberdade.
– Sou a mulher que nasceu para te amar e, se for necessário, morrer contigo. Anima-te e anima-me. Vamos rezar juntos, João de Bragança. Vamos rezar pelos nossos amigos, que a esta hora se preparam para viver a história mais inacreditável que um povo consegue testemunhar, pelos nossos filhos, por ti, por nós.
– Rezarei contigo com devoção. Unidos de tal forma que nem a morte nos separará.
Luísa recompôs-se do enleio ternurento e reagiu com genica:
– Mas hoje não se fala de mortes. É dia de vida, é dia de esperança, é dia de acabar com esta maldita tirania que só traz medo e suspeitas. É o dia em que os pombos voam livremente e os homens ganham as suas asas para conseguir os céus. Pronto! Não há mais nada a dizer. É hora da missa. Vamos falar com Deus!
Depois da primeira conversa com Pinto Ribeiro, o deão fora avisado de véspera da hora do desenlace e como esperavam vencer a vice-rainha sem aparato bélico. Uma conversa em surdina enquanto passeavam, descontraídos, pelo Terreiro. Escutara-a em silêncio, impassível, controlando as emoções que lhe chegavam naquela confissão que há muito esperava. E desejava. Quando o duque terminou a exposição, deu alguns passos em silêncio, pensando naquilo que ouvira.
– Já tinha percebido que a conjura estava iminente desde que nos encontrámos com o seu administrador Pinto Ribeiro. Fiquei a pensar no assunto e julguei que iriam contar com parte dos nossos militares que combatem no exército filipino – disse por fim.
– Estão longe e dispersos. Não temos exército.
– É muita ousadia, senhor duque – comentou, preocupado.
– Reconheço que é um enorme risco.
– Se não o conhecesse, se não conhecesse alguns dos fidalgos e dos clérigos envolvidos, com provas de sabedoria dadas, diria que era uma aventura de loucos. Nunca se ouviu falar de coisa assim. Quarenta homens acreditam que o povo da cidade de Lisboa os vai apoiar em sedição contra o maior império que existe à face da Terra.
– O povo de Lisboa é de uma generosidade sem limites e vive esfomeado por liberdade.
– Acredito. Mas, pensando com sensatez, vejo uma manobra de tal modo difícil que só o talento e a graça de Deus podem almejar um bom fim a esse confronto com a História.
– Discordo de si – reagiu o duque e esclareceu: – Não é um confronto, mas sim um encontro com a nossa História. Diria melhor, um reencontro depois de sessenta anos em que esteve adormecida.
– Não me fiz entender, senhor duque. Talvez seja como disse. Porém, para quem estudou Aristóteles, este é um silogismo impossível, embora admita que a lógica não é o reinado absoluto da sabedoria. Se a conspiração triunfar, e vou pedir ao Altíssimo com todas as minhas forças que triunfe, o dia de amanhã será um marco único na vida deste Reino.
– Tem de triunfar! – respondeu o duque com firmeza, e segredou com solenidade: – Não me perdoarei a mim próprio, se falhar. Significa que não tenho talento para ser rei e que arrastei o povo deste Reino, a minha gente, para um suplício ainda maior. Perdi os meus pais e suportei a dor. Perdi dois filhos à nascença e suportei a dor, embora com grande sofrimento. E não tenho dúvidas, meu bom padre. Não haverá tortura nem mágoa maior do que arrastar um povo que tanto martírio tem passado para um calvário onde será desfeito o pouco que lhe resta de dignidade.
– Imagino como sofre. Foi uma decisão muito difícil – concordou o sacerdote.
– Tenho fé. Uma confiança infinita na justeza da nossa acção. Não sei donde me vêm esta força e esta confiança. Julgo que a duquesa tem sido o grande impulso para que eu acredite que, quando Deus quer, não há batalhas impossíveis. Que quando tratamos de justiça, de liberdade, de honradez, o poder d’Ele comanda os destinos dos homens e das nações. Mesmo que sejamos poucos, tão poucos que não enchem uma capela ou uma ermida em caso de oração, a força que nos anima é maior do que nós. Só pode ser de inspiração divina!
O deão percebeu que não devia contraditar tanta fé. Limitou-se a dizer:
– Vou rezar por vós.
Despediram-se com um abraço. Quando se afastaram um do outro, ambos caminhavam com ar grave, algo que não passou despercebido a Felisberto, que os lobrigava de longe. Estranhara tanta efusão entre os dois homens na hora de se separarem. Nenhum padre abraça o duque de Bragança, mesmo que seja o deão da sua capela, e a postura preocupada de ambos deixou-o em alerta. Afastou-se para não ser visto pelo sacerdote, que se encaminhava para a vila, e embelgou na direcção do caminho de Borba. Aranjuez precisava de estar alerta. Qualquer coisa de estranho se passava. Ouvira o monteiro-mor a falar com um dos tratadores dos cães, comunicando-lhe que não haveria mais caçadas na Tapada até ao fim-de-semana sem dar uma única explicação para tal decisão. Era coisa espantosa e que raramente acontecia.
Antes de a missa começar, já Luísa rezava com fervor. Desnudava o coração perante Deus, pedindo-lhe a graça de proteger o homem da sua vida, o fidalgo ilustre, o pai atento, e todos quantos nele acreditavam. E por esta gente, meu Deus, Nosso Senhor, que tanto sofre e labuta, que tanta esperança deposita em Ti para que D. Sebastião regresse das brumas da memória. Que esse rei justo e bom que vive na alma de cada um, por esse Reino fora, seja a justeza e a bondade de João, seja o regresso da alegria e da paz. Neste dia, meu Deus, tende piedade dos que se levantam para repor a dignidade. Tende piedade dos generosos que oferecem a sua vida pela terra que os viu nascer, tende piedade deste povo dedicado e humilde que sobrevive em vez de viver, que vegeta em vez de confiar no futuro, que acredita que És infinitamente bom e justo. É de justiça que hoje falamos, meu Bom Deus. É contra a injustiça dos homens que nos levantamos. Tende piedade de nós, Senhor.
Sebastião soltou os pombos para que desenferrujassem as asas depois de uma noite friorenta. Saíram em bando. Cruzaram o Terreiro, sobrevoaram o Convento dos Agostinhos e fizeram um baile de piruetas sobre o Castelo. Eram elegantes no ar e volteavam com suavidade, cruzando-se com o voo rápido das andorinhas, atarefadas a procurarem bocadinhos de lama para os ninhos que construíam. A seguir, encaminharam-se para norte, no sentido da Tapada, e fizeram novamente aquela estranha dança em que pareciam cair desamparados para depois se reequilibrar e retomar o voo vigoroso.
O pombeiro olhou o Sol. Hoje a volta da manhã seria mais curta para os seus pássaros, pois queria cumprir com zelo a ordem do senhor duque. Haveria de fechá-los para que, quando o mensageiro voasse na direcção do pombal, só existir o Pirilampo no ar, trazendo as novas enviadas pelo alcaide de Mourão.
Era o pombo preferido de Coralina e via-se que Pirilampo a adorava. Procurava-lhe sempre o colo onde ela espalhava grãos de trigo. Fazia-lhe festas enquanto depenicava e a ave, depois de comer, acomodava-se no avental da moça, pronta para dormir, enquanto escutava a conversa entre ela e o seu tratador. Havia um laço tão forte entre Coralina e Pirilampo que várias vezes testemunharam vê-lo deixar de voar com o bando para vir poisar perto, às vezes no ombro, da rapariga.
O duque sentou-se no varandim da capela e, discretamente, afagou os cabelos de Luísa, que rezava de joelhos. A conversa com Sebastião sobre o Felisberto deixara-o inquieto. Não tinha dúvidas de que Miguel de Vasconcelos conseguira introduzir no Paço um punhado de espiões. Não era ingénuo ao ponto de acreditar que as duas centenas de empregados que ali labutavam era todos de uma fidelidade inquebrantável. Porém, procurava imaginar que tipo de informações poderia obter um ferreiro que mal conhecia os seus passos e que passava os dias junto a uma forja, moldando ferraduras. Era necessário que as suspeitas sobre si fossem muito grandes para corromper um criado que mal conhecia e esta ideia animou-o. Fosse qual fosse o serviço que Felisberto prestara, nessa noite, aos serventuários de Miguel de Vasconcelos, era tardio. A conspiração seguia com horas de avanço e estava iminente. Restava-lhe rezar e esperar pela mensagem que o pombo-correio haveria de trazer até si.
Sebastião pegou num saco com aveia e dirigiu-se ao piso superior do pombal. E de longe, muito longe, o bando viu o homem e correu pelos céus na sua direcção. O saco era sinal de comida, embora entre alguns causasse estranheza refeição tão madrugadora. Os pombos que chegaram primeiro, pousando com grande alarido de asas, ficaram surpreendidos porque, ao contrário do que era habitual, as sementes estavam a ser distribuídas no interior, e não nos beirais, onde as aves ficavam a saborear o dia. Porém, não se fizeram rogados. Entraram, cercando o pombeiro, debicando com apetite em volta do rapaz e, ainda, acometendo para os grãos que lhe caíam sobre as botas. O entusiasmo era tal com a refeição antecipada que não perceberam a armadilha. Quando o bando ficou junto, Sebastião fechou a porta e foi ele quem os substituiu nos altos beirais do pombal, para grande espanto dos pássaros. Sentou-se e ficou a olhar os céus.
A voz do deão ecoou na capela do Paço.
– In nomine Patris, et Filii, et Spiritus sancti.
João de Bragança balbuciou ámen, porém, para seu pesar, não estava ali em comunhão com Deus. Por mais que se esforçasse, o pensamento fugia-lhe para Lisboa. Via os cavaleiros a chegarem ao Terreiro do Paço, coches apinhados de fidalgos, gente que aguardava o fim das missas que, à mesma hora, se celebravam pela cidade, à espera do momento de sair para se juntar aos grupos que começavam a surgir de todas as ruas que desembocavam perto do Tejo, a maior parte vinda do Arco dos Pregos e do Arco do Ouro. Embora longe, via cada um dos conjurados a passarem-lhe na memória. Adivinhava a aparente serenidade de João Pinto Ribeiro, a impaciência de D. António Mascarenhas, a alegria contida de D. Miguel de Almeida e D. Antão de Almada. Não conseguiu evitar um ligeiro sorriso quando lembrou o temperamental padre Nicolau da Maia. Por certo, a sua homilia era uma oração de levantamento contra a soberba filipina, pois era o mais desbragado dos conspiradores. Adivinhou D. Gastão Coutinho, assim como o conde de Atouguia, agitados e tensos, pois tanto tinham desejado aquele dia, e pressentiu a determinação nas poses em que imaginava os irmãos Jorge e Rodrigo de Melo.
Apertou as mãos com força, procurando concentrar-se na missa, invocando a misericórdia e o amor de Deus.
– Kyrie, eleison, Christie, eleison, Kyrie, eleison.
Repetiu mecanicamente. Margarida de Sabóia estaria no Palácio da Ribeira? Antevia a sua estupefacção quando lhe entrassem conjurados pelos aposentos a dar-lhe voz de prisão.
– Gloria in Excelsis Deo et in terra pax...
E Miguel de Vasconcelos não teria sido alertado pelos seus espiões? Como não suspeitar de tão desmesurada concentração de povo perto do gabinete donde emitia as ordens que esmagavam o seu próprio país?
Fora da capela, alguns moços de estrebaria olhavam, desconfiados, para Sebastião, empoleirado no pombal, vigiando os céus. Não resistiram à brincadeira:
– Então, Sebastião, estás a fazer de pombo?
– Ó Sebastião, pareces um morcego pendurado num pombal.
– Vais ficar aí toda a manhã, de vigia às nuvens?
– Ainda te nascem asas, rapaz! Sai daí.
Às tantas não se conteve e respondeu.
– Cumpro ordens. Hoje chegam grandes notícias do céu.
Entreolharam-se, intrigados com a resposta. Sebastião falava a sério. Que grandes notícias seriam aquelas? Começaram a inventar à sorte que coisa tão importante mandara o senhor duque pôr o Sebastião de cócoras em cima do beiral do pombal? Por fim, o velho Timóteo, almocreve antigo, apertou as abas do pelico contra o peito, resguardando-se do frio, e sentenciou:
– Alguns de vocês duvidam e até brincam com os mais velhos, mas só há uma grande notícia que o senhor duque pode esperar com tanto esmero vinda do céu.
Os presentes voltaram-se para o Ti Timóteo. Sorria com fé, antevendo a verdade ainda escondida no firmamento.
– O nosso rei vai chegar de Alcácer Quibir – anunciou com voz grave e, para que não restassem dúvidas, acrescentou: – Só pode ser!.
A convicção do homem impressionou boa parte de quem o ouvia e alguns ficaram a olhar o céu. A declaração passou como um rastilho de credulidade pelas cavalariças. Vinham à porta, espreitavam Sebastião e, de cabeça no ar, procuravam entre as nuvens esparsas aquilo que o pombeiro vigiava.
– Et exspecto resurrectionem mortuorum, et vitam venturi saeculi...
Luísa de Gusmão desviou a atenção da missa, por instantes, ao pressentir uma presença nas suas costas. Era Coralina, que rezava fervorosamente e tinha os olhos vermelhos de lágrimas. A duquesa, ao perceber a tempestade que ia no peito da rapariga, acenou-lhe com a cabeça em sinal de encorajamento e tornou a concentrar-se na regência do deão. A criada benzeu-se e recuou discretamente. Chegara a sua hora. O dia certo para encontrar um pedaço esquecido do seu passado e saber como era feito o afecto entre duas pessoas do mesmo sangue.
Saiu do Paço com rapidez e era grande a ansiedade com que ia ao encontro de Efigénia Pé de Galinha. Temia que ela nem a deixasse aproximar, enxotando-a como se fosse uma cadela vadia. Aliás, nunca ouvira nada de bom sobre a sua avó. Que era bruxa, que tinha casado com o Mafarrico e, nas versões menos pesadas, com um dos Anjos Negros que o ajudavam na maldição das almas. Que o seu olhar lançava raios que deixava os animais estéreis e todas as mulheres em que tocara nunca mais teriam conseguido emprenhar. Não havia quebranto que não lhe fosse atribuído, nem mau-olhado que não fosse mandado por ela. Tanta notícia ruim amedrontava Coralina. Porém, a duquesa dizia o contrário e incitava-a a descobrir este mistério do seu passado. Ela, que não conhecera nem pai nem mãe, que não tinha qualquer sensação de amor maternal, era impelida por uma força mágica para aquele encontro com o fundo do seu tempo e, também, com o seu próprio destino.
Já saíra da vila quando viu Laparduço, que caminhava ao seu encontro, puxando o burro carregado. Quando se aproximou, desatou a chamá-la com ansiedade.
– Menina! Menina!
Parou, expectante. Conhecia-o da venda e da sua arte para inventar histórias sobre as mercadorias mais extravagantes.
– A menina nem sabe o que aconteceu. Eu vi-a quando a senhora duquesa me comprou a erva-dos-gatos. Trabalha no Paço Ducal, não é verdade? Nem sei se fez algum efeito à senhora. Passo por lá de manhã e à tarde para saber se deseja mais, e nada! Nunca mais a vi. Acha que lhe fez bem?
Coralina respondeu, hesitante:
– Acho que sim. Pelo menos continua a pedir que lhe faça a infusão.
– Deus queira que sim! Deus queira que sim! Diga-lhe que me viu e que hoje passo outra vez.
– Não sei se consigo. Só falo com a senhora duquesa quando se dirige a mim. Trabalho na cozinha e é raro vê-la.
– Mas tem de ver. Eu vendi-lhe o que de melhor há para uma pessoa dormir e, ainda por cima, fiz-lhe um grande favor. A ela e ao senhor duque. Eles precisam de saber porque sou um mercador honesto e estou na disposição de os servir até onde eles não imaginam – e terminou a tirada com um remate misterioso: – Como fiz ontem.
Coralina, apesar da pressa, estacou surpreendida.
– Ontem?
– Diga aos seus amos que ontem viram-se livres de um espião. Quando me comprarem a erva-dos-gatos, eu contarei à senhora duquesa o que se passou. Mas fiz-lhes um grande favor. Grande mesmo, pode crer. Bem mereço ser fornecedor do Paço.
– Estou com pressa, senhor Laparduço.
– Vá com Deus e não se esqueça de falar com Sua Senhoria.
O mercador evitou contar o que lhe apetecia tanto confessar. Porém, preferiu não se alongar, sabendo que poderia estar ali a oportunidade de contactar com a duquesa e terminar aquele negócio que tanta aflição lhe provocava.
Na verdade, no dia anterior, depois da conversa entre o duque e o deão, testemunhada por Felisberto, desenrolara-se um drama bucólico no carreiro que ia de Vila Viçosa até Borba.
Num pequeno vale rodeado de sobreiros, Laparduço procurava esconder-se com aflição, assim como ao seu burro, entre um mato mais denso. À sua frente, em volta de uma pequena fogueira, estava um grupo de soldados espanhóis e, com eles, o tal Aranjuez, velho conhecido do vendedor. Reencontrá-lo tão cedo, depois do discurso mentiroso com o qual se havia livrado de ser espião, era demasiado perigoso.
O coração do homem começou a bater apressadamente, enquanto, através das ramadas entrelaçadas do matagal, procurava lobrigar o que ali fazia o cavalheiro com o seu séquito de tropas. Era evidente que estavam à espera de alguém, tal era a pose do fidalgo. Mãos atrás das costas, olhando em todos os sentidos, enquanto os soldados confraternizavam em torno da fogueira e os cavalos pastavam à solta. Recordava-se do último encontro com esta gente, da armadilha que lhe montaram com um morto apodrecido e sem as partes, do chorrilho de invenções com que se desculpara e se safara de tão grande aperto. Temia ser novamente confrontado e que lhe fizessem perguntas que poderiam baralhar a história inicial e, sabe-se lá!, inventarem um motivo para outra chantagem ou, pior ainda, para o despacharem com uma punhalada.
O seu problema era o burro poder zurrar, que as estevas eram de tal modo grandes e entrelaçadas que dali ninguém o podia ver. Escondeu-se. A curiosidade do mercador era bem maior do que o medo e precisava de saber por quem esperavam. Ou era uma vítima ou um espião.
Levantou os olhos aos céus numa prece e das alturas sentiu que lhe chegou um sinal para fugir. Se o Manjerico zurrasse, seria descoberto, e não só iria preso como tinha garantida uma valente tareia. Olhos que não vêem, coração que não sente, costumava dizer a sua mãe, e a curiosidade, em muitas circunstâncias, pode matar. A prudência mandava que escapasse àquele encontro inoportuno.
Foi então que ouviu passos pelo carreiro por onde podia escapulir-se. Embrenhar-se no mato era impossível porque teria de abandonar o animal e a mercadoria que carregava. Assustado, susteve a respiração, procurando espreitar quem lá vinha ao encontro do Aranjuez.
Abriu com cautela as pernadas mais altas das estevas e, apesar do medo, não conseguiu deixar de sorrir. As velhas suspeitas que partilhara com Efigénia Pé de Galinha confirmaram-se. Na direcção do grupo de espanhóis, marchava apressado e cauteloso, olhando para trás com insistência a fim de perceber se não era seguido, o miserável Felisberto. O canalha, que aproveitava a bondade do duque para o entregar, sem piedade, aos inimigos do Reino. A esperança de Laparduço de enriquecer à conta dos negócios com o Paço Ducal corria o grave risco de se tornar num verdadeiro desastre para o duque e para a sua bolsa.
A indignação interesseira bateu fundo no corpo do mercador bonacheirão. É certo que não era o mais perfeito dos homens. Que adorava pregar mentiras e inventar histórias de qualquer jeito, mas trair era coisa tão ruim, tão cheia de maldade, que não conteve a revolta. Ainda por cima, com sacos cheios com erva-dos-gatos à espera de uma decisão da augusta figura.
Abriu a navalha e antes que o ferreiro se mostrasse, no cimo da colina, a quem o esperava no vale surgiu-lhe ao caminho. Felisberto ficou desnorteado ao ver o vendedor a sair das estevas.
– Laparduço!?
– Olha quem ele é – comentou, folgazão, enquanto se aproximava, e continuou a falar tranquilamente: – Fui agachar-me e ouvi passos. Levantei as calças à pressa e vim espreitar. Afinal é o meu amigo Felisberto. Não devias estar a fazer ferraduras a esta hora da tarde?
Ainda não refeito da surpresa, o ferrador esboçou um sorriso amarelo, à procura das palavras.
– Devia, mas tenho um primo em Borba que está muito doente e pedi autorização ao senhor duque para ir vê-lo.
Manhoso, o Laparduço ripostou:
– Coitado! Posso saber quem é o teu primo? Eu conheço o pessoal todo que vive no lugar.
A pergunta embaraçou ainda mais o outro. Porém, foram as gotículas de suor que viu escorrerem-lhe da testa naquele último dia de Novembro, crivado de frio, que convenceram o mercador da traição. Sem encontrar resposta que não fosse desmentida, o ferreiro respondeu asperamente, tentando seguir caminho.
– Você não o conhece. Chama-se Zé.
Ainda mal dissera estas palavras e sentiu a navalha de Laparduço a rasgar-lhe as entranhas, enquanto o agarrava pelo pescoço. Depois, falou-lhe ao ouvido quando lhe enterrou pela segunda vez a arma no peito.
– Zé ou Aranjuez? Traidor velhaco!
Felisberto olhou-o, espantado, e ainda balbuciou:
– Como descobriu?
– É fácil. Os espiões cheiram sempre mal. Ainda por cima, lixam o negócio das pessoas de bem.
Mas o outro já não ouviu resposta. Caiu morto aos pés do seu matador. Rapidamente, este agarrou-o pelos ombros e arrastou-o para dentro do mato, ouvido à escuta e perna ligeira. Limpou a navalha na roupa do defunto, guardou-a, agarrou na arreata do Manjerico e, aos pinotes, galgou as estevas e desatou a correr, puxando o burro, na direcção de Vila Viçosa. O Aranjuez bem poderia ficar à espera.
Só deu descanso ao Manjerico quando chegaram à rua de Lisboa. Deu consigo a rir dos sustos, das surpresas e peripécias que acabara de viver, e o burro desatou a zurrar. Ficou com a sensação de que o animal se ria dele e da confusão por que acabara de passar. Voltou-se para o Manjerico com ar zangado:
– És capaz de acabar com isso? Se queres gozar com alguém, escolhe uma burra que eu não te empato.
Laparduço não sabia que provocara uma morte desnecessária. No dia seguinte, iria eclodir o golpe que tornava inútil qualquer informação recolhida pelo bruxo Aranjuez.
– Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus Sabaoth. Pleni sunt caeli et terra gloria tua...
O deão, talvez atormentado pelo conhecimento do que estava a acontecer em Lisboa, fizera uma longa homilia, que o duque mal escutou.
Àquela hora, já começara o ataque ao Paço da Ribeira e não conseguia alinhar um pensamento para Deus, procurando decifrar sinais de confiança na tempestade de pensamentos que lhe estoirava na cabeça. Nem força sentia nas pernas para ir comungar tal era o desvario interior. O sacerdote olhou-o quando distribuía a comunhão e prosseguiu, impávido. Adivinhava o que ia na alma do duque. Ele próprio sentia as pernas a fraquejarem.
A seu lado, Luísa não conseguia disfarçar o nervosismo que a dominava. Inventara uma posição de devota que não chamasse à atenção dos restantes presentes na missa. Com a cabeça encostada às mãos postas, olhos fechados, corpo curvado, estava em transe. Via D. Miguel Almeida, na varanda do Paço da Ribeira, arrebatando o povo de Lisboa aos gritos por Portugal e por D. João, a multidão em fúria. Via D. Francisco de Melo e D. Jerónimo de Ataíde, de espadas desembainhadas, dando estocadas a eito, o rebuliço de passos e gritos pelos corredores e salas e o sobressalto das buscas indagando do paradeiro da duquesa de Mântua e de Miguel de Vasconcelos. Via cada vez mais gente gritando por Portugal, os encontrões de muitos a galgarem a escadaria e, na demência em que tudo se afundara, um bergantim tranquilo atravessava o Tejo e gaivotas calmas adejavam sobre Lisboa.
De súbito, empertigou-se, olhos abertos, pálida, e disse em voz alta:
– Apanharam-no!
João agarrou-lhe o braço com força e sussurrou, censurando-a:
– Luísa?! Controla-te, pelo amor de Deus.
– Eu sei, eu sinto que acabaram de o matar – respondeu, com a voz quase apagada.
– Quem? Quem?
– Miguel de Vasconcelos.
O duque apertou-lhe a mão com força e suplicou:
– Silêncio, minha querida. Peço-te por tudo. A missa está a terminar.
O sacerdote procedia à bênção final, inquieto, dirigindo o sinal-da-cruz ao casal, que estremecia na varanda ducal.
– Benedicat vos omnipotens Deus, Pater et Filius, et Spiritus Sanctus
Os crentes responderam:
– Amén.
– Ite, missa est.
E a capela, em coro, agradeceu:
– Deo gratias.
Efigénia Pé de Galinha não conseguia esconder a perturbação que a atormentava desde manhã. Durante a noite, acudiram-lhe pesadelos ruins, iguais a tantos outros que ao longo da vida lhe envenenaram o sono e os dias. As imagens dos cavalos assustados, correndo à desfilada nos campos de Alcácer Quibir, regressaram dos recônditos da memória para galopar dentro dela durante todo o sono. Tantas vezes se repetiram os devaneios dos pesadelos, desde esse dia em que o Diabo foi dono do mundo, que já não lhe deveriam causar incómodo, e não havia vez alguma que viessem ter consigo, ao presente, sem sentir a mágoa a escorrer do coração.
Porém, nesse sábado, a negritude que sentia na alma, quando acordou, foi invadida pelos raios brilhantes de sol que despontavam sobre as colinas de Vila Viçosa, e estremeceu. Desconfiava de que tal sensação era um aviso bem maior que recebia das almas penadas que deambulavam pelo mundo à espera de recolhimento. Talvez fosse a morte que se anunciava. O desfecho final, que ela esperava com impaciência desde o dia em que deixara de ser menina e renegara Deus.
Aquecia as mãos engelhadas na lareira quando bateram suavemente à porta do casebre. Olhou, intrigada, mas não se mexeu. Quem poderia ser que assim batia? Contavam-se pelos dedos de uma só mão as pessoas com quem falava durante um ano, dos muitos vividos. Todos fugiam dela com medo de alguma maldição ou de qualquer mau-olhado. Seria uma alma ou o Anjo da Morte? Ao silêncio dela seguiu-se novo batimento na porta e, desconfiada, perguntou, agressiva:
– Quem está aí?
Levantou-se, cambaleante. Uma estranha dor no peito obrigou-a a respirar fundo antes de abrir. Era uma jovem de olhar límpido e cabelo negro.
– É a D. Efigénia, não é verdade? – a voz era cristalina e doce.
– Que queres daqui? – perguntou, desconfiada e surpreendida com a beleza morena da rapariga.
– Chamo-me Coralina. Foi a senhora duquesa quem me encorajou a que viesse falar consigo.
Protegeu os olhos do sol, com a mão na testa, procurando observá-la melhor. A dor no peito persistia, como se lhe doesse o coração, e, desconfiada, em vez de convidar Coralina a entrar foi Efigénia quem saiu.
O sol começara a aquecer e, pelas encostas mais expostas dos montes em volta, a geada desaparecia aos poucos e aquele ameno calor confortou-a.
– O que quer a tua duquesa de uma pobre velha como eu?
– Não quer nada.
– Então, porque vieste aqui?
Coralina mordeu os lábios. Não sabia como abordar o assunto e Efigénia olhava-a com tal rispidez que ela embatucou.
– Perdeste a fala?
– Contou-me a minha ama que meu pai veio de um lugar distante. Ainda era menino e passou-se muito tempo desde então. Foi a senhora quem o trouxe.
A velha levou a mão ao peito, aflita, pois arfava de ansiedade ao ouvir a moça falar.
– Terão chegado acompanhados de um pombeiro, também ele perdido durante muito tempo por terras de África, que se chamava Crisóstomo.
– Crisóstomo? Crisóstomo!!!
Uma figura translúcida e longínqua surgia-lhe na lembrança como se fosse iluminada por relâmpagos. Um rosto de homem que lhe sorria e a amparava.
– Tudo se passou no tempo da senhora duquesa D. Catarina, de quem a senhora foi criada de cozinha. E chamava-se, nessa altura, Efigénia do Abegão.
A mulher olhava-a em profundo estado de exaltação.
– Quem és tu?
– Sou filha do vosso filho, a herança que lhe ficou de Alcácer Quibir.
Os gritos saíram estridentes, enlouquecidos, como se as palavras lhe queimassem o peito.
– Não tenho filhos, nem tenho heranças. Apenas uma ferida que não se fecha na alma desde esse dia em que todos morreram. Olha para mim, olha. Sou gente? Sou pessoa? Não. Mil vezes, não. Apenas um esqueleto descarnado que não sabe o valor de um sonho e passou por aqui, penando, à espera de sossego numa sepultura. Como pode esta miséria humana ter filho e ter herança? De África trouxe um deserto dentro de mim e nada mais.
Deixou que ela sossegasse o estado de agitação em que delirava. Muito deveria ter sofrido aquela criatura e uma estranha compaixão apoderou-se de Coralina. Quando a sentiu mais serena, continuou:
– A senhora duquesa recolheu Crisóstomo e o menino que trazia nos braços. Foi ele quem lhe contou, antes de morrer, o que vocês passaram em África e as maldades que lhe fizeram. O seu filho cresceu no Paço, fez-se homem e casou. E eu estou aqui!
Puxava os cabelos em aflição, procurava arrancar a roupa do corpo, o rosto transfigurado parecia soltar chispas e apenas se ouviam roncos e palavras incertas. Coralina hesitou. Temia que a história que narrava se transformasse no óbito da velha.
– D. Efigénia...
– Não fales mais. Não fales mais. Só podes ser um fantasma que se levantou do fundo dos tempos para me martirizar.
– A senhora é minha avó – murmurou mansamente.
Efigénia perdeu a força e cambaleou. Coralina segurou-a, ajudando-a a sentar-se no mocho de madeira encostado às tábuas que faziam de parede. E sentou-se a seu lado. Ficaram as duas em silêncio a saborear o calor suave do sol.
A velha mergulhou num torpor feito de estremecimento. Coralina sabia que tinha de ir até ao fim e recomeçou a contar o que lhe faltava dizer. A avó dava sinais de maior acalmia. Talvez do cansaço, pensava a rapariga. Porém, Efigénia rememorava as palavras da neta, revivendo momentos desse tempo longínquo que ela lhe trazia, de novo, até ao casebre, e uma névoa dissipava-se aos poucos na sua memória já endurecida pelos anos. Descortinava fragmentos de imagens que lhe chegavam nos pesadelos, mas dos quais não se recordava quando estava desperta. Como se fossem relâmpagos de sensações contraditórias a cruzarem, rápidos, uma enorme trovoada.
Quando Coralina terminou, a velha não teve qualquer reacção. Continuava fechada, olhar pregado no chão, tão imóvel que, se não estivesse sentada, dir-se-ia ter morrido.
Por fim, no silêncio daquele encontro tardio junto ao velho casebre, que ficava no cimo da última colina donde se via Vila Viçosa, duas enormes lágrimas escorreram pelas faces de Efigénia Pé de Galinha.
Coralina comoveu-se ao vê-la assim. Estendeu a mão sobre a mão dela e acariciou-a. Correspondeu, apertando-a contra a sua e levou-a aos lábios para a beijar. Tremeu quando a rapariga lhe retribuiu o beijo na mão encarquilhada e outras duas lágrimas desceram pelas rugas do rosto da anciã. Não tinham mais nada para dizer. Apenas receber o calor das mãos dadas, o qual aquecia a geada que se desvanecia no peito de cada uma. Depois, Coralina encostou a cabeça no ombro da avó e ficaram-se sem palavras. Quietas e mansas.
Não se aperceberam de que um pombo pousara no telhado, observando Coralina. Com um pedaço de papel enroscado numa pata, Pirilampo olhava com alegria o reencontro com a sua menina.
O NASCIMENTO DE UM REI
Entretanto, na vila, vivia-se um acontecimento estranho. Toda a gente olhava para o céu! Pelas ruas corria a vozearia de que, até o senhor duque esperava, D. Sebastião chegaria naquela manhã de geada e sol. Que ele próprio não largava a janela e ordenara a todos aqueles que trabalhavam no Paço que ficassem à espreita, dando o alerta quem visse surgir o Desejado.
A novidade corria de boca em boca e os frades agostinhos saíram do convento para levantar os olhos ao céu. No castelo, as sentinelas descuravam a chegada do inimigo por terra, vigiando o espaço. As tabernas esvaziaram-se e as ruas estavam enxameadas de gente procurando adivinhar o regresso do santo rei. O burburinho era tal que chegou aos ouvidos do duque. Incomodado, ele próprio foi espreitar de uma das varandas do Paço. Foi o pretexto para que os mercadores e a gente que fazia compras no Terreiro confirmassem que era verdade. D. Sebastião estava na iminência de regressar e, sendo pelo ar, só havia uma explicação: Deus escolhera aquele cantinho do Alentejo para realizar o milagre há tanto tempo esperado. Um turbilhão de conversas anónimas, dominadas pelo espanto, comentava o extraordinário acontecimento.
– Como pode um homem vir pelos ares? Só os pássaros voam!
– Os pássaros e os mosquitos.
– É trazido pelos anjos. Só pode ser.
– Sim, lá isso. Os anjos têm asas.
– Mas quem já viu um anjo para acreditar nisso das asas?
– Toda a gente sabe que os anjos têm asas.
– Pode vir num daqueles cavalos que as têm.
– Acabaram. Isso era antes de a Espanha governar o Reino.
Luísa de Gusmão pedira ao marido que suspendesse as recepções e a dispensasse do almoço com os convidados. Não conseguia disfarçar mais o desespero e não suportava escutar conversas banais à sua volta. O pombo perdera-se ou não chegara a partir e Sebastião continuava «poisado» no beiral do pombal.
– Será que Pêro de Mendonça se esqueceu de enviar a mensagem? Estará preso? Morto?
A duquesa andava em desvario pelos aposentos como uma loba enjaulada e, em cada volta que dava, ia à janela espreitar o pombeiro. De súbito, estacou, aflita:
– Será que o mataram? João!? Será que o alcaide morreu?
D. João não partilhava aquele rodopio, nem a exaltação da mulher. Instalara-se numa cadeira, com a angústia da espera espelhada no rosto, mas paciente.
– Talvez o pombo se perdesse ou fosse apanhado por um estranho. Ou podia até ter morrido.
– E se tudo falhou? – ripostou ela, ansiosa.
– Se falhou, saberemos ainda hoje, quando as tropas espanholas entrarem por aqui dentro para nos prenderem, sob a acusação de traição ao meu primo Filipe.
O conde-duque de Olivares não vai perder a oportunidade de destruir a única fonte em Portugal que alimenta a ideia de uma rebelião contra a Espanha.
Luísa de Gusmão enfrentou-o, indignada.
– E tu dizes isso com essa calma? Não fazemos nada? O que vai ser dos nossos filhos?
– Não lhes farão mal. Têm sangue dos Medina Sidónia e não vão afrontar a Casa dos teus pais. O mais certo é enviarem-nos para Sanlúcar de Barrameda a fim de que os avós tratem da sua educação.
– Este homem não existe. O Reino pode estar a agonizar ou desfeito. Pode estar livre da Coroa castelhana. Ninguém sabe se aconteceu uma mortandade em Lisboa, muito menos se cantam vitória pelas ruas, e tu ficas sentado à espera, com paciência de raposa.
– Se eu desatar a correr pela sala, gesticulando e levando as mãos à cabeça, como tu, ficamos a saber se o golpe resultou ou não resultou? Se acreditas nisso, eu faço.
Levantou-se num pulo e começou a imitar a duquesa, exagerando os gestos de desespero. Passado algum tempo, parou, colocando a mão em concha por detrás da orelha.
– Olha! Afinal não resultou.
Luísa não conseguiu evitar o riso ao ver-se assim, tão atabalhoadamente caricaturada, que correu para ele, estreitando-o num abraço.
– Desculpa-me. Não passo de uma tonta. Estou a sofrer tanto, João.
– Estamos os dois, minha querida. Embora cada um à sua maneira – respondeu, beijando-lhe os cabelos.
– É terrível esta espera.
– É a paciência que forja o carácter para suportar o sofrimento. É preciso domesticar o espírito para que não doa tanto.
Porém, Luísa desesperava. Assim como lhe acendia a irritação a persistência imóvel de Sebastião, que continuava a vigiar os céus. Respirou fundo e, recuperando a pose ducal, declarou gravemente.
– Muito bem! É preferível esperar o pior para que a alegria da vitória saiba a mel. Se Deus decidiu por Filipe, que assim seja. Morremos juntos. A teu lado entreguei-me à vida, contigo estarei disposta a entregar-me a Deus.
– Ainda é cedo para falar de morte, D. Luísa de Gusmão. Não voltemos a esse transtorno que só te desgasta e não precipita a notícia que tanto desejamos. Até lá, é rezar para que nada de mal tenha acontecido aos nossos amigos.
A duquesa correu novamente para os seus braços.
– Gostava tanto de ser como tu.
– És melhor do que eu, minha querida. És o verdadeiro sol desta casa.
– Sou uma birrenta que ferve em pouca água, sem jeito nem habilidade para outra coisa que não seja atormentar-te e atormentar quem me rodeia.
João de Bragança sorriu com doçura e afagou-lhe o rosto.
– Também estou preocupado, embora com uma maneira diferente de encarar este momento. Não podemos fazer nada. De certeza que aconteceu um mal-entendido qualquer e o pombo não regressou. Se Deus quiser, tudo terá corrido bem.
– Percebo agora a tua prudência. Isto é um verdadeiro golpe de gente insensata, quase impossível. Nunca se viu em parte alguma do mundo, quarenta homens fazerem frente ao Reino mais poderoso que existe e levá-lo de vencida.
João tornou a sorrir.
– Agora, estás parecida comigo nas preocupações. Talvez nunca se tenha visto coisa assim, mas a verdade é que os portugueses são os artesãos do impossível. Reparaste como resistem à fome? Comem espargos e cardos arrancados do chão. Querem humilhá-los com impostos como se fossem animais e revoltam-se. Quem diria que seria um povo assim, humilde, pobre, cansado, longe dos países ricos, que faria nascer homens com talento formidável para desbravar mares e ir até onde ninguém imaginara ser possível? Não chegou a uma dúzia de capitães, Luísa. Se os contares um a um, foi esse punhado de homens que pilotou as armadas portuguesas que chegaram ao Bojador, ao cabo da Boa Esperança, a Ormuz, à índia e ao Brasil.
Agora, era ele quem espreitava Sebastião, que continuava, impávido, à espera do Pirilampo. Depois continuou:
– Somos os poetas do impossível com um talento raro para transformar o sofrimento em vitórias. Aconteça hoje aquilo que acontecer, este dia será a celebração da fome de liberdade de um Reino que afrontou todos os medos e monstros marinhos. Só os injustos e os traidores deixarão de lembrar a coragem desse punhado de fidalgos e do povo de Lisboa contra o domínio estrangeiro.
– E a tua! – corrigiu Luísa.
– A História é mais generosa para com os reis e para com os povos do que com duques e marqueses. Pouco importam.
Para desanuviar a conversa, comentou, bem-disposto:
– Sabes que toda a gente, desde o Paço ao Castelo, passando pelos conventos e pela vila, está a olhar para o céu?
– A sério? Porquê?
Correu à janela que dava para o Terreiro e, na verdade, dezenas de pessoas deambulavam com a cabeça no ar. Até os frades apontavam para uma nuvem qualquer.
– Desconfio de que foi a nossa gente que provocou o alvoroço. Sebastião está sentado no beiral do pombal e muitos devem ter acreditado que a mensagem esperada era outra coisa.
– Que outra coisa pode ser? Ele é o nosso pombeiro.
– A chegada de D. Sebastião. É o que se murmura nas ruas.
Não causou o efeito que ele esperava retirar desta ingenuidade colectiva. Luísa ficou pensativa, olhando com solenidade o quadro do rei desaparecido em Alcácer Quibir, pendurado naquela sala.
– Talvez seja verdade – murmurou, numa entoação enigmática.
– Luísa, por favor...
– Ou talvez seja o fim dos reis de Portugal. O fim de todos os sonhos – e, mudando de tom, perguntou: – Se esse pombo-correio não chegar quando saberemos o que se passou em Lisboa?
– Não sei. Uma viagem normal seriam dois dias. O que não é o caso. É preciso alento para tão grande espera. Vou acabar com esta tontice. Se Sebastião continuar naquela pose, não haverá alma em Vila Viçosa que não fique especada a olhar o céu, descobrindo em cada pássaro e em cada nuvem a chegada de o Desejado.
Tinha de inventar uma desculpa qualquer para desfazer as horas de encantamento que a vila estava a viver, embora reconhecesse a forte impressão que causava a crença tão profunda no regresso de um rei que dificilmente poderia estar vivo. Era o sintoma maior do descontentamento e da desesperança. As rebeliões que sacudiam o reino, os protestos espontâneos que rebentavam sob qualquer pretexto fútil, mostravam simples sinais da revolta. A espera de o Desejado consubstanciava a verdadeira vontade de independência. De certa forma, se houvesse uma alma comum a todos os homens, a mão invisível que a unia, não duvidava D. João, era uma fome antiga de soberania e honradez.
– Podes descer – ordenou o duque a Sebastião, quando se aproximou do pombal.
– O Pirilampo não voltou. Não sei porquê? Era o mais seguro de todos eles.
– Talvez ainda não tenha partido. Esperava novas sobre a escritura de uma propriedade. Deve estar atrasada. Vá, vai tratar das tuas coisas e fala aos teus companheiros acerca de aquilo de que estou à espera. Não sei qual foi o disparate que alguém inventou que mais de metade do povoado está a olhar para o céu. Que eu saiba, Deus ainda não faz escrituras de propriedades.
Foi a piedosa mentira que lhe veio à cabeça para quebrar o encantamento.
– E se ele volta?
– Passas pelo pombal de vez em quando. Se o teu Pirilampo surgir, traz-mo.
Não demorou muito para que os ânimos esfriassem e a amargura regressasse com maior intensidade. Qualquer ferida na esperança faz doer fundo na alma e, aos poucos, conforme se ia sabendo que dos céus se aguardava um pombo-correio com novas sobre uma escritura, dissolveram-se os grupos, as pessoas partiam cabisbaixas e a tarde recuperou a tranquilidade de todos os dias, apenas cortada por qualquer pregão de um mercador e o toque melancólico dos sinos das igrejas.
Luísa observava com pesar a dispersão das gentes. Era como se um sonho tivesse terminado e a rotina eterna dos dias continuasse presa a um irremediável fatalismo. Foi então que reparou em Sebastião, que falava com um frade junto às obras no Convento dos Agostinhos. Viu-o levar as mãos à cabeça e largar a correr na direcção do Paço.
– Meu Deus! Será que....
Ficou tolhida pela surpresa e gritou:
– João! João!
O duque surgiu, curioso.
– O que foi?
– O Sebastião estava no Terreiro e, de repente, começou a correr para aqui. Anda. Ele descobriu qualquer coisa.
Saíam, apressados, na direcção da escadaria, quando um dos seus escudeiros lhes interrompeu o passo. Atrás dele, estava Sebastião, deveras nervoso e ofegante.
– O Sebastião pede para falar com Vossa Senhoria.
– Sim, sim. Podes sair.
O escudeiro estranhou a ordem, pois não se recebiam servos no Paço como se fossem fidalgos, e afastou-se algo despeitado com a descortesia do duque.
– Que se passa, Sebastião?
– Acho que cometi um erro, meu senhor. Um erro que não tem perdão. O Pirilampo não voltou. Passei toda a manhã à espera e a pensar no que teria acontecido e só agora dei pelo engano.
– Mas que engano? Não poderá ter sido morto ou ficado perdido num pombal qualquer?
– Ninguém toca naquele pássaro. É mais forte e mais esperto do que muitas pessoas que conheço. Quando foi largado, não teria outra coisa no sentido a não ser voltar aqui.
– E então? Qual é o teu erro? Disseste-me que era o melhor pombo-correio que tínhamos.
-E é.
Luísa não percebia nada da conversa e estava demasiado impaciente para tanto rodeio, pelo que interpelou directamente o rapaz.
– Qual foi o teu erro, Sebastião?
– Tenho deixado a Coralina tratar dele. Percebe-se como gostam um do outro. O Pirilampo até vai poisar no ombro dela. Ganharam uma grande afeição.
– Mas isso não explica que não tivesse regressado. A Coralina vive aqui no Paço – respondeu D. João sem perceber a aflição do pombeiro.
– Pois é. Mas hoje não está cá. O Pirilampo bem pode tê-la visto do ar, os pombos têm olhos que só as águias se lhes podem comparar, e acabado por poisar junto a ela.
O duque estranhou a explicação.
– A Coralina não está cá? Eu vi-a antes de começar a missa.
Luísa de Gusmão soltou um grito.
– Eu sei onde ela está!
Os dois homens olharam-na, pasmados.
– Fui eu quem a incentivou a ir.
– Onde? – quis saber o marido.
– Foi conhecer a avó. Ela está com a velha Efigénia Pé de Galinha.
– A bruxa? – perguntou o duque, tal era o seu espanto.
– Não sei se é ou não bruxa. Sei que é a avó da Coralina. Corre lá, Sebastião. Corre e vê se o pombo está com ela.
O jovem partiu, apressado, sem fazer qualquer vénia, e João de Bragança voltou-se para a duquesa em tom de censura:
– Como pudeste fazer tal coisa, Luísa? Era um segredo que deveria ficar guardado entre nós. Nem os meus avós, nem os meus pais partilharam isto com alguém. Foi necessário chegar aos teus ouvidos para ires atormentar a pobre rapariga.
Luísa reagiu com bravura.
– Porquê? Porque Efigénia desprezou a Casa que a mandou para uma batalha estúpida que provocou a sua humilhação e ela se recusou a continuar a servir quem tanto mal lhe fez? Porque dizem as más-línguas que ela se tornou bruxa? É um segredo que não passa de um disparate desumano, João de Bragança. É o melhor conforto que pode ter uma velhota que tanto sofreu, encontrar a neta antes de morrer. Assim como é importante para a Coralina saber que não é obra do espírito santo que habita na Casa de Bragança e tem memória. Foi um disparate esconder isto durante tantos anos.
– Não foi disparate algum, mas sim o dever de proteger uma criança que Efigénia trouxe consigo e abandonou. Porque vinha desorientada pelo martírio que passou.
– Ou porque estava louca.
– Seja como for. Têm todo o direito de se conhecer. Só Deus sabe como seca a alma de tanta gente por falta de um abraço. É um acto de caridade pô-las frente a frente.
No fundo, o duque compreendia as razões invocadas pela esposa. Porém, agora que se abria a possibilidade de o Pirilampo estar perto, não conseguiu dissimular a angústia.
– Neste momento, pouco importa. Fizeste, está feito. O único segredo que vale a pena descobrir é o paradeiro do pombo.
Coralina não sabia quanto tempo passou encolhida no colo da avó. Era um ninho quentinho e doce, que lhe despertava recordações longínquas, com um calor especial, que só podia ser o regaço da sua mãe quando ainda era menina. Até as mãos trémulas de Efigénia, afagando-lhe os cabelos, sabiam a ternura esquecida. E a velha deixara de ter frio. Aquela geada antiga que lhe apertava o coração, mesmo nos dias mais quentes do Verão, ia-se desanuviando conforme acariciava a neta, e as memórias surgiam mais claras na sua mente esvaída de tanto andar perdida.
– Não sei quem é o teu avô – disse por fim. – Não sei.
– Ele fugiu? – quis saber Coralina.
– Não. Por mais que procure lembrar-me, e sabe Deus quanto procurei!, só vejo cavalos a correrem destrambelhados pelo campo de batalha, sem cavaleiro, os gritos de Crisóstomo de faca na mão, a correr sobre um deles, que morreu perto de nós, para tirar-lhe carne, e mais cavalos espavoridos, e uma nuvem enorme, terrível, cheia de gritos de dor, de raiva, de urros, de tiros, que envolvia a batalha. Embora estivesse um dia quente, sentia frio. Que foi crescendo, crescendo, até ver afastar-se a nuvem com D. Sebastião no seu seio. O medo era tanto que deixei de ser eu e passei a ser só medo. Tão grande e tão ruim que nunca mais dele me libertei – fez uma pausa e sorriu com tristeza. – Sei que era bonita quando parti e muito feia quando cheguei. Às vezes, nos pesadelos, surge Crisóstomo a amparar-me e eu tenho a barriga de mulher grávida. Depois, aparecem uns homens terríveis, feitos à imagem do Diabo, que se atiram a mim aos roncos, e acordo assustada sem saber se aquilo que vejo aconteceu ou é apenas o Malvado a provocar-me. Noutras noites, sinto dores e oiço um bebé a chorar. Corro para ele, pois é meu filho e está em aflições, e, por mais que corra, nunca consigo agarrá-lo e abraçá-lo contra mim. Como agora faço contigo.
– Muito deve ter sofrido, minha avó.
Meneou tristemente a cabeça.
– Não sei. Acho que morri naquela batalha.
Coralina abraçou-a com ternura.
– Agora vai ser diferente. Eu estou aqui.
– Não vens tarde, mas já entardeço. Tivesse sido Deus justo e perfeito, como eu acreditava, e não me roubaria a vida, nem te afastaria tanto tempo da minha pobre pessoa.
Subitamente, ouviu-se um bater de asas e Pirilampo poisou no ombro de Coralina. Olhou-o com surpresa.
– Pirilampo! Que fazes tu aqui, meu príncipe? Vieste conhecer a minha avó?
Afagou-lhe a cabeça e a ave aconchegou-se. Foi Efigénia quem reparou na pata.
– Ele traz uma mensagem.
A rapariga ergueu-se e virou-o de barriga para cima.
– Meu Deus! Devias ter ido para o pombal. Esta mensagem deve ser para o senhor duque.
Beijou apressadamente Efigénia Pé de Galinha.
– Eu voltarei, avó. Tenho de levar o Pirilampo ao Paço.
E saiu a correr pela colina abaixo. Foi então que reparou que, pelo carreiro, na sua direcção, vinha Sebastião, agitando os braços. Pirilampo trocara o pombal pelo colo de quem lhe fazia festas e deveria ser grande a confusão que ia no palácio para o pombeiro a procurar com tanta aflição.
Na verdade, Luísa estava exausta. Após tantas horas de tensão e ansiedade, caiu de joelhos perante o oratório. As pernas fraquejaram depois de decorrerem lentamente horas e mais horas, alimentando o desespero que abria a imaginação às mais negras previsões. Já não esperava nada de bom e implorava a Nossa Senhora da Conceição que acabasse de vez aquela penitência tão dura.
Rezava com o ouvido à escuta. Esperava ouvir cavalos a chegarem, carregando as tropas de Filipe que os viriam prender, e crescia dentro de si um poderoso sentimento de culpa.
Deveria ter sido a sombra da prudência de João. Acautelado os interesses dos filhos. Daí a pouco, ficariam órfãos graças à leviandade com que incentivara o marido para aquela louca aventura congeminada por um bando de quarenta fidalgos, despeitados com Castela por perda de privilégios e rendas. Em vez de tanto estímulo, deveria ter apreciado a temperança de D. João. Protegido o imenso património e os favores acumulados pelos honrados ascendentes e que tornaram o ducado de Bragança numa das maiores potências da Ibéria. Se fosse prudente, teria escrito ao pai. Mesmo que não lhe contasse da conspiração, preparando o terreno para receber os netos que iriam ficar órfãos.
Culpava-se com crescente amargura e rezava à Nossa Senhora da Conceição, a Nossa Senhora da Caridade, a todos os santos e beatos, implorando perdão pela soberba e piedade para com seu esposo e amor eterno da sua vida. Fez o sinal-da-cruz e ergueu-se com dificuldade, tal era o cansaço. Quando saiu na direcção da Sala dos Tudescos, viu o marido encostado à janela. Segurou-lhe a mão.
– Estou pronta.
– Dá tempo ao tempo – comentou com brandura, deixando escapar um sorriso.
– Estava a ver as pessoas que restam no Terreiro. Já não olham para o céu. Desistiram de esperar por D. Sebastião.
– Achas que é um sinal? – perguntou, inquieta.
– Não. Simplesmente cansaram-se.
– Tinhas razão. Nem a maior audácia poderia levar quarenta homens a derrotarem o rei de Espanha.
– Não sei. A falta de notícias só significa que estão atrasadas. Seja como for, em vez de ser um mau sinal, talvez haja motivos para alguma esperança.
– Porque dizes isso?
– Porque Margarida de Sabóia também tem pombos-correios para comunicar com os seus homens de confiança. Há centenas de anos que estas aves são usadas para vencer o tempo. São mais velozes do que o poderoso galope do mais rápido cavalo do mundo.
– E então?
– Mesmo que desconfie dos militares que estão aqui, já teria havido tempo de avisar a guarnição de Elvas ou de Badajoz para nos vir prender.
Luísa mordeu os lábios, pensativa. Na verdade, qualquer dos dois povoados distava seis a sete léguas de Vila Viçosa. Pouco mais de uma hora para soldados do Corpo de Ordenanças fazerem o percurso. Talvez D. João pensasse de forma razoável e quis acreditar que ele estava certo. Porém, nem essa ténue hipótese lhe deu alento. Nem de Coralina e Sebastião havia sinal. Ainda por cima, olhava os passantes no Terreiro ou, lá ao fundo, na estrada de Lisboa, e era tudo tão normal, rotina igual à de todos os quotidianos, a mesma tranquilidade, o mesmo passo calmo das parelhas de bois, o que se tornava exasperante para quem, como ela, tremia de impaciência.
– O senhor deão disse alguma coisa?
– Recolheu aos aposentos. Ele e os poucos fidalgos que sabem. Não vale a pena expô-los a perigos maiores. Não quero arrastar mais inocentes para a desgraça, caso em Lisboa as coisas não tenham corrido bem.
Foi nesse instante que Luísa viu, ao longe, Coralina e Sebastião a correrem na direcção do Paço.
– Olha! Olha! Vêm ali e trazem o pombo. Graças a Deus! Vamos ao encontro deles.
– Espera – ordenou, segurando-a. – Eles não demoram.
Ela agarrou-se à janela para resistir ao impulso e escapou-lhe o comentário nervoso.
– Não sei o que se passa dentro de ti. Se tens nervos de ferro ou é apenas o sangue gelado.
João achou graça ao desabafo e gracejou:
– É só paciência. Apenas paciência.
O casal aproximava-se, afogueado, ora correndo, ora em passo rápido, quando, subitamente, no lado esquerdo do Terreiro, vindos da rua de Lisboa, surgiram quatro cavaleiros, em galope desenfreado, de tal forma que fugiam os mercadores e as pessoas à sua passagem.
Luísa de Gusmão agarrou-se com força ao braço do marido e gritou:
– Jesus, Maria, José!
João cravou as unhas na madeira da janela, tal era a tensão, procurando descortinar quem lá vinha e não conteve o grito quando os reconheceu:
– São Pêro de Mendonça e Jorge de Melo!
Abriu a janela, esquecendo todos os cuidados, e debruçou-se para eles, que, entretanto, se apeavam, entregando as rédeas aos dois escudeiros que os acompanhavam. Olharam para cima, fizeram uma saudação com a mão e sorriram.
João apertou com emoção o braço de Luísa e murmurou:
– Vencemos, meu amor. Portugal renasceu.
Ouviram passos apressados e, instantes depois, os dois fidalgos, de cabeça descoberta, entraram. Não precisavam de falar, pois a comoção era tão grande que as trocas de olhares disseram tudo.
O alcaide de Mourão procurava articular palavras e ambos ajoelharam, acorrendo D. João:
– De pé, meus amigos. De pé, por amor de Deus.
D. Jorge de Melo percebeu a emoção de Pêro de Mendonça e adiantou-se:
– Minha senhora, meu senhor, os mais bravos dos fidalgos e o povo de Lisboa pediram-nos que vos transmitíssemos esta mensagem. Que termineis os trabalhos que iniciámos esta manhã – pigarreou para aclarar a voz embargada e continuou: – Em Lisboa, encontra-se um trono livre à vossa espera. O trono de D. Afonso Henriques e de seu filho D. Sancho. O trono de Dinis e de Isabel, de Pedro e de Inês, de D. João e D. Filipa de Lencastre. Do Príncipe Perfeito e de D. Manuel. Que pertenceu a D. Sebastião. O trono do nobre Reino de Portugal. A melhor nobreza e o mais recto dos cleros, os artesãos e mercadores, os capitães e marinheiros que trazem o mar português no sangue, do mais nobre ao mais humilde, pedem-vos que o aceiteis por direito e por justiça. Senhora D. Luísa e senhor D. João de Bragança, entregamos nas vossas mãos os destinos de um país liberto que de vós precisa para recuperar a dignidade perdida e a honra enxovalhada.
As lágrimas de alegria cortaram-lhe a voz e Pêro de Mendonça veio em seu auxílio:
– É tão grande a alegria que corre por Lisboa, minha senhora e meu senhor. Por todos os lados se grita o vosso nome, há festa em todas as praças, repicam os sinos das igrejas e partiram mensageiros para todo o Reino, enviando a boa nova. Apesar do cansaço, perdoai-me a vaidade. Permiti que em meu nome e de todos aqueles que, por mais desgraçadas que tenham sido as suas vidas, nunca desistiram de ser portugueses, seja o primeiro a saudar-vos: que Deus ilumine o vosso caminho, que é o nosso caminho, meu rei e minha rainha. Que Deus vos guie os passos, D. João IV, rei de Portugal!
Sebastião e Coralina, que, entretanto, haviam chegado esbaforidos, com o Pirilampo nas mãos, ouviram as últimas palavras do cavaleiro e viram o amo abraçá-los, enquanto Luísa de Gusmão procurava um apoio para não perder o equilíbrio.
Coralina olhou interrogativamente para a duquesa, que respondeu com um gesto afirmativo e um sorriso. O par recuou, respeitoso, levando a ave consigo. Sabiam agora dos cuidados do senhor duque. Pirilampo trazia na pata a notícia de Portugal ressuscitado.
– Os nossos? Morreu alguém? – perguntou, ansioso, D.João.
– Todos sãos e salvos, Majestade. Apenas morreu Miguel Vasconcelos e um oficial da guarda da duquesa de Mântua, e da varanda do Paço o nosso D. Miguel de Almeida exortou o povo de Lisboa a saudar o novo rei D. João IV. Foi um delírio, senhor – respondeu D. Jorge de Melo.
– E ela?
– Tal como o previsto, quando se sentiu presa mandou a soldadesca depor as armas e a entregar-se sem luta. Nem um disparo do Castelo de São Jorge, nem um canhão de Belém e dos outros redutos da guarnição de Lisboa. Nem um! A senhora duquesa partirá, sob escolta, para Espanha.
– Bateu certo – concordou João e adiantou: – Filipe cometeu o grave erro de entregar a guarda de Lisboa a mercenários alemães e holandeses. Militares que se compram e vendem não morrem por um ideal.
– Graças a Deus! Temíamos tanto pelas vossas vidas. Não deve haver outro dia tão terrível na existência de cada um! – exclamou Luísa de Gusmão.
– Perdoai-me contrariá-la, Majestade, mas desconfio de que este é apenas o primeiro dia terrível das vidas de todos nós – profetizou D. Jorge de Melo.
– Quais são as vossas ordens, senhor? – perguntou o alcaide de Mourão.
– Refresquem-se e comam alguma coisa, que devem estar famintos. Decidiremos depois o que fazer.
Nesse momento, ouviu-se um grito vindo da rua:
– Viva D. João IV, rei de Portugal!
Ao grito respondeu outro grito:
– Viva D. João IV, rei de Portugal!
As duas aclamações replicaram como se fossem ecos da mesma voz e multiplicaram-se por dez, depois por cem, a seguir por mil. Ao Terreiro chegaram fidalgos e mercadores, esvaziaram-se os conventos dos Agostinhos e das Chagas, os sinos de São Bartolomeu dos Mártires tocaram a rebate, a criadagem do Paço saiu, aplaudindo o novo rei, o clamor da multidão encheu as salas e a alegria vibrava pelas ruas. Do Castelo vinham saudações e D. João pegou na mão de Luísa e disse-lhe:
– Vem! – e voltando-se para os dois mensageiros ordenou: – Venham connosco!
Dirigiram-se a uma das janelas para saudar a manifestação que se juntara à frente do Palácio. Ao vê-los, o barulho foi tal que mais parecia o rebentamento de uma onda enorme sobre uma praia descuidada, num ruído ensurdecedor de aclamação. Com os olhos marejados de lágrimas, o duque apontou para o castelo e tocou no braço da mulher.
– Olha!
Nos mastros da fortaleza, pela primeira vez depois de sessenta anos, a tremular ao vento, arriada que fora a flâmula dos Habsburgos, flutuava, alegre, imponente, a bandeira de Bragança livre, o farol que agora iluminava o futuro do Reino.
E, encostado à esquina mais afastada do Jardim da Duquesa, Laparduço chorava de emoção. Talvez não fizesse o negócio com a erva-dos-gatos, porém, tinha o privilégio de ver nascerem à sua frente os reis de Portugal.
ADEUS, VILA VIÇOSA!
O dia era de festa e de lágrimas. No Terreiro do Paço Ducal, junto à Porta dos Nós e nas bermas da estrada de Lisboa juntava-se o povo das redondezas para se despedir de Sua Majestade D. João IV, que deixava Vila Viçosa para ser entronizado como rei de Portugal. Não era mais uma saída do duque de Bragança. Durante anos e anos, os povos viram entrar e sair o seu pai, o avô, o bisavô, com a tranquilidade de quem parte para, depois, regressar. Agora, tratava-se de uma despedida. De um rei. E havia lágrimas de orgulho e de mágoa nos olhos de quem esperava dizer-lhe um adeus, e os pombos de Sebastião sobrevoavam os céus, atentos à partida do seu amo, em formação cerrada numa derradeira homenagem.
Coralina assistia entre a multidão a este adeus que todos temiam que fosse para sempre. De mão dada com Efigénia, que a rapariga conseguira arrastar até ali. A avó resistira e só aceitou o desafio quando soube que o duque era o novo rei de Portugal.
Misteriosa, segredou a Coralina:
– Só pode ter sido o outro que regressou de Alcácer Quibir. Vamos, minha filha. Quero vê-lo pela última vez.
Às portas do Paço tudo mudara. Eram vários os coches que se alinhavam e um terço do Corpo de Ordenanças aguardava, com os cavalos alinhados e em formatura, a saída de D. João IV, para fazer a escolta.
Vila Viçosa rejubilava com esta dádiva ao Reino. Fora o útero de um País que se reencontrava e procurava restaurar a memória ultrajada. Era naquele Alentejo crestado pela soalheira, castigado pelo sofrimento, resistente e insubmisso, que se forjara o homem que reconstruiria os caminhos da esperança, perdidos há sessenta anos, nas areias africanas.
Sebastião aproximou-se de Coralina e Efigénia, furando a balbúrdia que as envolvia.
– O povo parece que endoideceu. Nunca vi tanta alegria.
– E nós vamos ficar sem os nossos amos. Não consigo estar assim tão contente. A senhora duquesa, quer dizer, a rainha também vai?
– Acho que não. Talvez vá depois. Não mandaram carregar a bagagem dela.
– Ao menos não partem os dois – suspirou Coralina.
– E não vai ser tão cedo. Sua Majestade está a despedir-se dos cavalos um a um.
A rapariga não respondeu. Olhou o bulício em volta do Terreiro, aonde continuava a chegar mais gente, voltou-se para Efigénia e disse com gravidade:
– Avó, acho que ainda temos tempo.
A velha baixou o olhar em sinal de consentimento e Coralina avisou Sebastião:
– A gente já volta!
Puxando pela mão de Efigénia, abriu caminho entre a multidão entusiasmada, que esperava saudar o novo rei de Portugal.
João despedia-se agora de Luísa de Gusmão e dos filhos. A rainha brilhava de satisfação, embora uma névoa de preocupação lhe toldasse o olhar.
– Tem cuidado contigo. São muitos os perigos que te espreitam nesta jornada – segredou.
– Brevemente, estaremos todos juntos. Faz uma relação daquilo que deveremos levar daqui para a nossa nova casa, em Lisboa. O Paço da Ribeira tem de estar ao nosso gosto para que todos nos sintamos bem, e nestas paredes, nestas salas, estão pedaços da nossa memória, dos quais tenho desgosto de me apartar.
– Tratarei de tudo, meu querido rei. Vai. A Sala dos Tudescos está apinhada de fidalgos e clérigos que se querem despedir de ti e, lá fora, uma enchente de povo que não sabe se há-de aplaudir ou chorar de saudade a tua partida. És o mais amado dos homens, João de Bragança.
– E tu és o amor da minha vida. Obrigado por tudo, Luísa.
– Não agradeças os momentos que nos pertencem. Vivemos com tanta paixão que ambos devemos agradecer a Deus.
Abraçaram-se mais uma vez, um abraço intenso, emocionado até à raiz do coração.
– Até breve, minha querida.
– Até breve, meu amor e meu rei.
João IV dirigiu-se à sala, onde durante anos assegurara a cultura da corte e o poder da realeza vivera em letargia.
Nesse mesmo instante, de mãos dadas, Coralina e Efigénia entravam, vacilantes, na igreja. A velha tremia de emoção. Há muito que não pisava o chão sagrado de um templo. Encostava-se à neta para sentir um amparo que a mantivesse de pé.
Um sacristão, que se preparava para correr ao Terreiro, ficou espantado ao ver a bruxa, e gritou:
– Não pode entrar aqui. Ponha-se na rua!
Coralina gritou:
– Não se atreva a falar assim com a minha avó – gritou a rapariga.
Os gritos fizeram sair da sacristia um dos padres que também iam despedir-se do rei e que questionou:
– O que se passa?
– Senhor padre, é a minha avó que procurou toda a vida um sinal de Deus e que o encontrou. Quis vir agradecer a Nossa Senhora da Conceição! É pecado? Esta não é casa dos filhos de Deus?
O sacerdote era jovem. Não conhecia as famas heréticas de Efigénia e sorriu.
– Entrem. Esta é a casa de todos os fiéis.
Voltando-se para o sacristão, ordenou:
– Vai para o Terreiro. Eu já lá vou ter.
O homem saiu, apressado, e ambas caminharam lentamente na direcção do altar. Coralina ajoelhou e ajudou a avó a imitá-la. Olhou-a de soslaio e reparou que continuava de cabeça baixa.
– Avó, levante a cabeça. Está em frente à Virgem.
– Fui ovelha tresmalhada durante toda a vida. Reneguei-O.
– A misericórdia de Deus é infinita.
– E tu és o milagre que Ele fez para me mostrar o caminho de que fugi por medo e por raiva. Afinal, não me esqueceu.
– Esse tempo ruim passou. Avó, vamos rezar as duas ao nosso bom Deus! – segredou Coralina com doçura, beijando-lhe as rugas do rosto.
Efigénia ergueu, devagar, os olhos para o altar. Duas lágrimas de felicidade escorreram-lhe pela face e abraçou Coralina.
– Obrigado, Virgem Santíssima. Obrigado, meu Deus. Obrigado por me deixares morrer em paz. Depois de tanto martírio, este é o verdadeiro milagre de amor!
O sacerdote, impressionado com tanta fé, recuou silencioso até à porta e, depois, correu na direcção do Paço. Não queria perder a despedida do rei.
E tinha mesmo de se apressar. Apoiado no estribo do coche para melhor saudar a multidão, escutava uma ovação entusiasmada, lenços brancos a acenarem, gritos que ricocheteavam ecos nos edifícios em volta, alegria que crescia em vagas de entusiasmo conforme a escolta começou a andar e o cortejo partia.
– Viva, D. João IV!
– Viva Portugal!
– Viva Vila Viçosa!
O tumulto era ensurdecedor, que as salvas de honra disparadas pela artilharia do Castelo ainda mais empolgavam. Quando o coche passou junto ao Jardim da Duquesa, D. João viu, através da janela de Lisboa, Luísa, emocionada, que com os dedos lhe enviava um beijo. O rei respondeu com um sorriso.
Agarrada às grades que protegiam a janela, deixou que a emoção se desfizesse em lágrimas vendo o cortejo afastar-se. Ao olhar a aia com os filhos, limpou o rosto, deixando escapar um riso nervoso.
– Meu Deus. Isto parece ser um milagre!
Laparduço, que estava junto à janela, ouviu as últimas palavras de Luísa e, submisso, saudou-a:
– Deus salve Vossa Majestade. Para este dia ser mesmo o dia dos milagres, Vossa Majestade deveria ficar com a minha erva-dos-gatos para descansar depois de tamanhas canseiras!
Luísa reparou no atrevimento do mercador e sorriu.
– Tem razão. O vedor vai comprar a sua mezinha para as noites de insónia que por aí se adivinham. Vá ter com ele à Ilha do Paço.
Laparduço desfez-se em vénias.
– Deus ajude e ilumine Vossas Majestades! Viva o rei e viva a rainha de Portugal!
Luísa acenou, em jeito de despedida, e afastou-se da janela. Laparduço, à falta de melhor, abraçou-se ao Manjerico.
– Manjerico, meu burro do coração. Estamos salvos. Este é o dia dos milagres!
Francisco Moita Flores
O melhor da literatura para todos os gostos e idades