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Series & Trilogias Literarias
Sob o brilho intenso dos postes de iluminação pública, percebia que a relva no jardim da frente da casa de Stefan amarelecera, ressequida pelo intenso calor do verão. Tinha sido cortada, mas apenas com o propósito de ser nivelada, não de ficar esteticamente agradável. A julgar pelos restos de erva morta no jardim, o relvado teria crescido ao ponto de a Câmara exigir que fosse cortado. A erva que restava estava tão seca que quem quer que a tivesse cortado não teria de voltar a fazê-lo a menos que alguém começasse a regá-la.
Aproximei o Rabbit da beira do passeio e estacionei. Na última ocasião em que vira a casa de Stefan, ela enquadrava-se perfeitamente no seu bairro chique. O desleixo do jardim ainda não se propagara ao exterior da casa, mas as pessoas no seu interior preocupavam-me.
Stefan era resiliente, inteligente, e… era Stefan, simplesmente — capaz de falar de Pokémon com rapazes surdos em linguagem gestual, de derrotar vilões temíveis enquanto estava preso no interior de uma jaula, e em seguida partir na sua Kombi, pronto para defrontar tipos maus quando fosse necessário. Ele era como o super-homem, mas com presas e uma moral invulgarmente escassa.
Saí do carro e atravessei o passeio em direção ao alpendre frontal. No caminho de entrada, Scooby-Doo observava-me ansiosamente através de uma camada de pó nas janelas da carrinha habitualmente imaculada de Stefan. Tinha oferecido a Stefan o enorme cão de peluche para combinar com a pintura que replicava a Máquina Mistério.
Não tinha notícias de Stefan há meses. Na verdade, desde o Natal. Estivera envolvida numa série de coisas, e ter sido raptada por um dia (que para todas as outras pessoas se traduziu num mês, porque aparentemente as rainhas das fadas têm a capacidade de fazer isso) fora apenas parte dessa série de coisas. No entanto, durante o último mês, telefonara-lhe uma vez por semana e todos os telefonemas haviam sido encaminhados para o atendedor de chamadas. A noite passada telefonara-lhe quatro vezes para o convidar para uma Sessão de Cinema Foleiro. Faltava uma pessoa porque Adam — meu companheiro, noivo, e Alfa do Bando da Bacia do Columbia — se ausentara da cidade em negócios.
Adam era proprietário de uma firma de segurança que, até recentemente, trabalhara sobretudo com entidades governamentais. No entanto, desde que os lobisomens — e Adam — tinham dado a conhecer ao público a sua identidade, o seu negócio começara a prosperar noutras frentes. Aparentemente, os lobisomens eram vistos como profissionais da segurança muito competentes. Andava fortemente empenhado na procura de alguém a quem pudesse delegar a responsabilidade pelas viagens, mas até ao momento não tinha encontrado a pessoa certa.
Estando Adam ausente, podia dar mais atenção às outras pessoas que faziam parte da minha vida. Chegara à conclusão de que Stefan tivera tempo suficiente para lamber as feridas, mas a julgar pelo que me era dado a ver, vinha com alguns meses de atraso.
Bati à porta e, não obtendo resposta, recorri ao velho ritmo das sete pancadas sincopadas. Já tinha começado a desferir golpes violentos quando a tranca finalmente produziu um estalido e a porta foi aberta.
Demorei algum tempo a reconhecer Rachel. Da última vez que a tinha visto, parecia um ícone das desencantadas adolescentes góticas ou das adolescentes que fugiam de casa. Agora parecia uma viciada em crack. Teria perdido cerca de quinze quilos para lá do razoável. Sobre os ombros caía-lhe o cabelo fraco, oleoso e despenteado. Borrões de rímel estendiam-se pelas suas faces, manchas desbotadas que teriam feito jus a um figurante do A Noite dos Mortos-Vivos. Tinha nódoas negras no pescoço e abraçava-se como se os ossos lhe doessem. Fiz por não dar a entender que me dera conta de que lhe faltavam os últimos dois dedos da mão direita. A mão fora tratada, mas as cicatrizes ainda estavam vermelhas e inflamadas.
Marsilia, a Senhora dos vampiros de Tri-Cidades, usara Stefan, o seu fiel cavaleiro, para expulsar traidores do seu ninho, e parte disso traduzira-se em roubar-lhe o rebanho — os humanos que mantinha para deles se alimentar — e levá-lo a pensar que os seus elementos estavam mortos ao quebrar os vínculos de sangue que tinha com eles. Aparentemente, entendera que torturá-los também havia sido necessário. No entanto — excluindo Stefan —, não confio na verdade dos vampiros. Não passava pela cabeça de Marsilia que Stefan viesse a objetar o uso que fizera dele e do seu rebanho quando descobriu que o intuito das ações dela era proteger-se a si mesma. Afinal de contas, ele era o seu leal Soldado. Tinha-se equivocado em relação ao modo como Stefan lidaria com a sua traição. Pelo que me era dado a ver, não estava a recuperar bem.
— É melhor pôr-se a andar daqui, Mercy — disse-me Rachel apaticamente. — Não é seguro.
Segurei a porta antes que ela conseguisse fechá-la.
— O Stefan está em casa?
Inspirou de forma irregular.
— Ele não vai servir de ajuda.
Pelo menos não parecia que Stefan fosse o perigo em relação ao qual me avisara. Tinha virado a cabeça na altura em que a impedira de fechar a porta, e reparei que alguém lhe tinha cravado os dentes no pescoço. Dentes humanos, pensei, não presas, porém as crostas trepavam à parte lateral do tendão entre a clavícula e o maxilar num relevo brutal.
Empurrei a porta com o ombro e entrei para estender a mão e tocar nas crostas, e Rachel retraiu-se e recuou, afastando-se da porta e de mim.
— Quem é que fez isto? — perguntei. Era impossível acreditar que Stefan pudesse permitir que mais alguém a magoasse daquela forma. — Um dos vampiros da Marsilia?
Abanou a cabeça.
— O Ford.
Por momentos não percebi a quem se referia. Depois lembrei-me do homem grande que me indicara o caminho até ao exterior da casa de Stefan na última ocasião em que lá tinha estado. Meio transformado em vampiro e um tanto louco — e isso fora antes de Marsilia lhe ter deitado as garras. Um tipo deveras sinistro e assustador — e tinha para mim que ele já era assustador antes de ter posto pela primeira vez os olhos num vampiro.
— Onde é que está o Stefan?
Tenho muito pouca tolerância para o drama que acaba com pessoas magoadas. Era a função de Stefan olhar pelos seus, independentemente de, para a maior parte dos vampiros, os seus rebanhos existirem como refeições convenientes, e de todas as pessoas sob o seu controlo experimentarem mortes lentas e terríveis por um período que pode durar até seis meses.
Stefan não era assim. Sabia que Naomi, a governanta da casa, estava com ele há trinta anos ou mais. Stefan era cuidadoso. Esforçara-se por provar que era possível viver sem matar. No entanto, a julgar pelo aspeto de Rachel, já não se estava a esforçar muito.
— Não pode entrar — retorquiu. — Tem de se ir embora. Não podemos incomodá-lo, e o Ford…
O chão da entrada estava nojento, e o meu olfato detetou corpos suados, mofo e o odor amargo do velho medo. Ao meu olfato apurado de coiote, toda a casa cheirava a um monte de lixo. Provavelmente também ao olfato de um humano normal cheiraria a um monte de lixo.
— Eu vou incomodá-lo, está bem? — disse-lhe em tom ameaçador. Era óbvio que alguém tinha de o fazer. — Onde é que ele está?
Quando se tornou evidente que ela não podia ou não ia responder, avancei mais para o interior da casa e berrei o seu nome, levantando a cabeça de modo a que a minha voz alcançasse o piso superior.
— Stefan! Vem aqui imediatamente! Tenho umas contas a ajustar contigo. Stefan! Já tiveste tempo de sobra para a autocomiseração. Das duas uma, ou matas a Marsilia, e eu ajudo-te nisso, ou ultrapassas o problema.
Rachel começara a dar-me palmadinhas no ombro e a puxar-me a roupa para tentar pôr-me fora de casa.
— Ele não pode sair — disse num tom de exaltada urgência. — O Stefan obriga-o a ficar em casa. Mercy, tem de se ir embora.
Sou dura e forte, e ela estava a tremer de fraqueza — e, provavelmente, de carência de ferro. Não tive qualquer dificuldade em manter-me onde estava.
— Stefan — gritei novamente.
Imensas coisas aconteceram num espaço de tempo muito curto, pelo que tive de pensar nelas posteriormente para as colocar na ordem certa.
Rachel inspirou e congelou, e, de repente, a sua mão estava a prender o meu braço em vez de o puxar. Porém soltou-a quando alguém me agarrou por trás e me lançou contra o piano vertical encostado à parede entre a entrada e a sala de estar. O barulho foi tal que a minha atenção se dividiu entre o som do meu impacto e a dor que senti quando as minhas costas embateram no topo do piano. O treino da reação a incontáveis golpes de karaté permitiu que eu não enrijecesse o corpo, e rolei pela face do piano abaixo. Não foi nada divertido. O meu rosto esbarrou no chão de laje. Algo estrondeou ao meu lado, uma espécie de estaca retorcida, e subitamente estava cara a cara com Ford, o tipo assustador e enorme que inexplicavelmente parecia ter-se lançado para o chão à minha beira e de cujo canto da boca gotejava sangue.
Tinha um aspeto diferente do da última vez, mais esguio e imundo. A sua roupa estava manchada de suor, sangue velho e sexo. Mas os seus olhos, momentaneamente fixos em mim, estavam bem abertos e assustados, como os de uma criança.
Depois uma t-shirt de um roxo desbotado a cair sobre umas calças de ganga esfarrapadas e sujas, e uma longa e desgrenhada cabeleira escura, bloquearam-me a visão de Ford.
O meu protetor era demasiado magro, demasiado desleixado, porém o meu olfato de imediato me indicou que era Stefan. Estar na presença de um vampiro que não se lava é melhor do que estar na presença de um humano que não se lava, porém não deixa de ser desagradável.
— Não — disse Stefan numa voz suave, no entanto Ford gritou e Rachel soltou um guincho.
— Eu estou bem, Stefan — disse-lhe, rolando rigidamente até ficar sobre as mãos e os joelhos. Todavia ignorou-me.
— Nós não fazemos mal às nossas visitas — afirmou Stefan, e Ford pôs-se a lamuriar.
Pus-me de pé, ignorando os protestos da anca e dos ombros doridos. Amanhã teria nódoas negras, mas nada pior do que isso graças às sessões, por vezes brutais, do sensei sobre como cair. O piano, a julgar pelo aspeto, também iria sobreviver ao nosso embate.
— O Ford não teve culpa — disse-lhe bem alto. — Ele só está a tentar fazer o teu trabalho. — Não sei se isso era verdade ou não; tinha para mim a suspeita de que Ford simplesmente era louco. Porém, estava disposta a tentar qualquer coisa para atrair a atenção de Stefan.
Ainda agachado entre mim e Ford, Stefan virou a cabeça para me observar. Os seus olhos eram frios e famintos, e fitou-me como se eu fosse uma completa desconhecida.
Seres monstruosos bem piores do que ele já me tinham tentado intimidar, portanto nem sequer pestanejei.
— Devias estar a tomar conta desta gente — disparei. Ok, a verdade é que ele me estava a assustar, e essa era a razão pela qual lhe falara de forma rude. Ficar-amedrontada-e-ficar-furiosa nem sempre era a atitude mais inteligente. Eu, que fora criada num bando de lobisomens, certamente sabia isso. No entanto, olhar para Stefan e para o que acontecera à sua casa fez-me ter vontade de chorar, e eu preferia ficar amedrontada e furiosa a fazer isso. Se pela cabeça de Stefan passasse a suspeita de que sentia pena dele, jamais me deixaria ajudar.
— Olha para ela… — Gesticulei na direção de Rachel e o olhar de Stefan acompanhou a minha mão em resposta à autoridade na minha voz, uma autoridade que começava a aprender com Adam. Ser companheira do Alfa dos lobisomens trazia alguns benefícios.
Stefan voltou a colocar os olhos em mim assim que se apercebeu do que tinha feito, mostrando as presas de uma forma que me fazia lembrar mais um lobisomem do que um vampiro. No entanto, parou de rosnar e olhou para Rachel novamente.
A tensão nos seus ombros suavizou-se e olhou para baixo, na direção de Ford. Não conseguia ver o rosto do homem grande, mas, aos meus olhos treinados em dinâmica de bando, a sua linguagem corporal dizia claramente «rendição».
— Merda — disse Stefan, largando Ford.
— Stefan?
A ameaça desaparecera-lhe do rosto, mas o mesmo acontecera com qualquer vestígio de emoção. Parecia quase siderado.
— Vai tomar um duche. Penteia o cabelo e muda de roupa — disse-lhe bruscamente, usando o tom imperativo enquanto ele ainda estava fraco. — E não demores uma eternidade, deixando-me à mercê do teu rebanho durante muito tempo. Hoje à noite vou levar-te a sair para assistires a uns filmes foleiros juntamente comigo, com o Warren e com o Kyle. O Adam está fora, portanto abriu uma vaga.
Warren era o meu melhor amigo, um lobisomem, e o número três do Bando da Bacia do Columbia. Kyle era um advogado, humano, e amante de Warren. A Sessão de Cinema Foleiro era a nossa noite de terapia, mas às vezes convidávamos pessoas que entendêssemos que precisavam.
Stefan dirigiu-me um olhar incrédulo.
— Quer-me parecer que precisas que alguém te espete uma aguilhada para te pores a mexer — informei-o com um gesto largo que indicou o estado vergonhoso da sua casa e do seu rebanho. — Mas em vez disso tens-me a mim, a amigável coiote que vive perto de ti. Mais vale cederes porque te vou azucrinar o juízo até aceitares. É claro que conheço um cowboy que provavelmente tem uma aguilhada, caso venha a ser necessário.
Levantou um canto da boca.
— O Warren é um lobisomem. Ele não precisa de uma aguilhada para incitar as vacas a andar. — A sua voz soava rude e incomum. Relanceou os olhos a Ford, que ainda estava no chão.
— Tão cedo não vai fazer mal a ninguém — disse eu ao vampiro. — No entanto, tenho a capacidade de levar a maior parte das pessoas a recorrer à violência se me derem tempo suficiente para isso, portanto é bom que te despaches.
De repente, ouviu-se um estalido e Stefan tinha desaparecido. Sabia que ele tinha a capacidade de se teletransportar, embora raramente o fizesse à minha frente. As duas pessoas que ali ficaram agitaram-se de uma sacudidela, por reflexo, pelo que presumi que tão-pouco elas o tinham visto fazer aquilo muitas vezes. Sacudi o pó das mãos e virei-me para Rachel.
— Onde é que está a Naomi? — perguntei. Não conseguia imaginá-la a deixar as coisas chegarem a este estado.
— Morreu — respondeu Rachel. — A Marsilia despedaçou-a, e não conseguimos voltar a juntá-la. Acho que isso foi a gota de água para o Stefan. — Olhou para o topo das escadas. — Como é que conseguiu fazer aquilo?
— Ele não quer que eu vá buscar a aguilhada — repliquei.
Ela tinha os braços em volta do próprio corpo, a mão mutilada claramente visível. Tinha nódoas negras, marcas de mordeduras e outros vestígios de agressão física — e disse:
— Temos andado tão preocupados com ele. Não fala com nenhum de nós, não desde que a Naomi morreu.
O pobre do Stefan tentara ir desta para melhor porque Marsilia o atraiçoara — e fizera o que estava ao seu alcance para levar consigo o que restava do seu rebanho. E Rachel estava preocupada com ele.
Com ele.
— Quantos de vocês é que restam? — perguntei. Naomi era uma senhora dura. Se tinha morrido, certamente não teria sido a única.
— Quatro.
Não era de admirar que estivessem com tão mau aspeto. Quatro pessoas não tinham a capacidade de, sozinhas, alimentar um vampiro.
— Ele tem saído para caçar? — inquiri.
— Não — respondeu. — Creio que ele não saiu de casa desde que enterrámos a Naomi.
— Deviam ter-me telefonado — disse-lhe.
— Sim — interveio Ford, no chão, a sua voz de tal modo forte que ecoou. Os seus olhos estavam fechados. — Devíamos.
Agora que não me estava a atacar, consegui perceber que também ele estava magro. Isso não podia ser bom para um homem que estava no processo de transição de humano para vampiro. Os vampiros novatos famintos têm tendência para sair à procura da sua própria comida.
Stefan devia ter resolvido a situação antes que ela tivesse chegado a este ponto.
Se estivesse na posse de uma aguilhada, talvez me tivesse sentido tentada a usá-la, pelo menos até as escadas terem rangido e eu ter olhado para cima e visto Stefan a descer. Tenho um diploma poeirento de uma licenciatura em História, pelo qual aguentara ver uma série de filmes do Terceiro Reich até ao fim, e neles havia homens que tinham morrido nos campos de concentração que eram menos descarnados do que Stefan na t-shirt verde do Scooby-Doo que envergava. Servia-lhe na perfeição quando o tinha visto com ela uns meses antes. Agora pendia-lhe dos ossos. Stefan, assim asseado, tinha um aspeto ainda pior.
Rachel disse que Marsilia despedaçara Naomi. Olhando para Stefan, ocorreu-me que ela também estava muito perto de lhe fazer o mesmo. Um dia, um dia haveria de estar com Marsilia na mesma sala segurando uma estaca na mão, e, palavra de honra, faria uso dela. Isso se, claro está, Marsilia estivesse inconsciente e todos os seus vampiros estivessem igualmente inconscientes. De outro modo, era uma mulher morta, uma vez que Marsilia era muito mais perigosa do que eu. Ainda assim, a ideia de lhe espetar um pedaço de madeira afiado no peito, atravessando-lhe o coração, provocou em mim uma sensação de grande satisfação.
A Stefan, disse:
— Precisas de um dador antes de sairmos? Para que ninguém nos mande encostar e me obrigue a levar-te ao hospital ou à morgue?
Deteve o passo e olhou para baixo, na direção de Rachel e Ford. Franziu o cenho, depois pareceu intrigado e um tanto perdido.
— Não. Eles estão demasiado fracos. Os que restam não são suficientes.
— Não estava a falar deles, Shaggy — disse-lhe suavemente. — Já doei antes, e estou disposta a fazê-lo novamente.
Olhos de um vermelho-rubi fixaram-se avidamente em mim antes de ele pestanejar duas vezes, e de imediato deram lugar a olhos como cerveja de malte num copo com o sol a brilhar por trás.
— Stefan?
Pestanejou. O efeito produzido foi muito interessante: rubi, cerveja de malte, rubi, cerveja de malte.
— O Adam não vai gostar disso.
Rubi, rubi, rubi.
— Se o Adam estivesse aqui, ele próprio doava o seu sangue — repliquei de forma verdadeira, após o que puxei a manga para cima.
Estava a alimentar-se na dobra do meu braço quando o meu telemóvel tocou. Rachel ajudou-me a tirá-lo do bolso e abriu-mo. Não creio que Stefan se tenha sequer dado conta.
— Mercy, onde diabo estás tu?
Darryl, o número dois de Adam e responsável maior do bando na sua ausência, decidira que era sua função tomar conta de mim quando Adam estivesse ausente.
— Ei, Darryl — disse-lhe, tentando não soar como alguém que estivesse a servir de alimento a um vampiro.
O meu olhar recaiu em Ford, que em ocasião alguma se levantara do chão mas que estava fixo em mim com olhos que pareciam gemas amarelas polidas — citrina, talvez, ou âmbar. Não me lembrava de que cor eram os seus olhos uns minutos antes, mas acho que me lembraria daqueles olhos extraordinários caso ali tivessem estado anteriormente. Estava muito perto de se tornar vampiro, pensei. Antes de ter oportunidade de sentir medo, a voz de Darryl interrompeu-me os pensamentos.
— Foste para a casa do Kyle há uma hora e o Warren disse-me que ainda não chegaste.
— É verdade — repliquei, soando espantada. — Vê lá tu. Ainda não cheguei à casa do Kyle.
— Que espertinha — rosnou.
Darryl e eu tínhamos esta dinâmica amor-ódio. Começo a pensar que ele me odeia e faz algo simpático, como salvar-me a vida ou dirigir-me palavras de encorajamento. Concluo que ele gosta de mim e a seguir ataca-me verbalmente. Provavelmente o que acontece é que o deixo completamente confuso, o que aceito, porque o sentimento é mútuo.
Darryl, de entre todos os lobos de Adam, é o que mais odeia vampiros. Se lhe contasse o que estava a fazer, apareceria de imediato com reforços, e haveria cadáveres pelo chão. Os lobisomens tornam tudo mais complicado do que o necessário.
— Vivi trinta e tal anos sem babysitter — disse-lhe numa voz aborrecida. — Tenho a certeza que consigo chegar à casa do Kyle sem uma. — Estava a ficar um pouco tonta. À falta de outro método, dei uma palmada na cabeça de Stefan usando a mão com que segurava o telemóvel.
— O que foi isso? — perguntou Darryl, e Stefan agarrou-me o braço ainda com mais força.
Inspirei fundo porque Stefan me estava a magoar — e apercebi-me de que Darryl também ouvira isso.
— Era o meu amante — respondi a Darryl. — Dá-me licença que o ajude a terminar o serviço. — E desliguei o telefone.
— Stefan — disse. Mas era desnecessário. Soltou-me, recuou alguns passos e colocou-se sobre um joelho.
— Desculpa — rosnou. As suas mãos estavam pousadas no chão à sua frente, os punhos cerrados.
— Não há problema — disse-lhe, relanceando os olhos ao meu braço. Os pequenos ferimentos estavam fechados, sarando rapidamente com a saliva dele. Tinha aprendido mais sobre vampiros no último ano do que em toda a minha vida. Bendita ignorância, aquela em que vivera.
Sabia, por exemplo, que por causa do meu vínculo com Adam, ter permitido que Stefan se alimentasse de mim novamente não teria quaisquer repercussões. Um humano sem essa proteção que servisse de alimento para o mesmo vampiro em mais do que uma ocasião podia vir a tornar-se uma espécie de animal de estimação — que era o caso de todos os elementos do rebanho: dependentes do vampiro e dispostos a obedecer a quaisquer ordens que ele lhes desse.
O meu telemóvel tocou e, com ambas as mãos disponíveis, pude verificar o número: Darryl. Ok, é possível que o facto de ter permitido que Stefan se alimentasse de mim tivesse repercussões, mas elas teriam mais a ver com a possibilidade de Darryl me chibar a Adam do que com Stefan. Premi um botão na parte lateral do telemóvel para que parasse de tocar.
— Meti-te em sarilhos — disse Stefan.
— Com o Darryl? — perguntei. — Lido bem com os problemas que possa ter com o Darryl, e sou menina para lhe tratar da saúde caso ele se estique demasiado.
Stefan levantou-se, inclinou a cabeça e dirigiu-me um breve sorriso — e, de repente, parecia-se muito mais com o Stefan que eu conhecia.
— Tu? A Menina Coiote versus o grande lobo mau? Não me parece.
Provavelmente tinha razão.
— O Darryl não é o meu guarda — disse-lhe resolutamente.
Resfolegou.
— Não, não é. Mas se te acontecer alguma coisa enquanto o Adam estiver fora, é o Darryl que vai levar com a culpa.
— O Adam não é assim tão estúpido — retorqui.
Pôs-se à espera.
— Chiça — disse-lhe, e liguei a Darryl de volta.
— Está tudo bem comigo — informei-o. — Ocorreu-me que o Stefan pudesse precisar de sair um bocado e passei por casa dele para o vir buscar. Telefono-te quando estacionar na rampa de entrada da casa do Kyle, depois podes telefonar ao Adam e dizer-lhe que estou em segurança. Também lhe podes dizer que desde que não tenha rainhas das fadas loucas, monstros dos pântanos ou violadores megalómanos atrás de mim, sei tomar conta de mim.
Darryl inspirou fundo. Creio que terá sido por causa da menção ao violador, mas esse assunto já não me deixava apavorada. O homem estava morto, e fora eu a matá-lo. Os pesadelos tinham praticamente desaparecido, e quando apareciam, tinha a companhia de Adam para os combater. Adam é um homem muito bom para se ter ao lado num combate, mesmo que a única coisa que se está a combater seja uma memória má.
— Esqueceste-te dos vampiros possuídos pelo demónio — comentou Stefan, interrompendo o silêncio. Os vampiros, à semelhança dos lobisomens, conseguem ouvir conversas telefónicas privadas. Tal como eu, na verdade. Passei a ser uma grande adepta das mensagens escritas desde que me mudei para o Quartel-General do Bando.
— Pois esqueceu — disse Darryl. A sua voz suavizara-se num tom melífluo. — Nós tentamos dar-te o ar de que precisas para respirar, Mercy. Mas é difícil. És tão frágil e…
— Imprudente? — sugeri. — Estúpida? — Sou cinturão castanho em karaté e ganho a vida a reparar carros. Só em comparação com um lobisomem é que sou frágil.
— De maneira nenhuma — discordou, embora já o tivesse ouvido chamar-me imprudente e estúpida, entre uma série de outras coisas pouco lisonjeiras. — A tua capacidade de sobreviver a qualquer coisa que te apareça no caminho às vezes deixa-nos a engolir medicamentos para úlceras durante dias. Não gosto do sabor do Maalox.
— Estou em segurança. Estou bem. — Excetuando algumas nódoas negras resultantes do meu embate com o piano e, dei-me conta disso ao dar um passo, algumas tonturas provocadas pela perda de sangue. No entanto, Darryl não se apercebeu da minha mentirita sem importância. Apesar de ser capaz de detetar uma mentira tão bem como qualquer outro lobisomem, ele não era o Marrok, que conseguia descobrir as minhas mentiras antes de elas me saírem da boca, inclusive ao telefone. Em todo o caso, estava em segurança. Olhei para Ford um pouco a medo, mas ainda não se tinha mexido do sítio para o qual Stefan o atirara.
— Obrigado — disse Darryl. — Liga-me quando chegares à casa do Kyle.
Desliguei.
— Acho que gostava mais quando o bando me queria ver morta — confessei a Stefan. — Estás pronto para ir?
Stefan baixou uma mão e puxou Ford até este ficar de pé — e a seguir encostou-o contra uma parede.
— Não te voltas a meter com a Mercy — disse-lhe.
— Sim, senhor — replicou Ford, que não oferecera qualquer resistência quando Stefan o sacudira.
Do corpo de Stefan desapareceu qualquer indício de violência, e encostou a testa ao ombro do homem mais alto.
— Desculpa. Eu vou resolver isto.
Ford levantou o braço e deu uma palmadinha no ombro de Stefan.
— Sim — disse. — Claro que sim.
Admito que fiquei surpreendida ao constatar que Ford era capaz de dizer mais palavras além de «Esmagar».
Stefan afastou-se dele às arrecuas e olhou para Rachel.
— Há comida na cozinha?
— Sim — respondeu-lhe. Depois engoliu em seco e disse: — Posso fazer hambúrgueres e dar de comer aos outros.
— Isso seria bom, obrigado.
Rachel acenou com a cabeça, dirigiu-me um breve sorriso e desapareceu pelo interior da casa — presumivelmente rumo à cozinha, com Ford a segui-la como um cachorro grande, um cachorro mesmo muito grande com dentes afiados.
Saímos porta fora e Stefan olhou em volta para o que restava do seu relvado. Parou ao lado da carrinha, abanou a cabeça e seguiu-me até ao meu carro. Não pronunciou uma única palavra até alcançarmos a autoestrada paralela ao Columbia.
— Os vampiros velhos estão sujeitos a fugas — disse-me. — Não lidamos tão bem com a mudança como quando éramos humanos.
— Eu cresci num bando de lobisomens — lembrei-o. — Os lobos velhos também não lidam muito bem com a mudança. — Depois, não fosse dar-se o caso de ele pensar que estava apenas a ser solidária, acrescentei: — Claro que normalmente eles não arrastam consigo uma série de pessoas que depende deles.
— Ah, não? — murmurou. — Curioso. Pensava que o Samuel quase tinha arrastado consigo uma série de pessoas.
Reduzi uma mudança e ultrapassei uma avozinha que circulava a oitenta numa zona com um limite de velocidade de cem quilómetros por hora. Quando o rugido do pequeno motor a diesel do Rabbit me aliviou parte da ira, engatei a mudança seguinte e disse:
— Um ponto para ti. Tens razão. Desculpa não ter aparecido mais cedo.
— Ah — disse Stefan, olhando para as próprias mãos. — Terias aparecido se eu te tivesse telefonado.
— Se estivesses em condições para me telefonar a pedir ajuda — repliquei —, provavelmente não terias precisado de o fazer.
— Então — disse ele, mudando de assunto —, que filme é que vamos ver esta noite?
— Não sei. Desta vez é o Warren a escolher, e ele pode ser um tanto ou quanto imprevisível. Da última vez que foi ele a escolher, vimos a versão de 1922 do Nosferatu, e, antes disso, Perdidos no Espaço.
— Eu gostei de Perdidos no Espaço — disse Stefan.
— Do filme ou da série de televisão?
— Do filme? Ah, pois. Tinha-me esquecido de que havia um filme — disse sobriamente. — E preferia não me ter lembrado.
— Às vezes a ignorância é mesmo uma bênção.
Olhou para mim, depois franziu o sobrolho.
— Sumo de laranja ajuda a aliviar a dor de cabeça.
Estava à espera na fila de um restaurante drive-in, tendo pedido dois sumos de laranja e um hambúrguer, depois da insistência de Stefan, quando o meu telemóvel tocou novamente. Presumi que fosse Darryl a meter o bedelho novamente, pelo que atendi sem olhar para o ecrã. Um dia vou deixar de fazer isso.
— Mercy — disse a minha mãe —, ainda bem que te consigo apanhar. Ultimamente tem sido difícil chegar à fala contigo. Precisava de te dizer que tenho tido problemas em relação às pombas. Consigo encontrar pessoas que têm pombos, mas o homem que tinha pombas simplesmente desapareceu. Descobri hoje que pelos vistos também tinha cães de luta e está a cumprir uma pena de alguns anos atrás das grades.
A minha dor de cabeça piorou subitamente.
— Pombos? — Tinha-lhe dito que não queria pombas. Pombas e lobisomens são… Bom, tinha-lhe dito que não queria pombas.
— Para o teu casamento — disse a minha mãe impacientemente. — Sabes, aquele que vais ter em agosto? Só faltam seis semanas. Pensava que tinha o assunto das pombas controlado — estava convicta de que lhe tinha dito «nada de pombas» — mas depois, bom… Em todo o caso, não ia querer dar dinheiro a alguém envolvido em lutas de cães. Embora se calhar isso não incomodasse o Adam?
— Isso ia incomodar o Adam — repliquei. — E incomoda-me a mim. Nada de pombas. Nada de pombos, mãe. Nada de cães de luta.
— Ah, ainda bem — disse num tom animado. — Achei que ias concordar. Afinal de contas, tem origem numa lenda índia.
— O quê? — perguntei a medo.
— Borboletas — respondeu alegremente. — Vai ser lindo. Pensa nisso. Também podíamos largar balões de hélio. Talvez uns duzentos cheguem. Borboletas e balões dourados largados para o céu para celebrar a vossa nova vida em conjunto. Bem — disse numa voz apressada e determinada —, é melhor ir tratar disso.
Desligou e pus-me a olhar para o telemóvel. Stefan estava com convulsões no lugar do passageiro.
— Borboletas — conseguiu dizer entre ataques de riso descontrolado. — Pergunto-me onde terá ela arranjado borboletas.
— Ri-te à vontade — disse-lhe. — Não és tu que vais ter de explicar a um bando de lobisomens porque é que a minha mãe vai largar borboletas… — Fi-lo gargalhar novamente. Era inútil alimentar a esperança de que fossem apenas uma ou duas. Não, a minha mãe fazia sempre tudo em grande. Imaginei mil borboletas e, Deus Nosso Senhor me ajude, duzentos balões de hélio dourados.
Inclinei-me para a frente e bati com a cabeça no volante.
— Vou fugir com o Adam. Disse-lhe que devíamos fazer isso, mas ele não quis ferir os sentimentos da minha mãe. Pombas, pombos, borboletas… Ainda vamos acabar por ter um avião com uma faixa e fogo de artifício…
— Uma banda marcial — disse Stefan. — E gaitas de foles com belos gaiteiros escoceses apenas com os kilts vestidos. Bailarinas da dança do ventre… Há uma série de grupos locais de bailarinas de dança do ventre. Motards tatuados. Aposto que a conseguia ajudar a encontrar um urso bailarino…
Paguei a minha comida enquanto ele inventava novas e maravilhosas coisas para acrescentar à angústia do meu dia de casamento.
— Obrigada — disse-lhe, sorvendo um grande gole de sumo de laranja, após o que regressei para o meio do trânsito. Detesto sumo de laranja. — És uma ajuda inestimável. A minha nova ambição de vida é certificar-me de que tu e a minha mãe nunca se juntem no mesmo espaço até eu e o Adam casarmos.
Stefan reanimara-se de tal modo com as gargalhadas e o sangue que, excluindo uma observação de Kyle em que disse «Alguém precisa de ter consciência de que o look de manequim nem aos manequins fica bem», nem Kyle nem Warren pareceram notar algo de errado em Stefan. Também, revelando tato, não fizeram qualquer comentário em relação ao sumo de laranja no qual, em circunstâncias normais, não teria tocado nem com uma vara de três metros.
Pegámos em três taças de pipocas de micro-ondas e dirigimo-nos para a sala de cinema. Kyle é um advogado muito bem-sucedido; a sua casa é suficientemente grande para ter uma sala de cinema. A casa de Adam também tem uma sala de cinema — mas, no fundo, trata-se da casa não oficial de todo o bando. A todo o momento recebemos pessoas que passam lá a noite. A casa de Kyle é apenas para Kyle e Warren. Warren sentir-se-ia feliz a viver numa tenda na cordilheira. Kyle prefere tapetes persas, tampos de balcões em mármore e cadeiras de couro. É revelador — não sei bem de quê — o facto de estarem a viver naquela que é a ideia de casa de Kyle e não naquela que é a ideia de casa de Warren.
A escolha de Warren para a nossa sessão de cinema foi A Sombra do Vampiro, um filme ficcional sobre a criação de Nosferatu. Alguém tinha feito uma pesquisa aprofundada em torno das lendas sobre o filme antigo e jogara com elas.
A dada altura, ao ver o rosto sério de Stefan, disse-lhe num sussurro:
— Sabes, tu és um vampiro. Não devias ter medo deles.
— Qualquer pessoa — replicou Stefan com convicção — que tivesse conhecido o Max Schreck passaria a ter medo de vampiros para o resto da vida. E apanharam-no em flagrante.
Warren, que estava no chão, sentado na sua posição favorita — de costas encostadas às pernas de Kyle — premiu o botão de pausa, sentou-se direito e torceu o corpo para conseguir ver Stefan, que estava sentado no lado oposto do sofá. Eu, na condição de rapariga solitária, sentara-me na enorme cadeira reclinável nova.
— O filme é baseado em factos verídicos? O Max Schreck era mesmo um vampiro? — perguntou Warren. Max Schreck era o nome do homem que desempenhava o papel de vampiro em Nosferatu.
Stefan fez que sim com a cabeça.
— O seu verdadeiro nome não era Shreck, mas ele usou-o durante um ou dois séculos, portanto serve. Um velho monstro assustador. Mesmo assustador, mesmo velho. Decidiu que queria aparecer no filme, e nenhum dos outros vampiros se atreveu a dissuadi-lo.
— Espere lá — disse Kyle. — Achava que uma das queixas em relação ao Nosferatu era que todas as cenas com o Shreck eram claramente filmadas durante o dia. Vocês, vampiros, não dormem durante o dia?
Kyle, como amante de Warren, tinha um conhecimento muito mais aprofundado das coisas que vagueiam pela noite do que a maior parte dos humanos, para quem os vampiros eram monstros dos filmes, não homens que usavam t-shirts do Scooby-Doo e viviam em casas de luxo em cidades reais. No entanto, pensei, não tardaria muito até que os vampiros se dessem a conhecer. Os lobisomens tinham-no feito há um ano e meio — apesar de terem tido cuidado em relação ao que disseram publicamente. Os seres feéricos tinham-se dado a conhecer na década de 1980. As pessoas começavam a aperceber-se gradualmente de que o mundo é um sítio mais assustador do que o discurso científico dos últimos séculos as levara a crer.
— Nós morremos durante o dia — respondeu Stefan. — Mas o Max era muito velho. Ele tinha a capacidade de fazer todo o tipo de coisas, e não me surpreenderia se viesse a saber que conseguia andar de dia. Só estive com ele uma vez, muito tempo antes do Nosferatu. Ele compareceu a uma das festas do Senhor de Milão, o Senhor da Noite, sem ter sido convidado. Foi estranho ver tantas pessoas poderosas encolherem-se de medo perante um homem sujo, miseravelmente vestido e extraordinariamente feio. Vi-o matar uma vampira de duzentos anos com um olhar. Desintegrou-a em pó com um simples olhar de relance por se ter rido dele. O Senhor da Noite, que era o senhor dela, era muito velho e poderoso, mesmo nessa altura, e nem sequer abriu a boca para protestar apesar de ela ser a mais nova do seu rebanho e lhe ser muito cara.
— O Shreck ainda está vivo? — perguntou Warren.
— Não sei — respondeu Stefan, e acrescentou, quase em surdina: — E não quero saber.
— Ele foi sempre assim tão feio ou piorou com a idade? — inquiriu Kyle. Kyle era bonito, e sabia-o. Nunca tive a certeza se ele era de facto vaidoso, ou se se tratava de mais uma entre as muitas coisas que usava para camuflar a inteligência atrás da cara bonita. Suspeitava que ambas eram verdade.
Stefan sorriu.
— Essa é a pergunta que persegue os vampiros mais velhos. Não fazemos perguntas sobre a idade, mas conseguimos perceber, mais ou menos. O Wulfe é provavelmente o vampiro mais velho que já conheci, excluindo o Max. O Wulfe não é feio nem monstruoso. — Fez uma pausa, e depois continuou num tom ponderado: — Pelo menos não por fora.
— Talvez ele fosse um ser feérico ou parcialmente feérico — avancei. — Alguns deles têm uma aparência muito… invulgar.
— Nunca ouvi isso a respeito dele — disse Stefan. — Mas quem poderia saber?
Warren carregou no botão de Play e, de certo modo, o facto de saber que Max Shreck, que desempenhara o papel do verdadeiro Conde Orlok, fora um pesadelo para os vampiros, tornou o filme muito mais assustador — e antes disso já tinha elementos de sobra para o ser. Apenas Warren parecia indiferente ao efeito.
Quando o filme terminou, relanceou os olhos a Stefan.
— Vampiro — disse sem intenção de insultar —, porque é que não vem comigo lá abaixo à cozinha enquanto estes dois passam os olhos pela extraordinária coleção de maravilhas do cinema do Kyle, para ver se encontram alguma coisa que impeça a Mercy de conduzir até casa em excesso de velocidade.
— Ei! — disparei, indignada.
Exibiu-me um sorriso rasgado enquanto se levantava do chão e se esticava, o seu corpo alto e magro quase a tocar o teto sob o olhar admirador de Kyle. Warren não era tão bonito como Kyle, mas também não era o Max Shreck, e sabia que se estava a exibir para um público. Talvez Kyle não fosse o único vaidoso.
— Ei, Mercy — disse Warren. — E que tal se víssemos outro filme? O Stefan está habituado a ficar acordado até tarde e o Adam não está em casa à tua espera. Escolham um filme, vocês os dois, que eu e o Stefan vamos voltar a encher as taças de pipocas.
Kyle esperou que Warren e Stefan chegassem ao piso inferior antes de dizer:
— O Stefan parece estar com fome. Achas que o Warren o vai alimentar antes de o trazer de volta?
— Acho que isso é capaz de ser uma boa ideia. Ele já bebeu do meu sangue hoje e estava a começar a olhar para ti como se fosses o jantar dele. Não me parece que o Warren fosse permitir que o Stefan se alimentasse de ti, mesmo que ele pedisse e tu consentisses. Os lobisomens são assim, possessivos. Provavelmente é melhor se for o Warren a fazê-lo. Sendo um lobisomem com um bando, o Warren não vai acabar como o velho amigo do Stefan, Renfield1.
Kyle fez uma careta.
— Não faças uma pergunta se não quiseres ouvir a resposta — disse-lhe, pulando da cadeira e examinando cuidadosamente uma das estantes repletas de Blu-rays, DVDs e cassetes VHS.
Quando Warren e Stefan regressaram, pareceu-me óbvio que Stefan se tinha alimentado novamente. Movia-se com algo próximo da sua graciosidade habitual.
— Não têm A Noiva de Frankenstein? — perguntou Stefan, numa altura em que Kyle segurava o The Lost Skeleton of Cadavra2 como nossa escolha para o segundo filme. — Ou O Pai da Noiva? Quatro Casamentos e Um Funeral? — Desviou os olhos na minha direção. — O Efeito Borboleta, talvez? — Não havia dúvidas, estava a sentir-se melhor.
Atirei-lhe uma almofada.
— Cala-te. Ca-la-te.
Stefan apanhou a almofada, atirou-a contra mim e soltou uma risada.
— Que se passa? — perguntou Kyle.
Enterrei a cabeça na almofada.
— A minha mãe desistiu das pombas para o meu casamento e, apesar de eu não saber que essa possibilidade estava em cima da mesa, pelos vistos também desistiu dos pombos. Em vez disso, quer largar borboletas e balões.
Warren pareceu apropriadamente chocado, mas Kyle começou a rir.
— É uma moda recente, Mercy — disse. — É o ideal para ti porque supostamente se baseia numa lenda índia. A história é a seguinte: se apanhares uma borboleta e lhe sussurrares o teu desejo, e depois a largares, a borboleta levará o teu pedido até ao Grande Espírito. Uma vez que libertaste a borboleta, quando a podias ter matado ou capturado, o Grande Espírito vai sentir-se inclinado a considerar o teu pedido favoravelmente.
— Estou condenada — disse à almofada. — Condenada a borboletas e balões.
— Pelo menos não são pombos — observou Warren, pensando no sentido prático.
1 Personagem do romance Drácula, de Bram Stoker, que vive internado num manicómio e sofre de alucinações que o impelem a comer criaturas vivas na esperança de, através do sangue delas, obter a sua força. No decurso da trama, vem-se a saber que está sob a influência do Conde Drácula. (N. do T.)
2 Filme independente série B, realizado na década de 1950 pelo realizador norte-americano Larry Blamire. (N. do T.)
2
— Então o que é que fizeste ao Darryl? — perguntou-me Adam enquanto fechava a porta do condutor do meu Rabbit.
Normalmente era eu quem conduzia o Rabbit, mas os lobos Alfa não lidam bem com as viagens de avião através de companhias aéreas. O facto de se ter visto obrigado a confiar num estranho para pilotar o avião deixara Adam com uma necessidade de controlo, pelo que quando eu e a sua filha Jesse o fomos buscar ao aeroporto, ele ocupou a posição ao volante.
— Eu não fiz nada ao Darryl — protestei.
Adam olhou-me longamente antes de engatar a marcha-atrás, sair do lugar de estacionamento e conduzir em direção à saída do parque de estacionamento do aeroporto.
— Passei pela casa do Stefan a caminho da noite de cinema — disse. — Adam, o Stefan está num sarilho tremendo. Perdeu muitos dos elementos do rebanho e ainda não os substituiu. Estão a morrer; ele estava a morrer.
Adam agarrou o meu braço e virou-o para ver a dobra. Também eu olhei com interesse para a pele imaculada.
— Mercy — disse Adam, enquanto Jesse dava risadinhas no banco traseiro. — Deixa-te de palhaçadas.
— É no outro braço — disse-lhe. — São só duas marcas. Daqui a um dia já desapareceram. Sabes bem que não me vai fazer mal nenhum. O nosso vínculo de companheiros e com o bando impede-o de comunicar comigo da mesma forma que comunicaria com um humano.
— Não admira que o Darryl estivesse chateado — replicou Adam enquanto parava na cabine de pagamento de bilhetes, atrás de outro carro. — Ele não gosta de vampiros.
— O Stefan precisa de arranjar mais pessoas para o rebanho dele — disse-lhe. — Ele sabe disso, eu sei disso… mas não lho posso dizer.
— Porque não? — perguntou Jesse.
— Porque o rebanho de um vampiro é constituído por vítimas — respondeu Adam. — A maior parte delas morre muito lentamente. O Stefan é menos cruel do que o vampiro comum, mas não deixam de ser vítimas. Se a Mercy o encorajar a ir à caça, basicamente está a dizer que aprova o que ele fizer.
— O que não é verdade — intervim resolutamente. O condutor do carro à nossa frente estava a discutir com a senhora dos bilhetes. Catei o bolso das minhas calças de ganga.
— Mas acontece que se trata do Stefan — disse Adam. — Que, para um vampiro, até nem é um tipo ruim.
— Pois não — concordei sobriamente. — Mas não deixa de ser um vampiro.
A senhora na cabine de pagamento de bilhetes aparentemente ganhara a discussão, uma vez que o condutor lhe entregou o cartão de crédito. Notei que a senhora tinha um conjunto de balões de hélio ao seu lado; no centro estava um balão brilhante que dizia «Feliz Aniversário, Avó!»
— Tenho um pedido a fazer — disse a Adam enquanto ele entregava o bilhete de estacionamento à senhora na cabine.
— Qual? — Parecia exausto. Era a segunda viagem que fazia este mês à outra Washington no lado oposto do país, e isso notava-se no seu estado de cansaço. Hesitei. Talvez devesse esperar que ele dormisse uma boa noite de sono.
No banco traseiro do Rabbit, Jesse dava risadinhas. Ela era uma boa miúda, e gostávamos uma da outra. Hoje, o seu cabelo tinha a mesma tonalidade castanha-escura da do pai. Ontem estava verde. O verde não é uma boa cor de cabelo para ninguém. Após três semanas de cabelo que se parecia com espinafres em estado de apodrecimento, creio que finalmente concordou comigo. Quando me levantei esta manhã para ir trabalhar, estava a pintá-lo. De certo modo, o castanho fora mais inesperado do que o verde.
— Chiu — disse-lhe com severidade fingida. — Não te metas.
— De que é que precisas? — perguntou-me Adam.
Já me sentia melhor com ele em casa — a ansiedade ininterrupta que era a minha companhia constante quando ele estava ausente desaparecera, e levara consigo a pavorosa sensação de estar encurralada.
A senhora na cabine fez que sim com a cabeça e acenou para avançarmos porque tínhamos chegado na altura do desembarque de Adam e apenas estávamos ali há quinze minutos — ainda dentro do limite de tempo para o estacionamento gratuito.
Os balões ao lado dela provocaram-me uma sensação de aperto no estômago, especialmente os dourados.
— Quero casar — disse-lhe, enquanto Adam arrancava e os balões ficavam para trás.
Virou a cabeça bruscamente e olhou-me por breves momentos, antes de voltar a concentrar a atenção na estrada. Provavelmente o seu olfato estava a dar-lhe alguma indicação daquilo que eu sentia. A maior parte dos sentimentos fortes é vulnerável à deteção quando se vive com lobisomens. O meu olfato também era bom, mas apenas me indicava que Adam viajara com uma mulher ao seu lado, porque o cheiro dela alojara-se na sua manga. Era frequente o nosso vínculo de companheiros permitir-nos saber o que o outro estava a sentir ou, mais raramente, a pensar, mas neste momento isso não estava a acontecer.
— Eu tinha ficado com a impressão de que vamos casar — disse ele, cautelosamente.
— Agora, pai. — Jesse enfiou a cabeça entre os bancos dianteiros do meu Rabbit. — Ela quer casar agora. A mãe dela ligou na sexta e desistiu das pombas…
— Pensava que já lhe tinhas dito que não queríamos pombas? — disse-me Adam.
— … e dos pombos — continuou a sua filha, despreocupadamente.
— Pombos? — disse Adam pensativamente. — Os pombos são bonitos. E são muito saborosos, também.
Bati-lhe no ombro. Não com muita força, apenas a suficiente para dar a entender que percebera a provocação.
— … mas acabou por decidir que seria melhor usar borboletas — prosseguiu Jesse.
— Borboletas e balões — disse eu a Adam. — Ela quer soltar borboletas e balões. Dourados.
— Se ela quer usar balões dourados, espero que esteja a tentar encontrar borboletas-monarcas — comentou Jesse num tom prestável.
— Borboletas-monarcas — repetiu Adam. — Conseguem imaginar as pobres criaturas a tentar descobrir o trajeto de migração a partir de Tri-Cidades?
— Ela tem de ser impedida antes que destrua o ecossistema — disse-lhe, apenas meio a brincar. — E só me ocorre uma forma de fazer isso. A minha irmã fugiu com o noivo por causa da pressão dos preparativos para o casamento feitos pela minha mãe. Acho que também posso fazer o mesmo.
Gargalhou — e pareceu muito menos cansado.
— Eu adoro a tua mãe — replicou com uma satisfação honesta que lhe baixou a voz até um ronronar. — Creio que preservar o ecossistema de Tri-Cidades é uma razão válida para nos anteciparmos. Assim sendo, vamos casar-nos. Tenho o meu passaporte comigo. Tens a tua certidão de nascimento contigo para obtermos a licença, ou precisamos de ir a casa antes?
Era um pouco mais complicado do que isso, pelo que precisámos de dois dias para casar. O processo de fugir e casar não é tão rápido como fora em tempos, a menos que se viva em Las Vegas, presumo. É verdade que talvez conseguíssemos tê-lo feito mais depressa, mas insisti que fosse o Pastor Arnez a fazer as honras. E ele tinha um funeral e dois casamentos antes de poder dirigir a nossa cerimónia.
Adam perdera imensas coisas quando combatera no Vietname. A sua humanidade e crença em Deus eram apenas duas delas, dissera-me. Não estava propriamente extasiado com a ideia de um casamento pela Igreja, mas na verdade não podia objetar sem admitir que o que sentia em relação a Deus era raiva, não descrença. Sentia-me contente por ter evitado essa discussão durante uns tempos.
A nossa intenção era que a cerimónia fosse pequena: Adam, Jesse e eu própria, juntamente com duas testemunhas. Peter, o solitário submisso do bando, passou lá por casa na altura certa e portanto foi pressionado a servir de testemunha. Zee, o meu mentor, que tomaria conta do meu negócio enquanto estivéssemos ausentes na nossa lua-de-mel improvisada, foi incluído nos nossos planos quase imediatamente e reivindicou o privilégio de ser a segunda testemunha. Apesar dos rumores, as criaturas feéricas não têm qualquer problema em entrar numa igreja, seja qual for a denominação ou religião. É o aço que a Igreja Cristã dos primórdios trouxe consigo que é mortal para as criaturas feéricas, não a Cristandade — embora por vezes as criaturas feéricas também se esquecessem dessa parte.
No entanto, não sei como, a notícia espalhou-se pelo bando e a maior parte dos seus elementos estava na igreja na segunda-feira de manhã, pela altura em que eu e Jesse chegámos de carro. Adam ia noutro carro com Peter, seguindo a tradição. Tivera de parar para meter gasolina, pelo que eu e Jesse chegámos primeiro, e quando estacionámos, havia imensos carros conhecidos no parque.
— As notícias espalham-se depressa — disse eu, saindo do carro.
Jesse acenou solenemente.
— Lembras-te de quando a Auriele tentou preparar uma festa surpresa para o Darryl? Talvez tivéssemos conseguido manter o bando longe disto se tivéssemos realizado a cerimónia ontem. Importas-te muito?
— Não — respondi. — Não me importo. Mas se estiver aqui muita gente, a minha mãe vai sentir-se mal. — O meu estômago começou a apertar de ansiedade. Uma das razões para eu ter um casamento planeado era evitar ferir os sentimentos das pessoas. Bem vistas as coisas, talvez isto não tivesse sido muito boa ideia.
No entanto, quando entrámos na igreja, tornou-se óbvio que não tinha sido apenas o bando a descobrir. O Tio Mike saudou-nos à porta — presumo que Zee lhe tivesse contado. Olhando por cima do ombro dele, constatei que o velho dono de uma taberna trouxera consigo mais algumas criaturas feéricas, incluindo — para minha consternação — a Rapariga do Ioió, que na última ocasião em que a vira estava a comer as cinzas de uma rainha das fadas. «Rapariga do Ioió» não era o seu verdadeiro nome, que aliás nunca vim a saber; apenas se relacionava com o que ela estava a fazer na primeira ocasião em que a conhecera. Era perigosa, poderosa, e parecia uma rapariga de dez anos com flores no cabelo, trajando um vestido de verão. Sorriu-me. Julgo que ela sabia o quanto me apavorava e achava isso engraçado.
Não tencionara caminhar formalmente através do corredor. Porém, à medida que as pessoas começavam a chegar, Samuel — lobisomem, antigo companheiro de casa e namorado de há muito tempo — afastou-me do núcleo de pessoas e deu-me um ramo de flores brancas e douradas.
Puxou-me o cabelo para trás da orelha esquerda e curvou-se para sussurrar:
— Caramba, com a Jesse a trabalhar, isto foi sempre a andar. Em pouco mais de três dias, organizou isto tudo.
— Três? — retorqui. — Só ontem é que decidimos sair da cidade para casar.
Sorriu e beijou-me na testa.
— Eu ouvi falar disto no sábado. — Antes de Adam ter regressado da Costa Leste.
Relanceei os olhos a Jesse, que me dirigiu um sorriso animado e com a boca disse «Surpresa». Depois olhei em volta com atenção. Enquanto esperávamos por Adam, o adro da igreja começava a adquirir um ar festivo à medida que as pessoas exibiam caixas com flores e fitas brancas largas — e, se não estava em erro, algumas das criaturas feéricas estavam a fazer uso de magia para acrescentarem o seu próprio toque.
Estava enfiada no meu vestido de noiva, comprado no mês anterior. Ocorrera-me que pareceria estranho, tratando-se de uma cerimónia tão rápida, mas uma vez que já tinha o vestido — uma coisa grande e volumosa da cintura para baixo e de seda branca justa em cima, com mangas estreitas —, Jesse dissera-me que o devia usar. E Jesse optara por colocar o seu vestido de dama de honor porque «O que é que eu haveria de vestir?» Ao vê-la com ele, não desconfiara minimamente, provavelmente porque adorava o vestido e teria aceitado qualquer desculpa para o vestir.
Alguém abriu as portas da capela para que as pessoas se pudessem ir sentar, mas já havia imensas pessoas sentadas. Não apenas lobos e criaturas feéricas — consegui ver alguns dos contactos profissionais de Adam e alguns dos meus clientes habituais na oficina. Gabriel, o meu braço-direito na oficina, e Tony, meu amigo do Departamento de Polícia de Kennewick, estavam sentados lado a lado. Aproximei-me um passo da capela, tentando ver todas as pessoas que Jesse convidara para vir ao meu casamento. Eram muitas.
Samuel segurou-me enquanto o adro se esvaziava, até restarmos apenas nós, Jesse e Darryl — e o órgão começou a tocar Wagner.
Jesse, com o braço enfiado no de Darryl, conduziu a procissão em direção ao átrio da igreja. Parou aí para permitir às minhas irmãs Nan e Ruthie, que evidentemente haviam estado escondidas atrás das portas da capela para que não as visse, seguirem à frente, acompanhadas por Warren e Ben, outro dos lobos de Adam.
À frente da capela, Adam estava à minha espera ao lado do pastor.
Pestanejei para impedir que me saíssem lágrimas, após o que funguei — e Samuel largou-me o braço.
Olhei para ver o que estava a fazer, mas um outro homem tinha ocupado o seu lugar.
— O Zee queria ter a honra de te conduzir ao altar — disse Bran, pai de Samuel, o Marrok que mandava em todos os lobos de todos os sítios, e Alfa do bando de Montana que me criara. — Mas eu tinha prioridade.
— Discutiram durante um bom pedaço — sussurrou Samuel. — Pensei que viesse a haver sangue.
Passei a igreja em revista e constatei que muitos dos elementos do bando de Montana com quem crescera estavam presentes. Charles, o irmão de Samuel, sentado ao lado da sua companheira, sorriu-me. Charles raramente — ou mesmo nunca — sorria.
Nessa altura, para minha humilhação, comecei a chorar.
Bran chegou-se mais a mim enquanto caminhávamos lentamente, e num sussurro quase impercetível que mais ninguém além de nós perceberia, disse:
— Antes de ficares toda emocionada com a nossa generosidade ao prepararmos-te tudo isto, devias tomar conhecimento de algumas coisas. Tudo começou com uma aposta…
Quando nos alinhámos à beira do altar, de um modo tão gracioso que parecia ensaiado, Bran tinha razão: já não me sentia comovida. Nem estava a chorar. Nan, Ruthie e Jesse estavam postadas ao meu lado, juntamente com Bran, que ainda segurava a minha mão. Darryl, Warren e Ben estavam alinhados no lado oposto, junto a Adam.
A minha mãe, a traidora sentada na primeira fila de bancos, mandou o meu padrasto levantar-se e colocar uma borboleta-monarca feita de seda no meu ramo de flores. Ele beijou-me na face, trocou um aceno de cabeça com Bran, e depois voltou a sentar-se ao lado da minha mãe. A minha mãe dirigiu-me um sorriso satisfeito e não se parecia nada com a conspiradora perversa que era.
— Balões — disse-lhe com a boca, erguendo uma sobrancelha para mostrar o que pensava do seu subterfúgio.
Apontou para cima discretamente — e ali, encostadas ao teto, estavam dezenas de balões dourados com borboletas de seda atadas aos fios.
Ao meu lado, Bran riu-se — indubitavelmente da minha expressão estupefacta.
— Tal como as criaturas feéricas — murmurou —, a tua mãe não mente. Apenas te conduz até onde quer que tu vás, independentemente da tua vontade, e fá-lo para o teu próprio bem. Se te serve de ajuda, não estás sozinha; ela veio ter comigo com uma coiote bebé para criar, e olha para o que me aconteceu. Pelo menos tu não lhe deves cem dólares.
— É bem feito, é para aprenderes a não apostar nada com a minha mãe — disse-lhe enquanto a música chegava ao fim e ele me levava para junto de Adam.
Bran parou quase imediatamente, puxou-me para trás ao seu encontro e franziu o sobrolho a Adam — e o peso da sua autoridade sentiu-se em toda a capela. Bran conseguia disfarçar o que era, e normalmente fazia-o, parecendo um jovem franzino sem particular importância. No entanto, de quando em vez, punha a descoberto a verdade do que era. Bran era um lobo muito, muito velho e poderoso. Governava os lobos da nossa parte do mundo, e ninguém neste espaço, nem mesmo os humanos, ficaria admirado com o facto de ele ser capaz de fazer com que os lobos Alfa obedecessem às suas ordens. A música do órgão hesitou perante a sua autoridade e calou-se.
— Cachorrinho — disse, interrompendo o silêncio súbito —, hoje vou dar-te um dos meus tesouros. Vê lá se o tratas devidamente.
Adam, sem dar indícios de se sentir intimidado, acenou uma vez com a cabeça.
— Farei isso.
Depois a ameaça do que Bran era desapareceu e voltou a ser um homem banal de aparência jovem vestindo um smoking cinzento de belo corte.
— Ela vai virar a tua vida do avesso.
Adam sorriu e, do canto do olho, vi a minha mãe refrescar o rosto com um leque — Adam é muito asseado e, com um smoking, é de cortar a respiração, mesmo sem o sorriso.
— Ela tem feito isso nos últimos dez anos — disse. — Não creio que vá mudar tão cedo.
Bran permitiu que eu avançasse, e Adam pegou na minha mão.
— Perdeste dinheiro recentemente? — sussurrei.
— Tenho cara de estúpido? — sussurrou de volta, levando a minha mão aos seus lábios. — Só soube disto quando a tua mãe me ligou para o hotel depois de te ter feito o telefonema a propósito das borboletas. Pelos vistos vem falando com a Jesse há umas semanas. Eu e tu fomos os últimos a saber.
Fitei-o e depois atentei no olhar jubiloso do Pastor Arnez. Tinha de esperar por causa de um funeral… Pois, pois.
— Eu também não apostei nada — sussurrou-me o pastor.
— A maior parte das pessoas — disse Adam ponderadamente, e alto o suficiente para que até os membros da plateia sem dons sobrenaturais o pudessem ouvir — tem festas de aniversário-surpresa. Tu tens um casamento-surpresa.
E, quase como se tivessem sido instruídos para tal — algo que pelo menos meia dúzia de pessoas mais tarde me veio a garantir não ser o caso —, todos gritaram «Surpresa!»
No breve silêncio que se seguiu, um dos balões de hélio rebentou e os seus restos, incluindo uma borboleta de seda, caíram no chão atrás do pastor. Se aquilo era um presságio, não fazia a menor ideia do que queria dizer.
Na cave da igreja havia uma impressionante quantidade de comida e bebida, e aproveitei a oportunidade para chamar a minha irmã Nan, mais nova do que eu, a um canto.
— Como é que tu conseguiste casar às escondidas e a mim prepararam um casamento-surpresa? — perguntei-lhe.
Dirigiu-me um sorriso rasgado.
— Tens bolo no queixo. — Estendeu a mão e limpou-o, olhou em volta à procura de um guardanapo e depois enfiou o dedo na boca e engoliu o pedaço de bolo.
— Bhlác — disse-lhe.
Encolheu os ombros.
— Pelo menos não lambi os dedos antes. Além disso, a cobertura glacé é boa, seria uma pena desperdiçá-la. E, em resposta à tua pergunta, eu fugi para casar antes que a mãe e a minha nova sogra se matassem. Um casamento-surpresa como este teria resultado em corpos espalhados pelo chão. Prepararam-te um casamento-surpresa porque a mãe, o Bran e… mais algumas pessoas se estavam a sentir culpadas.
— Culpadas? — repliquei. — É preciso ter-se consciência para sentir culpa. Não me parece que a nossa mãe seja capaz disso.
Nan deu risadinhas.
— És capaz de ter razão. De qualquer forma, a cena da aposta não foi culpa nossa; foi tua.
Ergui uma sobrancelha, incrédula.
— Culpa minha?
— Começou quando todos reparámos que ficavas assim, com esse ar petrificado, sempre que discutíamos a questão do casamento, e começámos a engendrar isto porque foi quase impossível resistir.
De facto a minha irmã tinha-me feito alguns telefonemas em tom de comiseração. Estreitei-lhe os olhos e ela corou culpadamente.
— A aposta simplesmente acabou por surgir — continuou. — Um dia o pai disse «Aposto que ela foge com o Adam antes da data do casamento.»
— O pai alinhou nisto? — Raramente chamava «pai» ao meu padrasto. Não que não o adorasse, mas tinha dezasseis anos quando o conheci, apesar de nessa altura ele e a minha mãe estarem casados há quase doze anos. Comecei a tratar Curt pelo primeiro nome e nunca adquiri o hábito de lhe chamar outra coisa.
— É claro que não. — A minha irmã mais nova, Ruthie, apareceu repentinamente com um biscoito na mão. Nan, alta e de feições agradáveis, foi atrás do pai; Ruthie era uma miniatura da minha mãe. O que significava que era minúscula, belíssima e metediça. — O pai ficou chocado quando soube daquilo a que deu início. Eu, a Nan e a mãe fomos as primeiras a apostar, mas o Bran alinhou logo a seguir.
Pegou descontraidamente num copo de ponche da mesa e eu tirei-o das suas mãos e voltei a colocá-lo sobre a mesa.
— Ainda não tens vinte e um anos — disse-lhe.
— Faço no mês que vem — lamuriou-se.
Dirigi-lhe um sorriso afetado.
— Fizeste uma aposta relacionada com o meu casamento. Não tens direito a nenhum favor. — Endireitei-me. Tive uma súbita ideia maravilhosa. — Lobos — disse, e reforcei o meu chamamento fazendo uso dos vínculos com o bando, que só agora começava a dominar. Tão-pouco tive de falar alto. Por toda a igreja, os lobos, com os seus rostos humanos, arrebitaram as orelhas e viraram-se na minha direção. — A minha irmã Ruthie ainda não fez vinte e um anos. Nada de álcool para ela. — Depois, para o caso de ela não ter percebido, disse-lhe: — Se te aproximares daquele ponche ou de qualquer outro tipo de bebida alcoólica hoje, os meus lobos vão intervir.
Ruthie bateu com o pé no chão e olhou para Nan.
— Espera e verás. Também apostaste, tu. Ela vai vingar-se de ti e depois eu é que vou sorrir. — Pôs-se a andar com um ar ofendido enquanto eu e Nan a observávamos.
Nan abanou a cabeça.
— Pobre desgraçado aquele que um dia ficar com ela.
Soltei uma risada.
— Ele nunca vai saber no que se meteu. O Curt ainda hoje acha que a nossa mãe é um doce de pessoa que precisa da proteção dele, e sente-se perfeitamente feliz com isso. — Lembrei-me tardiamente que deveria estar zangada com ela. Franzi o sobrolho. — Já chega de falar da mãe e da Ruthie. Vais explicar-me como é que passaram de uma aposta para um casamento-surpresa.
— Bem — replicou —, tal como eu disse, a culpa é tua. Quando percebeu o quanto estavas stressada em relação ao casamento, a mãe ofereceu-se para tratar de tudo por ti. — Riu-se da expressão no meu rosto. — Eu sei. É uma ideia aterradora, não é? Mas é óbvio que tu também não ias gostar minimamente de o preparar.
Lançou um olhar pensativo a Bran, que estava a conversar animadamente com o meu padrasto. O meu padrasto era dentista. Bran governava lobisomens. Não queria saber o que tinham em comum que os excitasse tanto.
— Bom, seja como for, começámos a espicaçar-te — explicou Nan — apenas por diversão. E as apostas tornaram-se um bocadinho mais sérias. Assim que o dinheiro em jogo ultrapassou os vinte dólares, os instintos competitivos da mãe sobrepuseram-se aos maternais. A data que a mãe apontou para a tua fuga foi o dia de amanhã. Portanto planeou aquilo das borboletas e dos pombos, mas creio que por essa altura ela começou a sentir-se mal com a possibilidade de te privar de um casamento verdadeiro. Então decidiu planear o casamento, mesmo sem ti. O que prova que ela deve ter uma consciência, ainda que um pouco subdesenvolvida. Recrutou a Jesse para ser a sua mulher no terreno e organizou este casamento com a eficiência que lhe é habitual. — Nan engoliu uma grande porção de ponche alcoólico e aos seus olhos assomou água.
— Ainda bem que eu e o Todd fugimos para casar — desabafou com sinceridade. — Era impossível impedir a catástrofe. Mas acho que merecias isto, e estou muito feliz por ti. — Inclinou-se e beijou-me na face. A seguir, sussurrou: — Ele é mesmo uma brasa. Como é que conseguiste?
— Fedelha — disse-lhe, e dei-lhe um abraço. — O Todd não é nada de se deitar fora.
Sorriu com ar presunçoso e deu mais um gole.
— Não, não é.
— Podia ser — disse Ben atrás de mim, o seu sotaque britânico a conferir-lhe um ar civilizado que ele não merecia. — Queres que ele seja de deitar fora, querida?
Virei-me, certificando-me de que ficava entre Ben e Nan.
— As minhas irmãs são território interdito — lembrei-o.
Uma espécie de dor assomou-lhe ao rosto, para logo desaparecer. Quando se tratava de Ben, nunca dava para perceber bem se a emoção era genuína ou não — porém os meus instintos disseram-me que tinha sido. Portanto continuei num tom de censura fingida:
— A Ruthie é nova de mais para ti e a Nan está casada com um homem impecável. Por isso, porta-te bem.
Nan também se apercebera da dor que assomara ao rosto de Ben, pensei. Era mais branda do que a minha mãe, mais parecida com o pai em termos de temperamento, bem como de aparência. Não conseguia suportar a ideia de ter à sua frente alguém magoado sem fazer alguma coisa em relação a isso.
Suspirou dramaticamente.
— Tantos homens bonitos, e estou presa a apenas um.
Ben sorriu-lhe.
— Quando quiseres mudar isso…
Dei-lhe uma cotovelada no flanco — podia ter desaparecido, mas não o fez.
— Ok — disse, afastando-se com um medo exagerado. — Eu vou portar-me bem, prometo. Só te peço que não me voltes a magoar.
Falou alto o suficiente para que todas as pessoas à nossa volta pusessem os olhos em nós.
Adam abriu caminho por entre os elementos do bando e despenteou o cabelo de Ben enquanto se colocava ao seu lado.
— Comporta-te, Ben.
O Ben que conhecera pela primeira vez teria rosnado e feito ouvidos moucos à repreensão afetuosa. Este exibiu-me um sorriso rasgado e, virando-se para Adam, disse-lhe:
— Não se o puder evitar.
Eu gostava de Ben. Mas se o apanhasse sozinho num quarto com Ruthie ou Jesse, dava-lhe um tiro sem hesitação. Estava melhor do que quando integrara o bando de Adam, mas ainda assim não era de fiar. Havia uma qualquer parte dele que ainda odiava mulheres, que ainda nos olhava como presas. Enquanto isso não mudasse, era necessário mantê-lo debaixo de olho.
— Há uma pessoa que gostava que conhecesses — disse-me Adam, fazendo um aceno a Nan.
Pegou-me na mão e passámos pelo enorme bolo de noiva. Era uma coisa bela, com flores azuis e brancas e sinos prateados — e, apesar de ter sido encetado e servido a todos os presentes, continuava enorme. Alguém o tinha encomendado para outro casamento e não o tinha pagado, razão pela qual Jesse — segundo me dissera — conseguira o bolo. Quem quer que o tivesse encomendado originalmente devia estar a planear um casamento muito maior do que este. Percorri com os olhos a cave apinhada e tentei imaginar um casamento maior.
— Depressa — disse-me Adam, e puxou-me até à porta lateral e depois pelas escadas traseiras acima. — Vamos fugir.
Alcançámos o parque de estacionamento sem passar por mais ninguém. O SUV de Adam, ao qual estava inexplicavelmente atrelada uma gigantesca caravana com a extremidade em forma de pescoço de ganso, e que parecia muito maior do que a casa móvel onde vivera até ao último inverno — quando a rainha das fadas a fizera arder —, estava à nossa espera, preparada para uma fuga.
— Qual é a pressa? — perguntei, enquanto Adam me empurrava para o interior do SUV através da porta do passageiro. Depois, entrou e ligou o carro antes de fechar a porta.
— Alguns dos seres feéricos têm uma noção estranha da despedida das noivas — explicou, enquanto eu me acomodava no lugar do passageiro e ele guiava para fora do parque de estacionamento —, onde, segundo o Zee, se inclui o rapto. Decidimos não arriscar a possível reação do Bran no caso de tal coisa acontecer, e o Zee prometeu que ia proteger a nossa fuga até estarmos longe.
— Esqueci-me disso. — E fiquei em choque, porque tinha conhecimento de que isso acontecia. — O Bran e o Samuel provavelmente são um perigo maior do que qualquer um dos seres feéricos — disse-lhe. — Um dia conto-te alguns dos disparates mais espetaculares cometidos em casamentos que o Samuel me relatou. — Alguns deles faziam o rapto parecer suave.
Coloquei o cinto de segurança, ajudei-o a pôr o dele, e voltei a olhar para trás de nós.
— Caso não tenhas reparado, tens uma coisa muito grande presa à parte de trás do teu SUV.
Sorriu-me, os seus olhos límpidos e felizes como nunca os tinha visto.
— E essa é a minha surpresa. Eu disse-te que ia planear a lua-de-mel.
Olhando para a caravana, pestanejei.
— Trazer o quarto de hotel atrás?
Erguia-se acima de nós, mais alta do que o SUV — que já era bem alto —, mais alta e mais larga, com secções nas partes laterais obviamente concebidas para serem destacadas.
— Não tenho dúvida de que é maior do que a minha antiga caravana.
Adam olhou por sobre o ombro e deu uma risada.
— É capaz de ser. É a primeira vez que a vejo. O Peter e a Honey levaram o SUV e atrelaram-na.
— É tua?
— Não. Pedi emprestada.
— Espero que não estejamos a ir para nenhum sítio com estradas estreitas e sinuosas — disse-lhe. — Ou para algum parque de estacionamento pequeno.
— Pensei em passarmos a noite numa estação de serviço muito porreira que conheço em Boardman, Oregon — replicou Adam, metendo para a Autoestrada 395 em direção a sul. — Cheiro a diesel e barulho de grandes motores para nos acompanhar na nossa primeira noite juntos como marido e mulher. — Riu-se da minha expressão. — Confia em mim.
De facto, parámos em Boardman para tirarmos as roupas do casamento e vestirmos outras. Por dentro, a caravana era ainda mais impressionante do que por fora.
Adam desapertou o bilião de botões do fundo das minhas costas até ao meu pescoço. O bilião de botões dos meus cotovelos até aos meus pulsos teve de esperar. Eram necessárias duas mãos para desabotoar, portanto a única coisa que podia fazer era passar os olhos pela caravana com um tremendo espanto.
— É como um gigantesco bag of holding. Enorme por fora, mas ainda maior por dentro.
— O teu vestido? — retorquiu, soando intrigado.
Bufei.
— Que engraçadinho. A caravana. Conheces os bags of holding, não conheces? Os itens mágicos espetaculares onde é possível guardar mais coisas do que as que caberiam em sacos do mesmo tamanho?
— Ah, sim?
Suspirei.
— O item mágico da fantasia do Dungeons and Dragons. — Estiquei o pescoço para o lado e disse: — Não me digas que nunca jogaste ao Dungeons and Dragons. Existe alguma regra que impeça os lobisomens de se divertirem?
Encostou a testa ao meu ombro e riu-se.
— Posso ter nascido na Idade Média — na verdade, tinha nascido na década de 1950, apesar de aparentar estar na casa dos vinte; quando se é lobisomem, o processo de envelhecimento é interrompido —, mas já joguei ao Dungeons and Dragons. No entanto, posso garantir-te que o Darryl nunca cedeu ao divertimento. O jogo dele é o paintball.
Por momentos, imaginei Darryl a jogar paintball.
— Assustador — murmurei.
— Nem imaginas quanto.
Adam esfregou a sua bochecha na minha e regressou à sua tarefa.
— Podia simplesmente rasgar isto em vez de desabotoar — disse dez minutos depois. Era uma proposta séria, dita numa voz esperançosa mas condenada.
— Faz isso, e depois voltas a coser todos os botões — repliquei. — A Jesse tenciona reutilizar este vestido.
— Em breve? — perguntou.
— Que eu saiba, não.
— De certo modo, isso não é tão tranquilizador como eu gostaria — resmungou.
— O Gabriel vai para uma universidade em Seattle no outono — lembrei-o. — Acho que, por este ano, podes ficar tranquilo. — O meu braço-direito tinha sentimentos pela filha de Adam, e neste momento estava a viver na minúscula casa pré-fabricada que o seguro disponibilizara para substituir a minha velha caravana. Uma situação que os deixava a eles felizes e a Adam inquieto. Adam gostava de Gabriel, mas era um lobisomem Alfa, o que o torna desmedidamente protetor em relação à filha.
Adam acabou por conseguir desapertar os botões. Enquanto eu pendurava o vestido e o punha no roupeiro (sim, a caravana tinha um roupeiro), Adam despiu o smoking e vestiu um par de calças de ganga e uma t-shirt. Não era frequente vestir-se de forma tão informal. Excetuando as alturas em que fazia exercício físico, um par de calças de vinco e uma camisa eram, por norma, a sua vestimenta mais descontraída. A minha t-shirt lavada e as minhas calças de ganga equivaliam, para mim, a estar aperaltada. Eu era mecânica de profissão, e era coisa rara as minhas unhas estarem limpas. Ainda assim, eu e Adam encaixávamos um no outro.
Comprou batidos de leite e hambúrgueres (um para mim, quatro para ele) num restaurante ali perto, encheu o depósito de gasóleo e voltámos a fazer-nos à estrada.
— Estamos a ir para Portland? — inquiri. — Ou para as Cataratas Multnomah?
Sorriu-me.
— Vai dormir.
Esperei três segundos.
— Já chegámos?
O seu sorriso expandiu-se, e o último resquício da sua habitual tensão desapareceu-lhe do rosto. Era um sorriso pelo qual… eu faria qualquer coisa.
— O quê? — retorquiu.
Inclinei-me e encostei a minha face ao seu braço.
— Amo-te — disse-lhe.
— Sim — concordou presunçosamente. — Amas.
O Desfiladeiro do Rio Columbia é uma garganta que se estende aproximadamente quinze quilómetros através da Cordilheira das Cascatas, na base do qual corre o Rio Columbia. Constitui parte da fronteira entre Washington e o Oregon. A maior parte da viagem é feita na autoestrada principal no lado do Oregon, mas existe uma autoestrada no lado de Washington que atravessa o grosso da extensão do desfiladeiro. Embora a parte ocidental do desfiladeiro corresponda a uma floresta tropical temperada, a secção oriental é constituída por uma estepe semiárida com bromos-vassoura, artemísias e assombrosos penhascos em basalto que por vezes formam diáclases.
Adam saiu da autoestrada em Biggs e meteu pela ponte sobre o Columbia no sentido de Washington. Essa ponte é uma das minhas preferidas de sempre. O rio é largo, tem cerca de quilómetro e meio, e a ponte desenha-se graciosamente em arco até à cidade de Maryhill.
Foi fundada pelo homem de negócios Sam Hill, em inícios do século XX. Visionara uma paradisíaca comunidade agrícola assente na ideologia Quaker3 e dera à cidade o nome da sua mulher, Mary Hill. Suspeito que ela tivesse gostado mais da ideia se a cidade não ficasse no meio do deserto com cerca de cinco centímetros de solo arável. Pouco resta da cidade — alguns pequenos pomares, uma ou outra vinha e um parque de campismo gerido pelo Estado —, atributos que não fazem de Maryhill um sítio propriamente especial.
Mas Sam Hill não se ficara pela cidade. Construíra o primeiro monumento de homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial, uma réplica em tamanho real do Stonehenge, visível da autoestrada do lado do rio onde fica o Oregon.
No entanto, virámos para oeste logo a seguir a atravessarmos a ponte, afastando-nos do Stonehenge e de Maryhill. Após dez ou quinze minutos em que seguimos por uma via rápida estreita que abria caminho através da estepe do Desfiladeiro do Rio Columbia, chegámos a um parque de campismo. Apesar de se encontrar impecavelmente tratado, não tinha ninguém no seu interior. Adam parou na rampa de entrada, retirou um cartão do porta-mapas e passou-o na caixa de leitura ao lado do portão. Uma luz verde piscou e o portão abriu de par em par.
— Temos o terreno só para nós — disse Adam. — Fui responsável por parte da instalação dos sistemas de segurança aqui, e eles disseram-me que podíamos ficar apesar de só abrir oficialmente na próxima primavera. Tenho a certeza que o chuveiro da caravana funciona, mas os que estão ali nos lavabos são muito maiores.
Percorri com os olhos o parque de campismo, onde carvalhos e áceres altos davam sombra aos espaços em gravilha destinados às caravanas. As árvores grandes não eram comuns nesta parte do Estado, à semelhança da erva muito verde — alguém passara muito tempo a cuidar delas.
Adam estacionou num lugar a meio caminho entre os lavabos em pedra e o rio. Dei por mim a olhar de sobrolho franzido para uma das árvores. Devia ter uns cinco metros de altura, as suas raízes enterradas bem fundo na terra onde não perturbariam o terreno bem tratado.
— Dez dias — disse-lhe.
Ele sabia como funcionava a minha mente.
— O Zee está a olhar pela oficina — replicou. — O Darryl e a companheira dele estão a tomar conta da Jesse, que antes de nós partirmos me disse que não precisava de babysitter.
— Ao que tu respondeste que eles eram guarda-costas, não babysitters — disse eu. — Mas ela argumentou que os guarda-costas não costumavam dizer às pessoas sob a sua guarda a que horas tinham de estar em casa.
— E tu nem sequer estavas presente na discussão — disse Adam, revelando admiração. — O Darryl interveio e disse «A família costuma». E a coisa acabou por ali. Portanto, o que mais te está a preocupar?
— O Stefan — respondi. — Pedi ao Warren que lhe fizesse uma visita, mas…
— Eu tive uma conversa com o Stefan — disse Adam. — Ao contrário de ti, a minha consciência não me impediu de lhe dizer que precisava de aumentar o seu rebanho. Um dos problemas dele é que não quer sair para caçar, e não pode deixar o rebanho sozinho. O Ben ofereceu-se para vigiar as pessoas à sua guarda e o Warren deverá partir amanhã para Portland juntamente com o Stefan. Mais alguma coisa?
— Dez dias — respondi, dirigindo-lhe um amplo sorriso. — Dez dias de férias contigo. Sem interrupções.
Adam inclinou-se e beijou-me — e essa foi a última vez que me preocupei com o que quer que fosse durante algum tempo.
3 Movimento criado por George Fox, em 1652, com o propósito de restaurar a fé cristã original, após séculos de apostasia. (N. do T.)
3
Nadámos no rio — melhor dizendo, eu nadei e Adam avançou a custo com a água à altura do peito, uma vez que os lobisomens não sabem nadar. A sua massa muscular é demasiado densa para boiar, pelo que vão ao fundo como âncoras.
O parque de campismo foi construído ao lado de um remanso de dimensão razoável, cuja corrente era suficientemente forte para a água não estar estagnada mas suficientemente fraca para ser um excelente local para nadar. A colocação estratégica de zambujeiros e uma seleção de plantas da dimensão de arbustos cujo nome eu não sabia, bem como uma cascata com cerca de três ou quatro metros de altura, proporcionavam uma sensação de privacidade a quem estava na zona de banhos. A temperatura subira para perto dos trinta e oito graus centígrados, portanto a água estava mesmo boa.
Atirámos água um ao outro e mergulhámo-nos como duas crianças, e eu ri-me até me ver obrigada a sair da água e sentar-me na margem para recuperar o fôlego.
— Cobarde — disse Adam, do rio, as suas mãos logo abaixo da superfície onde reunia as condições ideais para me atirar água.
— Não sou cobarde — afirmei, arquejando enquanto o sol me secava o cabelo, a pele e o fato de banho.
— Então o que é que estás a fazer aí em cima? — perguntou.
Abri os olhos amplamente e pestanejei.
— A observar a vida selvagem. — Baixei o olhar na direção do seu torso, onde se exibiam toda a espécie de belos músculos. Os lobisomens raramente estão fora de forma, mas Adam tinha um corpo ainda mais definido do que o do lobisomem comum. — É uma bela vista — ronronei.
Emitiu um som suave, e quando levantei o olhar, os seus olhos estavam incandescentes.
— Sou forçado a concordar — disse, saindo da água com uma intenção em mente.
Soltei um pequeno guincho e pus-me de pé, a rir — e algo na água, atrás dele, prendeu-me a atenção. Adam virou-se para ver aquilo em que me detivera, mas tinha desaparecido. Talvez tivesse sido um toro a flutuar um pouco abaixo da superfície, pensei. Era difícil avaliar o tamanho àquela distância, mas era demasiado grande para ser um peixe.
Antes de as comportas das barragens serem fechadas, alguns dos esturjões adquiriam dimensões incríveis, para cima dos três metros e meio, a fazer fé nas palavras de Zee. O que quer que eu vislumbrara era maior do que isso. Mas agora tinha desaparecido, e distraíra Adam da sua caçada.
Estava a olhar para trás de si. Aproveitei-me da sua distração momentânea e parti de imediato rumo à caravana.
Os lobisomens são rápidos. Talvez não tão rápidos quanto uma chita, mas mais rápidos do que os lobos cinzentos norte-americanos ou os cães. Eu também sou bastante rápida. Mais rápida do que a maior parte dos lobisomens que conheço — portanto é possível que não estivesse a correr à máxima velocidade que conseguia. Ou talvez o sexo incite o macho de qualquer espécie a superar-se. Seja como for, Adam apanhou-me antes de eu alcançar metade do percurso. Sem abrandar, lançou-me para cima do seu ombro e percorreu o resto do caminho a correr enquanto eu me ria como uma tonta e me esforçava por respirar. Pressionou-me contra a parte lateral da caravana e certificou-se de que eu não me importava de ter sido capturada.
Numa altura que não sei precisar, entrámos na caravana e deitámo-nos sobre a macia cama de casal feita com lençóis novos e lavados — aliás, toda a caravana cheirava a novo. Caravanas como esta eram caras. Quem é que lhe emprestaria uma caravana nova em folha?
Também esse pensamento me abandonou, e quando terminámos, estava tão quente e suada como estivera antes do meu primeiro mergulho no rio, o nosso cheiro preenchia a caravana e Adam estava a dormir.
A união de dois seres como nós é muito mais permanente do que o casamento. Em parte, penso, isso deve-se ao facto de que quando se encontra o nosso parceiro, ele não vai ser alguém de quem precisamos de nos divorciar. Os maus-tratos são quase uma impossibilidade quando duas pessoas estão ligadas por um vínculo de parceiros, e este dá-nos um conhecimento do nosso parceiro que nos permite evitar as discussões mais acérrimas que criam um efeito bola de neve até ao mais glacial distanciamento. E em parte deve-se ao facto de ser mais difícil lidar com a magia do que com a papelada jurídica, e o vínculo de parceiros é feito através da magia do bando.
Considerando isso, na verdade não alimentara a expectativa de que o casamento propriamente dito viesse a ter grande importância para mim.
— Gosto que uses o meu anel — disse Adam, os seus olhos amarelos e reluzentes espreitando por entre as pálpebras semicerradas. Por vezes, num vínculo de parceiros, um dos elementos tem um acesso mais preciso ao que o outro está a pensar ou sentir. Adam parecia estar a reagir ao que me passara pela cabeça, enquanto eu permanecia na escuridão. — Gosto da ideia de as pessoas poderem olhar para ti e saberem que estás comprometida, que és minha. — Fechou os olhos e riu-se. — E sim, eu sei que a manifestação dos sentimentos está no topo da lista de coisas que não se devem fazer a uma mulher, segundo o Movimento de Emancipação da Mulher.
Algo estava a incomodá-lo, pensei. A última frase fora dita de forma um tanto tensa.
— Hmm — disse, rolando de modo a lamber-lhe uma gota de suor do peito. Sabia a Adam. Quem é que precisava de champanhe? — É bom que não tires o teu anel sem que tenhas uma boa razão para isso — disse-lhe, pondo a descoberto a coiote dentro de mim. Talvez precisasse de saber que a sua possessividade era correspondida, em dose generosa. — E se a tua ex-mulher ou qualquer mulher minimamente atraente entre os treze e os setenta anos estiver por perto, é bom que percebas que não existe nenhuma razão suficientemente boa para tirares o anel.
Riu-se, e eu voltei a rolar, até ficar completamente sobre ele.
Ainda não tinha descortinado o que o estava a incomodar. O nosso vínculo estava a falar com ele, mas não me permitia vislumbrar nada do que se estava a passar atrás dos seus olhos — que haviam escurecido novamente. É esse o problema da magia. Começamos a contar com ela e desaparece-nos de debaixo dos pés, deixando-nos ainda mais à toa do que quando não tínhamos acesso a ela. Portanto, a única coisa que tinha ao meu dispor era o que a maior parte das outras mulheres tinha de usar para interpretar os estados de espírito dos seus companheiros.
Conhecia Adam há mais de dez anos — também conhecera a sua ex-mulher, Christy. Talvez o problema dele radicasse no seu primeiro casamento. A questão da liberdade pessoal fora muito importante para ela — desde que fosse a sua liberdade. Sentia ciúmes do bando; e, na minha opinião, também de Jesse, a filha deles. Não o amava, mas quisera ser o centro do mundo dele e não tolerava que assim não fosse.
Talvez Adam sentisse que estava a tentar fazer-me isso. Talvez ambos precisássemos de tornar a atmosfera um pouco mais leve, de nos darmos tempo para lidar com as mudanças.
Mordisquei-lhe a orelha.
— Se fosse socialmente aceitável tatuar o meu nome na tua testa, eu fazia isso.
— Só vejo a minha testa quando me vejo ao espelho — disse ele. — Vejo a minha mão com muito mais frequência.
— Não seria por ti — repliquei. — Tu sabes a quem pertences. Seria para todas as outras mulheres. Nada mais justo do que avisá-las que o gesto errado as pode vir a magoar. Esta coiote tem presas.
O seu peito vibrou debaixo de mim, sem soltar por completo a risada. Relaxou subtilmente.
— Se sentes que estás a ser muito primitivo em relação a isto, é mais do que justo saberes que eu também me sinto primitiva — informei-o suavemente.
Depois rolei de cima dele e para fora da cama. Pontapeei para longe o meu fato de banho, agora frio e húmido.
— No entanto, devo informar-te que eu não posso trabalhar na oficina usando o anel, a menos que queira passar a ser conhecida como a Mercy dos Nove Dedos. E — coloquei os dedos na pegada de coiote logo abaixo do meu umbigo —, tendo feito todas as tatuagens que tencionava, não vou tatuar o teu nome na minha testa ou coisa que se pareça.
Adam pulou da cama e encaminhou-se para a sua mala. Abriu o fecho do bolso de fora e retirou uma caixa chata, que me entregou.
Abri-a e no seu interior estava uma corrente de ouro grossa com uma dog tag4 maltratada. Da última vez que a tinha visto, era uma de duas na mesma corrente de aço pousada na cómoda de Adam.
— Isso é para pores o teu anel quando estiveres a trabalhar — disse Adam, tirando a corrente das minhas mãos e colocando-a à volta do meu pescoço. Enquanto a apertava, beijou-me na parte de trás do pescoço. Permaneceu ali por momentos, com os dedos a apertar o colar.
Dera-me uma das suas dog tags. Nunca fui soldado, mas sou conhecedora de História. Sei por que razão começaram a usar duas dog tags. Quando um homem morria e os seus companheiros não tinham possibilidade de transportar o cadáver consigo, deixavam uma tag no corpo para que quem o descobrisse o pudesse identificar. A outra era usada para comunicar a sua morte.
Aquela dog tag significava mais para ele do que o anel — e portanto também significava mais para mim. Entretanto, reparei que a corrente era suficientemente resistente para a poder usar enquanto corresse na forma de coiote.
— Preciso de ir correr — disse-me, dando um passo atrás e dando-me uma palmada ao de leve no meu traseiro nu. Os seus dedos demoraram-se na minha pele, avaliando as ligeiras cicatrizes provocadas por chumbo grosso, resultantes de um episódio em que me aproximara um pouco mais do que devia de um rancheiro propenso a disparar sem grandes hesitações. — Queres vir?
— Corrida longa ou curta? — perguntei ponderadamente. Os lobos adoram correr, mas poucos gostam de correr como Adam.
Enquanto considerava a minha pergunta, vestiu roupa interior, calções de corrida e um par de peúgas e calçou umas sapatilhas.
— Longa — respondeu, soando um pouco surpreendido. — Estou um bocado enervado com uma coisa… — Deixou a voz emudecer e dirigiu-me um ligeiro sorriso, quase tímido. — Os instintos dos lobos são bons, mas por vezes é difícil percebermos o que nos está a mexer com os nervos. Correr ajuda a estabelecer a ligação entre o lobo frontal e o rombencéfalo.
— Isso ajuda? — perguntei com uma ânsia súbita. Se havia coisa que me irritava, era saber algo e não fazer ideia de onde vinha.
Riu-se.
— Às vezes. Outras vezes simplesmente fico cansado ao ponto de não querer saber. Ficas?
— Estou a sentir-me extremamente mole — disse-lhe. Perceberia melhor o que estava a sentir sem a minha presença. — Vou ficar por aqui. Mas é bom que vistas uma t-shirt, senão a tua beleza ainda causa um acidente se fores correr junto à estrada e alguém te vir. — Sorriu em resposta às minhas palavras; julgo que pensou que eu estivesse a brincar. — Vou tomar um duche e ler até voltares. Nessa altura podemos pensar na comida, em prepará-la ou em caçá-la.
Hesitou.
— Adam — disse-lhe —, estamos no meio de nenhures. Ninguém que me odeie sabe onde nós estamos, a menos que tenhas pedido esta caravana emprestada à Marsilia. Vai lá correr. Eu vou estar aqui à tua espera quando voltares. Prometo.
Lançou-me um dos seus olhares avaliadores e depois saiu, fechando a porta da caravana atrás de si num gesto suave.
O chuveiro da caravana não era péssimo. Estava a contar com algo que só os pigmeus conseguiriam usar, mas não era mau. Ainda assim, não fazia qualquer tenção de o usar, não com os chuveiros do parque disponíveis.
Os chuveiros dos parques de campismo eram, por norma, primitivos. Já usei chuveiros de parques de campismo que apenas tinham água fria, não possuíam cortinas entre cada chuveiro, e, nalguns casos, que me faziam sentir mais suja do que antes de me lavar neles. Os chuveiros deste parque eram algo completamente diferente.
Todo o edifício estava equipado com sistema de ar condicionado, regulado numa temperatura fresca e civilizada, em comparação com o exterior. O chão era em ardósia. Os espelhos nos lavabos tinham caixilhos entalhados à mão. O tampo do balcão era uma placa de mármore azul-escuro que contrastava admiravelmente com as torneiras acobreadas. Havia quatro cabines de duche, nas quais o tema da ardósia e dos elementos acobreados continuava.
Nunca tinha visto um sítio assim num parque de campismo — nem mesmo num hotel. A água que jorrava da gigantesca cabeça do chuveiro instalado no teto era quente e lavou-me o suor do cabelo e a preocupação com Adam dos ombros. Permaneci muito tempo na cabine, e a temperatura da água manteve-se inalterável.
Quando estava enrugada e relaxada, vesti uns calções feitos a partir de umas calças de ganga cortadas e uma t-shirt que tinha estampada a imagem de uma casinha degradada. Na legenda lia-se: «Bem-vindos, ladrões. Por favor não deem de comer aos lobisomens.» Jesse mandara-a fazer para mim.
No caminho de regresso à caravana, o sol secou-me a água do cabelo. Entrei na caravana, retirei o meu livro da mala e saí novamente para me deitar na relva e ler até ao regresso de Adam.
Estava a correr há muito tempo.
Li cerca de quinze minutos, altura em que o som de algo a roçar no chão me distraiu da história. Olhei para cima, mas a única coisa que vi foram pássaros e insetos.
Voltei a concentrar-me na página que estivera a ler até escutar novamente o ruído. Parecia que alguém estava a esfregar as solas dos sapatos num chão pavimentado cerca de três metros à minha frente, todavia não estava ninguém na estrada. Inspirei fundo, procurando farejar alguma coisa — a minha audição é boa, mas o meu olfato é melhor.
Estava à espera de sentir o odor de uma toupeira ou de uma marmota, algo que pudesse estar a fazer barulho sem ser visto. Em vez disso, o ar trouxe consigo o cheiro a couro curtido, fumo de fogueira, tabaco, e o odor distinto de um homem desconhecido. Pousei o livro e levantei-me.
Depois de dar uma volta completa sobre mim mesma sem vislumbrar nada, senti um arrepio familiar na nuca.
Sou uma caminhante. Isso significa, basicamente, que me posso transformar em coiote sempre que desejar. Nesse estado, fico com uma audição e um olfato mais apurados do que o resto da população humana. Torno-me veloz — e sinto a presença de fantasmas que outras pessoas não sentem.
Andava um fantasma por aqui. Não conseguia vê-lo, mas conseguia senti-lo — e cheirá-lo.
O som de algo a raspar no chão regressou e, com o Sol a pino, caminhei na direção da estrada em asfalto, de onde parecia vir o som.
Um falcão crocitou, apesar de não haver no céu quaisquer aves predadoras. Não fui a única a ouvi-lo, uma vez que os cantos das aves que me vinham fazendo companhia enquanto lia terminaram. Talvez se tratasse de um falcão verdadeiro, mas os meus instintos estavam convencidos de que não era, apesar de a maior parte dos fantasmas que tinha visto serem humanos.
Os ruídos eram agora cadenciados, quase como uma polca muito lenta. Ruído-ruído, pausa, ruído-ruído, pausa. O odor tornou-se mais intenso — e consegui distinguir mais um. Coiote.
Devo ter permanecido ali três ou quatro minutos enquanto o som de dança se tornava mais nítido, até o ver. O que distingui em primeiro lugar foi o couro que usava; o resto era vago e como que evocativo dos sonhos. Porém, as extremidades das suas mangas, onde se via um padrão de penas, e a parte exterior das suas perneiras, eram bastante nítidas e distintas.
As vestes de couro não eram aquelas que habitualmente se via nos feiticeiros índios. Na maior parte dos casos, essas eram impecáveis. Roupas bonitas, brilhantemente coloridas e confecionadas à mão para ocasiões especiais.
Estas vestes de couro pareciam ter sido usadas tempo suficiente para lhe encaixarem como uma segunda pele. O tecido estava puído na parte interior das pernas, como se tivesse andado muito a cavalo. O couro estava mais escuro debaixo dos braços e na parte mais delgada das suas costas, onde o suor resultante da sua dança se teria concentrado. Usava um cinto com motivos feitos de cálamo de penas de ave, de cuja parte lateral baloiçava livremente a cauda de um coiote. As cores dos motivos estavam desbotadas e a cauda de coiote um pouco esfarrapada.
Comecei a ouvir a música ao som da qual ele dançava, sem percussionistas místicos ou flautistas. Era ele o músico, fazendo-se acompanhar da sua própria canção, uma melodia nasalada e sem letra que ressoava nos meus ossos. Mais ou menos na mesma altura, consegui ver-lhe as mãos. Eram as mãos de alguém que tinha um trabalho duro, as mãos de um rancheiro, calejadas e cheias de cicatrizes. As mãos de um homem, mas não de um homem velho. Um dos dedos tinha partido e estava torto.
O seu cabelo pendia em duas espessas tranças rematadas com um laço de couro vermelho, e que terminavam logo abaixo das omoplatas. Reconheci alguns dos passos de dança dos dois ou três cerimoniais mágicos índios a que assistira na faculdade, quando ainda andava a tentar descobrir o meu legado. À medida que dançava, foi-se tornando cada vez mais real aos meus olhos e a todos os meus outros sentidos. Até ao momento em que, não fora ter-se dado o caso de o ter visto materializar-se lentamente, eu ter sido capaz de jurar que estava na presença de uma pessoa viva, apesar de manter a cabeça desviada de mim e portanto apenas ter vislumbres dos seus traços.
O ritmo da sua dança passava de furioso a dolorosamente lento, para logo a seguir regressar ao modo original. Em todos os passos, o seu peso estava concentrado nas pontas dos pés — tratava-se de uma dança de guerreiro, cheia de poder e magia e a promessa de violência. No entanto, guerreiro era o que ele era, e a natureza do dançarino não impedia que a dança fosse uma jubilosa celebração.
O fantasma parou de dançar de costas voltadas para mim, todo o seu corpo a esforçar-se por recuperar o oxigénio que perdera durante a dança. Perguntei-me há quanto tempo teria executado a sua dança em carne e osso e por que razão o fizera aqui.
— Ei — disse eu, num tom de voz suave.
Há fantasmas que se limitam a repetir momentos importantes das suas vidas. Tinha praticamente a certeza de que este era um deles porque os fantasmas com consciência de si, capazes de agir independentemente, são mais raros — e tendem a interagir de imediato. Este tinha todos os traços distintivos de um repetidor; aquela dança, plena de paixão e emoção, aparentara ter sido executada num momento essencial da vida de alguém.
No entanto, a minha voz fez com que os ombros dele enrijecessem. Depois virou-se lentamente na minha direção até eu deparar com o rosto de um homem que nunca conhecera, cujo rosto me era tão familiar como aquele para o qual olhava no meu próprio espelho, apesar de dele só ter uma fotografia a preto e branco retirada de um jornal onde era anunciada a sua morte.
O meu pai.
Não consegui falar, não consegui respirar. Senti que alguém me cingira o diafragma, não permitindo que os meus pulmões funcionassem.
Fixou-se em mim, sério. De forma lenta, quase cerimoniosa, saudou-me inclinando a cabeça. Em seguida, transformou-se em coiote com a mesma facilidade e rapidez que eu. Estranhamente, o coiote parecia mais sólido do que o homem. Fitou-me com o mesmo olhar destemido que ostentava na forma humana. Depois, sem aviso, abalou e meteu-se por entre os arbustos a dez metros dali.
Na fotografia, o meu pai usava as vestes de um cowboy de rodeio — calças de ganga, camisa de manga comprida com o corte típico do Oeste americano e um chapéu de cowboy. A minha mãe, uma adolescente tentando libertar-se de pais austeros, conhecera-o num rodeio quando era mais nova do que Jesse. Não tinha tido possibilidade de lhe dizer que estava grávida antes de ele ter morrido num acidente de carro. À minha mãe, dissera que se chamava Joe Velho Coiote.
Nunca tinha visto o fantasma do meu pai. Não tinha vindo ao meu encontro quando eu abandonara Montana, fugindo do único lar que alguma vez conhecera. Não tinha vindo ao meu encontro quando completei o ensino secundário ou o universitário. Não tinha vindo quando lutara pela minha vida contra criaturas feéricas e demónios e toda a espécie de criaturas sinistras. Não tinha vindo ao meu casamento.
Pus-me à procura de pegadas. Podia sentir-me bastante segura do meu conhecimento dos lobisomens, marginalmente confortável com o que sabia sobre vampiros. As criaturas feéricas são outra história — e sabia que havia outras coisas sobre as quais nada sabia, algumas delas invulgares, algumas delas simplesmente bem escondidas.
Tinha a certeza que aquilo que vira fora um fantasma até ter um momento para me perguntar como é que o meu pai, que morrera a centenas de quilómetros, na parte oriental de Montana, teria chegado aqui. Tinha-se transformado num coiote, uma capacidade igual à minha, e desaparecera por entre os arbustos. A maior parte dos fantasmas não precisa de fugir; simplesmente dissipa-se. Porém, não havia nenhum rasto — e eu sei como seguir um rasto. Nem mesmo na terra mole em frente aos arbustos por entre os quais desaparecera.
Fiquei com pele de galinha apesar de estar calor.
— Então não achas que foi um fantasma? — perguntou Adam, após o que deu uma enorme trinca no seu cachorro-quente.
A caravana tinha um fogão e um forno, mas ao lado do nosso lugar havia um buraco no chão para fogueiras e uma grelha, que decidimos usar para assar salsichas de modo a fazermos cachorros-quentes. Adam correra até ao anoitecer, passara na caravana e dera-me um beijo suado antes de pegar em roupa lavada e numa toalha e se dirigir para os chuveiros.
Quando regressou, eu já tinha feito uma fogueira e preparado a comida para colocar na grelha.
Havia cadeiras de campismo presas à traseira da caravana, mas mesmo assim sentámo-nos no chão, um ao lado do outro. Se não tivesse reparado que estávamos a cozinhar mesmo ao lado da Caravana Behemoth5 e sentados num relvado bem tratado, podia fingir que estávamos, de facto, a acampar. Isto era uma espécie de «versão partes boas» do campismo. Era capaz de me habituar a isto.
— Hum — respondi, depois engoli em seco para conseguir falar. — Eu não disse isso, exatamente… Afinal de contas, o meu pai está morto. Se era o meu pai, era um fantasma. Mas se calhar era outra coisa qualquer. Existem histórias sobre a população sobrenatural índia, mas muito do conhecimento antigo perdeu-se quando o governo tentou integrar as tribos na cultura euro-americana. Uma boa porção do que é conhecido foi inventada. Ninguém conta uma história fantástica como um índio, e já ninguém sabe ao certo quais é que são as histórias antigas e as inventadas.
Charles, o filho meio-índio de Bran nascido algures no início do século XIX, podia ter lançado alguma luz sobre o assunto — todavia, para minha imensa frustração, raramente falava das suas raízes ameríndias. Talvez o pudesse ter forçado a falar no assunto, mas Charles era uma das pouquíssimas pessoas que me intimidavam verdadeiramente. Portanto, mesmo na altura em que andava a investigar essa metade da minha história familiar, nunca o tinha incitado muito, por mais que gostasse de o ter feito.
— Achas que pode ser sido um espírito local qualquer a imitar o teu pai? — perguntou Adam.
Terminara o seu cachorro-quente e estava a preparar outro. Gostava das salsichas tostadas por fora — eu gostava delas apenas quentes.
De olhos postos na minha salsicha que começava a aquecer, tentei fingir que conseguia acreditar nisso.
— Talvez. Talvez exista uma espécie de sósia esquisito que apareça a outras pessoas, ou um prenúncio de morte invertido, que aparece depois de um homem morrer em vez de aparecer antes.
Adam espetou a cabeça na minha direção e depois abanou-a.
— Se achasses mesmo que tinha sido uma criatura nativa, já estavas a telefonar ao Charles.
Adam tinha razão. Se Charles achasse que eu estava mesmo em sarilhos, ajudaria de todas as formas que pudesse. Podia ser assustador, mas era família. Mais ou menos.
Adam dirigiu-me um olhar manhoso.
— O que se passa é que não gostas da ideia de o teu pai te ter visitado sem saberes o motivo.
E o motivo pelo qual Joe Velho Coiote não aparecera mais cedo.
Que diabo, disse dentro de mim. Eu era mais esperta do que isso. Um fantasma não era uma pessoa; era apenas os restos. Aquele fantasma podia ser o do meu pai, mas não era o meu pai.
Ele tinha morrido antes de eu nascer. Mas eu não tinha sofrido. Fora criada por Bryan e Evelyn, os meus pais de acolhimento, e eles tinham-me amado. Quando eles morreram, Bran e o resto do seu bando tinham intervindo — e depois a minha mãe. Nunca tinha sido mal-amada, maltratada. Era uma adulta — portanto, porque é que a visão de um fantasma que se parecia com o meu pai me deixara tão abalada?
— Ok — disse-lhe. — Sim, tens razão. Se ele me podia ter visitado em qualquer altura, porque é que não o fez? Porquê agora, que não preciso dele? — Preferia ter acreditado que não tinha sido o meu pai.
Adam pôs o braço à minha volta.
— Talvez tenha sido uma espécie de demanda de visão6 sem a parte do jejum.
Abanei a cabeça.
— Não. Já fiz a minha demanda de visão.
Recuou, de modo a poder ver o meu rosto.
— A sério?
— Hum — repliquei. — Foi no verão em que o Charles me ensinou a reparar carros. Um dia ele levou-me para a floresta. Jejuámos durante três dias, depois ele disse-me para não me transformar em coiote e mandou-me para as montanhas.
— O que é que viste? — perguntou Adam. — Ou é secreto?
Resfoleguei.
— É sagrado, não secreto, acho. — Apesar de Charles ter sido a única pessoa a quem contara o que vi. — Mas a minha visão foi muito esquisita. Perguntei ao Charles se tinha feito algo de errado, e ele limitou-se a dirigir-me aquele olhar… — Tentei imobilizar a cara numa máscara despida de qualquer emoção, mas de certo modo assustadora. E Adam exibiu um sorriso rasgado.
— O que é que ele disse quando lhe fizeste essa expressão? — perguntou.
Só um idiota seria capaz de gozar Charles na cara. Adam conhecia-me tão bem.
— Perguntou-me se eu tinha comido alguma coisa que me tivesse feito mal — respondi. — Mas virou a cabeça, por isso não lhe consegui ver a expressão. Acho que ele é capaz de ter sorrido.
Adam riu-se.
— Ora, voltando à tua visão…
— Certo — disse-lhe. — A minha visão foi um pouco… O Charles disse-me que não havia uma forma certa ou errada de ter uma visão. Simplesmente acontecia. Depois falou-me de um tipo qualquer que tinha tido uma visão e descoberto que conseguia falar com espíritos. O Espírito do Alce foi ter com ele e disse-lhe que tinha de servir ao Espírito do Alce e que, para isso, só se podia vestir de amarelo. Ou talvez fosse de azul. Então o tipo fez isso durante uns anos, até lhe aparecer o Espírito do Urso e dizer que tinha falado com o Espírito do Alce e concluído que era ao Espírito do Urso que devia dar ouvidos. Então o Espírito do Urso disse-lhe para pintar a cara de vermelho e andar às arrecuas. Quando o avô do Charles, o feiticeiro, conheceu este homem, ele já andava às arrecuas há imensos anos. O avô do Charles ouviu a história do homem e disse-lhe: «O facto de conseguires ouvir espíritos não quer dizer que tenhas de lhes obedecer.» Quase me tinha esquecido de que o Charles tinha partilhado essa história comigo. Suspeito que tenha sido um sinal do quanto eu tinha ficado perturbada por não ter tido o tipo de visão de que estava à espera… com águias e veados que me guiassem pelo caminho da iluminação.
— O que é que aconteceu? — perguntou Adam.
— A tua salsicha está a arder — disse-lhe.
Retirou a coisa negra da grelha e, ao bater com ela no chão, a salsicha acabou por se desfazer em pedaços. Pegou noutra e pô-la ao lume enquanto eu comia o meu cachorro-quente.
— Mercy, o que é que aconteceu ao tipo que caminhava às arrecuas?
— Lavou a cara e começou a caminhar para a frente. Depois de ter dado cerca de cinco passos, tropeçou e partiu uma perna.
— Estás a inventar — disse Adam, retirando a sua salsicha do lume para a inspecionar. Não estava tostada, por isso voltou a colocá-la na grelha.
Levantei a mão.
— Palavra de escuteiro. Essa foi a história que o Charles me contou. Se não consegues perceber se estou a mentir ou não, podes perguntar-lhe. — Isso, para um lobisomem, era uma espécie de rabecada. Só um lobisomem muito jovem não tinha a capacidade de distinguir a verdade da falsidade. — No entanto, o Charles disse que o homem nunca mais voltou a caminhar às arrecuas.
— Tens de ser um rapaz para dizeres «Palavra de escuteiro» — replicou Adam.
— Nã-nã. Tens à tua frente uma líder de um grupo de escuteiras. — Apontei para o peito com o polegar. — Mais ou menos. Quando a minha mãe não podia. Bom, adiante. Querias saber da minha visão.
— Sim.
Abri a boca para lhe contar uma versão engraçada, mas o que saiu foi diferente daquilo que eu tencionava.
— Num momento estava sozinha no meio da floresta, e no seguinte estava a caminhar num sítio diferente. Era tudo cinzento, quase como um filme a preto e branco, com a diferença de que não havia preto nem branco, apenas tons de cinza. Não havia erva nem árvores, só infindáveis montículos de terra. Transmitia a sensação de… vazio. Como aqueles filmes de terror pós-apocalípticos, sabes? Vazio mas assustador, também.
Experimentei as mesmas sensações da altura: o aperto no peito que me dificultava a respiração, o arrepio na nuca por saber que o mal estava escondido, à espreita.
Adam retirou a salsicha do lume, mas em vez de a comer, espetou a extremidade embotada do garfo no chão, que se erguia como um bizarro ornamento de jardim. Depois puxou-me contra si e a minha tensão amainou, permitindo-me voltar a respirar normalmente.
— Desculpa — disse-lhe. — Não estava à espera que me incomodasse tanto.
— Não tens de me contar.
— Não — retorqui. — Eu quero contar. — Parecia-me ser a coisa certa. Charles tinha-me dito que quando chegasse a altura certa de partilhar o que me tinha acontecido, eu perceberia. Algumas pessoas viram-se obrigadas a relatar a sua experiência a todas as pessoas que conheciam, mas a maior parte de nós apenas a partilhou com poucas pessoas. — Portanto estava a caminhar naquele sítio desolador. A única coisa que conseguia ver para além de areia eram vestígios de edifícios. No início, alguns dos edifícios eram modernos: estruturas altas feitas de vidro e aço. Nesses, o vidro estava rachado ou partido e o aço quase completamente enferrujado. À medida que ia caminhando, as ruínas que vi eram de edifícios mais antigos, casas. Lembro-me claramente de ver o que restava de uma antiga casa vitoriana, estranhamente inclinada, como se fosse uma casa de bonecas gigante a quem uma criança tivesse dado um pontapé. Depois, o que me apareceu foi como algo que se vê no plateau de um Western, mas décadas mais tarde. Estacas escurecidas de edifícios de adobe meio enterradas na areia, paus-de-arrasto e plataformas de madeira partidas, com ervas daninhas mortas a espreitar. Eu sou a única coisa viva naquele lugar. Acabo por chegar a um sítio onde só há dez estacas, e estou a passar ao lado delas, a chorar, a soluçar, com ranho no nariz. Sentia-me completamente miserável, apesar de não saber qual era o motivo do meu sofrimento.
— Que idade tinhas? — perguntou Adam.
— Foi depois de o Bryan morrer — respondi. — Logo a seguir, acho. — O simples facto de falar do que tinha visto perturbou-me, a minha maxila inferior vibrava como se sentisse frio, apesar de sentir o calor e a firmeza de Adam contra mim. Ele era real, mas, de uma forma que não sei explicar, aquela visão antiga também era real. — Portanto devia ter à volta de catorze anos.
Contar o episódio a Adam era quase como revivê-lo. As emoções tinham sido reais e poderosas, talvez a coisa mais real em toda a visão.
— Finalmente, deparei com um carro, um velho Ford Modelo T enterrado até aos eixos das rodas. Era tão triste, conseguia sentir a sua amargura a pesar-me no coração, distraindo-me daquilo que me tinha feito chorar, o que quer que fosse. Pus-lhe as mãos, mas era impossível desenterrá-lo ou repará-lo. Expliquei isso ao carro, como se ele fosse capaz de compreender o que eu estava a dizer porque eu sentia que ele era capaz. Disse-lhe que lamentava não poder fazer mais. Depois, começou a vibrar debaixo dos meus dedos, agitando-se de um modo tal que já não o conseguia agarrar. Tive de fechar os olhos para me proteger da areia que levantava, e quando os reabri, estava sozinha numa floresta.
Lembrei-me de quão assustada me sentira na floresta. O meu pulso acelerou e fiquei com pele de galinha nos antebraços. Seria de esperar que a floresta servisse de alívio ao mundo cinzento e morto em que estivera. A floresta fora a minha segunda casa — porém a floresta da minha visão tinha observadores escondidos, observadores perigosos que não aprovavam a minha presença.
— Era uma floresta escura. Apesar de não haver mais árvores senão coníferas, elas tinham formado uma cobertura densa por cima de mim, como numa floresta tropical. Conseguia sentir que estava a ser observada, mas por muito que olhasse, não os via. Aqueles que me estavam a espiar seguiam-me enquanto eu andava. Num dado momento, comecei a correr e entrei em pânico, como um coelho. A sensação que tive foi a de que corri durante horas. De cada vez que abrandava, sentia-os aproximar-se de mim. Por isso deixei de abrandar. — Lembrei-me que o medo me deixara a suar e fizera com que os músculos das minhas costas e do meu pescoço ficassem tensos. — Enquanto corria, não via nada. Nunca soube o que me estava a perseguir. Só sabia que era a presa nesta corrida. Tinha a certeza absoluta de que se me apanhassem, eu seria uma mulher morta. Olhei por cima do ombro enquanto corria a toda a velocidade através da floresta e bati com o pé numa árvore caída. Desci uma encosta aos trambolhões e aterrei em frente a uma La-Z-Boy7.
— Uma quê? — perguntou Adam.
— Eu disse-te que era esquisito. Uma La-Z-Boy, uma daquelas cadeiras reclináveis enormes. Esta tinha uma etiqueta grande que dizia La-Z-Boy. Era de esperar que parecesse deslocada numa floresta, mas quem não pertencia era eu. — A cadeira reclinável era cor de laranja com tecido azul. Feia. — A princípio, a única coisa que via era a cadeira. Depois, dei-me conta de que estava ocupada por um homem índio, alto e bonito, que não parecia minimamente impressionado comigo.
Curioso. Conseguia lembrar-me da cor da cadeira como se tivesse acabado de olhar para ela, mas não me conseguia lembrar do rosto do homem índio ou do que trazia vestido. Não creio que tenha reparado noutra coisa que não os seus olhos.
— Levantei-me. As minhas calças de ganga estavam rasgadas, a minha t-shirt rompida, e tinha um arranhão grande e doloroso no flanco. Tinha picos no cabelo. A sensação que tinha era que estava num lugar ao qual não pertencia, num lugar onde ninguém queria que eu estivesse. Levantei o queixo e olhei-o diretamente nos olhos, embora no meu íntimo soubesse que era um gesto estúpido. — O pânico desaparecera, substituído por uma sensação de vazio que parecia não ter como ser preenchido.
A mão de Adam agarrou-me o ombro.
— Assim que me fixei nele, uma raposa, um lince e um urso emergiram da floresta. Um pássaro enorme que parecia uma águia gigante desceu do céu e todos se fixaram em mim, mas mantive-me de olhos cravados no homem sentado na cadeira.
Tinha sido inexplicavelmente horrível, sabendo que não pertencia àquela floresta com o homem índio e os animais. Era uma intrusa, sozinha.
— Calma — murmurou Adam.
— O homem finalmente disse: «Quem és tu, criatura raçada que caminha na minha floresta?» Percebi que o que ele queria não era saber o meu nome. Queria saber o que eu era. — Não lhe conseguia explicar com precisão o que pretendia expressar. — A essência da pessoa que era.
— O que é que lhe disseste?
— Disse-lhe que era coiote. — Aclarei a garganta. — Levantou-se. Era muito mais alto do que eu, tão alto quanto as árvores à nossa volta e, de uma forma que não sei explicar, mais real do que elas. Eu sei que é um cenário estranho, mas passou-se assim, tal e qual. Depois, ele, sem baixar o olhar, disse: «Eu sou o Coiote.» Parecia bastante ofendido.
Inspirei fundo.
— Provavelmente devia ter-lhe dito o meu nome. Não era a resposta certa, mas tão-pouco teria sido a errada. Portanto disse-lhe: «Está bem. Você pode ser o Coiote. Mas eu sou uma coiote.» Considerou a minha resposta e depois curvou-se para me sussurrar uma coisa ao ouvido. — Senti-me estúpida em relação a esta última parte.
— O que é que ele disse?
— Ele disse: «Está bem. Também podes ser uma coiote. Mas tu és uma coisinha minúscula, e eu sou uma coisa antiga.» E depois acordei.
— Sabes o que queria dizer? — perguntou Adam.
Ri-me e abanei a cabeça.
— Isso é mentira — sussurrou, puxando-me para mais perto de si.
— Queria dizer que não sou suficientemente índia — disse-lhe. — Não pertenço a parte nenhuma.
Deixou queimar mais uma salsicha enquanto estávamos sentados e observávamos as chamas.
— Acho que estás enganada — acabou por dizer. — Não me pareceu que o Coiote te estivesse a rejeitar.
— Ele estava a falar da minha metade coiote — retorqui.
Adam sorriu e embalou-me um par de vezes.
— Deve ser mesmo muito confuso ser-se parte coiote, parte humana, parte índia e parte branca.
Ri-me e senti-me melhor. Raramente era boa ideia levar-me demasiado a sério.
— Todas as quatro partes se sentem muito felizes por estarem casadas contigo. Talvez eu esteja enganada. Talvez tivesse querido dizer que devíamos arranjar La-Z-Boys a condizer. — Embora eu tivesse escolhido cores melhores. — Se não tirares aquela salsicha em breve, vais para a cama com fome.
— Hmmm — pronunciou ao meu ouvido. — Pensava que estar casado significava nunca ir para a cama com fome.
Voltámos a sair algum tempo depois, avivámos o lume e cozinhámos o resto da embalagem de salsichas.
4 Plaquetas de identificação usadas por militares. (N. do T.)
5 Criatura fantástica de dimensão gigantesca descrita na Bíblia, mais precisamente no Livro de Jó. (N. do T.)
6 Rito de passagem para a idade adulta nalgumas culturas ameríndias. Nele, o sujeito é largado no mundo selvagem para embarcar numa demanda pessoal de natureza espiritual. Nessa demanda, em que o jejum é um requisito, um guardião aparecer-lhe-á na forma de visão e indicar-lhe-á o caminho de regresso à tribo, onde poderá definir o seu trajeto em função do que experienciou. (N. do T.)
7 Fabricante de mobiliário que dá nome à cadeira em questão. Em português significa, literalmente, «rapaz preguiçoso». (N. do T.)
4
No dia seguinte, deixámos a caravana no parque deserto — afinal de contas, Adam fora responsável pela instalação do sistema de segurança — e atravessámos novamente o rio de carro, passando pelas cidades The Dalles e Hood River em direção às Cataratas Multnomah. Alguém me dissera em tempos que existe uma extensão de cerca de quinze quilómetros onde a quantidade anual de chuva aumenta dois centímetros por quilómetro. Seja verdade ou não, a uma distância curta de Hood River, no sentido oeste, a vegetação enfezada é substituída por uma quantidade imensa de árvores e outros tipos de vegetação. Poucos quilómetros à frente, começam as quedas de água.
A de Multnomah é a mais impressionante, mas há dezenas de cascatas na Larch Mountain, e passámos a maior parte do dia a caminhar pelos trilhos que atravessavam as diferentes cascatas da encosta da montanha. Uma vez que estava um belo dia de verão, havia muitas pessoas a fazer o mesmo.
A presença de outras pessoas não me incomodava, e tão-pouco me pareceu que incomodasse Adam. A sensação que pairava era a de que éramos um grupo amigável de desconhecidos, reunidos pela extraordinária beleza de água a cair de escarpas rochosas em lençóis brancos. Havia uma espécie de espanto que nos ligava a todos, que nos aproximava. Os laços não eram tão reais quanto os vínculos do bando, mas a sensação era similar. Era magia, ainda que pouca, feita de bom tempo e alegria.
Essa sensação de pertencer a algo maior do que eu própria fora o presente que Adam me dera.
Toda a minha vida fora uma estranha: primeiro, uma coiote criada num bando de lobisomens; depois, uma estranha sobrenatural na casa mundana da minha mãe; e, finalmente, uma estranha que tinha demasiados segredos para ambicionar ter amigos. Era boa a dar a impressão de que me enquadrava, portanto nunca ninguém reparava de facto em mim.
Até ao aparecimento de Adam. Com Adam ao meu lado, sentia que pertencia a alguma coisa, como se ele fosse a ligação entre mim e o resto do mundo. E por causa dele, eu podia ser um destes caminheiros que tinham ido para ali com o propósito de se divertirem. Afugentei a ligeira sombra que se instalara sobre mim após a recordação da visão. Índia ou não, coiote ou humana, já não estava sozinha.
Alguns dos trilhos eram fáceis de percorrer, inclusive para deficientes. No entanto, não muito longe de Multnomah, esses trilhos desapareciam e a diversão requeria um esforço sério. O topo da montanha fica um pouco mais de mil metros acima do início do trilho, e são muito poucas as partes fáceis dessa subida.
Ouvi os gritos antes de os ver. Pensando que alguém estaria em dificuldades, comecei a correr montanha acima, com Adam no meu encalço.
— Querido, não consigo levar-te ao colo. — A mulher falava à beira das lágrimas. — Simplesmente não consigo. Tens de ser um homenzinho e ajudar-me, Robert.
Seguiu-se a voz de um rapaz, ininteligível aos meus ouvidos e intercalada com soluços.
Depois de uma curva no trilho, deparámos com duas pessoas muito transtornadas. Uma mulher na casa dos quarenta, exaurida, e um rapaz de face listrada com lágrimas e terra.
— Ei — chamei. — Parece mau. O que é que podemos fazer para ajudar?
A mulher começou a recusar ajuda — e depois os seus olhos recaíram em Adam e iluminaram-se. Compreendia-a perfeitamente — mas fiquei mais contente ao aperceber-me de que era com a força que o seu tronco transparecia que ela estava excitada, e não com a sua cara bonita.
O filho não estava, nem de longe nem de perto, tão excitado como a mãe. Robert, informou-nos a sua mãe, tinha oito anos, mas sofria da síndrome de Down e tinha em relação aos estranhos a mesma desconfiança que a maior parte das crianças de dois anos. Não lhe agradava a ideia de Adam o transportar montanha abaixo até ao parque de estacionamento.
Enquanto a mãe tentava chamar o filho à razão, Adam pôs-se sobre um joelho e olhou o miúdo nos olhos. Não disse absolutamente nada. No entanto, passado cerca de um minuto, o miúdo acenou com a cabeça, e quando Adam se levantou, trepou para as costas de Adam sem protestar. Continuava pouco agradado com a situação, mas sabia quem estava no comando.
— Mas… — disse a mãe de Robert, estupefacta.
— O Adam é bom a dar ordens — disse-lhe. — Mesmo sem dizer nada.
De modo que Adam transportou trilho abaixo um muito cansado e rabugento rapaz de oito anos que tinha uma entorse no tornozelo, enquanto a mãe, ainda mais cansada, lhe dirigia palavras de agradecimento durante todo o percurso.
— Não fazia ideia de que ia ser tão íngreme — disse-me a mãe do rapaz, numa altura em que Adam esticou um pouco as pernas e se adiantou em relação a nós. Pensei que o fizera para pôr fim aos seus incessantes agradecimentos, mas talvez eu estivesse a ser pouco complacente.
— O Robert estava tão farto de estar no carro. Eugene ainda fica longe, e achei que talvez fosse bom ele desgastar alguma energia; depois dormiria durante a viagem. Espero que o seu homem não se magoe. O Robert pesa quase quarenta quilos.
— Não se preocupe — tranquilizei-a. — O Adam esteve no exército. É perfeitamente capaz de transportar quarenta quilos de peso por uma montanha abaixo. É também por isso que ele sabe a diferença entre um tornozelo torcido, uma entorse e um tornozelo partido.
Não ia dizer-lhe que ele era um lobisomem capaz de nos transportar a todos se encontrasse forma de pegar em nós. Adam revelara a sua condição publicamente, mas nem Robert nem a sua mãe pareciam pessoas capazes de, neste momento, lidar com a presença de um lobisomem. A parte do exército era verdade — não precisavam de saber que a sua vida de soldado remontava aos tempos da guerra do Vietname.
— Pelo sim pelo não, faça uma radiografia ao tornozelo dele — aconselhou Adam, que nos ouvira sem qualquer dificuldade. — Não sou médico, e as entorses podem ser complicadas.
Quando chegámos ao parque de estacionamento, Robert tinha recuperado, apesar de coxear exageradamente. Quanto à mãe, o tom de desespero desaparecera-lhe da voz. Voltou a agradecer-nos e Robert deu um beijo molhado na face de Adam.
— És o meu herói — disse eu a Adam enquanto eles se afastavam de carro. — Ficamo-nos por aqui, ou importas-te que voltemos a subir?
Para meu imenso deleite, eu e Adam caminhámos durante mais duas horas e depois comemos em Hood River. Nunca tinha passado tanto tempo com ele sem interrupções. Aqui não tínhamos de nos preocupar com nada.
A sensação era maravilhosa. Adorei ver o estado de alerta desvanecer-se e a pressão de tomar conta do bando, de mim, da filha e do negócio simplesmente desaparecer-lhe do rosto e do corpo.
Normalmente, Adam aparentava ser um homem com trinta e muitos anos — apesar de os lobisomens não envelhecerem. Por altura do nosso regresso ao parque de campismo, tinha perdido dez anos e parecia pouco mais velho do que a filha. O riso iluminou-lhe o rosto de uma forma que nunca lhe tinha visto.
Eu era a responsável por isso. Eu. Ok, eu e as cascatas e a montanha de Deus. Apesar de parecer que não havia um dia em que não o envolvesse nos meus problemas. Apesar de se ter visto obrigado a fazer frente a vampiros, demónios e criaturas feéricas ensopadas por minha causa. Apesar de se ter visto obrigado a fazer frente ao próprio bando, eu era boa para Adam.
Tinha-o visto chateado, a sofrer, triste. Era indescritivelmente melhor vê-lo feliz.
— O que foi? — perguntou, depois de acabar o segundo dos seus bifes de trezentos gramas. — Porque é que estás a olhar para mim dessa forma?
O pequeno restaurante moderno que ocupava o antigo edifício vitoriano intimidava-me um pouco, todavia não ia permitir que ninguém, incluindo Adam, se apercebesse disso. Creio que nunca vi nada, exceto possivelmente a minha mãe, que intimidasse Adam. Mas era mais do que isso.
Ele encaixava aqui. Como encaixara no papel de caminheiro quando percorríamos os trilhos — e no papel de ajudante, quando transportara o rapaz encosta abaixo. Para alguém como eu, que se vira obrigada a lutar para criar o seu próprio lugar por não encaixar em parte alguma, ele era… Bem, a verdade é que também encaixava em mim. Embora, a julgar pelos seus olhares de viés, muitas das pessoas ricas que ali comiam obviamente não achassem o mesmo. Adam podia estar vestido de forma descontraída, com calças de ganga e uma t-shirt, mas ainda assim parecia acabado de sair de uma sessão fotográfica como modelo. Quanto a mim, tinha aspeto de quem tinha andado a caminhar o dia todo, apesar de ter tirado as folhas do cabelo na casa de banho do restaurante.
Suspirei teatralmente, pousando o queixo nas minhas mãos em concha e colocando os cotovelos sobre a mesa.
— És lindo de mais, sabias? — Disse-o suficientemente alto para que as pessoas que nos estavam a observar me pudessem ouvir.
Uma risada tremenda iluminou-lhe os olhos — revelando-me que ele reparara nos olhares de que estávamos a ser alvo. No entanto, o seu rosto pôs-se completamente sério enquanto ronronava:
— Então, valho o dinheiro que pagaste por mim, baby?
Adorava quando ele embarcava em jogos comigo.
Suspirei novamente, um som que começou nos dedos dos meus pés, um som contente e feliz. Havia de ter a paga por aquele «baby». Ai não que não havia.
— Oh, sim — disse aos nossos espetadores. — Vou dizer à Jesse que ela tinha razão. Manda-te à fera sexy, disse-me ela. Se for preciso largares dinheiro, não te acanhes.
Lançou a cabeça para trás e riu-se até limpar as lágrimas do rosto.
— Credo, Mercy — disse. — As coisas que tu dizes. — Depois debruçou-se sobre a mesa e beijou-me.
Pouco depois recuou, exibiu-me um sorriso rasgado, e voltou a sentar-se na cadeira.
Tive de recuperar o fôlego antes de falar.
— Foram os cinco dólares mais bem gastos da minha vida — disse-lhe ardentemente.
Ainda se estava a rir quando colocou o cinto de segurança.
— Ainda bem que não vivemos em Hood River — disse Adam. — Nunca mais ia poder pôr os pés naquele restaurante. Cinco dólares. Credo. — Adam era um cavalheiro criado na década de 1950. Esforçava-se ao máximo por não dizer palavrões à frente de mulheres.
— Achei muito fixe quando aquela velhota baixinha te tentou dar uma nota de vinte — disse-lhe, deixando-o novamente inquieto.
— O que me assustou — meteu pela autoestrada em direção ao nosso parque de campismo — foi aquela mulher na mesa ao nosso lado, a que parecia estar a acreditar que era tudo verdade, mesmo depois de toda a gente se ter rido.
Ah, a Senhora Assustadora. Observara-nos de olhos esbugalhados e boca aberta, conseguindo, ainda assim, manter-se inexpressiva. Estava capaz de apostar que era uma psicopata ou uma criatura feérica, o que por vezes era a mesma coisa. Podia ter-me aproximado para a farejar — eu sei qual é o cheiro das criaturas feéricas —, mas estava na minha lua-de-mel. Não queria saber.
— Contigo por perto nunca me vou aborrecer — comentou Adam. O curioso é que parecia feliz com isso.
— Queres ir correr? — perguntou Adam, pulando para fora da cama poucas horas depois.
Tínhamo-nos deitado para descansar após as nossas caminhadas. Não descansámos muito, mas eu cá não me ia queixar. Para além disso, todos os meus ossos pareciam gelatina, e ele queria ir correr?
— Uf — disse. Não fui capaz de pronunciar mais nada.
Exibiu-me um sorriso rasgado.
— Deixa-te lá de cenas.
Acenei-lhe com a mão num gesto frouxo.
— Aposto que consigo apanhar um coelho antes de ti — continuou.
Ah, então era aquilo que ele queria dizer com correr. Tínhamos regressado ao parque ao final da tarde, portanto já era noite cerrada. Noite cerrada significava que na improvável circunstância de alguém ver Adam como lobisomem, esse alguém pensar que se tratava de um cão — com a ajuda da magia do bando que fazia com que as pessoas vissem o que estariam à espera de ver. A magia também funciona em plena luz do dia, mas a escuridão ajuda.
— Porque é que não disseste logo? — resmunguei enquanto saltava para fora da cama. Vestia metade da minha t-shirt, a metade que restava, e as minhas peúgas. A outra metade da t-shirt estava no lado oposto da caravana. Iria precisar de uma hora para limpar muito bem a caravana antes de ela ser devolvida ao seu proprietário, caso contrário arriscava-me a passar por uma situação embaraçosa.
O que me fez lembrar do seguinte:
— Ei, Adam? — Deixei cair a metade da t-shirt no chão e pus-me sobre um pé para tirar uma peúga. — Quem é que nos emprestou a caravana? As únicas pessoas que conheço com capacidade financeira para a comprar são tu, o Kyle ou o Samuel. O Samuel jamais compraria algo tão… avultado. Disseste-me que não é tua. Foi o Kyle que a comprou numa tentativa de corresponder ao desejo que o Warren tem de acampar?
— Foi o Tio Mike.
Estaquei com um pé no ar.
— O quê? — Ele pedira algo emprestado a uma criatura feérica?
Adam segurou-me, colocando uma mão no meu ombro.
— Eu sei o que faço — disse-me com um quê de agressividade na voz. — O Tio Mike telefonou-me e disse-me que tinha ouvido falar da minha intenção de te levar a acampar e que tinha uma caravana excelente que podíamos usar.
— Pediste-a emprestada ao Tio Mike?
— O Tio Mike ofereceu-a… Quais foram as palavras dele? Por serviços já prestados. Das duas uma, Mercy, ou tiras essa peúga ou pousas esse pé no chão antes que caias.
Descalcei a peúga e coloquei-me sobre os dois pés.
— As criaturas feéricas nunca dão nada sem contrapartidas — disse-lhe urgentemente. — Nem mesmo o Zee, e ele é meu amigo.
As criaturas feéricas fazem coisas como obrigar-nos a dar o nosso primogénito ou o nosso próprio sangue em troca de uma pastilha elástica, e conseguem fazer com que pareça um bom negócio.
— Quando a criatura feérica proprietária deste parque me telefonou para o disponibilizar, cerca de uma hora antes do telefonema do Tio Mike, fiquei bastante desconfiado — confessou Adam.
A sua voz recuperara o habitual tom relaxado, porém estava irritado. Percebi isso pela forma como despiu a t-shirt. Podia deixar o assunto de lado… mas ele não conhecia os seres feéricos como eu os tinha vindo a conhecer.
— Depois de o Tio Mike ter telefonado — continuou num tom suave —, percebi que eles nos queriam aqui por uma razão qualquer. Podia ter recusado, tinha feito reservas em San Diego, mas achei que ias gostar mais disto do que de um hotel, tal como eu.
Franzi-lhe o sobrolho.
— Eu não lhe prometi nada — afirmou Adam com exagerada paciência. — Não te podes esquecer de quem és agora. Eles não podem simplesmente f… — Parou de falar por momentos, após o que engoliu a custo o acesso de fúria. Porém não com a eficácia que provavelmente desejaria, uma vez que o tom suave lhe desapareceu da voz por completo.
— Mercy, se se meterem contigo, também se estão a meter comigo e com todo o bando, e com o Samuel, e com o Bran, e com o Zee, e, provavelmente, também com o Stefan. Não sei o que eles querem. Talvez precisem que nós não vamos a San Diego. O Tio Mike fez referência específica a San Diego, apesar de eu não lhe ter dito onde te ia levar. Talvez eles precisassem que nós ficássemos mais perto de casa. Nós, lobisomens, passámos a ser um potencial aliado contra os ataques políticos, uma vez que, para além deles, somos o único grupo de seres sobrenaturais que assumiu publicamente a sua existência. Talvez haja aqui alguma coisa… — Acenou com as mãos para indicar a área sobre a qual repousava a caravana. — Pode ser algo tão simples como a intenção de nos usarem para intimidar outra criatura feérica que planeie destruir o que a Edythe construiu aqui.
Edythe devia ser a criatura feérica proprietária deste lugar. Claro que tinha sido uma criatura feérica a planear este parque de campismo, com as suas grandes árvores e a relva tão verde.
Adam tinha razão. Esquecera-me de que se os seres feéricos me lixassem, estariam a fazer frente a todo o bando e a mais umas quantas pessoas. Eu era mais do que apenas uma mecânica que reparava VWs e se transformava em coiote, porque tinha Adam, e tinha amigos. A diferença que um ou dois anos podiam fazer.
Se Adam se tivesse ficado por ali, não teria ficado zangada. Talvez até admitisse que ele tinha razão e que não me devia ter preocupado. No entanto, não se ficou por ali — porque Adam pode ser lindíssimo e inteligente, mas não é perfeito.
— Se calhar, podia ter-me permitido enlouquecer — disparou. Aparentemente, o nosso vínculo peculiar não estava a funcionar. Ele não sabia que concordava com ele. Que ele ganhara. — Ou, indo mais direto ao assunto, podia ter permitido que nos conduzisses à loucura nestes últimos dias, especulando em torno da conspiração nefasta que o Tio Mike teria engendrado… O Tio Mike, que provou ser, no mínimo, um aliado valioso, isto se não o considerarmos um amigo. Ou podia ter guardado tudo para mim até a tua curiosidade levar a melhor sobre ti e me teres perguntado, para que pudéssemos pelo menos desfrutar de dois dias da nossa lua-de-mel antes de nos começarmos a preocupar com o cara… — A sua respiração era agora mais acelerada e quase deixou escapar aquela palavra de três sílabas.
Inclinei-me para a frente, beijei-lhe o vinco branco que se desenhava na sua bochecha sempre que cerrava os dentes, e, num tom suave, disse-lhe:
— A única coisa que tinhas de fazer era dizer-me que tinhas tudo sob controlo, querido. — Pestanejei com ar grave. — Eu sou apenas a esposa. Não tenho de dar cabo deste pobre cérebro preocupando-me com as criaturas feéricas porque tu estás aqui para me proteger.
Sim, também eu me sentia irritada. Estava a tratar-me de forma condescendente.
Ainda assim, tinha a capacidade de admitir quando ele estava certo: não era certamente com as criaturas feéricas que ele tinha de se preocupar.
Semicerrou-me os olhos.
— Não foi isso que eu disse. Não ponhas palavras na minha boca.
Contornei-o, abri a porta da caravana e transformei-me em coiote antes de ele ter oportunidade de continuar — e comecei a correr.
Seria necessário algum tempo até que ele se pudesse aproximar de mim, uma vez que os lobisomens demoram muito mais tempo a transformar-se. Podia ter optado por correr atrás de mim na forma humana — mas sobre duas pernas, jamais me alcançaria, lobisomem ou não. Além disso, estava nu. Considerando a topografia e a vegetação, o parque de campismo poderia ser considerado bastante resguardado, mas não era completamente privado. A magia do bando não tinha a capacidade de esconder um homem nu a correr num parque de campismo.
Tirei partido disso e zarpei antes que ele pudesse dar continuidade à discussão.
— Tens noção do que estás a fazer ao casar com um lobisomem Alfa? — dissera-me a minha mãe uns meses antes enquanto a levava no meu carro a mais um outlet de vestidos de noiva em Portland. Quem havia de dizer que havia tantos vestidos brancos? Quem havia de dizer que havia tantos vestidos brancos horríveis? O mais estranho era que parecia que quanto pior o vestido, mais elevado o preço.
— Sim, mãe — respondera-lhe, desviando-me por um triz de um Ford LTD de 1979, conduzido por uma avozinha que mal chegava ao volante. — Conheço o Adam há muito tempo. Sei exatamente aquilo em que me estou a meter.
Como se eu não tivesse dito nada, a minha mãe opinou:
— É extremamente difícil lidar com qualquer Alfa. Os lobisomens são uns cabrões controladores, e os lobisomens Alfa são piores do que isso. Se não se tiver cuidado, uma pessoa dá por si a fazer exatamente o que eles mandam.
Havia na sua voz um vigor curioso, e perguntei-me quantas vezes teria Bran conseguido obrigá-la a fazer o que queria. Não tantas quanto teria desejado, aposto, mas claramente mais do que as que ela desejara.
— Eu sei tomar conta de mim. — Não estava preocupada. Adam era dominante, não havia dúvidas de que isso era verdade. Todavia, já tinha mais do que provado a mim mesma que tinha a capacidade de manter a minha posição contra ele, se necessário fosse.
— Eu sei que sabes — replicou a minha mãe com satisfação. — Mas lembra-te de uma coisa: os confrontos com um Alfa não são produtivos. Vais acabar por perder… Ou pior, vais acabar por fazê-lo perder o controlo.
— Ele não me vai fazer mal, mãe.
— Claro que não — concordou. — Mas um homem como o Adam, se perder o controlo, vai sentir-se péssimo. Vai ficar preocupado com a possibilidade de te ter magoado. Tu não vais querer fazê-lo sentir-se péssimo. — Interrompeu-se, considerou o que disse, e depois alterou o discurso. — A menos, claro está, que lhe seja útil sentir-se péssimo. No entanto, eu sei que isso não é produtivo. Os homens que se sentem miseráveis podem ser imprevisíveis.
Perguntei-me se o meu padrasto sabia a sorte que tinha por ela achar que era do seu interesse ele sentir-se feliz em vez de miserável. Provavelmente sabia; era um homem inteligente.
— Eu sou a rainha do atropelamento e fuga — disse-lhe. — Toda a satisfação, nada de perigo.
— Ainda bem — replicou. — Certifica-te apenas de que ele não te transforma na mulherzinha boa e dócil. Eras capaz de aguentar algum tempo… Tu foste a «filhinha boa e dócil» na minha casa desde que foste viver para lá até entrares na universidade.
Havia na sua voz uma certa impetuosidade, como se eu a tivesse magoado — o que não fora, de todo, a minha intenção. Quando deixara o bando de Bran para viver com a minha mãe e o meu padrasto, tinha dezasseis anos, e eles já tinham uma família antes da minha chegada. Não. Eles tinham a família perfeita antes da minha chegada. Na altura fiz tudo o que estava ao meu alcance para não os perturbar.
— Mas se tentares isso num casamento — continuou —, o casamento acabará por se autodestruir, e para onde quer que olhes, haverá baixas.
— O Adam não quer uma mulherzinha boa e dócil — disse-lhe.
— Claro que não — concordou. Porém, não conhecia Adam assim tão bem, e pensei que estava apenas a concordar para não me contrariar, até prosseguir. — Mas aprendeu como deve agir um marido numa altura em que era um dado adquirido que a sua mulher seria uma combinação entre cozinheira, dona de casa e mãe que precisava dele para a sustentar e proteger. Ele sabe, no seu íntimo, que tu és um ser igual a ele, mas os seus instintos foram-lhe incutidos há muito tempo. Vais ter de o ajudar em relação a isso e ser paciente com ele.
A minha mãe não seria, nem pouco mais ou menos, tão assustadora se não tivesse razão tantas vezes.
Portanto, em vez de ficar na caravana a discutir com Adam, fui correr para dar tempo a ambos de refrear os ânimos, e também para permitir que a dor infligida pelas suas observações condescendentes se suavizasse, e desse modo conseguisse pensar. Não consigo ser paciente quando estou zangada — a menos que esteja à espera para me vingar de alguém, e não estava assim tão zangada. Ainda não.
Corri o primeiro quilómetro o mais depressa que consegui, depois abrandei para a velocidade de trote.
Não podia permitir que me tratasse como a sua primeira mulher. Não conseguia viver rodeada de algodão hidrófilo.
Mas ele sabia isso.
Confiava nele. O que me escondera não punha em risco nenhuma vida. Ele tinha razão. As criaturas feéricas não ofenderiam o Alfa do Bando da Bacia do Columbia. Um lobisomem era uma criatura dura — mas o verdadeiro poder dos lobisomens residia nos seus bandos. Conseguia compreender a sua vontade de garantir que a nossa lua-de-mel fosse vivida livre de preocupações.
Ok. Ok.
Em que altura é que a nossa conversa se transformou numa discussão que nos deixou a ambos zangados? E me deixou com uma dor no peito tal que parecia que em vez de ter disparado palavras, me tinha desferido socos? Ele nem sequer tinha ficado extraordinariamente furioso, e eu sentia-me imensamente infeliz.
Um coelho passou à minha frente como um furacão. Na verdade, não fazia tenção de caçar, mas se aqueles seres estúpidos se queriam oferecer para o jantar… Com uma mudança de velocidade abrupta, comecei a perseguição.
Estava a acabar de comer o coelho quando Adam apareceu com a sua gloriosa pelagem. Adam é um homem bonito, e o seu lobo também é bonito. As suas cores distribuem-se como num gato siamês, embora em tons de cinzento-azulado que escurecem quase até ao preto.
Largou um segundo coelho junto das minhas patas dianteiras e deitou-se à minha frente, o focinho sobre as patas e as orelhas caídas.
Nada mostra mais arrependimento do que um coelhinho morto.
Lembrei-me da sua primeira mulher. Christy obrigara-o a pedir desculpa imensas vezes, a pedir desculpa por coisas que não eram culpa sua. Eu não queria um pedido de desculpas. O que eu queria era saber a razão pela qual acabáramos de ter uma discussão, uma discussão que não me dera o mínimo gozo.
Eu gostava de discutir com Adam.
Ele tinha sido o primeiro a ficar zangado.
Considerei isso.
Adam ficava zangado por três razões. A mais comum, e a minha favorita, era a frustração. Normalmente, quando Adam estava zangado comigo, a frustração era o rastilho que o fazia explodir. Adam frustrado e zangado comigo normalmente começava com uma sessão de fogo de artifício e acabava de uma forma boa, com muita adrenalina gerada e despendida pelo caminho.
A segunda era no caso de alguém tentar fazer mal a uma pessoa sob a sua proteção. Tínhamos chegado à conclusão de que era pouco provável que as criaturas feéricas estivessem a planear as nossas mortes ou sequer armadilhas quase fatais.
A terceira era a dor — física e não só.
Tendo concluído que não estava frustrado e que nem eu nem nenhuma outra pessoa próxima dele estavam em perigo, restava a possibilidade de, de algum modo, o ter magoado.
Semicerrei-lhe os olhos. De um modo geral, Adam era bastante franco. Esse era um dos traços que mais gostava nele. Descobrir o motivo pelo qual ficara zangado devia ter sido bastante mais fácil.
Tentara proteger-me, e eu objetara. Fazíamos isso constantemente, e ele raramente se zangava, a menos ou até que eu ficasse magoada.
Fizera tudo para que o nosso casamento e a nossa lua-de-mel fossem divertidos. Ocorrera-lhe que eu ficaria incomodada com o facto de a caravana lhe ter sido emprestada pelo Tio Mike, mas também concluíra que eu preferiria passar a lua-de-mel aqui do que num lugar mais convencional.
Ficara zangado quando antecipara que eu ia ficar zangada com ele por não me ter contado da caravana. Fora o facto de acreditar que eu ia ficar zangada que o magoara. Pus-me numa posição mais confortável e tentei pensar como Adam — uma pessoa muito inteligente envenenada pela testosterona.
Em primeiro lugar, ele sabia que eu ficaria zangada se me omitisse alguma coisa importante, mas isso não lhe feriria os sentimentos.
E, de repente, percebi o que tinha acontecido.
Levantei-me e passei por cima da minha peça de caça morta, depois por cima da dele. Lambi-lhe o focinho — e em seguida transformei-me, regressando à minha forma humana.
— Fizeste algumas suposições — disse-lhe. — Regista isto: por norma, é melhor esperares que eu faça alguma coisa estúpida antes de ficares zangado comigo.
Adam fixou-se em mim. Não fui capaz de discernir o que estaria a pensar.
— Isto do casamento é um projeto contínuo — continuei. — E ambos iremos cometer imensos erros pelo caminho. É verdade que fiquei preocupada quando soube que te tinham emprestado a caravana. No entanto, depois de pensar durante meio minuto, cheguei à conclusão de que tu nunca aceitarias nada emprestado de uma criatura feérica sem antes te certificares de que saberias lidar com as consequências. — Bufei. — Ficaste zangado porque achaste que eu não confiaria na tua capacidade de perceber a diferença. Não é justo. Não é de todo justo. Eu escondo coisas importantes de ti a todo o momento. — Dirigi-lhe um sorriso rasgado. — Mas eu sei que tu és uma pessoa melhor do que eu. Acho que não me deves um pedido de desculpas por algo que eu própria faria, portanto estamos quites no que diz respeito a esconderes informação de mim.
Agora era ele que estava de olhos semicerrados.
— Pois — disse-lhe como se ele tivesse falado. Sentia frio, nua e com o Sol posto, por isso estendi-me contra ele de modo a manter-me quente. — Eu sei o que disse antes de ter saído da caravana, mas fui provocada. Nada de desculpas, nem da minha parte nem da tua, mas não vou ignorar o gesto de me teres trazido o coelho. No entanto, se me vieres outra vez com aquele paleio condescendente, nem mesmo um coelho gordo e suculento irá impedir que tenhamos uma discussão.
Uma vez que era injusto eu continuar a ser a única com possibilidade de falar, transformei-me novamente em coiote. E dado que tenho por princípio aceitar presentes com todo o gosto, comi o coelho que me trouxera. Além disso, discutir sempre me provocou fome, e não havia chocolate à mão.
Ele achou engraçado eu ter comido o segundo coelho sem aceitar o seu pedido de desculpa — portanto estávamos bem novamente. Tinha para mim que iríamos ter muito mais discussões, e a verdade é que ansiava por elas. Entre outras coisas, a vida com Adam não ia ser entediante.
Estávamos de regresso ao parque quando encontrámos o barco. Na altura em que saíra da caravana, não tinha corrido paralelamente ao rio. Em vez disso, seguira por uma das saliências ao longo do desfiladeiro, evitando assim as poucas casas e vinhas dispersas por aqui e acolá, e Adam seguira-me o rasto. No regresso, todavia, corremos ao longo da beira do rio. Estava Lua nova, apenas uma lasca no céu, e as estrelas refletiam-se na água negra.
A autoestrada do lado do Oregon tinha sempre trânsito, e esta noite não era exceção. O nosso lado, o lado de Washington, estava muito mais calmo: o rio era largo, o barulho dos carros uma sinfonia distante acompanhando os sons da noite. Um desses sons foi produzido por um barco a embater na margem.
Parei porque este não era o lugar onde esperava ver um barco. No momento em que a minha atenção foi atraída na sua direção, senti o cheiro a sangue e terror — o resultado de uma batalha. Um olhar de relance a Adam indicou-me que também ele se apercebera dos odores. O pelo ao longo da sua espinha dorsal estava eriçado, embora permanecesse em silêncio.
O barco estava enfiado entre três ou quatro árvores e mais vegetação que crescia ao longo da margem. Pelo que conseguia ver, e aproximei-me muito mais do que Adam era capaz, tratava-se de um barco de pesca pequeno, daqueles em que caberiam duas ou três pessoas. Suficientemente pequeno para ser movido a remos, embora este tivesse um pequeno motor de fora de borda. Não conseguia ver para o interior do barco por causa da vegetação, mas conseguia farejar o medo de um homem e ouvi-lo falar.
«Que ele não me encontre. Que ele não me encontre.» Era isto que repetia, vezes sem conta, muito suavemente, abaixo do sussurro. Não tinha sido capaz de distinguir as suas palavras até ficar à distância de um arremesso de pedra, e eu tenho uma audição muito apurada. O ruído do barco a tocar as pedras por causa da subida e descida suave das ondas do rio era mais audível do que a sua voz.
Recuei do meio da vegetação e fitei Adam diretamente nos olhos. Se aparecesse nua, a minha nudez seria difícil de explicar, e sabia o que aquele mato me ia fazer à pele. Mas Adam demorava demasiado tempo a transformar-se, e se o fizesse, também ficaria nu. Além disso, se o que quer que estava a apavorar este homem regressasse, Adam na forma de lobo seria a nossa melhor defesa.
Talvez outras pessoas não tivessem presumido automaticamente que o que estava a amedrontar este homem exigiria um lobisomem para lhe fazer frente. Não havia lobisomens por estas bandas, os vampiros tendiam a ser monstros urbanos e a reserva feérica ficava a uma hora de viagem de Tri-Cidades, no sentido oposto — a cerca de trezentos e cinquenta quilómetros de onde nos encontrávamos. Porém, a magnitude do pavor que ele sentia fez-me pensar que não estava a ser paranoica.
Assumi a minha forma humana.
— Ei — gritei. — Você aí no barco. Está tudo bem consigo?
A voz do homem não se alterou. Não registara de todo as minhas palavras.
— Acho que vou ter mais sorte se tentar chegar a ele pelo lado do rio — disse a Adam. — O barco ainda está a flutuar. Se ele estiver tão gravemente ferido como todo o sangue que consigo cheirar me faz pensar, será mais fácil se não tentarmos arrastá-lo por entre a vegetação.
Na margem do rio, a parte despida mais próxima ficava cerca de dez metros a jusante. Com o Sol há muito posto, a água estava gelada. Tropecei numa pedra grande no fundo do rio e caí na água com um chape. Também fiz algum barulho — água fria em pele quente quando não estou a contar com ela tende a fazer-me guinchar. O homem no barco berrou — a julgar pela rouquidão na sua voz, não era a primeira vez que gritava esta noite.
— Está tudo bem — disse eu, pondo-me novamente de pé. — Você está em segurança.
Parou de gritar, mas não creio que o tivesse feito por ter compreendido o que eu dissera. Por vezes o medo é grande de mais para isso — uma parte tão grande do nosso ser está tão focada na sobrevivência que nada mais existe. Já passei por isso algumas vezes.
As pedras debaixo dos meus pés eram afiadas, mas assim que fiquei com a água pela cintura, deixei de as pisar com tanta força. Se me estivesse a dirigir para jusante em vez de montante, podia ter nadado em vez de caminhado. Adam andava de um lado para o outro, inquieto, na beira do rio.
As árvores pendiam sobre o rio e a margem estendia-se numa parede côncava debaixo delas. Para abrir caminho por entre os destroços que se haviam juntado no pequeno braço morto juntamente com o barco, vi-me forçada a arrastar-me a custo através de uma série de plantas aquáticas que não vi até me encontrar no meio delas.
A minha visão noturna é bastante boa, porém o rio era um véu negro impenetrável e tudo quanto estivesse abaixo da superfície encontrava-se escondido. Detestei o facto de não conseguir ver. Quem é que sabia ao certo o que havia no Columbia?
Algo roçou na minha perna com um pouco mais de força do que o resto das ervas, e soltei um grito involuntário. Adam, invisível no outro lado da árvore, soltou um gemido.
— Desculpa, desculpa — disse-lhe. — Está tudo bem. Só prendi a perna num daqueles maciços de plantas. Não consigo ver absolutamente nada debaixo da água, e isso, juntando a este gajo que tresanda a medo, deixou-me nervosa. Desculpa.
A estúpida da planta era persistente. Agarrou-se à barriga da minha perna quando me aproximava do barco, resistindo às minhas tentativas pouco convictas de me ver livre dela. A tendência que algumas plantas aquáticas têm para envolver os braços e pernas de nadadores desprevenidos é uma das principais causas de afogamento. No entanto, lembrei a mim própria, tinha os pés no fundo do rio, pelo que esta planta era apenas irritante. Não havia motivo para entrar em pânico.
Esqueci-me da planta assim que agarrei a borda do barco e me dediquei a tratar do que importava. A minha vista mal alcançava o barco, portanto não conseguia ver bem o homem ferido.
— Está tudo bem — disse-lhe. — Nós vamos tirá-lo desta situação.
Experimentei puxar o barco, mas por agora a água dava-me pelo peito, e a corrente ameaçava tombar-me. Quando puxei o barco, a única coisa que mexeu fui eu.
Tirei as mãos de onde as tinha e agarrei o barco mais perto da proa. Se puxasse o barco da forma que estava concebido para ser puxado em vez de o fazer de lado, o esforço em princípio seria muito menor. Em último recurso, podia trepar para o seu interior e usar o motor — todavia os ramos das árvores estavam escassos centímetros acima da borda da embarcação, e a verdade é que não queria arranhar-me ao tentar subir.
Ouvi algo e levantei a cabeça.
Quatro cabecinhas assomaram da água a cerca de dez metros do barco. Lontras.
Boa, mesmo a calhar. Precisamente o que estava a faltar.
— Lontras — disse a Adam, os meus dentes a começar a bater por causa do frio causado pela água. — Se eu começar a gritar, é porque as lontras se mandaram a mim.
Rosnou, um som grave e ameaçador, e as quatro cabeças desapareceram. Não foi tão tranquilizador quanto devia. Mas não havia nenhum dente afiado cravado em nenhuma parte do meu corpo, pelo menos não ainda. A única coisa agarrada a mim era a maldita planta, ainda bastante apertada em redor do meu tornozelo.
Tinha uma amiga que numa ocasião nadara com lontras-marinhas ao largo da costa californiana. Dissera-me que tinha sido uma experiência inacreditável. Aparentemente, eram companheiras regulares dos mergulhadores daquela área, brincalhonas e fofas. Não eram muito mansas nas brincadeiras — os mergulhadores que nadavam com elas regularmente tinham muitas vezes de substituir os seus fatos de mergulho com um centímetro de neopreno porque os dentes e as garras das lontras são afiados. No entanto, a maior parte dos mergulhadores dizia que, ainda assim, valia a pena.
As lontras do rio são mais pequenas e ainda mais fofas do que as suas primas marítimas. Também têm o temperamento doce de um texugo de ressaca. Noutras circunstâncias não me teria preocupado muito — também eu tenho dentes afiados quando quero. Mas neste momento estava no ambiente delas, não no meu.
Não conseguia vê-las. Pior ainda, não conseguia cheirá-las nem ouvi-las. Podia ficar à espera que elas me atacassem ou podia pôr-me a andar do rio.
Agarrei firmemente a proa do barco e consegui deslocá-lo um pouco. Mais metro e meio, dois metros, e tê-lo-ia onde a corrente do rio o haveria de empurrar no sentido que eu desejava.
O homem no interior do barco começou a agitar-se violentamente. Precisei de uns segundos para perceber que ele não estava apenas em pânico — agarrara-se ao cabo do motor. No momento em que o rugido súbito do motor irrompeu na noite, agarrei-me ao barco com toda a minha força e deixei que os meus pés subissem do fundo do rio.
O barco arrancou e a erva apertou-me dolorosamente o tornozelo, e por momentos tive a sensação de que… Mas nenhuma erva é tão resistente, e o barco libertou-me do seu aperto e andou cerca de cinco metros em direção a jusante antes de eu içar o meu corpo para o seu interior. Por essa altura ele colapsou novamente e a sua mão caiu da cana do leme no preciso instante em que a agarrei.
Equilibrei-me no assento e virei o barco em direção à margem, onde Adam cirandava.
O homem agarrou-me o braço e quase virei o barco antes de contrabalançar o seu peso. Se estivesse calçada, os meus pés teriam escorregado na madeira molhada e teria aterrado em cima dele.
— Tenho de fugir — disse ele. A sua pele era tão escura como a minha. Agora que finalmente tinha oportunidade de o ver bem, apercebi-me de que também ele era índio. E, ainda assim, tinha os lábios descorados.
— Tenho de o levar até à margem — gritei acima do barulho do motor. — Antes que morra esvaído em sangue.
Ouviu-se um rangido no momento em que o barco atingiu a margem, e depois assisti a um movimento brusco de Adam, que agarrava uma bolina em cuja existência eu não reparara, de outro modo tê-la-ia usado. Puxou-nos para fora de água até à margem.
Consegui desligar o motor porque já tinha começado a fazê-lo instantes antes, e quando o barco parou subitamente, aproveitei o impulso para rolar para fora do barco em direção ao chão. A minha outra opção teria sido aterrar em cima do homem que estávamos a tentar salvar. Não caí muito longe. Embati no chão com o meu ombro desprotegido, que ia ficar ferido, mas consegui escapar quase ilesa.
Adam veio ao meu encontro.
— Estou bem — disse-lhe. — Vai ver como é que ele está.
Colocou as patas sobre o barco e olhou para o seu interior. Levantei-me ao mesmo tempo. Ou a perda de sangue ou o choque de ver um lobo enorme com dentes afiados finalmente levara o nosso homem, que sangrava da metade que lhe restava do pé direito, a perder a consciência.
Adam olhou para mim e depois para ele — após o que partiu repentinamente. Naquele breve olhar, disse-me para não sair dali enquanto ia à procura de ajuda. Numa situação de emergência, os lobos comunicam de forma muito mais clara do que os humanos.
Adam faria todo o percurso a correr, mas estávamos provavelmente a oito quilómetros ou mais do parque de campismo. Demoraria dez minutos a chegar, talvez outros dez a regressar à forma humana — na melhor das hipóteses. Não fazia ideia onde ficava o hospital mais próximo ou quanto tempo seria necessário para transportar o homem até lá. Adam trataria de saber.
Com o Sol posto, o ar estava fresco, o rio gélido, e tanto o homem ferido como eu estávamos molhados e cheios de frio. Mas, de momento, não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso.
Estiquei-lhe o corpo no barco e coloquei o seu pé maltratado na tábua transversal que servia de assento. Do ferimento apenas saía sangue em gotas, o que me pareceu estranho. Talvez o frio fosse útil, ainda que perigoso.
Estava com o pensamento dividido entre as vantagens de me transformar em coiote e arranjar uma forma de despir a sua t-shirt molhada e usá-la para lhe ligar o pé sem recurso a uma faca. Ambas as opções tinham altas probabilidades de serem inúteis ou algo pior… Até que ouvi o zunido de um motor vindo do rio.
Luzes percorreram a margem e detiveram-se no barco de cor branca onde me encontrava. Acenei com os braços para os chamar até à margem. Apercebi-me de vozes excitadas, mas não consegui entender o que estavam a dizer porque o barulho do motor abafava as palavras. Um barco pequeno, porém com muito melhor aspeto, mais moderno e equipado com luzes, aproximou-se de nós velozmente.
A ajuda tinha chegado. A menos que estes fossem os tipos que haviam cortado o pé ao homem. E eu completamente nua, apenas com as dog tags de Adam. Bom, não havia como evitá-lo; o meu pudor não valia a vida de um homem.
O barco ainda não tinha alcançado a margem quando três homens saltaram para o rio. Um deles agarrou a bolina, e assim que o fez, o quarto homem, que permanecera no barco, desligou o motor e saltou também.
As perguntas «Benny?» «Faith?» e «Quem é você?» deram gradualmente lugar aos nomes Hank e Fred Owens, Jim Alvin e Calvin Seeker — que me foram apresentados por Jim Alvin, seguramente o mais velho de todos, apesar de apenas Calvin poder ser considerado jovem.
Só depois de os irmãos Owens retirarem um kit de primeiros socorros e começarem a tratar do homem ferido é que me dei conta de que todos nós — a vítima, eu e os quatro homens no barco de salvamento — éramos índios.
Jim Alvin estava na casa dos sessenta e cheirava a fumo de madeira queimada e tabaco velho. Calvin estava algures entre o final da adolescência e os vinte e poucos. Hank e Fred teriam aproximadamente a minha idade, pensei, e uma semelhança física tal que pareciam gémeos, embora Hank não tivesse aberto a boca. Se não tivesse acabado de receber a de Adam, não sei se teria reparado nas dog tags deles. Mas teria certamente reparado que possuíam algum tipo de formação no auxílio em situações de emergência, a julgar pela eficiência dos seus movimentos e pela sua concentração assim que viram Benny Jamison.
Benny era o homem ferido.
Jim interrogou-me — num tom de voz suave e baixo — enquanto os irmãos Owens se empenhavam ao máximo para salvar Benny.
— Não se aperceberam da presença de mais alguém? — perguntou-me depois de eu lhe ter contado como é que Adam e eu tínhamos encontrado o barco, e como Adam regressara ao acampamento para pedir ajuda e me deixara a tomar conta do homem.
— Não. — Apertei com mais força o cobertor que me fora dado por eles.
Benny acordou pouco tempo depois de eles terem começado a ligar o seu pé. A julgar pelos barulhos, aquilo estava a doer.
Jim suspirou.
— A irmã do Benny, a Faith, saiu com ele para irem pescar. Deviam ter regressado a casa para o jantar. A Julie, a mulher do Benny, ao ver que este não atendia o telemóvel, telefonou ao Fred. Nós estávamos a conduzir o barco para a doca, mas os Jamisons são boa gente. Voltámos a lançar o barco à água e começámos à procura. De que tribo é que você disse que era?
Não tinha dito, apesar do facto de eles se terem apresentado dessa forma. Todos eles pertenciam à Nação Yakama (com três «a», apesar de o nome da cidade ser Yakima). Os irmãos Owens eram Yakama. Jim Alvin era Wishram e Yakama, à semelhança de Calvin Seeker. Eu não pensava em mim dessa forma. Era uma caminhante e uma mecânica, condições que serviam mais para me separar do que para me aproximar de outras pessoas. Era a companheira de Adam, o que me ligava a ele e ao bando.
Também estava com frio e cansada. Precisei de muito tempo para me lembrar.
— Blackfoot — disse, para logo a seguir me corrigir. — Blackfeet.
— Não sabe a qual delas pertence? — perguntou Calvin, falando pela primeira vez, embora estivesse a observar-me desde que tinham alcançado a margem. Quase me esquecera de que estava nua até ter visto a sua expressão momentos antes de me ter sido arremessado um cobertor de lã. Suponho que o desinteresse generalizado por uma questão de cortesia era pedir demasiado. No entanto, três em quatro não era mau.
— Nunca conheci o meu pai. A minha mãe é branca. Ele disse à minha mãe que era de Browning, Montana — expliquei-lhes. A lã estava a ser eficaz no propósito de aquecer a pele que cobria.
Estar nua mas embrulhada num cobertor entre estranhos não era algo que costumasse causar-me incómodo. Talvez se Calvin parasse de olhar para as diferentes partes de mim que o cobertor não tapava, eu não me sentisse incomodada. Naquelas circunstâncias, fiz o melhor que pude para manter Jim entre mim e Calvin.
— Então foi criada como uma branca — disse Calvin num tom de reprovação.
Devia ter-lhes dito que era hispânica e que quaisquer índios na minha genealogia eram sul-americanos e desconhecidos. Metade dos meus clientes pensava que eu era hispânica. Tinha a sensação de que se lhes tivesse dito que era hispânica, teria sido mais verdadeira do que fora ao dizer-lhes que era índia. Como se estivesse a reivindicar laços que não estavam ali.
— Browning, Montana, faz dele um Blackfeet — disse-me Jim simpaticamente. — Piegan. Os Kainai e os Siksika são Blackfoot.
Eu sabia isso. Apenas não o tinha dito.
— O que é que você estava a fazer por estas bandas? Não é um sítio muito normal para se andar a esta hora da noite. — Jim não disse «nua». Não era necessário. — Rapaz — disse abruptamente a Calvin. — Não faças com que a tua mãe sinta vergonha do filho.
O rapaz comprimiu os lábios, mas desviou os olhos de mim. Uns anos antes o seu olhar não me teria incomodado como agora. No entanto, haviam sucedido coisas que agora me faziam sentir desconfortável quase nua diante de quatro desconhecidos — cinco, se incluísse Benny, o que não fiz.
— Casei recentemente — disse-lhe, lembrando o meu ser por de mais nervoso que Adam por esta altura já estaria de regresso. Se acontecesse alguma coisa, e não tinha qualquer razão para achar que pudesse acontecer, especialmente considerando que me tinham dado um cobertor para me tapar sem pronunciarem uma única palavra, Adam estaria aqui antes que algo muito mau acontecesse. Não ia cair no erro de presumir que todos os homens eram maus, mas se não fosse cautelosa, não seria humana. — Estávamos a nadar.
— Ainda bem para o Benny — comentou Jim. — Já passámos por aqui duas vezes. Só de manhã é que iríamos conseguir ver o barco debaixo das árvores. E de manhã teria sido tarde de mais para ele.
Fred (percebi que era ele porque vestia uma camisa de flanela vermelha, ao passo que o irmão vestia uma cinzenta) deixou Benny ao cuidado do irmão e aproximou-se.
Claramente estivera à escuta porque disse:
— Liguei para o 112, Jim, e eles já tinham recebido uma chamada do marido dela. Está uma ambulância a caminho. Disse à telefonista que podíamos levar o Benny até à estrada. Vai ser complicado. A estrada fica só a cerca de um quilómetro em linha reta, mas esta zona é terrível para se caminhar depressa no escuro. No entanto, eles teriam de percorrer o trajeto duas vezes, ao passo que nós só teríamos de o percorrer uma.
— E se o levássemos no barco? — sugeriu Calvin.
Fred abanou a cabeça.
— Talvez de barco o conseguíssemos levar ao hospital mais depressa, mas a ambulância tem pessoal médico a bordo. Vai ter assistência médica mais depressa, e o tempo é importante. Se ele ficar em choque, podemos perdê-lo… mas quando aquecer, aquele pé vai sangrar como uma fonte.
— Como tu e o Hank acharem melhor — disse Jim, que pareceu tomar a decisão em nome de todos.
5
Os únicos arbustos e árvores nesta parte do desfiladeiro que não eram cultivados — só uma porção muito pequena de terra em ambos os lados do rio era cultivada — estavam mesmo junto ao rio. De modo que a maior parte do nosso trajeto era em basalto coberto por giesta, o que não proporcionaria uma caminhada assim tão má se eu estivesse calçada.
Teria sido melhor se me pudesse ter transformado em coiote, mas eu não conhecia estes homens — e não tenho por hábito anunciar o que sou a toda a gente. Demasiadas coisas más aconteceram a pessoas que admitiram de forma demasiado aberta o que eram sem um grupo poderoso por trás delas — e, por vezes, até com um grupo poderoso atrás delas. Sobrevivera durante muito tempo usando a estratégia de tentar passar despercebida e me misturar com os demais; não ia mudar isso apenas para fazer com que os meus pés descalços se sentissem melhor.
Os irmãos Owens e Calvin transportavam Benny alternadamente. Jim seguia à frente e segurava uns foguetes luminosos para fazer sinal à ambulância para parar. Todos nós, excetuando quem estivesse a transportar Benny, segurávamos lanternas, que contribuíam amplamente para dar cabo da minha visão noturna. Eu seguia na cauda do grupo — embora todos tivessem sugerido que eu permanecesse junto ao rio.
Podia ter feito isso, mas e se eles dessem de caras com Adam? Em circunstâncias normais, estariam em completa segurança. No entanto, Adam vira-se forçado a passar por duas transformações rápidas esta noite e vivera uma série de situações de stress. Vira-se forçado a deixar-me nua e vulnerável. Benny tinha revelado tanto medo — para além de todo o sangue e dor.
Adam não era humano e deixara de o ser há muito tempo. O seu autocontrolo era muito bom — mas esta não era uma boa noite para ele se cruzar com estranhos a transportar um homem ferido, a sangrar.
Portanto, insisti em ir com eles.
Podíamos estar a cerca de meio quilómetro da estrada, mas esse quilómetro era inteiramente percorrido no sentido ascendente de uma encosta muito íngreme, com penhascos de basalto cuja altura variava entre o meio metro e os seis e nove metros. Os primeiros, trepámos; os segundos, contornámos.
Segundo o meu cálculo pouco preciso, estávamos a cerca de meio caminho quando Adam se cruzou connosco. Estava na sua forma humana e vestido, mas tinha os olhos amarelos e brilhantes em virtude da adrenalina e da dor causadas pelas suas transformações apressadas.
Entregou-me uma mochila e disse:
— Roupas, calçado e primeiros socorros. — A sua voz era um som grave, semelhante a um rosnar, e a sua mão tremia.
— Obrigada — disse-lhe. — Com eles estou em segurança. — Por esta altura acreditava nisso, o que era um alívio. — Podes transportar o Benny até à estrada, onde a ambulância vai passar? — Seria perigoso com todo aquele sangue. No entanto, os homens começavam a ficar cansados, e as pessoas cansadas dão passos em falso.
Adam não olhou diretamente para nenhum dos estranhos — para não haver o risco de algum deles o olhar olhos nos olhos. Isso era bom e mau, simultaneamente. Era sinal de que ainda estava em controlo — mas também que não confiava em si próprio para se manter assim.
Retirou Benny das costas de Hank sem dizer uma palavra, tomando o homem ferido nos braços como a um bebé — o que mantinha o pé de Benny numa posição mais elevada, apesar de ser uma forma muito mais difícil de transportar uma pessoa inconsciente do que a usada pelos irmãos Owens.
Hank ofereceu resistência a Adam — limitou-se a ficar muito quieto, como se intuísse o perigo que corria. Adam levantou a cabeça uma vez, lançou um olhar rápido a todos os homens e em seguida encaminhou-se para a estrada numa corrida veloz.
— Quem diabo era aquele? — perguntou Calvin.
Tinha de ter pelo menos uma suspeita de quem seria — afinal de contas, Adam trouxera-me roupas. O que ele queria dizer, pensei, era como conseguia Adam correr encosta acima transportando Benny a uma velocidade que teria feito jus a um velocista olímpico.
— Era o meu marido — disse descontraidamente à atmosfera carregada de adrenalina enquanto abria a mochila e retirava as calças de ganga. — É um lobisomem, e o Hank teve a inteligência de não levantar problemas quando ele lhe tirou o Benny das costas.
A identidade de Adam não era um segredo, apesar de ainda haver muitos lobisomens que escondiam o que eram. Adam era quase uma celebridade em Tri-Cidades, embora alimentássemos a esperança de que o fascínio em relação a ele acalmasse. Não havia problema algum em Calvin e os outros saberem o que ele era — e talvez os fizesse ter alguma cautela quando o alcançássemos.
Vestir as minhas calças de ganga foi uma tarefa lenta porque ainda estava um pouco molhada, mas a sensação de calor foi maravilhosa. Adam colocara na mochila uma camisola que tinha o seu cheiro, que me chegava aos joelhos e era mais quente do que qualquer peça de roupa que algum dia vestira. Limpei com as mãos os meus pés doridos e com sangue e enfiei-os num par de peúgas, depois num par de sapatilhas. Um paraíso.
Levantei os olhos para deparar com os quatro homens fixos em mim.
— Não olhem para ele diretamente nos olhos se o puderem evitar… Ele teve um dia mau — adverti-os. Depois, com o cobertor numa mão, parti atrás de Adam, deixando os outros prosseguir ao ritmo que entendessem. Tinham sido lestos e firmes perante o problema do amigo deles. Recuperariam depressa do episódio do lobisomem.
Adam estava à nossa espera na berma da autoestrada quando o encontrei. Pousara o homem ferido a poucos metros dele, onde havia uma pedra grande que usara para manter a perna de Benny elevada.
— Ei. — Pus o cobertor em cima de Benny e enfiei as bainhas no contorno do seu corpo. — Como é que estás, Adam?
— Não muito bem — admitiu sem olhar para mim. — Preciso de matar alguém. — Penso que estava a tentar ser engraçado, mas pronunciou a frase de forma séria.
Conseguia ouvir os outros aproximarem-se. Os meus pés estavam uma desgraça, com ou sem sapatilhas, e doía-me a barriga da perna, na zona onde a planta aquática fora arrancada abruptamente. Não tinha subido a encosta com a máxima rapidez, mas, ainda assim, alcançara a autoestrada relativamente depressa. Quanto aos outros, sem Benny a abrandá-los, tinham obviamente conseguido acelerar bastante o passo. Levantei-me e caminhei na direção de Adam.
— Ninguém aqui precisa de matar ninguém — disse-lhe com urgência calma. — Estes homens andavam à procura do Benny. São boa gente, por isso não podes matá-los.
Adam continuava sem me olhar nos olhos, mas riu-se, um som que parecia traduzir genuíno divertimento.
— Não devia.
— Não devias o quê?
— Não devia matá-los, Mercy. Não é «não podes».
Encostei a testa ao seu ombro.
— Aplicado a ti, é a mesma coisa — disse-lhe num tom confiante.
Respirou fundo e virou-se para dar de caras com os quatro homens que se aproximavam de nós um pouco a medo — porque não eram estúpidos.
— Olá — disse Adam, com a voz ainda cavernosa e cerca de meia oitava mais grave do que o habitual. — Eu sou o Adam Hauptman, Alfa do Bando da Bacia do Columbia.
— Jim Alvim — disse Jim, dando um passo em frente. Tinha-lhes dito para não o olharem diretamente nos olhos, mas ele fez melhor do que isso. Talvez tenha sido sorte, talvez ele soubesse algo sobre lobisomens ou simplesmente sobre animais selvagens, mas chegou um ombro à frente e inclinou a cabeça para o lado e para baixo, submissamente, enquanto estendia uma mão. — Da Nação Yakama. Obrigado pela ajuda. O Benny é um bom homem.
— Tem ideia do que lhe terá acontecido? — perguntou Adam, após ter dado um breve aperto de mão a Jim. Os seus olhos estavam com um brilho lupino, um amarelo ameaçador com a iluminação das lanternas dos outros.
— Não faço a menor ideia — respondeu Jim.
Fred Owens chegou-se à frente. Também a cabeça dele estava baixa, mas estava a olhar para cima, na direção do rosto de Adam.
— Já assisti a todos os tipos de matança. Um urso é capaz de arrancar metade do pé a um homem, como aconteceu ao Benny. Um urso ou outro carnívoro grande qualquer.
Apesar de não saber de que tipo, aquilo era um desafio, pelo que sustive a respiração.
A tensão abandonou os ombros de Adam, que de repente exibiu um sorriso rasgado.
— Acha que lhe arranquei o pé à dentada? Ora, fuzileiro naval, acabei de casar. Tenho coisas mais importantes para fazer.
— Barracuda — interveio Hank, interrompendo o silêncio que de repente se criara. — Parece ter sido uma barracuda… ou talvez um tubarão-tigre. Eles têm dentes afastados e afiados que usam como uma serra.
— O Columbia — disse Jim lentamente — é um rio de água doce.
— Já foram encontrados tubarões-tigre em rios de água doce — persistiu Hank.
— Não acima de barragens — afirmou Fred. — Como é que você sabe que eu já fui um fuzileiro naval?
Os olhos de Adam estavam agora cor de mel, não exatamente o castanho-escuro habitual nele, mas uma cor mais segura do que antes.
— É mais fácil identificar um fuzileiro do que um polícia — disse Adam. — Mais lhe valia andar com «fuzileiro naval» tatuado na testa. — Parou de falar para causar impressão, após o que disse: — O facto de ainda usar as suas dog tags ajuda.
— Você não é um fuzileiro naval.
Adam abanou a cabeça.
— Comando. Nunca soube nadar… e desde que me tornei lobisomem, sou completamente inútil na água.
— Será que o pé dele foi apanhado por uma daquelas armadilhas de mandíbula? — perguntou Calvin, falando pela primeira vez. — A mim pareceu-me que foi algo do género.
— Já não vejo uma coisa dessas desde que era puto — comentou Jim. — E nessa altura era ilegal. Mas ele tem razão. Podia ter causado aquele tipo de dano.
— Uma armadilha para ursos não apanharia duas pessoas — interveio Hank. Adam podia ter conquistado a simpatia de Fred pelo facto de ambos terem sido militares, mas o outro irmão Owens ainda estava desconfiado. — Onde é que está a Faith?
— Ele estava com medo de alguma coisa. — Franzi o sobrolho ao homem inconsciente. — Mas não era do Adam.
Fred acenou abruptamente ao irmão.
— Nenhum comando seria estúpido ao ponto de deixar uma testemunha viva.
Aparentemente, achava que isso isentava Adam de qualquer culpa.
Hank parecia menos convencido e esfregou as costelas com uma mão, como se lhe doessem. Talvez se tivesse lesionado a transportar Benny encosta acima, ou se calhar era um ato reflexo.
Nessa altura, a ambulância, seguida pelo carro de um xerife, parou à nossa beira. Com uma grande rapidez, o pessoal da Emergência Médica colocou Benny numa maca e depois a ambulância arrancou em direção ao hospital mais próximo. O xerife anotou nomes e declarações. Parecia conhecer o outro homem, e, a julgar pela linguagem corporal deles, todos se davam bastante bem. Quando Fred lhe disse que Adam era um lobisomem, o agente da autoridade ficou tenso e analisou-nos com a sua lanterna.
O seu olhar deteve-se em mim.
— Você está a sangrar — disse-me. Apontou a lanterna à minha perna. Percebi então que ele tinha razão, e de que maneira.
Levantei as calças. Tinha sentido tanto frio e os meus pés tinham levado uma tareia tal que nem sequer prestara atenção. Doía-me, mas não associara essa dor a um potencial ferimento. Porém, esse ferimento existia, e não era pequeno. A pele da barriga da minha perna fora arrancada, juntamente com alguma carne. Tinha muito mau aspeto, parecia uma queimadura extrema causada por uma corda.
— Fiquei presa numas plantas aquáticas quando me aproximava do barco do Benny — expliquei. — O Benny ligou o motor enquanto eu estava agarrada ao barco e puxou-me.
— Não me parece que uma planta pudesse causar um ferimento desses — disse-me Fred, apontando a sua lanterna à barriga da minha perna. — Algumas daquelas plantas aquáticas podem ser cortantes, mas isso parece mais um ferimento causado por uma corda de cânhamo.
— Aquele rio tem todo o tipo de lixo — comentou o xerife. — Ainda bem que não ficou presa em águas profundas. A ambulância está a ser usada, mas eu posso levá-la ao hospital.
— Não — retorqui. — Não está com bom aspeto, mas tenho noção do que é. Só precisa de ser desinfetado e ligado, e nós temos o que é preciso para isso.
Adam ajoelhara-se para ver o ferimento com atenção. Ouvi-o respirar fundo, após o que se aproximou ainda mais. Pouco depois, abanou a cabeça e levantou-se.
— Pareceu-me ter sentido um cheiro estranho, mas ninguém sabe as coisas que se podem acumular numa corda dentro de um rio.
O agente engoliu em seco, tendo sido lembrado do que Adam era.
— Vocês os quatro podem levar o vosso barco de volta? Ok. Deixem o barco do Benny onde está, que nós vamos mandar lá pessoal para verificar que pistas nos pode dar. Mas basicamente vamos ter de esperar até que o Benny nos possa contar o que aconteceu à Faith e ao pé dele. Neste momento, acredito que possa ter sido algum tipo de acidente.
— Uma vez vi um homem que tinha sido atacado por uma barracuda — disse Adam. Olhou para Hank. — De facto, o resultado era muito parecido com o que se viu no pé do Benny. — Relanceou os olhos a Calvin. — Não foi uma armadilha metálica. Essas velhas armadilhas de mandíbula são feitas para perfurar a carne do animal e mantê-lo preso, não para atravessar o osso. Uma armadilha para ursos poderia esmagar um pé, mas mais do que esmagado, o pé do Benny foi cortado. Qualquer coisa com dentes afiados se mandou a ele.
— Não há barracudas no Columbia — disse Fred. Mas não parecia estar a encetar uma discussão. — Nem tubarões. Parece-me uma coisa feita por maquinaria agrícola. Mas nunca vi uma enfardadeira ou uma ceifeira no rio.
Comecei a sentir comichão na perna. Seria de esperar que doesse mais do que de facto doía, mas, naquele momento, o que sentia era comichão. Talvez tivesse raspado a perna em urtigas ou coisa parecida enquanto andava com as pernas nuas.
Adam olhou-me de soslaio.
— Preciso de levar a Mercy para o parque de campismo.
O agente disse:
— Ide buscar o vosso barco e vão para casa. Sr. Hauptman, eu posso levá-lo a si e à sua mulher ao parque de campismo para que possa cuidar dela.
Ele tinha medo de Adam. Quando entrámos no carro, o odor do seu medo preenchia o ar. Todavia, não creio que um humano tivesse reparado, e um pouco de medo não iria fazer com que Adam perdesse o controlo.
Adam era muito experiente a lidar com pessoas assustadas. Quando chegámos ao parque de estacionamento, o agente estava completamente envolvido numa discussão sobre qual seria o impacto de um segundo parque de campismo na zona de Maryhill.
— Aquilo de que nós precisamos mesmo é de um ou dois restaurantes bons. — A voz do agente traduzia a sua convicção. — O museu tem uma boa delicatessen, e há um ou outro espaço em Biggs, mas o trânsito da autoestrada é constante. É preciso deslocarmo-nos a Goldendale, The Dalles ou Hood River para comermos bem. Os turistas que vêm por causa do museu ou do Stonehenge têm muita dificuldade em encontrar esses sítios. Na minha opinião, perdemos muitas oportunidades de negócio porque não temos o número suficiente de espaços onde se possa comer.
Estacionou junto aos portões e deixou-nos sair.
— Gostaria que ficassem por cá durante mais uns dias, no caso de precisarmos de vos perguntar mais alguma coisa.
— Planeamos fazê-lo — disse Adam. — Mas se precisar de nós, tem o meu número de telemóvel.
Arrancou e eu disse a Adam:
— É bom que não deixes o Bran perceber quão diplomático e pacificador podes ser quando queres. Ainda te obriga a andar por todo o país a fazer discursos sobre como os lobisomens são afáveis e não há motivo para ter medo deles.
Adam sorriu e pegou em mim.
— Chiu — disse.
Não o contrariei. A comichão não tinha desaparecido, mas a dor tinha-se intensificado na curta viagem até ao parque. Além disso, para um lobisomem, levar-me ao colo não exigia grande esforço.
— Ei — disse-lhe. — Passaste o dia a desempenhar o papel de burro de carga herói. Primeiro o Robert, depois o Benny, e agora eu.
Pousou-me no chão em frente à caravana e abriu-me a porta. Quando me sentei no sofá de couro, acendeu as luzes interiores e dobrou o pano das minhas calças até ao joelho. Sob a luz intensa da caravana, o ferimento parecia muito mais grave do que anteriormente. Uma coisa amarela e sangue cobriam o corte, que tinha cerca de dois centímetros e meio de largura e era mais profundo do que julgara. Os primeiros sinais de pele enegrecida começavam a aparecer acima e abaixo do corte, e as extremidades tinham inchado.
Adam baixou o nariz na direção da minha perna e voltou a cheirar. Retirou uma toalha macia de um armário e colocou-a sobre a minha perna. Depois, apoiou a minha perna na sua coxa e verteu fogo em estado líquido sobre o corte. Sei que algumas pessoas dizem que a água oxigenada não arde. Ainda bem para eles. Eu cá odeio essa coisa.
Dei um salto quando a água oxigenada atingiu a ferida e encolhi-me no sofá enquanto borbulhava ferozmente. Adam usou a toalha húmida para me limpar a perna, após o que a cheirou novamente.
— Não foi corda nenhuma — rosnou. — Havia alguma coisa cáustica ou venenosa no que quer que te tenha agarrado. Consigo sentir o cheiro.
— É por isso que provoca comichão? — perguntei.
— Provavelmente. — Estendeu-me dois comprimidos que estavam dentro de um frasco no kit de primeiros socorros.
— O que é isto?
— Anti-histamínicos — respondeu. — No caso de o inchaço ser uma reação alérgica.
— Se eu tomar estes comprimidos, daqui a três minutos estou a dormir. — Ainda assim, tomei-os. A necessidade de afundar os dedos naquele corte e coçar tornou-se quase insuportável depois de a ardência provocada pela água oxigenada ter desaparecido.
— Precisamos de telefonar ao Tio Mike — disse eu num tom de voz brando. Não queria iniciar uma nova discussão.
Deve ter-se apercebido disso na minha voz porque me deu uma palmadinha no joelho.
— Telefono-lhe mal acabe, mas duvido que o Tio Mike nos tenha enviado até aqui por causa disto.
— Só para que as coisas fiquem claras — disse-lhe. — Eu não te entendi mal, pois não? Tu e os irmãos Owens acham que foi um peixe qualquer que comeu o pé do Benny.
— É cedo de mais para fazer suposições — replicou Adam. — Talvez eles tenham parado em terra para almoçar e se tenham cruzado com um urso.
— Mas aqui há ursos, sequer?
— Provavelmente não aqui — reconheceu Adam. — Mas lá em cima, onde estivemos a caminhar, há. É impossível saber que distância é que o Benny percorreu de barco desde o ataque inicial.
— Então o que é que se agarrou à minha perna?
— Isso é algo que o Tio Mike possivelmente saberá — respondeu Adam. — Quantas lontras é que viste?
Pestanejei, o meu cérebro começava a ficar afetado pelos anti-histamínicos. Lontras.
Endireitei um pouco as costas.
— Não eram lontras do rio. — As suas cabeças tinham uma forma ligeiramente diferente. Não tinha prestado muita atenção a isso na altura.
Adam anuiu com a cabeça.
— Eu vi uma quando regressei ao barco. Quanto é que apostas que são de uma espécie europeia? Os lobisomens não são os únicos metamorfos na Europa.
— Já ouvi falar em selkies8 e kelpies9 — repliquei. — Mas não de lontras metamorfas.
— Nem eu — disse Adam, franzindo o sobrolho à barriga da minha perna. — Mas os selkies interagiam muito com as pessoas. Os kelpies são mais raros, ao que sei, mas assustadores. É fácil de perceber porque é que existem histórias sobre eles. As lontras não são assustadoras.
Dizia o homem que não tinha estado com elas no rio, nu. Podem ser pequenas, mas são ágeis e más.
Alguém bateu à porta, e tanto Adam como eu nos fixámos nela, espantados. O portão junto à autoestrada estava fechado, e ficava suficientemente perto da caravana para nos termos apercebido da chegada de alguém. Olhou para mim e abanei a cabeça — tão-pouco tinha ouvido alguém a aproximar-se. Adam enfiou a mão na sua mala, retirou um revólver silenciosamente e enfiou-o na parte de trás das calças de ganga, tapando-o com a t-shirt.
A pancada suave repetiu-se.
— Quem é? — perguntou Adam.
— Chamo-me Gordon Seeker, sou o avô do Calvin, Sr. Hauptman. Ele disse-me que a sua mulher tinha ficado ferida enquanto ajudava o Benny, que é meu amigo.
Adam abriu a porta cautelosamente. Recuou e vi o homem pela primeira vez. A sua voz não parecera a de um velho, mas não creio que alguma vez tivesse visto alguém tão velho a não ser em lares de idosos.
Um par de perspicazes olhos castanhos, rodeados por um rosto que parecia ter sido deixado a secar ao sol durante demasiado tempo, cravou-se em mim. Tinha pele como carne de boi seca e curada e uma cabeleira branca apanhada numa trança francesa que lhe descia pelas costas. Usava óculos de massa e pequenos piercings de ouro nas orelhas. Tinha as costas curvadas e as mãos atrofiadas pela artrite, os dedos tortos e os nós inchados. No entanto, os seus movimentos revelaram-se surpreendentemente fluidos enquanto subia para a caravana sem ter sido convidado.
Vestia calças de ganga e uma t-shirt vermelha lisa por baixo de um casaco da equipa dos Redskins. Não sei se era adepto de futebol americano, se o usava como forma de passar uma mensagem ou se era apenas algo que vestia para não sentir frio.
Ao ombro trazia um daqueles sacos de couro que se devia parecer com uma bolsa mas na verdade não parecia. Nos pés trazia o mais garrido par de texanas que jamais vira — e isso quer dizer muito porque eu venho de uma zona de cowboys, e os cowboys usam coisas mesmo berrantes. As botas eram daquele vermelho vivo que se vê nos batons, tendo cada uma delas uma bandeira dos Estados Unidos feita com contas vermelhas, brancas e azuis na parte superior.
O homem cheirava a ar fresco e tabaco. Mas não ao tabaco de cigarro. Talvez de um cachimbo — algo sem os aditivos que fazem com que os cigarros cheirem tão mal. Fez-me lembrar o fantasma do meu pai.
— Ele falou-me de si, Sr. Hauptman — disse o avô de Calvin. — Há muito tempo que não via um lobisomem. Não há muitos nesta parte do país. E esta deve ser a sua mulher, Mercedes… — Depois olhou para mim e inspirou. — Você — continuou. — Não estava a contar consigo. O Calvin disse-me que era uma Blackfeet casada com um lobisomem anglo. Devia ter-me perguntado quantas mulheres Blackfeet se juntariam a um lobisomem, não é verdade? Perguntara-me o que seria feito de si. — Estreitou os olhos. — Você não é parecida com o Velho Coiote. Quer dizer, consigo ver qualquer coisa dele nos seus olhos e na cor da sua pele, mas parece mais anglo do que eu estava à espera.
Tinha conhecido o meu pai.
De repente, com ou sem anti-histamínicos, perdi por completo o sono. Porém, havia uma desconexão entre a minha língua e as perguntas que galopavam na minha cabeça. Olhei para Adam. Tinha os olhos semicerrados e uma expressão neutra. A sua linguagem corporal dizia: «Que tipo interessante. Vamos ver o que ele faz.»
O velhote baixou os olhos na direção da minha perna e sibilou.
— Isso está com mau aspeto. O Diabo do Rio está de volta, de certeza. — Sentou-se ao meu lado e abriu a bolsa que não era uma bolsa e sacou de uma trouxa envolvida por um lenço de seda. Abriu-a e começou a cantar.
Se nunca se ouviu música ameríndia, é difícil explicar o que ela transmite. Por vezes a música é acompanhada de uma letra, mas Gordon Seeker não pronunciou uma única palavra. A música nascia-lhe no peito e ressoava-lhe nos seios nasais — à semelhança da música produzida pelo fantasma dançante do meu pai. Ainda a cantar, Gordon Seeker retirou da trouxa uma vela de cera feita em casa e acendeu-a. Dava a impressão de que a tinha acendido com magia, mas normalmente sinto quando alguém faz uso de magia. Não vi nenhum fósforo, apesar de sentir o cheiro a enxofre.
Farejei desconfiadamente e ele dirigiu-me um sorriso rasgado. Reparei, então, que lhe faltava um dos dentes da frente. Ainda a cantar, levantou a mão vazia e fechou-a. A seguir, reabriu-a e nela estava um fósforo queimado.
Depois, retirou um pedaço de uma folha e aproximou-o da chama da vela. Estava seco e começou a arder rapidamente. Largou-o e tentei agarrá-lo antes que queimasse a caravana — porém as chamas consumiram a folha antes que esta atingisse a alcatifa, deixando apenas algumas cinzas e uma quantidade surpreendente de fumo.
Reconheci a planta pelo cheiro, apesar de antes não ter reconhecido a folha. Tabaco. Presumo que não fumasse cachimbo.
Gordon inclinou-se para a frente e soprou o fumo do tabaco e a vela na direção da minha perna. O sopro não pareceu ter afetado a sua música. Levantou a cabeça, e eu só conseguia ver um dos seus olhos.
E no seu olho vi uma ave predadora que se parecia com uma águia. As suas penas eram tão escuras que, a princípio, pensei tratar-se de uma águia-real10, que, apesar do nome, frequentemente tem uma aparência quase negra; porém, movia-se de forma diferente.
Fechou os olhos, soprou novamente, e quando reabriu o olho, estava brilhante e com um quê de predador — mas também era apenas um olho no qual não voava nenhuma ave. Concluí que os anti-histamínicos que acabara de tomar me deviam estar a afetar mais do que o habitual.
Abriu um frasco, retirou do seu interior uma espécie de unguento amarelado e espalhou-o sobre a marca que a nem-uma-corda-de-cânhamo-nem-uma-planta me deixara na perna. O alívio foi quase imediato.
Parou de cantar e limpou os seus dedos gordurosos às minhas calças de ganga. Em seguida, apagou a vela.
Adam olhou para mim.
— Sinto-me muito melhor.
— Magia? — perguntou Adam ao nosso visitante.
No rosto do velhote desenhou-se um sorriso rasgado.
— Talvez. — Ainda segurava o pequeno frasco de barro e apontou a sua abertura na minha direção. — Ou talvez seja do Bag Balm11. Uso-o em todos os meus cortes e queimaduras. — Parecera-me que aquele unguento tinha um odor que me era familiar. Acrescentara-lhe alguma coisa, mas sem dúvida que a base era Bag Balm. A minha mãe de acolhimento também usava Bag Balm para curar tudo. Eu guardava uma lata desse produto no meu trabalho. — Ao que sei, os seus pés também ficaram muito maltratados. Porque é que não se descalça para que possamos dar uma vista de olhos?
— Como é que você me conhece? — perguntei, descalçando as sapatilhas e as meias.
Adam concluíra que este frágil velhote era uma possível ameaça. Apercebi-me disso porque recuara um passo de modo a ficar fora do seu alcance. Estava de sentinela, pronto a fazer o que quer que as circunstâncias exigissem, confiando em mim para tratar do resto. Do mesmo modo que eu confiara no seu juízo de que o homem era uma possível ameaça.
O nosso oponente podia ser um homem velho, mas tanto eu como Adam vivêramos rodeados de coisas muito velhas que eram perigosas. Não íamos subestimar este homem que cheirava a tabaco, fumo de madeira queimada… e magia. Não era magia feérica, por isso não me apercebera dela imediatamente. Era mais perfumada e subtil, embora estivesse em crer que não era menos poderosa.
Por vezes, Charles tinha um cheiro algo parecido com este.
O velhote sorriu-me, segurando o frasco de unguento.
— Como é que eu não havia de conhecer a Mercedes Thompson que é casada com Adam Hauptman, Alfa do Bando da Bacia do Columbia?
Ele era muito hábil a esquivar-se à mentira. Há imensas criaturas que sabem detetar quando alguém está a mentir. Algumas das criaturas feéricas, os lobisomens, alguns dos vampiros — e eu própria. A arte de não mentir sem dizer a verdade é uma capacidade valiosa quando se lida com pessoas como as mencionadas.
Não sabia quem eu era quando entrara na caravana. Porém, olhara para mim e a sua surpresa ao reconhecer-me fora genuína.
— Você sabe o que eu sou — disse-lhe, subitamente certa disso. O meu batimento cardíaco acelerou de excitação. Ele sabia o que eu era e quem fora o meu pai.
— Use esse unguento nos seus pés — replicou. — Parecem maltratados. — Desviou a cabeça na direção de Adam sem tirar os olhos de mim. — Tem alguma coisa para dar de beber a um velhote?
— Soda ou sumo de laranja.
— Cerveja? — A voz do velho era esperançosa.
Adam retirou um pano de uma gaveta perto da pequena banca e molhou-o. Depois, abriu o pequeno frigorífico e retirou uma lata prateada e estendeu-a sobre o ombro de Gordon. Atirou-me o pano molhado, após o que regressou ao seu posto de observação.
Limpei os pés. A barriga da minha perna ainda estava dorida, mas já não sentia aquele latejar até ao osso, e tão-pouco sentia comichão. A sensação era a de uma queimadura provocada por uma corda e nada mais grave do que isso. Havia uma qualquer espécie de magia no que quer que me tivesse cortado a barriga da perna, uma magia que o velho anulara.
Sou imune a muitos tipos de magia — mas não a todos. Normalmente, quanto pior a magia, menor é a probabilidade de eu ser imune.
O velho abriu a lata e bebeu a cerveja de um só trago, sem respirar. Quando era miúda, costumávamos dizer que quem conseguia beber uma lata ou uma garrafa num só trago a tinha matado. Tínhamos tentado muitas vezes fazê-lo, mas o único entre nós que conseguia era um dos rapazes mais velhos. Esquecera-me do seu nome. Morrera antes de eu ter saído de Montana — uma vítima da Transformação.
Gordon Seeker e eu podíamos passar a noite a trocar palavras — cresci num bando de lobisomens; também sabia como não mentir. No entanto, às vezes a franqueza era mais útil.
— Sou uma caminhante — disse ao velho enquanto esfregava o seu unguento mágico nos meus pés. — Como é que você sabia o que eu era?
Riu-se, batendo com as palmas das mãos nas próprias coxas.
— É esse o nome que lhe dão? Depois daquelas abominações no Sul, presumo? Você não veste as peles daqueles que mata, pois não? Nesse caso, como é que pode ser uma mutante caminhante? Que abominações. — Sibilou por entre os dentes, e o som transformou-se num assobio com o ar a escapar pelo buraco deixado pelo dente em falta. — Não é uma mutante caminhante mas uma metamorfa, não é assim? Coiote, certo? — Abanou a cabeça. — O coiote traz a mudança e o caos. — Virou a cabeça para o lado, e parecia que estava a ouvir alguém que eu não conseguia ouvir. Relanceei os olhos a Adam, mas estava a franzir o sobrolho ao velhote.
Gordon Seeker riu-se.
— É melhor do que a morte e a destruição, seguramente. Mas, seja como for, é frequente estas duas se seguirem à mudança. Muito bem. — Os olhos que se fixaram em mim tinham um brilho febril.
Estendeu a mão e deu uma palmadinha na minha perna lesionada.
— A marca do rio. Foi-lhe feita para que passasse a ser o seu servo. Ainda bem para si que os coiotes não servem para servos. Mas significa mais do que isso. Diz-me que amanhã precisa de ir ao Museu de Maryhill. Desfrute das obras de arte e das peças de mobiliário construídas pela rainha estrangeira, e depois vá ver o que eles têm na cave. Ao meio-dia, vai encontrar-se com o meu jovem neto no Lago Horsethief, e ele levá-la-á ao encontro d’Aquela Que Observa.
Sabia o que Aquela Que Observa era, apesar de nunca a ter visto ao vivo. Era o mais famoso dos petróglifos do Lago Horsethief.
— Só abre para visitas às sextas — comentou Adam. — Às dez da manhã.
O velho resmoneou.
— Os índios vão quando lhes apetece. O sítio é nosso. — Deu-me uma nova palmadinha. — Ela é índia, acredite no que acreditar. O meu neto é índio. Os dois podem levar um lobo anglo que pertence a uma rapariga coiote índia.
Esticou-se e atirou a lata vazia a Adam — que a apanhou.
— Está na altura de este velho índio ir embora. — Olhou para mim novamente. — Se está a pensar usar palavras de branco para se descrever, «avatar» é mais preciso do que «caminhante».
Pegou no seu saco e indicou o pequeno frasco com o queixo.
— É melhor ficar com isso, menina. Uma coiote que convive com lobos vai magoar-se muitas vezes.
E depois saiu.
Eu e Adam pusemo-nos à espera, sustendo a respiração, mas não ouvimos nem passos, nem barulhos de carro ou de barco.
Passado um bocado, despi as minhas roupas e assumi a forma de coiote — mais uma transformação para juntar às restantes desta noite. Mas era melhor ser eu e não Adam a passar por mais uma transformação. Abriu a porta da caravana e saiu atrás de mim enquanto eu levava o focinho ao chão e seguia o rasto do velho. Dirigira-se para o rio e não para a estrada.
Segui-o até ao pequeno braço morto onde eu e Adam estivéramos. Cerca de três metros após o declive, na direção do areal, o odor de Gordon Seeker bem como as marcas das suas texanas simplesmente desapareceram.
— O que é que achas? Que ele era um fantasma? — perguntou Adam, esfregando-me os pés uma vez mais enquanto eu estava sentada no sofá.
Disse-lhe que os meus pés estavam bem. No entanto, ignorara-me e insistira em limpá-los novamente, apesar de ter andado sobre as patas e não sobre os pés descalços. Não doíam tanto como seria de esperar porque o unguento tratara de curar os pequenos cortes melhor do que qualquer Bag Balm que pudesse ter. A única coisa que tinha era uma série de nódoas negras.
— Acho que há mais coisas no céu e na terra, Horácio — disse-lhe. — Normalmente consigo perceber quando alguém é um fantasma. Se não consigo, nunca me apercebi disso. E tu, o que é que achas?
— Ele cheirava a fumo de madeira queimada e a predador — respondeu Adam. — Ele respirava, e conseguia ouvir o bater do seu coração. Se tivesse de dar um palpite, diria que não é um fantasma. Mas a verdade é que eu nunca vi um fantasma, portanto é só um palpite. A possibilidade de ele ser um fantasma foi a primeira explicação que me ocorreu para o seu desaparecimento.
— Nunca viste um fantasma? — Via-os constantemente, por isso esquecia-me do quanto era raro outras pessoas terem a perceção da sua presença.
— Não. Então o que é que achas que o Gordon Seeker é?
— Sabes — disse-lhe —, existe um velho costume índio do qual o Charles me falou uma vez. Se um visitante aparecer na tua tenda e mostrar a sua admiração por alguma coisa em voz alta, deve-se oferecer-lhe essa coisa. O Charles diz que há três razões para esse costume. A primeira — levantei um dedo — é porque a generosidade é uma virtude que deve ser encorajada. A segunda — levantei outro dedo — tem a ver com o ensinamento de que não se deve ficar demasiado ligado às coisas ou orgulhoso delas. A família, os amigos e a comunidade são importantes. As coisas não. Consegues adivinhar a terceira?
Sorriu.
— O Charles falou-me dessa. Ter cuidado com quem se convida a entrar na nossa tenda. Só depois de o Seeker já estar dentro da caravana é que pensei nisso. Talvez ele fosse a versão índia de uma bruxa. Um feiticeiro.
— O Charles diz que os feiticeiros e as bruxas não são muito parecidos.
Senti comichão na perna e subi as calças, tentada a coçar.
— A marca do rio — disse Adam, tocando na marca ao de leve.
— É tão ruim como as criaturas feéricas — queixei-me. — Não respondeu a nada e deixou-nos com mais perguntas.
Adam beijou-me o joelho, gesto que, em princípio, não deveria ter tido qualquer efeito na minha pulsação. Quer dizer… não consigo pensar numa zona menos erógena do que a rótula do joelho. Mas quem o fizera fora Adam, pelo que o meu batimento cardíaco acelerou consideravelmente.
Colocou os meus pés no chão.
— O unguento mágico fez efeito. Não creio que vás precisar de outra aplicação esta noite. Não sei porquê, tenho para mim que és capaz de vir a precisar dele mais tarde. Mas já que falaste em criaturas feéricas, considerando que desapareceu uma pessoa e apareceu outra ensanguentada, talvez seja altura de telefonar ao Tio Mike e tentar saber aquilo em que nos meteu.
Sacou do telemóvel e marcou o número do Tio Mike. Ouvi o ruído de música alta, e alguém atendeu em córnico.
— É o Hauptman — disse Adam. — Chame-me o Tio Mike. — Começou a andar de um lado para o outro, em toda a extensão da caravana, como fazia por vezes quando estava ao telefone. Levantei os pés, pousando-os na toalha para manter o sofá limpo. Sem os meus pés no chão, Adam podia dar mais meio passo. Os meus olhos fecharam, e tive de me esforçar por mantê-los abertos.
Ouviram-se vários estalidos e a música calou-se abruptamente, como se o Tio Mike tivesse atendido a chamada num lugar mais tranquilo.
— Adam — disse. — Parabéns. O que te leva a ligar-me em plena lua-de-mel?
— Lontras — respondeu Adam. — Mais precisamente, lontras que aparentemente estariam mais em casa na Terra Antiga e que cheiram a glamour.
Então também ele a tinha sentido. Aquela pequena porção de magia quando eu estava a tentar tirar o barco de debaixo da árvore. Não fora Benny nem o barco. As lontras eram a opção seguinte mais plausível.
Fez-se um breve silêncio, após o qual o Tio Mike suspirou de alívio.
— Então elas estão aí. A Edythe disse-nos que ninguém as via há uns tempos largos.
— E foi por isso que tu e a Edythe nos enviaram para aqui?
O Tio Mike aclarou a garganta.
— Não propriamente. Às vezes, a Edythe tem pressentimentos. Um deles foi quando um ex-escravo romano chamado Patrício regressou à Irlanda. Todos desejámos tê-lo matado logo, tal como ela tinha aconselhado. Mas provavelmente isso só iria resultar no envio de outra pessoa por parte da Igreja, e haveria um São Aiden ou um São Conner em vez de um São Patrício. Muitas vezes, os mensageiros são como aquele velho monstro de sete cabeças, ao qual cresciam três cabeças de cada vez que se lhe cortava uma.
— A Hidra — disse Adam.
— Essa mesma. Seja como for, não é muito frequente ela ter esses momentos, talvez não mais de uma vez por século. O último foi mesmo antes de o Monte Santa Helena entrar em erupção. Depois do episódio com o São Patrício, todos lhe começámos a dar ouvidos. Há uma semana ela disse-me que teve uma premonição: que talvez fosse boa ideia se tu e a Mercy passassem a lua-de-mel no parque de campismo dela e dessem uma vista de olhos ao que as otterkin12 andavam a fazer.
— O que é que elas têm andado a fazer? — Adam parou de andar e pôs-se com ar circunspecto. Edythe, fosse lá quem fosse, tinha uma premonição a cada século, e tivera uma relacionada com a nossa permanência aqui. Isso parecia muito mais sério do que um homem perder o pé por causa de um urso ou do que fantasmas a dançar à beira-rio, por muito que esses episódios me tivessem afetado.
— A sobreviver, evidentemente. — De repente, a voz do Tio Mike ficou muito séria. — O que é melhor do que aquilo que temíamos. As otterkin não são como os selkies, que são os parentes mais próximos delas. Há outras criaturas feéricas que assumem a forma de lontras, mas na verdade não têm qualquer parentesco com as otterkin. Para começar, as otterkin não interagem bem com pessoas. Levámos todas as que restavam para a reserva de Walla Walla e libertámo-las nas nossas águas.
— Vocês lá não têm águas — disse Adam, beliscando a cana do nariz. — Foi uma das coisas que o governo tratou de garantir: nenhuma água corrente que entrasse em qualquer uma das reservas podia sair. — Não estava à procura de uma discussão. Estava apenas a dizer ao Tio Mike que ambos sabiam que algo de estranho se estava a passar na reserva de Walla Walla.
A água corrente potenciava os poderes de uma série de criaturas feéricas. Fiquei surpreendida com o facto de alguém do governo — que não era feérico — ter conhecimento dessa pequena informação preciosa.
No entanto, tratara-se de uma precaução inútil. Já vi oceanos na reserva, em locais onde conseguiram criar pontos de acesso a Underhill. Essa era uma das coisas que eu não podia dizer a Adam — ou a qualquer outra pessoa. Tinha feito essa promessa, e aqueles que sofreriam caso a quebrasse incluíam o meu mentor, Zee, pelo que me mantive de bico calado.
— Nós temos lagos — replicou o Tio Mike, fazendo uso da não mentira de forma ainda mais hábil do que Gordon Seeker. — Mas não eram suficientes. Por isso a Edythe comprou uma porção de deserto e transformou-o num parque de campismo.
— E libertou as lontras aqui.
— As otterkin. A Edythe mandou construir um santuário para elas perto da zona de banhos, no rio. Era de esperar que fossem felizes ali, mas desapareceram, e há cerca de seis meses que não as conseguimos encontrar. Nenhuma delas estava bem de saúde quando as colocámos lá, e presumimos que tivessem morrido. Até a Edythe de repente ter decidido enviar-vos para aí.
— Fala-me das otterkin — disse Adam.
— É possível que sintas afinidades com elas — disse-lhe o Tio Mike. — São metamorfas capazes de assumir a forma humana, embora a sua verdadeira forma seja a de lontra. Enquanto humanas, tendem a parecer sofrer de autismo em grau elevado. No passado, isso fez com que muitas delas fossem condenadas à morte na fogueira.
— Elas matam pessoas? — perguntou Adam.
Fez-se uma pausa um tanto longa.
— Não para comer — respondeu o Tio Mike.
— Nem os lobisomens. No entanto, onde há bandos, há cadáveres. Onde há otterkin, há cadáveres?
— Não do tipo que atraísse atenções — disse o Tio Mike. — Elas são territoriais. Às vezes, acontece pessoas morrerem afogadas no território delas.
— E vocês colocaram-nas perto da zona de banhos.
— Que está protegida por runas e magia — disparou o Tio Mike. — Nem um bebé conseguiriam afogar naquela zona. Podem nadar e caçar peixe, mas não podem fazer mal a ninguém.
— Portanto mudaram-se para um sítio onde podem fazê-lo — disse Adam. — Encontrámo-las alguns quilómetros a montante. Devemos impedi-las?
— Para isso nós não precisaríamos de vocês. — A voz do Tio Mike revelava impaciência. — Ao todo são sete. Podias comê-las ao almoço e ter fome ao jantar. Têm muito pouca magia, apesar de serem muito inteligentes a usar a que têm, e cooperam umas com as outras. Quando havia centenas delas, eram perigosas. Há criaturas feéricas em forma de lontra que são poderosas, mas ainda estão na Terra Antiga e bem.
— As otterkin são criaturas feéricas menores — expliquei a Adam. Não muito tempo antes, lera um livro acerca das criaturas feéricas, escrito por uma mulher feérica. Precisei de algum tempo para me lembrar delas porque só eram abordadas pela rama. — Costumavam ser muito comuns, mas não são poderosas. Provavelmente não constituem uma ameaça maior do que as lontras verdadeiras. Por norma, as lontras do rio evitam as pessoas, o que é bom para as pessoas.
— Ah, é a Mercy que está a falar? O que é que ela disse?
Isso não queria dizer que o Tio Mike não me conseguisse ouvir. Talvez simplesmente não quisesse que Adam e eu soubéssemos que ele conseguia ouvir o que nós dizíamos. Ainda assim, Adam repetiu educadamente as minhas palavras ao Tio Mike.
— As otterkin deviam ser amigáveis e prestáveis — acrescentei.
— Exato — concordou o Tio Mike. — O facto de terem sido caçadas até à quase extinção muda muitas coisas. Ainda assim, não são suficientemente grandes para ameaçar seriamente alguém.
A menos que esse alguém estivesse ferido e indefeso, como Benny.
— Pergunta ao Tio Mike se elas seriam capazes de fazer o que fizeram ao pé do Benny — pedi a Adam. Não conseguia imaginar como o poderiam fazer, mas seria estúpido não perguntar.
Depois de Adam ter transmitido a minha pergunta, o Tio Mike disse:
— Não. Talvez consigam cortar um dedo do pé ou da mão. Conseguiriam matar uma pessoa, suponho, do mesmo modo que uma lontra do rio conseguiria nas circunstâncias ideais. Mas, a conseguirem, seria pelo rompimento de uma artéria. — Depois, de forma um tanto zombeteira, acrescentou: — Mais ou menos como um coiote mataria um lobisomem. — Coisa que eu tinha feito, e que não planeava repetir tão cedo. A pura sorte não era algo em que me apetecesse fiar.
— E a Edythe achou que era importante nós mantermos sete otterkin debaixo de olho? — inquiriu Adam.
O Tio Mike emitiu um ruído neutro.
— As premonições dela não se cingem às criaturas feéricas — disse. — Algo mau vai acontecer a menos que vocês os dois consigam impedi-lo. Ou não. As previsões dela não são perfeitas. — A sua voz ficou muito séria. — Vocês têm de entender uma coisa: isto não é um favor que vocês estão a fazer às criaturas feéricas. Pode não ter absolutamente nada a ver com as criaturas feéricas. Nós apenas nos certificámos de que vocês estivessem no sítio certo.
— Muito bem — disse Adam friamente. — Resolvam lá as coisas como quiserem, por agora. Voltaremos a discutir isto quando a Mercy e eu regressarmos.
Desligou o telefone.
— Estava enganada — disse-lhe.
— Em relação a quê?
— O Gordon Seeker não foi tão ruim como as criaturas feéricas. Pelo menos não engendrou uma forma de nos colocar diante de um desastre.
— Achas que sete criaturas feéricas do tamanho de lontras com muito pouca magia representam um desastre?
— Não — retorqui. — Mas alguma coisa má está a caminho. Não me parece que a Edythe tenha premonições de topadas ou até de um pobre tipo que vê o seu pé arrancado. E o Tio Mike sabia disso quando nos enviou para aqui.
8 Criaturas mitológicas do folclore escocês que, tendo aparência humana, assumem a forma de foca quando entram na água. (N. do T.)
9 Criaturas mitológicas do folclore celta que se movem na água sob a forma de cavalo. (N. do T.)
10 Em inglês, «golden eagle». Literalmente, «águia dourada». (N. do T.)
11 Unguento desenvolvido nos Estados Unidos, em 1899, com o propósito de aliviar a irritação nas glândulas mamárias das vacas após a ordenha. Numa fase posterior, começou também a ser usado em humanos. (N. do T.)
12 Lontras pertencentes à esfera das criaturas feéricas. De notar que «otter» significa «lontra» e «kin» significa «parente; aparentado». (N. do T.)
6
Uma das razões pelas quais detesto tomar anti-histamínicos tem a ver com os sonhos. Nunca fazem sentido, mas são desgastantes e sinto dificuldade em libertar-me deles no dia seguinte.
Nessa noite, sonhei que estava envolvida por pedra. Por muito que me esforçasse, por muito que lutasse, não me conseguia mexer. Comecei a ficar com fome, e não havia fim, ou sequer alívio, para o meu apetite.
Sonhei que era por fim libertada e me banqueteava com uma lontra que me saciara mais do que seria de esperar de uma lontra, aliviando-me a fome por momentos. Portanto, não comi as restantes lontras que nadavam à minha volta.
Pareciam-se com as lontras que me tinham visto a puxar o barco de Benny da vegetação.
Acordei com a boca seca e a sensação de desgraça iminente que não me eram estranhas depois de tomar anti-histamínicos. Também sentia o mesmo depois de ataques de vampiros, demónios ou criaturas feéricas. Sentia-o depois porque, não sendo presciente, nunca sabia quando a espada de Dâmocles ia cair.
Não importava o facto de eu saber muito bem que o sonho não significava nada. Não era necessário um Carl Jung para perceber de onde tinham vindo as lontras. E suspeitava que a sensação de aprisionamento era um efeito do anti-histamínico, que me deixava sem energia. A fome? A explicação era ainda mais fácil. No dia anterior, tinha estado a saltar de humana para coiote; isso deixaria qualquer um faminto.
O meu apetite era quase tanto como o de Adam quando nos sentámos para tomar o pequeno-almoço — impecavelmente confecionado no minúsculo fogão.
— Pesadelos — disse ele num tom neutro. O nosso vínculo de parceiros permitira-lhe uma vez mais ver dentro de mim numa altura inapropriada.
— Algum dia vamos ser capazes de controlar o nosso vínculo nas alturas em que ele faz isso? — perguntei, engolindo hash browns13 o mais depressa que conseguia sem permitir que porções de comida me saíssem pelos cantos da boca. — Viste tudo?
Sorriu e assentiu com a cabeça.
— As lontras e tudo o resto. Pelo menos comeste uma. — Comia quase tão depressa como eu, mas era melhor nisso. A menos que prestasse mesmo muita atenção, nunca o via levar a comida do prato até à boca. Não era tanto uma questão de rapidez, mas de modos requintados e distração.
— A tua perna e os teus pés, como é que estão? — perguntou enquanto eu lavava a loiça. Ele cozinhara, portanto cabia-me limpar.
Mexi os dedos dos meus pés descalços e dobrei os joelhos umas quantas vezes.
— A barriga da perna dói-me um bocado, mas os pés estão bem.
— Estamos a fazer isto porque o Gordon Seeker nos disse para o fazer? — perguntei a Adam, enquanto percorríamos a curta distância até ao Museu de Arte de Maryhill com ele ao volante.
— Tencionava levar-te lá esta manhã — respondeu lentamente. — Mas devo confessar que estou curioso.
Coloquei a mão na coxa dele e disse:
— Podíamos ir para casa, ou seguir para Seattle, Portland, ou até Yakima, e procurarmos um hotel simpático. — Olhei para lá da autoestrada, na direção do rio. De onde a autoestrada se encontrava, o rio parecia pequeno e relativamente calmo. — Tenho a sensação de que se ficarmos, as coisas se podem tornar interessantes.
Dirigiu-me um breve sorriso antes de olhar para trás, na direção da estrada.
— Ah, sim? O que te provocou essa sensação? Pessoas com os pés arrancados? O fantasma do teu pai? Um velho índio misterioso que desaparece no rio sem deixar vestígios? Ou talvez a profecia do apocalipse da Rapariga do Ioió?
— A Rapariga do Ioió? — gritei. — A Edythe é a Rapariga do Ioió? Foi a Rapariga do Ioió quem nos enviou para aqui?
Pôs os dentes a descoberto.
— Então, já estás com medo? Queres ir para algum sítio seguro?
Não me consegui conter. Encostei a face ao seu braço e ri-me.
— Não ia servir de nada, pois não? — disse eu, passado um momento. — O que ia acontecer é que íamos dar de caras com o Godzilla ou com o Vampiro do Inferno. Não vale a pena fugir dos sarilhos porque eles vêm atrás de nós.
Afagou-me o alto da cabeça.
— Ei, Sarilhos. Vamos lá descobrir o que o teu índio misterioso queria que visses.
Em Seattle ou Portland, o Museu de Maryhill teria sido um belo museu. No meio de nenhures, era espetacular. Os jardins eram verdes e estavam bem tratados. Não vi nenhum dos pavões enquanto caminhávamos do parque de estacionamento até à entrada, porém conseguia ouvi-los e cheirá-los perfeitamente. Avistara o museu do outro lado do rio, da autoestrada, no trajeto para e a partir de Portland, mas nunca lá tinha estado.
Da primeira vez que me tinham tentado falar do museu, achei que eram loucos. Em plena zona oriental do Estado de Washington, a cento e cinquenta quilómetros de Portland, a duzentos e cinquenta quilómetros de Tri-Cidades, o museu continha o mobiliário da Rainha Maria da Roménia e esculturas de Auguste Rodin, ambos da época vitoriana.
Essa foi a primeira questão respondida pela brochura que nos entregaram na porta principal. Sam Hill, financiador e construtor de estradas e cidades — e deste museu, que se destinava a ser a sua casa —, era amigo de Loïe Fuller. Loïe Fuller era uma dançarina de inícios do século XX, famosa na Europa pelo seu uso inovador de tecidos e véus — e ela era amiga de membros da realeza e artistas, com particular destaque para Maria, Rainha da Roménia (que tinha como passatempo desenhar peças de mobiliário), e o escultor francês Auguste Rodin. Daí a vinda da mobília da Rainha da Roménia e de uma coleção considerável das esculturas de Rodin para o meio de nenhures.
Considerando o seu isolamento, contava que Adam e eu fôssemos os únicos no museu, mas estava enganada. Na primeira divisória, onde as peças de mobiliário e os objetos diversos da época vitoriana atraíam as atenções, havia vários grupos de pessoas. Duas mulheres mais velhas, uma família de cinco elementos onde se incluía um carrinho de bebé, e um casal de meia-idade. O espaço era suficientemente amplo para não parecer de todo apinhado.
Achei o mobiliário profusamente entalhado bonito, mas um tanto austero e aparentemente desconfortável — mais adequado a uma produção teatral do que a uma sala de estar. Talvez umas almofadas suavizassem os contornos quadrados e o tornassem mais convidativo.
O resto daquele piso destinava-se a uma coleção de quadros expostos numa série de salas interligadas.
Adam e eu separámo-nos na primeira sala de quadros, onde seguimos caminhos diferentes para ver as obras. A maior parte delas era muito boa, senão mesmo espetacular, até que deparei com uma pintura a óleo de um pintor familiar. Devo ter produzido um ruído qualquer porque Adam apareceu ao meu lado e encostou a cara ao meu pescoço.
— O que foi? — perguntou Adam em voz baixa, de modo a não incomodar os outros visitantes.
— Estás a ver aquilo? — disse, fazendo-lhe sinal com o cotovelo para olhar para o mesmo quadro que eu.
Não era o quadro mais bonito da sala, nem por sombras. Também havia outros mais detalhados, inclusive mais bem executados, porém dizia-me mais do que qualquer um dos restantes. Aqui, entre paisagens inglesas e gregas, retratos de donzelas e flores silvestres, os cowboys pareciam um pouco deslocados.
Adam inclinou-se para a frente, o que fez com que se encostasse ainda mais a mim, para ler a descrição anexa ao quadro. Bufei num gesto de desânimo fingido.
— Percebe-se logo que não és um genuíno homem do Oeste americano, caso contrário tê-lo-ias reconhecido logo.
— Não, ‘nha senhora — pronunciou de modo lento e arrastado, embora conseguisse ver uma covinha a surgir-lhe na face. Adorava a covinha dele, e adorava ainda mais quando ele falava com o sotaque da sua juventude. Adorava especialmente a força arrebatadora dele contra mim. Eu era tão fácil. — Sou um sulista.
— Tal como a maior parte dos cowboys que ele pintou — disse-lhe. — O Oeste foi povoado por sulistas que não queriam combater na Guerra Entre os Estados14, ou que vieram para aqui depois de perderem. Aquilo, meu querido lobo inculto, é um Charles Russell, um cowboy que se transformou em artista plástico. Sem ele, a história de Montana não seria mais do que uma nota de rodapé num romance do Zane Grey. Charles desenhou o que viu… e ele viu muita coisa. Não era um romântico, mas um verdadeiro realista. De tempos a tempos, um velho rancheiro qualquer do Montana encontra algumas das aguarelas dele enroladas e esquecidas no dormitório. É como ganhar a lotaria, só que melhor.
Os ombros de Adam agitaram-se.
— Sinto paixão — disse, a sua voz suave contendo o riso, fazendo-me cócegas na orelha enquanto falava com os lábios a ela encostados. — Mas é a arte ou a história que te toca?
— Sim — repliquei, estremecendo. — Mostrei-te o meu. Qual é o teu favorito?
Afastou-se e conduziu-me até um quadro na parede seguinte. Uma mulher sentada numa caverna, uma queda de água quase impercetível à esquerda e atrás dela, uma poça de água aos seus pés. O elemento extraordinário da obra era a luminescência da figura central, alcançada por uma certa alquimia da cor e textura da sua pele e do tecido da sua roupa em combinação com a forma da sua pose. Solidão era o seu título.
Não tinha nada da sujidade e da rudeza do detalhe que me haviam atraído no quadro de Russell. Aquela não era uma mulher que tivesse de se levantar, lavar a roupa e fazer o jantar. Todavia…
— Ok — disse-lhe. — Eu também não me cansaria de ver isso numa parede. Mas devo avisar-te que vai parecer estranho ao lado do meu Charlie Russell.
Beijou-me a orelha e riu-se.
A exposição de peças ameríndias era na cave. Pelos vistos, Sam Hill colecionara cestos de ameríndios juntamente com as suas obras de arte. Montes e montes de cestos. Ao longo dos anos, outras coisas tinham sido acrescentadas — algumas fotografias fantásticas, por exemplo, e grandes pedras com petróglifos. Ainda assim, a impressão geral era a de um milhão de cestos e mais algumas coisas.
Também aqui não estávamos sozinhos. A família do piso de cima examinava os petróglifos. A mais velha das crianças, uma rapariga, afastou-se dos pais e encostou o rosto a um dos expositores em plexiglas.
Havia uma mulher índia de meia-idade, sozinha. O seu rosto era sério, embora fosse um rosto mais inclinado para o sorriso do que para a severidade. Rugas de expressão desenhavam-se perto dos olhos e da boca, e toda a sua atenção estava concentrada em mim e Adam.
Não sei por que razão, isso fez-me sentir um pouco desconfortável, portanto desviei a atenção das pedras entalhadas que se encontravam perto da entrada e concentrei-a nos cestos, virando as costas à mulher.
Os cestos eram extraordinários. Nalguns deles, os desenhos de animais semelhantes a figuras de sinalética eram surpreendentemente poderosos de uma forma que não julgaria possível com a estilização tão extrema exigida pela tecedura.
— Ainda bem que não nasci naquela altura — disse a Adam. — Tirei um curso de artes na faculdade, e um dos projetos consistia em tecer um cesto. O meu parecia uma espécie de rede desproporcionada com buracos. Nunca consegui colocar as asas dos dois lados.
Mas nem mesmo a minha paixão motivada pela história era suficiente para me manter interessada no milionésimo décimo segundo cesto, por muito maravilhosamente concebidos que fossem. Estes não eram os tipos de cestos usados quotidianamente. A maior parte deles era feita para vender a colecionadores e turistas.
Fizeram-me recordar uma professora de História que lamentava a perda das coisas quotidianas. Todos os museus, dizia ela, tinham vestidos de noiva e vestidos de batismo em abundância, trajes de cerimónia índios e vestidos embelezados com contas ou dentes de alce, usados apenas nas ocasiões mais especiais. As pessoas não guardam a roupa de trabalho das avós ou os adereços em couro usados pelos avôs para caçar.
Não pude deixar de me perguntar o que Gordon Seeker queria que víssemos aqui. A família tinha saído — conseguia ouvir as crianças a falar no corredor fora desta sala de exposições. Tão-pouco vi a mulher que estivera de olhos postos em nós.
Parei ao lado do enorme aglomerado de pedras que se encontrava perto do corredor que conduzia às restantes exposições na cave. Havia vários blocos de pedra, com petróglifos gravados nas suas superfícies. Num deles, um pássaro predador gigante olhava-me fixamente.
— Quando é que isto terá sido feito…? — disse, aproximando os dedos da pedra sem a tocar. Podia tê-lo feito, outras pessoas estavam a tocar nas pedras cinzentas, porém não me senti capaz de o fazer. Como se a pressão dos meus dedos a pudesse danificar, quando centenas ou talvez milhares de anos de vento e chuva não o tinham feito. — E quanto tempo terá sido preciso para a cinzelar…?
— Foram tiradas do local original quando o rio foi represado, e a ravina onde estavam foi inundada — disse Adam pensativamente, lendo o pequeno cartaz ao lado da exposição. — Diria que foi cinzelada há muito tempo, caso contrário viam-se mais irregularidades do processo de criação. Há mil anos, quase de certeza. Pode ter sido há dez mil, suponho.
Comemos sandes na delicatessen do museu, mesmo ao lado da exposição das obras de Rodin, e a seguir dirigimo-nos para o Lago Horsethief, cerca de vinte e cinco quilómetros a oeste do museu.
Janice Lynne Morrison era professora do terceiro ano e uma maluquinha por fotografia. As suas fotografias jamais figurariam num museu, porém adorava registar fotograficamente as suas aventuras. Esta aventura, em particular, precisava de ser registada em fotografia uma vez que ela tinha a triste certeza de que a sua vida estava prestes a desmoronar-se.
Tinham parado numa zona destinada a piqueniques, no Columbia, para almoçar — depois disto, comeriam em restaurantes até chegarem à casa dos pais de Lee, no Wyoming. Todos tinham comido, os restos de comida foram embalados para petiscos, e os rapazes estavam a brincar nas pedras.
Lee estava no carro a atender um telefonema. Ela não tinha a certeza de quando fora a primeira vez que se dera conta dos telefonemas, talvez depois de a escola ter fechado para férias, altura em que passou a estar mais tempo em casa. O seu marido trabalhava em casa, e não era incomum receber telefonemas de trabalho e atendê-los em privado. Porém, estes telefonemas eram feitos à mesma hora todos os dias — às onze e um quarto. Quando ele desligava o telefone, esforçava-se muito por lhe fazer coisas simpáticas — o tipo de coisas que alguém que se sentisse culpado faria. Num gesto mais incriminatório, não a olhou nos olhos a seguir a um dos telefonemas. Ou andava metido em apostas ou com outra pessoa.
Depois das férias, haveria de falar com ele sobre isso — portanto queria preservar todas as memórias que podia.
Não conseguia fotografar os dois rapazes com a luz certa, por isso pontapeou as sandálias para longe e avançou alguns metros água adentro, após o que tentou novamente. A luz refletia-se no ecrã LCD, pelo que teve de usar o visor, aproximando a máquina do rosto. Ainda não estava exatamente como queria. Precisava de alargar um pouco o campo de visão. Recuou mais um passo — e não havia nada debaixo dos seus pés.
Enquanto caía para trás, algo lhe agarrou a perna e a puxou contra a corrente. Debateu-se por mais algum tempo e depois sentiu-se calma. Em paz. A água passou por ela e levou consigo todas as suas preocupações.
Olhos verdes examinaram-na com interesse enquanto uma espécie de tentáculos dançantes de cor clara que formavam uma franja em redor do seu nariz pontiagudo a acariciavam. Abriu a sua boca e ela viu longos dentes afiados, antes de ser atingida por uma onda que a afastou.
Não se queria afastar da criatura, porém não tinha capacidade para fazer valer a sua vontade. Emergiu da água aos cambaleios, a tossir engasgada com a água que engolira. Sangue gotejava de um golpe profundo à volta da coxa, logo abaixo da bainha dos calções. A cabeça doía-lhe e os olhos ardiam-lhe, todavia estava calma e feliz como nunca estivera.
A criatura queria-a.
— Mamã, mamã, estás bem? — Um rapaz novo (o filho dela, pensou, qual era o nome dele?) segurou-lhe no braço. — Estás bem? Onde é que está a tua máquina?
Estendeu o braço e deu-lhe a mão — e também ao miúdo que não dissera nada. Este vestia apenas os calções e nos pés trazia um só sapato. Noutra altura, ela sabia que o facto de a criança estar com apenas um sapato a teria incomodado. No entanto, nada mais a incomodava.
— Janny? — Um homem interrompeu-a antes que ela levasse os rapazes para o rio, e ela franziu-lhe o sobrolho. O seu marido, era isso que aquele homem era. — Janny, o que é que te aconteceu? Estás bem?
Ele não deixaria que ela levasse os rapazes, sabia-o, portanto largou-os até pensar qual seria o novo plano.
— Janny — A voz dele era suave, delicada, e, por alguma razão que ela desconhecia, isso deixou-a verdadeiramente furiosa. — Janny, estás a sangrar. Caíste no rio?
— Preciso de limpar o sangue com água — disse-lhe. A voz dela saiu-lhe um tanto alterada, mas não achou que isso tivesse importância. — Podes ajudar-me?
Seguiu-a rio adentro, apesar de pouco agradado com a ideia.
— Provavelmente não é higiénico, Janny. Há água no carro.
Enquanto ele protestava, ela levava-o para mais longe. Até que, a poucos metros do local onde ela caíra, o monstro o apanhou, puxando-o para debaixo de água com uma rapidez tal que ele não teve tempo para gritar.
— Papá?
Os rapazes mantiveram-se na margem, e quando ela lhes deu novamente as mãos, seguiram-na rio adentro, sendo o hábito da obediência e da confiança mais fortes do que os seus instintos.
— Mercy.
— Mamã, o que é que se passou? — inquiriu o mais velho.
— Mercy, acorda.
— O papá foi nadar — respondeu-lhe com um sorriso sereno. O monstro queria Janny, mas ela não era suficiente, portanto Janny fora enviada para lhe trazer mais alguém. Porém, o monstro ainda estava com fome. — Porque é que não vamos nadar com o papá?
Abri os olhos, consciente de que estava a respirar depressa de mais e que me estava a babar na perna de Adam.
— Desculpa — disse com uma vacilação ébria. — Adormeci sem querer.
— Mantive-te acordada até muito tarde — replicou Adam num tom que não era de todo apologético. «Satisfeito» talvez fosse uma palavra mais adequada. Presunçoso. Não estávamos a viver em celibato antes do casamento, no entanto era difícil arranjar momentos de privacidade, considerando que Adam era o Alfa do bando e tinha uma filha adolescente. Talvez devêssemos comprar uma caravana só para nós.
— Tens de compensar o sono enquanto podes — continuou Adam. — Desta vez não me apercebi de tudo, mas pareceu-me tratar-se de mais um pesadelo.
— Podes crer que foi — concordei. A sensação de enjoo no meu estômago tardava a desaparecer. — Assustador, em que tudo se passa em câmara lenta e não há nada que se possa fazer. Acho que as palavras do Gordon acerca do corte na minha perna me deixaram a pensar em filmes de terror antigos.
Os coiotes não servem para servos, dissera mais ou menos na mesma altura em que tinha dito que eu fora marcada pelo rio. No contexto da estranheza da sua visita, esquecera-me disso, mas devia ter ficado gravado no meu subconsciente e provocado aquele pequeno episódio arrepiante. Perguntei-me qual seria a opinião dele sobre o que me deixara uma marca na perna. Talvez alguém nos desse mais informações naquela tarde.
— Uma vez que ainda não chegámos, presumo que não tenha dormido muito tempo.
— Cerca de dez minutos — disse ele. — Eis o nosso parque.
— Não diz Lago Horsethief — repliquei, enquanto Adam saía da autoestrada em direção ao rio, metendo por uma estrada longa e ligeiramente sinuosa depois de passarmos por uma tabuleta que dizia «Columbia Hills State Park».
— Nome alterado em 2003 — disse-me Adam. — Tanto os Estados como o Serviço de Pesquisa Geológica dos Estados Unidos estão a mudar nomes de sítios em todo o país, tornando-os politicamente corretos. Podes perguntar ao Bran. Ele conta-te tudo o que quiseres saber sobre o Afluente Imbecil. Afirma ter conhecido o imbecil que deu nome ao afluente.
— Ainda bem que o SPGEU não fala francês, senão mudaria o nome do Parque Nacional de Grand Teton15 — disse-lhe.
Adam riu-se.
— Percebe-se que aqueles caçadores franceses estavam com saudades de casa quando lhe deram o nome, não é?
No trajeto através do parque, passámos por um cemitério índio que ainda era usado — percebi isso por causa de todos os balões e itens deixados nas sepulturas. Quase parecia que uma festa de aniversário tinha tido lugar ali, e que todos os convidados se tinham ido embora sem levar os seus presentes. Havia uma vedação alta em rede metálica a contornar o cemitério com letreiros a dizer «Passagem Proibida».
Tenho a capacidade de ver fantasmas. No entanto, nunca vi nenhum num cemitério. Os cemitérios são para os vivos. Segundo a minha experiência, os fantasmas tendem a andar pelos mesmos sítios que andavam quando estavam vivos.
Se assim é, o que andava o meu pai a fazer num parque de campismo ao lado do Rio Columbia quando era, supostamente, de Browning, Montana?
Calvin Seeker estava encostado a uma vedação em rede metálica quando estacionámos o carro num parque de estacionamento em gravilha, ao lado de uma doca. Parecia cansado e mais velho do que na noite anterior. Sem se mexer, observou-nos enquanto trancávamos o carro e atravessávamos a estrada.
A vedação a que estava encostado prolongava-se até à via-férrea que seguia paralelamente à água, e depois acompanhava-a até desaparecer na curva da falésia. Havia um letreiro atrás de Calvin, porém não conseguia lê-lo.
— O meu tio Jim disse-me para me encontrar convosco aqui ao meio-dia — disse, um pouco mais educadamente do que a sua postura indicava. — Pelos vistos, vou ser o vosso guia turístico.
— Obrigada — repliquei.
Encolheu os ombros.
— Não há problema. Às vezes, no verão, ofereço-me como voluntário para fazer visitas guiadas a turistas.
Esfregou o sapato na terra e dirigiu um olhar desconfiado a Adam.
— Como é que conseguiram entrar em contacto com o meu tio Jim? Enquanto estávamos no hospital, ele disse-me para ver como é que estava o Benny, mas não o vi atender o telefone, e sei que vocês não ficaram com o número dele enquanto estávamos à espera da ambulância, ontem à noite.
— Não entrámos em contacto com o teu tio Jim — esclareceu Adam. — Falámos com o teu avô.
Calvin afastou-se da vedação e endireitou-se, com os olhos um tanto esbugalhados.
— O meu avô? — perguntou, parecendo surpreendido. — Qual deles?
— Disse que se chamava Gordon Seeker — respondi. — Foi ter connosco ao parque de campismo ontem à noite, disse que o teu tio o tinha enviado. Deu-me uma coisa que ajudou imenso no tratamento da minha perna.
— Ah, esse avô. — Não pareceu particularmente agradado, e tive a certeza de que fora o facto de ter pensado em Gordon Seeker que o fizera afastar-se bruscamente da vedação. — Eu devia ter percebido.
— Passa-se algo de errado? — perguntou Adam.
— Passa-se sempre algo de errado quando o avô Gordon aparece — respondeu Calvin. Olhou para mim, depois para Adam. — Lobisomem, certo?
Adam assentiu com a cabeça.
— Ok. Bom, se foi o avô Gordon quem vos enviou, vou fazer isto de forma um bocadinho diferente. Ele disse a razão pela qual vos enviou? — Abanou a cabeça antes de obter uma resposta. — O que é que eu estou a perguntar? É claro que não. Ele preferiria ver-nos a correr como galinhas depois de aparecer a raposa. Suponho que ele ache isto engraçado.
— Estiveste no hospital a noite passada? — perguntei-lhe. — O Benny vai ficar bem? Ele contou-te o que se passou?
— Sim — disse Calvin. Semicerrou os olhos contra o sol, e esse pequeno gesto permitiu-me ver a semelhança física entre ele e o velho que aparecera na caravana. — O Benny vai sobreviver. Acho… Acho que vos devia contar a história dele depois de fazer de guia, se não se importarem. Não sei se fará mais sentido dessa forma, mas pelo menos ficarão a saber a razão pela qual ele queria que vocês viessem aqui. — Franziu-nos o sobrolho. — Não sei ao certo porque é que ele acha importante que vocês saibam de alguma coisa. Podia informar-me junto do meu tio Jim, mas só um tonto é que pergunta alguma coisa ao avô Gordon: ele é bem capaz de responder.
Olhou para o rio, como se à procura de inspiração, e quando voltou a falar, fê-lo em voz baixa.
— O meu tio Jim é um feiticeiro. É de família. No entanto, nenhum dos filhos dele tem a capacidade de vir a ser o que ele é, e o pai dele também não teve. Mas o tio dele sim. É esse o padrão.
— O Gordon é feiticeiro? — perguntei, tentando decifrar a linhagem. A resposta deveria ser negativa se Gordon era o seu avô e partilhava com ele o último nome. A menos que Jim fosse o tio de Calvin pelo lado da mãe. O que, ocorreu-me subitamente, era provável uma vez que não partilhavam o último nome.
— A noite é escura? — respondeu Calvin, exibindo um sorriso rasgado que lhe tirou do rosto o ar carrancudo e o fez parecer amável. — Talvez sim. Talvez não. Depende do que quiser dizer e aos olhos de quem. Alguma coisa ele é, quanto a isso não há dúvida. Seja como for, eu sou o aprendiz do meu tio Jim. Vou fazer esta visita da mesma forma que a faria a um par de turistas, mas se a fizer bem, algumas coisas podem mudar pelo caminho. — Aclarou a garganta, pareceu um pouco embaraçado, e disse: — Conforme a inspiração me surgir. Ou não.
— Muito bem. — Respirou fundo. — Bem-vindos a este chão sagrado. Falem suavemente e mostrem respeito enquanto aqui estiverem, por favor. Há vinte anos, fechámos o espaço com uma vedação e proibimos a entrada a estranhos por causa do vandalismo. Mas isso não deixou ninguém satisfeito, de modo que se decidiu tornar o espaço acessível, mas em circunstâncias específicas. Se viesse sozinha… — Calou-se e olhou para mim. Quando continuou, a fluência ensaiada desaparecera-lhe da voz. — Provavelmente não teria problemas. Você parece índia. Mas as pessoas que entram aqui sem permissão são condenadas a penas de prisão; levamos muito a sério a tarefa de manter este sítio seguro.
Virou-se e começou a caminhar através de um trilho. Nós seguimo-lo para lá do portão. Era quase como estar num dédalo, com a diferença de que as sebes eram paredes de lava e pedras gigantescas.
— Este é o trilho Temani Pesh-wa — disse Calvin, indicando o caminho, embora na verdade não fosse necessário um guia, dado que o percurso era óbvio. — Que significa «escrito em pedra». Os pictogramas que aqui estão terão sido pintados entre quinhentos a mil anos atrás.
Levou-nos por um caminho ascendente em passada razoavelmente rápida, falando enquanto caminhava.
— Antigamente, havia imensos índios nesta área. Lewis e Clark16 fazem menção à passagem por esta zona, e, com base nos diários deles, as pessoas estimam que havia aproximadamente dez mil índios nas cercanias. O que sabemos de certeza é que uma das muitas povoações ficava ali.
Apontou para trás, na direção do caminho que percorrêramos, onde, ao longe, uma porção arredondada de terra adentrava o rio. A julgar pela orla, penhascos de basalto estendiam-se várias centenas de metros abaixo da água. De onde estávamos, não conseguia perceber se havia um corpo de água entre nós e a porção de terra para a qual apontara. A massa terrestre parecia um bolo de casamento, com uma segunda camada, muito mais pequena, no centro.
No momento em que me virava para olhar para Calvin, reparei que não éramos os únicos no trilho. A mulher ameríndia que estivera no museu metera por uma vereda que saía do trilho. Enquanto a olhava, ultrapassou um conjunto de pedras e desapareceu na paisagem.
— Celebravam o potlatch duas vezes por ano — estava Calvin a dizer —, uma festa para a qual convidavam pessoas de perto e de longe. Como parte do potlatch, rapazes e raparigas de doze ou treze anos levavam a cabo as suas demandas de visão. Depois, vinham aqui e registavam na pedra uma recordação das suas demandas de visão.
Levou-nos até uma parede de penhasco em basalto — um penhasco minúsculo em comparação com aquele para o qual acabara de apontar. Parou mas não disse nada, portanto olhei para cima. Precisei de algum tempo para perceber o que estava a ver, apesar de ter estado à procura deles. O velho quadro misturava-se com o penhasco rochoso como se pertencesse ali, e eu era o elemento estranho. Assim que vi um, constatei que estavam em toda a parte.
Eram às dezenas. Alguns deles eram claramente identificáveis como humanos ou vários outros animais. Outros eram impossíveis de decifrar, ou porque alguma da tinta se havia esbatido excessivamente, ou porque o simbolismo usado me era demasiado estranho para o compreender. Havia alguns símbolos que eram óbvios — como a água corrente, representada por uma série de linhas paralelas sinuosas. Alguns eram menos óbvios: um alvo vermelho e branco, longas linhas onduladas, círculos.
Aproximei-me com as mãos atrás das costas, como uma criança a quem tivessem dito que não podia tocar. Centenas de anos antes, pessoas tinham estado onde eu agora me encontrava e haviam tocado a pedra com os seus dedos. Quinhentos anos antes. Mil anos antes.
Tive o curioso pensamento de que Bran, o Marrok, estava vivo quando isto fora pintado. Quinhentos anos antes tinha a certeza de que já existia. Quanto a mil anos, tinha quase a certeza.
Perguntei-me se a rapariga ou o rapaz que tinham desenhado o alvo vermelho e branco sabiam quanto tempo as suas ilustrações iriam durar, o último testemunho da sua passagem pela terra.
Ao meu lado, Adam endireitou-se e respirou fundo. Virou-se lentamente até se fixar lá em baixo, no local onde estivéramos poucos minutos antes. Acompanhei o seu olhar até também eu o ver.
Aninhado num promontório rochoso sobranceiro à parte mais baixa do trilho, um falcão-de-cauda-vermelha olhava-nos fixamente. À semelhança dos pictogramas, pertencia ali. Porém, havia algo de estranho no seu interesse em nós. Fez-me lembrar bastante a mulher do museu. A ave levantou voo e passou mesmo por cima das nossas cabeças, para depois virar na direção do rio até desaparecer da vista.
Enquanto voava, apercebi-me de que a inquietação que sentia me transportava para a memória da minha demanda de visão e dos animais que me tinham perseguido, até ter deparado com o Coiote. Uma demanda de visão como as de todos aqueles artistas antigos. Talvez, ocorreu-me numa fantasia súbita, devesse desenhar La-Z-Boy numa das pedras. De uma forma que não sei explicar, tinha a certeza que ninguém iria interpretar o meu gesto como um ato de vandalismo — apenas como uma continuação da tradição.
Se Calvin não estivesse presente, teria contado a Adam. Olhei para ele e constatei que fitava Calvin com uns olhos dourados que dançavam de fúria.
Pus a minha mão no seu braço. Olhos dourados não eram uma coisa boa quando estávamos entre amigos.
Adam pôs a mão dele sobre a minha e deu um passo em frente de modo a ficar entre mim e Calvin.
— No teu processo de aprendizagem enquanto feiticeiro, alguma vez ouviste falar em pessoas capazes de se transformar em animais, Calvin? — perguntou num tom de voz surpreendentemente delicado.
Franzi o sobrolho a Adam e dei-lhe um aperto invisível no braço. Eu não conhecia Calvin; não havia nenhuma razão para o fazer questionar o que eu era. Acontecera algo que me escapara enquanto estava de olhos postos no falcão, e não tinha a certeza do que seria.
O que quer que fosse, fizera com que Adam ficasse bastante zangado com Calvin. Perguntei-me se se teria colocado entre nós para me proteger — ou para me impedir de proteger Calvin.
— Não — respondeu Calvin, o que foi um erro. Devia ter aprendido com o seu avô a arte de não mentir. Além disso, conhecia lendas ameríndias suficientes para saber que havia imensas histórias sobre pessoas que se transformavam em animais, e animais em pessoas. E sabia da condição de Adam, que era certamente uma pessoa que se transformava em animal.
Adam sorriu, mostrando os dentes. Na verdade, não conseguia ver-lhe o rosto, todavia a expressão de Calvin fez-me perceber claramente que Adam o fizera. Adam pusera de parte o seu rosto civilizado e deixara Calvin ver o verdadeiro.
— É impossível mentir a um lobisomem — disse eu ao rapaz. — Mais te valia ter gritado «Sim, mas não quero que me faça perguntas sobre esse assunto».
Calvin engoliu em seco e senti o cheiro do seu medo.
— Mercy? — disse-me Adam.
Ele pretendia chegar a algum lado com isto — e eu confiava nele, desde que controlasse o temperamento. Os lobisomens são monstros. Cresci com eles, e amava Adam — e ele jamais me magoaria. Mas isso não se aplicava a pessoas pelas quais não nutrisse afeto. Quanto mais depressa a situação — fosse ela qual fosse — acalmasse, mais seguro seria para todos.
Por vezes, a informação pode ser obtida quando o adversário pensa que se sabe tudo sobre o assunto em questão. Era isso que Adam me pedira para fazer — dizer a Calvin o que eu era.
— Eu consigo transformar-me em coiote — disse-lhe. — Segundo a minha mãe, devo ter herdado isso do meu pai.
Calvin ficou de queixo caído, depois o seu rosto congelou.
— A sua mãe era branca — replicou com urgência. — Você não pode transformar-se em coiote.
— Posso, pois — disse-lhe indignadamente. Uma coisa era eu dizer-lhe que ele estava a mentir: eu sabia que tinha razão. Outra coisa completamente diferente era ele dizer-me que eu estava a mentir.
— Não pode.
— Posso.
— Não pode.
— Posso, pois.
— Mercy — interveio Adam, com exagerada paciência marcada por um toque de humor. Sabia que eu estava a fazê-lo de propósito. Não havia problema, porque ele já não estava zangado.
— Não pode — disse Calvin.
— Parem lá com isso. Nenhum de vocês tem cinco anos. — Relanceou os olhos a Calvin. — Seja como for, ele respondeu o que eu queria saber. Aquele falcão não era um animal natural, e este aqui sabia-o.
Ninguém lê a linguagem corporal como um lobisomem, pensei. E depois percebi o que Adam estava a dizer.
O sangue abandonou a minha cabeça com uma rapidez tal que tive de dar um passo para o lado de modo a manter-me de pé — e no local onde ia pousar o pé estava a encosta. Adam puxou-me para o trilho antes que eu caísse.
— Estás bem? — perguntou.
Fiz que sim com a cabeça, embora não tivesse a certeza de que isso fosse verdade.
Nunca tinha conhecido ninguém da minha espécie. Passados mais de trinta anos, começara a acreditar que já não restava mais nenhuma, que eu era a única.
Também acreditava que seriam coiotes como eu. O velho da noite anterior não tinha dado a entender isso? Ele percebera que eu era coiote, e apenas lhe tinha dito que era uma caminhante.
Não sabia muito sobre o que era ser-se caminhante. Apenas o que Bran me dissera, e ele próprio não sabia muito — ou então dissera-me apenas o que quisera dizer-me. Crescera a pensar que a segunda hipótese era a verdadeira, mas no decurso do último ano, aproximadamente, começara a acreditar na primeira.
— Ela é uma caminhante — disse Adam a Calvin. — Inventar razões para justificar que isso é impossível não ajuda, como não ajuda discutir. Eu sei isso muito bem: fui mordido e Transformado por um senhor da guerra no Vietname. Ainda hoje não tenho conhecimento de nenhum lobisomem que viva na Ásia. Existem lá coisas que não gostam de nós, e podem tornar a sua antipatia letal. No entanto, ali estava ele. A Mercy transforma-se em coiote. Contra factos não há argumentos. Simplesmente aceita e ultrapassa isso. Era o teu avô?
Se Gordon Seeker fosse um caminhante que se transformava num falcão-de-cauda-vermelha, isso explicaria a sua capacidade de desaparecer tão eficazmente. A ser verdade, seria de esperar que no local onde se transformara tivesse sido deixada para trás uma pilha de roupa, mas a possibilidade de ele ser um caminhante respondia à maior parte das minhas questões.
— O avô Gordon transforma-se — disse Calvin. Parecia ter acabado de chupar um limão quando me olhou.
Tão-pouco era muito bom a não mentir. Talvez fosse algo que os feiticeiros aprendessem quando fossem mais velhos. Tinha a impressão de que o seu tio Jim era capaz de não mentir com a mesma competência de uma criatura feérica, e constatara que o seu avô era capaz do mesmo. Nesse caso, por que razão tinham enviado Calvin? A menos que quisessem que nós partilhássemos os seus segredos.
E a razão pela qual quereriam que nós soubéssemos estava ligada a Gordon Seeker, à profecia de Edythe, a Rapariga do Ioió, e ao que quer que tivesse acontecido a Benny e à sua irmã — que Calvin nos queria contar mais tarde.
Um dia, hei de conhecer uma criatura sobrenatural que me diga na cara e de forma franca tudo o que eu devia saber — mas não vou viver na expectativa de que isso aconteça.
— Aquele falcão não era o Gordon — disse Adam, que tinha a capacidade de distinguir uma má não-mentira tão bem como eu. — Quem era?
Se Gordon tinha a capacidade de se transformar e o falcão não era Gordon, então éramos três. Três caminhantes. Gordon tinha conhecimento de mim, da minha existência, e a única razão pela qual nos conhecêramos fora o acaso. Na sequência de algo engendrado pela Rapariga do Ioió, mas não motivado por qualquer desejo da parte deles. Muito bem. Não queriam nada a ver comigo. Retribuir-lhes-ia a cortesia.
Calvin olhou-me por momentos e levantou as mãos em gesto de rendição.
— Coiote, não é verdade? Talvez isso explique alguma coisa sobre o porquê de o avô Gordon querer que você visse isto. — Esfregou a cara. — Ouça. Deixe-me levá-la a ver Aquela Que Observa. Não sei se ela é algo que você precisa de ver ou não. O meu tio Jim não foi propriamente claro em relação ao assunto, mas ela é o melhor e o mais conhecido dos pictogramas. Depois levo-vos até aos petróglifos. Conto-vos a história do Benny e dou-vos o número de telefone do tio Jim. Depois disso, podem telefonar-lhe para falarem sobre tudo o que quiserem saber, está bem?
Pareceu-me justo, e Adam anuiu com a cabeça.
Deu meia-volta e conduziu-nos trilho abaixo até ao local onde ele se dividia; aí, metemos pela mesma vereda em que seguira a mulher que tinha visto anteriormente. Havia mais desenhos nas pedras por que passámos.
— Não há líquen nos sítios onde estão os pictogramas — comentou Adam.
Calvin fez que sim com a cabeça. Estava consideravelmente mais calmo, e o seu medo já não despertava em mim o instinto de caça.
— É verdade. Eles tinham uma forma qualquer de manter uma porção de pedra limpa e permitir que se mantivesse assim mil anos depois. Talvez fosse uma coisa tão simples como manter a pedra lisa. O líquen precisa de uma certa aspereza para crescer. Há algumas porções de pedra limpa que foram claramente raspadas. — Apontou. — Mas não têm nada. Talvez alguém tenha misturado mal a tinta, ou talvez não tenham tido tempo para as usar. Com a luz certa, consegue-se ver alguma pigmentação nalgumas das porções de pedra limpa.
— Sabes a que tribo pertenciam as pessoas que viviam ali? — perguntou Adam.
Calvin abanou a cabeça.
— Quando chegaram os europeus, todos se mudaram. Imensos bandos e algumas tribos extinguiram-se por completo. A maior parte das tribos transmitia as suas histórias oralmente, e muitas dessas histórias perderam-se. Temos alguns palpites, mas outras tribos também, e nem sempre os nossos palpites coincidem.
Virámos numa esquina, seguindo no mesmo trilho onde a mulher desaparecera. Conseguia sentir o cheiro dela. O trilho desenhava-se paralelamente à vedação. Do outro lado da vedação estava a via-férrea que seguia ao longo do rio. A vedação e o trilho terminaram abruptamente, deixando-nos numa esquina entre a vedação e uma parede em basalto. Na pedra, voltado para o Rio Columbia, estava o maior e mais nítido pictograma que tinha visto. Podia ter sido desenhado uma década antes, e não há séculos.
Aquela Que Observa parecia a cabeça de um guaxinim. Duas orelhinhas de morcego espetadas no topo da cabeça e a boca aberta num amplo sorriso. Um quadrado preto esmaecido estava desenhado no meio da boca. Podia ser uma língua desbotada ou uma tentativa antiga de tapar algo, mas o que quer que fosse, parecia deslocado em relação ao resto da cara. Embora fosse pouco percetível, conseguia ver presas que em tempos lhe haviam sido desenhadas na boca — e aposto que não tinha uma aparência tão amigável há uns tempos largos, quando aquelas eram mais visíveis.
A maior parte dos pictogramas que tínhamos visto era constituída por figuras mais toscas e bidimensionais. Este tinha profundidade e revelava mestria.
— Há imensas histórias sobre Aquela Que Observa — disse Calvin. Abriu a boca e parou. — Mas essa não é a razão pela qual foi importante virmos aqui. — Parecia sobressaltado, como se se tivesse surpreendido a ele próprio com o que dissera.
— Porque é que não nos contas a história na mesma? — propôs Adam. — Temos tempo.
Calvin olhou inquietamente por cima do ombro, mas não estava ninguém atrás de nós.
— Está bem. — Respirou fundo. — Está bem. É uma história do Coiote, portanto suponho que seja apropriada, certo? Das várias histórias sobre como ela surgiu aqui, as que eu conheço são do Coiote. Um dia, o Coiote caminhava paralelamente ao rio e encontrou uma povoação de índios. Caminhou por entre as pessoas, mas não conseguia encontrar o líder delas. Até que se aproximou de uma velha senhora que estava a fazer uma armadilha para apanhar peixe. «Onde está o vosso líder?», perguntou-lhe. «Tsagaglalal, Aquela Que Observa, é a nossa líder», disse a velha. «Está lá em cima, na colina.» E então o Coiote sobe a colina e encontra uma mulher exatamente onde nós estamos. «O que fazes aqui em cima?», perguntou o Coiote. «A tua gente está lá em baixo, na povoação.» «Estou a observar», respondeu ela. «Observo para me certificar de que a minha gente tem comida suficiente para se alimentar. Observo para que tenham boas casas onde dormir. Observo para me certificar de que estão a salvo de inimigos.» O Coiote achou que isso era bom, portanto pegou nela e atirou-a contra esta pedra, para que pudesse observar sempre a sua gente.
— Aposto que há coisas da história que não foram contadas — disse Adam. — O Coiote não ia atirá-la contra a pedra a menos que ela tivesse feito um ou dois comentários menos agradáveis.
— Bom — disse eu, porque ele estava de olhos fixos em mim —, suponho que se estivesse a cumprir o meu dever e me aparecesse um estranho para me interrogar, talvez me sentisse tentada a dizer uma ou outra coisa menos simpática. — Tinha feito isso a Adam umas quantas vezes ao longo dos anos, e percebi nos seus olhos que também ele estava a recordar esses episódios.
— É possível — comentou Calvin. — Deixem-me levar-vos de volta aos petróglifos.
Começou a andar trilho abaixo, e eu hesitei. Voltei-me para olhar para a pequena esquina onde estivéramos e inspirei fundo, mas não senti o cheiro dela. Detetara-lhe o cheiro no desvio do trilho, e ela não podia ter ido para mais nenhum sítio. Mesmo que tivesse trepado a vedação, teria deixado o seu odor para trás.
— Algum de vocês reparou na mulher que estava a percorrer o trilho atrás de nós? — perguntei. Talvez ela fosse o falcão que tínhamos visto.
— Que mulher? — perguntou Calvin.
Adam abanou a cabeça.
— Quem é que tu viste?
— A mulher que estava no museu, na exposição de artigos índios — respondi a Adam, na esperança de que também ele a tivesse visto. Adam repara nas coisas. Em parte, isso deve-se ao facto de ser lobisomem, mas a meu ver, deve-se, sobretudo, aos tempos em que fora membro de uma Patrulha de Reconhecimento de Longo Alcance nas selvas do Vietname.
— Uma família — disse ele. — Pai, mãe e três filhos.
— E uma mulher ameríndia de meia-idade que vestia uma camisola azul-escura com duas araras bordadas nas costas — disse-lhe. — Cheirava a menta e café.
Abanou a cabeça.
— Eu não a vi.
Tinha passado mesmo ao lado dela.
— O que é que isso significa? — perguntou Calvin.
— Ainda não tenho a certeza — disse-lhe. Calvin não conseguia detetar uma mentira. Percebia-se na expressão dele que acreditava no que eu estava a dizer. Aposto que Jim, o tio dele, me teria apanhado. Adam lançou-me um olhar incisivo.
Muita coisa estava a acontecer. Grande parte era misteriosa e não fazia qualquer sentido. E havia mais dois caminhantes, um dos quais, pelo menos, sabia da minha existência antes de nos termos conhecido. A mulher que desaparecera era um mistério dos grandes — embora tivesse praticamente a certeza de que se tratava de um mistério meu e não algo engendrado por Gordon Seeker ou qualquer outra pessoa que tivéssemos conhecido naquela região.
— Porque é que não vamos até aos petróglifos? Depois contas-me a história do Benny — disse a Calvin num tom severo. — Logo verei se a mulher encaixa nalgum lado.
Ele não tinha culpa. Tinha a sensação de que sabia ainda menos do que Adam e eu. Alguém estava a fazer joguinhos, e eu começava a ficar farta disso.
13 Espécie de tortilha à base de batata frita e ovo. (N. do T.)
14 Expressão usada no Sul dos Estados Unidos para designar a Guerra Civil Americana. Surgiu como uma tentativa de perpetuar a interpretação que esta região tinha do conflito. (N. do T.)
15 Em francês, «grand téton» significa «mama grande». (N. do T.)
16 Meriwether Lewis e William Clark, dupla de exploradores que liderou a primeira grande expedição exploratória do continente norte-americano. (N. do T.)
7
Os pictogramas consistem na aplicação de tinta sobre uma superfície, qualquer superfície. Os grafíti de gangues são pictogramas, mas normalmente o termo refere-se a pinturas feitas pelo homem antigo. Os petróglifos são cinzelados na pedra. Requerem um esforço muito maior e demoram mais tempo a ser criados. À semelhança dos que estavam expostos no museu, os petróglifos no Lago Horsethief eram feitos em grandes pedaços de pedra que claramente tinham sido cortados de pedras maiores. Contrariamente aos do museu, estes estavam isolados por uma cerca — pode olhar, mas não pode tocar.
O primeiro petróglifo que vi no Lago Horsethief parecia um ananás.
Calvin não conseguiu esconder um sorriso quando lho dissera.
— Antes de o Columbia ter sido represado em 1959, o rio era estreito e profundo nesta zona, não era largo e alterado pela mão humana como agora. Havia cascatas. As Cascatas de Celilo. Nós temos fotografias.
O rapaz cravou os olhos no rio.
— Sabem, eu não nasci aqui. A minha mãe nem sequer era nascida nessa altura. Alguns dos antigos ainda choram o desaparecimento do velho rio como se fosse uma coisa viva que morreu.
— A mudança é difícil — disse Adam. — Independentemente de ser boa ou má.
O rapaz olhou para ele.
— Algumas das mudanças foram boas, outras nem por isso. Dantes existia aqui um desfiladeiro. Algumas pessoas diziam que havia mais petróglifos nas paredes do desfiladeiro do que em qualquer outro sítio do mundo. Não sei se isso é verdade, mas de facto havia muitos. Quando se tornou claro que a construção da barragem ia avançar, foi feito um esforço para se salvar o maior número possível de petróglifos. Ficaram expostos na barragem durante décadas, antes de terem sido trazidos para aqui. Há outros no museu e muitos, suponho, em coleções privadas: as tribos pediram às pessoas que levassem os que conseguissem desde que cuidassem deles. Os que foram deixados no desfiladeiro estão submersos, e presumo que vão ficar assim para sempre.
Caminhávamos enquanto ele falava. À semelhança dos desenhos na pedra, a cinzeladura era primitiva. Olhar para alguns deles, tal como acontecera quando me pareceu ter visto um ananás, era como tentar adivinhar o que uma criança do jardim de infância desenhara. Alguns deles eram extraordinários, apesar da estilização. Era capaz de ter ficado a olhar para a águia durante uma hora ou mais. No entanto, foi uma pedra com um rebanho de carneiros selvagens que me deu uma pista sobre algo.
— Diabos me levem — disse. — Foi por isso que ele nos disse para irmos à cave do museu, para vermos os cestos.
Ambos olharam para mim.
— Bom, talvez não — concedi, pensando na mulher que nos olhara fixamente no museu e depois nos seguira até aos pictogramas. — Mas esses animais são idênticos aos que foram tecidos nos cestos. Se a única arte que se viu foi em cestos e cobertores tecidos, quando se decide cinzelar alguma coisa, o resultado será parecido com o que se viu nos cestos.
— Quando acabarmos o que tivermos a fazer aqui, podes escrever para revistas de antropologia a falar-lhes das tuas teorias — comentou Adam.
Estreitei-lhe os olhos.
— Não me parece. Em vez disso, escrevo uma tese de doutoramento. Depois posso fazer o que a maior parte das pessoas com um doutoramento em Antropologia faz.
— Que é o quê? — perguntou Calvin.
— Não precisas de a encorajar — disse Adam num tom sério, porém com os olhos sorridentes cravados em mim.
— A mesma coisa que fazem as pessoas com uma licenciatura em História — disse eu. — Reparar carros ou servir batatas fritas e hambúrgueres de má qualidade.
— Este é aquele que o meu tio me pediu para vos mostrar — disse Calvin.
A pedra fora partida, porém as suas partes haviam sido cuidadosamente encaixadas. O rosto da criatura parecia-se um pouco com a de uma raposa — uma raposa mutante com dentes muito grandes e tentáculos. O corpo era idêntico ao de uma cobra. Era uma espécie de cruzamento entre um dragão chinês e uma raposa com os dentes de uma enguia-lobo.
— Não sabemos tanto acerca destes como sabemos dos pictogramas — explicou Calvin. — Podem ter sido cinzelados há dez mil anos pelas primeiras pessoas, como podem ter sido cinzelados há cem anos. Não sabemos o que este pretendia representar, mas temos um nome para ele. Chamamos-lhe o diabo do rio.
Os olhos da criatura eram ansiosos, inteligentes e famintos.
Já os tinha visto antes. Os olhos verdes-claros que vira debaixo de água, no meu sonho. Pestanejei, e os olhos eram apenas olhos. Por muito ávidos que parecessem, não passavam de olhos cinzelados na pedra. No entanto, eu sabia o que tinha visto.
— Muito bem — disse Calvin alegremente, enquanto Adam me fitava com olhos ferozes —, existe uma história do Coiote sobre um monstro que vivia no Rio Columbia no tempo das primeiras pessoas, antes de nós, humanos, estarmos aqui.
Dirigi um sorriso tranquilizador a Adam, que devia ter sentido o meu reconhecimento súbito do monstro na pedra. Com a boca, disse-lhe: «Depois». Ele anuiu com a cabeça.
Fora um sonho, lembrei a mim mesma ferozmente. Apenas um sonho.
Calvin não se apercebeu minimamente do enredo lateral, e ainda bem.
— Este monstro — continuou — comeu todas as primeiras pessoas que viviam no rio. Comeu todas as primeiras pessoas que pescavam no rio. A dada altura, ninguém estava disposto a aproximar-se do rio, por isso pediram ajuda ao Grande Espírito. Este enviou o Coiote para averiguar o que podia ser feito. O Coiote desceu até ao rio e constatou que nada vivia perto dele. Enquanto estava a vigiar o rio, viu um monstro enorme emergir da água. «Ah», gritou o monstro, «estou com tanta fome. Porque é que não vens aqui abaixo para que eu te possa comer?» O Coiote achou que isso não era uma boa ideia, portanto subiu até ao monte, onde podia pensar. «Eheh» disseram as irmãs dele, que eram bagas no seu estômago.
— Eram o quê? — perguntei, surpreendida apesar do pânico causado por um par de ávidos olhos verdes que vira num sonho estúpido.
— Esta é a versão suave — disse-me Calvin. — Pode perguntar por aí se quiser saber a versão grosseira. Também é grosseiro interromper quem está a contar a história.
— Desculpa. — Tentei perceber como é que duas bagas que eram irmãs no estômago do Coiote podiam ter uma versão grosseira.
— «Porque é que se estão a rir?», perguntou o Coiote. «Nós sabemos o que tu devias fazer», responderam-lhe as irmãs. «Mas não te vamos dizer porque se o fizéssemos, irias atribuir todo o mérito a ti próprio, como fazes sempre.» Mas elas eram as irmãs dele, e o Coiote era bastante persuasivo. Prometeu que daquela vez iria contar a toda a gente quem tinha sido responsável por um plano tão inteligente. Finalmente, elas disseram-lhe o que fazer. Seguindo o conselho delas, muniu-se de nove facas de pedra, uma bolsa com carne seca e curada, uma pedra, uma tocha e alguns ramos secos, e desceu pela encosta até ao rio. «Anda comer-me», disse ao monstro. E foi o que o monstro fez. Assim que foi engolido, o Coiote usou uma das facas e a pedra para acender a tocha. Dentro do monstro encontravam-se todas as pessoas que tinha comido. Estavam com muita fome, uma vez que não comiam nada desde que o monstro as tinha engolido. Também estavam com frio porque o monstro era tão frio no interior como o era o rio no exterior. O Coiote chegou lume aos ramos secos e partilhou com eles a carne seca e curada. Disse-lhes que ia matar o monstro. Depois, disse-lhes ainda, teriam de arranjar a melhor forma de sair. De modo que pegou na primeira faca e começou a golpear o coração do monstro. Pouco tempo depois de ter começado a desferir golpes na carne rija, a primeira faca partiu, e teve de sacar da segunda. A segunda faca partiu, tal como a terceira, e a quarta. Até lhe restar apenas uma faca. Mas essa perfurou o coração do monstro. «Corram!» disse às pessoas encurraladas. «Saiam!» E foi o que fizeram, escapando do interior do monstro moribundo de todas as formas que conseguiam. Pela boca, pelas guelras e pelo ânus.
— Pensava que esta não era a versão grosseira — disse-lhe.
Calvin sorriu amplamente, mas prosseguiu.
— O Castor foi o último a sair. Por pouco não escapava do esfíncter da besta, e essa é a razão pela qual a cauda do castor é achatada e não tem pelo.
Suspirei.
— Pelo menos só ficaram o Coiote e o monstro no rio, e o Coiote estava em vantagem.
— «Vou-te deixar viver», disse o Coiote, «mas só se prometeres que nunca mais voltas a comer ninguém». O monstro prometeu, e o Coiote deixou-o viver. O monstro do rio, derrotado, afundou-se no Columbia e nunca mais se ouviu falar dele. As pessoas, gratas, fizeram um banquete em homenagem ao Coiote, e ele comeu duas vezes mais do que qualquer um dos outros. «Diz-nos», perguntaram-lhe as pessoas. «Como é que tiveste a ideia de um plano tão inteligente?» Mas o Coiote esqueceu-se das promessas que tinha feito por ser vaidoso e esquecido. Atribuiu a si todo o mérito por ter salvado as pessoas.
Depois de terminar a sua história, Calvin virou-se para observar o diabo do rio gravado na pedra.
— Não se sabe se o diabo do rio e o monstro da história do Coiote são a mesma besta, mas disseram-me para vos contar a história depois de verem a pedra.
— E em relação ao Benny? — lembrou-o Adam.
— Ele vai ficar bem — respondeu Calvin. — Fisicamente. A polícia não lhe está a dar descanso porque ele disse que não se lembra do que aconteceu nem de onde está a irmã dele, e os médicos estão a ter dificuldades em descobrir o que lhe aconteceu ao pé. No entanto, o Benny não vai falar com a polícia porque eles não têm nada a ver com isso, para além de que não iriam compreender.
Calvin encostou-se à vedação que protegia os petróglifos, após o que se fixou em nós.
— Não sei em que medida é que isto se relaciona consigo, porque é que o meu tio e o meu avô acham que isto possa ter alguma coisa a ver consigo. Quer dizer, compreendo a razão pela qual ele acha que você não vai fugir a sete pés quando nós começamos a falar de monstros do rio que comem pessoas. Mas o que é que você tem a ver com isso?
— Boa pergunta — concordei. — Ficaria contente se alguém tivesse uma resposta para me dar.
— Fala-nos do Benny — disse Adam, que estava acostumado a carregar nos seus ombros largos a responsabilidade pelo bem-estar do mundo. Se houvesse um problema e ele achasse que podia ajudar, fá-lo-ia.
Calvin olhou para ele como se estivesse a vê-lo pela primeira vez. Talvez também ele tivesse conhecimento do facto de Adam ser alguém disposto a colocar a própria vida em risco por uma série de pessoas que não conhecia. Após um momento embaraçosamente longo, disse:
— O Benny contou ao meu tio que ele e a Faith estavam a pescar, como fazem algumas vezes por mês no verão. Tinham apanhado alguns peixes ontem e estavam a preparar-se para ir embora, quando a Faith sentiu o fio da cana ser puxado com força, tanta que ela se tinha convencido de que o que ficara preso ao anzol tinha sido lixo. Ela podia simplesmente ter cortado a linha, mas ela e o Benny são boa gente. Não gostam de deixar anzóis e linha no rio se o puderem evitar.
Uma carrinha estava a ser estacionada no parque de estacionamento, ao lado do SUV de Adam. Apresentava amolgadelas e ostentava três cores para além da cor base, laranja-claro. Quanto ao motor, rugia como um leão feliz.
— É o meu tio — anunciou Calvin desnecessariamente, uma vez que todos o conseguíamos ver a sair da carrinha. — Portanto é possível que todos nós venhamos a obter algumas respostas.
Adam olhou por cima do ombro e depois fixou-se em Calvin.
— E o que é que a Faith fez?
Calvin, tal como a maior parte das pessoas, obedeceu ao tom de voz de Adam sem sequer pensar e continuou a narrar a história enquanto o tio se acercava.
— Recolheu a linha, que continuou a aproximar-se. Inclinou-se sobre o barco. O Benny estava inclinado na parte oposta para impedir que o barco virasse, portanto não conseguiu ver o que ela viu. No entanto, ela disse…
— «Está qualquer coisa estranha presa à linha, Benny. Parecem tentáculos. O que é que achas…» — A voz de Jim emudeceu. Depois, num tom neutro, disse: — E quando o Benny dá por ela, a Faith está na água. Ele salta atrás dela e uma coisa qualquer atinge-lhe a perna. Ele acha que terá sido nessa altura que ficou sem o pé. A água começou a ficar com espuma e ele ficou com a impressão de que havia qualquer coisa verdadeiramente grande por baixo. A Faith apareceu à superfície e ele agarrou-a com um braço, e com o outro agarrou-se à borda do barco. Ela abriu os olhos e disse-lhe: «É tão calmo, aqui», depois os olhos dela ficaram imóveis. O Benny já tinha visto pessoas morrer, por isso percebeu que ela já tinha morrido. Mais ou menos por essa altura, ele apercebe-se de que, do peito para baixo, o corpo dela tinha desaparecido. Portanto, toma a decisão inteligente e larga o corpo dela para poder regressar para o barco. Deita-se no fundo e sente algo que dá pancadas no barco e o faz abanar. Ele já tinha ido pescar tubarões no oceano, e disse que a sensação que teve foi que por baixo dele estava um peixe muito maior do que o barco. A dada altura, desmaiou e foi acordando aqui e ali até vocês o terem encontrado.
Jim fez uma pausa e olhou para Adam e para mim.
— Depois de ter ouvido a história dele, chamei o Gordon Seeker porque ele sabe mais deste tipo de coisas do que qualquer outra pessoa que eu conheça. Ouviu a história do Benny e concluiu que a única coisa que surtiria efeito seria ele ir até àquele novo parque de campismo falar com o lobisomem. O que quer que ele tenha encontrado na vossa caravana fê-lo acreditar que vocês estão mesmo no centro da questão. Em parte, isso parece dever-se ao facto de você — centrou o olhar em mim — agora estar marcada pelo rio. O que quer que isso signifique.
Não soou, nem pouco mais ou menos, tão amigável como na noite anterior. Mas isso parecia-me natural. Apesar de ser humano e ser afável no modo, Jim Alvin tinha todos os traços distintivos de um Alfa, e nós éramos intrusos no seu território.
— Muito bem — disse Jim num tom sério —, agora vocês sabem aquilo que nós sabemos. O que é que vocês sabem?
— Dissemos algumas coisas ao Calvin — replicou Adam. — Porque é que não nos dá algum tempo para organizarmos aquilo que sabemos, e nós fazemos o mesmo? Temos comida suficiente para alimentar um exército. Vá buscar o Gordon e quem mais entender que deva saber e apareçam lá em baixo no parque de campismo daqui a duas horas. Damo-vos de comer e falamos.
Na viagem de regresso até ao parque de campismo, Adam disse:
— Interpretei mal os teus sinais, ou sabes mais acerca disto do que eu?
— Acho que saber mais poderá não ser a expressão correta — respondi. — Talvez eu entenda melhor o alcance das questões?
Produziu um ruído a meio caminho entre o grunhido e a rosnadela.
Estivera sozinha durante trinta e tal anos. Pertencia a Adam e ele a mim há algum tempo. Por vezes, o alívio que isso representava transformava-se em algo difícil de suportar.
— Suspeito que a mulher que vi no Museu e no Lago Horsethief seja a Faith, a irmã do Benny. Pode ter sido um fantasma qualquer, suponho, mas pareceu-me demasiado interessada em nós para alguém que não tivesse algum tipo de ligação connosco. A irmã do Benny é a melhor candidata. Vou pedir que me façam uma descrição dela antes de lhes dizer. Acho que devo fazê-lo. Para eles, saber quem ela é apenas servirá para confirmar que está morta, mas creio que a história do Benny é suficientemente clara.
— Concordo — disse Adam. — Provavelmente, se ela não reaparecer, não há nenhuma razão para trazer o seu nome à baila.
— Além disso — disse, olhando para o exterior, na direção da carrinha estacionada no pequeno pomar ao lado do qual passávamos, porque não queria que Adam me visse o rosto —, se eles têm um caminhante, ele não terá a menor dificuldade em vê-la, e ela pode falar com ele.
No entanto, Adam conhecia-me, e colocou uma mão no meu joelho.
— O Gordon provavelmente é um caminhante.
— É verdade — concordei.
— E sabia o que tu eras antes de ter aparecido no parque de campismo. Só não sabia que ias estar comigo até te ter visto.
— Sim — concordei. No rio estava uma pequena quantidade de barcos de pesca, tornados minúsculos por duas barcas que seguiam rio acima.
— Deixaram-te para seres criada por um bando de lobos — disse Adam. — Eles é que ficaram a perder. Preferias que tivessem sido eles a criar-te, ou o Bran e o bando dele?
Tinha no rosto os óculos escuros que às vezes usava enquanto conduzia. Costumava usá-los com maior frequência quando os lobos ainda tentavam esconder aquilo que eram. E o seu rosto continha a mesma brandura da voz.
— Tens o dom irritante de apontar o óbvio — disse-lhe, tocando-lhe no braço para o fazer perceber que estava a pegar com ele. Uma das coisas de que mais gostava no nosso vínculo, e agora no nosso casamento, era que podia tocar-lhe sempre que quisesse. E quanto mais tocava, mais queria tocar.
— Ainda bem que para ti é óbvio — replicou. — Talvez o Gordon e os outros caminhantes tivessem as suas razões para se manterem longe de ti, mas isso já não importa. Quem é que achas que é o segundo caminhante, o falcão? O Jim?
— Pode ser — respondi, pensando concentradamente. — Mas eu não possuo magia de feiticeiro, porque em mim a magia não funciona como nas outras pessoas. Suponho que podia ser duas coisas ao mesmo tempo. Também podia ser alguém que ainda não conhecemos como humano.
— O que é que te incomodou tanto no petróglifo do diabo do rio? — Virou para o parque de campismo e passou o cartão na caixa de leitura, fazendo com que o portão abrisse. — A única coisa de que me apercebi foi o teu choque. Não consegui detetar mais nada.
— Lembras-te daquele pesadelo que eu tive a caminho do Lago Horsethief? — disse-lhe. — Vi uma coisa que poderia ter inspirado um desenho como aquele. — E contei-lhe o que me lembrava do sonho.
Quando terminei, estávamos no parque de campismo. Adam não disse nada durante algum tempo, e ajudei-o a preparar as coisas para dar de comer a uma série de pessoas desconhecidas.
— É costume teres sonhos assim? Sobre pessoas que não conheces?
— Não — respondi. — Normalmente as pessoas que conheço bastam para que eu tenha um número considerável de pesadelos sem que apareçam pessoas inventadas.
Parou o que estava a fazer e sacou do seu telefone mágico.
Ok, o telefone não é mágico, mas faz coisas que o meu computador tem dificuldade em fazer.
— Ainda bem — disse. — Temos sinal. Como é que se chamava a professora? Lembras-te?
— Janice Lynne Morrison — respondi.
Olhou para mim, um pouco surpreendido com a minha resposta pronta. Tenho dificuldade em lembrar-me dos nomes de pessoas que conheço. No meu trabalho, tinha um número considerável de clientes que associava às características dos respetivos carros: o Carrinha Azul ou o Fusca às Pintinhas Amarelas, por exemplo. Via-me obrigada a consultar a minha papelada para me certificar dos nomes de pessoas que conhecia há anos.
Encolhi os ombros.
— O pavor tem o dom de deixar marcas.
Tocou várias vezes com o dedo no seu telefone mágico. Se eu tivesse um telefone tão complicado, teria de andar sempre com Jesse ao lado para me pôr o raio da coisa a funcionar.
— Existe uma Janice Lynne Morrison que dá aulas ao terceiro ano numa escola em Tigard, um dos subúrbios de Portland — disse Adam com o rosto franzido. Virou o telemóvel para que eu pudesse ver o ecrã. O rosto que me retribuiu o olhar era granuloso e demasiado formal.
— É ela — disse, caindo-me o coração aos pés. — O que é que se está a passar para eu sonhar com pessoas reais, Adam? O que é que se está a passar para eu sonhar com as mortes delas? — Agarrei-lhe o pulso porque precisava de segurar algo sólido. — Será um sonho real? Eu não tenho sonhos reais. Será que vi o futuro e a devo avisar? — Sabia que estava a falar descontroladamente, mas era com Adam que estava a falar descontroladamente. Ele não se importava e não iria pensar que eu na verdade estaria à espera de uma resposta.
Guardou o telemóvel com a mão livre e deixou-me abraçá-lo com toda a força que precisava.
— Não sei — disse. — Mas vamos descobrir. Avisá-la sem mais informação não vai ajudar. As pessoas não tendem a dar ouvidos a avisos sobre monstros que as vão comer. Especialmente vindos de estranhos.
— É verdade — disse Gordon num tom sério, enquanto contornava a parte traseira da caravana. — É por isso que aqueles que sabem coisas devem soar misteriosos. É como pescar. O mistério é o isco, a verdade o anzol; razão pela qual por vezes dói.
— O peixe acaba morto — repliquei secamente.
— Não é esse o desfecho que pretendemos — disse Gordon, soltando um suspiro. — Mas é sempre uma possibilidade. — Hoje vestia umas calças de ganga e uma t-shirt dos Dresden Dolls.
Olhou para mim.
— Quem era o seu pai, Mercedes Thompson?
— Hauptman — interveio Adam num tom glacial. — Mercedes Athena Thompson Hauptman.
— O Joe Velho Coiote — disse-lhe, encostando-me um pouco a Adam e afrouxando a mão que lhe agarrava o braço, ambos sinais de que eu estava bem e de que ele precisava de ter calma com os instintos protetores, por muito que fossem do meu agrado.
— Ah — replicou Gordon. — Morto num acidente de carro e liquidado por vampiros. Eu bem lhe dizia que ele conduzia aquela coisa depressa de mais, mas era raro dar ouvidos a bons conselhos. Sabe quem era o seu pai?
— Deixe-se de joguinhos com iscos e anzóis — disse-lhe. — Vá direto ao assunto.
Sorriu-me.
— Algumas pessoas gostam de lançar o isco — disse Adam secamente. — Independentemente de ser necessário ou não.
Gordon riu-se. Tinha um riso expressivo.
— Eu gosto. E faço-o. Às vezes, no processo, ganha-se muita coisa que, de outro modo, não se ganharia. — Depois a expressão de divertimento desapareceu-lhe do rosto. — Às vezes, o peixe magoa-se. Vou contar-vos uma história enquanto se preparam para dar de comer às pessoas que vão aparecer. Para além de nós, só virão mais três. — Sorriu perante o meu sobrolho franzido. — Eu sou um homem velho. E os homens velhos têm o direito de agir de forma misteriosa. Falei com o Jim há coisa de dez minutos. Ele e os irmãos Owens vão aparecer. O Calvin foi incumbido de ficar de vigia no hospital, onde o Benny está a dar sinais de não estar tão bem como pensavam inicialmente. Insiste em tentar sair da cama, e eles tiveram de o prender.
Pensei na forma como Janice Morrison, que eu nunca viria a conhecer, caminhara de bom grado rio adentro com os seus filhos.
— O que é que sabe sobre o que levou aqueles que são como você a serem o que são, Mercy? — perguntou Gordon.
— Não sei, não muito.
Adam lançou-nos um olhar atento, após o que se dirigiu para a grelha do parque de campismo e enfiou papel de jornal e carvão no braseiro. Concedeu-nos a ilusão de privacidade porque Gordon obviamente queria falar comigo — mas ele ouviria.
Incomodou-me, aquele instinto protetor dele. No entanto, uma das coisas que os últimos meses me tinham ensinado era que acontecia para ambos os lados. Quem tentasse fazer mal ao meu lobo, tinha de se haver comigo. Posso ser uma coiote de quinze quilos, mas sei ser tramada.
Gordon roncou aprovativamente.
— Há muito tempo, o Coiote encontrou por acaso uma povoação cujo chefe tinha uma filha belíssima. O Coiote disfarçou-se de jovem caçador bem-parecido. Matou um veado, pô-lo aos ombros e levou-o ao chefe da tribo como presente. «Chefe», disse ele, «permita-me que corteje a sua filha para ser minha esposa».
— Esta é a versão suave? — perguntei secamente.
Gordon exibiu a sua boca sem dentes à frente mas não abrandou a narração.
— O chefe não sabia que era o Coiote que pretendia a sua filha. «Caçador», disse o chefe, «pode cortejá-la, mas é a minha filha que escolhe o seu próprio marido.» Depois disso, o Coiote começou a cortejar a filha do chefe. Ofereceu-lhe carne fresca, couro curtido e belas flores. Ela agradeceu-lhe por cada um dos presentes. Finalmente, o Coiote foi ao encontro do pai dela e disse: «Que presente lhe posso dar capaz de a impressionar ao ponto de me aceitar como seu marido?» «Pergunte à minha filha», disse o chefe. E, então, Coiote, o Caçador, foi ao encontro da filha e perguntou-lhe qual o presente que ela mais gostaria de receber. «Aquilo que eu mais gostaria de ter era uma lagoa calma onde pudesse tomar banho em privado», respondeu-lhe. Perante esta resposta, o Coiote dirigiu-se a um sítio tranquilo na floresta e construiu-lhe uma lagoa na base de uma queda de água. Quando a filha do chefe viu a lagoa, concordou casar com o Coiote, que ainda estava disfarçado de caçador. Ela aceitou de bom grado a entrada dele na lagoa, e riram e divertiram-se até a floresta exultar com a felicidade de ambos. — O velho fez uma pausa. — Acho que é melhor acabar a história por aqui. Acaba tragicamente, como normalmente acontece quando duas pessoas tão diferentes se amam. — Havia no tom com que pronunciara a última frase uma rudeza que claramente indiciava que não estava apenas a falar do Coiote e da filha do chefe.
Franzi-lhe o sobrolho.
— Muitas pessoas que têm mais influência do que você sobre nós os dois fizeram essa observação. Nós tão-pouco lhes demos ouvidos.
— É o lobisomem ou o anglo que o incomoda? — perguntou Adam, trazendo da caravana uma embalagem de hambúrgueres pré-feitos. Excetuando a sua pergunta, não nos prestou a menor atenção à sua passagem a caminho da grelha.
— Os lobos comem coiotes — disse Gordon, mas a julgar pela sua linguagem corporal, percebi que o nosso casamento na verdade não o incomodava minimamente; simplesmente gostava de espicaçar.
Se não fosse um homem de idade, ter-lhe-ia dito umas quantas coisas pouco educadas.
— Sim — observou Adam num tom suave. — Eu como.
Essa foi a resposta que lhe ocorreu. E nem sequer corou ao dá-la. Talvez Gordon não se apercebesse do duplo sentido. Mas a verdade é que dirigiu um sorriso amplo e divertido a Adam.
— Você sabia — disse eu num tom descontraído — que os Blackfeet contam histórias do Velho Homem e não histórias do Coiote? O trapaceiro dos Lakota é Iktomi, a aranha, embora ele se encaixe mais no lado do mal do que do simples caos.
O velho sorriu manhosamente.
— Isso é porque o Coiote se esconde atrás de muitos disfarces. E o caos nunca é simples a menos que se seja o Coiote.
— E o que é que a história tem a ver comigo? — perguntei, sem na verdade estar à espera de uma resposta.
— A filha do chefe, que foi, durante algum tempo, mulher do Coiote, tinha uma filha, e essa filha tinha a capacidade de andar na forma de coiote ou como humana, à semelhança dos seus filhos.
— Então eu sou descendente do Coiote, e aquele falcão-de-cauda-vermelha que vimos no Lago Horsethief — não sei porquê, não tinha dúvidas de que Gordon o sabia — é descendente do Falcão.
— Isso mesmo — disse ele. — Um caminhante — colocou uma ênfase deliberada no único termo que eu conhecia para designar a minha condição; «avatar» soava a algo que deveria figurar num jogo multiplayer na Internet ou estar coberto de tinta azul e ser gerado por computador e transposto para filme — descende de um destes acasalamentos entre mortal e imortal. Mas há já muito tempo que não andam livremente entre nós, e desde há muitos anos que um caminhante só nasce se ambos os pais descenderem deste tipo de acasalamento.
— Razão pela qual o Calvin estava tão convencido de que eu não podia ser uma caminhante — comentei. — A minha mãe, tanto quanto sei, é da Europa Ocidental. Com ascendência alemã e irlandesa.
— Isso mesmo — concordou Gordon. — Não tenho dúvida. E essa é a razão pela qual lhe pergunto: sabe quem era o seu pai?
Tinha ouvido o que ele queria que eu ouvisse. Não sabia por que razão decidira entrar em joguinhos comigo, mas para mim era altura de dizer basta. O meu pai não tinha nenhuma relação com o que quer que tivesse atacado o pobre do Benny e a sua irmã. Gordon Seeker, fosse ele quem fosse, não era nada para mim.
— Era um cowboy de rodeios — disse-lhe. Se estivesse na forma de coiote, teria as orelhas espetadas para trás. — Montava touros e era razoavelmente bom nisso. A minha mãe entrava em competições montada no cavalo de uma amiga e tentava ganhar dinheiro suficiente para sobreviver. Ele ofereceu-lhe um sítio onde ficar durante algum tempo. Morreu num acidente de carro antes de a minha mãe sequer saber que estava grávida dele.
Adam, junto à grelha, estava atento. Os seus olhos amarelos fixavam-se no velho. Inspirei fundo e tentei conter a fúria — ou impedir que este desconhecido me magoasse com uma história mais velha do que eu. As emoções pareciam passar mais facilmente através do nosso vínculo de parceiros do que as palavras ou os pensamentos. Começava a aprender a controlar-me um pouco mais agora que Adam também as conseguia sentir.
— Sim — replicou Gordon num tom de voz suave. — Com certeza que o que diz é verdade, evidentemente. O Joe Velho Coiote morreu há trinta e três anos no troço de uma autoestrada, na zona oriental de Montana. — Olhou para cima. — Ah, ali estão eles.
Fui buscar o cartão magnético ao SUV.
— Eu vou abrir-lhes o portão — disse, e afastei-me em passo de corrida.
Aquilo que o velho insinuara estava errado. Se em algum momento me sentisse tentada a acreditar — a acreditar que o meu pai ainda podia estar vivo porque o Coiote morrera para renascer na manhã seguinte —, a única coisa que tinha de fazer era lembrar-me que vira o fantasma dele a dançar para mim. O meu pai estava morto. Estiquei-me e acelerei o passo, deixando que a velocidade me desanuviasse a cabeça.
Abri o portão a Jim, que de facto tinha Fred e Hank Owens sentados ao seu lado.
— Salte para trás — sugeriu Jim no momento em que a carrinha de caixa aberta entrou no parque de campismo. — Dou-lhe boleia até lá abaixo.
Já não andava na parte de trás de uma carrinha de caixa aberta desde que era criança, e constatei que continuava a ser divertido. Pulei para fora antes de ele ter parado, apenas para verificar se ainda era capaz de o fazer. Aterrei sobre os pés, mas deixei que o impulso me fizesse rolar para trás — impulso esse que me permitiu voltar a ficar sobre os pés. Era uma questão de timing. O meu pai de acolhimento ensinara-me a fazer isso depois de me ter apanhado a tentar imitá-lo.
«Ensiná-la a fazê-lo bem para que não parta o pescoço», rosnara enquanto a minha mãe de acolhimento protestava, «tem fortes probabilidades de ser menos fatal do que proibi-la de o fazer, porque isso não vai servir de nada».
O meu pai de acolhimento tinha sido espetacular.
Qual era o problema de um índio velho pensar que o meu pai era o Coiote? Na verdade, o meu pai tinha sido Bryan, o homem que me criara. Estivera presente quando precisara dele, até Evelyn ter morrido e ele não ter conseguido sobreviver à perda. Depois disso, tivera Bran.
Se Bran e o Coiote disputassem a reivindicação do estatuto de pai, apostaria o meu dinheiro em Bran. Esse pensamento devolveu-me o meu habitual aspeto alegre.
Sacudi o pó do traseiro e Adam revirou-me os olhos, parecendo-se imenso com a sua filha ao fazê-lo.
— Aposto que o Bran te dava uma desanca quando fazias esse género de coisas — disse, embora não parecesse particularmente chateado.
— Há muito tempo que não o fazia — admiti. — Ainda é fixe de ver?
Riu-se, esfregou-me o cabelo com os dedos e deu as boas-vindas aos nossos convidados.
Comemos hambúrgueres, batatas fritas e salada de macarrão. Conversámos sobre o tempo, o rio, a vida em Washington, a vida em Montana, a vida no exército, e desse modo ficámos com uma ideia do caráter das pessoas que poucas horas antes eram desconhecidas. O ato de comer tem sido um ritual entre aliados quase desde que a humanidade existe, e todos nós estávamos bem cientes do subtexto.
Gordon Seeker, apercebi-me, não falou muito. Simplesmente recostou-se numa cadeira de campismo e limitou-se a observar com um olhar ávido que me fez lembrar um pouco o diabo do rio. Apanhou-me a olhá-lo e sorriu-me como o Gato de Cheshire.
— Eu acho — disse finalmente Jim, enquanto despejava o seu prato de papel vazio no lixo — que nos devíamos apresentar novamente. É bom conhecermos os nossos aliados. Eu sou o Jim Alvin, da Nação Yakama. A minha mãe era Wishram, o meu pai Yakama, e possuo alguma magia da tribo. — Ocupou o seu lugar no banco da mesa de piquenique onde tínhamos comido e virou-se para os irmãos Owens.
— Fred Owens — disse Fred, apesar de ser o seu irmão quem estava sentado ao lado de Jim. — Membro aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. — Relanceou os olhos a Adam e sorriu. — Falcão-de-cauda-vermelha quando me é conveniente. Rancheiro.
— Hank Owens — disse o irmão. — Membro aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Rancheiro. Soldador. Falcão-de-cauda-vermelha quando me é conveniente. — Virou a cabeça na direção do irmão. Tratava-se, evidentemente, de uma piada de família, dado que o irmão sorriu. — Foi o Fred que não deixou que o Calvin desse conta do recado sozinho.
— Deixámos o Calvin… — Jim começou a explicar, porém Gordon interrompeu-o.
— … no hospital. Eu contei-lhes.
Sentiu-se uma pequena tensão entre Jim e Gordon que me fez lembrar quando dois Alfas estavam no mesmo espaço. Podiam ser aliados, até amigos, mas estavam à espera do mais pequeno sinal de fraqueza ou agressão.
— Adam Hauptman — disse o meu marido, que estava sentado na segunda das nossas cadeiras de campismo. — Alfa do Bando da Bacia do Columbia. Membro do exército, honrosamente dispensado em 1973. Parceiro e marido de Mercedes Thompson Hauptman. Nos meus tempos livres, sou gerente de uma firma de segurança.
Jim dirigiu-lhe um olhar de espanto. Eu própria fiquei surpreendida. É verdade que os lobisomens tinham vindo a público assumir a sua condição, mas o público não sabe tudo. E uma das coisas que Bran escondera do público era que os lobisomens eram imortais.
— Há muito tempo — observou Fred.
— Vietname — disse Hank. — Você foi comando no Vietname.
A partir do meu posto de vigia na mala térmica, observei o rosto de Adam. Oferecera-me a cadeira — mas eu detesto cadeiras de campismo. Dez minutos depois de estar sentada nelas, os meus pés começam a ficar adormecidos.
O que é que ele tinha em mente? Se Bran viesse a saber, não ia ficar minimamente agradado. No entanto, Adam tinha sempre uma razão para fazer o que fazia. Normalmente, eu descobria a razão cerca de cinco anos depois de o facto ocorrer. Parecia estar a vigiar Gordon. Talvez fosse algo tão simples como o reconhecimento de que todos nós iríamos partilhar segredos antes de isto chegar ao fim.
— Um período complicado — comentou Jim.
Adam apontou a sua garrafa de água a Jim e, em seguida, levantou-a na direção da aba do seu chapéu imaginário. Olhou para mim.
— Mercedes Thompson Hauptman — disse, obedecendo ao olhar que indicava que ele queria avançar rapidamente. — Mecânica de VWs. Caminhante coiote parceira de Adam Hauptman.
— Gordon Seeker — disse Gordon. — Mas os nomes índios mudam de tempos a tempos. Tive outros. Possuo algumas capacidades de cura, alguma magia, um pouco disto e daquilo. Quando era novo, era um caçador exímio, mas há já muito tempo que não sou novo. — Olhou Adam nos olhos. — Talvez ainda há mais tempo do que quando este aqui era tão novo como aparenta.
— Muito bem — disse Adam quando se tornou óbvio que o velho tinha dito tudo o que ele pretendia. — O Jim e o Calvin contaram-nos algumas coisas esta tarde. Nomeadamente que existe um monstro no rio que matou pelo menos uma pessoa, embora seja improvável que o registo se fique pela irmã do Benny. Permitam-me que vos diga algumas coisas que vocês não sabem, sendo que algumas delas poderão não ter absolutamente nada a ver com o problema que temos em mãos. — Falou-lhes do facto de as criaturas feéricas nos terem encaminhado para este local para passarmos a lua-de-mel, da profecia de Edythe, a Rapariga do Ioió, e das otterkin que tinham sido deslocadas para o Columbia.
Fred franziu o sobrolho e olhou para Jim.
— Eu bem lhe disse que aquelas lontras que vimos pareciam estranhas. As cabeças delas têm uma forma diferente.
— Eu vi-as — interveio Gordon numa voz que as destituía de qualquer importância. — Uma profecia não é algo muito sólido.
— Você já conheceu a Edythe? — perguntei numa voz interessada. — De estatura baixa. Normalmente aparenta ter dez anos.
Gordon ergueu as sobrancelhas, e achei que a resposta poderia ter sido afirmativa.
Sorri-lhe alegremente.
— As criaturas feéricas são enganadoras. Quanto mais frágeis e inofensivas parecem, maior a probabilidade de serem perigosas. A Edythe é provavelmente o mais assustador de todos os monstros. Não me sinto inclinada a fazer pouco caso do que ela disse. E não tenho a certeza que relegar as otterkin para a condição de inofensivas seja muito inteligente.
— Não andam a comer pessoas — observou Fred.
— Que seja do seu conhecimento — disse eu, ao mesmo tempo que Adam disse «Ainda».
Sorriu-me.
— Admito que elas não parecem fazer parte disto, mas não me agrada a ideia de elas estarem aqui. Elas estavam a observar a Mercy quando ela retirou o Benny da água.
— Tenho mais umas coisas a acrescentar — anunciei. E nesse preciso instante levantou-se algum vento e a irmã de Benny, Faith, sentou-se ao meu lado na beira da mala térmica. Olhei para os outros, para Fred, Hank e Gordon, que supostamente seriam como eu, à espera… Não sei. À espera de algum tipo de sinal de que também a tinham visto, creio. Mas ninguém se levantou de um salto para exclamar o nome da mulher morta, ou sequer pareceu vê-la. Nem mesmo Gordon Seeker.
— Ele quere-o — disse ela. Não estava a olhar para mim; estava a olhar para Hank.
— A quem? — perguntei.
— Ao Benny. — Suspirou. — Que estúpida. Não me devia ter inclinado sobre a água daquela maneira. Mas ele também foi estúpido. Eu sei nadar. Ele devia ter ficado no barco. Mas agora… é como o crocodilo do Peter Pan. Deu-lhe uma trinca e quer a refeição completa.
— Nós vamos mantê-lo em segurança — disse-lhe.
Estavam todos de olhos postos em nós — ou em mim, pelo menos. Adam levantara-se e tinha a mão no ar, impedindo que os outros interrompessem. Podia não ser importante — por vezes os fantasmas podem ser incrivelmente teimosos. Mas por vezes um ruído mais forte ou um movimento súbito fazem-nos desaparecer como coelhos.
— Não sei se conseguem mantê-lo em segurança — replicou tristemente. — Sabe, na história, todas as primeiras pessoas que o monstro do rio comeu regressaram à vida depois de ele ter morrido.
— Pensava que o Coiote o tinha deixado vivo…
Virou-se para mim, finalmente, e sorriu. Não parecia um sorriso no rosto de uma mulher morta. Tinha um sorriso bonito.
— Há várias versões dessa história. Quando era miúdo, o Calvin gostava sempre daquelas em que todos acabavam vivos.
Levantou-se e caminhou na direção da grelha, passou os dedos por ela e pressionou as brasas em baixo.
— Tenha cuidado — disse-me, de olhos postos nas brasas. — Quando marca alguém, esse alguém passa a pertencer-lhe. — Olhou novamente para Hank.
— Ele foi sempre o mais importante para mim, sabe? Desde a escola secundária. Mas ele nunca olhou para mim. — Voltou-se na minha direção, subitamente alarmada. — Não lhe diga isso. Ele não merece sentir-se culpado.
— Não o farei — assegurei-lhe.
— E não acredite no palavreado de índio misterioso do Jim, tão-pouco. Ele é doutorado em Psicologia e deu aulas na Universidade de Washington, em Seattle, até se ter reformado o ano passado.
Recolocou as mãos na grelha, mas desta vez manteve-as no metal quente, tocando-lhe com os dedos ao de leve como se a fascinasse poder fazer aquilo sem se queimar. A minha vontade era ir lá e puxar-lhe as mãos, mesmo sabendo que ela já não sentia dor.
Relanceou os olhos aos irmãos Owens.
— E o Fred treina cavalos de cutting17. Está a começar a ganhar nome. O Hank trabalha com ele na vertente empresarial e é também soldador para ajudar a equilibrar o orçamento.
— Porque é que me está a contar tudo isso? — perguntei.
— Para me lembrar — sussurrou. — Diga-lhes para não chamarem pelo meu nome. Não quero ficar aqui assim. Diga ao Benny que eu estou bem. Diga-lhe que apanhe uma flor por mim e a ponha na campa da nossa mãe, como se fosse eu a pô-la.
Nunca antes tinha deparado com um fantasma tão coerente. Normalmente, nem dão por mim. E os poucos que dão na verdade não parecem estar conscientes de que estão mortos.
— Eu digo-lhes — prometi, sentindo-me impotente para fazer alguma coisa que tornasse as coisas mais fáceis para quem quer que fosse.
Levantou a cabeça e olhou-me diretamente nos olhos — e nos dela consegui ver o lampejo de um verde violento, a cor dos olhos do diabo do rio.
— Certifique-se de que o faz.
E desapareceu.
Adam, fitando-me, baixou a mão quando o fitei.
— Obrigada — disse-lhe.
— Que diabo foi aquilo? — rosnou Hank. — Com quem é que estava a falar?
— Pensava que todos os caminhantes tinham a capacidade de ver os mortos — repliquei. — É por isso que os vampiros não gostam de nós.
— Vampiros? — disse Fred. — Os vampiros existem?
Jim riu-se.
— Os caminhantes não são todos iguais, Mercy. Como não são dois homens que vistam a mesma camisa na mesma altura.
Olhei para Gordon.
— Esse problema não me diz respeito — disse-me Gordon. — Além disso, não sou caminhante. O que é que você viu?
Calvin dissera que Gordon tinha a capacidade de assumir a forma de um animal, e não mentira. Mas a verdade é que, segundo as histórias de ameríndios que lera, havia mais pessoas capazes de se metamorfosear. Em vez de tentar descobrir o que ele era, respondi à sua pergunta.
— Ela não quis dizer o nome, mas será que me pode fazer uma descrição da irmã do Benny? Antes de vos transmitir o que ela me disse, gostaria de ter a certeza de que estou a falar acerca da pessoa certa.
— Não — interveio Jim friamente. — Você diz-nos como é que ela era fisicamente e nós dizemos-lhe se corresponde.
Ok. Não via problemas em fazê-lo.
— É um bocadinho mais baixa do que eu e tem músculos. Não músculos comuns, mas aqueles que se vê em quem tem um trabalho pesado ou pratica desporto. Tem uma cicatriz pequena mesmo à frente da orelha esquerda. — Coloquei o dedo no sítio onde vira a cicatriz.
— Ela tem uma página na Internet — disse Hank hostilmente. — A fotografia dela está lá.
— Isto — disse Adam abruptamente — assim não vai funcionar. Se não acreditam que a Mercy viu a irmã do Benny, nada do que disser vos vais convencer.
— Ela disse ao Calvin que uma mulher estava a segui-los no Lago Horsethief. — Jim esfregou a sola da bota na terra. — Ela disse-lhe que a mulher trazia vestida uma camisola azul-escura com duas araras nas costas antes de ele lhe ter dito que a irmã do Benny tinha estado com ele no barco. Além disso, não percebo o que é que ela teria a ganhar ao fingir que conseguiu ver a Fai… — gaguejou um pouco enquanto mudava as palavras. — A irmã do Benny.
— Ela adorava essa camisola — murmurou Hank. — Tinha comprado uma máquina de costura, uma que lhe permitisse fazer bordados complicados. Essa camisola foi a primeira coisa que ela fez nela.
— O Benny fê-la passar um mau bocado por causa dos malditos papagaios — disse Fred. — Cacatuas-brancas. — Riu-se e abanou a cabeça.
Ocorreu-me que talvez tivesse gostado de Faith se a tivesse conhecido enquanto estava viva.
— O que é que ela disse? — perguntou Adam.
— Disse que o monstro provou o Benny e quer comer o resto. Eu disse-lhe que o íamos manter em segurança, mas ela não ficou convencida disso. — Relanceei os olhos aos homens sentados no banco da mesa de piquenique. — Tirando isso, pouco disse. Mas enviou uma mensagem para o Benny. Quer que ele saiba que ela está bem e também quer que ele ponha uma flor na campa da mãe por ela.
Levantei a bainha das calças para mostrar a toda a gente a marca que tinha na perna. O sangue e o pus tinham desaparecido, mas ainda tinha uma crosta castanha a toda a volta. Senti uma ligeira comichão, mas não lhe toquei.
— A marca do rio, segundo as suas palavras — disse eu a Gordon. — O que é que isso significa?
Alçou uma bota escarlate sobre o joelho oposto e contraiu os lábios. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, ouviu-se o estalido agudo de uma pistola e, ao meu lado, Adam agitou-se, como que sacudido.
17 Evento equestre no qual cavalo e cavaleiro são avaliados pela sua capacidade de separar uma vaca da sua manada e mantê-la assim durante um determinado período de tempo. (N. do T.)
8
Hank empunhava a arma como se soubesse o que ia fazer com ela. Avancei na direção dele, mas, por muito rápida que fosse, tinha de percorrer quatro metros, e ele apenas tinha de premir o gatilho. No entanto, não fui a única a mexer-me — o seu irmão atingiu com um golpe a arma de Hank no preciso instante em que ele disparava o segundo tiro.
Fred agarrou a arma e apontou-a para o chão, onde Hank gastou o terceiro tiro.
— O que é que estás a fazer? Hank? Para.
Hank não disparou uma quarta vez porque agarrei no pau em que quase tropeçara e lhe desferi um golpe na nuca, fazendo-o cair redondo.
Se o tivesse matado, não me teria importado — e era bem possível que o tivesse feito, uma vez que o pau que agarrara era o bastão feérico que me vinha seguindo — não sei como — desde a primeira vez em que lhe tinha posto a vista em cima.
O facto de não ter pés e não estar vivo não era importante; era produto de magia feérica antiga, e, aparentemente, isso era suficiente para que me seguisse como um cão fiel. Embora fosse delicado e estreito, tinha uma ponteira de prata pesada. Foi quase como se tivesse batido na nuca de Hank com um tubo de chumbo.
Lugh nunca fez nada que não pudesse ser usado como uma arma, dissera-me o oakman18 momentos antes de o ter usado para matar um vampiro muito ruim. Lugh era um herói ancestral dos Tuatha de Danann, pesquisara posteriormente. Se o oakman tivesse razão acerca da origem do bastão, ela remontava a um período prévio ao nascimento de Cristo. O bastão podia, inclusive, ser mais antigo do que Bran.
Larguei o artefacto que já era antigo quando Colombo colocara os pés nas Bahamas, desfazendo-me dele como se fosse lixo, e regressei para junto do meu companheiro antes que mais alguém se mexesse.
Hank alvejara Adam.
Adam ainda nem sequer se tinha mexido. Mantivera-se curvado na maldita cadeira de campismo. Isso fez-me perceber que a coisa era má. Muito má. Conseguia sentir o cheiro do seu sangue.
Quando estendi os braços na direção de Adam, Gordon estava no lado oposto, endireitando o meu companheiro na cadeira com uma facilidade que nenhum velho jamais seria capaz de replicar. Adam tinha uma musculatura robusta e era pesado, mesmo na sua forma humana, e Gordon não teria metade do peso de Adam.
No entanto, isso não pareceu abrandá-lo.
Rasguei a t-shirt de Adam para poder ver os danos.
Tinha um buraco considerável no peito, de onde espreitava uma lasca de osso. A boa notícia era que o seu coração ainda estava a bater porque o seu sangue estava a pulsar. A má notícia era que não tinha nenhum buraco nas costas e havia demasiado sangue.
— A bala não o atravessou — murmurou Gordon.
— Já me dei conta — repliquei curtamente. — Tem de ser tirada o mais depressa possível. — Não dava para perceber se era prata ou chumbo, mas tinha de me preparar para o pior. Todos sabiam que Adam era um lobisomem, e o que as balas de prata fazem aos lobisomens era do conhecimento geral.
Corri em direção ao SUV, onde estava o kit de primeiros socorros super-bem-apetrechado-para-a-pior-das-urgências. Estava atrás do banco traseiro, distribuído por três mochilas. Uma delas continha um kit cirúrgico. Outra continha ligaduras de todos os tamanhos. A terceira continha várias pomadas e uma parafernália de coisas. Não parei para ver qual era qual, embora cada uma tivesse uma cor que servia de identificação. Peguei em todas elas e regressei para junto de Adam.
Larguei-as ao seu lado e ajoelhei-me à sua frente — enquanto Gordon usava uma lâmina preta muito pequena, mas com um aspeto medonho, para perfurar a pele, uma vez que à superfície o ferimento já tinha começado a fechar. Isso podia ser uma boa notícia; os ferimentos provocados pela prata tendiam a sarar de forma tão lenta como em qualquer um de nós.
— Segure nele — rosnou Gordon. — O Jim, o Fred… e o Hank vão ajudá-la. Ele não está morto. Venham cá. Se ele acordar, vamos precisar de todos vocês.
— Ele está acordado — disse-lhes. — Ele vai manter-se quieto. Provavelmente é melhor que eles se mantenham afastados. Ele vai sentir a presença deles e pode atacar… e nós os quatro não conseguimos segurá-lo se ele decidir fazê-lo.
Não sei se Fred ou Jim se tinham aproximado de nós quando Gordon os chamara, mas estavam bem longe quando olhei para eles depois de ter dito que era melhor manterem-se afastados. Por muito útil que fosse retirar-lhe a bala, a sua aparente inconsciência não era bom sinal. Encontrei uma explicação para ela quando lhe virei a cabeça e descobri um corte ensanguentado na sua têmpora — causado pela segunda bala.
Já estava a sarar, portanto pelo menos aquela bala era de chumbo. Ainda assim, se Hank tivesse atingido a testa de Adam com aquela bala, teria tido boas hipóteses de o matar. Estava a dever uma a Fred porque eu não teria sido suficientemente rápida.
Afaguei o rosto de Adam com os dedos, de modo a que ele pudesse sentir o meu cheiro e saber que eu estava a olhar por ele, após o que me virei para observar o que Gordon estava a fazer. Adam estava consciente; conseguia senti-lo. Mas depositava a sua confiança em mim para que o ajudasse enquanto se esforçava ao máximo por manter o seu corpo vivo. Mesmo que a primeira bala tivesse sido de chumbo, era necessário extraí-la, caso contrário Adam ficaria mais doente do que uma criança na noite de Halloween durante dias, até que apodrecesse.
Foi nessa altura que me apercebi de que a faca que Gordon estava a usar não era uma coisa toda elaborada, pintada de preto para ter um aspeto militar. Era uma faca de obsidiana. As facas de pedra, lembrei-me inconsequentemente a propósito da disciplina de Antropologia, eram simultaneamente mais afiadas e mais frágeis do que a maior parte das facas de aço. Mais importante para mim do que a estranheza da faca, era o facto de Gordon parecer saber o que estava a fazer.
— Já removeu muitas balas? — perguntei, apenas para me certificar. Vasculhei as mochilas até encontrar o kit cirúrgico, uma sonda e um fórceps.
Olhou para os instrumentos enquanto os segurava.
— Costumo fazer isto com os dedos — disse-me.
As infeções não afetavam os lobisomens — segundo Gordon, pelo menos.
— Uma sonda e um fórceps fazem menos estragos quando é preciso entrar tão fundo — disse-lhe firmemente. — Eu posso tratar disso, se não o quiser fazer.
Até àquela altura da minha vida, tinha evitado extrair balas de pessoas, e não tinha quaisquer ilusões de que seria boa nisso. Mas entre eu usar o fórceps e Gordon usar os dedos, a primeira opção seria melhor.
Dirigiu-me um sorriso desdentado e pegou na sonda.
— Tratando-se de um lobisomem, é preciso agir depressa — disse-lhe.
— Está a sarar muito depressa — rosnou, enfiando o instrumento no ferimento que reabrira com a pequena faca estranha. — São boas notícias, penso, desde que consigamos extrair a bala.
— Nos lobos dominantes, os ferimentos saram muito depressa — repliquei. — E mais dominante do que o Adam, é difícil encontrar. — Graças a Deus. Apesar do que dissera anteriormente, ele parecia saber o que estava a fazer. — Você já tinha usado uma sonda antes.
Passou a sonda para a mão esquerda e segurou o fórceps com a direita.
— Só umas cem ou duzentas vezes — disse, fechando os olhos. — Encontrei-a. Está na omoplata.
Uma bala de prata não achata como uma bala de chumbo. Se tivesse atravessado o corpo de Adam, teria deixado um buraco perfeito tanto na zona de entrada como na zona de saída. A bala que Gordon extraiu de Adam estava esmagada e, não havia dúvida, teria ressaltado no interior e rasgado músculos e órgãos. Mais doloroso, mas infinitamente menos letal.
No momento em que Gordon retirou a mão do corpo de Adam, sequei as mãos nas calças de ganga e saquei do telemóvel para ligar a Samuel.
— A quem é que está a telefonar? — perguntou Gordon.
— A um médico meu amigo — respondi. — E dele.
Uma mão envolveu o telemóvel e Adam disse roucamente:
— Não. Não sem antes sabermos o que se está a passar. — Endireitou as costas, usando os músculos do estômago e não os braços. Não o fez para impressionar; mexer o ombro ser-lhe-ia doloroso.
Olhou para Gordon.
— Obrigado pela cirurgia. Tive a sensação de que foi a extração mais rápida a que fui sujeito.
Gordon ergueu uma sobrancelha.
— Dá por si a dizer isso com frequência? Se sim, aconselho-o a adotar um estilo de vida diferente.
Adam sorriu, reconhecendo a pertinência da observação de Gordon, mas quando falou, fê-lo em relação a outro assunto:
— Ontem à noite disse qualquer coisa sobre a marca do rio, e sobre como a Mercy não seria uma boa serva. O que é que essa marca tem de especial? Foi o diabo do rio que a fez?
Estava com dores; conseguia sentir a sua brutal dimensão. Porém, não ia demonstrá-lo em público.
— A marca do rio — disse Gordon. Olhou na direção de Fred, que examinava a nuca de Hank. — Compreendo porque pergunta. Em tempos, existiu um sítio onde vivia um grupo de índios. «Não vá àquela povoação; eles estão marcados pelo rio», diziam as pessoas. «Se for lá, nunca mais regressará. Eles lançam-no ao rio para ser comido por ele.» Todas as pessoas daquela povoação tinham uma marca castanha nos corpos, e obedeciam a todas as vontades do rio faminto. Esqueci-me do resto da história.
— Examinem o Hank — disse Adam, a sua voz apenas um tudo-nada mais aspirada do que o normal. — Não me pareceu o tipo de pessoa que dispara primeiro para depois negociar. Até os malucos dos fuzileiros navais costumam ter uma razão para premir o gatilho.
Fred não contestou a repreensão, limitou-se a despir as calças de ganga e a t-shirt de Hank — e encontrou um ferimento gotejante, castanho-escuro, que atravessava as costas de Hank, um ferimento que tinha um aspeto idêntico ao da barriga da minha perna antes de Gordon e o seu unguento terem entrado em cena.
Levantei a bainha das calças.
— É parecido com o que eu tenho.
— Pode ter acontecido quando ele estava a vir em direção a terra no nosso barco ontem à noite — disse Jim. — Ele não disse nada em relação a ter-se magoado… Mas o Hank é assim. Os caminhantes coiotes são imunes aos efeitos?
Gordon rosnou.
— Esta caminhante coiote claramente é.
E quando Hank gemeu e se começou a mexer, Jim acrescentou:
— Tenho uma corda na carrinha. — E saiu disparado para a ir buscar.
— Não é boa ideia que o bando apareça aqui — disse-me Adam muito baixinho, explicando o porquê de não me ter deixado telefonar a Samuel, pensei. — Em primeiro lugar, os lobos não se dão bem com a água. Em segundo, imagina só o que esta coisa seria capaz de fazer se controlasse um bando de lobisomens.
— A magia do bando não conseguiria impedir isso? — perguntei. Se o diabo do rio conseguia controlar Hank, outro caminhante, talvez não tivesse sido a minha parte de caminhante que o impedira de me fazer o mesmo. Talvez tivesse sido o bando, ou até o meu vínculo com Adam.
Adam abanou a cabeça.
— Talvez. Mas não estou disposto a correr esse risco. Só se as coisas chegarem a um ponto de muito maior desespero.
— Você cura-se depressa — comentou Jim num tom neutro enquanto regressava com uma corda.
— Os lobisomens têm essa capacidade — disse eu, e lembrei-me que um dos efeitos secundários da cura rápida era uma necessidade de comer ainda maior do que a habitual. Adam precisava de comer carne, em grandes quantidades, e quanto mais crua, melhor. Estava a fazer uso do seu autocontrolo, o que não podia ser fácil estando o seu ferimento exposto a todos aqueles estranhos possivelmente hostis. Os lobos Alfa não podem ceder a esse tipo de fraqueza. Estava a esconder bem a sua dor, mas todos eles sabiam que ele fora alvejado e conseguiam ver o sangue.
— Vou buscar comida — disse-lhe.
— Não — retorquiu Adam, agarrando-me o braço antes que eu tivesse oportunidade de me afastar. — Ainda não. Primeiro vamos acabar esta reunião.
Adam não queria deixar transparecer mais nenhuma fraqueza àquelas pessoas. Conseguia compreender isso, todavia a opção não me deixava tranquila. Mas ele era o Alfa, e eu era a sua companheira. Discutiria com ele em privado… Ok, quem é que eu estava a enganar? Discutiria com ele em frente ao bando. Mas não em frente a estranhos. Pelo menos não com ele ferido.
Adam relanceou os olhos aos outros, que basicamente estavam a prender Hank com a corda de Jim. Gordon aproximara-se deles para os supervisionar.
Adam levantou a mão do braço que estava em condições de mexer e, em voz baixa, disse-me:
— Ajuda-me a pôr-me de pé.
Foi o que fiz, tentando não transparecer o esforço físico necessário para o levantar. Caminhou — de forma apenas um pouco hirta — até à mesa de piquenique, à qual encostou uma anca. Aparentemente, estava satisfeito com o trabalho que Fred estava a fazer, uma vez que não disse nada até Fred acabar de prender os membros do seu irmão.
É difícil atar uma pessoa de modo a que não consiga escapar. Quando tinha cerca de dez anos, eu e mais uma série de crianças em Aspen Creek, inspirados por uns filmes que tínhamos visto, passámos um mês inteiro a atarmo-nos uns aos outros nos intervalos das aulas usando cordas de saltar. Isto até ao dia em que Bran descobriu e pôs fim a isso. Provavelmente não se teria importado se não tivéssemos deixado Jem Goodnight atado ao baloiço depois de ter soado o toque. Sentíamos que tínhamos razões para fazer aquilo porque Jem nos dissera que nenhuma rapariga seria capaz de o atar sem que ele conseguisse escapar. «As raparigas», dissera, «não sabem dar nós.»
Tínhamos precisado de três intervalos até fazermos a coisa bem feita, mas depois de meia hora de volta daquilo, foi preciso que Bran usasse a sua faca para finalmente libertar Jem. Eu sabia dar nós, independentemente de ser rapariga. Bryan, que em tempos fora marinheiro em barcos grandes com velas, ensinara-me a fazer nós desde a primeira vez que apertei os atacadores dos meus sapatos.
O telemóvel de Adam tocou e ele olhou para o ecrã antes de atender. Fazendo uma careta, abriu-o e disse:
— Está tudo bem comigo, Darryl. Foi só um mal-entendido. — Por vezes, os vínculos do bando podiam ser uma maçada, como quando Adam tinha sido alvejado e não queria que o bando aparecesse.
— Estás ferido — disse Darryl, e creio que a única pessoa que não o ouviu foi Jim.
— É uma coisinha de nada.
— Pois a sensação que eu tive foi a de que levaste um tiro — replicou Darryl secamente. — Eu sei qual é a sensação de levar um tiro. Houve um mal-entendido na tua lua-de-mel que resultou num disparo contra ti? Nós conseguimos estar aí daqui a duas horas.
— Foi um mal-entendido — rosnou Adam, falando mais devagar, como se isso fizesse com que Darryl não prolongasse a conversa. — Deixa-te ficar onde estás. Se precisar de ti, telefono-te.
Fez-se uma pausa.
— Deixa-me falar com a Mercy.
— Quem é o Alfa? — A voz de Adam era uma ameaça em tom baixo.
— Tu — disse-lhe eu, após o que lhe tirei o telemóvel da mão. — Mas isto é a paga por teres obrigado o pobre do Darryl a tomar conta de mim enquanto estavas em Washington D.C. Ei, Darryl. Foi alvejado no ombro com uma calibre .38, chumbo. Neste momento, não sabemos exatamente o que está a acontecer, a não ser que, por hoje, a excitação acabou. Se precisarmos de ti, telefonamos-te. Por agora, a vossa vinda não me parece lá muito boa ideia.
— O chefe está bem?
— Mal-humorado. — Que era o equivalente para ferido, palavra que eu não ia dizer e cujo motivo Darryl haveria de compreender. Os lobos nunca admitem que estão muito feridos. — Mas está bem. Estamos em segurança e não precisamos de ajuda.
— Está bem. Vou manter as malas feitas para o caso de alguma coisa mudar.
— Como é que está a Jesse? — perguntei. — Tem andado a dar festas e a levar uma vida libertina? — Ter mudado para o assunto Jesse foi bom porque tanto Adam como Darryl relaxaram assim que Darryl respondeu.
— Pintou o cabelo de cor de laranja, e tem uns cordões vermelhos reluzentes pendurados — disse, soando moderadamente horrorizado e intrigado ao mesmo tempo. — Uma vez que ela faz isso quando o Adam está presente, achei que ele não me ia matar por eu permitir. Ela sabe que pintar o cabelo em excesso pode fazer com que ele fique verde?
Resfoleguei.
— O cabelo dela estava verde. Não reparaste?
— Esqueci-me — respondeu. — Talvez não ter filhos seja, afinal, uma boa ideia. Diz ao chefe que por aqui está tudo bem.
— Direi — disse-lhe. — Boa-noite.
Devolvi o telefone ao lobo que era meu companheiro.
— Eles vão ficar por lá.
Guardou o telemóvel sem dizer uma única palavra, mas consegui ver a covinha no seu rosto começar a desenhar-se. Jesse a desconcertar o gigante intelectual e físico que era o número dois de Adam era um pensamento bastante engraçado.
— Peço desculpa — disse Adam aos outros. — Era uma questão urgente, a menos que quisessem ser invadidos por lobisomens.
— Ele sabia que você estava ferido? — perguntou Fred.
— Ele pertence ao bando — disse-lhe Adam. Depois, talvez para evitar questões sobre coisas que Bran não queria que o público soubesse acerca dos lobisomens, apressou-se a continuar: — Eis o que nós precisamos de saber sobre o que quer que esteja no rio. Que danos é que esta criatura está a causar? Na verdade, nós não temos muitos dados para além das muitas histórias assustadoras sobre monstros. Enquanto único representante dos monstros aqui presente, é minha… obrigação garantir que estamos a olhar para isto de uma perspetiva equilibrada. Lamento que a irmã do Benny tenha morrido e que o Benny tenha ficado ferido. No entanto, as pessoas também ficam feridas por causa de — hesitou — ataques de ursos. Só porque uma coisa é perigosa, isso não faz dela diabólica. O que é que está a defender o seu território? É acertado dizermos que se trata apenas de uma besta? Quão inteligente é? Podemos negociar para mantermos as pessoas em segurança? Devemos matar o último, ou quase o último, da sua espécie porque matou uma mulher e feriu o irmão dela? Existe uma forma de salvar esta situação sem que haja mais mortes?
Quando se é lobisomem, pensei, é um pouco difícil apontar outro predador, e gritar «É um monstro assustador, matem-no! Matem-no!» Esfreguei a barriga da perna, apesar de não estar a sentir comichão naquele momento.
Os olhos de Hank estavam abertos, mas não disse nada nem olhou para ninguém. Em vez disso, fixou-se no rio com uma intensidade tal que estremeci.
— Tenho um amigo na equipa que faz a patrulha do rio — disse Fred. — Posso saber quantas mortes ocorreram no rio. — Olhou para Gordon. — Existe alguma história sobre a maneira de uma pessoa se ver livre desta marca?
Gordon abanou a cabeça.
— Não sei. Mas vou averiguar. — Olhou para Adam. — Não é algo com que possa negociar, Sr. Hauptman. É a Fome.
— Eu sou um lobisomem — replicou. — Há um século, as pessoas também terão dito o mesmo a meu respeito.
— Isto — disse Gordon — não é uma coisa tão benigna como um lobisomem ou um urso-pardo.
Fred, ajoelhado no chão ao lado do irmão preso por uma corda, franziu subitamente o sobrolho a Gordon.
— Pensava que tinha vindo com eles — indicou a caravana com a cabeça, portanto referia-se a Adam e a mim — até ter dito que era o avô do Calvin. Mas o pai do pai do Calvin Seeker está morto. Conheço o pai da mãe dele. Como é que você é o avô dele?
Gordon sorriu e a falha de dentes fê-lo parecer inofensivo na medida exata em que eu fiquei absolutamente certa de que não o era.
— Sou um homem velho — disse ele a Fred. — Como é que eu me hei de lembrar?
— Posso assegurar que o Gordon está a dizer a verdade — disse Jim, embora, a julgar pelo modo como o dissera, não parecesse muito certo disso. — E o Calvin também. Acho que devíamos levar o Hank ao hospital, onde podem examiná-lo. Não parece estar muito bem.
— Bati-lhe com bastante força — disse, quase apologeticamente, que era o máximo que podia fazer, considerando que ele alvejara Adam. — Só mais tarde é que me apercebi de que tinha pegado no meu bastão e não num pau qualquer.
— É compreensível — comentou Fred inesperadamente. — Se alguém me desse um tiro, a minha mulher pegava num taco de basebol.
— Pegou — disse Jim. — Eu lembro-me. Dessa vez também foi o Hank, não foi?
— Ele não tinha intenção — explicou Fred. — Foi no Iraque… Tempestade do Deserto. Assustei-o quando ele estava a fazer o serviço de sentinela e ele deu-me um tiro. Por causa disso, vim embora um mês mais cedo do que ele. Apareceu em minha casa para saber como é que eu estava, e a minha Molly pôs-se a correr atrás dele no pátio com o taco de basebol do meu filho até lhe ter acertado no traseiro. Ainda bem que era um taco de plástico, caso contrário o Hank não estaria a andar.
Foram-se embora. Jim, Fred e Hank seguiram na carrinha de caixa aberta de Jim, com Hank atado e colocado na posição mais confortável possível na parte traseira e o irmão a segurá-lo. Fui com eles até ao portão, para o abrir, e quando regressei, Adam encontrava-se sozinho. Estava de pé — creio que por temer não se conseguir voltar a levantar caso se sentasse.
— Comida — disse-lhe.
No entanto, abanou a cabeça.
— Não. Duche. Depois comida. E depois de comer, vou querer dormir. Não posso dormir em segurança se estiver coberto de sangue, correndo o risco de o meu lobo acordar sem mim e ficar em pânico.
Estava preocupado com a possibilidade de, ao adormecer, estar fraco ao ponto de não conseguir controlar o seu lobo. Para o lobo, bastaria o sangue para acordar defensivo e preparado para lutar. Ele tinha razão — a escuridão da noite ocultava muita coisa, mas não havia como negar que tanto ele como eu estávamos cobertos com o seu sangue.
— Ok — repliquei, para em seguida correr até ao interior da caravana e pegar em roupas e toalhas lavadas. Regressei ao exterior e obriguei-o a entrar no SUV porque: — Não te consigo levar em braços se caíres. — Não discutiu, o que demonstrava quão mal estava.
Tomámos um duche juntos nos chuveiros dos homens porque essa fora a direção em que ele seguira e, de qualquer modo, não havia mais ninguém no parque de campismo, portanto que importância tinham os chuveiros escolhidos? A casa de banho dos homens era em tons de castanho em vez de verde, mas tinha as mesmas cabines de duche enormes com cabeças de chuveiro grandes. No final do duche, Adam estava bastante curvado.
— Talvez devesse apenas ter passado uma toalha molhada pelo corpo e mudado de roupa — admitiu.
A marca no seu peito, onde Gordon abrira caminho para extrair a bala, era de um vermelho-escuro, furioso, mas sararia assim que os restantes danos causados pelo disparo também sarassem. A transformação em lobo, alimento e algum sono pô-lo-iam bem.
— Mercy — disse. — Eu vou ficar bem.
Controlei-me porque ele já tinha muito com que se preocupar sem que eu despoletasse a sua transformação em lobo.
— Desculpa. Eu sei que vais. — Rosnei um pouco, não de forma muito feroz, apenas o suficiente para ele saber que eu estava triste com a situação. — Não gosto que estejas ferido. Gosto ainda menos de saber que podia ter sido pior.
— É bom saber. — Levantou a cabeça contra o jato de água. — Vou tentar certificar-me de que te sentes sempre assim. A minha mãe costumava ameaçar dar um tiro ao meu pai.
Mal se aguentava em pé, e estava a gracejar.
Mordi-lhe o ombro.
— Consigo perceber o porquê da vontade dela. Vamos fazer o seguinte: se me enfureceres ao ponto de eu te apontar uma arma, faço mira para o meio dos teus olhos.
— Para que eu não sinta? — perguntou.
Mordi-o novamente, mas muito suavemente, quase só encostando os dentes.
— Não. Para que a bala faça ricochete na tua cabeça dura.
Riu-se.
— Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és, Mercy.
Se Hank tivesse carregado a arma com prata, podia nunca mais ter ouvido aquele riso.
Dois anos antes, para se ter uma bala de prata era preciso fazê-la — eu própria fizera algumas. Depois de os lobos terem vindo a público, de repente as pessoas podiam comprar balas de prata no Wal-Mart. Os polícias ficaram descontentes porque a prata é bastante eficaz para perfurar as proteções antibala por eles usadas, mas, sem legislação, qualquer pessoa que estivesse disposta a gastar trinta dólares numa bala podia adquiri-la. Hank sabia o que Adam era, e ainda assim a sua arma estava carregada com chumbo. A meu ver, isso indicava que ele não planeara disparar contra Adam — ou então estava tão liso que não tinha trinta dólares para gastar.
Ocorreu-me uma outra questão. Porque tinha ele disparado contra Adam em vez de Fred, Jim, Gordon ou eu própria?
Partindo do pressuposto de que estava sob o controlo do diabo do rio ou lá que raio era, talvez Hank ou o diabo do rio, ou ambos, tivessem chegado à conclusão de que o lobisomem era a maior ameaça. Conseguia compreender esse raciocínio, pelo menos no que a Fred e a mim dizia respeito. Quem é que se iria preocupar com um falcão e uma coiote quando havia um lobisomem na equação? A premonição da Rapariga do Ioió indicava que Adam era importante. Se calhar, o diabo do rio sabia o porquê.
Apoiei Adam na parede da cabine de duche e sequei-o o mais depressa que consegui. Depois, mantive-me de olhos postos nele enquanto fazia o mesmo a mim e me vestia.
— Podias transformar-te agora — sugeri.
Abanou a cabeça.
— Não sem antes comer. O lobo está agitado. Não te posso proteger, e o perigo está à solta. É muito fácil eu fazer-te mal neste estado.
Rosnei deselegantemente.
— Eu, frágil? Acho que te enganaste na mulher. Eu não quebro; eu ressalto. Além disso, somos companheiros, já te esqueceste? O teu lobo não me vai fazer mal.
— Nem sempre é assim — resmoneou enquanto o ajudava a vestir umas calças de fato de treino. — Pergunta ao Bran. Não vou correr esse risco.
— Como queiras — repliquei. — Vamos meter-te de novo no SUV.
— Camisa — insistiu.
— Ninguém vai ver essa marca e perceber que foste ferido. Seja como for, não está mais ninguém no parque.
— Camisa — insistiu.
Uma discussão iria consumir energia que nenhum de nós estava em condições de dispensar. Portanto, agarrei na camisa que trouxera comigo e ajudei-o a vesti-la. A camisa de seda italiana combinava de forma um pouco estranha com as calças de fato de treino, mas quem é que ia olhar?
Já na caravana, sentou-se à mesa e comeu com uma intensidade feroz e silenciosa. Dei-lhe os hambúrgueres que tinham sobrado e os bifes descongelados antes de tratar da comida congelada. Felizmente, havia um micro-ondas na Caravana dos Prodígios. Quando acabei de cortar a carne congelada, reparei na rapidez com que estava a comer e percebi que não seria suficiente.
De modo que fiz panquecas no pequeno fogão e, quando ele acabou de comer a carne congelada, tinha uma pilha delas à sua espera. Olhou para mim quando as coloquei à frente dele, mas comeu-as com a mesma rapidez com que devorara o resto da comida. Era melhor que fosse carne, mas calorias são calorias.
Terminou antes de eu despejar a última porção de massa na frigideira, afastando o prato para que eu percebesse.
— Ok — disse-lhe. — Transforma-te lá.
— Precisas de sair — replicou. — Isto vai doer. Dá-me cerca de vinte minutos.
Saí e pus-me à espera durante cinco minutos enquanto o nosso vínculo me inteirava exatamente do grau de dor que estava a sentir. Para os lobos, a transformação já era suficientemente má quando não estavam feridos. Cinco minutos foi o máximo que eu consegui aguentar. Não podia ajudá-lo, mas tão-pouco podia suportar deixá-lo sozinho.
— Vou voltar a entrar — disse-lhe, para que não pensasse que poderia ser um estranho. A única concessão que fiz em termos de segurança foi colocar-me na extremidade oposta da caravana até que o lobo ficasse sobre as quatro patas. Começou a libertar-se dos últimos efeitos físicos da transformação e parou abruptamente. Devia ter doído.
— Horas de ir dormir — disse-lhe com firmeza. — Precisas de ajuda para subir?
Espirrou-me, para em seguida subir os degraus até à cama coxeando apenas ligeiramente. Se eu não estivesse presente, provavelmente teria coxeado seriamente, mas o facto de ele se dar ao trabalho de o esconder de mim era um bom indicador de que iria ficar bem.
Trepei para a cama e coloquei-me ao seu lado, tocando-o delicadamente. Todavia, ele agitou-se com um suspiro de impaciência, de modo que não o toquei mais, receosa de o magoar. Passado um momento, puxei os cobertores sobre nós. Adam não precisava deles, mas eu sim. A noite estava quente. Também eu devia estar quente, especialmente enroscada ao lado da pelagem do lobo de Adam. Mas estava fria.
Esperei que adormecesse, após o que comecei a tremer.
Ele podia estar morto — se Fred tivesse sido um nadinha mais lento ou Hank um nadinha mais rápido.
Meu. Ele era meu, e nem mesmo a morte o ia tirar de mim — não se o pudesse evitar.
Tinha plena convicção de que estava a sonhar quando pulei para fora da cama, deixando Adam a dormir debaixo de uma pilha de cobertores. Parecia quente, com a língua exposta, portanto tirei os cobertores de cima dele.
Vesti as minhas roupas e obedeci à estranha compulsão que me puxou para fora da caravana em direção ao rio. Devia ser muito tarde, porque na autoestrada do outro lado do Rio Columbia só passavam um ou outro camião.
Na orla ocidental da zona de banhos do rio estava uma enorme formação rochosa. Trepei-a e sentei-me no topo, os meus pés a baloiçar na extremidade. Os dedos dos meus pés encontravam-se três metros acima do rio, que corria sombriamente em direção ao Pacífico.
Quando o homem apareceu e se sentou ao meu lado, não me assustei. Com o rosto ocultado por sombras, estendeu-me algo — uma erva. Peguei nela e enfiei a ponta na boca. Olhando para a silhueta do homem, percebi que também ele tinha uma erva na boca, e que a mastigava, a cabeça da semente balanceando-se vagarosamente no ar.
Apenas duas sementes de capim ao luar. Quase poderia ter sido romântico; em vez disso, era pacífico.
Devemos ter permanecido ali sentados em silêncio cúmplice durante uns dez minutos, até ele dizer:
— Não está a dormir, sabe?
Retirei a erva da boca e deixei-a cair no rio — ou pelo menos era isso que pretendia fazer. Uma rajada de vento atingiu-a, e, em vez de cair, voou até à margem do rio do lado da zona de banhos.
— Não devia sentir necessidade de gritar e fugir? — perguntei.
— Sente essa necessidade? — replicou num tom moderadamente interessado.
— Não. — Ponderei a situação. — No entanto, estou plenamente convencida de que provavelmente estou a sonhar. — Encolhi os ombros apologeticamente. — Apesar de ter afirmado que não estou.
Olhou para cima, na direção da meia-lua, e semicerrou os olhos, como se conseguisse ver nela algo que eu não conseguia.
— Presumo que pense assim porque estava a dormir quando a chamei até aqui. Não sabia se iria funcionar. Já não sou capaz de fazer muitas coisas que costumava fazer. Seja como for, não estou a mentir. Você está bem desperta.
A luz iluminou o rosto de um homem que tinha morrido havia mais de trinta anos. Um homem que fora um fantasma, dançando para mim em plena luz do dia. Era bem-parecido e jovem, com um ar despreocupado que era óbvio mesmo considerando que acabara de o conhecer.
— Você é o meu pai? — perguntei.
Abanou a cabeça num movimento enfatizado pela erva na sua boca.
— Não. As minhas desculpas. O seu pai era o Joe Velho Coiote. — Pronunciou a última palavra como se tivesse duas sílabas em vez de três. Coi-ot em vez de Coi-o-te. — Morreu num acidente de carro e numa confusão com dois vampiros. Eles não gostam particularmente de caminhantes, e gostavam ainda menos dele.
Julgava saber a justificação para isso até ao episódio desta noite, em que tinha sido a única a ver o fantasma. Se se consegue ver fantasmas em plena luz do dia, consegue-se descobrir onde os vampiros estão a dormir, independentemente da magia que usam para se esconder. Sempre atribuíra isso ao facto de ser caminhante, mas se os restantes caminhantes não tinham visto o fantasma de Faith, talvez houvesse algum sentido no que Gordon Seeker insinuara de forma tão clara.
— Ah, isso — disse ele, como se eu tivesse falado em voz alta. — Só porque consegue ver uma determinada coisa, isso não significa que tenha de a ver. Esperava que alguém que convive com lobisomens soubesse isso. Quer dizer, só um idiota olharia para um lobisomem e pensaria «cão». No entanto, é o que eles fazem.
— Isso é por causa da magia do bando — repliquei.
Assentiu com a cabeça.
— Em parte, sim. Mas ainda assim… Os caminhantes veem fantasmas, mas aqueles dois aprenderam a não ver os mortos há muito tempo, numa «galáxia muito distante». Um homem não pode combater numa guerra se conseguir ver os mortos e, ainda assim, manter a sanidade. Portanto fizeram uma escolha.
— Você viu A Guerra das Estrelas? — perguntei.
— O Joe viu — respondeu, como se isso fizesse sentido. — Adorou. Uma história de índios e cowboys onde os índios são os bons da fita e toda a gente luta com espadas.
— Índios e cowboys? — perguntei, enquanto meditava em torno da primeira parte da frase.
Rosnou.
— Pense nisso. O Bem versus o Mal. O adversário tem um armamento melhor e parece impossível de derrotar. Os europeus invasores. Os bons da fita são poucos, escassos heróis corajosos com uma misteriosa ligação à Força. Os Índios.
Nunca tinha pensado no assunto dessa forma, mas suponho que conseguia perceber porque é que alguns o fariam. Claro que as pessoas também diziam que a música «Puff the Magic Dragon» era sobre o consumo de drogas. Para mim, A Guerra das Estrelas era uma novela espacial e «Puff» uma canção para miúdos sobre o crescimento e o abandono dos sonhos.
— E os Ewoks? — perguntei. — Não devem ser eles os índios?
Dirigiu-me um sorriso amplo, o branco dos seus dentes afiados realçado pelo luar.
— Não. Os índios não são fofos e peludos. Os Ewoks foram um bom truque de marketing.
Inspirei o ar da noite e cheirei-o. O fantasma que tinha dançado para mim e depois se transformara em coiote.
— Porque é que dançou? Pensava que era um fantasma.
— O que você viu era um fantasma — respondeu. — Era o Joe. Ficou preocupado porque você estava a seguir em direção ao perigo. — Lançou-me um olhar sorridente. — Não que não tenha estado em perigo uma série de vezes desde que nasceu. Mas este caso é diferente porque, por alguma razão, fui chamado. As coisas em que eu estou implicado tendem a ser caóticas… E o caos pode ser fatal para os inocentes que estejam por perto.
— Eu não sou uma inocente que está por perto — disse-lhe.
— Mas ele é o seu pai. Tem o direito de se preocupar.
— Qual era o significado da dança? — perguntei.
— Não era um feitiço — explicou. — Às vezes, a dança é um feitiço: como a dança da chuva ou a dança dos fantasmas. O que você viu foi uma dança de celebração. Um índio poderia descrevê-la como «Vê, Apistotoki, eis a minha filha. Atenta nela. Atenta na sua graça e na sua beleza. Preserva esta minha criança.» — Dirigiu-me um olhar malicioso. — Ou poderia descrever a dança como «Vê, Deus, vê o que eu fiz. Bem fixe, não é? Podes olhar por ela?»
Para mim. Aquela dança tinha sido para mim.
— Conte-me — disse-lhe, refreando os sentimentos que estavam a revolver-se dentro de mim. Havia tanta coisa que eu precisava de saber, e esta poderia ser a minha única oportunidade. — Conte-me acerca do Joe Velho Coiote. — Algo de estranho se estava a passar. Uma espécie de ligação entre o meu pai e o Coiote, e não conseguia perceber exatamente o que era. As perguntas diretas não tinham funcionado muito bem; talvez conseguisse que ele desenvolvesse o assunto se o abordasse de forma indireta. E talvez viesse a saber mais sobre o meu pai do que a minha mãe fora capaz de me dizer.
O homem que se parecia com o meu pai roncou.
— Ele era um montador de touros.
Esperei, mas pareceu-me que era tudo o que ele tinha a dizer.
— Isso eu sei — incitei-o.
— Não era Blackfeet. Nem Blackfoot.
Essa informação era nova.
— Ele disse à minha mãe que era.
— Não. — Abanou a cabeça. — Tenho a certeza de que ele lhe disse que era de Browning. O resto foram conclusões dela.
— Ele era de Browning? — perguntei. O meu coração doía, e não tinha a certeza por quem. Pela minha mãe que era tão nova? Talvez.
— Eu sentia-me entediado e só — disse com uma timidez dissimulada. — Portanto talvez tenha decidido ser outro tipo durante uns tempos. Talvez. O Joe entrou num bar em Browning. Andou a dar umas voltas com uns tipos durante algum tempo, e depois entrou num rodeio. — Emitiu um ruído de agrado. — Um rodeio é o caos tornado comercial. Ele também adorava aquilo. Adorava os cheiros, adorava a dor depois de uma boa corrida, adorava lutar com os touros, sobretudo porque aqueles touros gostavam dos momentos em que ele estava em cima deles. Competiam a força deles com a dele. Eu era capaz de ficar montado neles horas, e no fim arriscar que me matassem. Mas o Joe era diferente. Às vezes ganhava ele; outras vezes ganhavam eles. Como aqueles que não precisam de aniquilar o adversário para conseguirem prestígio. Ele jogava segundo as regras, e eles adoravam-no por isso.
O Coiote tinha decidido ser o Joe Velho Coiote? Assim sendo, porque é que tinha dito que não era e falava do Joe Velho Coiote na terceira pessoa?
— Então o Joe nasceu em Browning — disse-lhe lentamente.
— Pode-se dizer que sim — concordou o Coiote. — O Joe costumava dizer que sim.
— O Joe era uma pessoa na qual você se tornou. — Disse-o como se tivesse a certeza, e ele fez que sim com a cabeça.
— Exatamente.
— Então você era o Joe Velho Coiote mas o Joe não era você.
— Mais ou menos. — O Coiote bateu com as mãos no solo ao de leve. — Não tenho muito talento para explicar coisas. Eu criei o Joe e depois vivi nele até à sua morte. Ele não era eu, e eu não era ele, mas vestimos a mesma pele durante algum tempo. Enquanto o Joe caminhou neste planeta, eu caminhei com ele, embora ele nunca tivesse sabido disso. Simplesmente havia coisas com as quais não se preocupava muito, como a sua infância. Quando ele morreu, eu renasci como eu próprio, e ele estava morto.
Talvez fosse por causa da noite, talvez fosse porque estava sentada ao luar ao lado do Coiote, mas de repente tudo começou, de certo modo, a fazer sentido. Tal como aquela espécie de inseto no filme Homens de Negro, o Coiote tinha vestido a pele de Joe. Mas, ao contrário da pele humana do inseto, a do Coiote tinha tido uma vida própria.
— O Joe era real?
O Coiote fez que sim com a cabeça.
— Tal como o fantasma dele, embora também seja eu.
Tomei a decisão de não questionar aquela observação. Tinha a sensação de estar a compreender, e um fantasma de uma pessoa real que na verdade não era uma pessoa deixar-me-ia novamente desorientada.
— Se ele nasceu em Browning — disse ao Coiote —, talvez isso faça dele um Blackfeet. Piegan. — De repente, percebi de onde vinha o nome de Joe, e isso fez-me abanar a cabeça. — Os Blackfeet contam histórias sobre o Velho Homem, não contam? Ele é o trapaceiro deles. Nessa parte do país, são os Crow e os Lakota que contam histórias do Coiote. Para os Blackfeet, o Velho Homem desempenha o papel do Coiote. Velho Homem e Coiote. Velho Coiote. Joe, porque era apenas mais um Joe.
O homem ao meu lado riu-se, um som suave e de agrado.
— Talvez isso faça dele um Blackfeet. Ele gostava de Browning. Sabem como se divertir, aqueles índios em Browning.
— E depois ele conheceu a minha mãe. — O meu pai era um constructo do tédio do Coiote. Ou solidão, talvez. Deveria ter-me feito sentir pior como pessoa, mas a verdade é que isso não aconteceu. O meu pai tinha sido sempre esta espécie de pessoa irreal para mim, uma fotografia a preto e branco e algumas histórias contadas pela minha mãe. Porém, vira-o dançar, ouvira ecos da sua voz na do Coiote.
O Coiote lançou a cabeça para trás e riu-se, e ouvi o coro de uivos de coiote no desfiladeiro, convocado pelo seu riso.
— Marjotie Thompson. Marji. Ela era qualquer coisa. — Havia na sua voz uma espécie de reverência. — Quem havia de dizer que uma rapariga daquelas podia ser tão rija sem ser dura? Se havia pessoa com capacidade para fazer com que o Joe assentasse, essa pessoa era a Marji. Pelo menos, ele achava que ela era essa pessoa.
— Mas os coiotes não se juntam para toda a vida, pois não? — Tentei manter a voz neutra.
— Ele tê-lo-ia feito — disse o Coiote. — Oh, se teria. Ele amava-a mesmo muito.
A sua voz, sincera e profunda, bateu-me com força. Tive de esfregar os olhos.
— Se ele tivesse sabido da existência dela mais cedo, não teria matado o ninho de vampiros em Billings — disse algum tempo depois. — Mas eles precisavam de ser mortos, e ele estava lá. O Joe sempre se viu como um herói, sabe… Não o tipo de herói que eu sou, mas tipo Luke Skywalker. Salvar a princesa, matar os vilões.
Olhou para baixo, na direção da água, e, como se se tratasse de uma nova descoberta, disse:
— Talvez seja daí. Sempre achei que se devia à Guerra das Estrelas em excesso, mas talvez fosse genético. — Após meditar por momentos, abanou a cabeça. — Não. Eu sei de onde vieram os genes dele. Acho que deve ter sido A Guerra das Estrelas.
— Voltando aos vampiros? — disse-lhe firmemente.
— Certo. Ele sabia que, ao aniquilar aquele ninho, os vampiros iriam atrás dele, mas não estava demasiado preocupado porque era só ele. E depois a Marji apareceu, e ele deixou de pensar no que quer que fosse. Especialmente nos vampiros. Isto até ter visto dois deles a falar com a Marji certa noite. Nessa altura voltou a pensar nos vampiros, e de que maneira. Permitiu que eles o vissem para os atrair e conduziu-os numa perseguição veloz. Estava a safar-se muito bem até ter rebentado um pneu.
Atirou a sua erva para longe com um gesto violento e a erva caiu no rio.
— Não sei se isso foi obra dos vampiros ou não. Mas a verdade é que o encontraram quando estava encurralado e mataram-no.
A história fez o meu coração doer, mas não de uma forma má. Mais como se se tratasse de um ferimento que acabasse de ser limpado com iodo e água oxigenada. Ardia imenso, mas achava que, no fim, poderia sarar melhor.
— Então quando o meu pai morreu, você ficou? — perguntei.
— Sim, sozinho — disse. Uma vez mais, ficámos em silêncio durante um bocado; talvez ambos estivéssemos a chorar a morte do Joe Velho Coiote.
O homem que se parecia com o meu pai interrompeu o silêncio.
— Ele não sabia que a sua mãe estava grávida de si.
— Eu sei. A minha mãe contou-me.
— Eu próprio só muito mais tarde soube da sua existência. Depois apareci para ver como estava. Parecia feliz, a correr com os lobos. Eles pareciam perplexos, que é o que se deve esperar quando um coiote brinca no meio de lobos. E aí fiquei a saber que você estava bem. — Olhou para mim. — Que foi o que o Charles Cornick me disse quando se apercebeu de que eu a estava a observar. Pôs-me com as orelhas a arder. — Os seus olhos sorriram apesar de o seu rosto estar absolutamente sério. — Assustador, aquele sujeito.
— Acho que concordo — disse-lhe honestamente.
Riu-se.
— Não para si. Ele é um homem bom. Só um homem mau precisa de temer um homem bom.
— Pois, pois — repliquei. — Vê-se bem que nunca foi apanhado pelo Charles a fazer uma coisa de que ele não gostasse.
Ficou novamente em silêncio.
— O que é que me pode dizer sobre a coisa que está no rio? — perguntei finalmente.
Produziu um som rude.
— Posso dizer-lhe que ela não é uma pobre criatura incompreendida. O Gordon tem razão. Ela é a fome, e não ficará satisfeita enquanto não consumir o mundo.
Ela. Isso respondia a várias coisas. Só havia uma criatura. Isso parecia-me menos difícil de resolver do que se se tratasse de uma chusma de monstros capazes de cortar uma mulher ao meio e obrigar um homem a disparar contra Adam.
— Quão grande é? — perguntei.
Olhou para mim e tocou com a língua na bochecha.
— Sabe de uma coisa? Aí está uma boa pergunta. Acho que devíamos descobrir.
E atirou-me ao rio.
18 Criatura feérica da mitologia galesa. Literalmente, «homem-carvalho». (N. do T.)
9
A água estava gelada e fechada sobre a minha cabeça, enclausurando-me no silêncio e na escuridão. Durante algum tempo, o choque da queda, do frio e da completa surpresa imobilizou-me os músculos, e não me consegui mexer. Depois os meus pés atingiram o leito do rio e, de um modo que não sei explicar, o movimento despertou todos os meus nervos para um estado de urgência violenta. Impulsionei o corpo para cima, emergindo à superfície e inspirando.
Conseguia ouvi-lo a rir-se.
Filho da puta. Ia matá-lo. Não me interessava se era o Coiote ou o filho de Satanás. Era um homem morto.
Comecei a nadar na direção da zona de banhos, apesar de isso significar contrariar a corrente. No entanto, ao longo de cerca de dois quilómetros no sentido da corrente, as margens do rio eram formadas por faces de penhascos, e eu não queria permanecer no rio tanto tempo: havia um monstro à solta algures por ali.
Uma criança que começa a dar os primeiros passos, colocada paralelamente a mim, na margem, teria avançado mais depressa do que eu. Era apenas uma nadadora sofrível, com força mas sem técnica. Era suficiente para contrariar a corrente fraca do Columbia, mas não muito.
Ao meu lado, duas cabeças de lontra emergiram à superfície, e rosnei-lhes. De certo modo, saber que eram criaturas feéricas fazia delas uma ameaça menor do que as verdadeiras lontras do rio, embora estivesse preparada para a possibilidade de o contrário ser verdade. No entanto, estava demasiado empenhada em fazer frente à corrente do rio para me preocupar em ajustar as minhas crenças de acordo com a realidade.
Desapareceram debaixo da água durante alguns minutos, até uma delas emergir novamente, avaliando calmamente a minha progressão lenta.
— Se fosse a si, começava a nadar mais depressa — observou o Coiote.
A sensação de fúria que me invadiu estimulou a intensidade das minhas braçadas, e finalmente contornei a curva, alcançando a zona onde a água era menos funda e mais calma. Nadei até a água me dar pela cintura e avancei para terra a caminhar. O Coiote entrou rio adentro até a água lhe dar pelos joelhos e estacou, olhando para mim.
— O que é que descobriu? — perguntou.
— Que você é um idiota — repliquei, a minha voz vibrando involuntariamente por causa do frio. — Que…
Algo me envolveu a cintura e puxou o meu corpo, fazendo-me cair e ficar novamente com a cabeça submersa. Debati-me, afundando os pés no leito do rio o mais que consegui, porém a coisa puxou-me lentamente para trás em direção à água mais profunda. Consegui trazer o rosto à superfície e arquejei. Assim que consegui encher os pulmões de oxigénio, gritei pelo nome de Adam num volume que teria feito jus a uma atriz de um filme de terror série B.
O Coiote agarrou-me pelos pulsos, e em seguida envolveu o meu torso com os braços. Começou a puxar-me na direção da margem, e os cordões à volta da minha cintura apertaram-se até eu deixar de respirar.
— Vamos lá ver o que apanhámos — murmurou sem fôlego ao meu ouvido. — Deve ser interessante.
Não ouvi Adam. Simplesmente estava ali, de repente, uma sombra de pelo e presas. Cravou os dentes em algo que se encontrava logo abaixo da superfície da água, e a força por ele exercida na coisa que me envolvia fez com que o Coiote e eu caíssemos para o interior da água. Os cordões que me apertavam soltaram-me, e depois o Coiote agarrou-me pelo braço e puxou-me até eu ficar de pé.
— Fuja — disse-me.
Porém, pus-me a olhar em volta, à procura de Adam. Não ia deixá-lo no rio com o monstro. O lobo deu um encontrão na minha anca, são e salvo, pelo que deixei que o Coiote me puxasse para fora do rio e desatei a correr com ele o mais depressa que conseguia margem acima, até à cumeeira íngreme que separava a zona de banhos do resto do parque de campismo. Adam seguia ao nosso ritmo. O Coiote correu mais algumas passadas largas na erva, após o que se virou.
O rio estava calmo e negro, a superfície escondendo o que quer que estivesse por baixo.
Ao meu lado, Adam soltou um rugido que teria feito jus a um urso-pardo. O Coiote juntou-se a ele, emitindo um ruído agudo que me feriu os ouvidos, o seu rosto exuberante e risonho.
Uma coisa mole e húmida rolou pela minha perna abaixo e caiu no meu pé descalço. Parecia um pedaço de uma mangueira de combate a incêndios frouxa, se essa mangueira de combate a incêndios fosse feita da mesma matéria usada para fazer gomas em forma de minhoca e estivesse coberta com uma pelagem curta e dourada, que reluzisse ao luar. Uma das extremidades estava toda denteada, no local onde Adam a cortara, e a outra estreitava, para depois alargar numa esfera aproximadamente do tamanho de uma bola de softball.
Uma outra coisa, que não era nem lobo nem coiote, bramiu como um touro enraivecido. E eis que o diabo do rio — a diaba do rio, a fazer fé nas palavras do Coiote — se revelou. Ergueu-se pouco a pouco, como a serpente de um encantador de serpentes. Embora o seu corpo se assemelhasse ao de uma cobra gigante, a impressão geral com que fiquei, tal como acontecera quando tinha estado a observar o petróglifo, foi a de que estava na presença de um dragão chinês. Um gigantesco, imponente e enfurecido dragão chinês.
A cabeça dela podia certamente ter inspirado o petróglifo. Era triangular, como a de uma raposa, com enormes olhos verdes. Em redor da cabeça, na base do crânio, como uma gola de cobras ou pétalas de uma flor, longos tentáculos contorciam-se e enroscavam-se como uma onda, não em perfeita sintonia, mas tão-pouco de forma independente.
No topo da cabeça tinha dois reluzentes cornos pretos, torcidos e enrolados para trás, como os de um carneiro selvagem. Vista de frente, parecia ter um par de orelhas.
O pleno impacto da sua coloração era atenuado pelo luar, e embora aqui e ali conseguisse ver um toque de verde ou dourado, parecia sobretudo prateada e preta.
Abriu a boca e soltou um segundo bramido zangado. Não mais abafado pela água, fez parecer o rugido de Adam diminuto, do mesmo modo que a sua corpulência nos fez parecer aos três diminutos. No entanto, não foi o som que me assustou.
A frente da sua boca estava repleta de dentes longos e afiados — à semelhança da do petróglifo. Dentes destinados a perfurar e prender as suas presas. Os dentes de trás eram igualmente terríveis. Não eram dentes comuns, mas sim enormes objetos em forma de dentes de serra. Dentes capazes de cortar o pé de um homem sem que ela disso se apercebesse até o engolir.
Lançou-se a nós, e a sua cabeça aterrou com um impacto que me fez cair novamente. Os tentáculos avançaram na nossa direção…
— A terra é minha — disse o Coiote. — Aqui não reinas. Nem agora, nem nunca. — Colocou-se entre nós e ela e, de repente, nas suas mãos apareceram facas longas, com dentes como os de uma serra. — Atreve-te a tentar. Atreve-te a tentar.
Com a cabeça na terra, lançou os tentáculos para trás e gritou-lhe, um som medonho e agudo, enquanto exibia os seus dentes afiados. Subitamente, voltou a enfiar a cabeça no rio num gesto mais rápido do que seria de esperar de uma criatura tão grande, e desapareceu na água que se agitou e arremessou enormes ondas contra a linha da costa.
O Coiote voltou-se para mim.
— Eis quão grande.
Abri a boca. Sentia frio e estava molhada, a região do corpo que a diaba do rio agarrara ardia-me — e não tinha nada a dizer. Esperou que eu encontrasse palavras para lhe dizer, depois encolheu os ombros e encaminhou-se para a cova que ela deixara no chão a cerca de cinco metros de nós.
— Cerca de dois metros de uma ponta à outra do maxilar — comentou. — Três metros desde o início da cabeça até à ponta do nariz. Mais ou menos.
Adam observou-o com as orelhas levantadas, depois farejou-me cuidadosamente. Satisfeito por eu não estar gravemente ferida, resmoneou-me.
— A ideia não foi minha — protestei. — Ele atirou-me ao rio.
O resmoneio transformou-se num bramido intenso, e Adam deu um passo na direção do Coiote, de cabeça baixa e exibindo os dentes cor de marfim de dimensão generosa. A minha resposta não tinha como intenção fazer com que Adam atacasse o Coiote. Não tinha tido possibilidade de dizer a Adam com quem estávamos a lidar, não que isso pudesse vir a fazer alguma diferença para ele. Agarrei Adam pelo pelo, na zona da nuca, num pedido mudo de refreio.
— Calma, lobo — disse o Coiote, fazendo com que «lobo» soasse a insulto. — Eu não teria deixado a criatura fazer-lhe mal.
— Ah, sim? — perguntei, desconfiada. — O que é que você podia ter feito se ela me tivesse apanhado um bocadinho antes?
— Alguma coisa — respondeu descontraidamente. — Repare em toda a informação que conseguimos reunir. Ei, viu aquelas lontras? Nunca tinha visto lontras como aquelas.
— São criaturas feéricas — repliquei.
Grunhiu.
— Colocar espécies fora do seu habitat natural sem saber o que se está a fazer nunca é boa ideia.
E parou de medir distâncias a passo, encaminhando-se para a água. Eu não teria sido capaz de me aproximar tanto do rio naquele momento, nem que disso dependesse a minha vida.
— Partindo do pressuposto — disse o Coiote — de que ela ataca como uma cobra, podemos estimar que ela atacou com metade da extensão do seu corpo. — Levantou um dedo como se para se antecipar a um protesto imaginário. — Sim, eu sei que um terço será provavelmente mais preciso, mas eu prefiro pecar por excesso de cautela. Por muito surpreendente que isso possa parecer a algumas pessoas.
Parou quando a água lhe dava pelos joelhos e contou novamente quando regressou ao nosso encontro.
— Isto não é bom — murmurou. — É maior do que eu me lembrava. Suponho que poderá ter crescido, ou a minha memória está a atraiçoar-me. — Contraiu os lábios e franziu o sobrolho à cova no chão.
— Dez metros desde o sítio onde parei até aqui — disse ele. — Isso significa vinte a trinta metros de comprimento. Bastante grande.
Os seus olhos percorreram o meu ser molhado e sujo de cima a baixo, parando no pedaço de mangueira de combate a incêndios aos meus pés.
— Ah! — disse, aproximando-se de mim em passada larga. — Ainda bem. Pensei que pudéssemos ter perdido isso no rio. — Agachou-se e pegou no pedaço da diaba do rio.
— Sinto que estou perdida num filme de animé — disse eu, enquanto o Coiote se levantava com o pedaço na mão. — Um dos que têm monstros com tentáculos. — A maior parte deles tinha a classificação m/18 e acabava com imensa gente morta.
O Coiote esfregou a coisa que segurava com os dedos, após o que levantou a minha t-shirt com uma das mãos, ignorando a rosnadela de Adam e o meu «Ei».
Claro que tinha duas marcas de carne danificada à volta da minha cintura. Tivera medo de olhar porque estes ferimentos eram deveras dolorosos. Pareciam queimaduras provocadas por ácido, pensei.
— Hmm — disse, deixando a minha t-shirt fria e molhada cair novamente sobre as queimaduras, o que não ajudou, embora o frio devesse ter funcionado como anestésico.
Segurou o tentáculo com ambas as mãos e ergueu-o, alternando a atenção entre mim e o tentáculo — e apercebi-me daquilo em que tinha reparado. O pedaço que segurava tinha cerca de cinquenta centímetros e envolvera a minha cintura duas vezes.
— Deve ser elástico. — Agarrou-o com os punhos cerrados e esticou-o até ficar com os dois braços completamente abertos. — Sim. É elástico, não há dúvida. Que mais precisamos de saber?
Retirou uma faca do bolso das calças de ganga — uma faca mais pequena e menos ameaçadora do que as que sacara diante do monstro.
— Evidentemente, os dentes de um lobisomem são suficientemente afiados para fazer estragos — murmurou. — Mas e o aço? — A lâmina ressaltou da coisa elástica e gomosa.
— Pegue — disse. — Segure esta ponta aqui no chão. — E agarrou a minha mão, fazendo-me ajoelhar para com o meu peso prender uma ponta do tentáculo enquanto ele o esticava. Com a tensão e o terreno sólido por baixo, conseguiu espetar a ponta da faca na carne.
— Ok. O aço não é uma boa arma — concluiu. — É bom saber.
A pequena faca foi substituída por uma das facas maiores e denteadas. Tal como a de Gordon, a faca era de obsidiana. Não era tão grande como tinha pensado, mas também não era pequena. Cortou a carne rija sem problema.
— Ah — pronunciou. — É inconveniente, porque estas coisas são uma chatice e partem. Mas pelo menos funcionam.
Olhou para mim.
— Como é que estão as suas mãos?
Olhou para baixo, na direção delas.
— Frias. Molhadas. Bem?
Grunhiu e levantou-se, enfiando o pedaço de tentáculo no cinto.
— Tal como eu pensava. O que quer que faça com que isso arda deixou de fazer efeito assim que o Adam lhe mordeu. Se assim não fosse, ele por esta altura estaria a sentir a ardência. Isso significa que se trata de magia e não de veneno ou ácido ou outra coisa qualquer. Ainda bem para si e para o Adam. Pior para nós, receio.
— Porquê? — Adam deixou-me usá-lo para me levantar. As suas orelhas estavam espetadas para trás, e mantivera os olhos cravados no Coiote de uma forma que me deixou um pouco nervosa.
— Porque eu consigo fazer isto. — O Coiote levantou a minha t-shirt e encostou uma mão ao meu estômago nu.
Um frio glacial emanou das suas mãos — e as queimaduras desapareceram, deixando apenas a minha tatuagem de uma pegada de animal. Curvou-se para ver bem a minha barriga e exibiu-me um sorriso rasgado.
— Coiote. Bela tatuagem.
— É a pegada de um lobo — disse-lhe friamente, baixando a t-shirt.
— Ainda zangada por causa do mergulho inesperado, não é? — disse, gemendo um pouco: um ruído que teria feito mais sentido vindo de uma garganta canina. — Tudo em nome da informação.
— Porque é que a componente mágica é má? — perguntei.
Olhou-me como se eu fosse uma idiota.
— Porque temos de matar um monstro com vinte a trinta metros de tamanho… e que usa magia.
Ocorreu-me um pensamento.
— É capaz de curar o Hank desta maneira?
Abanou a cabeça.
— Não. Ele não é um dos meus. Mas conheço alguém que é. Vamos precisar de ajuda nisto, meninos.
Contraiu os lábios e bateu com a ponta do pé no chão impacientemente.
— Já sei. Precisamos que o Jim Alvin e o comparsa dele, aquele miúdo Calvin, se encontrem connosco no Stonehenge amanhã à meia-noite. Digam-lhe para trazer o Hank. Eu digo-lhe o que precisa de fazer, mas não vai acreditar em mim. É triste que um feiticeiro acredite em lobisomens, fantasmas e vampiros e não acredite no Coiote, mas nos dias que correm as coisas são mesmo assim.
— Não tenho o número dele.
— Onde é que está o seu telemóvel?
— Na caravana. — Agarrou a minha mão e tirou uma caneta de feltro de um bolso vazio e nela escreveu um número de telefone.
— Aqui está. Ligue-lhe de manhã. Se não o fizer, ele vai pensar que eu fui só um sonho.
Deu-me uma palmadinha na cabeça, ignorando a rosnadela de Adam.
— Vá para a caravana e aqueça-se. — Agitou as sobrancelhas a Adam. — Aposto que sabe como aquecê-la, hem?
Adam tinha uns enormes dentes brancos e mostrou a maior parte deles ao Coiote.
O Coiote, em resposta, mostrou os seus.
— Força. Tente lá. Está fora do seu campeonato.
Toquei no focinho de Adam e franzi o sobrolho ao Coiote.
— Pare já de o picar, senão chamo a minha mãe.
O Coiote congelou, o seu rosto pôs-se inexpressivo, e quase me senti mal — mas acontece que ele ameaçara Adam. Passado um momento, inspirou fundo.
— Vemo-nos no Stonehenge — disse, afastando-se em seguida sem olhar para trás.
Tínhamos percorrido a quase totalidade do caminho de regresso à caravana quando vi o que Adam tinha feito.
— Uau — disse.
Um foguete não teria causado mais danos. A janela e o respetivo caixilho estavam desfeitos em pedaços, e parte do revestimento da caravana tinha sido torcida.
Pelo menos todos os vidros estavam no exterior.
— Tem cuidado para não pisares os estilhaços — disse-lhe, contornando a caravana em direção à entrada oposta para evitar que ele os pisasse. As minhas sapatilhas podiam estar molhadas, mas eram à prova de uns pedacinhos de vidro.
Já no interior da caravana, despi as roupas molhadas e enfiei-as no saco onde estavam as roupas ensanguentadas que usara anteriormente.
— Vou precisar de roupas — disse, remexendo a minha mala. Quando olhei para o lado, reparei que Adam dera início à transformação para regressar à sua forma humana, pelo que peguei em roupa interior lavada e numa t-shirt e lhe dei algum espaço.
Depois de estar vestida, encontrei uma toalha suficientemente grande para tapar o buraco deixado pela janela partida e prendi-a com adesivo que retirei dos kits de primeiros socorros, uma vez que não consegui encontrar fita-cola. Tenho sempre dois rolos de fita-cola em todos os meus carros. No entanto, o adesivo dos kits de primeiros socorros não era para mariquinhas. Era o tipo de coisa que, depois de colada à pele, precisava de WD-40 para ser retirada. Desejei que as pessoas que viessem a reparar aquilo conseguissem tirá-lo sem danificar ainda mais a caravana.
Se isto continuasse, pensei, reparando numa nódoa de sangue na alcatifa — que podia ter vindo de um sem-número de coisas nas últimas quarenta e oito horas —, era bem possível que tivéssemos de comprar uma caravana em breve. Enquanto estava de olhos cravados na mancha, Adam falou.
— Podias ter morrido. — A sua voz estava enrouquecida em virtude da transformação.
— Tal como tu, quando o Hank te alvejou — repliquei, tentando não parecer defensiva, considerando que ele não tinha gritado comigo. Todavia, Adam não era o único que tinha de aprender a não ficar zangado com uma coisa que não tinha acontecido.
Ainda não tinha assumido completamente a forma humana. Ajoelhou-se no chão alcatifado no lado oposto da caravana, de cabeça inclinada enquanto esperava que a transformação terminasse.
Mesmo depois de ter terminado, permaneceu ali, de costas voltadas para mim.
— Eu não posso… — começou, depois tentou novamente. — Quando te ouvi gritar, pensei que já não ia a tempo.
— Mas foste — disse-lhe em voz baixa. — Foste e eu estou bem. Quando levaste um tiro, teria matado o homem que te tivesse tirado a vida sem pensar duas vezes. Nem mesmo o facto de saber que a culpa não era dele me teria feito sentir mal em relação a isso. — Respirei fundo. — E quando percebi que ias ficar bem, quis gritar contigo por não te teres desviado mais depressa, por não seres invencível.
— Que diabo estavas tu a fazer naquele rio? — Continuava sem olhar para mim, e a sua voz estava ainda mais fraca.
— A tentar sair dele o mais depressa que conseguia — assegurei-o de forma categórica. Conseguia sentir a emoção que o ocupava, um grande emaranhado que não era capaz de decifrar, a não ser o seu poder atávico. — Adam, não posso prometer que não me venha a meter em sarilhos. Consegui isso durante a maior parte da minha vida, mas estes últimos anos serviram para contrabalançar, e de que maneira, essa paz. Os problemas parecem perseguir-me, à espera de me atingirem com um desmonta-pneus. Mas eu não sou estúpida.
Acenou com a cabeça.
— Ok. Ok. Consigo lidar bem com a parte de não seres estúpida — replicou, mas ainda sem se voltar. E depois, em voz baixa, acrescentou: — Ou pelo menos assim espero.
Passado um momento, continuou:
— Não estou a conseguir acompanhar grande parte disto. Aquele era o Coiote? O Coiote?
— Foi o que ele disse, e sinto-me inclinada a acreditar nele. — Fiz uma pausa. — Também parece que ele é… ou uma parte dele foi… meu pai. É complicado. Percebi grande parte da explicação, mas para isso tive de pôr de parte o raciocínio lógico.
Adam riu-se. Não se tratou de uma grande gargalhada, mas foi real.
— Aposto que sim.
Adam estava a tentar libertar-se da raiva do lobo. Tentei encontrar algo para dizer que não me ferisse e não o enfurecesse.
— Acho que o facto de o Coiote se ter feito passar por humano é a razão pela qual eu sou uma caminhante, embora a minha mãe não seja índia — disse-lhe.
— O teu pai não está morto — replicou. — A tua mãe vai…
— Sim — concordei, aclarando a garganta e tentando soar descontraída. O meu pai não estava morto… e estava. Será que algum dia tive sequer um pai? O melhor era pensar na minha mãe.
— Por muito que sinta este forte impulso de me vingar da minha mãe por ter orquestrado o nosso casamento sem me consultar, não lhe posso fazer isso — disse, olhando para os meus pés descalços. Tinham estado dentro das sapatilhas molhadas o tempo suficiente para ficarem enrugados e adquirirem a cor de um cadáver. — Ela amava mesmo muito o Joe Velho Coiote e… o Curt é maravilhoso. Mas o Joe, ele salvou-a, ele estimou-a.
Pensei na voz do Coiote enquanto falava da minha mãe, e acrescentei:
— Não estou certa de que o Curt pudesse competir com o homem que ela recorda… Talvez nem mesmo o Joe pudesse. E o Joe está morto, mesmo morto. — Aclarei a garganta. — Ele na verdade não era o Coiote, apenas uma pele que o Coiote usou durante algum tempo. Real para ele próprio e para todos à sua volta, mas no final de contas era um constructo, e o Coiote… A minha mãe ia acabar por descobrir isso. Na altura em que isso acontecesse, podia não existir um Curt.
Adam levantou-se e caminhou na minha direção. Envolveu-me com ambos os braços. Não disse uma única palavra, limitou-se a abraçar-me.
— A minha vida costumava ser normal — disse ao ombro dele. — Levantava-me, ia trabalhar, reparava uns carros, pagava algumas contas, e ninguém tentava matar-me. O meu pai estava morto; a minha mãe estava a uma distância de seis horas de carro. Até conseguia fazer com que essa viagem durasse oito ou nove horas se me aplicasse nisso.
— Discutias com o teu vizinho de trás — disse Adam numa voz muito suave.
— E olhava para ele quando ele estava distraído — acrescentei. — Porque, de vez em quando, especialmente depois de uma caçada em noite de Lua cheia, ele se esquecia de que eu consigo ver na escuridão e andava nu no jardim das traseiras.
Riu-se silenciosamente.
— Eu nunca me esqueci de que tu consegues ver na escuridão — admitiu.
— Ah. — Pensei naquilo durante algum tempo. — Isso é muito bom. Não está à altura da erosão lenta do meu Rabbit, mas mereces pontos por isso.
Adam era uma pessoa metódica e arrumada, o tipo de homem que entra numa sala e endireita os quadros. Durante anos, usei o carro todo podre que guardo no meu pátio traseiro para me vingar de ordens despóticas a que tinha de obedecer. Tinha de obedecer não apenas porque eram despóticas, mas porque eram inteligentes. Quando me sentia particularmente irritada, removia pneus — nunca os quatro — e deixava a mala ou uma das portas aberta, só para o arreliar.
Ele, evidentemente, andara nu de um lado para o outro para me atingir. Pensei também nisso durante algum tempo.
— Obrigada pelos anos de divertimento — disse-lhe.
— Ora essa — replicou com uma voz séria. — Agora que estamos casados, vais finalmente fazer alguma coisa em relação a esse carro? Como rebocá-lo dali para fora ou pô-lo nalgum sítio fora da vista?
Respirei fundo — e os meus pulmões pareciam estar a funcionar na perfeição, agora que o terrível aperto no estômago causado pelo meu-pai-que-não-era-o-meu-pai tinha desaparecido.
— Vou pensar nisso — disse-lhe. — Talvez devesses pôr isso na tua Lista de Coisas Que Quero No Natal.
— Estás bem, agora? — perguntou.
— Sim, estou bem.
Apertou os braços à minha volta e levantou-me no ar.
— Mercy? — rosnou-me ao ouvido.
Coloquei as pernas à volta da sua cintura.
— Sim — disse-lhe. — Eu também.
Adam podia ter morrido a noite passada. Eu podia ter morrido há vinte minutos. Não estava disposta a desperdiçar um minuto que fosse.
Num dado momento da noite, beijou a minha tatuagem e riu-se.
— Disseste mesmo ao Coiote que isto era a pegada de um lobo?
— Para ti, é uma pegada de coiote — disse firmemente. — Para ele, é uma pegada de lobo. Só eu e quem me tatuou é que sabemos ao certo o que é.
Acordei de manhã com o som do estômago de Adam a roncar debaixo da minha orelha.
— Desculpa — disse-me. — Demasiadas transformações sem comida suficiente.
Dei uma palmadinha na sua barriga dura e beijei-a.
— Pobrezinha — disse à barriga. — O Adam não te trata bem? Não te preocupes. Eu alimento-te.
A minha cabeça ressaltou quando Adam se riu.
— Vamos lá procurar um sítio para tomar o pequeno-almoço e comprar uns artigos de mercearia. — E depois provou que mesmo quando estava distraído, me ouvia. — E umas roupas para ti.
Enquanto me estava a vestir, reparei no número escrito na palma da minha mão e lembrei-me que tinha de fazer um telefonema.
— Sim? — atendeu Jim com uma voz cansada.
— O Coiote disse-me para lhe telefonar. Disse que se não o fizesse, você não ia acreditar que ele era real.
O homem do outro lado nem sequer respirava.
Adam dirigiu-me um sorriso rasgado enquanto abotoava a camisa.
— Como é que está o seu marido? — perguntou Jim educadamente.
— Está bem. — Até a marca vermelha tinha desaparecido. A rapidez com que um ferimento sarava variava de lobo para lobo e de ferimento para ferimento. Enquanto Alfa, Adam tendia a curar-se ainda mais depressa do que a maior parte dos lobos. Contava que isso mudasse dado que estávamos tão longe do bando, mas claramente não acontecera assim.
— Como é que estão a cabeça do Hank e o pé do Benny? — perguntei.
— O Hank está bem. No momento em que você deixou de estar por perto, pareceu recuperar um bocado. Apesar de ter sofrido um traumatismo craniano, não é dos graves. — Aclarou a garganta. — O Fred disse ao médico que o Hank tinha caído. O médico suspeitou que tivesse sido um golpe com um tubo ou um desmonta-pneus, mas o Hank também lhe disse que tinha sido uma queda. O Fred está de olho nele. Ao Benny administraram tranquilizantes desde que se tentou levantar e sair pela segunda vez. Parece bastante bem.
— Então encontramo-nos consigo no Stonehenge? O Coiote pareceu-me bastante certo de que era possível fazer alguma coisa pelo Hank.
— Fala no encontro com o Coiote de forma muito descontraída — disse. — Talvez tenha sido apenas um sonho.
— Você é o feiticeiro — repliquei. — Devia ser mais esperto do que isso… e ser descontraído, também. — Talvez estas palavras não fossem justas. — Eventualmente, pelo menos. Sou casada com um lobisomem e já conheci a Baba Yaga. Pelo menos o Coiote não anda a voar de um lado para o outro num almofariz gigante.
— A Baba Yaga? Não. Não quero saber. — Jim suspirou. — Talvez devesse voltar a dar aulas sobre pessoas loucas em vez de ser uma. Sim. Irei ter consigo e com o seu marido ao Stonehenge à meia-noite. O monumento costuma fechar ao anoitecer, mas eu tenho alguns contactos. As cerimónias sagradas índias normalmente funcionam, mas tenho mais uns truques na manga se precisar deles.
Adam não gostava do Wal-Mart.
— Há uma loja de departamento em The Dalles — disse Adam com um toque de severidade enquanto atravessávamos as portas para o interior do edifício de aspeto semelhante ao de um armazém.
— Ainda lhes chamam lojas de departamento? — perguntei-me em voz alta, descartando o assunto em seguida. — Não importa. O Wal-Mart é o Sítio das Compras Felizes para os financeiramente incapacitados. E para aqueles que estragam roupa diariamente. Não me importo de dar cabo de t-shirts de cinco dólares. E destruir calças de ganga de vinte dólares é menos doloroso do que destruir calças de ganga de oitenta dólares.
Rosnou e cravei os olhos nele.
As luzes brilhantes em cima das nossas cabeças tremeluziram, conferindo à sua pele um tom ligeiramente esverdeado. Isso era por culpa das lâmpadas foleiras, porém a tensão no seu pescoço e a expressão no seu rosto tinham outra explicação. Demasiados estranhos, demasiados cheiros, demasiados sons. Num sítio como o Wal-Mart, uma pessoa paranoica — ou um lobo Alfa — poderia sentir que não tinha como garantir que ninguém o atacasse.
— Ei — disse-lhe, parando. — E se eu fizer compras aqui e tu fores até à parte da mercearia comprar comida? Assim posso fazer compras à vontade e tu podes vir buscar-me daqui a quarenta e cinco minutos.
Abanou a cabeça.
— Não te vou deixar aqui sozinha.
— Aqui, a única coisa que me quer matar é o rio — repliquei, tentando falar baixo. No entanto, a mulher que passou por nós, empurrando um carrinho, lançou-nos um olhar de estranheza. — Sempre fiz compras no Wal-Mart e nunca fui atacada. — Semicerrei-lhe os olhos, embora os mantivesse concentrados no seu queixo. — Desde que não sejam demónios, seres feéricos ou monstros marinhos, sei tomar conta de mim. Não sou indefesa. — E, de repente, tornou-se muito claro o quanto era importante ele não me tratar como se eu fosse uma pateta qualquer que precisasse de ser protegida a todo o momento, alguém que ficasse quieta à espera de ser salva.
Adam percebeu isso na minha cara, creio, porque respirou fundo e olhou em volta.
— Ok. Ok.
Pus-me em bicos de pés e beijei-lhe a bochecha.
— Obrigada.
Retribuiu-me o beijo, mas não na bochecha. Quando tinha recuperado o suficiente para processar informação, ele tinha saído porta fora e toda a gente ali por perto estava especada a olhar para mim.
Corei.
— Casámo-nos há pouco tempo — anunciei, após o que me senti ainda mais estúpida, pelo que me apressei a desaparecer por entre os corredores.
O Wal-Mart em Hood River era mais pequeno do que qualquer um dos três em Tri-Cidades. Mas tinha calças de ganga e t-shirts, e isso era a única coisa que me interessava.
Agarrei em quatro t-shirts de cor escura e três pares de calças de ganga e dirigi-me para as cabines de prova. Não precisava de experimentar as t-shirts, mas nunca compro calças de ganga sem antes as vestir. Não interessa qual o tamanho que está na etiqueta — têm cortes diferentes umas das outras.
A senhora que trabalhava nas cabines de prova lançou-me um olhar de tédio e entregou-me um «6» e um «1» de plástico. Pelos vistos, não tinham o «7».
Além de mim, as únicas pessoas nas cabines eram uma mãe atormentada e a respetiva filha adolescente, que discutiam sobre quão apertadas estavam as calças de ganga da filha. Estavam na área mais ampla, no centro de dois renques de cabines, diante do espelho grande.
— Estão bem, mãe — disse a rapariga no modo arrastado e sofrido usado pelas adolescentes vitimizadas em toda a parte, provavelmente desde o princípio dos tempos.
— Se te sentares, o fundilho vai rasgar, tal como aconteceu à tua tia Sherry quando andávamos na escola secundária. Ela nunca mais ultrapassou esse episódio.
— A tia Sherry é uma… Bem, o que eu quero dizer é que não sou a tia Sherry. Estas calças são sobretudo de licra, mãe. São feitas para ficarem justas. Vê.
Pus-me de lado para passar pela rapariga, que se estava a curvar com a ajuda dos joelhos.
Encontrei uma cabine desocupada e depois deixei de lhes prestar atenção. Em relação às pessoas normais, não sei, mas se eu quisesse, poderia ter escutado todas as conversas de toda a gente na loja. Desde muito cedo me vira obrigada a aprender a ignorá-las, sob pena de dar em doida. Adam prestava atenção a todo aquele barulho porque se preocupava com a segurança, mas eu não estava preocupada ao ponto de suportar o desconforto.
O primeiro par de calças de ganga tinha uma intrigante protuberância a meio da minha coxa, na perna esquerda. Tentei virar-me para ver se era imaginação minha, porém a protuberância permaneceu no mesmo sítio.
A adolescente e a sua mãe tinham abandonado as cabines de prova quando saí para me ver no espelho maior, portanto tinha o espaço todo para mim. A menos que me tivesse aparecido um inchaço misterioso na parte lateral da coxa, aquelas calças de ganga tinham um problema.
Regressei à cabine e despi-as. Depois olhei-me no espelho pequeno para me certificar de que não tinha sofrido uma mutação súbita. Para meu alívio, sem as calças de ganga, as minhas coxas pareciam iguais. A marca do rio ainda estava inscrita em redor da barriga da minha perna — não me podia esquecer de perguntar ao Coiote se também podia fazer com que esta desaparecesse.
O segundo par serviu melhor, sem protuberâncias estranhas, e o meu rabo não parecia maior do que devia — porém tinha bolsos falsos à frente. Eu uso os meus bolsos. As calças de ganga sem bolsos são apenas ligeiramente menos irritantes do que as cuecas fio dental.
O terceiro par não me serviu tão bem como o segundo, mas tinha bolsos funcionais. Conseguia viver com estas calças. Se me incomodassem em demasia, usá-las-ia no trabalho até ficarem rasgadas e sujas ao ponto de não me sentir mal por deitá-las fora.
Restavam-me quinze minutos para pagar e sair. Pendurei as rejeitadas e vesti as minhas próprias calças. Precisamente na altura em que as abotoava, algo caiu sobre os meus ombros, fazendo-me tombar sobre os joelhos. Vislumbrei uma lâmina no espelho e, enquanto caía, agarrei a mão que a segurava.
Lancei a cabeça para trás com força e estiquei a mão para a frente ao mesmo tempo — sentindo uma parte do corpo que também era dura. Um queixo, pensei, embora não tivesse a certeza. O queixo dela, porque fora o corpo de uma mulher a atingir-me. Bati com o pulso dela no banco de madeira que se estendia ao longo da parede de trás e a faca com a lâmina de latão caiu-lhe da mão.
Larguei-a, agarrei a faca e atirei-a de volta para o buraco no teto de onde a mulher surgira: não queria ser apanhada com uma faca no Wal-Mart. Eu era a mulher do Alfa do Bando da Bacia do Columbia — luta com facas não era uma atividade aceitável. Se ela tentasse voltar a subir para ir buscá-la, utilizaria esse tempo para correr até à loja principal, onde as câmaras me podiam apanhar a defender-me de uma inimiga armada.
— Deixa-a em paz — disse ela. — Quem encontra passa a ser o proprietário. Ela pertence-nos.
A diaba do rio?, pensei, porém não tive possibilidade de lhe perguntar.
Ignorou a faca e atirou-se a mim. Aproveitei o impulso dela para me pôr de pé e deixar-me ir até à zona mais ampla entre as cabines de prova. O espelho grande permitiu-me ver o seu rosto — era a mulher estranha que estivera de olhos cravados em mim e Adam dois dias antes, no restaurante. Eu tinha razão. Ela era feérica — mais especificamente, uma criatura feérica aquática, porque a isso cheirava. Era uma das otterkin, de certeza.
Também lutava como uma lontra. Aproximando-se muito e de forma rápida e furiosa, tentando lançar-se à minha garganta com as unhas e os dentes. Felizmente para mim, não estávamos na água, e ela não era uma lontra mas uma criatura feérica — embora cheirasse a ambas.
O glamour nunca fez sentido para mim. É um tipo de magia que os seres feéricos usam para mudar a sua aparência. Segundo Zee, a capacidade de usar o glamour é o que faz de um ser feérico um ser feérico, em vez de qualquer outra coisa que use magia. O glamour é uma ilusão — mas não o é. Porque com o glamour, uma lontra de dez quilos é uma mulher de sessenta e cinco quilos.
Táticas que funcionam muito bem com uma lontra não funcionam tão bem com um ser humano, nem mesmo um ser humano com uma faca — particularmente sendo eu cinturão castanho em karaté. Eu não era indefesa. O pensamento de Adam nunca mais me deixar sair sem um protetor caso eu me magoasse fez-me sentir determinada a ganhar a luta.
Nos poucos minutos que lutámos, acabei com uma série de mazelas — incluindo aquilo que viria a ser um belo olho pisado resultante de eu ter ido contra o puxador de uma porta — um lábio cortado e um nariz a sangrar. Por outro lado, eu parti o nariz dela, e enquanto se agarrava a ele, desferi-lhe um pontapé certeiro e violento nas costelas. Se com esse golpe não lhe tivesse partido uma costela, pelo menos teria rachado uma ou duas, o que em princípio a abrandaria um pouco.
Ouvi passos atrás de mim e o rosto ruborescido da anteriormente entediada senhora das cabines de prova apareceu. Ao ver-nos, disse:
— O que é que se passa aqui?
A mulher otterkin gritou — não de pavor, mas de raiva. Em seguida, transformou-se numa lontra e trepou a parede até ao teto, desaparecendo da vista.
Enquanto o odor da mulher feérica se dissipava, virei-me para a funcionária. Estava de boca aberta e olhos fitos no teto.
— Não lhe pagam o suficiente para ter de lidar com isto — disse-lhe firmemente. Não faço uso da autoridade característica de Adam diante dele por receio de que isso o possa preocupar, mas sei como soa e sou capaz de a imitar quando a isso me vejo obrigada.
— Ela foi-se embora e não vai voltar. — Olhei em volta e, excetuando uma mossa na placa de reboco onde o seu joelho atingira a parede, não havia danos adicionais. Havia sangue por todo o lado, mas de certeza que o Wal-Mart tinha empregados de limpeza para remover todos os tipos de coisas das suas alcatifas.
Peguei no par de calças de ganga que queria, bem como nas t-shirts. Levei a t-shirt mais escura à cara para limpar o nariz. Não tinha sido um golpe violento, e praticamente parara de sangrar.
— Eu vou pagar isto — disse-lhe. — Pode guardar essas calças de ganga e depois chamar alguém para limpar isto.
Saí com ar de quem sabe o que está a fazer e paguei as peças de roupa — em dinheiro para que não houvesse hipótese de algo como nome-deixado-no-local-do-crime poder acontecer. A funcionária estava demasiado entretida a olhar para o meu lábio fendido para reparar que uma das t-shirts tinha sangue. Quando peguei no recibo, dei-me conta de uma migração geral dos empregados para as cabines de prova. Pelo menos um deles parecia suficientemente velho para ser uma pessoa com autoridade.
Sorri à funcionária e tentei aparentar um ar inocente, pegar nos meus sacos e sair dali rapidamente.
— Querida — disse a funcionária da caixa, que tinha metade da minha idade. — Livre-se daquele homem. Não tem de aturar ser um saco de pancada.
— Foi uma mulher — repliquei. — E tens toda a razão.
Saí da loja em passada rápida e assim continuei através do parque de estacionamento enquanto telefonava a Adam.
— Vi uma casa de sandes no centro comercial pequeno acima do Wal-Mart — disse-lhe. — Encontramo-nos lá.
— É um bocadinho cedo para almoçar — retorquiu. Tínhamos tomado o pequeno-almoço momentos antes de chegarmos ao Wal-Mart.
— Tu és um lobo — informei-o. — Podes comer em qualquer altura.
— O que é que tu fizeste?
Ouvi uma sirene e desejei que não fosse alguém à minha procura. Acelerei ainda mais a minha passada rápida.
— Envolvi-me numa discussão com uma namorada, pelos vistos. — Desliguei antes que ele tivesse oportunidade de me perguntar mais alguma coisa.
A senhora simpática na casa de sandes encheu de bom grado um saco com pedras de gelo e aceitou, com ouvidos compreensivos, a minha história sobre uma namorada ciumenta (mantive a minha aliança escondida). Fez-me duas sandes de frango das grandes e dois sumos, que paguei.
Quando Adam apareceu, eu estava a observar os carros da polícia no Wal-Mart com o saco de gelo embrulhado na minha nova t-shirt preta manchada de sangue. Manchas de sangue numa t-shirt preta nova influenciavam mais a textura e o cheiro do que a cor.
— Acho que devíamos voltar para o parque de campismo — disse-lhe.
Desviou o gelo do meu olho e observou-me atentamente antes de me deixar voltar a colocá-lo. A seguir, examinou-me as mãos e levou a minha mão livre aos seus lábios de modo a poder beijar as nódoas negras. Levou-me até ao SUV e apertou o cinto por mim.
Ainda bem que não havia muitos carros no parque de estacionamento, caso contrário jamais teria conseguido sair dele no enorme SUV. Eu nunca tive esse problema com o meu Rabbit.
Adam não disse nada, limitando-se a conduzir o meio quilómetro até à rampa de acesso à autoestrada em silêncio. Aguentei-me até The Dalles, onde cedi.
— Quando te disse para me deixares sozinha, não sabia que alguém me queria matar.
— Senti o cheiro a criatura feérica — disse Adam num tom neutro. Manhoso… Por isso é que me tinha beijado os nós dos dedos.
— Ela caiu-me em cima na cabine de provas — expliquei-lhe relutantemente. Depois de ter batido com o olho no puxador da porta, percebi que não ia ter como não falar a Adam da luta. Não que eu tivesse planeado manter o ataque em segredo; simplesmente tratara-se de uma opção que gostaria de ter mantido em aberto, se pudesse. — Acho que foi uma das otterkin, e ela era a senhora esquisita do almoço de anteontem.
— Deixaste lá o cadáver? — perguntou.
— Não há cadáver — expliquei-lhe. — Eu não estava a tentar matá-la. E assim que lhe tirei a faca, tive a certeza de que ela não tinha capacidade para me matar. Não era mais forte do que um ser humano normal. — Pensei por momentos. — Pelo menos, foi o que me pareceu. Assim que a funcionária apareceu, usou o glamour dela para voltar à forma de lontra e saiu pelo teto. Pode ser que tenha usado magia para chegar lá acima, mas as lontras são bastante ágeis.
Apertei-lhe o nariz. Depois, riu-se.
— Bem, acho que provaste que tinhas razão — disse-me. — Sabes como tomar conta de ti própria.
— Porque é que será que as otterkin estão a tentar matar-me?
— Não me parece que vamos chamar as criaturas feéricas para nos ajudarem a fazer frente à diaba do rio — disse Adam. — O mais provável é elas decidirem-se a favor do lado errado.
— Estás a pensar pedir ajuda às criaturas feéricas? — guinchei. Pedir ajuda era ainda pior do que pedir um favor.
Lançou-me um olhar exasperado.
— Eu disse que não ia fazê-lo.
— A mim pareceu-me que terás equacionado a possibilidade de o fazer antes de eu ter sido atacada.
— Estás a tentar distrair-me — disse. — Não precisas de o fazer. Não vou berrar contigo por teres sido atacada… especialmente considerando que ganhaste a luta.
— Ela fugiu — repliquei.
— Sem cumprir o seu propósito. A meu ver, isso é perder. Especialmente se considerarmos que lhe tiraste a faca antes que ela ta espetasse.
Dirigi-lhe um olhar atento, e a verdade é que ele não parecia minimamente chateado.
— Mercy — disse-me —, numa luta justa entre iguais, terás sempre o meu apoio. São os demónios, os vampiros e os diabos do rio que me preocupam, e estou a fazer o melhor que posso para tratar disso.
Se ele estava disposto a isso, eu estava disposta a aceitar.
10
Contrariamente ao Museu de Maryhill ou ao pictograma d’Aquela Que Observa, o Stonehenge era um sítio ao qual tinha ido muitas vezes ao longo dos anos. Fica mesmo a caminho da casa da minha mãe, em Portland. Fora dito a Sam Hill que o Stonehenge em Salisbury tinha sido usado para sacrifícios humanos e ele decidira que seria um monumento adequado para homenagear os homens que tinham sido sacrificados na Primeira Guerra Mundial.
Adam e eu estacionámos o SUV ao lado do pomar abandonado junto ao rio e caminhámos por montes e vales até ao local elevado onde se encontrava a obra de Sam Hill, voltada para o desfiladeiro.
Nunca consegui decidir se o Stonehenge era bonito, espiritual ou apenas uma excentricidade na berma de uma estrada. Impressionante era, certamente — uma réplica em tamanho real, implantada numa superfície de cimento, de um sítio que ficava a meio mundo de distância.
O Stonehenge original demorou cerca de mil e seiscentos anos a ser construído. O de Maryhill demorou pouco mais de dez anos. É um monumento de homenagem a treze jovens de Klickitat County que morreram numa guerra há quase cem anos, um testamento silencioso de um homem que sabia como sonhar alto, e, segundo me fora dito, um local mágico de grande poder para aqueles que saibam como aceder a ele.
Sempre ouvira esta última parte com alguma desconfiança. Afinal de contas, um local poderoso teria atraído bruxas ou algo mais sinistro (e poucas coisas são mais sinistras do que uma bruxa negra), e em todos os anos que ali fui de visita, nunca vi nada perigoso. A outra razão para as minhas reservas tinha a ver com o facto de eu ser muito boa a detetar magia — e aquele local sempre me parecera tão mágico quanto a minha oficina.
À noite, era diferente.
No momento em que pousei o pé na área lisa em redor do monumento, consegui sentir a pulsação da magia debaixo de mim. Adam também a sentiu — embora os lobisomens não costumem sentir outra magia que não a sua. Levantou a cabeça e respirou fundo.
— Achava que este sítio era demasiado público para nos encontrarmos — disse a Adam. — Desde lá em baixo no rio, ou na autoestrada, as pessoas conseguem ver-nos aqui. No entanto, de repente a vontade do Coiote de nos encontrarmos aqui faz mais sentido. Ainda antes de aprender a andar, já ouvia conversas sobre linhas ley. O Bran pode ser lobisomem, mas compreende o funcionamento da magia, mesmo não praticando bruxaria ou feitiçaria.
Calei-me, franzindo o sobrolho.
— Pelo menos, acho que não pratica. Já estive aqui muitas vezes ao longo dos anos e esta foi a primeira vez que senti magia.
— Linhas ley? — replicou Adam. — Consigo sentir qualquer coisa. — Fechou os olhos e inspirou, como que a tentar detetar algo mais ao isolar os sentidos. — Linhas ley, dizes tu? A sensação que eu tenho é de que alguém me está a provocar.
— Isso é bom ou mau? — perguntei.
Rosnou.
— Nada de fazer flirt. Estamos aqui em trabalho.
Tínhamos chegado cedo; o meu marido, o eterno estratego, determinara que essa seria a melhor linha de ação. A junção dessas duas palavras agradava-me. «Meu» e «marido».
— Porque é que estás com esse sorriso na cara? — perguntou-me.
Expliquei-lhe, e também ele sorriu.
— Não tens remédio — disse-me. — Devíamos estar a fazer o reconhecimento do sítio, não a fazer olhinhos um ao outro. No entanto, não acho que isso cause grande mal, uma vez que ele já foi alvo de reconhecimento. — Colocou o braço à minha volta e acenou para o anel exterior em pedra do Stonehenge, onde estavam pendurados dois falcões, de olhos postos em nós.
— Ah — repliquei. — Mas serão batedores inimigos ou amigos?
— Amigos — disse Jim Alvin, emergindo da escuridão como… Bem, como um bom batedor índio. — O Hank descobriu que consegue resistir melhor ao diabo do rio na forma de falcão, por isso entendemos que seria mais seguro para toda a gente ele manter-se assim.
É preciso muito para apanhar um coiote de surpresa — contra o vento, silencioso e rodeado pela escuridão e quietude. A julgar pelo rosto inexpressivo de Adam, percebi que também ele não tinha sentido a aproximação de Jim. Levantei a mão e toquei a aba de um chapéu imaginário.
— Os feiticeiros são todos tão bons como você a deslocar-se pela calada? — perguntei.
Numa daquelas coincidências que só acontecem de vez em quando, Calvin apareceu no caminho de gravilha, encaminhando-se na nossa direção e fazendo o máximo de barulho que podia um humano fazer.
— Tio Jim? Está por aqui? Estacionei o carro onde me mandou… — Tropeçou num alto que se encontrava na estrada. — E porque é que, mais uma vez, não podemos usar lanternas? Porque queremos partir os nossos pescoços? — A última frase foi dita em voz baixa; não creio que fosse sua intenção que alguém o ouvisse.
— Nem todos nós — disse Jim, desnecessariamente.
— Onde é que está? — perguntou Calvin.
Não nos conseguia ver, apesar de não estarmos a mais de dez metros de distância e a Lua iluminar a noite. Tentei imaginar como me sentiria a caminhar na noite sem ver praticamente nada à volta.
Vulnerável.
Não admira que as pessoas procurem os monstros de noite.
— Estamos aqui — disse Jim, e Calvin alterou a sua trajetória. Após ter percorrido cerca de meio caminho, viu-nos. Apercebi-me disso no seu corpo. Evidentemente, o seu tio também. — Os Hauptman já aqui estão. O Hank e o Fred estão à espera no monumento.
Calvin estugou o passo.
— Chegaram todos cedo. Temos de esperar até à meia-noite?
— Veremos. Hoje a terra está rica — disse Jim. — À nossa espera.
— A natureza abomina o vácuo — disse-lhe. — Porque é que não andam por aqui coisas sinistras a absorver esta magia?
— Porque ela é nossa — interveio Calvin.
— Xamanística… Não acessível a bruxas, magos ou criaturas feéricas? — perguntou Adam num tom de fascínio. — Já ouvi falar neste tipo de sítios, mas nunca em detalhe. Presumi que fossem sítios escondidos.
— Não acessível a outros tipos de utilizadores de magia, a menos que se esforcem muito — replicou Jim. — E disponham de mais tempo do que aquele que lhes é permitido. Este local é frequentado por muitas pessoas. O meu avô expulsou uma assembleia de bruxas. Incendiou a cidade toda para o fazer, e Maryhill nunca recuperou. Mas elas não voltaram a tentar. Não tenho a certeza que as criaturas feéricas não sejam capazes de aceder a ela; mas se forem, provavelmente conseguem encontrar um sítio próximo que seja mais privado e quase tão poderoso. As linhas ley são linhas, não terminam num dado lugar. Segundo me foi dado a saber, um mago não provocaria qualquer estrago, mas nunca vi nenhum por aqui.
— O poder estava aqui antes do Stonehenge — disse Calvin —, mas a construção parece torná-lo mais acessível. Existem alguns lugares aqui perto que eram locais de poder mais tradicionais e que provavelmente eram melhores antes de o Sam Hill ter construído isto aqui.
— O Coiote disse-vos o que queria que vocês fizessem com toda esta magia? — inquiri.
— O Coiote? — perguntou Calvin. — Quem é o Coiote?
— O Coiote — disse Jim secamente.
Calvin sorriu vagamente, pestanejou algumas vezes, e depois pareceu ter percebido.
— O Coiote?
Em seguida, olhou para mim.
— Ela conhece o Coi… — Calou-se a meio da palavra, de olhos cravados em mim.
— Porra — disse, espantado. — Que porra.
— Tento na língua, rapaz — disparou Jim.
— C’um cara… — Calvin calou-se antes de concluir a última palavra. — Então é por isso. É por isso que você é caminhante sendo a sua mãe branca. O Coiote é o seu pai, carago.
Não sei por que motivo a sua reação me ofendeu.
— Não. Sei de fonte segura que o Coiote não é o meu pai. O meu pai era um montador de touros Blackfeet que morreu num acidente de carro antes de eu ter nascido. — Não tinha a certeza absoluta que o Coiote não era o meu pai, mas sabia que ele achava que não era, e eu não ia afirmar que era meu pai se ele não afirmasse que eu era sua filha.
Calvin franziu-me o sobrolho.
— Eu não sou — disse eu claramente, ainda que por entre os dentes cerrados — filha do Coiote.
Jim respirou fundo.
— Ainda bem que isso está esclarecido. Sim, o Coiote disse-me o que queria que eu fizesse. Está tudo preparado no interior do círculo.
— Nesse caso, vamos até lá — interveio Adam. Tomou Calvin pelo braço e disse: — Anda comigo. Eu olho por ti.
Passámos pela pedra situada na parte exterior, um monólito com cinco metros de altura colocado ligeiramente a nordeste do resto do monumento, e por baixo do anel contínuo de pedra que o delimitava. Olhei para cima cautelosamente quando passámos por baixo da placa de cimento onde ambos os falcões estavam empoleirados.
Estavam cerca de cinco metros acima das nossas cabeças, e o coiote dentro de mim tinha a certeza que não era uma distância suficientemente grande. Também estávamos a fazer barulho; a gravilha fina não contribuía para o silêncio.
— Os falcões caçam de dia. — A mão de Adam que agarrava Calvin subira, até lhe repousar no ombro, no entanto era comigo que Adam estava a falar. — Desde que o Hank não tenha uma arma, à noite o lobo está em vantagem em relação ao falcão.
Um dos falcões reagiu crocitando um insulto, e Adam sorriu, uma expressão que tinha tanto de desafio quanto o crocito do falcão.
— É só quereres — disse Adam. — É só quereres.
Ainda estava chateado por ter sido alvejado, pensei. E, agora que pensava nisso, tão-pouco me sentia particularmente agradada em relação a isso.
— O Calvin e eu viemos há cerca de uma hora — dizia Jim, ignorando o desafio — e preparámos aquilo de que precisávamos usando luz artificial. O Coiote foi bastante firme quando disse que não podia haver nenhuma tecnologia moderna visível envolvida na cerimónia. — Olhou para Calvin, e tive a certeza que conseguia ver muito melhor na escuridão do que o seu sobrinho. — Foi feita uma menção particular às lanternas. Mas eu sou um homem velho e acredito firmemente no princípio «trabalhar de forma mais inteligente, não mais árdua», por isso tivemos a ideia de usar os faróis da carrinha.
O Stonehenge consistia na pedra no exterior, um par de círculos concêntricos — o primeiro, o anel de pedras de lintel sustentadas por pedras verticais; o segundo, um anel de monólitos — talvez com dois metros e meio, três metros de altura — e um pátio interior.
O pátio interior tinha uma forma semelhante à de uma ferradura, com a abertura apontada para nordeste — para a pedra no exterior, na verdade. A orla da ferradura era delineada por cinco enormes conjuntos de pedras, cada qual formado por duas pedras verticais sustentando uma pedra de lintel. Faziam-me sempre lembrar aquelas peças de metal em U usadas na construção de mobiliário, com uma tira pequena e pernas altas. Havia dois em cada um dos lados da ferradura e um no centro; todos eles eram mais altos do que o anel exterior, e o do centro era ainda mais alto. Dentro destas enormes esculturas de pedra havia um outro conjunto de monólitos, seguindo o padrão da ferradura.
Em cima de todos os monólitos, tanto no pátio interior como no exterior, estavam recipientes de vidro grosso e transparente que protegiam as espessas velas brancas apagadas no seu interior. Os pavios estavam em grande parte enegrecidos, indicando que as velas tinham sido usadas anteriormente.
À frente da mais alta de todas as esculturas de cimento-a-fazer-se-passar-por-pedra, em forma de agrafo, encontrava-se um altar — com dois metros e meio a três metros de profundidade por um metro de largura e meio metro de altura.
Poucos metros à frente do altar, pedaços de madeira para uma pequena fogueira tinham sido colocados por cima daquilo que parecia ser um círculo em gravilha com cerca de cinco centímetros de espessura, muito mais escura e grossa do que a gravilha que já ali estava. Curvei-me para lhe tocar, e Jim falou.
— Amanhã de manhã, quando conseguirmos ver, vimos limpar isto — disse-me. — A gravilha irá facilitar a tarefa de eliminar qualquer indício de fogo. Não queremos dar ideias a ninguém e ter aqui grupos de adolescentes a fazer fogueiras durante a noite. Também vai servir para que o fogo não alastre. Nesta época do ano, ocorrem incêndios, mas eu não quero ser responsável por nenhum.
Adam trepara um monólito para ver mais de perto as velas. Fizera-o içando o peso do corpo com as mãos, um gesto tão descontraído que serviu para avaliar a sua força. Deixou-se cair e esfregou as mãos para sacudir o pó.
— É difícil acendê-las daqui de baixo.
— Guardámos o banco que usei para as colocar lá em cima. — Calvin permanecera perto de Adam mas continuava a lançar-me olhares sub-reptícios. Depois franziu o sobrolho. — Mercy? Isso é um olho negro?
Levantei os braços para tocar no recipiente.
— Ela envolveu-se numa luta no Wal-Mart — disse Adam. Quem não o conhecesse provavelmente não se aperceberia do divertimento presente na sua voz.
— O quê?
— Ela foi atacada no Wal-Mart.
— Devias ter visto a outra mulher — disse-lhe. Entretanto, reparei que faltava alguém. — Onde é que está o Jim? — Ainda um minuto antes estivera a falar comigo. Pensava que a gravilha ruidosa o impediria de se mover furtivamente. Aparentemente, estava enganada.
— Foi lavar-se e mudar de roupa — explicou Calvin. — Existe ali um edifício pequeno. Era uma loja de turismo, mas está fechada há uns anos. O Jim tem uma chave. É melhor eu começar a acender as velas. Demora algum tempo.
— Nós podemos ajudar. — Adam retirou um isqueiro do bolso. Adam não fumava, mas elevava a arte de estar preparado ao expoente máximo.
— Só tenho um banco — desculpou-se Calvin.
— Não há problema. — Adam colocou-se atrás de mim, agarrou-me pelas ancas e ergueu-me por cima da sua cabeça, pousando-me sobre os seus ombros.
— Ei — disse-lhe, indignada.
Teria corrido de forma muito mais suave se me tivesse avisado antes. Assim, tive de me esforçar para manter o equilíbrio. Esperou que eu estabilizasse e depois deu-me uma palmadinha na anca.
— Não preciso de um banco — disse Adam, encaminhando-se para um dos monólitos e passando-me o isqueiro. — Tenho a Mercy.
Mesmo com os três empenhados na tarefa, acender as velas demorou imenso tempo. Até ali, não tinha reparado que existiam tantas. Mais de trinta, pensei, talvez mesmo mais de cinquenta.
Quando terminámos, havia em nosso redor uma atmosfera natalícia criada por dezenas de velas brancas. Em virtude do acaso ou da distribuição das velas, encontrámos Calvin na última pedra, mesmo ao lado do altar. Adam pôs-me no chão enquanto Calvin acendia a última vela. Nesse espaço de tempo, a magia naquele chão intensificara-se, lançando-se a mim como uma chama ávida no instante em que os meus pés atingiram a gravilha. Cambaleei um pouco, e Adam, provavelmente achando que ainda não readquirira o equilíbrio, colocou uma mão no meu ombro para me estabilizar.
Calvin desceu do seu banco, guardou o isqueiro no bolso e dobrou o banco.
— Vou ao parque de estacionamento guardar isto. Entretanto, o meu tio Jim pediu-me para vos dizer que vão precisar de assumir a forma das vossas bestas.
— Tens ideia daquilo que o Coiote pretende que façamos aqui? — perguntei-lhe.
Calvin baixou os olhos.
— Não.
Resfoleguei antes de conseguir dizer o que quer que fosse.
— Esquece. Tu és, sem sombra de dúvida, o pior mentiroso que algum dia conheci. Ainda bem para ti. Mas talvez seja bom manteres isso presente e arranjares forma de o contrabalançar. Cultiva um ar misterioso e não respondas às coisas que te possam fazer sentir tentado a mentir. — Isso era o que Bran fazia. Nem mesmo Bran conseguia mentir a um lobisomem. De qualquer modo, não creio que fosse capaz disso.
— Quanto tempo é que nos resta? — perguntou Adam. — Os caminhantes mudam de forma rapidamente, mas eu demoro mais tempo.
— Não sabia disso. Peço desculpa. Devia ter-vos dito antes de começarmos a acender as velas.
— Se nos querem aqui, esperarão por nós — disse eu a Adam.
— Sim — concordou Calvin. — Tenho a certeza que esta cerimónia precisa de vocês os dois. — Afastou-se de nós um passo e depois parou. — É verdade, o Fred disse-me que vocês fizeram umas perguntas sobre o número de mortes no Rio Columbia. Pediu-me para investigar isso, portanto perguntei a um amigo meu que é polícia no rio. Ele disse-me que nas últimas três semanas vinte e seis pessoas morreram, presumivelmente afogadas, entre a barragem John Day e a barragem em The Dalles, sem contar com a família de quatro elementos cujo desaparecimento foi registado ao final da tarde de hoje, quando o carro deles foi encontrado num parque do lado de lá do Columbia, no Oregon. São mais pessoas do que o somatório de todas as mortes ocorridas no rio nos últimos cinco anos.
— Que família? — perguntei.
— Um corretor da Bolsa, a mulher dele, professora do ensino básico, e os dois filhos pequenos — respondeu.
— Lee e Janice Morrison. — O sonho tinha sido real. Podia ter feito alguma coisa para evitar o sucedido. De certeza que podia ter feito alguma coisa.
— Isso mesmo. Viu o jornal de hoje?
A mão de Adam estava repousada no meu ombro.
— Há quanto tempo é que estavam desaparecidos? — perguntou.
— Dois dias.
Antes do meu sonho. Eu tinha visto algo que acontecera no passado. Não tinha possibilidade de fazer nada. Isso devia ter-me feito sentir melhor, mas não fez.
— Penso — disse Adam suavemente — que pode dizer-se, sem a menor dúvida, que se trata de algo que deve ser caçado e morto.
Calvin assentiu com a cabeça.
— Diz-se por aí que uma equipa do FBI anda a investigar com base na ideia de que temos uma espécie de assassino em série à solta. Até agora, têm agido de forma silenciosa; não querem encorajar o assassino ou causar o pânico entre as pessoas. O meu amigo mostrou-se muito interessado em saber o porquê da minha pergunta. Disse-lhe que era por causa do Benny e da Faith. — Olhou para mim. — Dessa forma não lhe estava a mentir.
— Vamos transformar-nos — disse eu. Não queria pensar mais em Janice e na sua família. Tinham morrido, e não havia nada que eu pudesse fazer por eles.
Se estivéssemos em casa com o bando de lobos por perto, simplesmente ter-nos-íamos despido e transformado, mas já não me sentia confortável a despir-me à frente de estranhos. E mesmo que eu estivesse disposta a fazê-lo, Adam não se iria transformar em público.
Bran dera instruções aos lobos para que não se transformassem em sítios onde pudessem ser vistos. Os lobisomens são belos — mas a transformação é horrenda. Não fazia qualquer sentido assustar as pessoas, dissera Bran, não numa altura em que os lobos ainda estavam a tentar ser dóceis para as câmaras dos noticiários.
Portanto abandonámos o Stonehenge e subimos a encosta logo a seguir, o que nos permitia escondermo-nos de Calvin, Hank e Fred — desde que os falcões permanecessem no lado oposto do monumento.
Ainda assim, estávamos expostos. Não havia árvores por perto e o campo de visão até ao rio e a autoestrada estava completamente desimpedido, numa distância de quilómetros. A escuridão garantia que ninguém lá em baixo nos conseguisse ver, mas a sensação que eu tinha era que, de facto, alguém nos podia ver.
Ao lado de Adam, que estava a fazer a mesma coisa, despi as minhas roupas, dobrando-as de forma apertada para desencorajar quaisquer insetos atraídos pelo calor nelas deixado. Enfiei as peúgas nas sapatilhas.
— Vou permanecer na forma humana até tu te transformares — disse-lhe. Para lhe proteger a retaguarda ou intervir se tivesse de o fazer.
Transformar-me em coiote tinha o seu custo. Podia fazê-lo várias vezes por dia, mas acabaria por ficar esgotada. Também podia permanecer na minha forma humana durante muito tempo — meses, se necessário fosse. Os lobos são diferentes.
Os lobisomens são chamados pela Lua. Têm de se transformar nas noites de Lua cheia, mas também lhes é mais difícil controlar o lobo durante esse período. No entanto, muitos lobisomens só se transformam nas noites de Lua cheia — duas ou três vezes por mês. A transformação é dolorosa e requer imensa energia. Transformar-se mais de duas vezes por semana estava para lá das capacidades de muitos lobos. Adam vinha-se transformando muito mais do que isso ultimamente.
A sua transformação estava a ser muito mais lenta do que o habitual — e parecia estar a ser muito mais dolorosa, também. Sentei-me ao lado dele, na almofada criada pelas minhas roupas dobradas. Talvez devesse ter permanecido vestida, mas uma vez que nesta noite pelo menos não estava molhada, não senti frio. Mantive-me próxima dele, mas não ao ponto de tocar nele inadvertidamente e o magoar.
A pulsação da magia do Stonehenge estava a tornar-se mais regular, como o bater de um coração. Pareceu-me também que se estava a tornar ainda mais forte, mas isso talvez se devesse ao facto de eu estar sentada no chão. O batimento do meu próprio coração acelerou um pouco até adquirir a mesma cadência da pulsação da magia. Não era desagradável, apenas desconcertante.
— Mercy? — gritou Calvin.
— Ainda não — respondi.
— Quanto tempo?
— O tempo que for preciso — rosnou Adam, a sua voz rouca e grave em resultado de estar a meio caminho entre o lobo e o homem.
O fluxo de magia estagnou, como se o tivesse ouvido, para em seguida recuperar a sua pulsação. Não gostei nada disso.
— Estás bem? — perguntei muito baixinho.
Não disse nada, o que interpretei como resposta suficiente.
Começou a respirar com dificuldade e fiquei seriamente preocupada com ele.
— É a magia da terra — disse o Coiote, sentando-se ao meu lado, afastado do local onde Adam se debatia.
Adam rosnou, um som rouco e dorido que, ainda assim, representava uma ameaça.
— Não lhe pretendo fazer mal, nem a si nem aos seus — disse-lhe o Coiote. — Eu estou a fazer de sentinela. Eles deviam ter-vos dito que iam precisar de se transformar antes de terem vindo. Calculo que as instruções tenham sido truncadas até chegarem ao Calvin. A Terra-Mãe não se transforma facilmente… Esse é um aspeto da água ou do fogo. A magia da terra está a interferir na transformação dele, mas não deverá torná-la impossível.
Impossível não era bom — mas mantive-me de boca fechada porque até eu sabia que a intenção e a determinação desempenhavam o seu papel em qualquer espécie de magia. Não fazia qualquer sentido colocar dúvidas na cabeça de Adam sem que antes se verificasse que a sua transformação tinha de facto falhado.
— O que é que vamos fazer esta noite? — perguntei ao Coiote para dar a mim mesma outra coisa em que pensar.
— Provavelmente desperdiçar o nosso tempo. — Não olhou para mim. Antes se fixou no mundo que se estendia abaixo dos nossos pés. Reparei que raramente falava diretamente comigo. Metade das vezes, a sensação que dava era que ele dirigia as suas palavras ao ar.
— E se não desperdiçarmos o nosso tempo? — Esperei uns momentos, tentando não ouvir os ruídos de agonia de Adam porque ele certamente não quereria que os escutasse. Conseguia sentir o pânico claustrofóbico que estava a reprimir. Não podia permitir que também eu fosse tomada pelo pânico. — Vá lá, Coiote. Não é um segredo, até o Calvin sabe.
Riu-se, dando uma palmada na própria perna.
— Um ponto para si. Muito bem. Muito bem. Tenho a esperança de conseguir pedir ajuda. Já não somos o que fomos em tempos, e alguns de nós nunca foram muito dados a imiscuir-se com as pessoas. No entanto, o Corvo é curioso, e a Lontra poderá sentir que algo relacionado com ele está em jogo. — Fez uma pausa, relanceou-me os olhos e continuou: — Belo olho negro, Mercy. Pode dar-se o caso de a Lontra estar do lado errado. Isso seria uma pena.
— Vai chamar os outros idênticos a você? — perguntei.
— Não existe ninguém idêntico a mim — devolveu. — Nenhum deles é tão bonito ou forte. Nenhum deles é tão inteligente ou capaz. Nenhum deles tem tantas histórias contadas a seu respeito. Quem é que trouxe o fogo para que as pessoas pudessem assar a sua carne e manter-se quentes no inverno? Mas sim, espero conseguir chamar os outros.
— Outros quê, exatamente? — inquiri. — Que tipo de criatura é você? — As criaturas feéricas, algumas delas, tinham-se apresentado aos primeiros habitantes da Europa como divindades. As histórias do Coiote nunca tinham esse elemento. O Coiote era poderoso, mas não alguém que pedisse para ser venerado.
— Já leu Platão? — perguntou.
— Você já? — retorqui, porque a ideia de o Coiote ler A República ou Apologia de Sócrates era absurda e, de certo modo, totalmente credível precisamente por ser absurda.
— Você está familiarizada com a sua teoria das formas — continuou o Coiote, sem responder à minha pergunta.
— A teoria que defende que o nosso mundo não é real, mas um reflexo da realidade. E que no mundo real existem arquétipos de coisas que existem no nosso mundo, que é o que explica que possamos olhar para uma cadeira que nunca tínhamos visto antes e dizer: «Ei, repara. É uma cadeira.» Porque no mundo real existe um objeto que é o epítome daquilo que define uma cadeira. — Fazia uso da minha licenciatura em História cerca de duas vezes por ano, quer precisasse ou não.
— É algo muito próximo disso — concordou. — Eu sou a realidade de todos os coiotes. O arquétipo. O epítome. — Sorriu na escuridão. — Você é apenas um reflexo de mim.
— Deviam ter-lhe dado o nome de Narciso — disse-lhe, esforçando-me por não reagir aos sons que Adam produzia. — É uma pena que não seja você o inimigo que precisamos de derrotar. Podíamos simplesmente arranjar um espelho para você se admirar.
— E depois deixariam de a chamar Mercy — disse. — O seu nome passaria a ser Aquela Que Encurrala o Coiote. — Estendeu o braço e pegou na minha mão, após o que disse em voz baixa: — Não vai demorar muito mais tempo. Mas, se fosse a si, não olhava para ele sem que ele antes lhe dissesse para o fazer.
— As suas irmãs são mesmo duas bagas dentro do seu estômago? — perguntei-lhe.
— Ah — disse com satisfação. — Precisa de encontrar alguém que lhe conte as versões grosseiras das minhas histórias. São muito mais divertidas. A modéstia impede-me de contar histórias acerca de mim próprio.
Ri-me, como se fosse intenção dele que o fizesse.
— As minhas irmãs deixaram de falar comigo. — Terminou com grande (e, suspeitei, inteiramente fingida) dignidade. — Portanto, não importa o que são.
Ao meu lado, Adam ergueu-se com uma rosnadela. Baixei a cabeça para lhe mostrar que não era nenhuma ameaça. Depois de uma transformação difícil, Adam precisava de alguns minutos até assumir controlo sobre o seu lobo. Para minha surpresa, o Coiote também inclinou a cabeça.
— Gosto deste homem, do seu marido — disse-me. Talvez fosse uma explicação. — Ele ter-me-ia atacado por eu a ter colocado em perigo, apesar de o lobo saber exatamente o que eu era. E no entanto, quando você lhe pediu para ter paciência, ele acedeu ao pedido. É uma atitude digna os homens darem ouvidos aos conselhos das mulheres.
— Do mesmo modo que você dava ouvidos às suas irmãs? — repliquei, enquanto o lobo colocava o nariz abaixo da minha orelha. Inclinei a cabeça para lhe oferecer o pescoço. Dentes afiados friccionaram a minha pele, e eu estremeci.
— Mulheres sagazes — concordou o Coiote. — Mas por vezes metediças e facilmente irritáveis. Acho que precisam de desenvolver a sua noção de diversão. Elas não concordam comigo, portanto é possível que afinal não sejam assim tão sagazes, não é verdade?
Adam sacudiu-se com violência, as suas orelhas produzindo um som semelhante a um bater de asas — um sinal.
Virei-me para o olhar e ele apontou para o monumento com o nariz. Transformei-me em coiote — transformação essa que pareceu exigir de mim um pouco mais de esforço do que o habitual — e segui Adam encosta acima, com o Coiote ao nosso lado.
Pelo menos não era a Baba Yaga ou a Rapariga do Ioió, pensei.
Gordon estava a falar com Calvin e Jim em voz baixa quando entrámos nos círculos do monumento. Jim estava descalço, vestindo umas calças de ganga escuras e uma camisa de manga comprida que, à luz das velas, parecia azul, apesar de os meus olhos de coiote nem sempre serem fiáveis na distinção de cores na escuridão. As botas de Gordon, por exemplo, pareciam pretas, mas fiquei com a impressão de que seriam as mesmas botas vermelhas que trouxera calçadas nas outras ocasiões em que o tínhamos visto. Vestia uma camisa de flanela por cima de uma t-shirt lisa.
— Já estava a ponderar irmos embora — disse Gordon friamente enquanto nos acercávamos.
— A magia da terra prejudica a transformação quando se é lobisomem — disse o Coiote. — Razão pela qual disse ao Jim para se certificar de que ele chegasse aqui na forma de lobo.
— Você disse para comunicar à Mercy que trouxesse o lobo — retorquiu Jim, parecendo irritado. Eu começava a achar que toda a gente parecia ficar irritada depois de algum tempo de convivência com o Coiote.
Calvin esbugalhou os olhos, e parecia estar à espera que Jim fosse atingido por um raio.
O Coiote limitou-se a rir.
— Mercy, importa-se de ir sentar-se no altar? — Olhou para cima, na direção dos falcões. — Vocês os dois ponham-se ao lado dela.
Gordon não parecia atemorizado ou surpreendido diante do Coiote.
— O que quer que faça na presença do Hank, a diaba do rio vai ver.
— Ela que veja — replicou o Coiote num tom de indiferença. — Mas se nada mais acontecer esta noite, acho que pelo menos conseguirei curar o Hank. O Falcão deve-me uns quantos favores.
Pulei para o altar ao lado dos falcões de forma um pouco hesitante. Havia uma placa de bronze no topo, mas estava demasiado gasta para se conseguir ler na escuridão. Adam pulou juntamente comigo e dobrou o corpo à minha volta num gesto protetor, colocando-o entre mim e os outros predadores.
— Adam — disse o Coiote —, não sendo Asteca, não vamos sacrificar a sua noiva no altar. Ela simplesmente não pode tocar no chão quando o Jim executar a dança. No entanto, no caso de o Lobo responder a esta chamada, seria desastroso se a sua cabeça estivesse acima da dele. Normalmente ele aparece na forma humana, mas muitas vezes prefere estar na sua pele de lobo. Importa-se de se colocar mesmo em frente ao altar, entre ele e a fogueira?
Adam rosnou silenciosamente aos falcões, num claro aviso, e saiu do altar para se sentar onde o Coiote pedira.
As sobrancelhas de Gordon tinham-se erguido quase até ao seu cabelo branco.
— Um coiote educado?
O Coiote rosnou qualquer coisa numa língua estrangeira.
— Pensava que não era o pai dela — disse Gordon placidamente. — O que quer dizer que ele não é o seu genro.
— Digamos — replicou o Coiote — que tenho respeito por ele e não me apetece meter-me no meio de uma luta de cães esta noite, se o puder evitar. Agora vamos lá avançar com isto.
Transformou-se. A sua transformação foi ainda mais rápida do que a minha, pensei, embora não pudesse afirmar com certeza. Num piscar de olhos, apareceu à minha frente um gigantesco coiote do tamanho de um São Bernardo. Dirigiu-se ao monólito que estava numa extremidade da ferradura e pulou para cima dele.
Gordon parecia carrancudo, depois transformou-se na maior águia que algum dia tinha visto, e eu já tinha visto algumas águias-reais enormes. Era mais alto na forma de ave do que na forma de homem. Não sabia dizer de que cor eram as suas penas, embora parecessem vários tons mais escuras do que as dos falcões. Em seguida abriu as asas, e percebi então que Gordon afinal não era uma águia. Nenhuma águia tinha uma envergadura de asas tão grande.
— O Pássaro Trovão — disse Calvin reverentemente. — O avô disse que você era o Pássaro Trovão, mas isso foi numa altura em que me tratava pelo nome do meu pai com muita frequência.
O Pássaro Trovão.
O pássaro inclinou-se para a frente e esfregou aquele tremendo bico afiado na face de Calvin. Uma vez que a cabeça de Calvin permaneceu entre os ombros, tive de concluir que se tratara de um gesto de afeto. Num movimento entre o salto e o voo, aterrou no monólito em frente ao do Coiote. Fez com que a pedra vertical parecesse muito mais pequena. Gordon, que era o Pássaro Trovão, desviou suavemente a vela até esta ficar no lugar que ele desejava. A luz da vela conferia às suas penas uma tonalidade castanha-escura. Baloiçou um pouco para trás e para a frente, esticando as asas, após o que se pôs quieto.
Calvin revelou um tapete enrolado, um pequeno tambor e um parfleche19 revestido com contas. O parfleche — couro não curtido — era mais usado pelos índios das planícies do que pelos índios dos planaltos como os Yakama, pensei. No entanto, percebi, um feiticeiro poderia usar os utensílios que desejasse.
Calvin pousou o saco ao lado da fogueira preparada, mas ainda não acesa. Depois, com grande formalidade, desenrolou o tapete, alinhando-o com a pedra no altar. Levou o tambor consigo para se sentar ao lado de Adam.
Jim postou-se em frente ao tapete e fechou os olhos. Parecia uma oração, mas o que quer que tenha feito reavivou a magia — conseguia senti-la mesmo através do cimento no qual estava empoleirada.
Colocou-se em cima do tapete e manteve a mão suspensa sobre os pedaços de madeira empilhados.
— Madeira — disse —, tu que engoliste a chama dos Seres do Fogo, é altura de arderes.
Quando a pequena fogueira irrompeu em chamas, Adam retraiu-se um pouco, porém nem Calvin nem Jim pareceram surpreendidos.
Jim dirigiu um pequeno aceno a Calvin, que começou a tocar no tambor. A princípio, tocou um ritmo simples com uma mão. Não era um som constante, mas hesitante e irregular — até se começar a harmonizar com o ritmo da magia que fluía debaixo de nós. Assim permaneceu durante algum tempo, e depois começou a acelerar, acentuando a batida simples com notas ornamentais. Quando a magia começou a acompanhar os seus acrescentos, mudou a cadência para um ritmo enérgico e sincopado. E a magia seguiu-o.
O vento escolheu aquele momento para se levantar e arrastar fumo da fogueira contra os meus olhos. Pestanejei, mas, para além do fumo, é possível que tenha sido atingida por algumas cinzas. Pousando o focinho na pedra, esfreguei os olhos com as patas. Ajudou. Levantei a cabeça no preciso instante em que recuperei a visão — e estava sozinha.
19 Saco utilizado por alguns ameríndios, sobretudo para guardar carne seca. (N. do T.)
11
Levantei-me em pânico, a batida do tambor de Calvin ainda forte — mas o vínculo que me unia a Adam era forte e tranquilizador. Deu-me coragem para permanecer onde estava, respirar fundo e olhar em volta para ver se conseguia perceber o que tinha acontecido a todos os outros.
A fogueira ardia, as velas encontravam-se acesas e o céu da noite estava límpido e coberto de estrelas. No entanto, um denso nevoeiro estendia-se ao nível do chão e não conseguia ver nada para lá do anel exterior do Stonehenge. Mais ou menos por essa altura, apercebi-me de que estava na minha forma humana, envergando as roupas que despira e dobrara cuidadosamente pouco tempo antes. Pareciam-me reais ao tato — inclusive senti uma ligeira aspereza na parte das calças de ganga onde deixara cair um pouco de mostarda aquela tarde.
Porém tinha a certeza que se tratava de uma visão. Não me ocorria nenhuma outra razão para ainda conseguir ouvir o tambor.
Os pelos eriçados na minha nuca indicaram-me que algures alguém me estava a observar. Não conseguia ouvi-los ou cheirá-los, mas conseguia sentir olhos postos em mim.
Talvez estivessem à espera de um convite.
— Olá!
— Olá, Mercedes.
Voltei-me e constatei que quatro mulheres entravam no monumento através da maior das pedras em forma de agrafo. Todas elas trajavam vestidos de noiva brancos idênticos, em pele de gamo, completados com franjas e dentes de alce. Os seus pés estavam descalços e calejados, e o pó descorado da gravilha cinzenta-clara cobria-lhes os pés como se estivessem a andar nela há muito tempo. Cheiravam a limpo e a adstringente, algo como salva ou hamamélide, mas mais doce do que qualquer uma das duas.
Não era nenhuma especialista em povos indígenas, apesar de alguma investigação feita em torno dos meus antepassados nos tempos de faculdade. No entanto, era suficientemente versada para saber que cada uma delas pertencia a uma tribo diferente, apesar das suas feições demasiado-belas-para-serem-reais. A primeira mulher parecia-me Navajo ou Hopi — ou talvez até Apache. A sua pele era mais escura do que a de qualquer uma das outras, e as suas feições suaves. Usava dois puxos semelhantes aos da Princesa Leia, um de cada lado da cabeça, que eu achava que correspondiam a um penteado tradicional Hopi — o penteado de uma das tribos dos Índios Pueblo, pelo menos.
A segunda mulher tinha as maçãs do rosto arredondadas e caídas dos Inuítes, e os seus olhos enrugados fitavam-me de um modo amigável. O cabelo estava separado por duas tranças densas que lhe pendiam até aos ombros.
A terceira mulher parecia alguém de uma das tribos dos índios das planícies, embora não conseguisse determinar com exatidão o que me fazia achar isso. O seu rosto era um pouco menos suave do que o das primeiras duas, e o seu olhar era límpido e penetrante. À semelhança da segunda mulher, usava um par de tranças, porém as dela caíam-lhe abaixo da cintura. Tinha brincos de osso nas orelhas — a única de entre as quatro que usava joias de qualquer espécie.
A quarta mulher tinha o cabelo escuro puxado para trás do rosto, caindo-lhe livremente até meio das costas. Era grosso e crespo, como a crina de um cavalo selvagem. Não sabia dizer a que tribo pertencia, apenas que era índia. Tinha feições angulosas, o nariz estreito e os lábios grossos. Foi a primeira a falar.
— Mercedes não é um nome índio. — O seu tom, como as suas palavras, era crítico, mas não emocionalmente. Esperaria ouvir um tom como aquele de uma mulher num mercado a olhar para a fruta. Contraiu os lábios brevemente, claramente considerando o meu nome. — Ela é mecânica. Devíamos chamar-lhe Ela Repara Carros.
A primeira mulher, a que porventura seria Hopi, abanou a cabeça.
— Não, irmã. Portadora da Transformação.
A mulher que parecia pertencer a uma das tribos dos índios das planícies, mas não propriamente aos Crow, aos Blackfeet ou aos Lakota, franziu o sobrolho numa expressão de reprovação.
— Coiote Irrefletida Que Anda Com o Lobo. Podíamos encurtá-lo para Mulher Jantar.
A alegre mulher Inuíte riu-se.
— Mercedes Que Repara Volkswagens, trouxemo-la até nós porque o nosso irmão não nos levava até si.
— O vosso irmão? — perguntei cuidadosamente. Ainda estava no altar, o que fazia com que as olhasse de cima para baixo. Isso parecia-me errado, por isso desci para a areia e a magia no chão prontamente transformou os meus joelhos em borracha.
— O Coiote — responderam ao mesmo tempo, enquanto a mulher Inuíte me impedia de cair.
Não pude deixar de pensar que seria muito mau sentar-me no chão, considerando que assim, de pé, o efeito já era tão forte. Sentei-me no altar e levantei os pés do chão.
— Não temos a capacidade de prever o futuro — disse a mulher de feições angulosas que não conseguia encaixar em nenhuma tribo. — Mas sabemos o que o nosso irmão está a planear. Pode dizer-lhe que é muito perigoso, mas que também foi a única coisa que nos ocorreu que pudesse funcionar?
— O que é que ele está a planear? — perguntei.
— Aqui podemos dizer-lhe. — A mulher Inuíte sentou-se ao meu lado mas manteve os pés no chão. — Mas ele não lhe pode dizer enquanto não se vir livre dos espiões dela. Na verdade, foi por isso que a trouxemos até aqui. Por isso e porque queríamos olhar bem para si. O Ele Vê Espíritos — você conhece-o por Jim Alvin — abriu este caminho entre nós por um período de tempo curto. O Coiote precisa de privacidade para falar com os outros, o Falcão e o Corvo, o Urso e o Castor, e os restantes. Decidimos que você devia ter conhecimento do que ele diz.
— A Diaba do Rio — disse a mulher Hopi-Navajo-possivelmente-Apache — é uma criatura que vive no seu mundo e no nosso ao mesmo tempo. No nosso ela é imortal, mas pode ser morta no seu. Assim que estiver morta, não pode regressar a menos que seja convocada. Mas nessa altura regressa maior e mais perigosa do que antes. Da última vez que o nosso irmão a confrontou, encurralou-a em vez de a matar na esperança de que fosse mais eficaz do que a morte tinha revelado ser. — Concluí que era Hopi, e, depois disso, os seus traços alteraram-se um tudo-nada até não haver possibilidade de ela ser outra coisa.
— Quem é que haveria de convocar aquela coisa? — perguntei.
A mulher Inuíte encolheu os ombros.
— Haverá sempre imbecis, e a diaba do rio consegue ser persuasiva para os homens.
A mulher de feições angulosas.
— Cherokee — disse eu, subitamente segura de que tinha acertado.
Fez um pequeno sorriso secreto, do tipo que me faz sempre querer esbofetear Bran.
— Se quiser. — Inclinou a cabeça e disse: — A Diaba do Rio é a Fome porque viver entre mundos é difícil para aqueles que não têm qualquer controlo sobre nenhum deles. Ela deve consumir comida para ambos os seus elementos: carne para a carne e para o espírito.
A mulher Hopi continuou:
— Toda a vida está repleta de possibilidades. As sementes têm possibilidades, mas todos os seus amanhãs são apanhados pela padronização do seu ciclo de vida. Os animais têm possibilidades maiores do que as de um abeto ou uma folha de relva. Ainda assim, para a maior parte dos animais, o padrão do instinto, os padrões das suas vidas, são muito fortes. A humanidade tem uma gama muito mais vasta de possibilidades, especialmente os mais novos. O que serão as crianças quando crescerem? Com quem irão casar, em que é que vão acreditar, o que irão criar? A criação é uma semente da possibilidade muito poderosa.
A mulher pertencente aos índios das planícies que não era Lakota, Crow ou Blackfeet, disse:
— A Diaba do Rio alimenta-se de possibilidades.
A mulher Inuíte levantou o braço para colocar a mão no ombro da irmã.
— Ela alimenta-se da morte dessas possibilidades. Por esta razão, ela tem de se alimentar de pessoas em vez de animais, de animais em vez de plantas. Mas o melhor de tudo é que adora alimentar-se de crianças.
— Ela alimenta-se do fim das possibilidades — corrigiu a mulher pertencente aos índios das planícies. Shoshone, concluí. A mim parecia-me Shoshone. Sorriu como se me tivesse ouvido a pensar em voz alta. Era um sorriso amplo, como o do irmão. — Quanto maiores as possibilidades, mais a sua fome é saciada. Quando está cheia, tem de digerir a sua presa tanto aqui, no mundo dos espíritos, como lá, no mundo da carne. Enquanto faz isso, fica vulnerável.
— O Coiote e os seus semelhantes, o Falcão, o Urso, o Salmão, o Lobo, o Pássaro Trovão, entre outros, têm ainda mais possibilidades do que um recém-nascido. — A mulher Cherokee voltou-se num gesto gracioso, como se para abarcar tudo o que o Coiote e os seus semelhantes eram. — Se o Coiote conseguir persuadir uma porção razoável deles a permitir que a Diaba do Rio os consuma, poderão ser suficientes para forçar a Diaba do Rio a sobreaquecer. E ela ficará indefesa até os digerir a todos.
— Enquanto ela estiver indefesa, alguém precisa de a matar. — A irmã Inuíte olhou para mim com os seus grandes olhos escuros, e percebi, com uma sensação de aperto, de quem estavam a falar.
— E o Fred e o Hank? — perguntei. Adam não podia fazê-lo. A sua força podia fazer dele um candidato melhor, mas os lobisomens não sabem nadar. Não arriscaria deixar Adam entrar no rio.
— Eles são vulneráveis à marca da Diaba do Rio — respondeu. Depois fez uma pausa e falou a respeito do meu pensamento não verbalizado. — Em relação ao lobisomem, não sei. Sozinho, seria como os outros, mas o bando dele talvez consiga mantê-lo em segurança…
— Ou talvez ela consiga vencer todo o bando. — A mulher Hopi abanou a cabeça. — Não. Isso não seria sensato. E a água não é o elemento do lobisomem, apesar de ser um elemento de transformação.
A mulher Shoshone disse:
— Nesse caso, ela tem de morrer. Enquanto come, o seu poder cresce. Se não morrer antes de digerir uma refeição como aquela que o nosso irmão lhe irá proporcionar, tornar-se-á muito mais destrutiva do que é agora.
— E se fizéssemos um ataque aéreo? — disse-lhes. — Ou se usássemos armas nucleares? Conheço pessoas que talvez consigam envolver o exército nisto. — Bran conseguiria. Podia não se ter revelado ao público, mas sabia como fazer as coisas quando queria.
A mulher Hopi abanou a cabeça.
— Não. As armas modernas não provocam nenhum dano nela. Só a coisa mais simples, um símbolo da terra que se oponha à água dela: uma faca de pedra.
— O nosso tempo está a esgotar-se — disse a mulher Cherokee. — Tem de regressar.
A mulher Shoshone tocou-me na bochecha.
— Diga ao nosso irmão que ele é sábio, que não temos mais palavras de sabedoria para acrescentar às dele.
— Ele disse-me que vocês não falavam com ele — repliquei.
Riu-se, porém o seu riso era triste.
— O Coiote não tem por hábito mentir, mas por vezes esquece-se. É ele quem está zangado connosco. Demos-lhe um conselho do qual ele não gostou e ele ficou zangado.
A mulher Cherokee estreitou-me os olhos.
— Dissemos-lhe que nada de bom poderia resultar do facto de ele ter permitido que o Joe Velho Coiote levasse a mulher anglo para a sua cama.
A mulher Inuíte sorriu e tocou-me na perna.
— Obviamente, estávamos enganadas.
— O Coiote é como a diaba do rio — disse-lhes. — Certo? Ele move-se em ambos os sítios. Sendo assim, porque é que ele não come tudo o que lhe aparece à frente?
— O Coiote move-se num mundo de cada vez — explicou-me a mulher Cherokee. — Ele consegue fazer isso sem ficar encurralado porque nós esperamos por ele aqui, e você e os outros descendentes dele ancoram-no lá.
— O Coiote entende que o Universo é um só. — A voz da mulher Shoshone era indulgente.
— O Coiote — disse a mulher Hopi secamente — não se preocupa muito em tentar entender o que quer que seja, razão pela qual ele entende tanta coisa.
— O que acontece quando a diaba do rio os comer? Ao Coiote e aos outros? — Nas histórias, o Coiote morria e renascia no dia seguinte, mas havia naquelas mulheres um ar de resignação que sugeria que, desta vez, algo mais terrível aconteceria.
Trocaram entre si olhares que não consegui interpretar.
— Não sabemos. — A mulher Inuíte fitou o nevoeiro que nos rodeava. — Conforme lhe disse, não temos a capacidade de prever o futuro. Somos simplesmente conselheiras sensatas.
— Pode acontecer de esta ser a última vez que o Coiote põe os pés no seu mundo — disse a mulher Cherokee em voz baixa. — Tantas coisas mudaram que é impossível saber o que essas mudanças significam.
— Existem aqueles que já não se movem em nenhum dos dois mundos. — Os olhos da mulher Shoshone brilharam, cobertos de lágrimas. — A Diaba do Rio pertence a ambos os mundos e portanto podia lançá-los ao universo, desfeitos em pedaços.
— Não se preocupe com o que não pode ser mudado. — A mulher Hopi sentou-se no chão e deu uma palmadinha nas minhas sapatilhas. — Mesmo que o Coiote não renasça com o Sol da manhã, existe sempre a esperança de um novo amanhecer. Venham, irmãs, é chegada a altura de a enviarmos de volta.
— Acho que ela é parecida comigo — disse a mulher Shoshone. — E vocês, o que é que acham?
E as suas palavras ainda ressoavam nos meus ouvidos quando dei por mim de volta ao sítio onde começara. Tinha passado tempo — apercebi-me disso porque Jim estava ajoelhado no tapete, lançando folhas de tabaco à fogueira. Cantava, as palavras ininteligíveis aos meus ouvidos, mas não estranhas.
Adam lambeu-me o nariz e depois mordeu-o — um sinal de que se apercebera da minha ausência. Mais tarde perguntar-lhe-ia se o meu corpo tinha desaparecido juntamente comigo ou se tinha ficado ali à minha espera. Encostei-lhe o focinho para que percebesse que eu estava bem.
Um dos falcões — era difícil distinguir Frank e Hank quando estavam na sua forma humana; como falcões, calculei que teria uma probabilidade de cinquenta por cento para cada lado — bateu as asas e crocitou suavemente. Aparentemente, estávamos a incomodá-lo.
Adam pulou para o altar onde eu estava sentada e colocou as patas dianteiras em cima de mim. Baixou a cabeça e mostrou os dentes ao falcão. Ambos os falcões recuaram para a extremidade mais distante do altar porque nenhum deles era estúpido, e talvez porque Adam tinha uns dentes enormes.
Primeiro olhei para Jim, que parecia estar muito concentrado na sua canção e em lançar as últimas folhas de tabaco para a fogueira; depois, olhei para o Coiote e para Gordon — que tinham desaparecido.
Adam lambeu-me a orelha, após o que se deitou entre mim e os falcões. As suas patas dianteiras pendiam na extremidade do altar, e suspeitei que as suas patas traseiras estivessem do lado de fora da extremidade oposta. O metro de cimento que correspondia à largura do altar era generoso para mim, mas não era, nem pouco mais ou menos, suficiente para o corpo estendido de um lobo.
Jim fechou os olhos e levantou a mão direita. Quando cerrou o punho, a batida do tambor parou — e com ela, a pulsação avassaladora da magia. Era como se alguém tivesse cortado a eletricidade numa discoteca e a música se tivesse calado. Tão repentinamente como se alguém tivesse batido uma porta, o Stonehenge era tão mundano quanto um modelo exato de um calendário neolítico podia ser.
Nenhuma magia, nenhum mistério, apenas um monumento cinzento, em cimento, que de repente tinha muito mais pessoas do que quando o tambor soava.
Gordon e o Coiote estavam na sua forma humana, postados diante dos monólitos sobre os quais haviam estado empoleirados. Entre nós e eles, seis homens índios que nunca tinha visto afastaram-se dos monólitos.
Um homem, que parecia ter a idade de Calvin, vestia um fato de três peças. Adam ensinara-me a reconhecer bons fatos, e este tinha vários milhares de dólares de qualidade. Um outro, à semelhança de Gordon, tinha um look de cowboy moderno, embora consideravelmente mais moderado. Botas castanhas, calças de ganga, camisa de tom terra e um chapéu de cowboy castanho ao estilo de Montana (com abas estreitas). O seu cabelo cinza-ferro estava compactamente entrançado e caía-lhe sobre o ombro, quase até aos joelhos.
Os outros quatro vestiam trajes indígenas tradicionais, embora, contrariamente às irmãs do Coiote, nenhum deles estivesse vestido de forma igual. Dois deles usavam peças de couro destinadas à caça de estilos ligeiramente diferentes. O mais velho, cujo rosto enrugado e cabelo branco faziam com que Gordon parecesse um jovem, trajava peças de couro quase tão desbotadas quanto a pele de gamo usada pelas irmãs do Coiote. Excetuando as franjas nas costuras dos ombros, as peças que usava eram lisas. As peças do outro eram castanhas-escuras com penas em redor do decote. Tinha manchas na roupa, como se tivesse ido caçar muitas vezes com aquela camisa e aquelas perneiras.
O terceiro homem com traje indígena vestia polainas de couro, mas a sua camisa larga era feita de guingão vermelho e atada com um cinto de cânhamo rematado com uma franja à qual estavam atados minúsculos sinos de latão. O seu cabelo estava cortado à altura do queixo.
O quarto tinha um pano vermelho à volta da cabeça, quase como um turbante, de onde assomavam talvez uma dúzia de penas vermelhas-acastanhadas. Vestia uma tanga revestida com contas que lhe dava pelos joelhos, tanto à frente como atrás. A sua camisa era em algodão listrado e parecia ter sido feita à mão e não à máquina, a julgar pela ligeira irregularidade da tecedura.
Vi-lhe bem a camisa porque subiu ao altar e agarrou o falcão mais próximo de mim, uma das mãos agarrando as perigosas garras. Encostou a ave ao seu corpo com força, prendendo as asas com um dos braços e o bico afiado com a mão.
— Com que então — disse numa voz com sotaque carregado —, ela tentou roubar o livre-arbítrio ao meu falcão.
— Tal como te disse, Falcão — disse o Coiote. — Consegues resolver isso?
O homem que segurava a ave dirigiu um olhar glacial ao Coiote, os seus olhos tão penetrantes quanto os do animal que com ele partilhava o nome. O falcão deixado para trás emitiu um ruído suave, como o de um passarinho no seu ninho.
— Não aprovo a tua conduta, Coiote. Sempre mostraste mais preocupação pelos bípedes humanos do que pelos seres cobertos de pelo.
— Foi-me pedido que ajudasse. Terias recusado o pedido do Grande Espírito?
O Falcão resmoneou.
— Já o fizeste antes disso. E olha para o resultado. — Largou as garras do falcão para fazer um gesto largo. Pouca diferença fazia, uma vez que Hank estava completamente aprisionado. — Existem carros e estradas, pontes e casas ao ponto de a terra não conseguir respirar. Teria sido melhor se o Grande Espírito se tivesse ficado pelos primeiros habitantes da terra.
O Coiote exibiu um tímido sorriso escarninho.
— Coisa que certamente lhe dirias.
— Estou a dizer-te a ti — replicou o Falcão.
Agachou-se e agarrou um punhado de terra e gravilha pequena. Arremessou-as ao ar, e o vento apanhou-as, segurando-as. Levantou a ave acima da sua cabeça e o vento soprou o punhado de terra contra o falcão, que crocitou quando foi atingido.
Lançou a ave para o ar, dirigiu um outro olhar glacial ao Coiote, e desapareceu. A ave caiu, e Hank aterrou no chão nu, na sua forma humana. E, estando nu, foi fácil perceber que a marca tinha desaparecido.
Ao meu lado, Fred, também na sua forma humana, pulou do altar ao encontro do seu irmão. Jim, agora sentado no tapete com ar exausto mas fascinado, fez um gesto ao seu aprendiz, e Calvin partiu em passo de corrida, presumivelmente para ir buscar roupa, embora não tivesse a certeza.
— O Falcão é impetuoso — disse o homem de fato. — E não gosto de concordar com ele. — O seu olhar descontraído percorreu o Stonehenge com uma curiosidade plácida. Passou por cima de Adam e de mim, depois regressou. Olhos azuis-claros que pareciam desadequados e, ao mesmo tempo, absolutamente apropriados àquele rosto tão ameríndio, concentraram-se em Adam.
— Ah — disse, caminhando da mesma forma eficiente e profissional que Adam usava para atravessar uma sala apinhada. — Este é que é o lobisomem.
Adam levantou-se devagar e sacudiu-se ligeiramente. Como se encontrava em cima do altar, a sua cabeça estava ao nível da clavícula do homem de fato — que só podia ser o Lobo.
— Já tinha ouvido falar na tua espécie — disse o Lobo.
Relanceei os olhos aos restantes homens presentes, que pareciam satisfeitos com a ideia de o Lobo ocupar o palco principal tal como o Falcão fizera momentos antes.
— Lobisomem. — O Lobo franziu o sobrolho. — Quando ouvi falar de vocês pela primeira vez, achei uma abominação. Um lobo encurralado na mesma pele que um humano… com os dois sempre em oposição. E, em certos sentidos, é abominável. Mas olhe para si. Você é belo.
Também achava isso.
— E em que é que isso difere dos nossos caminhantes? — perguntou o Coiote num tom interessado. — Eles também têm dentro de si os dois espíritos.
— Não — retorquiu o Lobo de forma ausente, ainda perdido na análise de Adam. — Nos nossos descendentes existe apenas um espírito que se expressa, ou como humano ou como animal. Isto é diferente. O lobo é meu, e o homem não o é, de todo. E ainda assim funciona.
Tocou em Adam, e senti-o através do nosso vínculo, senti o lobo de Adam avançar para conhecer o Lobo. Adam estava desconfiado mas não alarmado, nem dominante nem dominado.
As mãos do Lobo viajaram pela cabeça e pelo pescoço de Adam, como as de um juiz numa exposição de cães. Adam não deu qualquer sinal de que isso o incomodasse, embora me incomodasse a mim. Adam era meu.
— O predador perfeito — ronronou o Lobo, inclinando-se para a frente e esfregando a sua bochecha possessivamente no focinho de Adam.
É possível que tenha deixado escapar um uivo de descontentamento.
O Lobo olhou-me com os seus frios olhos azuis e os seus lábios dobraram-se, antecedendo uma rosnadela.
— Essa é minha — disse o Coiote. Fê-lo num tom descontraído, mas por trás dele havia uma dureza que transformava o simples comentário num aviso.
O Lobo olhou para o Coiote e estendeu o braço para me dar uma pancada com as costas da mão — e Adam apanhou essa mão com os dentes. O Lobo recuou com um silvo e Adam soltou-lhe a mão — mas havia sangue. Adam achatou as orelhas, colocando-se entre mim e o Lobo. Não estava a rosnar, mas tornara bem clara a sua posição.
— Estás a ver isto? — disse o Lobo. — Uma abominação. Os lobos não se juntam aos coiotes.
— Isso é uma fantasia tão antiga como o tempo — suavizou o Coiote. — As regras são estabelecidas para o bem da sociedade. Mas assim que se estabelece uma regra, alguém sente a necessidade de a quebrar. Se servir de ajuda, a maior parte dos lobisomens junta-se a humanos. O que é pior, diria, do que juntar-se a um dos meus coiotes.
O Lobo deu um passo na direção de Adam.
— Ela é sua companheira?
Não sabia se isso melhorava ou piorava as coisas, e estava em crer que o Lobo não sabia, tão-pouco. A sua mão já tinha parado de sangrar. Adam não fizera muito mais do que perfurar a pele. Tratara-se de um aviso e não de uma tentativa de magoar o Lobo. Gostaria de pensar que Adam era demasiado esperto para enfrentar algo como o Lobo — mas temia que isso não fosse verdade, não se ele pensasse que o Lobo me faria mal.
Arrependi-me de ter soltado aquele uivo possessivo, embora tivesse a certeza que, nas mesmas circunstâncias, o faria novamente. Não gostava que ninguém, para além de mim, passasse as mãos por ele. Tinha havido possessividade no toque do Lobo, e Adam pertencia-me.
— Deixaste-a com a marca do rio — disse o cowboy índio envergando as roupas de tom terra. A sua voz era macia como seda e bela.
— Deixei, Cobra — replicou o Coiote. — Uma vez que já matei a diaba do rio anteriormente, ela não consegue apoderar-se da Mercy como se apodera de toda a gente. No entanto, agora a Mercy é algo que interessa à diaba do rio, algo que já provámos ser capaz de atrair a atenção dela e conduzi-la até onde nós a queremos. A diaba do rio não gosta que a presa dela lhe fuja, e quere-a de volta. — Olhou para mim. — Há muitos quilómetros de água entre The Dalles e John Day.
E ela não precisara sequer de dez minutos para me encontrar quando o Coiote me atirara ao rio. Ele tinha razão: esse episódio ajudara-nos a descobrir muitas coisas.
Calvin regressara do sítio onde tinha ido. Trazia dois cobertores, que deu a Fred e a Hank. Hank pegou no seu com um aceno de agradecimento; porém, Fred voltou a transformar-se em falcão e voou até uma pedra vertical ali perto, empoleirando-se ao lado da vela que sobre ela repousava.
O velhote em vestes de caça de cor branca disse:
— Penso que talvez seja melhor deixar que a Diaba do Rio leve a sua avante. Depois de ela comer o mundo inteiro, ele pode ser construído de novo.
— Pareces tão seguro — disse Gordon numa voz interessada. — Estás? Não me parece que seja assim tão fácil.
O homem velho rosnou-lhe, um som volumoso e ressoante que de certo modo fazia sentido naquele feroz corpo velho.
— Amigo Urso — disse o Coiote. — A mudança não é má. A mudança é apenas a mudança. Assustadora para aqueles de nós que vão embora e regressam passado um longo período de tempo, é um facto. Mas não é malévola.
— Repara na poluição. — O Urso inspirou como se fosse capaz de sentir o cheiro do fumo a duzentos quilómetros de distância. O meu olfato é muito bom, e, se conseguisse falar, ter-lhe-ia dito para se deixar de tretas. — Nas estradas, nos caminhos-de-ferro. Repara nas casas atrás de casas que destroem os territórios de caça e deixam apenas uma fração minúscula das florestas. O Lobo disse que a Terra-Mãe não se consegue mexer debaixo do cimento e do aço, e eu digo que ele tem razão.
— Há coisas que são más — concedeu o Coiote. — Mas também havia coisas más no passado. Tempos de fome. Tempos de frio. Tempos de doença. Há coisas boas aqui. — Acenou ao Lobo com a mão. — Repara nas roupas que trazes vestidas. Esse fato é feito de seda e lã tecidos de uma forma que não era possível há uns séculos. Toda a mudança traz consigo coisas más e coisas boas para substituírem as coisas más e boas que existiam antes. É natural olhar para trás e dizer que dantes era tudo melhor, mas isso não faz com que seja verdade. Diferente não é pior. É apenas diferente.
— Existe alguma verdade naquilo que dizes, Coiote. — O Lobo afagava o seu blazer com a mesma possessividade que demonstrara em relação a Adam.
— Não gosto disto aqui — disse o homem que usava as peças de couro mais escuras; parecia descontente e inquieto.
— Lince Ruivo. — O Coiote gostava deste. Apercebi-me disso pelo tom da sua voz. — Existem bons territórios de caça aqui; só precisas de os encontrar, como sempre aconteceu. O Sol ainda emite calor e as flores ainda têm um cheiro agradável.
— Devias levá-lo à Disneylândia — sugeriu Gordon. — Ou então eu. Eu gosto da Disneylândia.
O contingente estritamente humano tinha estado muito calado até esta altura. Mas agora Calvin decidira-se a falar:
— Se dessem uma oportunidade, acho que concordariam que este sítio não é horrível.
O homem que usava o cinto com os sinos de latão colocou um braço à volta do Lince Ruivo.
— Eis o problema, Lince Ruivo. As coisas mudam, independentemente de tu quereres ou não… a menos que estejas morto. — A sua voz era rouca, como a de um fumador que tivesse fumado três maços por dia durante vinte anos. — Não te agarres tanto ao passado que ainda acabas por morrer com ele.
Olhou para o Coiote.
— No entanto, isto não faz o menor sentido. Todos concordámos fazer o que nos pediste, de outro modo não estaríamos aqui. Onde e quando?
— O Corvo tem razão — concordou o Coiote. Em seguida, descreveu a melhor forma de corvos, linces ruivos, lobos, cobras e ursos chegarem ao nosso parque de campismo. Quando terminou, disse: — Em relação a quando, penso que quanto mais cedo, melhor. Amanhã?
— Depois de escurecer — disse Jim. — O Calvin disse que o FBI anda à procura do possível responsável pelo campo de extermínio em que este rio se transformou. Nós não queremos que eles apareçam na altura errada. — Olhou para o Corvo e acrescentou: — Guerreiros com arpões que estejam marcados pelo rio são má ideia.
O Corvo sorriu-lhe.
— Eu sei quem são os agentes do FBI — replicou a Jim. — O Coiote não é o único que ainda vagueia por aqui.
Enquanto falavam, os outros foram-se embora. Alguns deles pareceram afastar-se a passo, porém vi o Lobo desaparecer, provavelmente porque o fez enquanto ainda fitava Adam. Que me pertencia.
— Obrigado, Corvo — disse o Coiote, após um breve relancear de olhos em volta para constatar que os restantes espíritos de animais, incluindo Gordon, se tinham ido embora.
— É possível que amanhã morramos para todo o sempre, velho amigo — disse o Corvo. — Mas, seja como for, será interessante.
Adam e eu abandonámos o local para nos transformarmos e vestirmos — no entanto, eu era a única que se transformava. O olhar de pânico de Adam cruzou-se com o meu enquanto vestia as minhas calças de ganga.
— Espera — disse-lhe. — Temos ajuda por perto.
Acabei de me vestir, enfiei os pés nas sapatilhas e agarrei as roupas de Adam o mais depressa que consegui. Depois voltei a subir a encosta, desejando ardentemente que o Coiote não tivesse partido como os restantes.
A razão para eu ter tanta certeza de que o Coiote sabia alguma coisa sobre lobisomens era um mistério para mim, mas pareceu-me que fazia sentido. Ele soubera que Adam teria dificuldades em transformar-se por causa da magia da terra.
As velas estavam todas apagadas. Jim e Calvin tinham ido embora; Fred e Hank tinham partido antes de nos termos ausentado para a transformação. O Stonehenge parecia deserto.
— Coiote? — chamei.
— Mercy?
Tinha quase a certeza de que já não estaria por perto, porém, aparentemente, ele e o Corvo estariam sentados no altar a jogar às cartas há algum tempo. Era-me difícil acreditar que me tivessem escapado, mas o Coiote era assim, pelo que não me preocupei com isso. Tinha outras coisas a ocupar-me a cabeça.
— O Adam não consegue transformar-se. Existe a possibilidade de a magia da terra ter feito alguma coisa que o impeça de se transformar?
— Não consegue regressar à forma humana? — O Coiote juntou as suas cartas e colocou-as numa placa de bronze, dedicando-me por completo a sua atenção. — Isso é estranho, estando vocês em lua-de-mel.
— Ele não consegue transformar-se — repliquei, ignorando a última frase. — É por causa da magia da terra? Os efeitos vão desaparecer quando sairmos daqui?
O Coiote considerou as minhas palavras.
— Não seria de esperar que a magia da terra interferisse, a menos que fosse comandada por um xamã, e eu acho que o Jim gosta de vocês.
O Corvo agitou o pescoço num gesto semelhante ao de uma ave.
— Não foi o Jim, nem foi a magia da terra. — A sua voz não deixava espaço para dúvidas. — O seu lobisomem mordeu o nosso Lobo, lembra-se?
O Corvo dirigiu-me um sorriso rasgado, uma expressão calorosa que era infinitamente tranquilizadora, embora não me ocorresse nenhuma razão que me levasse a achar que poderia confiar nele.
— O Lobo leva esse tipo de coisas a peito. No entanto, não é de ficar muito agarrado às coisas que o irritam. — O seu rosto pôs-se um pouco meditativo. — Não como a Coruja.
O Coiote resmungou:
— Ele ainda guarda rancor por causa daquilo? Já aconteceu há tanto tempo.
— Como é que eu ia adivinhar que era a coisa favorita dele? — Os olhos do Corvo brilharam como a luz das estrelas. — Era reluzente. — Olhou-me de soslaio. — Mas era pesada, por isso deixei-a cair ao mar. Foi um acidente.
— Acham que foi o Lobo que fez isto? — Estava a segurar a pelagem no pescoço de Adam com força. Era um hábito que desenvolvera nos últimos meses porque me deixava mais tranquila.
Adam não aparentava estar preocupado ou nervoso, mas se estivesse, não iria permitir que isso transparecesse diante de pessoas que eram basicamente desconhecidas. Eu estava a desempenhar o papel de preocupada e nervosa pelos dois.
Um lobisomem consegue permanecer na forma de lobo durante algum tempo. Uns dias, sem problema. Umas semanas… não tão bem, mas a maior parte deles recupera posteriormente. Meses era impossível — um ou dois. Depois disso, seria completamente lobo, sem centelha de humano. O filho de Bran, Samuel, passara por essa experiência, e o seu lobo comportara-se de modo razoavelmente civilizado durante as duas primeiras semanas, o que deixara toda a gente boquiaberta. Todavia era improvável que Adam, que ainda não tinha sequer um século de idade, conseguisse fazer o mesmo.
— Quanto tempo é que vai durar? — perguntei.
O Coiote suspirou.
— Mercedes, é necessário poder para tornar a presença do lobo de Adam assim tão forte, ao ponto de a sua metade humana não ser capaz de se transformar. Nós… Nós já não temos muito desse poder aqui na terra, e provavelmente foi por isso que o Lobo o fez: para mostrar que não é alguém com quem se brinque. — O Coiote olhou para Adam. — Podia tê-lo matado se quisesse. Teria sido mais fácil. Ficaria surpreendido se depois da batalha de amanhã o castigo do Lobo não se dissipasse. Seria fácil ficar zangado com ele, mas ele e os outros concordaram sacrificar-se. Penso que depois disso será improvável ele regressar a este sítio tão cedo.
— Se é que algum dia regressará — concordou o Corvo em voz baixa. Pegara em todas as cartas e distribuíra-as de acordo com um padrão do solitário. A aranha, pensei, ou uma variação qualquer. — Portanto permitam que ele mantenha aquilo que entende ser a sua dignidade e não se preocupem.
— Obrigada — disse a ambos. Comecei a afastar-me, mas depois lembrei-me de algo. — Ei, Coiote?
Acabara de levantar novamente as cartas e estava a baralhá-las.
— Sim.
— As suas irmãs pediram-me para lhe dizer que acharam o seu plano bom.
— Disseram-lhe qual era? — Parou de baralhar, mas a rapidez do seu gesto deu-me a entender que fora invadido por um sentimento intenso.
— Sim. — Respirei fundo. — Acho que sou o elo mais fraco aqui. Mas darei o meu melhor.
Sorriu.
— Sim, confio que dará.
Quando algo me acordou de um sono profundo a meio da noite, presumi que fosse o Coiote novamente. Desta vez, também acordei Adam.
— Alguém quer que eu vá lá fora — disse-lhe, batendo com a mão na testa. — Acho que o Coiote quer falar comigo outra vez.
Quando saí da cama, tropecei no bastão. Peguei-o suavemente, em vez de praguejar com ele, e encostei-o à parede. Praguejar com artefactos antigos pareceu-me um pouco insensato. Não era algo que eu fizesse sem antes ter considerado cuidadosamente todos os efeitos possíveis.
Adam e eu encaminhámo-nos para a zona de banhos no rio, de onde vinha o chamamento. Todavia não era o Coiote.
Conseguia vê-la na escuridão — ou pelo menos o redemoinho por ela causado. A água turva fervilhava e redemoinhava enquanto ela nadava em círculos preguiçosos.
Mercedes Thompson. A sua voz estava na minha cabeça.
Sentei-me no chão produzindo um ruído surdo, na ténue esperança de que isso de certo modo lhe dificultasse a tarefa de me atrair para a água. O Coiote tinha sido demasiado precipitado ao declarar-me imune aos seus encantos. Talvez ela não conseguisse forçar-me a afogar os meus próprios filhos — e Jesse, graças a Deus, estava a cento e cinquenta quilómetros de distância. Mas conseguia chamar-me até si, e conseguia falar comigo.
Com toda a força que tinha em mim, pensei: Morre.
Mercedes, disse novamente, a sua voz como um líquido frio na minha cabeça, provocando-me uma dor de cabeça aguda. Está a ouvir-me? Consegue ver aquilo que eu quero que veja?
— Consegues ouvi-la? — perguntei a Adam.
Ele olhou na direção do rio.
— Não. — Dei-lhe uma palmadinha, depois dei uma palmada na minha testa. — Ela está aqui dentro.
O branco dos seus dentes reluziu na escuridão.
A MacKenzie Hepner tinha oito anos feitos há quatro dias. Ela devia estar na tenda com o irmão mais novo, mas tinha sido acordada por qualquer coisa. Puxou a camisa de noite para cima e entrou na água fria. No braço conseguia ver a marca que aquela erva lhe deixara quando tinha ido nadar para muito longe no rio e o padrasto tivera de nadar ao encontro dela para a salvar. Isso fê-la repensar o que sentia pelo padrasto. Ele não lhe tinha gritado, limitara-se a abraçá-la. Precisou de algum tempo para perceber que também ele estava com medo…
Consegue ver aquilo que eu quero que veja?
A minha respiração transformou-se em ofegos de pânico. Não tinha apenas sonhado com a pobre Janice e com a sua família. A diaba do rio fornecera-me os detalhes posteriormente. Talvez não tivesse sido de propósito. Talvez. Mas tinham sido reais, e esta menina de oito anos chamada MacKenzie também era real.
Escondi a testa contra o corpo de Adam e relatei-lhe o que se estava a passar, transmitindo-lhe as palavras que ela me dizia e descrevendo-lhe o resto. Gemeu de descontentamento.
Faça-me um gesto se estiver a ver aquilo que eu quero que veja. Consegue vê-la?
Como é evidente, ela não me conseguia ler os pensamentos. Tal como Bran, a única coisa que ela podia fazer era enfiar-me coisas na cabeça.
Os pés da MacKenzie estavam dormentes, e as pedras faziam com que as plantas lhe doessem. Ela não devia estar aqui no rio à noite. Ela sabia que era contra as regras…
Acenei tenuemente com a mão. Não queria saber mais nada sobre uma criança que ia caminhar rio adentro para ser comida.
Eu vou deixá-la viver.
— Ela diz que vai deixar a criança viver — transmiti a Adam.
Ele percebeu as suas palavras antes de mim, creio, porque encheu os pulmões e rosnou-lhe — a mim, após o que me deu um encontrão com o flanco numa ordem clara para regressar à caravana.
Senti o riso dela. Vira a reação de Adam. Sabia que a tinha ouvido.
Troca. Uma troca. Uma troca. Você por ela. Você vem esta noite para morrer e eu deixo a criança e o irmão dela viverem.
Adam postou-se entre mim e a diaba do rio.
— Ela está a propor uma troca — disse-lhe. — Eu pela rapariga. E, aparentemente, pelo irmão também. Se eu morrer, eles vivem.
Adam olhou para mim com o coração nos olhos.
— Ela tem oito anos — disse-lhe. — Acabados de fazer. Ontem o padrasto dela provou que talvez se safe. Ela está disposta a dar-lhe uma oportunidade. A criança tem um irmão mais novo que pode ir buscar e trazer consigo. — Engoli em seco. — O que é que tu farias, Adam? Estarias disposto a morrer para que a rapariga pudesse viver?
Eu sabia a resposta — e, a julgar pela sua linguagem corporal, ele também. A seguir, olhou para o monstro escondido na água e novamente para mim com um movimento vacilante das orelhas. Adam não podia fazê-lo porque ela não o queria a ele. Eu tão-pouco podia fazê-lo. Por muito que quisesse. Sem mim, o plano do Coiote não funcionaria.
— Será que está a mentir? — disse, enquanto a diaba do rio entoava as suas promessas na minha cabeça. — Sou mais valiosa para ela do que a criança, acho. Ela sabe do Coiote e do seu interesse em mim, e isso preocupa-a. Mas e depois de eu estar morta? Será que ela cumpriria a palavra dada? Quem pode saber?
— Ela cumpriria a palavra dada. — O Coiote apareceu, postando-se ao lado de Adam. — Mas, seja como for, eu não posso permitir que faça isso.
— Eu sei. As suas irmãs tornaram bem claro que você precisa de mim.
Adam gemeu novamente.
— Eu depois falo-lhe do meu encontro com elas — prometi. Tinha-me esquecido de lhe relatar o que se tinha passado; ambos estávamos cansados.
Escolha, Mercedes.
— Para uma criatura malévola antiga, expressa-se num inglês muito bom — disse.
— Tem andado a comer pessoas falantes de inglês. — O Coiote sentou-se ao meu lado.
— Consegue ouvi-la? — perguntei.
Abanou a cabeça.
— Não. Ela não me pode marcar.
— Consegue salvá-la? — perguntei ao Coiote. — Consegue salvar aquela criança? Não abriu caminho para que as águas corressem e movessem montanhas? O Corvo pendurou as estrelas.
— Isso foi há muito tempo, sob a orientação do Grande Espírito — replicou, parecendo triste. — Aqui, estou sozinho.
— Porque é que o Grande Espírito não resolve isto?
— Porque é que haveria de o fazer? — perguntou o Coiote. — Tudo o que é mortal morre. A morte não é uma coisa assim tão má. Coisa má seria viver sem desafios. Se não conhecermos a derrota, não temos como saber o que é a vitória. Não existe vida sem morte.
— Gosto mais do meu Deus do que do seu — disse-lhe.
— Não sabe, minha menina? O seu Deus e o meu são um só. — O Coiote observava a diaba do rio à espera da minha resposta. — O Grande Espírito deu-nos o nosso engenho e a nossa coragem. Ele envia ajudantes e conselheiros. Ele enviou-me ao seu encontro, não é verdade? Falei com as minhas irmãs esta noite. Foi bom.
— Consegue salvar esta rapariga?
— Sabe onde ela está?
— Num parque de campismo perto do rio — respondi. Mas seria um parque de campismo? Havia imensos sítios onde se podia acampar. — Não, não sei.
— Nesse caso, não.
— Que merda — disse.
Ou você ou eles morrem. Troca. Você morre, eles vivem.
— Existe alguém que me possa substituir? — perguntei.
— Ninguém que eu conheça. Fiquei surpreendido ao constatar que a marca dela não exerceu controlo sobre si. Você é a única criatura deste mundo que eu vi resistir-lhe.
— Se eu não estivesse aqui, o que é que você faria?
Suspirou.
— Um de nós ocuparia o seu lugar. Mas entre nós são só sete os que podem ou estão dispostos a ajudar. Acredito que chegará uma altura em que o Grande Espírito nos enviará novamente para o mundo, incumbidos de cumprir determinadas tarefas. Mas muitos de nós ficaram magoados quando os europeus varreram isto tudo. A doença levou tantos filhos nossos, e depois os vampiros escolheram os que tinham conseguido sobreviver para provocar ainda mais mortes… — Suspirou. — Foi-nos permitido que batêssemos em retirada e lambêssemos as nossas feridas… e para muitos será necessária a intervenção do Grande Espírito para os retirar dos seus antros seguros. — Esfregou o pé descalço no chão, fazendo uma pedra rolar cerca de quatro metros. — Não vou mentir. É possível que o que temos ao nosso dispor não seja suficiente para fazermos o que precisamos, mesmo consigo. Ou sem si? — Abanou a cabeça.
Mercedes. A reclamação era furiosa e impaciente.
Peguei numa pedra e, em resposta, atirei-a ao rio com desprezo.
Que cobardia salvar-se em detrimento de uma criança. Há de ver o que fez.
Fiquei a saber muita coisa nos quinze a vinte minutos que se seguiram. Fiquei a saber que o irmão mais novo de MacKenzie se chamava Curt, como o meu padrasto. Tinha quatro anos — e estava marcado, tal como MacKenzie, pelo que não ofereceu resistência quando a irmã o transportou pela anca rio adentro. Como presente especial para mim, penso, a diaba do rio libertou-lhes as mentes do seu controlo antes de os matar. Mas se calhar fê-lo porque os gritos de MacKenzie atrairiam a atenção dos seus pais, que desfizeram a tenda e se lançaram à água atrás deles.
Fiquei a saber que podia ter trocado a minha vida pela vida de quatro pessoas. Quatro.
12
Não dormi. Para quê? Acordada ou a dormir, a probabilidade de ter pesadelos era igual.
Tinha tomado a decisão acertada, a única decisão possível. Mas isso não facilitava em nada a convivência com a morte de quatro pessoas que podia ter evitado.
Dei de comer a Adam, e quando ele me grunhiu, decidi-me a comer também. Tinha de manter as minhas forças. Se quatro pessoas tinham morrido para que eu tivesse a oportunidade de ajudar a matar a diaba do rio, não ia comprometer o plano por não ter comido.
Cerca das 5h00, quando o primeiro indício ténue da aurora tocou o céu, Adam e eu entrámos no SUV e seguimos novamente em direção ao Stonehenge. Sem Adam para conversar e nada para fazer, conduziria os dois à loucura caso tivéssemos permanecido no parque de campismo. Era preciso fazer desaparecer os vestígios deixados no Stonehenge. Podia fazer isso e poupar algum trabalho a Jim e Calvin.
Só por volta das 2h00 é que tínhamos abandonado o monumento naquela madrugada, e Jim parecera um homem absolutamente exausto. Contava que ele aparecesse a uma hora mais civilizada. No entanto, ele e Calvin chegaram cerca de dez minutos depois de eu finalmente ter encontrado o banco que me permitiria remover as velas do topo das pedras verticais. Elevações em quarenta e cinco monólitos (contei-os enquanto ponderava a melhor forma de retirar as velas) parecera-me um dispêndio de energia exagerado considerando que mais tarde ia ter de matar um monstro.
Calvin acenou-me e pulou para o interior da caixa aberta da carrinha para pegar em duas caixas. Saltou para fora e dirigiu-se a mim em passada rápida enquanto Jim saía da carrinha e fechava a porta.
— Ei — disse Calvin. — Não estava à espera… — Viu Adam e estacou. — Hum… O que é que se passa com ele?
Mesmo os lobisomens felizes são assustadores em plena luz do dia se os nossos olhos nos permitirem ver exatamente o que eles são. Adam não era um lobisomem feliz.
— O Lobo ficou ofendido por ter sido mordido — expliquei-lhe. — Portanto o Adam não consegue regressar à forma humana.
— Oh, diabo — replicou Calvin. — Que chatice… e vocês estão em lua-de-mel. — Depois corou de embaraço.
No entanto, essa não era a razão pela qual Adam estava enfurecido. Tinha-lhe contado acerca das irmãs do Coiote depois de este se ter ido embora. E sussurrara-lhe qual era o plano para matar o monstro. Adam não tinha como falar para me dizer o que pensava. Sabia que compreendera que tinha sido o melhor plano que conseguíramos engendrar. Sabia também que o plano não era do seu agrado. Minimamente. É impressionante o que a linguagem corporal pode transmitir.
— O Coiote tem a certeza que é temporário — disse-lhe, removendo a vela seguinte enquanto Calvin começava a colocá-las nas caixas que trouxera. As caixas eram semelhantes às que as empresas de transporte usam para embalar peças de vidro, com divisões em cartão que permitiam que as velas fossem colocadas separadamente. — Mas não o olhes diretamente nos olhos, ok?
Demorámos cerca de hora e meia a remover os indícios da noite anterior e a deixar o lugar conforme estava antes do ritual. O mais difícil foi retirar a gravilha escura e grossa da gravilha clara e muito mais fina.
— Podia ter usado uma prancha de contraplacado — disse eu a Jim, que estava no altar a criticar-nos, a mim e a Calvin, enquanto tirávamos uma pedra de cada vez para colocar num carrinho de mão.
— Não — retorquiu. — Não podia. O fogo tinha de estar em contacto com a terra. Aliás, o uso da gravilha foi, de certo modo, batota.
— Da próxima vez. — Até Calvin, o Sempre Alegre, estava a ficar mal-humorado. — Sou a favor de que da próxima vez se faça a fogueira no chão. Depois tiro tudo com uma pá e tapo com gravilha igual à original.
Jim resmoneou:
— Isso implica mais trabalho. Usámos esse método durante alguns anos até eu começar a usar este.
— E se usar um saco de juta? — perguntei. — Uma coisa porosa mas cujas aberturas não sejam largas ao ponto de a gravilha a atravessar. Ou usar gravilha mais parecida com a que está aqui.
— É possível que funcione — concordou Jim. — Mas nesse caso o que é que o meu aprendiz ia fazer? Suponho que podia fazer o que o meu professor fazia e ensiná-lo a ensartar contas.
— Eu apanho gravilha, tio, obrigado — disse Calvin submissamente.
O feiticeiro riu-se.
— Bem me pareceu que a tua opinião seria essa.
Parei na bomba de gasolina em Biggs e comprei dois gelados de cone — de banana e morango — e um bloco de notas. Comemos no SUV até Adam terminar o seu cone de morango, dado que não podia comer e dar de comer a Adam e conduzir ao mesmo tempo.
Enquanto atravessava novamente a ponte, ainda a lamber o meu gelado de banana, consegui ver o Parque de Campismo de Maryhill, repleto de tendas, caravanas e autocaravanas. Teria MacKenzie acampado lá com a sua família? Ou teriam estado num sítio mais privado? Não tinha visto mais nenhum campista. Mas se tivessem estado no Parque de Campismo de Maryhill, talvez o Coiote tivesse tido possibilidade de ir ao encontro dela a tempo de a salvar enquanto eu entretinha a Diaba do Rio. Se tivesse estado no Parque de Campismo de Maryhill e soubéssemos onde ela se encontrava.
Regressei para o parque e comecei a escrever. Uma carta para a minha mãe e uma para cada uma das minhas irmãs. Obviamente, não fiz qualquer menção ao Coiote. Uma carta extensa para Samuel e Bran. Uma carta para Jesse. Uma carta para Stefan. Imensas páginas que queimaria se sobrevivesse àquela noite.
Jesse ligou para o telemóvel de Adam enquanto eu estava a meio da carta a ela destinada. Ele trouxe-o até mim para que o atendesse — depois de uns quantos gestos desajeitados.
— Preciso do meu papá — disse Jesse intensamente. — Agora.
— Ele não pode falar. — Adam pousou o queixo na minha perna.
— Não quero saber. Leva-lhe o telefone à casa de banho.
— Ele está na forma de lobo — expliquei-lhe pacientemente. — Não pode falar. Há alguma coisa que eu possa fazer por ti?
— Porque é que ele está na forma de lobo? — perguntou, soando chocada. — Vocês estão em lua-de-mel.
— Jesse, por muito que eu gostasse de discutir a minha lua-de-mel contigo, podes dizer-me de que é que precisas?
— É o Darryl — lamentou-se. — Está impossível. A Auriele saiu para fazer não sei o quê, e ele diz que eu não posso ir às compras. A minha loja preferida vai estar em saldos durante quatro horas, do meio-dia às quatro, e ele não me deixa ir.
Jesse, ao que sabia, nunca gostara de fazer compras. Havia outras coisas a preocupá-la, e só me ocorria uma capaz de lhe colocar aquele tom nervoso na voz.
— O Gabriel quer fazer alguma coisa — interpretei. — Talvez ir ao cinema? O Darryl seria um estorvo, portanto achaste que se inventasses uma ida a algum sítio ao qual tu sabias que o Darryl não iria, ele te ia deixar ir sozinha.
— O Darryl está mesmo aqui ao lado, sabias? — replicou.
— Talvez o teu pai tivesse acreditado na tua história, mas eu duvido dela — disse-lhe. — Aonde é que vais?
— O Darryl critica os filmes — respondeu. — Em voz alta. Durante o filme, e o Gabriel…
Gabriel mudara no último meio ano. Tinha sido expulso de casa por uma mãe que amava (e que o amava a ele — isso era parte do problema) e feito prisioneiro por uma rainha das fadas. Coisas como essas mudam uma pessoa. Agora era, sobretudo, uma pessoa um pouco mais desconfiada e bastante mais sombria.
Gabriel estava a viver na casa que fora construída para substituir aquela onde eu vivera, de modo que ele e Jesse eram agora vizinhos. No entanto, Gabriel deixara de se reger pelo princípio de que tudo iria ficar bem — depois de ter visto os monstros serem monstros. Perto de certos lobisomens, era muito… cauteloso. Adam não parecia incomodá-lo, mas Darryl sim.
— E se fores com o Kyle e o Warren? — perguntei. Warren era todo modesto e tímido, para além de ser quase tão bom a esconder o seu instinto dominador quanto Bran. As pessoas tendiam a gostar de Warren, e ele e Gabriel davam-se muitíssimo bem.
Fez-se um breve silêncio.
— O Kyle é importante, Mercy. Ele e o Warren não podem pura e simplesmente perder o seu tempo para irem ver um filme com dois putos.
Ri-me, e Adam espirrou.
— Ouviste o que ela disse, Darryl? O Kyle é importante.
— É bom saber que existe alguém importante aqui — resmungou. No entanto, não estava zangado. Darryl tinha um doutoramento e trabalhava numa equipa de especialistas financiada pelo governo como analista de coisas demasiado complexas para os cérebros da maior parte das pessoas. Ele e a sua companheira, Auriele, tinham-se tornado os babysitters de Jesse quando a mãe dela partira. Assim acontecera porque as mulheres-lobas eram extremamente raras: o bando de Adam apenas tinha duas. E Darryl era o número dois de Adam, um lobo mais do que à altura de enfrentar quem quer que pudesse tentar fazer mal à filha do Alfa do Bando da Bacia do Columbia.
— Eu telefono-lhes — disse Darryl. — Agora que sei qual é o problema. Podias ter-me dito, Jesse.
— Não queria ferir os teus sentimentos — murmurou Jesse. — Não que ele não goste de ti.
— Eu sei exatamente qual é a razão. — A voz de Darryl era tão intensa que ressoou. — Não há problema. Não me importo de assustar as pessoas. Especialmente, não me importo de assustar os teus namorados.
— Então está tudo resolvido? — perguntei.
— Creio que sim — disse Jesse.
— Se o Kyle e o Warren não puderem ir, liguem ao Samuel e à Ariana.
— Farei isso — replicou Darryl.
— Amo-te, Jesse — disse eu da forma mais natural possível. — Até breve. — Provavelmente. Talvez. A morte de MacKenzie, de oito anos, na passada madrugada enfraquecera o meu habitual otimismo.
— Diz ao meu papá que é bom que não passe a lua-de-mel toda na forma de lobo — disse Jesse. — Amo-vos aos dois.
Adam tinha estado a ler a minha carta. Depois de finalmente descobrir como se desligava o telemóvel dele, olhei-o nos olhos.
— Não estou a planear morrer — disse-lhe. — No entanto, Sr. Sempre Preparado Para Tudo, há coisas que eu gostava de dizer às pessoas caso isso aconteça.
Como dizer que as amava. Como dizer que alguém precisava de olhar por Stefan, que parecia ainda não estar muito bem. Warren ligara dois dias antes para me pôr a par do que se passava e dissera-me que o rebanho de Stefan parecia estar melhor. Stefan angariara duas pessoas em Portland, mas ainda estava excessivamente magro. Warren e Ben iriam à casa de Stefan alternadamente para servirem eles próprios de alimento ao vampiro, mas isso seria algo temporário. E alguém precisava de esperar mais cerca de dez anos e depois localizar as crianças, entretanto crescidas, que pertenciam àquele pobre camionista que fora incriminado por assassinatos cometidos por um vampiro e dizer-lhes que ele não tinha enlouquecido subitamente e matado uma série de pessoas inocentes. Essas coisas tinham de ser feitas se eu não estivesse presente para as fazer.
Adam estava inquieto e zangado, por isso disse-lhe para sair e ir caçar qualquer coisa. Talvez matar algo o fizesse sentir-se melhor.
Escrevi a carta destinada a ele enquanto estava ausente. Quando terminei, deitei-me na cama e tentei descortinar outra forma de resolver este desastre.
Telefonar aos lobisomens a pedir ajuda estava fora de questão. Os seres feéricos… Zee era meu amigo. Podia telefonar a Zee. Considerei essa possibilidade. Seria uma boa ideia?
Não se a diaba do rio conseguisse marcar os seres feéricos, pensei. Os seres feéricos não eram imunes à magia. Eu tinha visto uma rainha das fadas forçar outros seres feéricos a venerá-la — e alguns deles eram razoavelmente poderosos.
Se a diaba do rio conseguisse corromper Zee… Só em duas ocasiões vi Zee sem o seu glamour, e foi impressionante. Mais impressionante ainda foi a forma como as outras criaturas feéricas o tratavam: com um respeito prudente — inclusive os próprios Senhores Cinzentos. Se ele tivesse de obedecer à diaba do rio, seria muito mau.
Ora… O Coiote e os seus semelhantes iam deixar-se comer. E ai de quem ficasse vivo se não matasse o monstro. Ia tentar nadar sobre ele e eliminá-lo com uma faca de pedra — presumivelmente o Coiote facultar-ma-ia.
O uso de equipamento de mergulho talvez fosse bom.
Tive a impressão de me lembrar…
Dirigi-me ao banco na zona da cozinha e retirei a almofada que o cobria. A cobertura do banco abriu-se, revelando dois conjuntos completos de material de mergulho livre. Tinha reparado naquilo quando explorara a caravana, e agora isso fazia-me questionar até onde chegara a visão da Rapariga do Ioió. Não teria sido Adam a colocar o equipamento ali.
Conheço alguns lobisomens viciados em adrenalina que fazem mergulho submarino, mas nenhum que faça mergulho livre. Em rigor, não é preciso saber nadar quando se faz mergulho submarino, onde a descida e ascensão são controladas por cintos de pesos e um fato cheio de ar.
Retirei um par de meias aquáticas que pareciam servir-me e o mais pequeno dos pares de barbatanas. Quanto ao tubo de respiração, deixei-o ficar. A minha antiga companheira de quarto passara um verão inteiro a tentar ensinar-me a fazer mergulho livre. Chegámos à conclusão de que as barbatanas aumentavam substancialmente a minha velocidade na água e de que o tubo de respiração aumentava substancialmente a probabilidade de eu me afogar.
Hank Owens gritou enquanto eu fechava o compartimento debaixo do banco e perguntou por Adam.
— Ele foi correr — disse-lhe.
— Importa-se de lhe pedir desculpa por mim, minha senhora? Foi a primeira vez que disparei contra um civil.
— Você não o alvejou de propósito — repliquei.
— Não quero discutir consigo, minha senhora — disse num tom de voz suave —, mas apontei-lhe a minha arma e premi o gatilho. Mais «de propósito» do que isso não existe.
Fiquei com a impressão de que podíamos passar o dia a argumentar e contra-argumentar.
— Muito bem. Eu não acho que você lhe deva um pedido de desculpa. Ele não vai achar que você lhe deve um pedido de desculpa, mas eu transmito-lhe a mensagem. Como é que você está? Aquela coisa da areia que o Falcão lhe fez não pareceu muito agradável.
— Não, não foi, minha senhora. Mas estou bem.
— Ainda bem.
— Obrigado por transmitir a minha mensagem, minha senhora.
— Não tem de quê.
Na altura em que Adam regressou, tinha chegado à conclusão de que o plano do Coiote tanto podia funcionar como não e que não havia nada que eu pudesse fazer para me sentir mais preparada.
— Apanhaste alguma coisa? — perguntei.
Abanou a cabeça. Depois abanou tudo o resto.
— O Hank veio pedir desculpa por ter disparado contra ti.
Baixou as orelhas.
— Foi o que eu lhe disse. Mas pareceu-me que ele sentia necessidade de o fazer, por isso disse-lhe que te transmitia a mensagem.
Tinha feito tudo o que podia. Se permanecêssemos aqui, a única coisa que ia fazer era entrar num estado de pavor ao qual era provável que Adam se viesse a juntar.
— Ei, Adam? Vamos sair para almoçar. — Este podia ser o meu último dia neste planeta, e recusava-me a passá-lo abatida. Mesmo considerando que me vira obrigada a deixar que quatro pessoas morressem esta manhã para preservar a minha vida. Engoli em seco.
Adam latiu em sinal de concordância com a minha proposta e acompanhou-me até ao SUV.
Fomos a um takeaway. A maior parte dos restaurantes não permite a entrada de cães. Seguimos de carro até ao primeiro sítio bonito que vi e, rodeados por plantas florescentes, comemos tacos. As gaivotas não nos chatearam sobretudo por causa da presença de Adam. Quando acabámos de comer, juntei o lixo e deitei-me com a cabeça em cima de Adam e adormeci, absorvendo o calor do dia como um bálsamo para a minha alma.
E não sonhei, pelo menos que me lembrasse.
Acordei com Adam a lamber-me o rosto — e sentia-me um pouco quente. Não costumo ficar com queimaduras provocadas pelo sol, porém adormecer a meio de uma tarde quente de verão poderia ser suficiente para isso ter acontecido. Toquei no meu rosto com as pontas dos dedos, mas a pele não parecia dorida, apenas quente.
— Devia usar protetor solar se pretende dormir aqui fora. Um dia pode acontecer já não ter um protetor com poderes mágicos que apareça para lhe tratar das queimaduras. — O Coiote sentou-se ao nosso lado, mascando uma erva. — Está preparada?
Não sabia há quanto tempo estaria ali, mas o Sol estava quase posto. Sentei-me. Já tinha passado a hora de jantar, mas não sentia fome. Quanto ao lobisomem, a questão já era outra.
— O Adam vai precisar de mais comida — disse, olhando-o de viés. — Mas sim, não podia estar mais preparada.
— Porque é que está a olhar para mim dessa forma? — perguntou.
— Não sabia que você também fazia de protetor com poderes mágicos.
— É uma coisa secundária — replicou modestamente, pondo-se de pé. — Vamos arranjar comida.
O Coiote seguiu no banco traseiro e comeu o dobro de Adam — e isso queria dizer alguma coisa.
— Tenho facas para si — disse-me, lambendo o sal deixado nos dedos pela última batata frita.
— Facas?
— Sim. Da última vez que fiz isto, foram precisas nove, por isso trouxe-lhe doze. São de obsidiana, tenha cuidado para não se cortar quando as usar. As minhas irmãs fizeram a bainha e as facas, portanto são mais afiadas do que qualquer faca que já tenha visto. Lembre-se: a obsidiana é quebradiça e o gume não se mantém para sempre, razão pela qual lhe trouxe tantas.
— Está bem — disse-lhe. Apercebi-me de que não tinha mentido ao Coiote no pequeno parque: eu estava preparada. A sesta ao sol com o bater do coração de Adam no meu ouvido acalmara-me, e dera-me coragem. Independentemente de ter êxito ou fracassar, daria o meu melhor para garantir que a diaba do rio morresse esta noite. Mais do que isso não podia fazer.
Estavam sete à nossa espera na caravana. Como é evidente, o Falcão também decidira ajudar. Tinham tomado a iniciativa de entrar e de se servirem de comida, bebida, e — a julgar pelo que via — todas as coisas doces disponíveis. Parecia uma invasão de piratas. Se soubesse qual o tipo de comida que apreciavam, teria trazido duas dúzias de donuts.
A noite começava a cair.
Ninguém disse grande coisa, mas quando o Sol tocou o horizonte a ocidente, roupas desapareceram enquanto se muniam de coisas apropriadas a uma guerra. À semelhança do que acontecia nos antigos clãs escoceses, para a maior parte das tribos da América, guerra significava estar-se o menos vestido possível. A idade aparente dissipou-se e os espíritos dos animais que caminhavam comigo em direção ao rio ostentavam corpos tão uniformemente musculados como o de qualquer lobisomem. Também estavam cobertos de pelo ou penas, consoante a exigência da sua aparência, e tinham cabeças de bestas — as suas verdadeiras formas, de uma beleza e estranheza que nunca tinha visto. Fizeram-me lembrar os deuses egípcios; nunca tinha pensado na semelhança antes. Estavam armados, também — todos exceto as aves, que iriam travar a batalha a partir do ar nas suas formas animais.
Aqui não havia sacrifícios passivos. Iam para lutar, mas nenhum deles parecia acreditar que não iria perder.
Todos conheciam a diaba do rio melhor do que eu.
Quanto a mim, envergava o meu velho fato de banho azul com uma bainha de couro macio segurando facas de obsidiana. A bainha envolvia o meu corpo como uma faixa da Miss América ou uma daquelas bandoleiras antigas. As facas estavam firmemente seguras pelo couro bem curtido da bainha. Não se pareciam muito com facas normais — ou sequer com as facas que o Coiote tinha sacado para obrigar a diaba o rio a recuar para dentro da água. Estas eram facas como a que Gordon usara para remover a bala do corpo de Adam. Usá-las seria basicamente como usar a lâmina de um x-ato. Não tinham punho, apenas um lado embotado onde era seguro agarrar e um lado muito afiado para cortar.
Por cima da bandoleira trazia uma das camisas de cerimónia cinzentas-escuras de Adam. Não fazia sentido publicitarmos os nossos planos.
O Coiote acenou-me com a cabeça e eu caminhei em direção ao rio. Adam pôs-se a andar tristemente de um lado para o outro na margem, mesmo em frente ao local onde a diaba do rio aterrara, de modo a ficar fora do seu alcance. Não aceitara de bom grado permanecer longe do rio, mas não era estúpido. Não podia arriscar-se a ficar sob o controlo dela, tal como acontecera a Hank.
O plano era eu manter-me em segurança até ser a minha vez de agir — no entanto, eu ia ser necessária para servir de engodo de modo a fazê-la aproximar-se. O Coiote e eu decidíramos que não devia avançar para lá do local onde a água me desse pelos joelhos, o que me colocava a cerca de cinco metros da margem. A essa distância curta, o Coiote estava confiante de que me conseguiria agarrar antes que ela me puxasse para as águas profundas. Ter a água à altura dos joelhos significava que a totalidade da marca do rio na minha perna ficaria submersa. O Corvo levantou voo para ver se, a partir do ar, conseguia distingui-la quando aparecesse, embora fosse improvável. O rio escuro não revelava os seus segredos facilmente.
Sentia-me preparada. Passaram-se dez minutos.
Nada aconteceu. Nada a não ser o facto de eu começar a sentir frio. E medo, porque não sou estúpida. Algures no rio estava um monstro que me queria comer, e eu estava a desafiá-lo a fazê-lo.
Olhei para a linha da costa, mas ninguém parecia impaciente — exceto Adam. Se bem que o que ele sentia não parecia propriamente impaciência, mas uma frustração crescente. O Corvo acenou e eu retribuí-lhe o aceno antes de a sensação de não ter nada a proteger-me a retaguarda me fazer voltar novamente.
— Ela não é estúpida — murmurei de mim para mim enquanto fitava a água escura. — Certamente estará a perguntar-se o que faço eu aqui no rio uma vez mais depois do que se passou esta manhã. — Tentei pôr-me dentro da sua cabeça. — Não vim ter com ela para salvar uma criança, mas agora estou aqui na água como se nada fosse. Será esta mulher estúpida?, estará a perguntar-se. Será a Mercedes o engodo para uma das armadilhas do Coiote? Ele matou-a noutra ocasião, mas ela agora está mais forte e ele mais fraco. Mesmo que seja uma armadilha, o que tem ela a temer? — Esperava que ela fosse mais arrogante do que desconfiada.
— Talvez ela consiga sentir a presença da equipa de assalto que está na margem. — Pensei sobre isso durante algum tempo. — Mas isso não devia preocupá-la. Nenhum deles acha que tem alguma hipótese de a matar. E provavelmente ela acha o mesmo.
O fatalismo deles surpreendera-me um pouco. Sei algumas coisas sobre guerreiros e testosterona — e o Coiote e os seus amigos eram os primeiros e definitivamente tinham a segunda. Os bons guerreiros sabem como avaliar o risco, mas também tendem a dar sinais de valentia e a vangloriar-se um pouco. O Coiote seguramente não parecia renunciar à vanglória, mas ninguém aqui estava a prever a vitória.
Meia hora depois, concluí que manter-me ali, com a água ao nível dos joelhos, não estava a funcionar. Inspirei fundo e sustive a respiração, escutando atentamente o rio. Nada — ou, pelo menos, nada que conseguisse distinguir dos sons normais. O problema era que o barulho era demasiado. Água a embater na margem, pássaros e insetos noturnos à procura de comida ou acasalamento, e até as autoestradas serviam para camuflar qualquer som que a diaba do rio pudesse emitir.
Olhei para a margem oposta e imaginei-a ali, observando-me e esperando-me. Dei mais um passo em frente, sentindo o chão debaixo dos meus pés começar a descer. Mais um passo, e de repente a água dava-me pela cintura.
Adam uivou a partir da margem. Voltei-me e acenei-lhes para os fazer saber que o movimento tinha sido voluntário.
— Com a água pelos joelhos não estava a funcionar — disse. — Decidi experimentar um pouco mais fundo. — Não dera mais de quatro passos. Ainda estava bastante próxima da margem.
Uma cabeça de lontra emergiu a cerca de três metros de mim, com ar presumido. Não me podia fazer mal aqui na zona de banhos, segundo me dissera o Tio Mike. Mas onde estavam as lontras, era frequente a diaba do rio também estar. Perdi a coragem e voltei-me para regressar — e, nesse preciso instante, uma qualquer coisa envolveu-me o tornozelo e puxou-me através da água como um barco de esqui aquático. Algo que poderá ter sido a mão do Coiote roçou na minha, para logo a seguir desaparecer.
Estendi os membros, tentando contrariar o mais possível a força que me puxava, ao mesmo tempo que tentava atrapalhadamente abrir a camisa de Adam o suficiente para conseguir sacar as facas. Sabia o que ela estava a fazer; tinha-a visto fazê-lo a outras pessoas. Não fazia qualquer tenção de ser a sua refeição, porém não tinha a certeza se teria tempo para fazer o que quer que fosse de forma a impedir isso.
Tinha de tentar. Se eu morresse primeiro, todo o plano ficaria em risco.
De modo que me concentrei no conselho que o Sensei Johanson em tempos me dissera ser a primeira e mais importante forma de ganhar um desafio de pugilismo: «Estar preparada.»
A diaba do rio puxara-me para uma zona profunda, e estava escuro. Tentei vê-la, sem sucesso — todavia senti a mudança da corrente da água enquanto ela abria a boca.
A si hei de consumi-la com grande prazer, disse-me a diaba do rio. E depois ficarei a saber como ousou desafiar-me quando nenhum outro mortal o fez. Ficarei a saber e tornar-me-ei mais forte.
Mercy! Era Adam, a sua voz um grito na minha cabeça que se sobrepôs às palavras dela e me fez conseguir mexer novamente.
Mais por sorte do que por engenho, embora estivesse às apalpadelas tentando encontrar algo que pudesse agarrar, o meu pé livre atingiu a parte externa de um dente mais comprido do que a minha tíbia. Em seguida, agarrei outro dente superior com a mão esquerda e consegui deter-me, colocando o corpo em arco para me afastar dela.
Mercedes. A voz dele era um uivo de aflição ao qual não podia responder, não se quisesse salvar-me.
Lembrei-me, recordando o episódio em que vira a sua cabeça fora da água, que os dentes na parte da frente da sua boca eram pontiagudos e assomavam quase como os espinhos de um porco-espinho. Também eram longos, e desejei que ela não conseguisse abrir a boca o suficiente para me engolir enquanto eu mantivesse os pés comprimidos contra a parte externa da sua maxila inferior e a mão agarrada ao dente superior.
Torna as coisas mais difíceis do que deveriam ser, disse-me. Apanhei-a e não tem como escapar.
Cerrou os dentes com uma rapidez incrível — no entanto, eu também sou incrivelmente rápida. Curvei-me e afastei-me. A água também ajudou. Quando fechou a boca, a água projetou-me.
Mudou de tática e tentou usar um tentáculo para que eu a largasse. Reparei que assim, tão perto dela, o tentáculo parecia operar de forma um pouco menos eficiente, como um elástico que estivesse demasiado frouxo. Podia agarrar-me, podia puxar-me — mas não podia empurrar-me.
Não sabia por que razão não tentava agarrar-me com outro tentáculo. Talvez estivesse demasiado furiosa neste momento. Mas quando o fizesse, eu era uma mulher morta. Se este impasse durasse muito mais tempo, acabaria por morrer de qualquer forma. Respirar debaixo de água não era uma das minhas capacidades, e já estava debaixo de água há algum tempo.
Numa sacudida particularmente violenta, arrisquei e parei de resistir com as pernas. Puxou-me com tanta força que as minhas pernas acabaram por entrar nos espaços entre os seus dentes superiores. Parou de me puxar assim que se apercebeu do que tinha feito, mas tarde de mais. Já me tinha dado margem suficiente para que colocasse a minha perna aprisionada pelo tentáculo em redor de um dos seus longos dentes pontiagudos. Da próxima vez que puxasse o tentáculo, estaria a puxar o próprio dente em vez da minha perna.
Tudo estava a correr bem, mas se não respirasse em breve, nem toda a inteligência do mundo me valeria. Contorci-me até sair da frente do seu focinho para me colocar em cima dele. Conseguira abrir a camisa de Adam na altura em que me puxara, de modo que saquei uma faca da bandoleira e cortei o tentáculo à volta do meu tornozelo.
Os seus tentáculos deviam ser extremamente sensíveis. Tal como acontecera quando Adam me tinha libertado, lançou a cabeça para fora de água. Uma vez que eu estava por cima, o movimento catapultou-me para fora do rio, lançando-me ao ar. Aterrei a cerca de cinco metros do local onde tinha começado e voltei a mergulhar. Arremessara-me em direção a montante, portanto a corrente levar-me-ia novamente ao seu encontro. Regressei à superfície precisamente na altura em que soltou um grito agudo que me feriu os ouvidos.
Viu-me e voltou a mergulhar na água, desaparecendo debaixo da superfície. Nadei o mais depressa que consegui, porém, não sendo um peixe, tinha a certeza que ia ser comida.
Algo me agarrou os ombros e eu gritei, levantando os braços para lhe lançar as mãos ao mesmo tempo que me puxava para fora de água. Parei de gritar no momento em que a boca aberta da diaba do rio apareceu à superfície da água abaixo dos dedos dos meus pés, que estavam agora cerca de metro e meio acima do rio. As minhas mãos fecharam-se à volta de dois ossos fortes como aço, cobertos com couro, que só podiam ser as patas de uma ave predadora muitíssimo grande.
A minha comida, a minha comida. Ladrão! A voz da diaba do rio na minha cabeça fez com que agarrasse ainda com mais força as patas da enorme ave e elevasse os pés o mais que conseguisse.
Não era expectável que conseguisse suportar o meu peso, por muito grande que fosse — e com as asas abertas, era enorme. No entanto, ele não era apenas um pássaro trovão — era o Pássaro Trovão — e creio que isso terá feito diferença.
A diaba do rio emergiu à superfície mas calculou mal o ataque, uma vez que o Pássaro Trovão se desviou no último momento. Manteve-se na mesma posição por instantes antes de tombar de lado e estrondear no rio como uma baleia após um salto. O Pássaro Trovão transportou-me até à beira do rio e pousou-me, suavemente, no local onde Adam deveria estar à minha espera.
Mas não estava.
— Adam — gritei, removendo a água dos olhos. Ela não podia tê-lo. Ele era meu. Arranquei numa corrida veloz em direção ao rio mais ou menos na altura em que Adam emergiu, fazendo-me cair e molhando-me ainda mais com a água que lhe caía do pelo.
Praguejei com ele.
— Tu tens de ficar fora da água — disse-lhe por entre dentes cerrados que tiritavam. — Se ela te apanhar, não precisa de se dar ao trabalho de me matar… pode obrigar-te a fazê-lo.
A ideia assustou-me. Compreendia o motivo que o levara a fazê-lo, compreendia visceralmente, mas ele tinha de se manter longe do rio. Tentei rolar de debaixo dele, mas uma pata grande no meu ombro manteve-me presa. Em seguida, rosnou-me.
Foi então que percebi que não era com Adam que estava a falar. Adam sabia por que razão tinha de se manter afastado da água. Mas o lobo não compreendia, e o lobo tinha assumido o controlo.
Não tínhamos tempo para isto. Tinha de calçar as barbatanas e preparar-me para nadar até onde quer que a diaba do rio estivesse depois de ter entrado em estado comatoso.
Ouvi um grito de guerra — alguém o tinha dirigido a ela.
— Adam — disse-lhe. — Deixa-me levantar.
Em vez disso, deitou-se em cima de mim. Maldito Lobo. Se Adam estivesse na sua forma humana, o lobo jamais teria assumido semelhante controlo.
Porém sabia como lidar com isto — se eu acalmasse, ele também acalmaria. Estava a reagir ao batimento frenético do meu coração e ao meu medo do mesmo modo que reagira quando eu tinha estado debaixo de água aos sacões. Ele não me tinha visto lutar debaixo de água com algo que eu não conseguia ver, onde apenas conseguia sentir aqueles dentes pontiagudos e… isso não me ia ajudar minimamente a serenar.
Fechei os olhos e procurei aquele sítio calmo que aprendera a encontrar no dojo. Dava jeito quando estava a reparar motores ou a lidar com clientes insatisfeitos.
Demorou mais tempo do que deveria porque não conseguia deixar de ouvir os sons da batalha que não tinha como ver, mas a minha pulsação acabou por abrandar e fiquei relaxada debaixo de Adam.
— Estou bem — disse-lhe. — Eu estou bem. Tens de sair de cima de mim antes que morra esmagada.
O lobo rosnou.
— Adam — disse severamente. — Sai de cima de mim.
Fechou os seus olhos amarelos e respirou fundo.
— Adam?
Quando reabriu os olhos, era Adam que olhava para mim. Levantou-se e recuou.
— Obrigada — disse-lhe, rolando e levantando-me com o impulso num gesto menos gracioso do que tencionava.
No rio, a luta era desenfreada. Havia sangue na água; conseguia cheirá-lo apesar de não o ver. Também ouvia os crocitos das aves — do Falcão, do Corvo e do Pássaro Trovão — enquanto atacavam de cima, no entanto a diaba do rio estava muito distante. Mesmo com a minha visão noturna, tinha problemas em ver o que se passava. Peguei nas minhas meias aquáticas e calcei-as, ignorando o rasgo ensanguentado no pé que usara para me prender ao dente da diaba do rio.
A luta deslocava-se gradualmente da direção da pequena zona de banhos, e senti a atenção de Adam concentrar-se enquanto procurava perceber o que ela estava a fazer. O nosso vínculo também me ajudou a perceber: ela estava a conduzi-los até à zona de banhos porque não queria que ninguém fugisse, e seria mais fácil para ela localizar partes de corpos caso lhe escapasse alguma coisa.
Também tornaria o meu trabalho mais fácil.
Preocupava-me a possibilidade de não ser capaz de convencer Adam a deixar-me regressar à água. Tinha a certeza que ia ficar aterrorizada…
Estava suficientemente perto para lhe conseguir ver os brilhantes olhos verdes — o que significava que Adam e eu estávamos demasiado próximos do rio.
— Anda — disse. — Vamos…
Ouviu-se um tremendo chape e, em seguida, a cabeça dela emergiu da água. Entre os seus dentes estava um homem com uma cabeça canina. Ela abriu a boca ao mesmo tempo que um dos seus tentáculos o puxava do dente onde fora empalado. Atirou-o pelo ar e, depois de recuar a cabeça, apanhou-o com os dentes de trás e mastigou-o até ele ficar desfeito em pedaços.
Adam colapsou, como uma marioneta cujos fios tivessem sido cortados. O Coiote uivou em sinal de homenagem.
Ela comera o Lobo.
Não sabia o que tinha acontecido a Adam. Respirava, o batimento do seu coração era constante — apenas estava inconsciente. Encontrava-me ajoelhada ao seu lado, à procura de algum ferimento, quando uma dor atravessou o meu corpo. Foi então que percebi o motivo pelo qual tinha caído.
A minha pele ardia, a sensação que tinha era que alguém vertera água a ferver por cima de mim. Gritei, levantando-me aos cambaleios. E desta vez fui eu, com lágrimas a escorrerem-me pelo rosto molhado, que uivei em sinal de homenagem — tal como o Coiote, que morreu.
O processo não durou muito tempo depois disso. Penso que quando estavam todos vivos, tinham sido capazes de a atormentar, de fazer uso da força de cada um deles. Mas à medida que foram morrendo, perderam a capacidade de a distrair.
O Corvo morreu a tentar manter o Cobra vivo — a distração permitira ao Cobra espetar a sua lança no flanco dela, mas não com a profundidade suficiente. Observando-a, compreendi o motivo pelo qual me agarrara apenas com um tentáculo — só conseguia usar um de cada vez. Os tentáculos não usados ondulavam em redor da sua cabeça, como se tivesse espessos cabelos brancos. Mergulhou sobre o Cobra, e não voltei a vê-lo. Aparentemente, os únicos sobreviventes eram o Pássaro Trovão e o Falcão.
O Pássaro Trovão fez um voo picado como um F-15, atacando com as presas de ambas as patas. Tinha-o visto abrir um golpe profundo no nariz dela momentos antes. Porém, desta vez ela prendeu-lhe as patas com o tentáculo e lançou-o de encontro à água.
De repente, a diaba do rio soltou um guincho — nem ela nem eu tínhamos visto o Falcão, que conseguira destruir-lhe um olho enquanto ela estava concentrada no Pássaro Trovão. No entanto, as garras do Falcão ficaram presas e ela mergulhou abruptamente. Por momentos, o rio ficou calmo e o Pássaro Trovão flutuava sozinho à superfície, baloiçando suavemente com a corrente. A seguir, desapareceu debaixo da água, puxado por algo abaixo dele.
Espere até que ela apareça à superfície e fique quieta, prevenira-me o Coiote enquanto comia hambúrgueres no banco traseiro do SUV. Se já não restarmos em número suficiente para a fazer ficar de barriga para cima, não faz sentido que você também morra.
Perguntara-lhe o que devia fazer se ela não reagisse da forma que ele esperava.
Nesse caso talvez seja altura de usar as ogivas nucleares, respondera-me. Apesar de ter dito isso com um sorriso na cara, tinha a certeza que não estava a brincar.
Despi a camisa de Adam. Quando vi sangue, apercebi-me de que o Pássaro Trovão me fizera um corte considerável debaixo de um dos braços quando me salvara. Dadas as circunstâncias, não me ia queixar. Verifiquei a bainha com as facas. Faltavam algumas, mas ainda me restavam oito. Se tudo corresse bem, seriam suficientes.
Entrei no rio até ficar com a água pelos joelhos, após o que calcei as longas barbatanas rosa-choque. Depois pus-me à espera, aproximadamente no mesmo local onde esperara anteriormente.
Esperaria que a água atenuasse substancialmente o cheiro da carnificina, porém conseguia sentir o cheiro a sangue. Algo esbarrou no meu joelho e caí para trás. Apesar de ter tentado equilibrar-me sobre as barbatanas, aterrei de costas com um chape. A bandoleira deslocou-se e agarrei a lontra com uma mão, lançando-a para longe antes de me levantar. Verifiquei a bainha e tudo parecia estar bem, excetuando a marca de uma mordedura numa extremidade. Ainda lá estavam oito facas.
Uma forma longa e descorada apareceu à superfície a cerca de três metros de mim. Movia-se preguiçosamente para trás e para a frente por causa da corrente. A ela se juntou outra, e outra ainda, após o que a sua cabeça apareceu — metade da cabeça, na verdade, estando a outra metade escondida debaixo de água —, um olho na direção do céu e a boca amplamente aberta. Finalmente, o seu corpo emergiu, flexível e gigantesco. Verdadeiramente gigantesco. Tinha a certeza que era mais longo do que a estimativa de trinta metros feita pelo Coiote.
O espetáculo ia começar.
Avancei, ignorando as otterkin à minha volta. Se me pudessem ter atacado antes, tê-lo-iam feito. O que quer que os seres feéricos tivessem feito a esta zona de banhos, neste momento estava a servir os meus propósitos.
Assim que senti a água pela cintura, mergulhei e deixei que as barbatanas fizessem o trabalho de me conduzir até à diaba do rio.
Estava a contar persegui-la corrente abaixo, porém a sua ganância pelo último pedaço de carne manteve-a na água estagnada da zona de banhos. Era irrelevante para a minha tarefa — mas se fosse bem-sucedida, poderia significar que teria muito mais facilidade em regressar para junto de Adam.
Reparei em luzes na autoestrada grande — alguém tinha reparado nalguma agitação aqui em baixo, pensei. Tínhamos consciência de que era provável que alguém acabasse por reparar. Se a matasse, isso não teria importância. Se não a matasse, o mais provável era que as testemunhas passassem a ser as suas novas vítimas, todavia eu não me importaria. Era possível que o Coiote regressasse dos mortos — mas eu não ia regressar.
O corpo dela flutuava cerca de um metro acima da superfície, a barbatana peitoral espetada no ar. Não conseguia alcançá-la a partir da parte inferior. Nadei em redor da sua cabeça — porque era o caminho mais curto — mas tentei não olhar muito para a sua boca aberta. O seu olho maltratado, o olho que o Falcão atingira, era aquele que eu conseguia ver.
Não sei quanto tempo é que ela vai permanecer sonolenta, dissera-me o Coiote a caminho daqui. Nem sequer tenho um palpite. A única coisa que podemos fazer é alimentá-la com todas as pessoas que conseguirmos e esperar que seja suficiente. Depois exibira um sorriso rasgado. É possível que durma durante uma semana só enquanto me digere a mim.
Algo roçou em mim, e virei-me para olhar, à espera que fosse uma otterkin. Mas era apenas uma pena. Uma pena tão longa quanto o meu antebraço, presa a um pedaço de carne e entalada entre os seus dentes. Nadei mais depressa.
O seu dorso era mais áspero do que a sua parte inferior. Talvez conseguisse escalá-lo, mas não tinha de o fazer. Uma lança cravada na sua carne permitia-me uma subida mais fácil. Descalcei as barbatanas e lancei-as ao rio antes de começar a subir.
A sua pele era fria e ligeiramente mucosa. Cheirava a peixe e magia. Pensava que ela teria escamas grandes, mas eram pequenas, ainda mais pequenas do que as de uma truta na sua parte inferior. No seu dorso, assemelhavam-se mais às de uma cobra. Coloquei a mão na base da sua barbatana peitoral e medi quatro palmos, depois saquei uma das minhas facas e fiz o primeiro corte.
Contive a respiração enquanto a pele rasgava relutantemente, mas ainda estava como morta. Se não fosse a ténue pulsação por baixo dos meus joelhos e a agitação das suas guelras cerca de um metro à minha frente, talvez tivesse pensado que já estava morta.
A primeira faca atravessou a pele rija antes de ficar sem gume. A princípio não me apercebi, perdendo tempo precioso a arrastar a pedra embotada contra a sua carne dura. À quarta faca, o meu corte tinha aproximadamente trinta centímetros de profundidade e o dobro de largura. Abri-o enfiando o meu joelho na fissura enquanto sangue cor-de-rosa aguado preenchia o fundo. Tive de parar e removê-lo algumas vezes para me certificar de que a faca ainda estava a cortar.
Tem de ser suficientemente largo para chegar ao coração, dissera-me o Coiote, afastando as mãos cerca de sessenta centímetros. Ela não tem costelas, é um peixe. Mas não precisa delas. A carne dela é feita tanto de magia como de carne. Por isso é que o aço não funcionou, por isso é que o uso de balas não servirá de nada, por isso é que uma granada não serviria de nada. Não sei se um ataque nuclear funcionaria, mas seria interessante tentar. No entanto, como é evidente, depois disso ninguém ia poder usar a água daquele rio durante cem anos ou coisa que o valha…
As lontras nadavam em volta, puxando os seus tentáculos e fazendo qualquer coisa com magia — conseguia senti-lo. A magia feérica provocava em mim uma sensação diferente da da magia que mantinha a diaba do rio viva. Estavam a tentar acordá-la.
Continuava a espreitar a margem, porém Adam não se mexera.
O que é que está a fazer, Mercedes? A voz dela ressoou na minha cabeça, e eu congelei, certa de que fracassara, de que ela estava desperta.
Você não é suficientemente forte para a tarefa que lhe foi atribuída, disse. Devia ter vindo ao meu encontro esta manhã e deixado aquelas crianças viver. Pelo menos assim a sua morte teria algum significado.
O tecido sob a minha lâmina ondeava com a batida do coração, um sinal, dissera-me o Coiote, de que eu estava perto. Mudei de lâmina — restavam-me três — e continuei.
As minhas mãos estavam frias e adormecidas, e tinha escorregado algumas vezes. Havia pelo menos um corte que ia precisar de levar pontos se eu sobrevivesse. A nova lâmina partiu. Atirei-a contra uma das otterkin e atingi-a na cabeça. Olhou para mim, batendo com os dentes, e eu pus-lhe a língua de fora enquanto pegava noutra faca.
Restavam duas.
Não é suficiente, Mercedes, disse-me. Não é suficiente. O pobre Coiote morreu em vão e levou consigo os últimos guerreiros do espírito a pisar a nossa Terra-Mãe. Fracassou, mas não se preocupe. Não terá de viver com o seu fracasso.
A lâmina embotou. E depois só me restava uma. Tinha-se mexido debaixo de mim?
Saquei-a e voltei a lançar mãos ao trabalho. Só havia duas hipóteses: ou seria suficiente, ou não seria. O tornozelo pelo qual a diaba do rio me tinha agarrado pulsava ao ritmo do batimento do seu coração. A perna ligada a esse tornozelo doía-me imenso — devia ter uma cãibra. O corte debaixo do meu braço ardia de cada vez que mexia a mão.
E o tecido rasgou, expondo o seu coração.
Não se parecia com nenhum coração que já tivesse visto — era negro e com veias cinzentas, e a sua magia era tão forte que senti ardência nas pontas dos dedos.
É inútil tentar apunhalar-lhe o coração. O Coiote mastigara durante algum tempo, depois engolira. É demasiado duro. Terá de atacar o tecido conjuntivo.
Foi o que fiz. Havia quatro teias que seguravam o coração. Assim que tratasse disso, as veias e artérias seriam facilmente removidas apenas com as minhas mãos, ou pelo menos assim mo garantira o Coiote.
Coloquei a faca na primeira teia — e precisamente nessa altura, ela acordou.
13
Não acordou totalmente — ou então, ferira-a de tal modo que não teve capacidade de reagir de imediato. A primeira coisa que fez foi esticar-se. Ao fazê-lo, a sua barbatana peitoral agitou-se e bateu-me na mão, fazendo-me largar a faca. Observei-a cair na água e desaparecer.
As otterkin descreveram um semicírculo a cerca de cinco metros dela. Contorceu-se debaixo de mim e a metade traseira do seu corpo desapareceu sob a água. Ia ter de saltar e começar a nadar se quisesse ter a mínima hipótese de sobreviver.
Sim, Mercedes, é uma boa altura para fugir, disse. Eu gosto de perseguir a minha presa.
Em vez disso, agarrei as bordas da sua pele cortada e cravei os dedos de modo a que não me conseguisse derrubar. O Coiote morrera para me dar esta oportunidade, e eu desiludira-o. MacKenzie, que nunca ultrapassaria os oito anos e quatro dias de idade, morrera para me dar esta oportunidade e eu desiludira-a, como desiludira a sua família. Faith Jamison procurara-me, e também a desiludira.
Desiludira-os a todos. Porém, estavam mortos; não se importariam. Adam, sim, importar-se-ia.
Não ia cair sem dar luta. Não com Adam à minha espera.
Um tentáculo retesou-se bruscamente e atingiu-me a tíbia, produzindo um estalido, porém não senti dor. Estiquei a mão como para partir uma tábua e desferi-lhe um golpe no coração. A minha postura era uma porcaria porque estava a tentar manter-me firme no mesmo sítio sobre um peixe escorregadio que não cooperava, e mais me valia tê-la atingido com uma das penas do Pássaro Trovão. Introduzi o braço nela e tentei agarrar-lhe o coração, mas, por causa da magia, o único resultado foi a sensação de ter agarrado uma vedação eletrificada.
Precisava de uma arma, de algo que pudesse penetrar a magia da diaba do rio, e a única coisa de que dispunha eram as minhas mãos.
O esforço que fez para acordar puxou-me para debaixo de água, tornando óbvio, se é que precisava de ser lembrada disso, que se me transformasse em coiote para poder utilizar os dentes como arma, jamais conseguiria permanecer sobre ela o tempo necessário para fazer alguma coisa. Nem sequer tinha a certeza se conseguiria transformar-me em coiote — o Coiote estava morto. Não tinha nada ao meu dispor.
Estava novamente fora de água, de pé, quando um pensamento inopinado me assomou à consciência.
Lugh nunca fez nada que não pudesse ser usado como uma arma, dissera o oakman.
Talvez eu tivesse, de facto, uma arma.
Salte, incitou a diaba do rio. Fuja. Nade até à margem. Talvez até a deixe chegar lá se nadar suficientemente rápido. Ou talvez decida que deixá-la viver com o seu fracasso seja um castigo mais adequado ao que tentou fazer aqui.
Abri a mão e disse:
— Anda lá. Agora. Preciso de ti. — Depois levei a mão às costas e agarrei o bastão de prata e carvalho.
A diaba do rio contorceu-se, e a secção onde me encontrava elevou-se bem acima da superfície da água. Coloquei a força do seu movimento ao serviço do meu enquanto levantava o bastão para lhe aplicar um golpe com a parte da cabeça. No momento em que fiz descer o bastão, vi a cabeça de prata transformar-se numa ponta de lança. A lança perfurou-lhe o coração cerca de quinze centímetros e parou de repente, como se tivesse atingido algo sólido. Quando começámos a cair novamente em direção à água, a diaba do rio voltou a contorcer-se, desta vez colocando o corpo na vertical.
Todo o metal lançou chamas rubro-brancas. Os meus pés deslizaram no flanco escorregadio da diaba do rio, e, por instinto, agarrei-me ao bastão com toda a minha força, mesmo com o calor que começava a queimar-me as mãos. Duvidava que conseguisse manter-me agarrada por mais um segundo, mas um segundo foi o necessário.
O bastão começou a deslocar-se em relação ao monstro, e achei que o meu peso o estava a puxar para fora do corpo, porém um olhar nervoso mostrou-me outra coisa, instantes antes de a água se fechar sobre a minha cabeça.
O bastão sugara o calor da sua carne, transformara o seu coração negro em gelo branco. O peso do meu corpo tinha permitido uma maior torção do bastão; o coração quebrou e foi expelido do corpo da diaba do rio.
Não sei como, dei por mim em baixo da diaba do rio, e ela empurrou-me até ao leito, que não era muito profundo. Agitei-me e fiz força contra o seu corpo para sair de debaixo dela — seria demasiado irónico acabar morta depois de tudo isto, morta numa zona com menos de dois metros de profundidade.
Perdi o rasto do bastão, mas não havia problema: ele iria regressar. Assim que me consegui libertar, demorei muito tempo — quase tempo de mais — a perceber em que direção ficava a superfície. Finalmente afrouxei o corpo e concluí que seria aquela para a qual flutuava. Acabei por emergir à superfície. Se tivéssemos estado numa zona mais profunda, era bem possível que isso não acontecesse.
Havia pedaços de gelo a derreter na água. Tresandavam a magia e sangue e evitei tocar-lhes enquanto nadava muito lentamente em direção à margem. Quando o nível da água era demasiado baixo para nadar, rastejei. Pôr-me de pé seria um esforço excessivo.
Saí da água a custo e convoquei um último ímpeto de força para alcançar Adam. Com uma mão enterrada na sua densa pelagem, senti-me com coragem suficiente para rolar e olhar para a diaba do rio. Flutuava quieta, o seu corpo movendo-se ao ritmo da água. O ferimento que lhe tinha provocado continuava lá; não estava a sarar.
— Adam — disse ao seu corpo inconsciente. — Adam, conseguimos.
Baixei a testa ao encontro do seu flanco e permiti-me acreditar.
— Devia deixá-la viver — rosnou a voz de um homem, ecoando inconscientemente as palavras da diaba do rio. Ou talvez também ele as tivesse ouvido.
Levantei os olhos para deparar com um homem postado entre mim e o rio. Tinha as feições completamente desproporcionais, como se se tratasse de um desenho mal feito. Quase humano, mas não exatamente. Vestia umas calças de ganga secas e uma camisola da Washington State University, porém os pés estavam descalços. Tinha uma barba irregular ligeiramente mais escura do que o seu cabelo. Embora na sua voz tivessem transparecido várias emoções, no seu rosto não se distinguia nenhuma. Era peculiarmente inexpressivo, como alguém que sofresse de autismo em grau particularmente elevado: um traço, concluí a partir de dois exemplos em que me podia basear, que devia ser comum a todas as otterkin.
— Como? — perguntei-lhe estupidamente, uma vez que as suas palavras não faziam sentido.
— Você ensanguentou uma das criações de Lugh no coração de uma criatura ainda mais antiga e mais mágica do que o bastão — replicou. — Devia deixá-la viver com o que fez. Mas terá de pagar um preço por ter matado a nossa criatura, que despertámos a muito custo do seu sono profundo.
Sentia-me demasiado cansada para isto. E estava com dores. Não havia uma única parte de mim que não doesse, mas doía-me especialmente a mão com a qual atingira o coração da diaba do rio. Na verdade, ambas as mãos latejavam intensamente em virtude de ter segurado o bastão enquanto estava quente. A perna que a diaba do rio atingira com o seu tentáculo também doía — aquele tipo de dor profunda que fazia perceber que tinha sofrido danos consideráveis. Também estava a sangrar de imensos cortes. Ocorreu-me tardiamente que a minha fadiga poderia ter como origem a perda de sangue, para além da energia que despendera para matar a diaba do rio.
— Vocês acordaram-na. — Eu conseguia sentar-me, disse ao meu corpo firmemente. Este protestou, mas acabou por ceder. Também ia puxar as pernas, no entanto, após a primeira tentativa, optei por deixá-las onde estavam durante algum tempo.
— Precisámos de dois meses e de toda a nossa magia… E aparece você e mata-a? Um verme arrogante a meter o bedelho em algo que não lhe diz respeito. — Segurava qualquer coisa na mão direita, pensei, mas não conseguia perceber o quê porque estava ligeiramente atrás dele, e eu ainda não me sentia capaz de mexer o corpo novamente para ver o que era.
— É isso mesmo — concordei. — Eu matei-a. Pareceu-me a coisa certa a fazer na altura, considerando que ela andava a matar imensas pessoas. Porque é que vocês a libertaram?
— Ela era nossa — replicou indignadamente. — Estava a dormir na nossa casa. — Fez uma pausa, meditando sobre as próprias palavras, pensei, embora fosse difícil ler-lhe o rosto. Quando voltou a falar, a sua voz era um trauteio suave. — Tão bela e mortífera que era a minha senhora. Acordámo-la para vermos a sua beleza viver. E, tal como lhe pedimos para fazer, ela caçou humanos para que nos alimentássemos da riqueza da sua caça. Ela era tudo o que os nossos corações podiam desejar. Ela alimentava-nos e nós alimentávamo-la. Ela era a nossa arma de vingança perfeita.
O mato perto dele abanou um pouco e mais pessoas emergiram do seu interior. Uma delas era a mulher que me tinha atacado no Wal-Mart, e empunhava a sua faca de bronze. Estava a chorar, o que parecia muito estranho considerando o seu rosto inexpressivo.
O Tio Mike dissera que eram sete, ao todo, no entanto só via seis.
— Devia estar aqui mais um, não devia? — perguntei.
— Um de nós foi sacrificado quando a Deusa renasceu — disse o homem.
Pensei no sonho que tivera, aquele em que tinha comido uma lontra. Fora marcada pelo rio nessa altura. Nunca me tinha ocorrido que também esse sonho fora verdadeiro.
Atrás dele, as bocas de todas as otterkin mexiam-se ao mesmo tempo, como se estivessem a reproduzir em silêncio as suas palavras à medida que ia falando. Traziam consigo um ar de ameaça que não se devia inteiramente às armas que transportavam.
Havia um homem grande no grupo. Reparei nele porque sobre o ombro trazia um bastão grande, escuro e brilhante com uma forma semelhante à de um taco de golfe. Não me lembrava de algum dia ter visto um cacete irlandês ao vivo.
— Ele morreu, o nosso irmão, exaltado pelo presente que o seu sacrifício trouxe para os seus. — O homem de barba que era, aparentemente, o porta-voz de todos eles, fez uma nova pausa. Não me pareceu tratar-se de uma afetação para dar ênfase, mas algo integrante do seu discurso. Talvez estivesse a traduzir, ou talvez os seus pensamentos simplesmente fossem assim, lentos. — E você arruinou isso.
Sem aviso, ergueu o que quer que estivesse a segurar. Mas eu já estava à espera de algo do género, pelo que me pus de pé, colocando todo o meu peso sobre a perna que não estava ferida. Bloqueei o golpe da espada de bronze com o bastão que se encontrava debaixo do corpo de Adam, e não enterrado na diaba do rio, porque era ali que eu precisava que ele estivesse.
Doeu. Se não estivesse tão preocupada por Adam, que não estava capaz de se proteger, duvido que o tivesse conseguido fazer. Ainda assim, sabia que era inútil. Eram seis e eu estava maltratada e ferida. No entanto, na carta que escrevera a Adam deixara uma promessa, e estava determinada a mantê-la.
Da espada de bronze emanou uma luz cor de laranja e a lâmina partiu-se. Fosse qual fosse a magia que continha, não estava à altura do bastão de Lugh.
Depois, algo verdadeiramente desconcertante aconteceu. O bastão enterrou a sua extremidade novamente afiada no pescoço da otterkin sem qualquer ajuda minha. A violência do movimento súbito forçou-me a cair com força sobre a minha perna maltratada. É possível que tenha perdido os sentidos por instantes depois disso.
Abri os olhos e dei por mim cara a cara com a otterkin de barba, a minha bochecha repousando na terra e no seu sangue quente. Ria-se para mim enquanto morria.
A minha audição voltou ao normal mais ou menos nessa altura, e apercebi-me de que uma batalha estava a ser travada atrás de mim. Ouvi a rosnadela sinistra e quase impercetível de Adam, a que ele usa apenas quando está para lá de furioso. O poder da sua fúria iluminou a minha alma com o seu único propósito: nenhuma das otterkin sobreviveria a esta noite.
Estava desperto, e isso significava que eu estava em segurança. Comecei a virar-me, mas algo de muito errado se devia passar com a minha perna porque no momento em que tentei mexê-la, desmaiei novamente.
Quando voltei a abrir os olhos, estava a olhar para uma lontra morta em vez de um homem morto. O seu sangue ainda estava quente, portanto não teria permanecido desmaiada durante muito tempo. Não ouvi qualquer som atrás de mim, mas não ia ser estúpida ao ponto de tentar virar-me uma vez mais.
— Adam? — chamei. A minha voz era fraca e tinha um tremor irritante. Depois de constatar que ninguém respondia, não chamei novamente. Seria de esperar que a exaustão me deixasse entorpecida, mas sentia uma dor demasiado forte para isso. Devia sentir-me exultante, mas sentia uma dor demasiado forte para isso também.
Por brevíssimos instantes, temi que as otterkin lhe tivessem feito mal. Procurei o vínculo que nos ligava com todas as minhas forças — e encontrei-o ali perto, transformando-se de lobo em homem. Aliviada, pus-me à espera dele, absorvendo o seu medo, a sua fúria e o seu amor com algo que se aproximava da euforia. Se conseguia sentir tudo isso, não estava morta, e essa parecera-me a mais notável proeza que algum dia alcançara.
Devo ter dormido um pouco porque o sangue debaixo da minha bochecha arrefecera e mãos suaves acariciavam-me.
— Adam — disse eu. — Tens de vestir alguma coisa antes que aqueles agentes da polícia cheguem aqui abaixo. — Há já uns minutos que ouvia as suas sirenes a aproximar-se.
— Psiu — disse-me. E como se uma cortina tivesse sido aberta, consegui sentir a sua necessidade febril de se certificar de que eu estava bem. Soara tão calmo, tão são, quando não era nenhuma dessas duas coisas.
— Por favor? — Precisava de algo que o ajudasse, caso contrário ia matar quem quer que chegasse cinco metros perto de mim. Por vezes ocorria-me o pensamento de que Adam se vestia de forma tão civilizada, com as suas camisas de seda e fatos feitos à medida, como escudo contra a turbulência selvagem dentro dele.
Além disso, se a polícia aparecesse e encontrasse Adam nu, teria necessariamente uma qualquer reação forte — e Adam precisava que toda a gente estivesse o mais calma possível.
Hesitou.
— Eu estou bem — disse-lhe. — A sério que estou. — Tentei mexer-me e depois repensei o que tinha dito. — Ok. Estou com dores, e acho que a minha perna está partida. E talvez a minha mão também. Mas não vou esvair-me em sangue, e acho que será muito mais fácil falarmos com a polícia e o FBI e mais quem quer que seja que está prestes a vir ter connosco se tiveres umas calças de ganga vestidas.
— Não te quero deixar aqui — replicou. — E não te vou tirar daqui sem examinar melhor o teu estado.
— Se não fosses capaz de vestir umas calças de ganga e voltar em menos de um minuto, ficaria muito surpreendida — disse-lhe. Depois tive uma ideia luminosa. — Não quero que ninguém, além de mim, te veja nu — disse, um pouco surpreendida com o facto de isso corresponder à verdade. — Não quando não tenho como defender o que é meu. — Era estúpido, e eu sabia-o. Mas também sabia que ele ia compreender.
— Que diabo, Mercy — replicou. E depois desatou a correr.
Dei por mim a sorrir enquanto ouvia a porta da caravana abrir e me apercebi de que estava a sorrir para a cara da otterkin cujos olhos estavam embaciados pela morte e cujo sangue tornava o chão debaixo da minha face pegajoso. Era possível que no dia seguinte viesse a ter pesadelos com aquilo. Mas, naquela noite, ela estava morta e eu não. Isso bastava-me.
O facto de, aparentemente, as otterkin se voltarem a transformar em lontras quando morriam era uma coisa boa. Se a polícia aparecesse e deparasse com seis corpos humanos, poderíamos meter-nos num grande sarilho. O bastão enfiou-se sob as minhas costelas e puxei-o de debaixo de mim, observando-o ponderadamente.
Com o tempo, haveria de descobrir o que tinha feito ao bastão. Quão mau podia ser? O oakman usara-o para matar um vampiro, e ele mantivera-se igual. Fosse qual fosse a coisa em que se tivesse transformado o bastão, não podia ser tão má como a diaba do rio.
O resto da noite foi um tanto vago.
Adam, vestindo apenas um par de calças de ganga, examinou-me cuidadosamente para se certificar de que eu não tinha nenhuma lesão que pudesse ser agravada com o movimento. Depois pegou-me pelos braços e transportou-me até às cadeiras de campismo, onde estendera um dos cobertores para me agasalhar. Telefonou para o trabalho e pediu que abrissem o portão remotamente para que entrassem os polícias — que estavam reunidos do lado de fora do portão como vespas num vespeiro.
Estava a limpar o meu rosto, muito suavemente, quando a polícia entrou e toda a espécie de carros oficiais se acercaram de nós.
Adam encarregou-se de falar, sugerindo uma série de coisas que-não-eram-propriamente-verdade sem nunca mentir. Toda a gente ficou bastante tensa quando Adam se apresentou como o Alfa do Bando da Bacia do Columbia. No entanto, pareciam achar perfeitamente aceitável que algumas pessoas acreditassem que a recente vaga de mortes no rio não era obra de um assassino em série humano mas de um verdadeiro monstro.
Por uma questão de confidencialidade, dissera-lhes, não podia revelar quem o tinha chamado até ali.
Um dos subalternos do xerife murmurou:
— Quando o vi pela primeira vez, ele estava com o Jim Alvin e o Calvin Seeker. — Pelas suas palavras, estava plenamente convicta de que era o homem que nos tinha dado boleia de regresso ao parque de campismo quando encontráramos Benny, mas apenas conseguia ver de um olho, uma vez que o outro estava fechado, de tão inchado.
Ao ouvirem o nome de Jim, todos os polícias locais tomaram um ar entendedor e pararam de fazer perguntas. Um deles murmurou «o feiticeiro ameríndio» aos agentes do FBI, e de repente ninguém colocou mais questões a Adam sobre o porquê de estarmos aqui. Aparentemente, ninguém queria ter problemas com a Nação Yakama.
Quanto menos os agentes soubessem sobre magia, otterkin feéricas ou sobre o Coiote, maior a probabilidade de atribuírem todas as mortes a uma criatura pré-histórica — escutara um dos agentes do FBI usar esta última expressão enquanto falava com alguém ao telemóvel — e irem para casa. No entanto, o mais importante para mim neste momento era que também me deixassem ir para casa.
Fechei o meu olho funcional e, quando o abri, Adam segurava uma chávena de chocolate quente e estava a tentar obrigar-me a bebê-lo. Protestei com ele por me ter acordado até dar o primeiro gole. Sabia mesmo bem, e estava quente.
— Onde é que está toda a gente? — perguntei depois de terminar, porque parecia que estávamos sozinhos.
— Lá em baixo a olhar para a diaba do rio. — Adam pousou a chávena e beijou-me suavemente na testa. — Ficaram todos excitados quando se aperceberam de que ainda estava ali deitada. Têm cerca de três minutos até que eu te leve às urgências.
Estava agarrado à civilização por um fio. Um companheiro típico seria dócil e subserviente até recuperar.
— Não quero ir para o hospital — choraminguei. Agora que estava finalmente quente, não me queria mexer nos próximos cem anos, pelo menos. Se não me mexesse, não sentiria dor. Não muita, pelo menos.
— Eu não estava a dar uma sugestão. — A sua voz era extraordinariamente calma, todavia conseguia sentir a terrível tempestade que se escondia atrás de todo aquele controlo.
— Eu matei aquele monstro sinistro. Acho que tenho o direito de dizer não — repliquei. Para meu embaraço, lágrimas assomaram-me aos olhos. Tive de pestanejar depressa para as fazer desaparecer. Estava arrumada, não tinha absolutamente nenhuma energia de reserva. Simplesmente não conseguiria suportar mais nada esta noite.
— Estás em choque — disse de modo severo. — Precisas de levar pontos em meia dúzia de sítios, e tens a perna partida. Para onde é que achas que devias ir?
— Para casa?
Suspirou, inclinou-se para a frente e encostou a sua testa à minha por momentos.
— Amanhã levo-te para casa — prometeu. — Hoje, vais às urgências.
Cortaram o meu velho fato de banho no hospital, onde uma médica de olhos cansados e dois enfermeiros (um homem e uma mulher) limparam, coseram e, basicamente, abusaram de mim. Obriguei-os a deixarem as dog tags de Adam no meu pescoço. A médica e ambos os enfermeiros fizeram-se vergonhosamente a Adam, apesar de já ter uma camisa e um par de sapatos a fazer companhia às calças de ganga. No entanto, Adam não pareceu dar-se conta, portanto não havia problema.
Na altura em que o Sol se levantou, tinha gesso cor de rosa na minha perna e ordens para consultar um ortopedista o quanto antes. A tíbia estava seguramente partida, tal como a rótula, e os raios X também denunciavam uma sombra de aparência suspeita no meu tornozelo. Tinha mais pontos do que uma boneca de trapos e as mãos embrulhadas como as de uma múmia. Não só tinha a mão direita partida, como ambas as mãos cortadas e queimadas. Tinha dois olhos pisados. A primeira pisadura era resultante da luta no Wal-Mart. Quanto à segunda, não fazia a mais pálida ideia de que episódio resultara. Talvez tivesse sido quando a diaba do rio aterrara em cima de mim depois de morrer, ou antes disso, quando se contorcera. Não senti quando aconteceu e também não sentia nesta altura porque estava sob o efeito das melhores drogas do universo. Estava muito feliz e não me importava muito com o facto de a minha perna ainda doer. Não eram apenas as drogas que me deixavam feliz; a marca da diaba do rio tinha desaparecido.
Assim que deixei de sentir dores, aquela veemência suave que vinha acompanhando a voz de Adam, e que tanto me preocupava, desapareceu, e os seus olhos escureceram até se aproximarem da cor habitual. No entanto, como é evidente, assim que deixei de sentir dor, também deixei de me preocupar com a possibilidade de Adam perder o controlo e matar alguém que mais tarde lhe viesse a causar arrependimento.
— Ei — perguntei a Adam enquanto ele pegava na papelada que a enfermeira lhe estendera —, este é o hospital para o qual trouxeram o Benny?
De modo que Adam me empurrou numa cadeira de rodas através do hospital para visitarmos Benny. Quando chegámos ao quarto dele, Benny estava a dormir profundamente na sua cama, uma mulher de aspeto cansado estava a dormitar numa cadeira também de aspeto cansado e Calvin estava sentado no largo peitoril da janela, observando o despontar do dia.
Uma das rodas da cadeira guinchou, atraindo a atenção de Calvin. Virou a cabeça e depois quase caiu da janela.
— O que é que lhe aconteceu? — perguntou. Depois, com o rosto a iluminar-se, disse: — Foi você?
— Um monstro a menos — respondi, acordando acidentalmente a mulher sentada na cadeira, bem como Benny.
— Analgésicos — murmurou Adam para explicar qualquer coisa. Julgo que terão sido as minhas risadinhas. — Como podem ver, matar o monstro foi uma tarefa renhida.
— Conte-me — disse Benny.
Foi o que fiz. A dada altura — perto do episódio em que estava a tentar trepar a diaba do rio, penso —, Adam sentou-se no chão ao lado da cadeira e encostou a testa à minha coxa. Havia outra cadeira no quarto, portanto não percebi ao certo por que razão estava sentado no chão. As drogas tinham afetado o nosso vínculo, pelo que demorei algum tempo a sentir o medo doentio que o atormentava.
— Bastão? — perguntou Calvin, distraindo-me da inquietação de Adam.
Pestanejei-lhe. Não me lembrava se o bastão deveria ser segredo ou não.
— É um velho artefacto feérico que nunca mais a largou desde uma altura em que arriscou a vida para salvar um ser feérico conhecido dela — murmurou Adam, e percebi que tão-pouco estava agradado com a recordação do episódio em que eu tentara salvar Zee.
— Ele era meu amigo — lembrei-o.
— Ela costuma fazer este tipo de coisas? — perguntou Calvin, olhando para Adam com respeito.
Adam levantou a cabeça, e os seus olhos estavam novamente amarelos — porém a sua voz estava apenas um pouco enrouquecida.
— Para ser justo, normalmente a culpa não é dela. Não é ela que começa.
— Mas aparentemente é ela que acaba — disse a mulher que segurava a mão de Benny. Presumi que fosse a sua esposa. Devo ter dito isso em voz alta porque ela assentiu com a cabeça. — Sim. Sou. Tenho de lhe agradecer a si e ao seu marido por terem salvado o Benny.
— Foi ele que se salvou a ele próprio — repliquei, surpreendida. — Ninguém lhe contou a história? Ele foi inteligente.
— E sortudo — acrescentou Benny. — Se não me tivesse encontrado naquela altura, eu teria morrido.
Inclinei-me para a frente.
— Transmitiram-lhe o que a sua irmã me disse?
— O Jim contou-lhe — disse Calvin.
— Ela queria que eu pusesse flores dela para a nossa mãe na campa, ou minhas para a Fai… para a minha irmã? — A voz de Benny era pouco clara. Talvez também ele estivesse sob o efeito de analgésicos.
— Não sei — respondi-lhe. — Talvez devesse fazer ambas as coisas.
— Importa-se de acabar de contar a sua história? — pediu Calvin, um pouco lamentosamente. — Tinha deixado cair a última faca e trespassado a diaba do rio com um artefacto feérico que se tinha transformado numa lança.
— Certo. — Depois contei-lhes como o seu coração se tinha transformado em gelo e o bastão me tinha queimado a mão. — E depois regressei à margem a nado.
— Com uma perna partida? — perguntou Adam.
— Bela façanha, hem? — disse presumidamente.
— Belas drogas. — A voz de Calvin tinha um quê de sarcástico.
O rosto de Adam estava novamente escondido contra a minha perna. Desta vez tinha uma mão em volta do meu tornozelo não lesionado. A outra mão foi pressionada contra a tijoleira no chão, que rachou com um estalido.
— Vais-te cortar — ralhei.
Levantou a cabeça.
— Tu vais conduzir-me à minha desgraça.
Contive a respiração. A súbita sensação de medo que me invadiu perante esse pensamento desfez por completo o estado de felicidade de que estava a desfrutar.
— Não digas isso. Adam, não permitas que eu faça isso.
— Psiu — disse-me. — Desculpa. Não chores. Está tudo bem. — Ergueu-se para se ajoelhar ao meu lado, limpando as minhas faces com os polegares. — Os lobisomens são rijos, Mercy. Não fui eu que quase morri esta noite. — Inspirou. — Nunca mais voltes a fazer aquilo.
— Não o fiz de propósito — lamentei-me miseravelmente. — Eu não queria ter quase morrido.
— É das drogas — disse Benny sensatamente. — Também me fazem dizer coisas da forma errada.
— Então o que é que aconteceu às… Como é que você lhes chamou… Às otterkin? — perguntou Calvin.
Uma vez que já lhes tinha falado do bastão, contei-lhes o que tinha feito à otterkin e o que ela me tinha dito.
— Podes perguntar ao Zee a opinião dele. — Adam readquirira o controlo, visível nos seus olhos novamente castanhos-escuros. Fitou-me por momentos, após o que acrescentou: — Mais tarde, quando estiveres menos feliz. Ele pode não compreender que estás a sofrer os efeitos de drogas benéficas.
— Ele pode não compreender o porquê de eu ter matado uma das últimas seis otterkin. Supostamente, seriam sete, mas acho que a diaba do rio comeu uma delas quando acordou. — Bocejei. — Não me parece que matá-las fosse propriamente o que o Tio Mike tinha em mente quando nos disse para vermos como é que elas estavam.
— Não sei — replicou Adam. — O Tio Mike consegue ser bastante enviesado quando quer.
— Os Senhores Cinzentos podem vir atrás de mim. — Franzi o sobrolho a Adam. — Eles podem virar-se contra o bando. Os Senhores Cinzentos nem sempre são muito precisos em relação ao alvo da sua ira.
— Se a ira dos Senhores Cinzentos recair sobre o bando, terei todo o gosto em reivindicar a autoria dos atos. Tu mataste um e eu matei todos os outros. — Uma satisfação cruel temperou-lhe a voz.
Toquei-lhe no queixo com a minha mão partida.
— Ainda bem. Não ficaria surpreendida se algumas das mortes que vão ser atribuídas ao monstro tivessem sido da responsabilidade delas. Na verdade, fiquei com a impressão de que andavam a comer pessoas. — A diaba do rio dava-lhes de comer, segundo me dissera a otterkin. E elas davam-lhe de comer a ela. Muitas das criaturas feéricas tinham comido carne humana num dado momento da sua vida. Tinha para mim a suspeita de que as otterkin pertenciam à categoria das criaturas feéricas que comiam pessoas. — Estavam obrigadas a não fazer mal a ninguém na zona de banhos do parque de campismo, no entanto movimentavam-se fora dessa zona.
— Quem é o Tio Mike e quem são os Senhores Cinzentos? — perguntou Calvin.
— Mais vale contares-lhe — disse a Adam. — Ele é um feiticeiro e devia saber essas coisas.
Adam levou-nos de regresso ao parque de campismo no seu SUV. Mal chegámos, embrulhou-me num cobertor no banco do passageiro da carrinha, que deixara ligado com o ar condicionado a funcionar. O ar condicionado era para mim, e tinha a certeza que o cobertor era para ele — o escudo que desejava poder colocar à minha volta, à volta de Jesse e à volta do bando para que nada de mal nos acontecesse.
— Podíamos esperar até amanhã para irmos embora — disse-lhe. — Pareces cansado. E eu não estou tão mal como pareço.
Beijou-me.
— Mercy — replicou —, a verdade é que estás tão mal como pareces. Eu estava presente quando trataram de ti. As drogas que eles te administraram no hospital não vão tardar a deixar de fazer efeito, e os medicamentos de substituição não são, nem de longe nem de perto, tão eficazes. Quero que estejas em casa quando isso acontecer. Este parque de campismo está apinhado de repórteres e toda a espécie de gente que quer estudar o Monstro do Rio Columbia. Não quero ficar aqui nem mais uma noite. Mas, mais importante — emitiu um ruído que era meio suspiro, meio risada, após o que me sussurrou ao ouvido —, temo o que possa acontecer se prolongarmos a nossa lua-de-mel mais um dia. Esperamos seis meses e eu depois levo-te a um sítio qualquer. San Diego, Nova Iorque, até Paris, se quiseres. Mas preciso de te levar para casa hoje.
Fechou a porta e afastou-se para arrumar as nossas coisas. Passei pelas brasas até ser acordada pelo som de uma carrinha. Imensos carros e carrinhas tinham entrado e saído — Adam não se dera ao trabalho de fechar o portão depois de termos saído em direção ao hospital. Todavia, o ronco daquele motor era-me familiar. Tive de pestanejar várias vezes até recuperar por completo a visão e confirmar que se tratava, de facto, da carrinha de Jim Alvin. Parou várias vezes durante o percurso até ao local onde estava a nossa caravana, falando com vários agentes. Tinha um sorriso no rosto, portanto calculei que fossem pessoas que conhecesse.
Estacionou a carrinha, saiu e depois foi ao encontro de Adam para falar com ele durante algum tempo. Finalmente, dirigiu-se ao SUV onde eu me encontrava e abriu a minha porta.
Olhou-me atentamente e assobiou por entre os dentes.
— O Calvin disse-me que a tinha derrotado por uma unha negra, mas se calhar o que ele queria dizer é que de você só tinha sobrado uma unha negra.
— Viu o Coiote? — perguntei.
O sorriso nos seus olhos esfumou-se.
— Não. Mas você sabe que ele ou volta a aparecer ou está lá no outro lado a brincar com os amigos dele. O Coiote sai sempre ileso no fim.
— No outro lado?
— Com as pessoas que foram antes dele — respondeu.
— E o Gordon Seeker?
— Tudo vai ficar bem, Mercy. — Bateu ao de leve na porta com os nós dos dedos. — Queria agradecer-lhe por ter feito aquilo que eu não consegui.
Pestanejei um pouco, percorrendo os meus pensamentos confusos até encontrar aquele que pretendia.
— Não fui a única.
— Sim — concordou. — Mas eu ainda tenho duas pernas em bom estado e a maior parte da minha pele.
— Está tudo bem — tranquilizei-o num tom sério. — Não sinto nenhuma dor neste momento.
Olhou-me atentamente e depois sorriu.
— De que tribo é você, Mercedes Athena Thompson Hauptman?
— Dos Blackfeet — disse-lhe, a resposta saindo-me automaticamente. — Quem é que lhe disse que Athena é um dos meus nomes?
Sorriu misteriosamente.
— Há coisas que devem ser mantidas em segredo. Com que então, Blackfeet? Tem a certeza que não é Blackfoot?
Franzi-lhe o sobrolho.
— Acho que leva consigo uma coisa preciosa desta viagem — disse-me. — Lembre-se de quem é. Bons sonhos, Mercy. Eu telefono-lhe se vir o Gordon ou o Coiote, e pedia-lhe que fizesse o mesmo.
— Está bem. — Fechei os olhos porque se recusavam a continuar abertos. — Se o seu carro avariar, apareça na minha oficina.
Riu-se e fechou a porta.
Adam tinha razão em relação às drogas: tanto em relação ao facto de elas deixarem de fazer efeito como a respeito de os substitutos nas embalagens plásticas de cor âmbar não serem tão eficazes.
— Da próxima vez que sair para matar monstros — disse-lhe enquanto entrávamos na cidade —, é bom que sejas mais competente a impedir-me.
Pegou na minha mão ligada e beijou-a.
— Prometi-te que não ia fazer isso. Da próxima vez, escolhe um monstro que não viva num rio ou oceano, e aí serei mais prestável.
— Ok. — Fiz uma pausa e meditei sobre aquelas palavras. — Não quero que haja uma próxima vez.
Suspirou.
— Eu também não.
Se fosse capaz de me mexer sem gemer de dores, ter-me-ia encostado a ele. Conformei-me com a minha mão pousada na sua coxa.
— Mas se houver — disse-lhe —, e os factos sugerem que haverá, preferia fazer frente a monstros contigo ao meu lado.
— Tenho uma confissão a fazer — disse-me. — Queria esperar até que estivesses um bocadinho mais perto da tua forma habitual, mas não me parece que isso vá ser possível.
— Conheceste uma empregada de mesa gira e queres o divórcio — disse-lhe.
Riu-se.
— Não. Mas procurarei uma quando tiver oportunidade.
— Fixe. Eu conheci um enfermeiro bonito, mas acho que ele gostou mais de ti do que de mim.
— Agora a falar a sério — disse-me. — Fiz uma coisa que não devia ter feito.
Ainda me estava a sentir um pouco desnorteada, portanto não tenho a certeza se a minha visão súbita tinha como origem o nosso vínculo de parceiros ou o facto de ele ter falado num tom demasiado parecido com o que a minha mãe usara quando tinha dito à minha irmã mais nova que encontrara o seu diário e o lera. Uma vez que eu tinha dito a Nan que ela não devia escrever nada que não quisesse que outras pessoas soubessem, ficara surpreendida ao constatar o quanto a minha mãe tinha ficado chateada. Acontece que Nan decidira que se alguém lhe fosse espreitar o diário, haveria de ter o que merecia. Precisou de cerca de dez minutos para convencer a nossa mãe de que não estava a traficar drogas para pagar um aborto.
— Leste as cartas — disse-lhe, esforçando-me ao máximo por soar ofendida.
— Li a carta que escreveste para mim.
Bocejei, o que basicamente arruinou a minha pretensão de parecer indignada. Dei uma palmadinha numa qualquer parte do seu corpo que consegui alcançar.
— Não há problema — repliquei. — Tinha o teu nome escrito.
Permanecemos em silêncio durante algum tempo até ele ter voltado a falar.
— Também te amo.
Sorri-lhe sem abrir os olhos.
— Eu sei que sim.
Dormitei um pouco e, quando dei por ela, estávamos na rampa de entrada da casa de Adam.
A parte exterior da porta dupla foi aberta e Jesse apareceu.
— Pai. Ei, pai. Porque é que vieste mais cedo para casa? Apareceu aqui alguém do teu trabalho e deixou uma embalagem grande que diz «cadeira de rodas» na garagem. É mesmo uma cadeira de rodas? Para que é que nós precisamos de uma cadeira de rodas?
Abri a porta do passageiro e, enquanto Adam abraçava Jesse, ponderei as dificuldades em descer até ao chão. Se estivéssemos no meu Rabbit, conseguiria sair sozinha, porque o meu Rabbit não está um metro acima do chão. Não que isso me pudesse servir de muito. Fosse como fosse, não conseguiria chegar a lado nenhum sozinha.
Jesse olhou para cima, e o seu queixo caiu.
— Pai — disse numa voz horrorizada —, o que é que fizeste à Mercy?
O Tio Mike não ficou particularmente agradado quando lhe liguei na manhã seguinte e lhe contei que tínhamos matado as otterkin. No entanto, prestou atenção ao que eu disse quando lhe descrevi o que elas tinham feito. Enumerei-lhe minuciosamente os danos infligidos à minha pessoa (estava a tomar apenas analgésicos não sujeitos a prescrição médica e sentia-me lamentosa).
— Quantos pontos? — perguntou depois de eu terminar.
— Cento e quarenta e dois — respondi. — E quatro agrafos. E todos me fazem comichão.
O sofrimento era amenizado quando estava distraída. Uma vez que não podia fazer nada, a única distração que me restava era falar com pessoas. Neste momento, estava sozinha em casa — razão pela qual decidira telefonar ao Tio Mike e pô-lo ao corrente.
— E como deves imaginar, quando se tem a mão partida e um corte gigante debaixo do braço, não se pode andar de muletas, nem de cadeira de rodas, a menos que se tenha um servo para a empurrar. A mão que não está partida está queimada, por isso nem sequer consigo andar com a cadeira às voltas.
— Acho que vou contar aos Senhores Cinzentos que se tratou de um ato suicida — disse, após um longo silêncio. — Seja como for, qualquer pessoa que te faça mal em frente ao Adam é demasiado estúpida para viver.
— O Adam só matou cinco. Eu matei a outra. — Fiz uma pausa. — Ok, não propriamente. Foi o bastão que a matou, quando o estava a segurar.
Fez-se uma pausa longa.
— Ah, sim?
Contei-lhe como usara o bastão para matar a diaba do rio, o que a otterkin me dissera depois, e como o bastão o matara.
— Introduziste o bastão de Lugh no sangue de um monstro ameríndio ancestral?
— Fiz asneira?
Suspirou.
— Que alternativa te restava? Se não o tivesses usado, estarias morta, e andaria um monstro à solta a comer pessoas. Mas não há como negar que o ato não teve nada de positivo. A violência gera violência, especialmente quando há magia envolvida.
— O que é que eu devo fazer com ele?
— O que é que tu podes fazer? Evitar usá-lo novamente para matar alguém.
— Posso dar-to? — Não que eu tivesse medo dele. Nem sequer sabia o que tinha de errado. Simplesmente não fora capaz de o guardar em segurança. Deveria ir para as mãos de alguém que cuidasse melhor dele.
— Já tentámos isso, lembras-te? — disse o Tio Mike. — Não funcionou.
— O oakman usou-o para matar um vampiro. Porque é que depois disso o bastão se manteve igual?
— Não sei — respondeu o Tio Mike. — Mas se tivesse de dar um palpite, diria que isso se deveu ao facto de o bastão não pertencer ao oakman, mas a ti. A intenção e a propriedade encerram uma magia muito poderosa.
— Ah, é verdade… — Lembrei-me da última coisa sobre a qual precisava de lhe falar. — Em relação à tua caravana. Tens preferência por algum chapeiro? Se não tiveres, conheço alguns.
Seis dias depois, estava a fazer zapping na televisão da cave quando ouvi alguém ao cimo das escadas.
— Deixem-me estar — disse eu.
Estava farta de toda a gente, o que revelava indelicadeza da minha parte. Mas a verdade é que não gosto de estar dependente — faz-me ficar rabugenta. Precisava de alguém para me transportar escada acima e escada abaixo. Precisava de alguém para me ajudar a sair de casa e a entrar. Até para ir à casa de banho precisava da ajuda de alguém, porque nenhuma das portas das casas de banho era suficientemente larga para a passagem de uma cadeira de rodas. Durante o período em que Adam estivera presente, não fora assim tão mau, mas ele vira-se obrigado a partir dois dias antes para resolver um qualquer revés no Texas. Por ele, não teria ido, mas acontece que o problema tinha a ver com uma instalação governamental ultrassecreta e ele era o único na companhia com autorização para o solucionar.
O dia de hoje estava a ser particularmente deprimente porque tinha ido a uma consulta médica com a esperança de receber uma bota gessada e, em vez disso, fora-me dito que não poderia pousar a perna no chão durante pelo menos mais duas semanas. Warren transportara-me a mim e à cadeira de rodas escada abaixo e depois postara-se ao meu lado. Acabei por lhe pedir que me deixasse sozinha de uma forma pela qual teria de pedir desculpa quando deixasse de sentir pena de mim própria — e quando Jesse chegasse a casa do seu encontro, porque tinha deixado o meu telemóvel no casaco, que estava lá em cima na cozinha. O único telefone na cave encontrava-se ao nível do terceiro degrau. E como se isso não bastasse, a minha perna protestara contra todos os abusos de que fora alvo e não parava de latejar. O acetaminofeno não estava a fazer efeito. De modo que me encontrava sentada em frente à televisão com os olhos lacrimejantes, e dispensava testemunhas.
Os pés nas escadas continuaram a aproximar-se. Deveria estar sozinha em casa, mas na casa de Adam estavam sempre a aparecer elementos do bando.
— Eu disse…
— Deixem-me estar — repetiu Stefan. — Eu ouvi.
Não acelerou a passada, o que foi generoso da parte dele, porque desse modo pude limpar os olhos antes que ele me visse.
— Eu até me virava — disse eu com alguma amargura —, mas o meu médico disse-me que eu tenho andado a tratar mal as minhas mãos e que, se continuar assim, vou ficar com cicatrizes. Portanto já nem sequer posso pôr esta coisa maldita a andar às voltas.
Stefan contornou-me e desligou a televisão de modo a que a sala ficasse na escuridão. Agachou-se para que os nossos olhos ficassem à mesma altura.
— O Warren ligou-me assim que o Sol se pôs — disse, puxando o cabelo que me tapava a cara para trás com os polegares. — Ele disse, e passo a citar, «É altura de liquidares a tua dívida, Stefan. Temos tentado, mas as nossas opções já se esgotaram.»
Levantei o queixo.
— Eu estou ótima. Podes dizer ao Warren que podem folgar o resto da semana. Não têm de estar sempre por perto a satisfazer as minhas necessidades. Eu fico bem. — Arranjaria uma maneira de fazer com que o meu corpo e a minha perna engessada entrassem e saíssem da casa de banho sem a ajuda de ninguém. Não sei como, mas arranjaria.
— Mercy — disse ele, suavemente. — Não se trata de eles não te quererem ajudar. Simplesmente não podem. Disseste a todos eles para te deixarem em paz. Com o Adam fora, és a pessoa com a posição mais elevada na hierarquia do bando, e eles não podem contrariar-te. O Warren disse-me que os membros do bando que restavam para te ajudar não eram do agrado dele.
Isso nunca me tinha ocorrido. E explicava o facto de Auriele e Darryl não terem regressado, mesmo depois de eu lhes ter enviado um e-mail a pedir desculpa por ter gritado com eles. Eu sei que os pedidos de desculpa por e-mail são pouco convincentes, mas tinha sido a única forma que eu encontrara de garantir que não voltaria a resmungar com eles.
— Tens de lhes dizer que podem voltar aqui a casa e falar contigo, bem como ajudar-te no que precisares. Do mesmo modo que os ajudarias se eles precisassem. O Warren pediu-me para te explicar que eles compreendem perfeitamente a necessidade que sentes de rosnar e implicar.
Desgostosa com a minha estupidez, assenti com a cabeça.
— Mas não esta noite — disse-me. — Esta noite tens-me a mim. Gostavas de ir dar uma volta? Ainda está calor lá fora. Trouxe alguns jogos, se preferires. Gostas de jogar batalha naval, tanto quanto sei.
Suspirei, resignada.
— Preciso de ir à casa de banho.
Transportou-me em braços sem embaraço — da parte dele, pelo menos. Depois levou-me a passear à beira-rio. Levou-me ao colo porque o terreno era demasiado irregular para uma cadeira de rodas. Era uma situação potencialmente desconfortável, porém ele não prestou qualquer atenção à intimidade forçada, pelo que tão-pouco tive de o fazer. Vinha tentando causar o menor transtorno possível, portanto as únicas ocasiões em que tinha saído de casa desde que regressáramos de Maryhill cingiam-se às consultas médicas.
— Estás com melhor aspeto — disse-lhe. Era verdade; ainda estava magro, mas já não parecia um espeto que podia levantar voo com uma rajada de vento.
— Fiz uma viagem até Portland a semana passada e trouxe umas pessoas — contou, soando triste. Os vampiros não caçavam as suas ovelhas, as pessoas que mantinham nos seus rebanhos, nos seus próprios territórios. — Tentei encontrar pessoas que achava que se iam dar bem com as restantes, mas ainda estamos em negociações territoriais. Preciso de mais algumas, mas vou esperar até que a poeira assente. O Warren disse que ele e o Ben não se importavam de continuar a alimentar-me até eu não precisar mais deles.
Dei-lhe uma palmadinha no ombro.
— Também detesto estar dependente. É uma merda.
Soltou uma risada triste.
— Parece que estamos no mesmo barco, não é? Acho que nos resta tentar ser amáveis e gratos até recuperarmos a nossa autonomia. Um dia a roda do destino irá colocar-nos numa posição em que seremos úteis para eles, e iremos lembrar-nos de que é muito mais fácil oferecer ajuda do que aceitá-la. Desviando um bocadinho o assunto, porque é que não me contas as tuas aventuras? O Warren contou-me bastantes coisas, claro, mas prefiro ouvir a história diretamente da fonte sempre que isso é possível.
De modo que caminhámos e falámos até eu ficar rouca e com frio. Depois fomos para casa jogar batalha naval.
— B-7 — disse eu.
— Água. — Estava deleitado porque se preparava para afundar o meu último e maior navio, ao passo que eu ainda andava à procura do seu barco-patrulha de dois canos.
— C-2.
— Acertaste, e sabes disso — resmunguei.
Olhou para mim, e depois os seus olhos concentraram-se acima do meu ombro.
— D-4 — disse o Coiote
Stefan pôs-se de pé e disse:
— Quem é você?
Mais ou menos ao mesmo tempo, virei a minha cadeira, indiferente aos danos que podia causar nas mãos, e disse:
— Bons olhos o vejam. Estávamos preocupados.
— Claro que estavam — replicou-me o Coiote. Fitou-me por momentos. — Mercy, o que é que lhe aconteceu?
— Diaba do Rio e otterkin — disse.
Passou o polegar por baixo do meu olho e espetou-o no ar.
— Está com uma fuga, Mercy. Talvez precise de mais alguns pontos.
Ri-me e limpei a cara.
— Pensava que tinha morrido.
— E morri — replicou. — Era esse o plano. Não se lembra? Porque é que tem um vampiro na sua cave? — Estreitou os olhos a Stefan e, num tom hostil, disse: — Os vampiros matam caminhantes.
— Mercy — disse Stefan —, este é o Coiote?
— Sim — confirmei. — Stefan, apresento-te o Coiote. Coiote, apresento-lhe o Stefan Uccello, meu amigo.
O olhar do Coiote tornou-se notoriamente mais frio.
— Eu lembro-me de si.
Stefan sorriu-me.
— A última vez que tive algum confronto com um caminhante foi há cem anos ou mais, mas talvez seja boa ideia eu ir-me embora até o teu convidado terminar. Tens o teu telemóvel contigo? — Mostrei-o; Stefan fora buscá-lo quando chegámos do passeio. — Telefona-me quando ele se for embora. Prometi ao Warren que não te deixava sozinha. Eu digo-lhe que tu me pediste para lhe comunicar que pode voltar amanhã.
— Obrigada — disse-lhe de forma sentida.
Beijou-me na face, ignorando a rosnadela gutural do Coiote. Depois desapareceu.
O Coiote endireitou-se, de olhos cravados no sítio onde o vampiro tinha estado.
— Nunca tinha visto um bebedor de sangue fazer aquilo.
— O Stefan é especial — concordei. — Fico contente por ter regressado. O que é que aconteceu aos outros, sabe?
O Coiote pegou na cadeira de Stefan e sentou-se com um grunhido.
— O Pássaro Trovão, o Gordon Seeker, foi o único que me puxou de volta para cá. Surpreendeu-nos a ambos. Já não existe mais nenhum Pássaro Trovão caminhante, e estávamos convencidos de que, não tendo ninguém para o ancorar, ele nunca mais ia regressar. O que serve para mostrar que por muito velhos que sejamos, a vida ainda nos pode surpreender. Tem alguma coisa que se coma? Já lá vão uns dias desde a última vez que levei alguma coisa à boca.
— No frigorífico — disse-lhe. — Sirva-se à vontade.
Foi o que fez. Pegou na minha cadeira de rodas e transportou-me até à cozinha, no piso superior, fez uma sandes enorme, encheu um copo com leite e sentou-se. Contei-lhe como tinha matado a diaba do rio e a otterkin. Também lhe contei o quanto tinha ficado preocupada em relação ao bastão.
Este não tinha feito nada desde a morte da otterkin, mas parecia que uma avidez, uma aura de violência, o envolviam. Dera-me conta de que quando estava no limite da minha irritação, o bastão normalmente aparecia. Talvez fosse imaginação minha — não teria contado isso a Adam, por exemplo, sem provas mais consistentes. Todavia, o Coiote regia-se mais pelo instinto do que pela lógica, por isso achei que ele ia compreender. Julgo que alimentava a esperança de que me pudesse dar algum tipo de sugestão, porém limitou-se a ouvir e a acenar enquanto comia. Até lhe falei sobre conviver com uma mão e uma perna partidas rodeada por um bando de lobisomens que tentavam cuidar de mim contra a minha vontade, fazendo-o derramar leite pelo nariz numa enorme risada. A perna ainda me doía, os pontos ainda me causavam comichão, e Adam ainda estava longe, no Texas, mas, de uma forma que não sei explicar, sentia-me melhor.
O Coiote contou-me algumas histórias acerca dele. Também usou as versões grosseiras. O humor escatológico não deveria ter graça para pessoas acima dos doze anos de idade — para além de se cingir à metade masculina da espécie. No entanto, saído da boca do Coiote, era diferente, simultaneamente malicioso e inocente.
Inclinou-se para a frente e tocou-me no nariz.
— Está cansada. É melhor eu ir andando.
— Apareça mais vezes — convidei-o.
O Coiote percorreu a cozinha com o olhar e depois atentou em mim.
— Sabe, acho que vou fazer isso. — Levantou-se e, nas minhas costas, disse: — É muito bonito.
Virei-me o máximo que consegui na cadeira de rodas e vi que tinha pegado no bastão, que devia ter estado à espreita. Fez com ele o gesto característico de Charlie Chaplin.
— Não creio que algum dia tenha visto algo tão graciosamente concebido ou engenhosamente esculpido — disse. Depois olhou para mim e sorriu, à espera que eu entendesse.
— Aceitaria — disse cuidadosamente, recordando o que Charles me ensinara sobre convidados e coisas que eles admiravam — ficar com ele? Encantou-me durante imensos dias, tal como você, o que faz dele um presente adequado a tão honrado e bem-vindo convidado.
Sorriu-me como se eu tivesse sido excecionalmente astuta.
— Mas tornou-se um pouco perigoso nos tempos mais recentes, não é verdade? Havemos de partilhar aventuras maravilhosas, este bastão e eu.
Tinha-o devolvido aos seres feéricos bastantes vezes na altura em que me aparecera — e tinha regressado sempre. No entanto, embora sem saber explicar porquê, estava em crer que iria permanecer junto do Coiote.
— Cuide de si — disse-lhe. — E diga às suas irmãs que eu lhes mando cumprimentos.
— Farei isso — prometeu, abrindo a porta das traseiras. Deteve-se na soleira e voltou-se para mim.
— Diga ao seu companheiro que eu espero que ele cuide de si — rosnou.
— Direi. — Sorri tenuemente. — Divirta-se.
— Pode crer que o farei — replicou o Coiote. Fechou a porta, mas ainda assim ouvi-lhe as últimas palavas. — É o que faço sempre.
CARTA DE MERCY PARA ADAM
Meu querido Adam,
Se estiveres a ler isto, presumo que isso queira dizer que desta vez não me safei. Raios. Estava mesmo preocupada com isto, e se houvesse uma forma de escapar, eu tê-la-ia encontrado.
As palavras não são o meu forte, não quando se trata de dizer o que sinto por ti… Mas tu sabes. Sou muito melhor a agir do que a explicar-me. Acho que isso acontece porque quando penso em ti, não o faço em palavras. Como posso eu reduzir o que sinto por ti a meras palavras numa página? «Amo-te» não me parece suficiente, e todas as outras palavras que tentei usar (podes vasculhar aquele caixotezinho do lixo debaixo da banca se quiseres ver os rascunhos desta carta) soam a poesia muito má, o que é ainda pior, portanto vou limitar-me às palavras simples. Amo-te, Adam.
Quero que saibas que lutei para regressar para junto de ti. Não optei pela solução mais fácil. Não desisti. Travei esta batalha até à morte porque estavas à minha espera na margem. Se tivesse sido possível arrastar esta débil carne mortal até ti, tê-lo-ia feito, teria rastejado ao teu encontro. Teria atravessado o Inferno para voltar para junto de ti, e só fracassei por causa da fraqueza do meu corpo, não do meu coração.
Não afastes a Jesse. Ela precisa mais de ti do que está disposta a admitir. Ia dizer-te para procurares uma mulher que te amasse, mas descobri que não sou capaz disso. Ainda assim, não te sintas culpado quando isso acontecer, ok? E não a deixes à espera durante anos (como fizeste comigo) por achares que és demasiado velho, demasiado Alfa, demasiado isto ou aquilo. Certifica-te apenas de que ela tem por ti a estima devida.
Amo-te,
Mercy
Biografia
Patricia Briggs tinha uma vida razoavelmente normal até ter aprendido a ler. Depois disso, começou a passar as tardes de ócio a voar montada em dragões e à procura de espadas mágicas quando não estava a passear a cavalo nas Montanhas Rochosas. Depois de se ter licenciado em História e Alemão pela Montana State University, passou a dividir o seu tempo entre a função de professora substituta e a escrita. Patricia Briggs e a sua família vivem no Pacífico Noroeste, e poderá visitar o seu sítio da Internet em:www.patriciabriggs.com
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Leia nas próximas páginas um excerto do livro
O Complexo dos Assassinos
de Lindsay Cummings
Um thriller intenso de ação e paixão num cenário futurista onde o número de assassinatos é superior à taxa de natalidade
Meadow Woodson, uma rapariga de 15 anos que foi treinada pelo seu pai para lutar, matar e sobreviver em qualquer situação, reside com a sua família num barco na Florida. O Estado é controlado pelo Complexo Assassino, uma organização que segue e determina a localização de cada cidadão com precisão, provocando o medo e opressão em absoluto.
Mas tudo se complica quando Meadow conhece Zephyr James, que é – embora ele não saiba – um dos assassinos programados do Complexo. Será o seu encontro uma coincidência ou parte de uma apavorante estratégia? E conseguirá Zephyr impedir que Meadow descubra a perigosa verdade sobre a sua família?
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CAPÍTULO 1
MEADOW
É a chave para a sobrevivência, a chave da vida. O velho punhal do meu pai.
— Peri! — Chamei por cima das ondas a minha irmãzinha. Uma velha lata ondula nas águas, hipnotizando-me por momentos. Para lá dos Baixios, o mar está pejado de barcos. Alguns ainda estão a flutuar, com os mastros estendidos como braços para o céu. Outros encontram-se meio submersos, afundados e cobertos de musgo.
Por entre os barcos veem-se outras coisas. Pneus usados, a metade de um automóvel enferrujado, plástico. Um cadáver de mulher está de cabeça para baixo nas ondas, com o cabelo estendido como se fosse algas.
Por detrás de mim, na cidade, geme a Sirene Noturna. Começa baixinho, em seguida uiva mais alto para se tornar de novo mais silenciosa. Toda a gente na praia se esconde nas sombras, sabendo demasiado bem o que acontece quando o Sol se põe.
Já não é seguro. Volto a chamar a Peri. — Já são horas para nos irmos embora!
Ela levanta uma mão muito pequena e faz-me o sinal com dois dedinhos sujos que ergue por cima da cabeça.
Dois minutos. Com ela é sempre mais dois minutos.
O Sol começa a pôr-se, uma enorme bola cor de laranja, que se derrete no mar, incendeia o céu e tudo começa a dançar cheio de cores. Vermelhos, laranjas, amarelos. Lembram-me sangue, lembram-me a minha mãe.
Peri vem a correr na minha direção, levantando jatos de areia atrás dela. — Encontrei um caracol-do-mar! — grita, como uma gaivota assustada. — Como eu!
— Ai sim? Deixa-me ver. — Dou uma olhadela por cima do ombro e vejo algumas pessoas que ainda se encontram na praia, antes de me ajoelhar para ficar ao seu nível. Os grandes olhos cinzentos de Peri, da cor da espuma do mar, abrem-se muito, ao colocar-me a concha pequenina na palma da mão. É redonda e enrolada em espiral, com uma ponta aguda no topo. Um molusco surge então na sua abertura. Embora não tenha o volume suficiente para que alguém o pudesse comer, ainda estou tentada a meter esse caracol no bolso. Mas, de qualquer modo, a Iniciativa iria logo saber disso. Tão certo quanto a maré encher e vazar, a Iniciativa descobre sempre os nossos segredos.
— É uma bela concha — comento, sorrindo para ela —, mas não podemos ficar com ela.
Os números negros e espessos, que tem tatuados na testa, franzem-se contrariados. 72050. É o número de catalogação da Peri, que difere do meu apenas por um número. Os nossos códigos de barras informam a Iniciativa acerca do local onde estamos e de quem somos, a cada momento das nossas vidas. À medida que Peri vai crescendo, crescerá também, e nunca se há de apagar ou enrugar-se devido às nanites20 que todos nós transportamos no sangue.
— Olha — digo-lhe, apontando a ponta do punhal na direção da concha —, vamos marcá-la. Assim, da próxima vez que a encontrares, vais lembrar-te. — Tento desenhar um pequeno coração num dos lados da concha. Está todo torto e mal se consegue ver. Deixo cair o molusco na areia para que as ondas o levem. A Peri sorri encantada. É uma versão mais pequena de mim. Tem um cabelo louro-platinado que lhe cai encaracolado até à cintura. Como o da nossa mãe.
— Muito bem, já é tempo de nos irmos embora. — Ela dá-me a mão e reboca-me pela areia, murmurando entre dentes a melodia de uma canção de embalar. Baixinho, mais ninguém além de nós as duas a consegue ouvir. A Peri sabe muito bem dar valor ao silêncio nos Baixios.
No outro extremo da praia, um pontão feito de enormes pedras penetra no mar. As ondas rebentam contra ele e molham-nos, mas isso não importa. O calor do verão cola-se a mim como nevoeiro.
Peri é a primeira a trepar pelo pontão para chegar ao outro lado. Eu sigo-a, e fico quase sem fôlego.
Piratas.
São capazes de fazer qualquer coisa para ganharem mais créditos. A Iniciativa paga-lhes para vigiarem a costa e para resolverem os problemas mais comuns, tal como encontrarem e denunciarem os cidadãos que quebrem um dos quatro Mandamentos dos Baixios.
Primeiro Mandamento: Honrar a Iniciativa.
Segundo Mandamento: Não tentarás atravessar o Perímetro.
Terceiro Mandamento: Honrar a Hora de Silêncio.
Quarto Mandamento: Não manterás objetos úteis dos Dias Passados.
— Vamos lá a pagar! — exclama um dos Piratas. Este levanta-se do seu lugar junto a uma fogueira bem acesa. Estão a cozinhar peixe.
Nós nunca poderíamos arranjar um peixe inteiro. Tudo o que conseguimos recolher é enviado para o Departamento de Rações Alimentares, para ser misturado com outros alimentos, ricos em nutrientes, até formar um puré a ser distribuído.
— Esta noite não queremos problemas — apresso-me a dizer-lhes. A Peri encosta-se muito a mim. — Só queremos chegar ao nosso barco.
O Pirata ri-se, e há dois homens que se juntam a ele. Estão todos cobertos de tatuagens. Um deles tem uma tatuagem da Iniciativa no pescoço, um olho aberto que nunca pestaneja. — Se queres ir para o mar, minha menina, terás de pagar.
A minha mão toca no punhal que trago junto à anca. São apenas três. Se estivesse sozinha, acabaria logo com a situação. Mas a Peri começa a puxar-me pela blusa e eu dou-me conta do medo nos seus olhos. Não posso arriscar a sua segurança. Não agora, quando as Horas da Escuridão se avizinham. E não tenho o que quer que seja para dar aos Piratas, nada que possa comprar a nossa passagem.
Mas a Peri tem.
Ela tem um par de ténis demasiado grandes e os atacadores ainda estão intactos. Trata-se de algo precioso, e parte-me o coração o facto de ter de ser eu a retirar-lhos.
— Dou-vos os atacadores — sugiro eu aos Piratas, apontando para os pés de Peri. — Mas depois têm de nos deixar passar.
O homem mais corpulento assobia. Tem mau hálito. — Esta noite estou muito generoso, minha menina. Para a próxima vez é melhor que venham preparadas. Estão a perceber?
Aceno afirmativamente com a cabeça. — Para a próxima vez talvez não fique vivo.
Ele pensa que estou a brincar.
Baixo-me para desatar os atacadores. A Peri franze o sobrolho, mas não se põe a chorar.
É forte esta minha irmãzinha.
Os Piratas pegam nos atacadores e voltam, a rir-se, para junto do peixe que estavam a assar. Eu e a Peri conseguimos passar em segurança e corremos ao longo da praia. Retiramos à pressa as folhas de palmeira e as algas do nosso barco. Trata-se de um pequeno bote onde apenas cabem duas pessoas. Desamarro a corda, empurro o barco até às ondas e deixamos a praia para trás.
— Meadow, será que vamos comer esta noite? — pergunta-me a Peri, enquanto remo através do labirinto de resíduos e de lixo. O vento afasta-lhe o cabelo da cara e eu reparo no modo como ela tem as maçãs do rosto tão salientes, como tem os olhos um pouco encovados. Está novamente a perder peso.
— Sim — respondo-lhe, acenando com a cabeça e desviando o olhar. A maneira como ela me está a observar, como se eu fosse a única coisa no mundo que merecesse ser amada, faz com que o meu coração se encha de sentimentos de culpa. Se ela soubesse o que tenho de fazer para que ela possa comer, para me certificar de que conseguimos assegurar a sobrevivência…
A duas milhas da costa paro e ponho-me a olhar fixamente para o mar enegrecido, com os ombros a arderem-me devido ao esforço da remada. O bote embate contra a nossa casa flutuante. Tudo está em silêncio, uma noite parada com as ondas a embaterem suavemente contra o barco, como de costume. Quando a minha mãe foi assassinada, pensei que o mundo também se acabasse com ela. Mas ainda continua.
20 Nanomáquinas. (N. do T.)
CAPÍTULO 2
ZEPHYR
É estúpido termos medo de um número.
57809. Cada vez que o vejo, tenho um calafrio.
45860. Afasto-me rapidamente, com as faces coradas, os dedos a tremer.
23412. Culpa. Ódio. Angústia. Tenho vontade de fugir e de bater com a cabeça contra uma parede de tijolo até começar a sangrar, até perder os sentidos e ignorar o mundo por completo.
Os Programados não deveriam ter sentimentos. Especialmente os rapazes. Devemos ser fortes, capazes de nos desenrascarmos. Pelo menos é isso que a Iniciativa nos diz.
É uma estupidez termos medo de números.
Mas eu tenho.
Tenho mesmo.
CAPÍTULO 3
MEADOW
Todas as noites, fico acordada o tempo suficiente para poder afastar os meus pesadelos. Estou de pé nas tábuas que formam o chão do alpendre. O mar está mais escuro do que o céu e, embora mal possa enxergar as ondas a erguerem-se e a baixarem à luz do luar, sinto esse movimento por baixo dos pés. Um suave embalo que me faz sentir em segurança. Os outros barcos à nossa volta chapinham e gemem nos seus ancoradouros. Costumava haver outras pessoas a viverem nesses barcos.
Mas todas foram mortas ou desapareceram. Agora, apenas a minha família sobrevive no mar.
Na distância consigo ver as luzes do Perímetro, a enorme muralha que rodeia os Baixios.
O meu pai contou-me sobre uma guerra que despedaçou o país e que todos os que sobreviveram tinham contraído a Peste. Esta derrete-nos as entranhas. Morre-se num instante e todos os que se encontrem perto, para verem o que acontece, também morrem.
Uma vez por outra, veem-se luzes intermitentes no topo da muralha do Perímetro, que oscilam entre o azul e o roxo. A Pulsação. Essas luzes enviam mensagens para os Alfinetes que nos foram implantados no braço logo à nascença. Ao receber essa mensagem, o Alfinete liberta nanites. Estas retiram-nos as impurezas do corpo, reparam-nos as células, como pulgas de areia na sua limpeza. É por isso que todos somos saudáveis. Devido à Pulsação, a morte por doença é algo que já não teremos de temer. A Peste já não nos poderá atacar. O Segundo Mandamento tem a ver com a nossa segurança.
E essa é a única razão por que aqui ficamos.
Volto-me para entrar em casa. A Peri deve estar a começar com os seus pesadelos. Mas antes que o faça, algo me detém.
Julgo ouvir passos.
— Peri?
Qualquer coisa embate com força contra mim e fico sem ar nos pulmões. Caio do alpendre para o mar escuro.
Alguém me agarra. Estamos a ir para o fundo do mar, muito depressa, com o luar por cima de mim a desaparecer rapidamente.
Não consigo respirar. Não consigo pensar. Vou morrer afogada.
Conta até três. Descontrai a mente. Agora sobrevive. As palavras do meu pai ressoam-me claramente no pensamento, e eu obedeço.
A minha mão toca em carne humana e eu ouço um ronco surdo através da água. Consigo agarrar no punho do punhal, abrir os olhos e apontá-lo na direção do meu atacante. A lâmina quase lhe penetra, quando me apercebo de três apertões fortes no braço. O sinal, na minha família, de estarmos prestes a desistir. Recuo, retirando o punhal. Irei, de certeza, pagar por isso.
Volto desesperadamente à superfície e aspiro o ar fresco de verão, enquanto o meu irmão vem à tona, mesmo ao meu lado.
— Mas que diabo, Meadow…! — exclama Koi, enraivecido, enquanto ambos vomitamos água salgada. — Pai! — grita ele, e o rosto do nosso pai aparece por cima da balaustrada. Atira-nos um escadote de corda e nós nadamos para ele à luz do luar.
— Raios partam! — geme Koi, à medida que trepa desajeitadamente pela escada de corda para se atirar para as tábuas do chão do alpendre como um peixe moribundo. Depois deita-se de costas e começa a respirar fundo. Vejo gavinhas de pelos platinados no seu rosto. — Quantas vezes te disse eu já… para deixares o punhal… — geme ele — aqui em casa… — outro gemido — sempre que brigamos?!
Consigo subir pela escada de corda e sento-me de cócoras ao lado dele. O meu irmão faz-me um gesto obsceno com o dedo médio, e eu estremeço ao ver um charco de sangue a espalhar-se pelas tábuas do chão do alpendre por baixo da sua coxa. O sangue, na maior parte das vezes, não me incomoda. As nanites reparam-nos as feridas muito rapidamente. Mas estas deixam-nos cicatrizes, marcas da nossa força. A ideia de ser eu a pôr termo à vida do Koi dá-me vontade de vomitar.
— Tu atiraste-te a mim sem que eu estivesse à espera! — digo-lhe a choramingar. Porém, apesar do sangue, não posso deixar de sorrir. O Koi alcança três vitórias por cada uma das minhas. — Bem, deixa-me ajudar-te…
— Não, não é preciso — responde-me ele, com um rugido. A ferida já começou a sarar. — Não é nada de especial. — Faz uma careta e afasta-me a mão. As suas cicatrizes são como centenas de pequenas marcas de dentes ao longo dos braços. As minhas não são tão más, apenas uns quantos pequenos cortes aqui e ali, mas quem me dera ter mais. Nos Baixios as cicatrizes são os nossos troféus. Demonstram bem como sabemos fintar a morte.
— Belo trabalho, Meadow — observa o meu pai, com um sorriso escarninho. Ele gira a manivela de uma grande roda situada à proa da nossa casa flutuante. Mais à ré, vê-se um compartimento onde se guarda uma bobina de arame. Correntes, ligadas a essa roda, libertam desse compartimento um espesso arrame farpado. Esse arame serpenteia em volta da balaustrada da nossa casa flutuante, com farpas tão aguçadas como facas. A segurança nunca é de mais. — Estás a ficar melhor. Creio que já passou.
— Sim? — Esforço-me para que a minha voz não soe esganiçada de emoção. Amanhã é o meu dia de anos. Dezasseis, e já não é sem tempo. Já estamos em junho, no sexto mês do ano, quando dois comboios especiais atravessarão os Baixios, o Vermelho e o Azul. Se conseguir apanhar um deles, farei o meu teste de colocação e, se tudo correr bem, terei finalmente um verdadeiro emprego e um ordenado. Isso irá significar mais comida e mais água para a minha família.
— Pois é… — O meu pai acena-nos para que nos juntemos a ele lá dentro. Seguimo-lo e vemo-lo acender uma vela, logo que fechamos a porta e as portadas das janelas. Tenho a impressão de cheirar lírios, a flor favorita da minha mãe. Mas as velas perfumadas há muito desapareceram.
No outro lado da sala, consigo ver a Peri esparramada em cima do colchão, com as pernas e os braços abertos, como se tivesse acabado de cair sem sentidos após uma corrida extenuante.
— Estás nervosa? — Koi pega numa cadeira e senta-se voltado para as costas da mesma, com os braços pousados à vontade sobre o espaldar arredondado.
— Não — minto-lhe. Não quero que ele pense que sou fraca. — Explica-me como é que podemos apanhar o comboio.
Ele ri-se baixinho. — Já to expliquei, Meadow. Mil vezes. Não dês nas vistas. Não chames as atenções. Não irás ter problemas.
Olho de soslaio para o meu pai, e ele confirma as palavras do Koi com um silencioso aceno de cabeça. O nosso saco de mantimentos está aberto em cima da mesa. Tudo o que o meu pai conseguiu ganhar nessa semana. Uso o meu punhal para cortar uma fatia de pão. Esboroa-se nos meus dedos quando a levo à boca, mas não me queixo. Aprendemos a ser agradecidos por tudo o que conseguimos arranjar.
— E se eu não o conseguir apanhar? — Olho para Koi. — Explica-mo outra vez, se não te importas…
Os seus olhos fixam-se nos meus por instantes, e sorri. É algo que ele e a Peri fazem mais vezes, uma coisa rara nos Baixios. — Hás de conseguir. Limitas-te a fazer o que te disse. Vão todos tentar entrar sofregamente para o primeiro comboio. Vai ser uma carnificina, acredita, de modo que tens de te manter mais atrás e esperar. Entras no segundo comboio e, em vez de entrares para a carruagem, trepas para o tejadilho.
Ele conseguiu apanhar o comboio há três anos. Mas chumbou no teste de colocação.
Ainda hoje se critica por causa disso. Leio-o nos seus olhos.
— Hás de conseguir apanhar o comboio — repete Koi. Debruça-se e coloca a mão em cima da minha. É um gesto que a minha mãe costumava ter para comigo. — És forte e, quando fizeres o teste, hás de passar.
Ficamos calados por mais algum tempo. O meu irmão pega num pedaço de madeira que deu à costa e começa a esculpi-lo. Consigo ouvir o ruído do seu canivete, a regularidade da sua respiração. As suas esculturas em madeira são sempre tão reais, como se capturassem breves instantes de vida e, silenciosamente, agradeço ao mundo por não lhe ter roubado esses pequenos instantes de felicidade. Esta noite, está a fazer uma escultura do meu pai a limpar os seus anzóis após um dia de pesca. Por vezes, penso que poderia ficar aqui sentada para sempre a observar o Koi. É uma coisa simples trabalhar a madeira desse modo, mas o resultado final é sempre fascinante.
— Porque é que não conseguiste passar no teste, Koi? — perguntei-lhe antes. Nunca me contou o motivo. Mudava sempre de assunto, ou continuava o que estava a fazer, sem me dirigir uma palavra.
Mas esta noite ele suspira e pousa o canivete.
— Lembras-te do teu treino? — pergunta-me.
O meu pai entra e coloca uma grande tigela de água fervida na mesinha. Submerjo nela as mãos, sorvo um gole, e deixo que a água morna me deslize pela garganta. O meu pai sai muito calado e, minutos depois, ouço o ribombar de uma tempestade. — Tivemos treinos em sobrevivência durante anos — observa Koi. — E que nos disse sempre o nosso pai?
Olho para a Peri. — Matar ou morrer — murmuro.
Koi acena afirmativamente com a cabeça. Volta a pegar no canivete e vejo que fica com os nós dos dedos muito brancos. — Quando entrares na sala, e hás de entrar, Meadow — diz-me ele, quando me vê abrir a boca para protestar —, estarás aí com uma outra pessoa. Irão testar-te com perguntas. Os resultados serão inconclusivos. São-no sempre.
Atira para o chão o pedaço de madeira e começa a trabalhar numa outra escultura. — Chumbei porque não era suficientemente forte. — As marcas que ele vai fazendo na madeira tornam-se mais fundas. Julgo estar a ver o rosto da minha mãe, mas ele atira com o canivete para cima da mesa e desvia esse pedaço de madeira, antes que eu o possa ver mais de perto. — A única razão por que regressei é porque sou um cobarde. Esforcei-me por sair da sala para que o rapaz que tinha de lutar comigo pudesse viver.
— Só porque não mataste ninguém não quer dizer que sejas um cobarde — comento. — Faz de ti uma boa pessoa. — Koi é corajoso porque ainda é capaz de amar e ser afável, num mundo repleto de ódio.
Mas eu… Eu não me importaria de matar para salvar a minha família, até por um pão.
— Só uma pessoa poderá sair dessa sala viva, Meadow, com um emprego. E serás tu. Tu conseguirás fazer aquilo que eu não fui capaz.
Olhamos fixamente um para o outro. — Matar ou morrer — diz ele. Volta a ocupar-se da sua escultura, calmo e em silêncio; ele é tão diferente de mim.
Porque, de súbito, apercebo-me do que o Koi me está a tentar dizer.
Sou uma assassina, treinada pelo meu pai, e sempre o fui. Levanto-me e pego no pedaço de madeira. A Peri irá querer ficar com ele.
— Lamento ser quem sou — digo, com um suspiro, ao acomodar-me na cama com a minha irmã. Ela volta-se, e eu sinto o seu bafo quente na face.
Esta noite estarei em segurança.
Na cidade, a segurança é uma coisa do passado. A percentagem de assassínios subiu para trezentas mortes por mês e qualquer pessoa pode ser a próxima. Foi o que aconteceu à minha mãe.
Amanhã, serei capaz de matar para não morrer.
CAPÍTULO 4
ZEPHYR
–Limpa-me esse lixo, 72348! Que é que pensas que isto é? Uma creche? Mexe-te, Programado!
O funcionário da Descontaminação do Local de Crime e de Trauma é um grande sacana. E não um dos sacanas do costume. É novo aqui, começou a trabalhar há pouco tempo… são dos piores que poderemos encontrar, com calças novas, lavadas e muito bem passadas a ferro, talvez pela mãe dele, e é pago pelo seu abastado pai da Iniciativa.
Ele é uma Sanguessuga de primeira apanha. Esse género de pessoas está protegido por um Alfinete Versão 2.0. Os que têm os genes CTSD parecem envelhecer mais lentamente do que nós, e nenhum deles tem uma ruga ou uma cicatriz que se veja.
Mergulho a esponja num balde de lixívia e espremo-a, com o cheiro forte a invadir-me as narinas. A costumeira onda de náusea percorre-me o corpo. A Talan está a olhar fixamente para mim enquanto arranca o Alfinete do braço sem vida da vítima; nada mais a separa, para além de um par de luvas de látex, dos tendões do número 34570. O funcionário Sanguessuga aproxima-se, e a Talan coloca o Alfinete numa caixa com fechadura. As nanites serão recicladas para a próxima pessoa que tenha a infelicidade de ter nascido nos Baixios.
Sabem que mais? Penso que as Sanguessugas merecem uma morte sangrenta e serem atiradas para uma campa rasa.
A Talan debruça-se sobre outro corpo com uma cabeça quase esmagada. Vejo-a revirar os olhos azuis-claros. Rio entre dentes. Quase consigo ouvir-lhe a voz a lamentar-se: — Oh… meu DEUS… Zephyr… Ohmeudeus… Não é assim tão terrível para ti. És um RAPAZ. Estou seriamente a considerar a prostituição em vez disto.
Eu mostro-lhe os dentes num sorriso aberto e começo a trabalhar esfregando o chão manchado de sangue. A Talan não é nada feia. Ela é uma daquelas mulheres com um ar sexy e misterioso; cheia de curvas, no melhor sentido da palavra, com olhos eletrizantes e cabelo escuro que lhe roça a cintura fina. Ela iria ter mais rações alimentares se se tornasse uma dessas raparigas, não há dúvida, mas, se o fizesse, não iria durar muito. Nada nos Baixios dura muito tempo.
Um rasto de suor quente percorre-me a espinha. Fazer limpezas sob o céu da Florida não é trabalho fácil. Hoje é domingo. Dia de recolha, o pior dia da semana. É um dia de luto e reflexão.
Pego numa pá e deslizo-a por baixo de um corpo. Ao longo dos passeios de cimento rachado da cidade veem-se corpos. Cadáveres. Alguns mortos há uns dias; outros há horas. Veem-se corpos cobertos de moscas, de pássaros que depenicam nos nossos almoços e roubam madeixas de cabelo para fazerem ninhos. Mas o pior de tudo é o sangue. Seco, rios de sangue em crostas, espalhados pelas ruas da cidade como cola. O cheiro metálico é de cortar a respiração e, quando o calor se eleva do alcatrão e o Sol incide de tal maneira forte como se estivéssemos debaixo de uma lente gigantesca, o sangue começa a borbulhar. Quando ferve durante muito tempo, começa a queimar-se.
O meu trabalho é limpá-lo. Todos os Programados desempenham os trabalhos que mais ninguém quer fazer. Como estarem encarregues do lixo; levar montes do mesmo para o Cemitério, uma grande montanha de lixo nas margens da cidade onde os membros das quadrilhas de meliantes não hesitarão em nos degolar. Podemos trabalhar como engraxadores para as Sanguessugas. Lavar-lhes os uniformes.
São tudo trabalhos para malucos, mas temos de os fazer. Primeiro Mandamento: Honrar a Iniciativa. Cada semana, ao domingo, eu apareço e observo tudo com muita atenção. Esfrego e limpo e agonio-me, e perco o meu almoço duas vezes. Sento-me no meio de um mar de moscas e tento não pensar no dia em que encontrei a filha da Talan estendida e toda torcida no passeio.
O pior era que a Arden ainda respirava, ali estendida, encharcada no seu próprio sangue. Os golpes eram tão fundos que nem mesmo as nanites os conseguiam estancar. Vi a Talan levantá-la do chão e tentar levá-la para que a socorressem, mas uma Sanguessuga apontou-lhe logo uma espingarda à cabeça. Uma das maiores, com balas que lhe abririam um buraco enorme no crânio. — Acaba com ela — disse-lhe ele. — Faz o teu trabalho como deve ser.
Fui eu quem o fez em vez dela.
Não podia permitir que tivesse de ser a Talan a fazê-lo.
Mas esse é o preço que pagamos por sermos Programados. Somos todos peões, órfãos, sem outra escolha. Faremos tudo para sobreviver, e as Sanguessugas certificam-se de que será assim.
A campainha soa. É altura do intervalo para almoço. À minha volta, os Programados movem-se como um único bloco, como uma vasta migração até ao Salão de Rações Alimentares. O edifício é baixo e atarracado, uma velha escola primária aproveitada dos dias antes de o mundo se ter tornado um inferno. Ao canto, um enorme buraco na parede está tapado com pedaços de lona azul. Talvez do tempo de um velho ataque aéreo antes de o Perímetro ter sido construído. Os sobreviventes originais dizem que se está melhor aqui. Dizem que até as árvores morreram devido à Peste, que os pássaros todos tombaram do céu. A minha teoria é que o mundo é uma coisa terrível, não importa onde estejamos.
— Vamos a andar depressa. Temos uma cidade para limpar, Programados! — exclama a Sanguessuga como se estivesse a ladrar. A meu lado, consigo ouvir a Talan num protesto entre dentes. Entramos no salão e somos assaltados por um cheiro a carne fora de prazo. Quente. Asfixiante. Suficientemente forte para arruinar o apetite de qualquer pessoa, mas estamos tão tremendamente esfomeados que nem nos importamos.
Ponho-me na fila atrás da Talan. O funcionário Sanguessuga que aqui está é alto e grosseiramente gordo. Como uma esfera demolidora. Ele observa enquanto mostramos os nossos números de catalogação, e grita-nos para que mantenhamos um andamento certo. Eu olho para os ecrãs que mostram imagens do que podemos comer hoje. Um naco de qualquer coisa semelhante a carne. Penso nisso como sendo gato duas vezes frito. Um copo de água reciclada. Uma mulher, com o cabelo tão curto como o dos homens, passa-nos o nosso saco de ração alimentar através de uma pequena abertura na divisória de vidro. Recebemo-lo sem nos queixarmos. Se assim não fizéssemos, seríamos castigados.
Por vezes há pessoas que são castigadas até morrerem.
— Isto é uma merda — comenta a Talan logo que arranjamos um lugar numa das mesas. Ela põe uma mancheia de carne na boca. — Estas Sanguessugas voltaram a cortar as nossas rações…
Eu olho para a minha insignificante porção. — Caraças, Talan, tens razão.
— Essa palavra nunca irá voltar a estar na moda — observa ela.
Encolho os ombros. — Se eu quiser que a palavra entre na moda, assim será. As palavras são praticamente deusas, não sei se estás a ver…
— Tu é que deves estar a ver coisas, se queres que te diga. Será que te dei uma pancada na cabeça, sem querer, com uma das pás? — Ela acaba de comer em tempo recorde.
Todos os dias nos parecem dar menos. Mais fica para as Sanguessugas comerem. O seu complexo habitacional, em forma de torre, tem um portão e encontra-se rodeado de guardas armados. Há dias em que penso meter os braços através das barras de ferro para poder arrancar uma maçã da árvore que está sempre fora do meu alcance. Mas, se o fizesse, seria mais um cadáver para a Talan levantar do chão e, se bem que ela por vezes me faça perder as estribeiras, não posso permitir que continue nesta vida sozinha. Ela é a pessoa mais próxima que tenho, a minha única família.
— Meu Deus, faria tudo para ficar gorda — observa a Talan. — Tu não? Pensa nisso, Zephyr. Imagina que estás tão empanturrado que nem consegues respirar.
Mantenho-me calado. As Sanguessugas podem não se importar com o nosso bem-estar, mas ouvem tudo o que dizemos.
Estou convencido que me observam muito de perto. Enquanto como, quase sinto os seus olhos a furarem-me as costas. Por vezes imagino que me conhecem. Que me conhecem realmente, de um modo ainda mais profundo do que a minha mãe ou o meu pai. Ponho a comida na boca e deixo-a deslizar pela goela. Sabe a terra e a minhocas.
— Oh, não quero acreditar no que está a acontecer! — exclama a Talan, como se rugisse. Ela põe-se de pé e eu levanto os olhos.
As Sanguessugas formaram um grupo no outro lado do salão. Revezam-se no uso dos seus chicotes negros, atingindo alguém. Estremeço.
Os que pisam o risco têm de pagar por isso. As cicatrizes que tenho nas costas são a prova do que acabei de dizer.
— Passamos a vida dedicados e preocupados com a segurança — irrompe uma das Sanguessugas em voz alta. Todos se calam e todos olham para ele.
— Dedicamos as nossas vidas para fazer deste mundo um lugar melhor! Exigimos que nos obedeçam, pois queremos proteger-vos da dor! — acrescenta, no mesmo tom de voz. É um indivíduo alto, com cabelo escuro e um rosto magro. Axel Worth. O funcionário chefe dos Programados. — E é esta a vossa paga…!
Duas Sanguessugas levantam do chão um homem ensanguentado. Há sangue que lhe escorre do nariz. — Este homem roubou mais rações alimentares — explica o funcionário Worth. — Este homem cuspiu na nossa noção de autoridade. Cuspiu-vos na cara.
A Talan murmura a meu lado: — Será que poderemos agora acabar de comer?
Dou-lhe uma pisadela por baixo da mesa para a calar.
— Sabem por acaso o que fazemos aos que desobedecem? — grita Worth.
Ninguém lhe responde. Ele observa a multidão à sua volta, parece ignorar-me e eu desvio o olhar. Não quero chamar para mim as atenções. É por isso que ainda estou vivo, e a Talan devia aprender comigo antes de levar uma coronhada na cara.
— Acabamos com eles!
Worth puxa duma pistola. Não deixo de o observar enquanto ele a levanta, de braços esticados e estendidos, e puxa o gatilho. Há sangue que esguicha para a divisória de vidro e que começa a escorrer lentamente, como chuva numa vidraça.
Ninguém se mexe. Ninguém suspira, ou grita, ou chora, porque todos nós já o vimos antes.
— Mas… que… estúpido — diz-me a Talan.
— Também estava a pensar o mesmo — observo, e acabamos as nossas refeições. Deixam o corpo estendido no chão.
Depois do almoço, os Programados logo se encarregarão de o levarem.
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Raven, Noites de Florença
Sylvain Reynard
Da mão de Sylvain Reynard, autor bestseller da Série Gabriel, surge um romance obscuro e sensual numa cidade envolta em mistério
Em Florença, na célebre Galeria Uffizi, estão expostas ilustrações de Botticelli de valor incalculável. Pertencem ao professor de Literatura Gabriel Emerson que acedeu ao pedido da esposa em partilhar com o mundo a beleza das obras de arte.
Quando as ilustrações são roubadas, a principal suspeita é Raven Wood, uma jovem restauradora de arte que trabalha na galeria. Desesperada por limpar o seu nome, descobre que uma figura misteriosa conhecida como o Príncipe de Florença governa o submundo da cidade.
Ele é perigoso, letal e tudo o que deseja é vingança contra Gabriel e Julianne. Para salvar as suas vidas, Raven terá de enfrentar um mundo de sombras e desafiar a autoridade do Príncipe. Mas será ela capaz de decifrar os enigmas da noite e revelar a verdade?
Patricia Briggs
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