Biblio "SEBO"
"O verdadeiro tema (Satã), o único e o mais profundo de todos da história do mundo e dos homens, o qual todos os outros estão subordinados, continua sendo o conflito entre a crença e a descrença".
Goethe. Divã Ocidental-Oriental
Publicamos, hoje, uma análise do poema Ladainhas de Satanás, de Charles Baudelaire. Após o Romantismo Simbolista, que foi uma escola de arte declaradamente gnóstica, surgiram, na literatura mundial, vários autores que dedicaram poemas ao demônio, constituindo mesmo uma corrente satanista, que, de modo geral, é pouco conhecida pelo público não especializado. Ora, a estética defendida por essa corrente satanista, pretendia a inversão de valores morais e estéticos, inversão que vai dar origem à Arte Moderna, arte do feio e, como confessa expressamente André Breton, líder do Surrealismo, arte que só pode ser entendida através do fio condutor da Gnose (Cfr.André Breton, Manifestos do Surrealismo, ed. Brasiliense,São Paulo, 1985, p.231).
Les Litanies de Satan
(Charles Baudelaire)
1 O toi, le plus savant et le plus beau des Anges,
2 Dieu trahi par le sort et privé de louanges,
O Satan, prends pitié de ma longue misére!
3 O Prince de l’exil, à qui l’on fait tort,
4 Et qui, vaincu, toujours te redresses plus fort,
O Satan, prends pitié de ma longue misére!
(...)
As Litanias de Satã
(tradução de Guilherme de Almeida)
1 Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,
2 Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
3 Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,
4 E que, vencido, sempre te ergues mais brutal,
Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
(...)
Assim começa Baudelaire seu poema, que nos dispensamos de publicar por inteiro, por amor a Deus. É deste poema que pretendemos fazer uma breve análise, não apenas literária, mas mostrando sua ligações com uma concepção anti-católica ativa na literatura mundial, como também sua ligação direta com a Arte Moderna.
Toda literatura de um país tem uma grande obra como modelo e marco na história da língua. A Itália tem a Divina Comédia de Dante; a Espanha, Dom Quixote de Cervantes; a Inglaterra, a obra de Shakespeare; Portugal, Os Lusíadas de Camões, e etc. Porém, a literatura francesa é uma exceção. Não possui uma obra imortal, como as citadas, mas várias, e vários autores, quem sabe, menores. Talvez Baudelaire (1821-1867) possa ocupar o trono vago da literatura de sua língua, ainda que existam protestos e opiniões contrárias.
Baudelaire é um dos grandes marcos na literatura, porque é o "fundador" da poesia moderna, da "arte pela arte". Autor que recebeu muitas influências - que apenas parecem contraditórias, como de Swedenborg e Joseph de Maistre -, Baudelaire soube, através da arte dos versos, e apesar de suas crenças e idéias satânicas - ou talvez por isso mesmo - alcançar o reconhecimento do mundo.
Preliminares
O poema Les Litanies de Satan faz parte do quinto grupo de Les Fleurs du Mal. Os grupos do livro são: Spleen et Idéal, Tableaux parisiens, Le Vin, Les Fleurs du Mal - que dá nome à obra -, e Révolte et La Mort. Les Litanies está, portanto, no grupo de Révolte, que contém três poemas: Le Reniement de Saint Pierre (A negação de São Pedro), Abel et Caïn, e, o último, Les Litanies. A revolta é justamente contra Deus, e em todos os poemas podemos destacar blasfêmias, como: "Saint Pierre a renié Jésus...Il a bien fait!". Em Abel et Caïn, ele faz a inversão dos valores simbólicos dos irmãos. Abel, tradicionalmente, símbolo do bom filho, torna-se maldito; Caim, símbolo do mau filho, transforma-se em exemplo do bom filho, que o bom pai renega. O próprio título, Abel et Caïn em vez de Caïn et Abel, já é um indício da intenção do autor, já que, como se sabe, o nome de Caim vem em primeiro, não só porque foi o primogênito, mas porque ele matou Abel.
Assim, para tentarmos uma interpretação de Les Litanies, é preciso ter em mente a questão da inversão dos valores. Deus torna-se o diabo e vice-versa. Porém, antes, temos que buscar entender qual é a idéia que Baudelaire tem de Satã. O autor se opõe à concepção católica, baseada na Revelação e no pensamento escolástico, em que Satã é o anjo caído que se revoltou contra o Criador. São Tomás de Aquino nos ensina que Satã foi criado por Deus. Se ele agiu mal e se rebelou contra Deus, foi por vontade própria, já que o Criador dá o livre-arbítrio aos anjos e aos homens. O "mal" não é um ser , ele é apenas a ausência de ser, e, pois, de bem. Assim, Deus não criou o "mal" (o que seria contraditório, se admitirmos que sua bondade é infinita). São os anjos e os homens, que pelo pecado, agem de forma má, uma vez que têm livre-arbítrio. Para exemplificar isto, tomemos um homem que viva em luxúria: esse homem deseja um bem, o prazer. No entanto, ao praticar atos imorais, pecando contra a castidade, ele inverte os valores, por um ato de sua vontade; ele coloca o prazer acima dos Dez Mandamentos. Portanto, o prazer é um bem, mas não é o bem maior. A inversão da ordem dos bens, nesse caso, consiste em colocar o prazer sensual acima das leis de Deus.
Baudelaire não aceita a visão católica do mundo, ensinada por São Tomás. Ele entende o mal como algo ontológico, como sendo um ser realmente existente do ponto de vista metafísico. Por esta concepção - que remete à tradição do gnosticismo e do maniqueísmo - o Mal, personificado em Satã, é um ser como Deus é ser. Contudo, Satã não é o criador deste mundo. Para Baudelaire, Satã é o Deus exilado do mundo real. O mundo real é obra do Demiurgo, criador deste mundo mau. Há, portanto, a inversão dos valores tradicionais, em que Deus é o Diabo e o Diabo é Deus, pois é Lúcifer quem carrega a verdadeira luz.
O próprio título da obra, Les Fleurs du Mal, já indica a concepção do mal como ser.
Contudo, Baudelaire é contraditório, pois seu culto a Satã, seu satanismo, não é de amor ao diabo, mas de ódio. Porque, para ele, o ódio é o verdadeiro amor. Diz Otto Maria Carpeaux: "Baudelaire é o mais sincero... Não serve a Satã com prazer, mas com pavor". Por tudo isso, pregou a estética do feio, a beleza do feio. Afirma o poeta: "Do feio, o poeta desperta um novo encanto... metafísica do cômico absoluto... lei do absurdo". Para Hugo Friedrich, Baudelaire "...vê no grotesco o embate da idealidade com o diabólico e o amplia com um conceito que iria ter no futuro: o absurdo".
Les Litanies
O poema é dividido em duas partes. Na primeira, há sempre dois dísticos intercalados por um verso que se repete. Todos em alexandrino primário exato, com dois pés de seis sílabas, que proporcionam certo tom lento na declamação. Percebe-se no pregão: "O Satan, prends pitié de ma longue misére", o primeiro pé termina em "pitié", que sendo aguda, dispensa a elisão da vogal muda para fusão com a primeira sílaba do segundo "de".
O | Sa| tan| prends| pi| tié| // de| ma| lon| gue| mi| sé| re
Na segunda parte, há a "oração": estrofe com seis versos alexandrinos. Em ambas as partes, as rimas são emparelhadas, seguindo o esquema AA/BB/CC/DD, etc.
Primeira Parte
O poema é uma espécie de paródia, pois lembra as ladainhas da Igreja Católica para Jesus Cristo e a Virgem Maria. Percebe-se isso pela repetição (pregão, espécie de refrão) do verso: "O Satan, prends pitié de ma longue misére!". Veja-se a semelhança do poema baudelairano com as ladainhas católicas:
Pater de caelis, Deus, miserére nobis
Fili, Redémptor mundi, Deus, miserére nobis
Spiritus Sancte, Deus, miserére nobis.
Sancta Trinitas, unus Deus, miserére nobis
Vê-se aí a proximidade, ou melhor, o paralelismo à expressão "Pai dos céus, Deus, tende piedade de nós" na prece do poeta: "Ó Satã, tende piedade de minha longa miséria". Enquanto, na ladainha católica, há um rogar de todos (nós) para Deus, nas Litanies é o rogo do poeta (minha) para Satã. Assim, não só há a inversão dos valores, mas também o individualismo do poeta que roga piedade para si, e não por todos.
Vale destacar, ainda, que ao recitar o poema, e depois a ladainha, percebe-se, pelo tom declamatório de ambos, a proximidade e a intenção do autor de realmente fazer uma ladainha para Satã que "soasse" como a Católica.
O refrão criado por Baudelaire para sua ladainha satânica e blasfema, aparece intercalado entre quinze dísticos. Neles, Baudelaire descreve os atributos de Satã, mais uma vez imitando a ladainha. Onde Deus é "Pai dos céus", "Deus, Filho, Redentor do mundo", etc. há a substituição de Deus por Satã. Por isso, o poeta "abusa" na adjetivação, são 44 ao todo, num poema de 36 versos e um refrão que se repete quinze vezes.
Para tentarmos analisar melhor esses atributos de Satã, comentaremos cada dístico separadamente, buscando, depois, uma visão totalizante deles. Antes, porém, deve-se notar que o uso da anáfora "Toi", que se repete nos versos 5, 7,11, 13, 15, 17, 19, 21, 23 e 25, indica, como na ladainha, que as palavras ditas são oferecidas a um outro, no caso de Baudelaire, a Satã. O "eu" oferta devoção ao "Tu"; há portanto, duas "pessoas" no discurso.
No primeiro dístico, o poeta chama Satã de o mais sábio e o mais belo dos anjos. Há aí referência ao fato de Lúcifer (aquele que carrega a Luz) ser tido comumente como o anjo mais perfeito dos criados por Deus, e que se revoltou contra Ele. Além disso, ele seria o mais sábio, pois como se sabe, ele pretendeu ser o mestre da ciência do bem e do mal. Ao mesmo tempo que Satã é um anjo, ele seria um Deus, traído pela sorte e privado do culto devido normalmente a Deus, e exilado do paraíso pela queda provocada por seu pecado.
Por isso, logo no segundo dístico, ele é chamado de Príncipe do exílio, já que foi vencido pelo Deus Criador, e assim revoltado e pleno de ódio, cada vez tenta se levantar ainda mais revoltado. A expressão "à qui l’on fait tort" é uma perífrase empregada pelos Lolhards de Bohême para designar Satã.
No terceiro dístico, onde o poeta diz: "Toi qui sais tout", se pretende indicar uma suposta onisciência do rei dos infernos sobre as coisas subterrâneas ("choses souterraines"), porque ele quer ser também o charlatão das angústias humanas. Justamente, por propor uma solução para as angústias do homem, contudo uma falsa solução, ele é chamado de Charlatão. Aqui vê-se a "sinceridade" de Baudelaire, a que se refere Carpeaux, como citamos anteriormente.
Depois, no quarto dístico, Satã é dito o professor que ensina o gosto do paraíso a todos os "homens malditos": ao leproso, ao pária, ao réu. Há a idéia do paraíso como lugar de sofrimentos, pois, o verdadeiro paraíso seria um lugar de sofrimentos, de marginais.
No quinto dístico, Baudelaire chama a Morte (que está com "m" maiúsculo) de velha e forte amante do demônio. Pelo fato de que Deus é símbolo da Vida enquanto Satã o é da Morte, pois que pelo pecado a morte entrou no mundo. Também a morte traz a idéia de aniquilamento da existência, e como Satã é revoltado por existir, seu desejo é o de não existir, de deixar de ser. Seu único "consolo" é a Morte (velha), por sempre ser desde muito tempo sua amante, ele que é forte, porque resiste e não se submete.
Ainda ele, através da morte, geraria uma esperança, chamada de "louca fascinante". Segundo a concepção Católica, o homem que se deixa guiar puramente pelos delírios do espírito em detrimento da razão, aproxima-se da loucura. Isso fascina porque todo pecado atrai o homem decaído pelo pecado original, e do mesmo modo em que o feio o atrai. Daí também a idéia da estética do feio de Baudelaire. Como exemplo ilustrativo, veja-se o que Mário de Andrade diz: "Mas feio = pecado... Atrai". Na verdade, pode-se dizer que toda a estética da chamada Arte Moderna já pulsava nestes conceitos expressos nos versos de Baudelaire.
No sexto dístico, aparece Satã como aquele que olha com calmo e alto olhar ao proscrito. Esse olhar indica a superioridade de suzerano do anjo do mal em relação aos banidos da sociedade, os proscritos. A referência ao povo que se faz desvairar junto à forca, talvez seja uma alusão aos suicidas, ou aos patíbulos da revolução.
No sétimo dístico, se afirma que o Deus Criador do Ceú e da terra, o Deus zeloso - diz nas Escrituras: "Non adorabis ea, neque coles: ego sum Dominus Deus tuus fortis, zelotes, visitans inquitatem patrum in filios, in tertiam et quartam generationem eorum qui oderunt me: ..."-, esconde as pedras preciosas em terras invejosas. Satã sabe onde elas estão escondidas e quais são os seus significados. Poderíamos sugerir que nisto há uma referência ao fruto do conhecimento, cujo desejo de posse proporcionou a queda do homem do paraíso, ou ao fruto da árvore da vida, que Deus impediu que o homem comesse depois da sua queda em pecado. Satã é uma espécie de conhecedor do "elixir da vida", o fruto da árvore da vida que estava no meio do Éden, e que foi escondido por Deus, o qual é, então, acusado pelo poeta de o esconder, por ciúme, por zêlo.
Satã, no oitavo dístico, é chamado como aquele que tem olhar claro (aquele que compreende), que conhece os arsenais profundos, onde dorme o povo dos metais. Podemos associar o povo dos metais ao que diziam os gregos sobre as idades do mundo, as Idades Míticas, como do Ouro, da Prata e do Bronze? Ou com os demônios sepultados nas profundezas dos infernos? Ou ainda com os alquimistas, que procuram a transubstanciação dos metais, como transformar o ferro em ouro, que é na verdade símbolo da alquimia espiritual, que consiste em "espiritualizar a matéria", em transubstanciar o homem, para que ele alcance a divinização? Também pode-se identificar estas duas relações: gregos e alquimistas.
Segundo Jean Chevalier & Alain Gheerbrant: "O simbolismo dos metais comporta um aspecto duplo: de um lado, aqueles que o trabalham, como os ferreiros, foram muitas vezes parcialmente excluídos da comunidade, sendo considerada perigosa a sua atividade de ordem infernal; de outro lado, eles às vezes desempenharam, ao contrário, um papel capital, e seus ofícios puderam servir de apoio a organizações iniciatórias (mistérios cabíricos da Grécia Antiga, confrarias chinesas e africanas). O primeiro aspecto devia ser o mais importante, pois a origem dos minerais, a relação da ferraria com o fogo subterrâneo, portanto, com o inferno, são significativas. O aspecto benéfico se fundamenta na purificação e na transmutação, assim como na função cosmológica de transformador. O metal puro que se desprende do mineral bruto é, como diria Jacob Boehme, "o espírito que se desprende da substância para se tornar visível".
Assim se explicaria a relação de Satã, habitante dos infernos, e do povo dos metais, que dorme sepultado.
No nono dístico, no qual Satã é denominado de ocultador dos princípios, ocultador da gnosis, faz o sonâmbulo errar "na orla dos edifícios". Sonâmbulo é aquele que vive no sonho, ou ainda, aquele cujo verdadeiro estado de vigília é o sonho, e o sonho é a vigília. Identifica-se aí uma das características de Baudelaire, a referência à cidade, ao urbano, como "os edifícios". Há ainda uma catacrese em "orla dos edifícios".
Já no dístico décimo, Satã, magicamente, consola o ébrio, o marginal da sociedade, outro tema corrente na obra baudelaireana. Vale notar também o significado do mel, segundo Chevalier & Gheerbrant: "Leite e mel correm em cascatas em todas as terras prometidas, como em todas as terras primeiras das quais o homem se viu expulso". Assim, o anjo propicia um ato mágico ao marginalizado da sociedade, no caso o ébrio, ao consolá-lo com o sonho da Terra Prometida, uma vez que este mundo o excluiu. Usando a tese de Alfredo Bosi, do mito da resistência na poesia: "Reinventar imagens da unidade perdida, eis o modo que a poesia do mito e do sonho encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de ver" .
No décimo-primeiro dístico, Baudelaire diz que Satã dá ao homem fraco o alvitre de poder misturar ao enxofre o salitre. Podemos dizer que aí o poeta faz alusão à pólvora dos fuzis e às bombas que marcaram o período das barricadas de Paris, assim como aos atos terroristas, tão comuns no século passado. Desta forma, o anjo seria o inventor da pólvora, que pode ser confirmada pelo décimo-quarto dístico: "lanterna do inventor, confessor do enforcado e do conspirador".
Vê-se no dístico décimo-segundo, que Satã é tido também como cúmplice do usurário; e nele põe sua marca. Isso se confirma, pela indicação de Crésus, que foi Rei da Lydia no século VI a.C., e cujas riquezas ficaram legendárias. Mostra-se aí a crítica de Baudelaire à sociedade burguesa, que põe o fim último da vida na acumulação de bens materiais. A riqueza torna-se o demônio do burguês.
Satã também é o condutor das prostitutas, aquele que as leva ao amor pelos molambos. Mais uma vez, agora no dístico décimo-terceiro, são as degradações - quer a moral, quer a espiritual - associadas ao demônio, que são cantadas pelo poeta.
No dístico décimo-quarto, além da relação já feita acima, tem-se a do "Navio dos exilados", pois, aqueles que negaram Deus embarcam no navio satânico. Ainda com relação à "lâmpada dos inventores", podemos relacioná-la com o que diz Madame de Staël: "...cherchez l’immortalité dans l’amour et la divinité dans la nature, enfin sactifiez votre âme comme un temple, et l’ange des nobles pensées ne dédaignera pas d’y apparaître". É como se Satã "ditasse" ao inventor, ao homem de gênio - que adere a ele -, as descobertas, as criações da ciência moderna.
Ele é o confessor dos enforcados, dos suicidas. Já que o suicida, ao tirar de si a própria vida, comete um ato de soberba, de revolta contra Aquele que o criou. Desta feita, a ação dele é análoga à de Satã. Satã é chamado ainda de Confessor dos conspiradores, pois os que se revoltam contra a "ordem social estabelecida" são revolucionários e rebeldes como Lúcifer.
No último dístico, lê-se que Satã é chamado de "Pai adotivo", visando colocar o demônio no lugar de Deus, visto que o Criador é, de fato, o Pai de todos os homens, o Deus que lhes deu a vida. Mais. Deus nos adotou como filhos pelo batismo. Baudelaire quer substituir Deus pelo demônio também na função de Pai adotivo, pela concessão de nossa vida espiritual. Parece até que o poeta francês fazia menção de uma falsa vida espiritual e a uma filiação adotiva do demônio com relação àqueles que fazem a sua vontade. Aliás, o próprio Cristo chamou os fariseus de filhos do demônio e esta filiação só poderia ser adotiva. Satã, portanto, não é o verdadeiro pai, mas o pai adotivo de todos os maus. É o mestre do furioso, do revoltado, já que ele é o revoltado por excelência. Novamente, a seguir, Baudelaire se refere ao exílio de Lúcifer, "expulso do Paraíso Terrestre" pela queda.
Depois deste rápido comentário sobre o "pregão" e os dísticos, vejamos a enumeração dos atributos de Satã feitas por Baudelaire. O poeta, em nenhum momento, deixou de relacionar o demônio com o grotesco, o sujo, o imoral e o rebelde. Contudo, a enumeração não tem um tom negativo para com Lúcifer. Pelo contrário, por ser o revoltado contra Deus, o imoral, o sujo e o grotesco é que merecem o canto e a ladainha do poeta. De forma que Satã (o feio) é o verdadeiro belo. A estética da Arte Moderna estava nascendo desses versos... Além disso, há críticas à sociedade em que o poeta viveu, muito longe da Nova Jerusalém desejada. Como se o poeta fosse um aliado do marginal, tanto no plano do real quanto no plano do preternatural. Percebe-se por tudo isso, que a teologia Católica fazia parte do universo cultural de Baudelaire. E ainda que ele a negue, acaba aceitando-a como verdadeira. O poeta adere ao satanismo mais pelo fato de ser contrário ao catolicismo do que por estar convencido de que o satanismo é verdadeiro. Sintetizando: é mais uma fé em Satã, do que o fruto de um raciocínio dele.
Segunda Parte
Gostaríamos de começar esta parte citando Walter Benjamin: "A última parte do ciclo, As Litanias de Satã, é, por seu conteúdo teológico, o miserere de uma liturgia ofídica (nota do autor: Trata-se de uma seita gnóstica do século II que, dedicada ao culto da serpente, a fazia um símbolo do Messias). Satã aparece em sua coroa de raios luciferinos como depositário do saber profundo, como instrutor das habilidades prometéicas, como patrono dos impenitentes e inquebrantáveis".
Veremos, então, como se pode interpretar esta parte do poema, a partir da tese defendida por Benjamin, acrescentando alguns outros comentários que procuram ir além.
Como já dissemos, a segunda parte, "Oração", é composta de seis versos, todos alexandrinos, com esquema rítmico aa/bb/cc. O poeta também faz paródia, desta vez, do Evangelho segundo São Lucas. Lê-se no evangelho: "Gloria in altissimis Deo, et in terra pax hominibus bonae voluntatis". No primeiro verso da oração do poema baudelaireano se lê: "Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs"
Percebe-se a inversão que Baudelaire faz: ao invés de cantar a Deus, canta a Satã, colocando-o em pé de igualdade com Deus.
No verso seguinte, o poeta fala da queda do anjo: "Du Ciel, où regnas ....vaincu" ("o céu em que reinaste... e vencido"), ou seja, Satã já teria reinado, no passado, no Céu. Aqui o poeta francês segue a idéia gnóstica de que o diabo, teria sido o verdadeiro Deus, que teria sido expulso do Paraíso pelo Demiurgo, o Deus mau que criou o mundo e aprisionou o espírito na matéria. Identifica-se isso no verso "...et dans profondeurs de l’Enfer... tu rêves en silence"("...e nas escuridões do Inferno sonhas em silêncio"). Nesse "tu rêves en silence", Baudelaire, ainda baseado nas Escrituras (Apocalipse), se refere talvez à futura vinda do Anti-Cristo, num certo momento propício da História, com a qual o demônio sonha, e em que o mundo, graças à ação do Anti-Cristo, transformaria quase a todos os homens em escravos, para servir e adorar o próprio demônio. Por isso, Satã "sonha em silêncio nas profundezas tenebrosas dos infernos... ".
Depois, Baudelaire pede para repousar junto a Satã, sob a Árvore da Ciência, na hora em que seu Templo for erguido. Primeiramente, podemos destacar a união que o poeta pede ao anjo para estar ao seu lado quando seu reino chegar. Em seguida, lê-se o aposto "..., sous l’Arbe de Science, ...". Como é sabido, a Árvore da Ciência é aquela que produziu o fruto que a serpente tentou Eva e Adão no Paraíso. Lê-se no Gênesis: "Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo (fruto), aperientur oculi vestri et eritis sicut dii, scientes bonum et malum". O fruto da Árvore da Ciência, representaria, assim, a maneira do homem se tornar Deus, onipotente, onisciente e onipresente, conhecedor do bem e do mal, do Absoluto. Para ilustrarmos esta questão, citamos Heinrich Heine: "Na Bíblia [...] se encontram muitas narrativas notáveis e belas [...], como, por exemplo, logo no início, a história da árvore proibida e da serpente do Paraíso, a pequena livre-docente, [...] já expôs toda a filosofia hegeliana seis mil anos antes do nascimento de Hegel. De maneira bem perspicaz, essa pedante sem pés, mostra como o Absoluto consiste na identidade de ser e saber, como o homem se torna Deus por intermédio do conhecimento, ou, o que vem a dar no mesmo, como Deus chega à consciência de si no homem".
O poeta, então, termina com a esperança do novo Templo, o novo mundo que chegará no encontro com Satã "... à l’heure où sur ton front/ Comme un Temple nouveaux ses rameaux s’épandront".
Conclusão
Depois desses breves comentários, concluímos que Baudelaire fez seu canto a Satã em forma de ladainha, que acaba blasfemando e invertendo o culto para o anjo caído, que é, para o poeta, o verdadeiro consolador das misérias e do "mundo mau criado pelo Demiurgo". Ele não teme mais o Juízo Final, pois já escolheu seu lugar junto a Satã, "Guérriseur" (charlatão) das angústias humanas, que oferece ao homem o fruto da gnosis, do conhecimento do bem e do mal. Assim, o poeta resiste ao mundo caído, na esperança de se encontrar a si mesmo no demônio.
Para finalizar, citamos Bosi, quando comenta Blake: "Se o poeta resiste, se o poeta transpassa, imune ao turbilhão do céu e ao turbilhão da terra, é porque já cumpriu o rito do sacrifício, já se auto-anulou, para que o Juízo Final não venha supreendê-lo grávido de si e não o entregue às garras letais do próprio Eu".
Bibliografia
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BENJAMIN, Walter. C.Baudelaire: um lírico na auge do Capitalismo. Brasiliense,SP,1994
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BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Cultrix, São Paulo, 1993.
CHEVALIER, J & GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. J.Olympio, R.J., 1996.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Duas Cidades, São Paulo, 1991.
HEINE, Heinhich. Contribuição à História da Religião e Filosofia na Alemanha. Iluminuras, São Paulo, 1991.
STAËL, Madame de. De l’Allemagne. GF-Flammarion, Paris, 1968.
Flávio Quintale Neto
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